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Guilherme Zarvos - Ensaio de Povo Novo PDF
Guilherme Zarvos - Ensaio de Povo Novo PDF
1995
Apresentação
Italo Diblasi
ENSAIO DE POVO NOVO
A Darcy Ribeiro
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Daqui de cima do Monte Pascoal viu. Neste bosque encantado,
nesta floresta que é parque quando tudo era parque – correu
morro: trinta quilômetros. Lá de cima havia enxergado. O
coração desejava explodir, o pé precisava voar – ar pulmão ar –
queria chegar na praia, em Corumbau e conferir: nunca vira Deus
tão lindo. Correu por meio de ipê caixeta pinha cupuba
gameleira pau-brasil sapucaia jacarandá oiti pequi e deixou
marcas das solas ligeiros no manto tapete amarelo laranja
vermelho marrom preto de folhas caídas na trilha que tantas
vezes percorreu e nem sentiu o perfume doce da floresta que
ontem chovera. Era manhã e orvalhava e ele não viu os pingos
ainda agarrados nas folhas em todos os tons semitons verdes
que dependem das mudanças das horas do dia e o do tempo e
da Terra e das marcas dos raios de sol. E uma codorna passou
mansinha e tentou lhe avisar que não se apressasse e outros
bichos tentaram lhe pedir que não fosse, gritando estridentes,
uivando, que parasse – ar ar pulmão eu lhe estouro mas quero
chegar – e correu como nunca, em nome de todos os seus
Deuses, de todas as suas mulheres, não muitas, na sua
juventude. O corpo rijo acostumado à caça à derrubada ao sexo
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às guerras aos jogos correspondia. Porém a Impaciência já
havendo lhe tomado exigia mais: passou batido por borboletas
brancas amarelas azuis que aspiravam por enfeitar acariciar seu
braço guerreiro como só Bela sabia, mas não era a hora. Apenas
a praia lhe interessava e num descuido uma raiz traiçoeira
passou-lhe uma banda e o guerreiro caiu de boca no chão, no
tapete de folhas de sêmen de óvulo de adubar terra, e um sapo
o encarou: dez centímetros era a distância. Não cuspiu, não era
disso. Tinha a cor das folhas. Caleidoscópio se protegia dos
inimigos. O sapo não falou absolutamente nada já que não era
um sapo falante mas o encarou preenchido – na completa
imobilidade de sapo que encara – e Zinho, por alguns segundos,
não pensou na areia que precisava alcançar e lembrou de seu
avô, do olhar grava de tuxaua em momentos de decisão. De
tomar rumo, de falar que o Tempo lhe ensinou. A cara do sapo
esculpida por pai e mãe e pai e mãe e pai e mãe do sapo, dez
centímetros de seus olhos, o hipnotizava e ele deitado de bruços,
corpo todo no chão tapete de folhas, por um minuto permitiu
que maus pressentimentos dominasse sua cabeça. O corpo do
forte fraquejou. Foram apenas estes segundos e o corpo de forte
já corria e Fantasia e Impaciência eram novamente suas donas e
Zinho já avistava a praia e não era só ele ali: toda a aldeia, do
mais velho à mais pequenininha se grudava perto da água dentro
da água para ver:
A FUNDAÇÃO DO BRASIL.
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E Zinho correu sola sola na areia que ia esquentando. Passou por
um, passou por dois, não deu a volta passou por três. Rios. Água
salobra do mar em cheia perfurando água doce. Final da tarde
areia esfriando e a vazante devolvendo água, enfeitando o
Atlântico. Corpo molhado, salgado e doce, de homem livre. Índio.
Luz própria. Tribo de Zinho – centenas de outras tribos e falas.
Eram cinco milhões de gente em liberdade. Sem patrão.
