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Guilherme Zarvos

ENSAIO DE POVO NOVO

1995
Apresentação

O presente texto foi extraído do livro homônimo, o terceiro da


obra de Guilherme Zarvos, publicado no ano de 1995, pela
tradicional e extinta Editora Francisco Alves, com capa de Claudia
Zarvos, ilustrações de Pedro Pellegrino e revisão de Elisabete Lins
Muniz. A preparação de originais ficou a cargo de Bia Zarvos.

Esta edição foi preparada para divulgação gratuita e online no ano


de 2017, com vista a tornar disponível a obra de Guilherme
Zarvos, em grande parte esgotada. O formato original do livro foi
mantido, embora a fonte do texto e o tamanho das letras tenham
sido rediagramados. A capa do livro e a ilustração foram
digitalizadas a partir do original. A edição original continha dois
outros textos – Prelúdio hospital inverno 94 e Cantata Constante –
coro – que foram suprimidos aqui, por vontade do autor.

Composto majoritariamente em prosa poética, com excertos e


poemas em verso, Ensaio de Povo Novo apresenta um olhar em
tom fabuloso do Brasil e seus contrastes, de sua “fundação” aos
dias atuais. Texto onírico e de vocação política, fundamental em
nosso contexto hoje.

Italo Diblasi
ENSAIO DE POVO NOVO

A Darcy Ribeiro

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2
Daqui de cima do Monte Pascoal viu. Neste bosque encantado,
nesta floresta que é parque quando tudo era parque – correu
morro: trinta quilômetros. Lá de cima havia enxergado. O
coração desejava explodir, o pé precisava voar – ar pulmão ar –
queria chegar na praia, em Corumbau e conferir: nunca vira Deus
tão lindo. Correu por meio de ipê caixeta pinha cupuba
gameleira pau-brasil sapucaia jacarandá oiti pequi e deixou
marcas das solas ligeiros no manto tapete amarelo laranja
vermelho marrom preto de folhas caídas na trilha que tantas
vezes percorreu e nem sentiu o perfume doce da floresta que
ontem chovera. Era manhã e orvalhava e ele não viu os pingos
ainda agarrados nas folhas em todos os tons semitons verdes
que dependem das mudanças das horas do dia e o do tempo e
da Terra e das marcas dos raios de sol. E uma codorna passou
mansinha e tentou lhe avisar que não se apressasse e outros
bichos tentaram lhe pedir que não fosse, gritando estridentes,
uivando, que parasse – ar ar pulmão eu lhe estouro mas quero
chegar – e correu como nunca, em nome de todos os seus
Deuses, de todas as suas mulheres, não muitas, na sua
juventude. O corpo rijo acostumado à caça à derrubada ao sexo
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às guerras aos jogos correspondia. Porém a Impaciência já
havendo lhe tomado exigia mais: passou batido por borboletas
brancas amarelas azuis que aspiravam por enfeitar acariciar seu
braço guerreiro como só Bela sabia, mas não era a hora. Apenas
a praia lhe interessava e num descuido uma raiz traiçoeira
passou-lhe uma banda e o guerreiro caiu de boca no chão, no
tapete de folhas de sêmen de óvulo de adubar terra, e um sapo
o encarou: dez centímetros era a distância. Não cuspiu, não era
disso. Tinha a cor das folhas. Caleidoscópio se protegia dos
inimigos. O sapo não falou absolutamente nada já que não era
um sapo falante mas o encarou preenchido – na completa
imobilidade de sapo que encara – e Zinho, por alguns segundos,
não pensou na areia que precisava alcançar e lembrou de seu
avô, do olhar grava de tuxaua em momentos de decisão. De
tomar rumo, de falar que o Tempo lhe ensinou. A cara do sapo
esculpida por pai e mãe e pai e mãe e pai e mãe do sapo, dez
centímetros de seus olhos, o hipnotizava e ele deitado de bruços,
corpo todo no chão tapete de folhas, por um minuto permitiu
que maus pressentimentos dominasse sua cabeça. O corpo do
forte fraquejou. Foram apenas estes segundos e o corpo de forte
já corria e Fantasia e Impaciência eram novamente suas donas e
Zinho já avistava a praia e não era só ele ali: toda a aldeia, do
mais velho à mais pequenininha se grudava perto da água dentro
da água para ver:

A FUNDAÇÃO DO BRASIL.

