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Mas que sentir de filho? Se de algum modo fico toda sem um único sentimento
reconhecível. Que sentir? Vejo sua cara queimada de sol, cara inteiramente inconsciente da
expressão que tem toda concentrada que está como um bicho bonito, delicado e feroz – nas
lambidas de seu sorvete.
O sorvete é de chocolate. O filho lambe-o. às vezes se torna lento demais para o seu
prazer, e ele morde-o, faz uma careta que é inteiramente inconsciente da felicidade incômoda
que dá o pedaço gelado enchendo a boca quente. Essa, a boca, é muito bonita. Olho o filho toda
compacta, mas ele está habituado à burrice de meu olhar concentrado de amor. Ele não me
olha, e não se incomoda de ser observado nesse seu ato íntimo, vital e delicado: e continua a
lamber o sorvete com a língua vermelha e atenta. Não sinto nada, senão que sou inteira, pesada
de material de primeira, boa madeira. Como mãe, não tenho finura. Sou grossa e silenciosa.
Olho com a rudeza de meu silêncio, com meu olho vazio aquela cara que também é rude, filho
meu. Não sinto nada porque isso deve ser amor pesado e indivisível. Ali estou, recuada. Recuada
diante de tanto. O indevassável me deixa com uma espécie de obstinação áspera;
impenetrabilidade é o meu nome; estou ali, endomingada pela natureza. Minha cara deve estar
com um ar teimoso, com olho de estrangeira que não fala a língua do país. Parece um torpor.
Não me comunico com pessoa alguma. Meu coração é pesado, obstinado, inexpressivo, fechado
a sugestões.
Estou ali, e vejo: o rosto do menino tornou-se por um instante ávido – é que deve ser
encontrado algum pedaço de sorvete com mais chocolate que o resto, e que a língua esperta
captou. Ninguém diria que sou magra: estou gorda, pesada, grande, com as mãos calejadas não
por mim mas pelos meus ancestrais. Sou uma desconfiada que está em trégua. O filho come
agora a casca de sorvete. Sou uma imigrante que se enraizou em terra nova. Meu olho é vazio,
áspero, olha bem, e vê: um filho de cara concentrada que come. (P. 159-150)
MÃE-GENTIL
Por um tempo atrás meus filhos andaram me descobrindo. Quero dizer como pessoas, pois
como mãe me haviam descoberto desde que nasceram, assim como eu os descobri até antes de
eles nascerem. Foi tão curioso como, na descoberta, além de mãe, eles e consideravam uma
pessoa com quem conversar. Quando eu ia escovar os cabelos no espelho do banheiro, eles me
seguiam para continuar a conversa. Um deles desconfiou do que estava acontecendo e
perguntou-me com franqueza: você não estará se fazendo de interessante para nós? Respondi
que não, que eles é que estavam interessados em mim. Faziam-me perguntas, respondia o que
podia. Um deles um dia desses me pediu: me dê o nome de alguns escritores profundos que eu
queria ler. Ah, então ele já estava sentindo necessidade? Fiquei contente, e mais contente ainda
de lhe dar nomes de escritores profundos brasileiros. Ele andou lendo uns contos de Tchekhov
e gostou. O livro era Contos da velha Rússia, que recomendo aos leitores. É livro de bolso.