Habituados nas costas, nas praias, do Brasil oficialmente
inexistente e agora com Bulas Papais e Tratado de Tordesilhas
dividido entre dos reinos ibéricos:
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pertence, do que até sete dias deste mês de junho, em que
estamos, da assinatura desta escritura está por descobrir no mar
Oceano, na qual o dito acordo dos nossos ditos procuradores,
entre outras coisas, prometeram que dentro de certo prazo nela
estabelecido nós outorgaríamos, confirmaríamos, juraríamos,
ratificaríamos e aproveitaríamos a dita aceitação por nossas
pessoas; e nós desejando cumprir e cumprindo tudo que assim
em nosso nome foi assentado, e aceito, e outorgado acerca do
supradito mandamos trazer diante de nós a dita escritura da dita
convenção e assento para vê-la e examiná-la e o teor dela de
verbo ad verbum é este que segue: “Em nome de Deus Todo
Poderoso, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas realente
distintas e separadas, e uma só essência divina”. Manifesto e
notório seja a todos quanto este público instrumento virem, dado
na vila de Tordesillas, aos sete dias do mês de junho, ano do
nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e
noventa e quatro, em presença de nós os Secretários e Escrivas e
Notários públicos dos abaixo-assinados, estando presentes os
honrados D. Henrique Henriques, mordomo-mor dos mui altos e
mui poderosos príncipes senhores D. Fernando e D. Isabel, por
graça de Deus Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da
Sicília, de Granada etc; e D. Gutierres de Cárdenas, comendador-
mor dos ditos senhores Rei e Rainha, e o Doutor Rodrigo
Maldonado, todos do conselho dos ditos Senhores Rei e Rainha
de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília e de Granada etc; seus
procuradores bastantes de uma parte, e os honrados Rui de
Souza, Senhor de Sagres e Beringel, e D. João de Souza seu filho
almocatel-mor do mui alto e mui excelente senhor D. João, pela
graça de Deus Rei de Portugal e Algarves, d’Aquém e d’Além-mar,
em África e senhor da Guiné; e Arias de Almadana, corregedor
dos feitos cíveis em sua corte, e do seu Desembargo, todos do
Conselho do dito Rei de Portugal e seus embaixadores e
procuradores bastantes, como ambas as ditas partes o mostraram
pelas cartas e poderes e procurações dos ditos Senhores seus
constituintes, o teor das quais, do verbo ad verbum é este que se
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segue: Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha
de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo,
de Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de
Córdova, da Córsega, de Múrcis, de Jaém, do Algarve, de
Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canáricas, Conde e Condessa
de Barcelona, Senhores de Biscaia e de Molina, Duques de Atenas
e de Neopatria, Condes de Roussilhão, e da Sardenha, Marqueses
de Oristán e de Gociano etc. Em fé do que o sereníssimo Rei de
Portugal, nosso mui caro e mui amado irmão, nos enviou como
seus embaixadores e procuradores a Rui de Souza, do qual são as
vilas de Sagrel e Beringel, e a D. João de Souza seu almotacel-mor,
e Arias de Almadana seu corregedor dos feitos cíveis em sua
Corte, e de seu Desembargo, todos do seu Conselho, para
entabular e tornar assento e concórdia conosco ou com nossos
embaixadores e procuradores, em nosso nome, sobre a
divergência que entre nós o sereníssimo Rei de Portugal, nosso
irmão, há sobre o que a nós e a ele pertence que até agora está
por descobrir no mar Oceano.
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cantando agarrado com Bela – fim de semana, Semana Santa,
Coroa Vermelha, Porto Seguro.
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pedreiro e dorme na obra. Manda carta todo mês. Traz presentes
uma vez por ano. Para todos. Promete que tudo vai melhorar. Aí
ele vai casar. Diz e volta para São Paulo: construir prédio dormir na
obra ser chamado de paraíba. O São Geraldo vai sair. Pontual. O
pai e mãe de Zinho não choram. Dentro do ônibus, têm dignidade.
O pai de Zinho tira um dinheiro do bolso. Zinho diz que não aceita.
Não pode. Não é direito. Aceita. Já não quer ir embora. Quer pai
mãe Bela! O ônibus roda. O pai a mãe a irmã a avó e Bela,
principalmente ela, vão ficando pequenininhos. As mãos acenando
vão dando tchauzinhos, tchauzinhos, tchauzinhos... Zinho esconde
o rosto na cortina do São Geraldo e chora. Zinho tem 18 anos.