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E Zinho correu sola sola na areia que ia esquentando. Passou por
um, passou por dois, não deu a volta passou por três. Rios. Água
salobra do mar em cheia perfurando água doce. Final da tarde
areia esfriando e a vazante devolvendo água, enfeitando o
Atlântico. Corpo molhado, salgado e doce, de homem livre. Índio.
Luz própria. Tribo de Zinho – centenas de outras tribos e falas.
Eram cinco milhões de gente em liberdade. Sem patrão.
Habituados nas costas, nas praias, do Brasil oficialmente
inexistente e agora com Bulas Papais e Tratado de Tordesilhas
dividido entre dos reinos ibéricos:

Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha de


Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de
Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de
Córdova, da Córsega, de Múrcis, de Jaém, do Algarve, de
Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canáricas, Conde e Condessa
de Barcelona, Senhores de Biscaia e de Molina, Duques de Atenas
e de Neopatria, Condes de Roussilhão, e da Sardenha, Marqueses
de Oristán e de Gociano juntamente com o príncipe D. João,
nosso mui caro e mui amado filho primogênito herdeiro de nossos
ditos reinos e senhorios. Em fé do qual, por D. Henrique
Henriques nosso mordomo-contador-mor e o doutor Rodrigo
Maldonado, todos do nosso Conselho, foi tratado, assentado e
aceito por nós e em nosso nome e em virtude do nosso poder,
com o sereníssimo D. João, pela graça de Deus rei de Portugal e
dos Algarves d’Aquém e d’Além-Mar, em África, Senhor da Guiné,
nosso mui caro e mui amado irmão e com Rui de Souza, Senhor
de Sagres e Beringel e D. João de Souza, seu filho, almotacel-mor
do dito sereníssimo rei nosso irmão, e Arias de Almadana,
corretor dos feitos civis de sua corte e de seu foro (juízo), todos
do Conselho do dito sereníssimo rei nosso irmão, em seu nome e
em virtude de seu poder, seus embaixadores que a nós vieram,
sobre a demanda que a nós e ao dito sereníssimo rei nosso irmão

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pertence, do que até sete dias deste mês de junho, em que
estamos, da assinatura desta escritura está por descobrir no mar
Oceano, na qual o dito acordo dos nossos ditos procuradores,
entre outras coisas, prometeram que dentro de certo prazo nela
estabelecido nós outorgaríamos, confirmaríamos, juraríamos,
ratificaríamos e aproveitaríamos a dita aceitação por nossas
pessoas; e nós desejando cumprir e cumprindo tudo que assim
em nosso nome foi assentado, e aceito, e outorgado acerca do
supradito mandamos trazer diante de nós a dita escritura da dita
convenção e assento para vê-la e examiná-la e o teor dela de
verbo ad verbum é este que segue: “Em nome de Deus Todo
Poderoso, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas realente
distintas e separadas, e uma só essência divina”. Manifesto e
notório seja a todos quanto este público instrumento virem, dado
na vila de Tordesillas, aos sete dias do mês de junho, ano do
nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e
noventa e quatro, em presença de nós os Secretários e Escrivas e
Notários públicos dos abaixo-assinados, estando presentes os
honrados D. Henrique Henriques, mordomo-mor dos mui altos e
mui poderosos príncipes senhores D. Fernando e D. Isabel, por
graça de Deus Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da
Sicília, de Granada etc; e D. Gutierres de Cárdenas, comendador-
mor dos ditos senhores Rei e Rainha, e o Doutor Rodrigo
Maldonado, todos do conselho dos ditos Senhores Rei e Rainha
de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília e de Granada etc; seus
procuradores bastantes de uma parte, e os honrados Rui de
Souza, Senhor de Sagres e Beringel, e D. João de Souza seu filho
almocatel-mor do mui alto e mui excelente senhor D. João, pela
graça de Deus Rei de Portugal e Algarves, d’Aquém e d’Além-mar,
em África e senhor da Guiné; e Arias de Almadana, corregedor
dos feitos cíveis em sua corte, e do seu Desembargo, todos do
Conselho do dito Rei de Portugal e seus embaixadores e
procuradores bastantes, como ambas as ditas partes o mostraram
pelas cartas e poderes e procurações dos ditos Senhores seus
constituintes, o teor das quais, do verbo ad verbum é este que se

