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José Eduardo Agualusa

Manuel Alegre
Fernando Pinto do Amaral
Dulce Maria Cardoso
Mário de Carvalho
Mia Couto
Ondjaki
Inês Pedrosa
Patricia Reis
Urbano 1ávares Rodrigues
José Mário Silva

,~
~-.-
JOSÉ MÁRIO SILVA
Atendedor de Chamadas

(bip) Olá Alfredo,não sei se te lembras de mim, sou a Teresa, (bip) Alô big boy, daqui fala o Rodrigo. Ouvi dizer que esta-
aquela miúda avantajada com quem tu gozavas,no terceiro ano vas de férias em parte incerta, sem telemóveis e sem morada,
de Medicina. Estudávamos juntos em casa do Rodrigo, lem- longe do mundo civilizado. Só espero é que tenhas escolhido
bras-te, rodeados pelos caJhamaços de Anatomia, eu a ouvir os um sítio porreiro, tipo cabana debaixo das palmeiras no
The Cure e a curtir uma depressão, vocês a beber gin e a fumar Havai ou um iglo redondinho no pólo Norte. Desde que haja
ganzas. A verdade é que já não nos vemos há uns anitos e uma rapariga com flores ao pescoço por perto, ou uma esqui-
entretanto deixei de ser miúda, embora continue avantajada. mó insaciável, estás no Paraíso. Olha, quando chegares, apita.
Hnunrnm, porque é que estou a falar disto? Desculpa, Alfredo, Com sorte, ainda te levo a passear na minha nova máquina,
acho que não me sinto à vontade a falar para uma máquina, um BMW descapotável que é uma bomba que até faz
acabo por nunca dizer as coisas como queria, baraJham-se-me impressão. Esta semana vou fazer a rodagem do bicho para
as ideias, sabes como é. Conseguir o teu número foi uma odis- Espanha, a ver se impressiono nuestras herrnanas com o ful-
seia porque não vens na lista, meu safado, mas isso agora não gor do turbo. Mas depois volto, está descansado. Há muito
interessa. A razão do meu telefonema é muito simples: queria álcool na tua casa, muita conversa para pôr em dia, muito
convidar-te para um jantar dos antigos colegas de faculdade. jogo do Benfica na SportTV.Até breve, um abração. (bip)
E adivinha lá quem é a organizadora de tão distinto evento?
Acertaste, that's me, imagina só, a gaja que abandonou o curso (bip) Alfredo Manuel, fala a tua mãe. Tu só sabes é apo-
no quarto ano para se dedicar à pintura, a degenerada, a ovelha quentar-me, é o que é. Então havia alguma necessidade de
. negra. Resumindo, se puderes estar presente, dia 20, às oito da desapareceres assim, de um momento para o outro, sem
noite, num restaurante do BairroAlto a confirmar, diz-me qual- dizer água vai? Só me dás arrelias, filho. Lá na clínica, disse-
quer coisa. Espero que o meu número ainda conste da tua ram que foste de férias. Pois, pois, foste de férias e não me
agenda. E se me pudesses arranjar os contactos de alguma disseste nada. Tanto podes estar no Tibete como nas ilhas
malta, era óptimo. Que é feito do Rodrigo, o maluquinho dos Maurícias, a morrer de sede no deserto ou de fome numa pri-
carros? E a Magda, a nossa menina de ouro, a nossa promessa, são turca. Um dia ainda me matas, é o que é, com as ralações.
já estará perto do Nobel? E a Ana Maria? Sempre casaste com Sim, que o meu coração anda fraquito, com sopros e coisas
ela? Tiveram filhos? Diz-me qualquer coisa. (bip) dessas, mas tu, que és médico, nem te dás ao trabalho de me
telefonar a perguntar como estou. Andei eu a criar um filho o meu carro a fazer as mudanças para o novo apartamento?
para isto. Ai Alfredo Manuel, Alfredo Manuel, quando é que E a miúda, a que dias é que vens buscá-la, afinal? É a tua
ganhas juízo? Beijos da mamão (bip) filha, lembras-te? Como a tua mãe costuma dizer, e olha que
nunca pensei dar-lhe razão, tu não tens remédio, Alfredo. Vê
(bip) Olá, querido, fala a Cristina. É só para dizer que ado- se te dignas a aparecer, Ok? (bip)
rei, adorei, adorei. Foi tudo perfeito. A viagem, as montanhas,
a pousada, a manhã de domingo, a compota de morango no (bip) Senhor doutor Alfredo Barros, é o seu contabilista. .
pão quente, os miminhos, os abraços, as palavras, tudo, tudo, É só para dizer que surgiram umas dúvidas em relação às
tudo. Só não percebo porque não estás em casa há três dias. suas contas de Fevereiro, nomeadamente no que concerne às
E porque não disseste nada desde o regresso a Lisboa. Acho facturas de táxi e de refeições. Lembro também que está na
que precisamos de beber um café e reflectir um pouco sobre altura de passar o cheque do NA e de pagar mais uma pres-
a nossa relação. (silêncio). Isto é, se na realidade tivermos tação da dívida à Segurança Social. Fico a aguardar uma res-
uma relação. Liga-:-me,por favor. Muitos beijos da tartarugui- posta da sua parte, espero que tão rápida quanto possível.
nha. (bip) Com licença. (bip)