Nunca saiu de Anori. Sempre limpou pé de cacau. Zinha está indo
embora de tudo. Para onde.
Conversas de ônibus
- Mas é você, que surpresa! Luis perguntou por você. Eu disse que
você tinha ido para Belém.
- Não fui não. Foi o Guaraci.
- Você tem rodado! Luis está na roça Para os lados de Monte
Alegre.
- É, tenho andado (!) na canseira. Faz oito anos que não vejo
minha família.
- De onde que ela é? A gente se conhece tanto e eu não...
- Sou do Ceará. Já foi nestas bandas?
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- Não. Sou aqui de perto. De Itabela...Você não tem contato com a
família?
- Não tenho não. Nem por carta.
Vem silêncio. O sem jeito de um, o olhar perdido do outro.
Família: – a mesa está posta – carinho de mãe... A conversa toma
rumo de trabalho, onde tem, o que dá para juntar: Os dois são
parecidos. Olhares sonhadores. De parir veredas. Tão moços e
tanto caminho (!) os sotaques os sonhos os jeans as camisas de
botão (de cores fortes) os tênis brancos bem lavados. Vão
apeando cerca que é tempo. São incontáveis nos ônibus! O céu
está limpo, ilumina o vasto: já ouviu tanto, tantas frases como
estas: como estas:
- Como vai sua família. A gente não tem se visto!
- Pois...
- Esta é de criação. Me acompanha. A outra já é crescida...Esta
achei em Itamaraju, debaixo de um eucalipto.
(O senhor constrangido pigarreia)
- Não, não se avexe (!) já conversei com ela. A gente passa perto
do eucalipto e ela diz “mãe, estou passando mal”.
(A menina tenta se esconder com os olhos na ponta do sapato.
Sua mãe de criação gorda e alegre continua tagarela num imenso
que não estanca)
- E o seu irmão?
(O senhor não tem tempo de responder. Ele já entra em outro
assunto)
- Sabe o Seu Neco. Meu compadre. Vendeu a terra. Tinha dívidas.
Já não presta para roça. Modo de ver do novo dono. Teve de sair.
Vive agora de matar bode para um açougue. Mas a cidade é muito
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cara. Um dos filhos manda uma ajuda. Ele acertou com um
restaurante. Lá em São Paulo. Seu Neco está necessitado...
(Ela interrompe a conversa baixa o encosto da poltrona aconchega
a filha sobre seu peito. Ela veste rosa e lança um auto-elogio)
- Como é bom ter mãe!
Itamaraju
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Na fila do banco da cidade que fui um moreno
baixinho arretado andança de lado pra lado matar
ou morrer afronta o baixa importante que olha
assustado ameaça o gerente importante que
chama a polícia que lá tem demais. O baixinho
esbraveja mandou dinheiro economias para a
mulher faz três vezes telefonou não recebeu veio
ao banco o gerente explicou para o guarda que o
baixinho arretado realmente mandou o dinheiro
mas errou o código e o dinheiro suado do baixinho
que não entende de números foi parar não sei que
lá e que então foi a Brasília e a ordem de
pagamento não retornou faz quinze dias é
verdade estou tentando no entanto o elemento
perturba a ordem da fila e do banco e vou tentar
mais uma vez localizar o documento e o policial
algema o baixinho com chapéu de couro redondo
como sua cabeça e baixinho arretado grita que
isso não é direito quem devia de chamar polícia
era ele que o dinheiro era dele e os outros
baixinhos de chapéu de couro concordam porém
ordeiros não ousam manifestar e o policial usa
força e leva o moreno pequeno para jeito de
sossegar. De humor. De modo de trato. Para não
tumultuar. Mais tarde retorna o baixinho à praça
central sorrindo olhos tristes camisa branca
amarfanhada chapéu de couro nas mãos bailando
leve cheirando cana um passarinho.
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Da cidade que fui as mulheres olham muito – belas morenas –
curiosas com risos e soslaios – tem homem alegre sóbrio
desconfiado carrancudo – as mulheres se reúnem em volta da
costura – os homens nos bares – alguns senhores sorriem – a
maioria não – tal da dignidade.
Testemunho
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