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História com recadinho Luísa Dacosta

Uma vez no reino das bruxas deu-se um acontecimento


extraordinário: nasceu uma bruxinha, radiosa, como o sol – o que
foi considerado de muito mau agoiro. Que fazia aquele sorriso
emoldurado por cachos de caracóis entre vapores peçonhentos? –
Perguntavam, desconfiadas, as bruxas velhas, fungando maus
pressentimentos à distância. E as suspeitas confirmaram-se. A
bruxinha não mostrava nenhuma das aptidões requeridas por
aquele mundo de trevas, árvores mortas e aves agoirentas.

Volta não vira, escapulia-se na sua vassourinha, faltava às aulas de


bruxaria e ria do mau-humor das mestras a quem as suas
gargalhadas, tilintantes, arrepiavam como guinchos de portas
ferrugentas. Pior. Libertava os sapos e as cobras destinadas aos
caldeirões dos malefícios. E como se isso não bastasse para
acender remoques e achaques das bruxas todo o dia, dançava e
cantava como se um pássaro-borboleta ali tivesse, magicamente,
surgido. Não, o seu reino não era aquele. E numa noite em que uma
revoada de bruxas ia sair para o mundo dos homens a semear
maldades, a bruxinha decidiu abandonar aqueles lugares insalubres
e atreitos a constipações. Cautelosa e à distância, seguiu-as para
aprender o caminho. Mas não foi fácil.

As bruxas por onde passavam, deixavam tudo num breu de


tempestade, porque apagavam a luz das estrelas só com o
fraldejar das suas capas sinistras. E a bruxinha tinha esperar que
elas se afastassem enfronhadas nas suas maldades, para voltar a
acender-lhes o lume com a rama da sua vassourinha. E tanto se
atrasou nesse trabalho que a determinada altura as perdeu de
vista. Deixá-lo Não tinha importância. O importante era ter saído
de uma vez para sempre daquele mundo charquento. Cansada – a
aventura e as emoções também cansam – resolveu dormir um sono
e depois se veria. Embrulhou-se na sua capa, escolheu uma nuvem
fofa e deitou-se ao lado da vassourinha. E só acordou, manhã alta,
já com sol.

Ah! Depois daquelas trevas, pantanosas, era maravilhoso! E a


bruxinha pôs-se a esfregar os olhos para ver se estava bem
acordada e se tudo aquilo não era um sonho. Que claridade,
dourada e quente! E com o céu era vasto! Saltava de nuvem para
nuvem como se saltasse poldras de um imenso rio azul. E de nuvem
em nuvem foi-se aproximando da Terra. Era impossível acreditar
que houvesse tantos brilhos, tantas cores e tantos perfumes! As
árvores entregavam ao vento as suas ramagens e o coração mexe-
mexe dos choupos branqueverdejava. A oliveira da serra noivava-
se de flores. Os castanheiros começavam a acender as candeias.
Enrubesciam as pinhas dos cocorutos nas cerdeiras.

Os miosótis bordejavam as fontes, que cantavam pelas suas


biquinhas. E córregos d’água penteavam ervas, longamente. Por
toda a parte havia milagres nascidos para murchar: o estrelado de
florinhas frágeis, róseas, azuis, de cabecinhas penugentas,
acinzadas, papoilas, pampilho, soajo, umbelas brancas, amarelas,
dedaleiras roxas com as suas campainhas em filas, colegiais e
cabisbaixas, madressilvas que perfumavam. Ouviam-se pios, trilos
e os gaios desdobravam a festa azul das suas asas, entre os
pinheiros. Abelhas, açodadas, no festim dos pólenes, bebiam em
corolas cetinosas e cruzavam a transparência das asas das
libélulas, enquanto lagartixas, ondulantes, rabiavam ao sol. Ao pé
dos tufos de giestas, o tojo, envolto nos sudários das teias de
aranha, lucilava em gotículas de orvalho.

Era de acreditar! Até das pedras nascia floração branca e rósea


dos musgos! Ah! Aquele era o seu mundo! Que bom! Que
contentamento! A bruxinha estava ansiosa por dar largas à sua
alegria e ao seu humor benfazejo. Pôs- se a cavalo na vassourinha
e foi pousar num ramo de cerejeira carregadinho de pássaros, no
debique da prova. Ao vê-la, porém, debandaram num gorjeio
assustado: - Uma bruxa! Uma bruxa! - Não fujam! Não fujam! –
Gritava a sossega-los – Não quero o vosso canto… sou vossa amiga!
Mas eles já iam longe e nem a ouviam. “Os pássaros têm uma
cabecinha de alfinete”, pensou tentando consolar-se.