(bip) Alfredo, sou eu, a Ana Maria. Falei há pouco com a (bip) Alô bíg boy, é Rodrigo quíen habla. Estou a ligar de
tua mãe, que também não sabe por onde tu andas. Afinal, Valência. A Espanha é um espanto, meu amigo. E as espa-
o que é que se passa contigo? Na semana passada parecia nholas nem se fala. Digo-te uma coisa: se tivesse que pagar
tudo em ordem e agora está tudo de pantanas. Ou muito me por todos os pecados que cometi nestes últimos dias e nestas
engano ou deu-te outro amoque, outra pancada na cabeça, últimas noites (sobretudo nas noites), já era meu o lugar mais
e fugiste para Marrocos, à procura do sentido da vida nos quentinho do Inferno. Isto é que é vida, amiguito. Liberdade
cumes do Atlas. Se assim foi, espero que faças bom proveito absoluta, uma estrada pela frente, dinheiro no bolso. É o Easy
da tua loucura e que voltes depressa. Daqui a pouco, só falta Rider em versão de luxo e só para um gajo, estás a ver? Olha,
a polícia procurar por ti. Aliás, já que vem a talhe de foice, tenho que desligar. Estou num motel com uma pantera a
chegaste a pagar aquelas multas de quando andaste com precisar de festas, compreendes. Amanhã sigo para os Pire-
néus. Talvez telefone quando chegar a Paris. Tchauzesku até em vários estilos: hiper-realista, abstracto, pontilhista, à la
Brejnev. (bip) Warhot cubista. Uma coisa muito pós-moderna. E olha,
posso estar enganado, mas o homem é a tua cara chapada. Se
(bip) Alfredo, é a Cristina outra vez. Assim não dá, Alfredo. não nos virmos antes, até dia 20. Um abraço. (bip)
Não pode ser assim. Sempre que passamos um fim-de-
-semana juntos, foges de mim logo a seguir. Da outra vez (bip) Alfredo, nunca estás quando as coisas se tornam difí-
compreendi, ainda estavas muito fragilizado com a separa- ceis, não é? Só queria avisar que a menina está com sarampo'
ção' essas coisas todas. Mas desta vez não compreendo. e pergunta de três em três minutos pelo pai. Fala a Ana
Posso parecer forte e decidida, mas também tenho as minhas Maria, claro, para o caso de já teres esquecido a minha voz.
fraquezas, as minhas crises de auto-estima. E assim não pode (bip)
ser. Já fui abandonada demasiadas vezes e não quero entrar
noutra espiral de sofrimento, entendes, não quero. Pensa (bip) Está lá? Está lá? Não estás mesmo em casa, Alfredo?
nisto tudo e fala comigo. Depressa, está bem? Um beijo. (bip) É a Magda. Preciso muito de falar contigo. O Rodrigo mor-
reu. E eu acho que fiz um grande disparate. (Choro convul-
(bip) Eh, Alfredo, lembras-te do Joaquim Veloso, o espe- sivo). Porquê? (bip)
cialista-mor em traqueotomias? Sou eu, rapaz. Estás por cá?
Gostava de falar contigo e de saber como é que montaste (bip) Olha, Alfredo, daqui é o Joaquim, quatro da tarde, dia
uma clínica tão próspera em tão pouco tempo. Sabes quem é 21. Nem tenho palavras. Costumavas dizer que o destino é o
que me deu o teu contacto? Nem vais acreditar: foi a Teresa, mais irónico e cruel dos juízes. Tinhas razão. Em vez do jantar
aquela maluca gordinha que abandonou o curso e foi para de reencontro, o velório do Rodrigo, estupidamente morto
Belas Artes. Lembras-te? Ela está a organizar uma jantarada numa curva perto de Bordéus. E tu, o melhor amigo, ausente.
com a malta e não pára de falar em ti. Sabes que mais, encon- Depois, a Magda internada de urgência, com duas caixas de
trei-a no cocktail de uma exposição com quadros dela, na comprimidos no estômago e uma carta em cima da cama,
galeriaVértice Negro. A série intitula-se Obsessão e é composta explicando a paixão antiga pelo colega de curso. Parece que
por uns trinta e tal retratos de um mesmo homem, pintados aconteceu tudo de uma vez. O Rodrigo metido num caixão;
MÁRIO DE CARVALHO
A Espada Japonesa