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segue: Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha
de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo,
de Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de
Córdova, da Córsega, de Múrcis, de Jaém, do Algarve, de
Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canáricas, Conde e Condessa
de Barcelona, Senhores de Biscaia e de Molina, Duques de Atenas
e de Neopatria, Condes de Roussilhão, e da Sardenha, Marqueses
de Oristán e de Gociano etc. Em fé do que o sereníssimo Rei de
Portugal, nosso mui caro e mui amado irmão, nos enviou como
seus embaixadores e procuradores a Rui de Souza, do qual são as
vilas de Sagrel e Beringel, e a D. João de Souza seu almotacel-mor,
e Arias de Almadana seu corregedor dos feitos cíveis em sua
Corte, e de seu Desembargo, todos do seu Conselho, para
entabular e tornar assento e concórdia conosco ou com nossos
embaixadores e procuradores, em nosso nome, sobre a
divergência que entre nós o sereníssimo Rei de Portugal, nosso
irmão, há sobre o que a nós e a ele pertence que até agora está
por descobrir no mar Oceano.

E assim foi. Era assim que se fazia: poucos pontos vastíssimos


nomes imensuráveis lisonjas. A ordem do Novo Mundo nas penas
do Papa e nas botas de Espanha e Portugal. Tempo de
Renascimento para a cultura europeia. Da Vinci, Michelangelo,
Bosche, Dürer, Botticelli, quantos mais! Gil Vicente, Camões, logo
Rabelais e Cervantes crispando línguas. Tempo de Lutero e Calvino
– padrecos que fizeram a praça de São Pedro tremer. Roma das
mil prostitutas e prostitutos autenticando a divisão do mundo,
ampliando impérios e poentes. Mas disto Zinho não tinha a menor
ideia. E corria. E araras vermelhas gritavam memória da Terra.
Bola de cristal. Sobreviveram duzentas mil almas implorando por
pedaço de terra. Reserva do que fora seu. Índio cometendo
suicídio. Desespero. Embolado nas perdas e nas perdas de seus
filhos e fala. E Zinho nos anos noventa da última década do século
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chamado vinte talvez tivesse a sorte de estar vivo na alma de
Doutor, filho do Cacique Tururu da aldeia Pataxó de Barra Velha.
Vendendo artesanato. Alegre do mundo. Talvez pescador em
Corumbau, sob o manto de estrelas que na lua nova oprime, de
tão rica. Os grãos de areia soprados por Caos onde antes, apenas
breu, de tão fáusticos, lembram um jorro de pérolas lento pois
embriagado. E cada estrela absolutamente sedutora tem certeza
de sua singularidade, embelezando a noite que pulsa, da cidade
sem luz elétrica sem TV. Na qual criança desconhece quem é o
maior ídolo do programa de domingo. Sabe é pescar como seu pai
seu avô seu bisavô. Molecada que brinca gostoso:

Roda de quatro crianças


A mais nova tem dos anos
As mais velha de quatro a sete
A mãe de longe incentiva
“- Dança, neguinha
- Não sei dançar
- Uma chicotada leva
- Neguinha vai dançar”
Tudo no carinho. No jeito
Na primeira vez a criança não entende
A mãe de longe incentiva
- Dança minha filha
As mais velhas mostram o mexer
Com as cadeira. O feitiço
Da terra. Quem por perto, sorri
“- Dança, neguinha
- Não sei dançar
- Uma chicotada leva
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- Neguinha vai dançar”
A pequenininha está feliz
Risonha e rebola. Acelerada
Ainda não domina a manha

Mas já está aprendendo. Daí


É só crescer.

