Você está na página 1de 24

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


DEPARTAMENTO DE TEORIA GERAL DO DIREITO E DIREITO PRIVADO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

VICTOR LACERDA BOTELHO

A LINGUAGEM DO JOGO DAS DECISÕES: uma análise da interpretação judicial


sob a filosofia tardia de Ludwig Wittgenstein

Recife
2019
Sumário
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................3
2 AS REGRAS ESTÃO AÍ POSTAS PARA SEREM SEGUIDAS OU PARA SEREM
PENSADAS?.........................................................................................................................3
2.1 AS REGRAS, A INCOMPREENSÃO E A AÇÃO.....................................................................3
2.2 UMA CERTA IMAGEM DAS REGRAS.................................................................................10
2.3 O DIREITO DOGMATICAMENTE ORGANIZADO COMO UM MURO TERAPÊUTICO
EM RELAÇÃO ÀS DÚVIDAS......................................................................................................10
3 UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA...........................................................................10
3.1 DESIGNAR, NOMEAR E EXPRIMIR.....................................................................................11
3.2 SEGUIR-UMA-REGRA...........................................................................................................12
3.3 GRAMÁTICA...........................................................................................................................12
3.4 FORMA DE VIDA....................................................................................................................12
3.5 PROPOSIÇÕES DOBRADIÇA................................................................................................12
4 A TEXTURA ABERTA DA LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA
PARA H. L. A. HART, SEUS CRÍTICOS E SEUS PARTIDÁRIOS...........................12
3.1 HART, WITTGENSTEIN E A CONTENDA ENTRE POSITIVISTAS E CRÍTICOS............19
3.2 INTERPRETAÇÃO, CASOS FÁCEIS E CASOS DIFÍCEIS...................................................19
3.3 ABANDONANDO OS PRESSUPOSTOS DA DISCUSSÃO..................................................19
4 O MOMENTO DO JULGAMENTO COMO UMA CERTA CONFIGURAÇÃO DE
JOGOS DE LINGUAGEM...............................................................................................19
5 CONCLUSÃO..............................................................................................................................20
REFERÊNCIAS.................................................................................................................20
1 INTRODUÇÃO

2 AS REGRAS ESTÃO AÍ POSTAS PARA SEREM SEGUIDAS OU PARA SEREM PEN-


SADAS?

“I am sitting with a philosopher in the garden; he


says again and again "I know that that's a tree",
pointing to a tree that is near us. Someone else ar-
rives and hears this, and I tell him: "This fellow isn't
insane. We are only doing philosophy.””
L. Wittgenstein, On Certainty.

2.1 AS REGRAS, A INCOMPREENSÃO E A AÇÃO

Começo este trabalho com algumas indagações: se recebo uma ordem, quanto tempo
devo dedicar a interpretá-la antes de executá-la? Quanto esforço devo fazer para saber exata-
mente o que se espera de mim, quais são as partes essenciais e não-essenciais de seu cumpri-
mento; se a ordem é justa ou injusta, se é conveniente ou inconveniente? Devo cumprir uma
ordem apenas porque a recebi? Existe alguma diferença entre entender a ordem e aceitá-la?
Quem está apto a dar ordens e quem deve segui-las? Em que momento dou-me por satisfeito e
simplesmente faço o que se espera de mim? E se aquele que me deu a ordem não se satisfizer
com o que apresento como o seu cumprimento? Quem decide quando uma ordem foi cumpri-
da ou não: quem dá as ordens, ou quem as recebe? Quando sigo uma ordem, sigo também um
conjunto de regras? Infiro as regras a partir do comportamento humano ou elas estão listadas
em um documento escrito? Se nunca observei ninguém levar certas regras a cabo, como posso
saber que as estou seguindo à risca? Quando estou pronto para saber se interpretei uma regra
corretamente ou incorretamente? Que tipo de comportamento conta como seguir uma regra,
criar ou alterar uma regra? Há uma distinção entre uma regra e os seus critérios de satisfação?
É sequer essencial responder a todas estas perguntas antes de me lançar à ação, ou posso
deixá-las de lado?

Quando pensamos o direito e os seus meios de criação, interpretação e aplicação, ques-


tões sobre a natureza e o modo de manipulação de normas, regras e ordens são praticamente
inevitáveis. A todo momento, ao lidarmos com a legislação, somos bombardeados com instru-
ções acerca de como devemos nos comportar no mundo, como das nossas ações mundanas de-
correm consequências jurídicas, como devemos ler os textos normativos, como podemos aces-
sar os meios de prestação jurisdicional, etc. Os primeiros artigos do Código Civil falam sobre
a aquisição de personalidade jurídica: quem está apto a ser sujeito de direito e como diferentes
sujeitos possuem diferentes poderes legais. A Constituição organiza o Estado, separa as com-
petências entre os entes federativos, cria órgãos, estabelece princípios de consecução de certos
objetivos políticos. O Código Penal estabelece tipos penais e prescreve sanções para quem ne-
les incorre, inclusive com o uso da força e da violência estatal. Uma rápida consulta ao Códi-
go de Processo Civil revela um sem número de procedimentos a serem atendidos pelas partes,
seus representantes legais, por juízes e outros partícipes do processo.
Submeter-se a um sentimento de insegurança é tentador quando há tantos detalhes a se-
rem levados em consideração e um passo em falso pode causar impactos profundos na vida
das pessoas. E se eu não levar todos os critérios relevantes em consideração? Até que ponto
um princípio deve guiar o meu entendimento de outros princípios e de regras? Se entendo que
há uma contradição entre regras, qual delas deve prevalecer? Insegurança e prostração andam
juntas: se não consigo me decidir quanto ao caminho a ser tomado, a bifurcação na estrada, ao
contrário de representar a multiplicidade de caminhos, torna-se um beco sem saída. Quando
tentamos examinar as regras de perto, parecemos nos perder em meio a elas.
Trabalhando o famoso conflito entre Ulisses e as sereias descrito por Homero na Odis-
seia, Torquato Castro Jr. argumenta que a solução utilizada pelo nativo de Ítaca para lidar com
o canto das sereias – amarrar-se ao mastro do navio para escutar o seu canto sem ser levado às
profundezas do oceano – é típica do Herói, não do Filósofo. Atendendo aos conselhos de Cir-
ce, Ulisses amarra-se ao redor do mastro de sua nau e obstrui o canal auditivo de seus compa-
nheiros de viagem como uma forma preventiva de autocontrole. Ulisses, portanto, toma uma
atitude pragmática, não-reflexiva: esquiva-se de um obstáculo sem indagar-se o porquê de ele
ter sido posto, de que é feito, como foi parar ali, quais são as consequências de não transpô-lo.
Não delibera sobre a melodia ao mesmo tempo bela e fatal das sereias. A mente de Ulisses
está livre do feitiço da contemplação. Para o herói grego, basta a certeza de impor-se contra o
mundo através de suas ações.
Tal sorte não tem o filósofo. Continuando o tema da dualidade ação/reflexão e ancorado
no Visconde Medardo de Terralba, protagonista de O Visconde Partido ao Meio do romancis-
ta italiano Italo Calvino1, Torquato Castro Jr. cria então a metáfora do Filósofo-Partido-Ao-
Meio. Em um momento inicial, o Filósofo contenta-se em fazer as suas análises com a certeza
da compreensão em algum ponto futuro. Depois, talvez frustrado pelas dificuldades crescen-
tes, passa a considerar a sua própria atitude em relação ao mundo como objeto de análise e
imagina a possibilidade de estar enleando-se em suas divagações. Só então passa a duvidar da
dúvida ela mesma.
Contudo, duvidar da dúvida não é, por si só, garantia de liberdade (CASTRO JR., 2009,
p.3).
Para explicar a embasbacação do Filósofo diante de certas questões, Castro oferece um
símile inspirado: “algumas perguntas representam verdadeiras armadilhas: são como plantas
carnívoras, cujas flores encantam para devorar.” (CASTRO JR., 2009, p. 2). Em outro parág-
rafo, compara a atitude filosófica a uma prisão: “Enquanto ainda sequer suspeita de sua pri-
são, o Filósofo permanece, atraído como uma mariposa pela luz da lâmpada, crendo voar para
a lua, mas não escapando do pequeno círculo vicioso de sua própria reflexão. (CASTRO JR.,
p. 3, 2009). A imagem pintada é de constrição, aprisionamento, prostração e surpresa involun-
tária; o Filósofo enxerga problemas onde outras pessoas só veem palavras, objetos ou situa-
ções corriqueiras. É o prodígio concretizado: o Filósofo incorpora a dúvida da dúvida ao seu