a Magda no hospital, a soro. E até o desaparecimento da Teresa, o frade Góis, o mais antigo manuseador de manuscritos do
hoje de manhã. Ela não disse nada a ninguém, limitou-se a convento, um dia recebeu uma espada japonesa, afiada e com-

partir sem deixar rasto. Mas sabes, eu era capaz de apostar prida. Foi o último samurai do Japão que lha enviou do leito de

que foi à tua procura. Até sempre. (bip) morte, lembrado de um encontro aprazível com o frade, quando
ele missionava por lá. Era a única coisa valiosa que o samurai
possuía, e ao frade a deixou.
Ao retirar o legado da sua grande caixa de cartão prensado,
coberta de estranhos caracteres, perante os olhares curiosos e'
intrigados da confraria, o frade ficou perplexo. Que fazer com
aquela espada? Se ao menos fosse espada cristã antiga, de
punho em cruz, poderia ser pregada numa parede, simbolizar o
grande sacrifício, rezar homem a ela; mas assim, espada pagã,
lisa, funcional de matar só, que fazer com ela?
Opinaram frades velhos que o objecto passasse a fazer parte
do museu do convento. Mas o museu do convento ainda não
existia. Era uma arrecadação escura, num vão de escada, em que
desde há muito se arrumava numa prateleira uma velha lucema
romana, que ninguém sabia ao certo se era romana, ou imitação
de feira.
Ficou decidido que a espada seria o segundo objecto do
museu mas, enquanto este não estivesse constituído e exposto,
deveria o frade destinatário ser considerado seu depositário fiel.
Nenhum remédio teve o frade senão convir e lá levou a espada
para a cela, onde foi colocada por cima da parca estante de livros
sacros que possuía.
Mas o aço refulgia. Com o encandeamento mal pôde o frade Os outros frades passavam por ele e diziam-lhe:
engrolar as suas orações e variadas vezes teve que rectificar - Homem, credo, que tem? Faça-lhe jejuns que passa, faça-
enganos cometidos. -lhe jejuns ...
Sentado à sua mesa de trabalho, a espada evocava-lhe gritos E ele fez jejuns, completou com cilícios apertados, cavou forte
ferozes, soltares de sangue, baques de corpos, retinires de armas, na horta, sob a vigilância severa do frade hortelão, mas parecia
num alarido bélico que lhe cortava a concentração e desviava o que quanto mais debilitava o corpo, tanto mais as imagens e sons
pensamento dos textos sacros. de guerra se lhe tomavam nítidos, vivazes, e sentia, no fundo do,
E nem as imagens de cavalgadas e confrontos se lhe desvane- peito, romper um brado bélico, as mãos enclavinharem-se, os
ceram quando tentou pregar olho na sua humilde enxerga. ombros quase doerem de não sarilharem em rodas de cortar ares
O frade atribui toda aquela excitação nocturna à presença e cabeças e corpos.
perto da espada e, levantando-se de rompante, foi escondê-la As noites que se seguiram foram de diálogo tenso entre o
entre montes de pergaminhos por decifrar que se acumulavam a frade e a espada. Tinha-a removido do seu invólucro de
um canto da cela. papéis velhos e colocado respeitosamente sobre a manta da
Nem assim conseguiu adormecer. enxerga. Observava-lhe o brilho, a luminescência que quase
Daquelas bandas vinha -lhe um rumor de restolhada, um iluminava o quarto, tocava-a com a ponta do dedo, sentia-
zunir de fender ares que o sobressaltava no tentar dormir. De -lhe os vibrares subtis, as exigências ocultas. Não tardou a
maneira que passou o resto da noite a deambular de um lado notar que, em voltas e círculos irregulares e caprichosos, um