Mas não era hoje. Era 21 de abril de 1500, e a ira portuguesa, na


mescla, no tempero sarraceno, santificada pelo dever de salvar
almas aportaria, no dia seguinte, em Coroa Vermelha, Porto
Seguro, de modo a parir, mesmo sem intenção, um Povo Novo que
até hoje ensaia seu destino. E Zinho encontrou em Coroa
Vermelha tribo amiga, fala irmã, e o retrato de Corumbau: povo
grudado na areia, no mar, tontos diante de tão imponente gente,
vinda de onde não se enxerga. E da embarcação gigante ouviu-se
um estrondo de uma árvore, a maior delas, despencando na mata.
O barulho do Trovão: Deus maior. E de dentro do-que-na-veja
surgiu GenteDeus, ao encontro de Zinho, dos irmãos das tribos
irmãs de Zinho, que prostrados na areia reverenciaram tamanha
beleza. E se fosse hoje os portugueses não usariam botas. Nos pés,
sandálias de couro de sola de pneu. Coroa Vermelha é um rendez-
vous. Uma cruz sela solo pátrio. FOI AQUI TERRA DESCOBERTA. Se
é de madeira ou de cimento pouco importa, apenas chamam
atenção barraqueiros cachaça mulatas libidinosos ao som do
rebola: da lima-da-pérsia do limão do maracujá da acerola do caju
da uva do guaraná da jaca da melancia de qualquer fruta (!) salve
a aguardente: “rebola, rebola, rebola sim, pode falar, pode rir de
mim” e Zinho suado, sem camisa, barrigudo, mulato, sorrindo,

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cantando agarrado com Bela – fim de semana, Semana Santa,
Coroa Vermelha, Porto Seguro.

Sim, e se fosse ontem ou hoje Zinho haveria de ter outras moradas


e ofícios e de Raízes do Brasil colhi nomes de tendas de ruas de
praças e de trabalho: botoeiro esteireiro sapateiro guitarreiro
espadeiro ferreiro taberneiro manteiro luveiro e oleiro sem
esquecer do barbeiro carpinteiro cozinheiro pedreiro e coveiro.
Sempre a serviço do banqueiro e, claro, do eterno fazendeiro. Sim,
Zinho nasceu num cacaueiro. Era agosto de 1972. Tempo
impiedoso do ditador, general Garrastazu Médici, e Zinho tem
agora dezoito anos, não sabe quem foi o presidente da tortura e
não entrou no exército por excesso de contingente, por ter se
alimentado mal quando guri, virado nanico, mas muito forte nos
músculos de carregar arroba. De cacau. Zinho vive em Anori. Terra
Bahia Cacau. A mata encobre a planta. Cacau quer sombra e água
fresca. Cacau malandro. Cacau quer seu pé limpo. Tem de haver
empregado para limpar pé de cacau. Nem samambaia cacau quer.
É praga. O rendado verde de samambaia que envolve os pés de
cacau é praga. Cacau quer ter seu pé limpo. Sem vassoura-de-
bruxa. O neto lava pé do avô senhorial. Madalena lava pé de
Cristo. O cardeal lava pé do preso. O moleque Zinho mal pago
nanico risonho limpa pé de cacau. Anori é tão pequena, cercada
de mata que cerca cacau. Casas de pau-a-pique. Pobreza. Quem
limpa pé de cacau sempre foi pobre. Dono de cacau não. Já foi
barão. Já esbanjou dinheiro na capital. Salvador. No Café das
Meninas. Ao lado da câmara dos vereadores. Terno branco de
linho 120. Carro do ano. Importado. Hoje dono de cacau não tem
tanto. Quem limpa pé de cacau então! Mas Anori comemora a
Festa do Cacau. Cacau dá mel dá licor dá uma alegria uma vontade
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de beijar no mato no meio dos pés de cacau. No rendado das
samambaias. Zinho gosta do gosto da Bela. Zinho gosta do rio que
corta Anori. Gosta de nadar nu. Ele e Ela. Os moleques que sabem
de tudo já viram. Zinho e Bela nadando pelados! Zinho e Bela
deitados no mato! No rendado verde claro das samambaias que
envolvem pé de cacau. Os moleques que sabem de tudo fizeram
igual com a vaca mansinha. Com cabrita mansinha. Com galinha
não pode não. Ela morre! Com os amiguinhos não pode. Contar.
Mas os moleques que sabem de tudo já viram. Não contaram. E as
crianças de Anori, barrigudas de verme, descalças na lama, são tão
felizes, brincam de jogar papel para cima. E correr atrás de papel.
São tão felizes! Seus pais não. Já limparam muito pé de cacau. Não
ganharam nem uma quadra. Para eles só casa de barro. AS
crianças os moleques não ligam. Ficam tristes às vezes porque
gostariam de ter um brinquedo: já que não tem, esquece. Brincam
de jogar papel de correr atrás do vento que leva papel, de pular no
rio, brincam principalmente de saber tudo. E Zinho tem 18 anos e
sabe muito e já não é moleque. Não está triste. Tem esperança.
Está um tiquinho triste. Vai deixar Bela. Por pouco tempo. Ele tem
esperança. Ele vai pegar ônibus para Salvador. Arrumar emprego
bom. Aí casar com ela. Bela espera. Zinho está só pouco triste.
Bela está com seu melhor vestido. O ônibus da São Geraldo
estaciona. A mãe e o pai de Zinho sobem com ele até a cadeira 17.
Na janela. Zinho colocou uma mala pequena no bagageiro. Na
mão tem água biscoito e licor de mel de cacau. É para tia que
mora em Salvador. Ele está com sua melhor camisa sua melhor
calça seu melhor sapato. A meia tem um furo. Escapou dos olhos
da mãe. Bela tenta não chorar. Chora. Chora ela chora a irmã de
Zinho chora a avó. O irmão não. Nem está ali. Está em São Paulo. É