1 O livro é parte de uma trilogia, a qual inclui também os romances “O Cavaleiro Inexistente” e
“O Barão nas Árvores”.
pensamento e, ao fazê-lo, parte-se em dois. Uma está livre do aprisionamento das perguntas,
enquanto a outra permanece cativa delas. (CASTRO JR., 2009, p.5)
A saída para uma Filosofia-partida-ao-meio, estaria, nas palavras do autor, em uma “fi-
losofia do artifício” ou numa “filosofia do engenho e arte” no lugar de uma “filosofia terapêu-
tica à moda wittgensteiniana”. (CASTRO JR., 2009, p. 6)
Diante da sugestão proposta, faço um alerta: é preciso tomar cuidado com o artifício.
Não é exagerado imaginar que, em seu íntimo, Ulisses tenha obtido mais satisfação em ter lu-
dibriado as sereias através de sua astúcia do que em ter escutado o seu canto. Afinal de contas
– passando de um texto clássico para um texto moderno – quando o pícaro João Grilo, um dos
personagens principais de o Auto da Compadecida, tramava as suas presepadas contra o pa-
deiro, o padre, o bispo e o fazendeiro de Taperoá, fazia-o apenas para matar a fome ou tam-
bém por esporte, por diversão? O amor pelo artifício pode nos levar a esquecer o que nos le-
vou a ele em primeiro lugar.
De todo modo, a metáfora da inatividade causada pelo pensamento reflexivo é útil para
o tema deste trabalho e foi retratada, talvez melhor do que qualquer texto filosófico ou técnico
possa fazê-lo, nos romances e na poesia; isto é, na literatura. Cabe aqui uma pequena digres-
são para analisarmos alguns excertos extraídos de duas obras diferentes.
Fernando Pessoa, através de Álvaro de Campos, seu heterônimo conhecido pelo sensa-
cionismo e um certo niilismo na visão de mundo, escreveu um dos poemas mais belos da lín-
gua portuguesa, “Tabacaria”. Nele, o Eu-lírico olha da janela do próprio quarto para a rua e
nota que “em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!” e pergunta-se:
“Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?” (PESSOA, 1996,
p.52). Depois, literalmente abrindo parênteses em meio ao poema, compara a sua condição de
hesitação perpétua com a verdade com que uma menina come doces, deixando transparecer a
sua inveja em relação à possibilidade de gulodice irrefletida:
“(Come chocolates, pequena
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida)”
(PESSOA, 1996, p.54)(Grifos meus)
Pensar é “deitar tudo para o chão”, é quedar-se incapaz de comer o chocolate mesmo
tendo-lhe aberto o embrulho.
Mas talvez tenha sido Dostoiévski quem melhor representou o dilema, e suas conse-
quências existenciais, em que se encontra o Filósofo-partido-ao-meio. Em um romance cur-
tíssimo, narrado em primeira pessoa e publicado em 1866, Memórias do Subsolo, o autor rus-
so conta a história de um ex-funcionário público de quarenta anos, que se apresenta como sen-
do um “homem doente”, um “homem mau” e um “homem desagradável”. Este narrador, cujo
nome jamais é revelado mas ficou conhecido pela alcunha de “homem do subsolo”, conta que
foi um funcionário público maldoso e grosseiro, e que obtinha prazer em praticar condutas
maléficas, só para depois se desmentir e afirmar que jamais fora maldoso ou grosseiro. Aliás,
diz o homem do subsolo que não conseguiu chegar a nada, sem poder tornar-se mau, bom, ca-
nalha, honrado, herói ou inseto (DOSTOIÉVSKI, 2000, pp.15-17).
É em meio a lampejos de ódio gratuito como estes que o narrador descreve um tipo so-
cial de seu tempo e de sua sociedade, o homem de ação, perguntando-se o seguinte: “Como é
que faz, por exemplo, aquele que sabe vingar-se e, de modo geral, defender-se?” (DOSTOI-
ÉVSKI, 2000, p.21).
A resposta dada pelo próprio homem do subsolo merece ser transcrita:
“Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele, nada mais resta
em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse tipo atira-se direta -
mente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres abaixados, e somente um
muro pode detê-lo. (Aliás, diante de um muro tais cavalheiros, isto é, os homens di-
retos e de ação, cedem terreno com sinceridade. O muro para eles não é causa de
desvio, como, por exemplo, para nós, homens de pensamento, e que, por conseguin-
te, nada fazemos; […] Não, eles cedem terreno com toda a sinceridade. O muro tem
para eles alguma coisa que acalma; é algo que, do ponto de vista moral, encerra uma
solução – algo definitivo e, talvez, até místico).
(DOSTOIÉVSKI, 2000, pp.21-22)