para o outro, de canto em canto da cela, escondendo a espada vermelho reluzia por sobre o gume, quase lançando chispas
em todos os escaninhos sem resultado, porque ela vinha-lhe fulvas sobre o leito. Na noite em que o notou, o padre horro-
sempre ao pensamento, tesa, cortante, zunidora,homicida ... rizou-se e benzeu-se vezes e vezes. Depois, começou a apre-
Durante todo o dia seguinte, o frade arrastou-se pelos ciar o halo, a tocá-lo com a ponta dos dedos, a brandir a
claustros, sonolento, sorumbático, soturno, de cabeça baixa do espada com ambas as mãos, vendo reluzir no escuro as for-
sono, corpo estremecido pelo pensamento de impactes lace- mas arabescas fugazmente desenhadas pelo brilho vermelho
rantes. a faiscar.
Um dia, o hortelão veio queixar-se de que todas as couves Nessa noite, nos arredores de Tóquio, apareceu, cavalgando,
tinham sido cerce cortadas pelo talo, e exibia molhos de verduras um samurai, de armadura feroz, volte ando a espada aos gritos.
mutiladas. Na manhã seguinte, os frades acordaram tarde porque Ninguém soube de onde veio.
o sino não tocou. O sineiro, um frade quase anão, mostrava a Eram, no entanto, as feições, tivesse alguém sido atento, do
altos gritos a corda do sino cortada. No ofício do dia seguinte, velho frade Góis, o estudioso de manuscritos.
todos os cmos e velas estavam talhados em dois, as chamas dei-
xavam nódoas gordurosas no soalho de lajedo.
- Alto, que temos o Demónio entre nós! - disse o abade,
e ordenou que se fizessem procissões pelos claustros, com mui-
tas rezas e queimares de incenso. Enxames de frades exorciza-
ram competentemente todos os recantos do convento.
Nessa noite, todas as aves de capoeira tiveram o pescoço cor-
tado.
Os padres montaram vigilância ao diabo, munidos de água
benta e das eficazes orações aprendidas. À cautela, dois deles
tiveram à mão grossos cacetes de marmeleiro, para o que viesse.
Mas nada veio e as coisas aquietaram-se. O convento voltou
à normalidade, o sino foi consertado, a capoeira reposta, a horta
amanhada, e toda a gente pensou que as procissões tinham tido
resultados, embora diferidos. Sossegou o convento e todos os
frades passaram a dormir em paz.
Certa madrugada, o sino voltou a não tocar. Horas altas, nin-
guém bulia no convento.
Todos os frades, excepto um, jaziam nos catres, degolados,
num mar de sangue.
MIACOUTO
o Menino Que Escrevia Versos

De que vale ter voz Tudo corria sem maisl a oficina mal dava para o pão e para
se só quando não falo é que me entendem? a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecerl pelos
De que vale acordar recantos da casal papéis rabiscados com versos. O filho con-
se o que vivo é menos do que o que sonhei? fessoul sem pestanejol a autoria do feito.
- São meus versos sim.
l

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola.


Aquilo era coisa de estudos a maisl perigosos contágiosl más
- Ele escreve versos!
companhias. Pois o rapazl em vez de se lançar no esfrega-
Apontou o filhol como se entregasse criminoso na esqua-
-refrega com as meninasl se acabrunhava nas penumbras el
dra. O médico levantou os olhosl por cima das lentesl com o
pior aindal escrevia versos. O que se passava: mariquice inte-
esforço de alpinista em topo de montanha.
lectual? Ou carburador entupidol avarias dessas que a vida do
- Há antecedentes na famaia?
homem se queda em ponto morto?
- DesculpeI doutor?
Dona Serafina defendeu eHlho e os estudos. O pai confor-
l
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu
mado exigiu: então ele que fosse examinado.
l l