Tinha de fazer outra tentativa. Felizmente, oportunidades era o


que mais havia. Decidiu-se pelas borboletas que andavam na sua
gandaia livres, perseguindo-se namorando-se num jogo de
esconde-esconde. Eram outro milagre com o laminado frágil e
simétrico das asas, mosqueadas, com lóbulos de cor, algumas
preciosamente caligrafadas a tinta-da-china, outras brancas,
como se a flor do sargaço dos montes, cansada de ser rasteira, se
erguesse em voos curtos e dançasse a alegria da
libertação…Semelhavam flores suspensas no ar. Que agradável
devia ser acompanhar aquele voo dançante! E a bruxinha abriu a
capa, corola ondulada, e juntou-se às borboletas. Mas… -“julgarão
que quero roubar-lhes as asas?!” – Elas fugiram assustadas,
deixando-a sozinha.

Sentada num muro, dava-se conta de que ninguém a aceitava e de


que praticar o bem era, afinal, uma tarefa difícil! Foi então que
ouviu vozes, alegres, de meninas que cantavam: “E mais uma estela
que na roda entrou. Deixai-a bailar Qu’inda não bailou.”

Aquela cantiga parecia feita de propósito para ela, que ainda não
tinha entrado na roda, nem tinha bailado. Seria? Agarrada à
vassourinha deixou- se cair, estrela cadente, no meio da roda. Não
tinha, porém, tocado o chão e já a roda estava desfeita e as
meninas fugiam em direções várias: Uma bruxa! Uma bruxa! “As
ideias preconcebidas! Estava estabelecido de uma vez para sempre
que as bruxas eram maléficas. Era uma regra sem exceção como a
das palavras esdrúxulas. Que tristeza!” E assim, naquele mundo de
risos, águas claras, asas e flores, o seu primeiro dia tinha sido
dececionante. Era um pouco com os pássaros, filha dos ares, e
voltou a escolher uma nuvem berço para dormir. Mas quem diz?!
Não podia pregar olho, apesar da macieza do colchão. Precisava de
pensar. Achar uma saída. O que desejava tinha-lhe parecido tão
simples e fácil! Quando se ofereciam rosas, tiravam-se-lhes os
espinhos para a dádiva ser só beleza, cor e perfume. Era isso que
queria: partilhar com os outros a beleza do mundo sem os espinhos
do sofrimento. Mas como fazer? Se despisse a sua capinha
perderia todos os seus poderes, com ela ninguém a aceitava.

Empalideciam os luzeiros da noite, insinuava-se a madrugada e a


bruxinha continuava a revolver-se na nuvem como uma filhó na
sertã. Súbito faiscou-lhe uma ideia: tornar-se invisível” Era isso.
Desse modo ninguém se assustaria ao vê-la, podia ajudar quem
precisasse, brincar com quem quisesse. Ah! Finalmente era-lhe
possível dormir.

Ao outro dia seria um grande dia. E foi. - Sabes, mãe, hoje estive
por um triz de cair ao ribeiro, quando estava à erva para os
coelhos, mas, felizmente, um ramo segurou-me. Que susto! “Um
ramo?!”, Ria a bruxinha contente. Que divertido ajudar os outros
e sentir-se útil sem que ninguém soubesse” Como as pessoas eram
crédulas! - Afinal ainda tenho algumas forças, Deus seja louvado!
Olha o molho de lenha que trouxe hoje do monte para o nosso
borralho de Inverno! – Confiava a velhota ao gato, que lhe fazia
companhia. “Forças?! Pobre criatura, dobrada pelos anos e pela
vida! Se não fosse a vassourinha a dar-lhe uma ajuda, não teria
aguentado o carrego com as pernas trôpegas!”

E foi assim que ficou pelo mundo a dar uma mãozinha aos mais
precisados. Infelizmente, não chega para as encomendas. Há tanto
sofrimento e o mundo tão vasto que nem mesmo uma bruxinha
consegue estar ao mesmo tempo em múltiplos lugares! E é por isso
que aqueles que perderam os seus olhos de criança afirmam que
ela não existe. Mas estão enganados, embora eu reconheça que é
muito difícil procurar uma bruxinha invisível sem aquis certos.
Onde encontra-la? Essa é também a minha dificuldade e por isso
recorro a vós. Talvez vocês possam ajudar-me, pois penso que a
esta hora, com tantas bondades, já lhe foi possível revelar-se.

Com certeza já se mostrou a uma menina imaginativa que não se


deixou enganar pelo seu traje e olhou primeiro o seu sorriso: - Olha
que divertido: uma fada vestida de Carnaval! Talvez mesmo vocês
já a conheçam e por isso vos peço que lhe levem um recadinho meu.
- Digam-lhe que fui eu que contei a história dela. E peçam-lhe que
venha ver-me e que traga a vassourinha para varrer umas sombras,
escuras, do meu coração. Não se esqueçam” Estou tão precisada!
Tragam-na até mim!
Edição ou reimpressão: 01-2010

Editor: Edições Asa

Páginas: 48

Temática: Livros em Português > Infantis e Juvenis > Livros


Infantis de Ficção

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