Contraposto ao homem de ação está, naturalmente, o homem de pensamento, figurando


na narrativa como um “camundongo de consciência hipertrofiada”. Este camundongo, quando
se sente ofendido – atitude bastante comum em sua rotina, já que ele “se ofende com facilida-
de, como um corcunda ou anão” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.20) –, acumula rancor em propor-
ção maior ao do homem de ação, e, ao contrário deste, não considera a “sua vingança um sim-
ples ato de justiça” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.23), o que o leva às raias do desespero:

“O infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpeza ini-


cial, uma infinidade de outras torpezas, na forma de interrogações e dúvidas; acres-
centou à primeira interrogação tantas outras não resolvidas que, forçosamente, se
acumula ao redor dele certo líquido repugnante e fatídico, certa lama fétida, que
consiste nas suas dúvidas, inquietações e, finalmente, nos escarros – que caem sobre
ele em profusão – dos homens de ação agrupados solenemente ao redor, na pessoa
de juízes e ditadores, que riem dele a mais não poder, com toda a capacidade das
suas goelas sadias. Naturalmente, resta-lhe sacudir a patinha em relação a tudo e,
com um sorriso de fictício desprezo, no qual ele mesmo não acredita, esgueirar-se
vergonhosamente para a sua fendazinha. Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso
camundongo, ofendido, machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor
frígido, envenenado e, sobretudo, sempiterno.”
(DOSTOIÉVSKI, 2000, p.23)
A diferença entre o homem de ação e o homem de pensamento está apresentada sim-
bolicamente através de suas diferentes atitudes em relação a um muro. Mas o que significa
este muro? A resposta é simples: “Bem, naturalmente, as leis da natureza, as conclusões das
ciências naturais, a matemática”. Se fica demonstrado, por meio de “combinações lógicas ine-
vitáveis”, que “descendeis do macaco” ou que “uma gotícula de vossa própria gordura vos
deve ser mais cara do que cem mil dos vossos semelhantes”, não se deve contrariar este resul-
tado nem tentar refutá-los, “porque dois e dois são quatro”. Esta é, de todo modo, a postura do
homem de ação. O homem de pensamento, diametralmente oposto a este, consequentemente,
não vê sentido em baixar a cabeça diante do muro e questiona: “[…] que tenho eu a ver com
as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me agradam essas leis e o
dois e dois são quatro?”. O questionamento não se dirige, neste ponto, sequer à existência ou
não de um muro, de um limite objetivo ou não, trata-se mesmo até de uma questão de conve-
niência: “Está claro que não romperei esse muro com a testa, se realmente não tiver forças
para fazê-lo, mas não me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um
muro de pedra e de terem sido insuficientes as minhas forças” (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.25).
Podemos falar agora, no lugar de um “Filósofo-partido-ao-meio”, de um “jurista do
subsolo”. Este subsolo está quase sempre localizado ao fim dos degraus poeirentos pertencen-
tes a escadas esquecidas. Enquanto dificilmente se encontram filósofos da matemática, da físi-
ca e da ciência em faculdades de matemática, de física ou de química e biologia, as faculdades
de direito e os seus homens de ação parecem achar oportuno manter um jurista do subsolo
sempre ao seu alcance, ainda que não tenham em mente fazer-lhe um visita nem tão cedo.
Não me estendi nestes exemplos à toa. Eles não só constituem uma plataforma robus-
ta para continuarmos a discussão sobre o seguimento de regras, como proporcionam uma cha-
ve de leitura crucial para o entendimento da filosofia tardia de Wittgenstein. A proposta se-
quer é original. Em seu “Manifesto do Surrealismo Jurídico” o argentino Luis Alberto Warat
antecipou este tipo de junção entre ficção e filosofia, com o alerta: “Juntar o direito à poesia já
é uma provocação surrealista” (WARAT, 1988, p.13). Deste modo, escolhi utilizar livremente
textos literários ao lado de textos científicos e técnicos por algumas razões, reveladas a seguir.
Em primeiro lugar, por influência do orientador deste trabalho, Torquato Castro Jr.,
pois em sua produção teórica estão sempre presentes conexões com artefatos ficcionais, dos
quais a metáfora do Filósofo-partido-ao-meio e a alusão à atitude heroica de Ulisses são
exemplos. Por outro, parte justamente de uma reflexão de Wittgenstein acerca de seu próprio
trabalho. Em uma de suas anotações compiladas e publicadas sob o nome de ‘Culture & Va-
lue’, Wittgenstein afirma: “I think I summed up my attitude to philosophy when I said: philo-
sophy ought really to be written only as a poetic composition” (CV, p.24e). Esta atitude teve
reflexos amplos e perpetuou-se em autores como Richard Rorty e sua “filosofia sem espe-
lhos”. Distinguindo entre dois tipos de filosofia, uma “sistemática”, comparável à de Immanu-
el Kant, e uma “edificante”2 – relacionada a Wittgenstein, Gadamer, Heidegger e Nietzsche –,
Rorty afirma que esta última pode consistir “na atividade poética de materializar novos objeti-
vos, novas palavras, novas disciplinas” em que a anormalidade do discurso não deve ser evita-
da, mas é até mesmo um subproduto necessário à sua consecução (RORTY, 1979, p.360).
O pragmatista norte-americano toma a sério esta fungibilidade entre filosofia e poe-
sia (dir-se-ia, antes, literatura) e, no livro “Contingency, irony, and solidarity”, passeia com
tranquilidade por entre Donald Davidson, George Orwell, Sigmund Freud, Vladimir Nabokov
e Nietzsche. Estou de acordo com esta visão, ao menos no que concerne o escopo e o lema de
trabalho desta dissertação. Negá-la seria entrar em conflito comigo mesmo. Pois se desejo de-
monstrar que a postura da filosofia do direito e da dogmática jurídica em relação às regras,
normas, aplicações e interpretações devem ser vistas como uma prática, descartando-se vi-
sões representacionais do significado, devo eu também supor que estou inserido em uma
prática na qual textos de ambos os mundos dialogam entre si. Tomo as palavras de William de
Baskerville, o monge-detetive do romance O Nome da Rosa: “Frequentemente os livros falam
de outros livros” (ECO, 1986, p.330). E, às vezes, para compreendermos um livro devemos
ler outros tantos.
Pois então, à luz do que foi dito, retorno à pergunta inicial: as regras estão postas
para serem seguidas ou para serem pensadas? A resposta, como é comum num trabalho deste
tipo, vem qualificada por um condicional e depende da localização geográfica do jurista que o
lê; se está no subsolo, na superfície ou se consegue transitar entre os dois mundos, deixando
as vestes talares na chapelaria ao pé da escada e vestindo-as de novo ao deixar o subsolo.

