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Ricardo Cravo Albin

MPB
A provocação
da integração
Photo: Mario Thompson
A extraordinária capacitação brasileira de incorporar, de
deglutir, de ruminar as mais várias culturas – a meu ver, de
resto, a contribuição mais original do Brasil para a história das
civilizações , neste milênio – vai encontrar, justamente no
nosso cancioneiro, seu espelho mais veemente, provocador e
estimulante.
Devo observar que as músicas populares de outros países
como Alemanha, França, Portugal, Espanha, Rússia, Itália,
toda a Escandinávia e tantos outros (à exceção dos Estados
Unidos, onde o jazz se desenvolveu com vigor diferenciado)
são muitíssimo mais discretas e – aí sim – avaliadas em
modesto patamar cultural. Por quê? Porque a elas faltam as
labaredas rejuvenescedoras tanto da miscigenação, quanto as
de um país jovem.
Não será apenas por incorporar a palavra popular que a
MPB pode exibir, com tamanho luxo, sua melhor e mais
nobre configuração: a interface da solidariedade que ela pro-
põe. E – mais que isso – o que ela, concretamente, vem reali-
zando ao longo deste último século.
Mas, dirão alguns, não haverá exagero da parte de exege-
tas apaixonados em atribuir a um conjunto de canções e artis-
tas do povo tal nível de importância sócio-cultural ? Sim, até
poderia haver, se a esse conjunto que hoje tem o simpático
apelido de MPB faltasse um dado revitalizador chamado
miscigenação.
Foto: Mario Thompson

Pois sempre é útil lembrar-se que nossa música popular é


fruto direto – e indissociável – do encontro interracial que
culminou no país mulato que somos nós.
Dorival Caymmi A meu ver, a história da música popular brasileira nasce
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Foto: Mario Thompson