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pedreiro e dorme na obra. Manda carta todo mês. Traz presentes
uma vez por ano. Para todos. Promete que tudo vai melhorar. Aí
ele vai casar. Diz e volta para São Paulo: construir prédio dormir na
obra ser chamado de paraíba. O São Geraldo vai sair. Pontual. O
pai e mãe de Zinho não choram. Dentro do ônibus, têm dignidade.
O pai de Zinho tira um dinheiro do bolso. Zinho diz que não aceita.
Não pode. Não é direito. Aceita. Já não quer ir embora. Quer pai
mãe Bela! O ônibus roda. O pai a mãe a irmã a avó e Bela,
principalmente ela, vão ficando pequenininhos. As mãos acenando
vão dando tchauzinhos, tchauzinhos, tchauzinhos... Zinho esconde
o rosto na cortina do São Geraldo e chora. Zinho tem 18 anos.
Nunca saiu de Anori. Sempre limpou pé de cacau. Zinha está indo
embora de tudo. Para onde.

Conversas de ônibus

- Mas é você, que surpresa! Luis perguntou por você. Eu disse que
você tinha ido para Belém.
- Não fui não. Foi o Guaraci.
- Você tem rodado! Luis está na roça Para os lados de Monte
Alegre.
- É, tenho andado (!) na canseira. Faz oito anos que não vejo
minha família.
- De onde que ela é? A gente se conhece tanto e eu não...
- Sou do Ceará. Já foi nestas bandas?