que não. O pai da criançal mecânico de nascença e preguiçoso


- O médico que faça revisão geral parte mecânica
l l parte
por destino nunca espreitara uma página. Lia motores interpre-
l l

eléctrica.
tava chaparias. Tratava -a beml nunca lhe bateral mas a doçura
Queria tudo. Que se afinasse o sanguel calibrasse os pul-
mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
mões e sobretudol lhe espreitassem
l o nível do óleo na figa-
- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
deira. Houvesse que pagar por sobressalentesl não importava.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual
O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que
Olhos baixosl o médico escutou tudo sem deixar de escre-
l

fossem esses diasl para elal tinham sido lua-d~-mel. Para ele l

vinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de


não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccio-
tempo. Com enfadol o clínico se dirigiu ao menino:
nado nesses namoros de unha sujal restos de combustível
- Dói-te alguma coisa?
manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
- Dói-me a vida doutor.
l
o doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse
o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: o paciente.
Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos Na semana seguinte, for~ os últimos a ser atendidos.
e a enfrentar o miúdo: O médico, sisudo, tacitumeou: o miúdo não teria, por acaso,
- E o que fazes quando te assaltam essas dores? mais versos? O menino não entendeu.
- O que melhor sei fazer, excelência. - Não continuas a escrever?
- E o que é? - Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho .
- É sonhar. este pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho -
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do quase a melO.
filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais
Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? grave do que se poderia pensar. O menino carecia de inter-
Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de namento urgente.
sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe. - Não temos dinheiro - fungou a mãe entre soluços.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer,visto a idade. - Não importa - respondeu o doutor.
Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modés- Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali
tia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido
antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para tratamento. E assim se procedeu.
melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o inter- Hoje quem visita o consultório raramente encontra o
rompeu: médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto
- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psi- onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a
quiátrica. voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silên-
desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos cios:
versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio.
Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na
PATRÍCIA REIS
Fúria

