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A lonely God

Os campos verdejantes e cheios de vida que cobriam as planícies e colinas até perder de
vista agora estão mortos. A terra, que antes apresentava uma coloração marrom-
avermelhada intensa, ficou pálida, acinzentada e desidratada, com rachaduras que lembram
o fundo de um lago seco. A vegetação vibrante foi substituída por árvores retorcidas e
arbustos espinhosos. A água dos rios e nascentes ganhou uma textura oleosa e de cor
escura, repleta de venenos letais, borbulhando gases de odor repugnante. Até mesmo o céu,
onde antes Amaterasu brilhava exuberante com sua energia purificadora, agora é formado
por espessas espirais de nuvens negras que lançam uma escuridão lúgubre até onde o olho
alcança, fazendo os mais incautos confundirem o dia com noite. O próprio ar é carregado
de vapores fétidos, que queimam as narinas e a garganta ao serem respirados.

Em meio a esse cenário desolado, um Deus assiste as ruínas devastadas do que há poucas
semanas era uma gigantesca cidade, centro de uma civilização milenar. Ele olha com
aversão a uma única flor, entre muitas outras que já apodreceram. Um último bastião de
beleza e pureza em meio à corrupção. Com um gesto sutil de seu braço mutilado um pouco
abaixo do cotovelo, cicatriz de sua última conquista, a última resistência viva daquela terra
também sucumbiu, murchou, putrefou. Agora apenas o impecável kimono roxo escuro,
quase preto, flutua vitorioso no ar repleto de cinzas e o cheiro ferruginoso do sangue.

Monstros inomináveis saqueiam impiedosamente as edificações que resistiram ao fogo e a


magia negra que consumiu seus habitantes. Aqueles que sobreviveram, fugiram para o
norte, mas mesmo assim são perseguidos e massacrados sem misericórdia, amaldiçoados
com estupidez e solidão pelo Deus Negro. Pelo menos destruir os ogros foi um esporte para
ele, muito diferente daqueles patéticos homens-rato, ou Nezumi como se autodenominam,
que morreram aos milhares apenas com o impacto de sua queda em Ningen-do. Covardes,
fugiram antes que os exércitos de Jigoku pudessem testar seu poder.

Ele sente o ódio queimar intensamente em seu peito. Os anos de sofrimento e tortura no
mais terrível dos lugares inspiraram no Kami caído o desejo incontrolável por destruição.
“Esse mundo vai queimar e ser reduzido a cinzas por ter acolhido meus traidores irmãos e
irmãs, aqueles malditos que me abandonaram a mercê da influência dos demônios mais
cruéis, em um reino de depravação e caos. Nem que isso demore mil anos para acontecer”,
pragueja solitário. Além de poder incalculável para dar cabo de sua palavra, a corrupção
que agora corre em suas veias lhe deu algo que seus irmãos jamais terão aqui: imortalidade.
Apesar de também serem Kamis, agora eles são mortais e dividem as fraquezas das
criaturas de Ningen-do.

Ele deseja ardentemente sentir o coração de Hantei batendo entre os seus dedos, com sua
mão ainda enterrada em seu peito, torcendo lentamente enquanto observa a chama da vida
se apagar dos seus olhos. Os outros também vão pagar caro por tê-lo abandonado, mas vai
permitir que continuem vivendo para servi-lo, com exceção de Akodo, e Hida, talvez
Bayushi, ainda não conseguiu decidir. Esse será o castigo que Fu Leng reserva para eles.
Que sintam na pele tudo aquilo que ele sentiu e que se arrependam eternamente. E quando
eles não agüentarem mais a dor e o desespero, que implorem pela misericórdia da morte.
Mas até isso pretende negar.
“Mestre”, diz a descomunal criatura enquanto se aproximava, “a cidade foi expurgada por
completo. Não sobrou nada vivo”. A malícia é palpável na voz metálica do demônio, um
dos recém-surgidos Oni Lords, que comandam os exércitos de Jigoku. “Excelente, Hatsu
Suru”, comemora com um brilho sádico no olhar. “O combate foi formidável para dar aos
meus exércitos a experiência que necessitam para enfrentar meus irmãos e seus fracos
discípulos”. As mandíbulas da criatura vibram em excitação. “Mestre, Suiteru foi eliminar o
último foco de resistência Nezumi. Já podemos avançar sobre Hida e seus humanos”.

“Isso cabe a eu decidir, seu demônio imprestável”, diz com fúria o Deus negro, fazendo o
Oni se encolher em terror. Mas passados poucos segundos os sinais da explosão de ódio
desapareceram completamente de seu rosto. “Só vou iniciar o ataque aos humanos quando
dominar esse estranho padrão de magia dos ogros. A prisioneira capturada tentando escapar
do expurgo do ogros, em direção ao Norte, já está convertida e oferecendo os
conhecimentos que possui de forma espontânea. Inclusive, passou a se autodenominar
‘Noiva Demoníaca de Fu Leng’. Essas criaturas têm um estranho fascínio pelo
melodrama”. Hatsu Suru passa sua enorme língua sobre os lábios e presas, como se
saboreando as informações. “É tão poderosa assim essa magia de sangue, Mestre?”,
questiona. “Mais poderosa do que qualquer coisa que eu tenha aprendido nos anos que
passei em Jigoku”, diz satisfeito.

“E quanto esses humanos que estão se juntando a nós? Não confio neles, meu senhor. Os
humanos são nossos inimigos, nossa presa”, questiona Suru. “Isso também cabe a eu
decidir. Esse é meu último aviso: se voltar a questionar minhas decisões vou mandá-lo de
volta aos confins do inferno e colocarei os piores carrascos para torturá-lo. Fui claro?”,
esclarece aterrorizante. “Sim Mestre, muito claro”, responde com a voz apagada, quase um
suspiro. “O medo é uma arma poderosa que faz até mesmo criaturas repugnantes como
esses onis serem servos confiáveis”, pensa Fu Leng. Que criatura se rebelaria contra um
mestre que poderia destruí-los com apenas um gesto, uma palavra? “Os humanos são
apenas ferramentas de destruição. Mutsuhito e sua tribo Noriaki vão reforçar nossas fileiras
e alguns de seus homens vão dar seus nomes a meus onis, assim como aconteceu com você,
Suiteru e Mamoru”, explica.

A menção de suas contrapartes faz o rosto de Suru se torcer de repugnância. Ele sente
vontade de questionar o mestre de quantos mais pretende criar, pois isso significaria saber
quantos mais deve dominar ou destruir, mas as ameaças por insubordinação ainda são
recentes. Ele sabe que não deve atravessar certos limites, mas vai voltar ao assunto mais
tarde, quando a mente caótica de Fu Leng estiver distraída com outras preocupações.

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