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Heitor Campos
A obra Ecce Homo de Friedrich Nietzsche, escrita 1888, porém somente publicada
postumamente em 1908, é uma das obras finais do autor. Foi escrita com a tarefa, segundo
descreve o autor logo no prólogo, de evitar que o confundissem ou o mal lessem. Ecce Homo,
subtitulada “Como alguém se torna o que é”, é um dos textos mais controversos de um autor
já bastante contundente. Sua publicação foi adiada pelos familiares e amigos de Nietzsche,
que detinham os direitos sobre suas obras após o colapso de Turim, em Janeiro de 1889,
devido o temor de que tal obra manchasse sua imagem. Sua polêmica autobiografia parece
não ter, ao menos de início, concluído sua tarefa de evitar más interpretações.
Tendo sido considerado desde uma obra não-filosófica como até mesmo um delírio
megalômano sintoma do colapso vindouro, Ecce Homo de fato não é uma obra simples.
Como já recomendado pelo seu autor em outras obras, é um tipo de texto que exige que o
leitor tenha a virtude de um bovino — a de ruminar, e não foram poucas as vezes em que
Nietzsche afirmou serem raros, se não inexistentes, os homens entre os modernos com
“ouvidos” para as suas obras. Antes de tudo, para se dar ao menos os primeiros passos dentro
da obra precisamos refletir (ruminar) as seguintes questões: o que significa, para um autor
como Nietzsche, a escrita de uma biografia, ainda mais, uma autobiografia?, e o que haveria
de filosófico nisso? e também, o que significa “tornar-se quem se é”?
Nietzsche apresenta, em sua forma peculiar de filosofar, com seu “filosofar com o
martelo”, a fragilidade desses valores sagrados. Ele vai ainda mais profundamente nesse solo,
e encontra em seu subterrâneo uma moral que percorreu toda essa tradição. E toda moral,
todo pensamento, é oriundo, segundo Nietzsche, não de uma consciência privilegiada e
autônoma, mas de uma fisiologia, de uma disputa de pulsões, do qual a consciência, do qual
esse tão prepotente “Eu” é só um aspecto, é só uma brincadeira, um utensílio.
Ele é o filósofo que acima de tudo elogia a vida, e tudo que a compõe, que busca a
honestidade e a coragem com valores potentes para fazer essa afirmação. Seguindo este
pensamento podemos começar a entender o que significa uma auto-biografia escrita pela pena
de Nietzsche. O que significa filosoficamente dedicar tanta tinta descrevendo hábitos, dietas e
lugares que visitou. Diz Nietzsche:
Se até então toda filosofia, pela tese de Nietzsche, está intimamente vinculada com
uma confissão espiritual, percebida ou, mais rotineiramente, não, de seu autor, conhecer o
autor, intimamente, conhecer sua fisiologia, é parte crucial de se conhecer sua filosofia. E sua
moral encontra-se no cerne do qual se montam todas suas edificações teóricas. Em última
instância a filosofia de um pensador é a expressão máxima das pulsões que
inconscientemente lhe formam em sua tentativa de reivindicar autoridade para si. Sendo de
suma importância entender de qual fisiologia provém cada filosofia, e qual fisiologia é
propiciada. Aqui o autor entra com um vocabulário tipicamente médico, lembrando que ele se
considera um “médico da cultura”, pois assim deseja realçar que não existe uma distinção
entre o que é saúde física e espiritual.
Todo gesto de conhecimento, toda busca por Verdade, e toda tentativa de descrever
“objetos” é, antes de tudo, um gesto oriundo da mesma pulsão que na fisiologia do homem o
leva a fazer arte. Conhecer é um gesto poético, é um gesto criativo. Isso não é cair no
subjetivismo, pois o próprio sujeito não possui um estado unívoco, também é um vir-a-ser.