2 Filosofia edificante não se confunde com “construtiva”, no sentido de um programa de pesqui-


sa em que se intenta, metaforicamente, empilhar tijolos sobre tijolos para criar um edifício de conhecimento ca-
paz de solucionar certos problemas filosóficos e não meramente dissolvê-los. Para um tratamento deste tipo à
pergunta “O que é direito?” ver (OLIVEIRA, 2016).
tanto que um dos slogans mais lembrados das Investigações Filosóficas diz justa-
mente o seguinte: “What is your aim in philosophy? To show the fly the way out of the fly-bot-
tle.” (IF, 309).

2.2 UMA CERTA IMAGEM DAS REGRAS

2.3 O DIREITO DOGMATICAMENTE ORGANIZADO COMO UM MURO TERAPÊU-


TICO EM RELAÇÃO ÀS DÚVIDAS

Em uma observação particularmente astuta, Ferraz Jr. diferencia o ponto de vista dog-
mático do zetético em torno do caráter eminentemente finito do primeiro. Para ele, as ques-
tões zetéticas são "fechadas" e estão "a serviço da ação e da decisão", enquanto as questões
dogmáticas estão "a serviço da especulação" e podem até mesmo atrapalhar a ação, pois dúvi-
das são progressiva e continuamente levantadas, sem compromisso direto com a obtenção de
uma resposta definitiva (FERRAZ JR., 1997, p. 96 FSDJ). Um dos desdobramentos deste vín-
culo entre dogmática e ação é o que o autor chama de "inegabilidade dos pontos de partida".

3 UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Em seu artigo chamado “Wittgenstein on Rules: The Phantom Menace”, Scott Hersho-
vitz afirma, com alguma teatralidade, ter realizado “um exorcismo da ameaça fantasma”
(HERSHOVITZ, p. 640, 2002) de Wittgenstein no campo da filosofia do direito. Sem desejar
enveredar-me pelos caminhos da necromancia filosófica, buscarei demonstrar que a proclama-
ção do exorcismo foi precipitada: o espectro ainda ronda os corredores da teoria do direito, e é
desejável que assim continue.

Hershovitz tem como tese principal a de que a discussão sobre seguir-uma-regra feita
por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas é irrelevante para a filosofia do direito em ge-
ral e, mais especificamente, para a caracterização da distinção entre casos fáceis e casos difí-
ceis levada a cabo por Hart em O Conceito de Direito. O debate contemporâneo em torno da
utilidade de Wittgenstein para o direito favorece este tipo de atitude, por mais atrapalhada que
ela seja.

Um dos lados do debate, ligado principalmente às tradições do realismo jurídico e dos


estudos críticos, extrai das Investigações Filosóficas a doutrina da indeterminação radical
(STONE, p. 48, 2000) das normas, concluindo por uma visão cética quanto à aplicação do di-
reito pelos juízes: todo texto jurídico deve ser interpretado pelas autoridades julgadoras, abrin-
do margem para interesses pessoais, escusos ou não. O outro lado contesta, também com base
em Wittgenstein, a doutrina da indeterminação radical. Para eles, há normas que são aplica-
das sem interpretação, de modo quase automático. Não negam a existência de ocasiões em
que há interpretação de fato, mas sustentam que há um núcleo geral em que as preocupações
dos céticos são infundadas.

Como se vê, o impasse é mutuamente excludente: os dois lados se contradizem em um


sentido forte, partindo da mesma base teórica. Tal empate técnico impele argumentos como de
Hershovitz. Se os escritos de Wittgenstein são tão obscuros, aforísticos e pouco sistemáticos a
ponto de nos fazer chegar a conclusões irreconciliáveis, talvez seja melhor ignorá-lo. Afinal
de contas, Wittgenstein nunca falou diretamente sobre problemas de teoria do direito.

Nas páginas que seguem, defenderei uma concepção fundamentalmente crítica do uso
que se tem feito de Wittgenstein na filosofia do direito e argumentar, contrariamente a
Hershovitz, pela relevância das Investigações Filosóficas aos problemas teóricos do direito.
Sem cair em uma discussão hiper-focada na interpretação (ou não) de normas, pretendo de-
monstrar como o direito tem base em nossa linguagem ordinária, mas devido a certas especifi-
cidades já discutidas no capítulo sobre o direito dogmaticamente organizado, distancia-se
dela. E é exatamente na medida em que nos distanciamos do uso cotidiano das palavras que a
filosofia do direito e a dogmática jurídica encontram seus problemas insolúveis. Argumenta-
rei, que em vez de utilizar Wittgenstein para focalizar em problemas específicos como o faz a
discussão contemporânea, será mais útil posicionar as nossas lentes analíticas sobre a filosofia
do direito em si.

Deste modo, este capítulo tem dois objetivos básicos: apresentar os conceitos essenci-
ais da filosofia de Wittgenstein e relacioná-los à uma justificativa sobre o porquê de eles se-
rem interessantes para se pensar o direito.

3.1 DESIGNAR, NOMEAR E EXPRIMIR

Recuso, de início, a concepção de linguagem como representação e adotamos a perspec-


tiva de significado como uso (IF, 43). Nos parágrafos seguintes expõe-se o porquê dessa op-
ção e como ela parece, inclusive, ser mais adequada como base a uma teoria retórica do direi-
to. Na abertura das Investigações Filosóficas, Wittgenstein chama a atenção para uma passa-
gem das Confissões de Santo Agostinho, em que o filósofo medieval discutia o aprendizado
da linguagem, relacionando-o com o ato de apontar-se a um objeto e de nomeá-lo. Reproduzo
o trecho integralmente:
“Quando os adultos nomeavam um objeto qualquer voltando-se para ele, eu o perce-
bia e compreendia que o objeto era designado pelos sons que proferiam, uma vez
que queriam chamar a atenção para ele. Deduzia isto, porém, de seus gestos, lingua-
gem natural de todos os povos, linguagem que através da mímica e dos movimentos
dos olhos, dos movimentos dos membros e do som da voz anuncia os sentimentos da
alma, quando esta anseia por alguma coisa, ou segura, ou repele, ou foge. Assim,
pouco a pouco eu aprendia a compreender o que designam as palavras que eu sem-
pre de novo ouvia proferir nos seus devidos lugares, em diferentes sentenças. Por
meio delas eu expressava os meus desejos, assim que minha boca se habituara a es-
ses signos.” (IF, §1)