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- Não. Sou aqui de perto. De Itabela...Você não tem contato com a
família?
- Não tenho não. Nem por carta.
Vem silêncio. O sem jeito de um, o olhar perdido do outro.
Família: – a mesa está posta – carinho de mãe... A conversa toma
rumo de trabalho, onde tem, o que dá para juntar: Os dois são
parecidos. Olhares sonhadores. De parir veredas. Tão moços e
tanto caminho (!) os sotaques os sonhos os jeans as camisas de
botão (de cores fortes) os tênis brancos bem lavados. Vão
apeando cerca que é tempo. São incontáveis nos ônibus! O céu
está limpo, ilumina o vasto: já ouviu tanto, tantas frases como
estas: como estas:
- Como vai sua família. A gente não tem se visto!
- Pois...
- Esta é de criação. Me acompanha. A outra já é crescida...Esta
achei em Itamaraju, debaixo de um eucalipto.
(O senhor constrangido pigarreia)
- Não, não se avexe (!) já conversei com ela. A gente passa perto
do eucalipto e ela diz “mãe, estou passando mal”.
(A menina tenta se esconder com os olhos na ponta do sapato.
Sua mãe de criação gorda e alegre continua tagarela num imenso
que não estanca)
- E o seu irmão?
(O senhor não tem tempo de responder. Ele já entra em outro
assunto)
- Sabe o Seu Neco. Meu compadre. Vendeu a terra. Tinha dívidas.
Já não presta para roça. Modo de ver do novo dono. Teve de sair.
Vive agora de matar bode para um açougue. Mas a cidade é muito

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cara. Um dos filhos manda uma ajuda. Ele acertou com um
restaurante. Lá em São Paulo. Seu Neco está necessitado...
(Ela interrompe a conversa baixa o encosto da poltrona aconchega
a filha sobre seu peito. Ela veste rosa e lança um auto-elogio)
- Como é bom ter mãe!

Itamaraju

Da cidade que fui tem gerente de banco – ele é importante – usa


gravata com carteira assinada – tem caixa de banco – ele é
importante – usa gravata na carreira a gerente – tem bigodudo
volumoso – com cara de importante – tem fila vagarosa cheia de
morenos magrinhos – ordeiros cabisbaixos – tem vários policiais
militares – na ordem da arrogância – tem um índio Pataxó – disse:
melhor turista ir para Caraíva. Em Corumbau tem muito índio. Os
turistas não gostam de misturar – perguntei – respondeu: é que é
uma nação diferente – vestia calção e camisa – parecia um
moreno da fila – havia diferença – altivo no olhar – carregava
artesanato – muitas cores – sim, da cidade que fui começa
aparecer turista – com gingado sou da área – cabelo longo solto
ou rabo – roupas da moda desleixadas – não vão ao Corumbau –
Pataxó está certo – não sobem o Monte Pascoal – preferem um
Porto Seguro.

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Na fila do banco da cidade que fui um moreno
baixinho arretado andança de lado pra lado matar
ou morrer afronta o baixa importante que olha
assustado ameaça o gerente importante que
chama a polícia que lá tem demais. O baixinho
esbraveja mandou dinheiro economias para a
mulher faz três vezes telefonou não recebeu veio
ao banco o gerente explicou para o guarda que o
baixinho arretado realmente mandou o dinheiro
mas errou o código e o dinheiro suado do baixinho
que não entende de números foi parar não sei que
lá e que então foi a Brasília e a ordem de
pagamento não retornou faz quinze dias é
verdade estou tentando no entanto o elemento
perturba a ordem da fila e do banco e vou tentar
mais uma vez localizar o documento e o policial
algema o baixinho com chapéu de couro redondo
como sua cabeça e baixinho arretado grita que
isso não é direito quem devia de chamar polícia
era ele que o dinheiro era dele e os outros
baixinhos de chapéu de couro concordam porém
ordeiros não ousam manifestar e o policial usa
força e leva o moreno pequeno para jeito de
sossegar. De humor. De modo de trato. Para não
tumultuar. Mais tarde retorna o baixinho à praça
central sorrindo olhos tristes camisa branca
amarfanhada chapéu de couro nas mãos bailando
leve cheirando cana um passarinho.

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Da cidade que fui as mulheres olham muito – belas morenas –
curiosas com risos e soslaios – tem homem alegre sóbrio
desconfiado carrancudo – as mulheres se reúnem em volta da
costura – os homens nos bares – alguns senhores sorriem – a
maioria não – tal da dignidade.