Há aquele momento estranho que antecede a chegada. Há definir um sentido? As pessoas encaram-na com uma certa
um barulho nas escadas, a porta do elevador, os passos na pena. Como se não fosse mulher o suficiente, como se depen-
laje. Um aperto, uma quase dor. Prevendo o pior, ainda na desse dela. Nessas ocasiões sorri e olha para longe e espera
esperança do melhor, ela deixa-se estar de costas para a que passe, sabendo de antemão que falta uma resposta e que
porta, na cozinha, a barriga húmida da água que escoa do do seu silêncio nascerá apenas desconforto, constrangimento
lavatório. Depois há duas hipóteses: ou ele se chega, bem dis- e, por fim, outra vez pena.
posto, a mão na porta do frigorífico, e uma frase qualquer, Ele não julga nada porque a vida não lhe ensinou isso. Ensi- ,
desgarrada, como se estivessem a falar há muito; ou a mão na nou-lhe as coisas básicas da sobrevivência: o trabalho é para
porta do frigorífico e o silêncio a romper o gelo no copo alto. trabalhar. Um homem não deixa e não faz um rol de coisas que
Um aperto, uma quase dor. não importa agora nomear. Um homem fuma e bebe, não
São segundos que definem a noite. Manchas de peso que chora nem pede. Paga as contas e verifica o dinheiro. Fecha a
alastram pela casa, propagando a aflição no peito, o bater do porta da casa de banho. Sempre. Compra roupa uma vez por
coração descompassado, deslocado, a meio do pescoço, pres- ano. Usa o mesmo tipo de sapatos. Arranja as coisas em casa.
tes a deixar o corpo. Se o coração não estivesse preso, embru- Procura não pensar. Nada de sonhos, nada de fantasias.
lhado nas cordas e no tubo de dez centímetros que é a
traqueia, talvez conseguisse gritar. Um grito por ela, de terror
por aguentar, de aviso, de guerra. Mas ela está assim, inter-
dita, as mãos na água, as pulsações a contabilizar o medo e o Ela sonha com as extensões de cabelo da apresentadora do
medo a dominar tudo. concurso da televisão; sente as dores da outra que foi trocada
Julga-se protegida por não terem tido filhos. Seria pior. pelo marido seis meses depois de um casamento majestoso
Tenta acreditar nisso. Muitas vezes acredita. Defende-se sem numa quinta qualquer; comove-se com o nascimento da
habilidade quando lhe perguntam porque é que não tiveram, modelo; tenta imitar a actriz da telenovela da noite. Tudo isto
porque é que não cumpriu o seu papel, a coisa grandiosa da antes de fazer o jantar, as revistas escondidas do olhar dele.
maternidade que confere sentido de vida mesmo ao que não A mesa está posta e ele arrasta-se com o copo na mão até ao
terá nunca sentido. Para a esquerda? Para a direita? Como sofá gasto. Ela atreve-se:
o corpo dele, por fim, na colcha salmão brilhante e os
sapatos a não quererem sair, as calças a prenderem-se, a força
São coisas assim. Coisas que a limitam, aprisionam, desfi- de o levantar um pouco mais, ele a gritar:
guram. Ele toma-a um conjunto de coisas sem nome. Ela
sabe e sabe melhor quando vê as horas a serem comidas
pelas telenovelas e o ouve roncar de álcool no sofá. A cozinha
Ela, paciente, silenciosa, a trabalhar com as mãos, os botões
está arrumada, não lhe resta mais nada, a luz da televisão a
da camisa, o fecho do casaco de malha. As coisas no corpo dele.
engolir-lhe a tristeza e ela a perder a noção de si, pronta para
Podia despi-lo de tudo o resto. Não é capaz sequer de pensar
ser uma princesa, alguém outro que ninguém conhece. Uma
nisso. Despi-lo da pequenez, da falta de mundo, da bebida, da
mulher, por fim.
vida. Podia até matá-lo, como viu numa série policial.Podia isso
Nessa sexta-feira fazia calor. Era tarde. Não lhe apetecia
tudo e naquela sexta-feira imaginou que sim porque na televi-
carregá-lo para a cama, ouvi-lo na sua voz empastada a
são uma senhora pequenina, com um xaile pelos ombros, dis-
dizer asneiras, a chamar-lhe nomes, a agressividade nos
olhos, os gestos de guerra, a guerra dos dois. Quando parou olhando-a nos olhos, só a ela.
Na imensidão da noite, dentro daquela luz branco-azulada
começou? Já nem se lembra. Um dia, a mão no frigorífico, o
do ecrã, a escritora virou-se para ela e disse:
. gelo e o copo, sempre o mesmo copo. Começou assim e não
importa se foi ontem ou há dez anos porque nada mais
As mulheres pequenas inspiram um sentimento de vaga hosti-
mudou. Há uma sucessão de desenganos e pequenas triste-
lidade, como se pertencessem a uma raça diferente1.
zas que convergem lentamente para um final que ela enten-
de como um castigo: a mão no cotovelo dele a endireitar o
corpo, rumo ao quarto, a mão dele na blusa dela, os dedos
grossos.
E naquele momento, como uma vocação, encarou o marido
José Mário Silva, «Atendedor de Chamadas»
no sofá, o copo em cima da mesa de acrílico,junto ao cinzeiro
Efeito Borboleta e Outras Histórias (Oficina do Livro, 2008)
imundo, a paisagem da sala por inteiro, como uma novidade,
e considerou que era verdade, a escritora tinha razão.
Mário de Carvalho, «A Espada Japonesa»
Ela, como outras, era de uma raça clif rent . E, sem fúria, já
Contos da Sétima Esfera (Editorial Caminho, 1998)
calma nos seus ímpetos de fuga, optou por deixar o marido
no sofá de comucópias. Fez a cama de lavado, uns lençóis
Ondjaki, «Jangada para longe»
brancos de algodão puro, suaves e menineiros, e deitou-se
E se Amanhã o Medo (Editorial Caminho, 2005)
nua no calor da noite. Repetiu alto a frase de Agustina Bessa-
-Luís sobre as mulheres pequenas e a diferença.
Mia Couto, «O Menino Que Escrevia Versos»
Sentiu -se bem.
O Fio das Missangas (Editorial Canlinho, 2004)
Pela primeira vez, depois de muito tempo, d t n t t mpo,
sentiu-se bem.
Patrícia Reis, «Fúria»
O Prazer da Leitura, vaI. 2 (FNAC -Teorema, 2009)

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