3.2 SEGUIR-UMA-REGRA

3.3 GRAMÁTICA

3.4 FORMA DE VIDA

3.5 PROPOSIÇÕES DOBRADIÇA

4 A TEXTURA ABERTA DA LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA PARA


H. L. A. HART, SEUS CRÍTICOS E SEUS PARTIDÁRIOS

Uma das teses mais influentes de Herbert Hart para a teoria da interpretação jurídica é,
sem dúvidas, a da textura aberta, acompanhada dos conceitos correlatos de “casos fáceis”,
“casos difíceis”, “zona de penumbra”, “vagueza”, “núcleo estável de significado” e “discricio-
nariedade”. Ao posicionar-se entre a rigidez formalista e a flexibilidade realista (BIX, 1993,
p.7), Hart buscou um meio termo aceitável para seu neopositivismo, permitindo-lhe manter
um grau de separação entre direito e moral sem precisar recorrer a entidades ideais como a
Norma Fundamental de Hans Kelsen. Este tipo de receptividade a um esquema mais elástico
de em relação a uma teoria do significado e da interpretação deve-se em grande parte ao con-
texto acadêmico em que Hart se encontrava. É que a Universidade de Oxford dos meados do
século XX observou o nascimento e desenvolvimento de um novo modo de filosofar, um mo-
vimento que ficou conhecido como o da “Filosofia da Linguagem Ordinária” (comumente
chamado de OLP devido ao seu nome em inglês, Ordinary Language Philosophy), capitanea-
do por figuras como Peter Strawson, Gilbert Ryle e John L. Austin (BAZ, 2012, p.1).
A influência de Hart faz-se sentir até hoje e se o escolhi como principal nome do positi-
vismo para . Boa parte da literatura que se dispôs a discutir as relações entre filosofia da lin-
guagem, interpretação jurídica e determinação das normas arvorou-se em Hart e tomou a sua
descrição da interpretação – mais do que as suas soluções e conclusões – como um programa
de trabalho do qual autores das mais diversas orientações retiraram os problemas filosóficos
de que vão tratar, seja para rejeitá-los, acatá-los ou reformá-los.
Com efeito, é no mínimo razão para incômodo (não para surpresa!) que Wittgenstein
venha sendo levantado como marco teórico por dois campos extremamente antagônicos: um
que vê na impossibilidade de as normas determinarem-se a si próprias e precisam passar por
um processo de interpretação em que questões culturais, políticas, etc entram em cena; e um
em que a interpretação é deixada de lado e a doutrina dos casos fáceis é, em alguma medida,
preservada. Os resultados do levantamento bibliográfico não deixam dúvidas quanto a este an-
tagonismo paradoxal e é preciso deixá-lo bem claro antes de partir à exposição da teoria de
Hart, até porque o capítulo quatro desta dissertação lidará diretamente com estes rebentos do
hartianismo.
Brian Bix dedicou um livro inteiro à determinação das regras, chamado Law, Language,
and Legal Determinacy em que ele buscou explorar as relações entre linguagem e direito, fo-
cando-se em como as duas interagem no contexto da determinação (BIX, 1993, p.1). O pri-
meiro capítulo do livro é um esboço das teorias de Hart sobre a textura aberta, o segundo, uma
descrição do conceito de “seguir-uma-regra” de Wittgenstein e, o terceiro, uma discussão am-
pla sobre o conceito paradigmático de “casos fáceis”, o que constitui um caso fácil e qual a
sua relação com a linguagem. A especulação sobre os casos fáceis de Bix faz uso da metáfora
de claridade (oposta a penumbra): “The clarity of the language in a legal rule, that is straight-
forward relative to the facts to which the rule will be applied, is not sufficient (and perhaps
may not be necessary) for the application of that rule to be a clear case” (BIX, 1993, p. 67);
Talvez a contribuição mais lembrada de Hart especificamente para a teoria da argu-
mentação seja a sua doutrina da textura aberta da linguagem. Ela é especialmente útil para o
meu propósito, já que nela encontramos um vestígio de Wittgenstein, ainda que por meios in-
diretos, pois, como se sabe, o conceito está mais ligado a Waismann3 (LEFEBVRE, 2011,