Da cidade que fui a chuva de janeiro cai rápida – dá só uma


esfriadinha – não incomoda – o tempo espera – na prefeitura no
correio na Telebahia na rua asfaltada na rua de pedras na cidade
alta na cidade baixa no INSS no mercado velho na peixaria.
Da cidade que fui já não tem TV preto e branco no centro, no
encontro, da praça – o bar de alto-falante estridente permanece –
tem prédio de andares – sinal de progresso – da cidade que foi
saudade.

Testemunho

Lego léguas inspirado na garantia apalpável, mais do que sonho: a


beleza de ser brasileiro. História, como as demais, da maioria
injustiçada: quantos foram os tocados pelo destino e não
sofreram? Este naco de chão habitado pelos únicos que
compreendem minhas palavras – arderia em prazer se pudesse
supor traduzível: mas é daqui por quem estudei e sofro que aspiro
passagem: com a absoluta convicção de que é muito fácil uma
sociedade solidária em terreno tão fecundo. Brasil é meu curso.
Sou mais um. Desejante. E das milhares de caras que filmei, das
piscadelas que todos os olhos piscam, notei uma toada que no
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meio da avenida num quinto do mundo deste universo cheio de
contos é serventia. Apontei e nem sabia por quê: – este cara é
brasileiro. É um jeito de gingar os ombros, a cadência que
entremeia a cor, um eterno sorriso de menino parido com gosto
por detrás do susto de cruzar o planeta que não dá em outra: este
cara é brasileiro. E não importa o sofrimento individual, já padeci
por centenas, vai além, nem o pequerrucho sabe, é o
ombreamento de iguais, da formação a chibatadas que mesclou
um Povo Novo. Garotos – eu vi um país nascer. VI a primeira luz
do poste elétrico, ouvi a primeira transmissão de rádio, assustei
vendo a tela do cinema eu vi TV. Garotos – não sou velho
centenário e assisti a tudo. A Escravidão está na minha alma. A lei
da liberdade vai ter de ser esculpida.

Verão: 90 e muitos – o balé das gaivotas

E quando gaivotas às centenas nadavam e peixes, antes


submersos, cardume, agora voavam e os pássaros pretos de Van
Gogh de Hitchcock ora na calma no alvoroço, e o vento afastava os
grasnados – já que batia da terra ao mar – e a força desaprumada
das asas enfrentando o sopro que é do céu e o cardume
amotinado voando para os bicos, ímãs, das gaivotas, todos levados
pelo vento, em bocas de imprecisão voraz, permitindo aos peixes
de escamas prateadas douradas que o sol provoca cobiçando
olhos, retornarem ao mar – espumante de centenas de outros
peixes do cardume amotinado, como rio a cima em tempo de
desova – e Zinho no encanto de Bela e era Rio de Janeiro,
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Ipanema, Posto 9, gaiteava esquecido dos 90 e muitos que foram
gastos como carvão para que embolados no bronze de sua pele da
pele de Bela, se deitassem no pano de colorido africano amassado
em despreocupados abraços. Zinho e Bela em 90 e muitos que
verão: o tempo na turbulência de constante vento. E a mistura de
pássaros peixes e gente circulando ar areia e água no posto 9 de
90 e muitos não atenta o casal que brinca como golfinhos: eles se
amam. E se os pássaros (?) os peixes o vento que antes bailavam
enfeitando a tarde da praia, enlouquecidos, voltassem sua
natureza, eternamente animal, contra o par de amantes: como
Bela e Zinho travariam sua ingênua arrogância de jovens bem
nutridos? Pois a praia inteira viraria pássaros e peixes e gente
numa balbúrdia que levantaria pânico, e das ondas do mar e do
cento não obteriam indulgência. Verão: o pânico dos falsos
ingênuos, casais bem nutridos, ungidos de sol – que até hoje têm
assistido plácidos o arder do inferno em milhões de corpos... Mas
não era a hora, a cidade insana abençoa Zinho e Bela na praia de
Ipanema de 90 e muitos, protegidos, herdeiros de 500 anos de

ENSAIO DE POVO NOVO.

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