3 Durante o que veio a ser chamada de “período de transição” entre o Tractatus Logico-Philo-
sophicus e as Investigações Filosóficas, Waismann tornou-se o principal elo entre Wittgenstein e o Círculo de
Viena, ao ponto de os dois terem, em certo momento, aventado a hipótese de escreverem um livro em conjunto.
O projeto, todavia, não se concretizou. Wittgenstein perdeu, gradualmente, a confiança em Waismann como um
bom tradutor de suas ideias. (MONK, p.121, 1991)
p.100). A distinção entre casos fáceis e difíceis é corolário direto das ideias de Hart quanto ao
funcionamento da linguagem. Então, antes de mais nada, é preciso expor tal concepção.
Para Hart, o conceito de regra está intimamente ligado a uma ideia de controle social.
(HART, p. 124, 2012) Isto é, certos padrões normativos são dirigidos a uma coletividade, uma
entidade geral, e não a indivíduos específicos. No caso específico do direito, afirma Hart, dois
são os instrumentos de comunicação destes padrões normativos: a legislação e o precedente.
Enquanto a legislação se dá de forma eminentemente linguística (por meio de um código ou
uma lei em sentido formal, por exemplo), o precedente se dá de forma exemplificativa. Para
ilustrar a diferença, Hart alude à figura de um pai e o seu filho entrando na igreja. Se, por um
lado, o pai pode dizer o filho: “todos devem retirar o chapéu da cabeça antes de entrarem na
igreja”, ele poderia também dizer: “Olhe: devemos nos portar assim diante desta situação” e
em seguida retirar o próprio chapéu e entrar na igreja. No primeiro caso, há um comando ver-
bal. No segundo, uma explicação através do exemplo O filho, nas duas ocasiões, deve escutar
ou observar o pai e repetir o seu comportamento. (HART, 2012, p.125)
Apesar de o exemplo parecer suficientemente claro, Hart adverte quanto à possibilida-
de do surgimento de dúvidas. Imagine o segundo caso descrito acima. Pode ser que o filho se
indague: faz diferença com que mão eu retiro o chapéu? De que lado devo segurá-lo? Basta
segurar o chapéu ao entrar ou ele deve permanecer fora da cabeça durante todo o tempo?
Se a criança tem dificuldade de seguir o exemplo do pai no caso de um precedente,
será que o mesmo se daria com o caso da comunicação verbal? Para Hart, os teóricos de seu
tempo haviam confiado demais no poder das palavras, e esquecido-se de que mesmo uma re-
gra aparentemente clara pode levantar dúvidas, já que ela se dirige a uma coletividade e faz
parte de um corpo de regras interligadas. (HART, 2012 p. 126) Para ele, há um limite inerente
à linguagem quando precisamos utilizar termos gerais. Se, por exemplo, na frente de um par-
que há uma placa em que se lê “proibida a entrada de veículos”, qualquer pessoa, diz Hart,
acharia que um automóvel é um veículo, mas poderia se perguntar: e uma bicicleta?4 (HART,
p. 126, 2012)
4 É curioso notar que Wittgenstein, mesmo sem falar sobre casos jurídicos, dá um
exemplo algo semelhante em sua discussão de jogo de linguagem: “Alguém me diz: “Mostre um jogo às crian -
ças!” Ensino-lhes a jogar dados a dinheiro, e o outro me diz: “Eu não tinha em mente um tal jogo”. Era necessá -
rio que estivesse em sua mente a exclusão do jogo de dados quando me deu a ordem?” (IF, 71) A situação reme -
te diretamente ao exemplo da placa em um parque: caso uma ambulância precise acudir alguém que passa mal
dentro do parque, a proibição à entrada de veículos se aplica a ela? Tanto no caso de ensinar um jogo de azar às
crianças quanto a permitir a entrada da ambulância há um certo desconforto em qualquer resposta que se dê. Se,
por um lado, está claro que um jogo de dados é um jogo, qualquer pessoa bem-intencionada não o ensinaria a
uma crianças. E, no caso da ambulância, há concordância quanto ao fato de uma ambulância ser um veículo, mas
as consequências de não se permitir que ela socorra uma pessoa doente são odiosas.
Deste modo, conclui: tanto os precedentes quanto a legislação lançam incertezas ao fu-
turo: “[…] uncertainty at the borderline is the price to be paid for the use of general clas-
sifying terms in any form of communication concerning matters of fact”. (HART, p.128,
2012) Antecipando possíveis críticas, Hart esclarece que seria impossível construir ordens ex-
tremamente detalhadas e específicas, pois os seres humanos são incapazes de conhecer todas
as possibilidades do futuro em seus mínimos detalhes e, mesmo que o fossem, uma regra tão
precisa não cumpriria seu objetivo de regular ações em geral e abstrato. Mesmo o emprego de
cânones interpretativos não seria capaz de afastar o perigo de incerteza linguística. Os casos
fronteiriços (borderline cases) estariam numa espécie de zona de penumbra, cuja falta de cla-
reza absoluta é suprida pelo poder discricionário dos juízes (HART, p. 135, 2012).
Aí está, em linhas gerais, a doutrina da textura aberta da linguagem.
Seria natural sentir um certo temor diante de um tal esquema. Se as situações do mun-
do escapam as descrições normativas feitas pelo legislador, corremos sempre o perigo de ha-
ver arbitrariedades e decisões tomadas por motivos escusos, não-reguladas pela Lei. É o argu-
mento dos céticos quanto regras. No entanto, Hart recusa de imediato um cenário apocalíptico
como este. De modo apropriado, ele traça a dificuldade de um outro modo. A textura aberta
da linguagem parece ferir de morte o paraíso dos juristas e uma concepção ultra-formalista do
direito, do qual os céticos concluem por sua indeterminação radical. Mas ele logo rejeita esta
visão, chamando-a de absurda (HART, p.139, 2012) e, numa atitude algo tributária à Witt-
genstein, afirma que “to argue in this way is to ignore what rules actually are in any sphere of
real life” (HART, p.139, 2012). Quando o cético se dá conta de que os homens não são deu-
ses, capazes de falar em uma língua perfeita, logo conclui pela inutilidade completa da lingua-
gem e isto, diz Hart, é absurdo.
Cabe um pequeno interlúdio antes de proceder. É que o argumento de Hart quanto a
este ponto parece refletir com bastante precisão uma passagem de Wittgenstein, que reprodu-
zo na íntegra:
“Quanto mais precisamente considerarmos a linguagem real, tanto mais forte
se torna o conflito entre ela e a nossa exigência. (A pureza cristalina da lógi-
ca não se deu a mim como um resultado, ela era, sim, uma exigência.) O
conflito torna-se insustentável. A exigência corre o risco de se converter em
algo vazio. –Entramos por um terreno escorregadio, onde falta o atrito, por-
tanto, onde as condições, em certo sentido, são ideais, mas nós, justamente
por isso, também não somos capazes de andar. Queremos andar. Então preci-
samos do atrito. De volta ao chão áspero!” (IF, 107)
O cético parece impor exigências inatingíveis ao poder das palavras e do precedente.
Quando o conflito entre a imposição e os resultados observados no modo como os tribunais li-
dam com o direito, o cético logo descarta a própria possibilidade de haver regras. Para utilizar
a metáfora de Wittgenstein, é como se o cético, ao adentrar a superfície lisa, negasse a utilida-
de de se voltar ao chão áspero. Hart, pelo contrário, afirma que nossas ideias sobre o compor -
tamento normativo advém do chão áspero, e é nele que devemos buscar uma definição útil de
regras.
Em seguida, Hart enfrenta o slogan mais conhecido do realismo jurídico: o direito é o
que os tribunais dizem que ele é.
O realista percebe que, em todo sistema jurídico, há um tribunal supremo, um órgão
cuja decisão é sempre final, ao qual não cabe apelação. Quando um caso chega à apreciação
de um tribunal supremo e ele decide por ‘x’, ‘não-x’ ou ‘y’, de nada adianta afirmar que a de -
cisão tomada está errada. De um certo modo, este órgão é completamente infalível, e é ele
quem diz o que é ou o que não é o direito.
Como defensor do modelo de regras, Hart rechaça a afirmação acima. Em um de seus
contra-argumentos contra os céticos Hart propõe uma comparação entre o que ocorre no siste-
ma de pontuação de certos jogos e esportes com o que ocorre efetivamente no direito. Na lite-
ratura especializada em teoria da argumentação o argumento ficou conhecido pelo nome de
“metáfora do apontador do jogo”, e será apresentada a seguir. O tema é de extrema importân-
cia pois lida com uma peculiaridade específica da prática forense, e constitui um pilar da in-
vestigação dogmática: a infalibilidade da decisão judicial. Em qualquer ordenamento jurídico
organizado dogmaticamente há um órgão especial, responsável por dar a palavra final em um
processo judicial, fechando a possibilidade de recursos e a continuação indefinida das conten-
das jurídicas. O processo sempre chega a um fim, e a obrigatoriedade de chegada a este fim
constitui um componente importante dos jogos de linguagens envolvidos na adjudicação. É a
vedação do non liquet, já discutida no capítulo sobre os pressupostos da dogmática.
Hart considerada o exemplo do jogo como sendo “análogo” ao da decisão judicial. Em
seguida faz notar, apesar de não dar exemplos concretos, que há muitos jogos competitivos
em que o sistema de pontuação prescinde de um apontador oficial e que mesmo sob estas con-
dições os jogadores são capazes de entrar em acordo quanto a quem está na frente ou quando
dar um ponto a um time ou ao outro. Nesta altura, adiciona: “a statement of the score made by
a player represents, if he is honest, an effort to assess the progress of the game by reference
to the particular scoring rule accepted in that game”. (HART, 1994, p. 142)
Imagine um jogo competitivo, em que há ao menos dois jogadores num embate qual-
quer. O jogo, naturalmente, possui uma regra para determinar como e quando um dos jogado-
res marca um ponto. Em um estágio inicial, não há a figura de um árbitro, e ainda assim os jo-
gadores são capazes de entrar em consenso quanto à pontuação. De tempos em tempos confli-
tos e disputas podem surgir mas, no geral, o sistema permanece algo estável. Digamos que, à
medida que o jogo se torna mais complexo, os jogadores sentem a necessidade de incluir um
indivíduo para marcar a pontuação do jogo. Quando este indivíduo afirma “o jogador tal pon-
tuou”, ambos os times devem se submeter à decisão. Supondo que o slogan “direito é o que os
tribunais dizem que ele é” esteja correto, o apontador do jogo tornar-se-ia, de fato, a única
medida para decidir acerca da pontuação. Contudo, rebate Hart, mesmo que a decisão do
apontador seja final, a regra de pontuação não deixa de existir. O apontador do jogo não têm
poder discricionário absoluto, ainda existe uma regra para regular o seu comportamento, e ele
deve tentar concretizá-la ao máximo. Os jogadores, naturalmente, também tentarão aplicar a
regra dentro do jogo. Eles tentarão pontuar de acordo com o que diz a regra, não tomarão
como base uma previsão daquilo que o apontador diria. Em outras palavras: os jogadores con-
tinuam jogando o “jogo original” e não o “jogo-de-adivinhar-as-decisões-do-apontador”,
como seria o caso estivesse a tese realista correta.
Esta confusão entre os dois tipos de jogos não ocorre, segundo Hart, pois há um núc-
leo estável de sentido do qual nem os jogadores nem o apontador podem se afastar:

“It is this [o núcleo estável] which the scorer is not free to depart from, and
which, so far as it goes, constitutes the standard of correct and incorrect sco-
ring, both for the player, in making his unofficial 5 statements as to the score,
and for the scorer in his official rulings. It is this that makes it true to say that
the scorer’s ruling are, though final, not infallible. The same is true in law.”
(HART, p.144, 2012) (Grifos meus)

Os casos fáceis estão encapsulados neste núcleo estável de significado, enquanto os


casos difíceis estão na fronteira dos conceitos e ainda mais além. O espaço entre o núcleo, a
área de penumbra e o absurdo deve ser preenchido pelo poder discricionário do julgador. Ape-
sar de haver decisões incorretas, há um limite ao qual elas devem obedecer, o apontador não

5 A distinção entre afirmativa oficial e não-oficial é análoga à de interpretação autêntica e in-


autêntica encontrada em (KELSEN, p. 387, 2009)
pode “errar” indefinidamente sem que haja consequências. Quando o apontador se excede,
não se está mais jogando o jogo original e sim o “jogo-de-se-adivinhar-as-decisões-do-aponta-
dor” (HART, 2012, pp.144-145).

Esta propriedade é apresentada por Hart com as seguintes palavras:


A supreme tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said
it, the statement that the court was 'wrong' has no consequences within the system:
no one's rights or duties are thereby altered. (HART, 1994, p. 141)

O argumento completo pode ser fragmentado e apresentado da seguinte maneira:


1. Os jogadores são capazes de se entenderem quanto à pontuação do jogo mes-
mo antes da instituição de um árbitro.
1.1 Se o jogador estiver sendo honesto ele está se esforçando para mapear o
progresso do jogo fazendo referência a uma regra.
2. Quando o apontador é introduzido, ele deve arvorar-se na mesma regra utili-
zada pelos jogadores.
2.1. Qualquer distanciamento por parte do apontador do jogo das regras é ob-
servado pelos jogadores e pode levá-lo a ser afastado.
3. Se os jogadores acatarem o “arbítrio” do apontador do jogo, não estarão
mais jogando o jogo original, mas sim o “jogo-de-se-adivinhar-as-decisões-do-
apontador”.

Lembre-se de que a posição adotada por Wittgenstein, a qual compartilho, não é nem
receptiva nem hostil ao desafio do cético: rejeita os próprios pressupostos de seu desafio.

O que deve ficar claro a partir neste ponto é que a distinção caso fácil/difícil não está
ligada em absoluto a uma ideia de complexidade. Casos longos, repletos de documentos, tes-
temunhas, provas a serem produzidas e outras dificuldades de ordem prática ou teórica podem
ser fáceis. Enquanto casos extremamente simples, como o de decidir se uma bicicleta é um
veículo, podem ser difíceis. A dificuldade está, para Hart, nas deficiências da linguagem. O
antônimo de um caso fácil não é um caso complexo, assim como o antônimo de caso difícil
não é um caso simples. O homem não é Deus e não pode se comunicar perfeitamente. Deve
aceitar os obstáculos e falhas da sua linguagem sem com isso desistir de regras preestabeleci-
das como sendo padrões de conduta a serem observados por juízes.
Feito este percurso, chegamos a uma conclusão lógica: o modelo de regras do neopositi-
vismo hartiano depende, no caso limite, da aceitação de um núcleo comum estável, acessível a
todos. Não fosse por este núcleo, nossas palavras estariam imersas na escuridão e não sabería-
mos como proceder. Esta observação será de importância mais adiante.

3.1 HART, WITTGENSTEIN E A CONTENDA ENTRE POSITIVISTAS E CRÍTICOS

3.2 INTERPRETAÇÃO, CASOS FÁCEIS E CASOS DIFÍCEIS

3.3 ABANDONANDO OS PRESSUPOSTOS DA DISCUSSÃO

4 O MOMENTO DO JULGAMENTO COMO UMA CERTA CONFIGURAÇÃO DE JO-


GOS DE LINGUAGEM

Existe alguma diferença qualitativa entre os modos pelos quais um leigo e um jurista en-
xergam a figura do juiz durante um julgamento?
Durante uma conversa informal, ocorrida há alguns anos, o meu orientador, Torquato de
Castro, confidenciou-me o seguinte: “o código civil não é para iniciantes, é para iniciados”.
Se ele está correto em sua afirmação, e eu considero que esteja, deve haver algo a ser domina-
do por estes iniciados, uma espécie de conhecimento ao mesmo tempo suficientemente acessí-
vel para alguns e inacessível para outros que, bestializados (para utilizar a expressão de José
Murilo de Carvalho ao descrever a população carioca vendo a monarquia ruir no fim do sécu-
lo XIX), observam os procedimentos legais sem compreender o que se passa exatamente em
cada uma de suas etapas.
Neste capítulo, desejo caracterizar o julgamento como o momento culminante de uma
série de jogos de linguagem, protagonizado pelos iniciados em uma certa prática e em um cer-
to modo de vida. Através deste argumento expandirei as minhas críticas contra o esquema de
Hart, desta vez focando-me não em rebater as suas teses, mas mostrando como um ponto de
vista Wittgensteiniano pode oferecer um
Certo é que não pretendo descrever proposições normativas para assegurar o bom cum-
primento de regras.

4.1 SE UM JURISTA PUDESSE FALAR, SERÍAMOS CAPAZES DE COMPREENDÊ-


LO?
O Código Civil de 2002 está escrito em linguagem natural. Os seus artigos, parágrafos,
incisos, alíneas e letras contém frases sintaticamente bem construídas, escritas em vernáculo.
Todas as palavras nele utilizadas podem ser prontamente consultadas em um dicionário a es-
colha do leitor. Não há a utilização de fórmulas matemáticas, nenhuma letra aparece como va-
riável, não há símbolos para designar certas operações matemáticas. Não é necessário apren-
der uma nova língua formal, com regras próprias de funcionamento, nem lembrar esquemas
como os de química orgânica, ou compreender gráficos cartesianos. O efeito de estranhamen-
to através do encontro de caracteres desconhecidos é praticamente nulo. A despeito disto, caso
um leigo deseje aventurar-se na enfadonha aventura de ler o Código Civil de 2002 do início
ao fim, como se lê um romance ou uma peça de teatro, talvez dê-se conta da completa inutili-
dade de suas ações: ao finalmente concluir a leitura terá entendido muito pouco do que leu, e
dificilmente se sentiria capaz de aplicar o pouco que acreditou entender.
Daí a pergunta irônica desta seção.

4.2 TORNAR-SE UM JURISTA É AGIR COMO UM JURISTA OU SABER O QUE UM


JURISTA SABE?

5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício Leitão. Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito
Subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011.

_______. Ética & Retórica: Para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009a.

_______. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos


éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009b.

_______. Filosofia do Direito: Uma crítica à verdade na ética e na ciência. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2013.

BAZ, Avner. When Words Are Called For. Cambridge: Harvard University Press, 2012.

BAZ, Avner.

BIX, Brian. Questões na interpretação jurídica. In: MARMOR, Andrei (ed.). Direito e inter-
pretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2000.

BIX, Brian. Law, Language, and Legal Determinacy. Oxford: Oxford Press, 1993.

CASTRO JR., Torquato da Silva. A Bola Do Jogo: uma metáfora performativa para o desafio
da pragmática da norma jurídica. In: Adeodato, J. M.; Bittar, E. C. B.. (Org.). Filosofia e Teo-
ria Geral do Direito: homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Júnior. São Paulo: Quartier
Latin, 2011, pp. 1075-1088.

CASTRO JR., Torquato da Silva. A Pragmática das Nulidades e a Teoria do Ato Jurídico
Inexistente. São Paulo: Noeses, 2009.

CAVELL, Stanley. The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality and


Tragedy. Nova Iorque: Oxford Press, 1979.

_______. Must we mean what we say? Nova Iorque: Cambridge University Press, 1998.
COLEMAN, Jules L., LEITER, Brian. In: MARMOR, Andrei (ed.). Direito e interpretação:
ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2000.

DEETZ, Stanley. Words Without Things: Toward a Social Phenomenology of Language.


Quarterly Journal of Speech. v. 59, pp. 40-51, 1973.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Editora 34, 2000.

DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Belknap Press, 1986.

_______., Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978.

ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas
de Andrade. Rio de Janeiro: Record, 1986.

FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, domi-
nação. 9 ed.. São Paulo: Atlas, 2016.

_______. Direito, Retórica e Comunicação. 2 ed.. São Paulo: Saraiva, 1997.

_______. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998.

HART, H. L. A., The Concept of Law. Oxford: Oxford Press, 1994.

HEIDEGGER, Martin. Identity and difference. Tradução de Joan Stambaugh. Nova Iorque:
Harper & Row, 1969.

HUTCHINSON, Allan C.. It’s All in the Game: a nonfoundationalist account of Law and
Adjudication. Londres: Duke University Press, 200.

LEFEBVRE, Alexandre. Law and the Ordinary: Hart, Wittgenstein, Jurisprudence. Telos, v.
154, pp. 99-118, 2011.

MARTINS, Helena. Sobre a estabilidade do significado em Wittgenstein. Veredas: Revista


de estudos lingüísticos. v. 4, n. 2, pp. 19-42, 2000.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LAKOFF, George. Women, Fire and Dangerous Things. Chicago: University of Chicago
Press, 1987.

MONK, Ray. Ludwig Wittgenstein: The Duty of Genius. Penguin Books: Nova Ioque,
1991.

MOORE, Michael S.. Interpretando a interpretação. In: MARMOR, Andrei (ed.). Direito e
interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.

OLIVEIRA, Ítalo José da Silva. Contra o conceito de direito. Dissertação (Mestrado em di-
reito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016.

PEARS, David. Ludwig Wittgenstein. Nova Iorque: Vikings, 1970.

PESSOA, Fernando. Tabacaria e outros poemas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

RORTY, Richard. Contingency, irony and solidarity. Nova Iorque: Cambridge University
Press, 1989.

_______. Philosophy and the Mirror of Nature. Nova Jersei: Princeton University Press,
1979.

SOBOTA, Katharina. Don’t mention the norm. International Journal for the Semiotics of
Law, v. 4, n. 10, pp. 45-46, 1991.

STONE, Martin. Focalizando o direito: o que a interpretação jurídica não é. In: MARMOR,
Andrei (ed.). Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Car-
los Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II: a Epistemologia Jurídica da


Modernidade. Tradução de José Luis Bolzan. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.

_______. Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli.


Petrópolis: Vozes, 1994.
_______. On Certainty. Edição bilíngue. Tradução de Denis Paul e G. E. M. Anscombe.
Nova Iorque: Harper Torchbooks, 1972.

_______. The Blue and Brown Books. Nova Iorque: Harper Perennial, 1965.

_______. Observações Filosóficas. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São
Paulo: Loyola, 2005.

_______. Gramática Filosófica. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Loyola, 2003.

_______. Tractatus Logico-Philosophicus. 4. ed. Edição bilíngue. Tradução de Luiz Hen-


rique Borges dos Santos. São Paulo: Edusp, 2008.

Você também pode gostar