Cartola

no exato momento em que, numa senzala negra qualquer, os botas de seus maridos. Refiro-me à maestrina e compositora
índios começam a acompanhar as mesmas palmas dos negros Chiquinha Gonzaga, filha de marechal do Imperador, que
cativos e os colonizadores brancos se deixam penetrar pela teve a coragem de abandonar um casamento e montar casa
magia do cantarolar das negras de formas curvilíneas. Esse própria onde ousava ensinar não só piano, mas até violão, con-
amálgama maturado sensual e lentamente, por mais de qua- siderado maldito. E cito também uma rara pioneira –dama
tro séculos, daria uma resultante definida há cerca de cem culta (era cartunista e pintora),Nair de Teffé,(a RIAN),casa-
anos, quando é criado, no Rio, o choro e quando surgem o da com o Presidente Marechal Hermes da Fonseca, que teve
maxixe, o frevo e o samba. igualmente o topete de abrir o Palácio do Catete em 1912
Daí para cá, esses últimos cem anos, abertos tanto pela para saraus de MPB, onde pontificavam poetas e músicos
Abolição da Escravatura (1888) quanto pela Proclamação da populares, como Catulo da Paixão Cearense e Anacleto
República (1889), assistiram à consolidação de uma revolu- Medeiros.
ção cultural que nos redimiu: a dramática ascensão e formati- Mesmo assim, os muitos sofrimentos impostos aos músi-
zação da civilização mulata no Brasil. E com ela, a consolida- cos e poetas do povo espraiavam-se pelas ruas das cidades do
ção de sua filha primogênita, a mais querida e a mais abran- Brasil.Sofrimentos que – como me testemunharam pioneiros
gente, a MPB. do samba e do choro, como João da Bahiana, Pixinguinha,
A história desses cem anos é, também, a história dos pre- Donga e Heitor dos Prazeres – culminavam com o fato de
conceitos e dos narizes retorcidos da cultura oficial, encastela- serem presos nas ruas apenas pelo pecado de portarem um
da na burguesia e na aristocracia oligárquica. Duas exceções à violão,“coisa de capadócio, de desocupado, da negralhada”. Ou
regra geral do preconceito devem ser registradas, até porque de serem obrigados a entrar pela porta dos fundos do Hotel
envolvem duas mulheres, logo elas que viviam sob o jugo das Copacabana Palace (Rio) por serem músicos e “ainda por
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lações, espalhadas pelas cidades, demandavam novas formas
de lazer, ou uma produção cultural. E essa produção se fez
representar no campo da música popular pelos gêneros ini-
ciais de lundu e de modinha.O lundu – basicamente negro no
seu ritmo cadenciado – ostentava a simplicidade do povo nos
seus versos quando cantado, comentando na maioria das
vezes a vida cotidiana das ruas. Já a modinha - basicamente
branca na sua forma de canção européia - exibia versos empo-
lados para cantar o amor derramado às marmóreas musas,
quase sempre inatingíveis. Dentro dessa configuração, come-
çam a aparecer os primeiros que assumiram a chamada músi-
ca popular com prioridade. Ou seja, com a exclusividade de
cima negros”, isso lá por volta dos anos 20, mesmo depois de abraçar uma qualificação musical capaz de ser cantada, ou
os Oito Batutas de Pixinguinha terem excursionado, e com tocada, ou até dançada, fora dos salões da aristocracia. Nas
sucesso, a Paris , centro da cultura e da insolência comporta- ruas, nas praças, nos coretos ou nos guetos mais pobres.
mental do “années folles”. Um dos primeiríssimos personagens de música popular
Na verdade, acredito que, apenas no século XIX, a histó- dentro desse contexto foi Xisto Bahia, que retomou a tradição
ria da música popular fixaria os primeiros grandes nomes de Domingos Caldas Barbosa, cujas modinhas irônicas leva-
daqueles que iriam formar as bases do que é hoje considerada, das à corte portuguesa no século XVIII se tinham transfor-
com pompa e circunstância, a música popular brasileira. mado em árias pesadonas quando D. João VI aportou no Rio
Ressalte-se, desde logo, que música popular constituía uma em 1808, fugido da avalancha promovida por Napoleão
criação que é contemporânea ao aparecimento das cidades. Bonaparte na Europa. Nessa época, alguns poetas românti-
Deve-se deixar claro que música popular só pode existir ou cos começaram a escrever versos para serem musicados não
florescer quando há povo. Nos três primeiros séculos de colo- apenas por músicos de escola mas por simples tocadores de
nização houve tipos definidos de formas musicais: os cantos violão. Um desses, e dos mais prolixos, foi o Lagartixa, apelido
para as danças rituais dos índios e os batuques dos escravos, a com que se tornou popular o poeta Raymundo Rebello, cujas
maioria dos quais também rituais. Ambos fundamentalmen- músicas logo ganharam os violões anônimos das ruas.
te à base de percussão, como tambores, atabaques, tantãs, pal- Acredito que Xisto Bahia foi um dos mais completos
mas, apitos, etc. Finalmente, as cantigas dos europeus coloni- compositores exclusivamente populares do início da MPB do
zadores que tinham berço nos burgos medievais dos séculos Brasil. Xisto, violonista, compositor e ator, começou sua car-
XII a XIV. Fora desse tipo de música, o que preponderava reira em Salvador, onde nasceu em 1842, atuando para uma
era, com certeza, o hinário religioso católico dos padres. tímida classe média, que então já se esboçava. No Rio logo
Ainda a registrar os toques e as fanfarras militares dos toscos depois, chegou a ser co-autor de Arthur Azevedo e foi aplau-
exércitos portugueses aqui sediados, que foram os primeiros dido pessoalmente pelo imperador. Com o fim do Império,
grupos orquestrais ouvidos, ao ar livre, no Brasil. Xisto entrou em desgraça e morreu pobre e abandonado.
Uma música reconhecível como brasileira começaria a Tragédias, as da pobreza e do esquecimento, que cairiam
aparecer quando a interinfluência desses elementos produzis- como maldição por sobre a grande maioria dos vultos da
se uma resultante. Isso ocorreu, com mais clareza e maior música do povo, a partir daí.
configuração histórica, quando as populações das cidades No século XIX,a música ouvida pelas elites era,em geral,
começaram a se ampliar e a ocupar um espaço físico majoritá- as óperas, as operetas e a música leve de salão. Os negros ou os
rio. Nesse quadro geopolítico despontaram Salvador, Recife e brancos amestiçados das camadas baixas executavam e
Rio de Janeiro, todas com forte influência negra. Essas popu- ouviam, via de regra, os estribilhos acompanhados por sons
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de palmas e violas. A reduzida classe média – que começou a até maior sob uma ótica estritamente musical – Ernesto
se incorporar no segundo império – ouvia apenas os gêneros Nazareth era filho de modesta família da pequena classe
europeus, ou seja, música leve dos salões das elite: a polca, che- média. Aluno aplicado de piano, ele lançou o primeiro tango
gada ao Brasil em 1844, a valsa e ainda a schotish, a quadrilha, brasileiro,“Brejeiro” que, no fundo, era quase um choro. Assim
a mazurca. Dentro dessa realidade, eis que aparece um raio de se iniciou uma carreira que o transformaria no compositor
luz e de invenção, o mulato Joaquim da Silva Callado. Ele cria- mais original do Brasil, no dizer de Mário de Andrade: é
ria o primeiro grupo instrumental de caráter refinadamente popular e erudito ao mesmo tempo. Nazareth, contudo, des-
carioca e popular no Brasil: o choro, palavra que inicialmente prezava música popular e era obrigado a tocá-la em lugares
indicava apenas uma reunião de músicos e só depois o nome plebeus, como ante-salas de cinemas – onde aliás, era ouvido
de gênero musical.A criação do choro representa um momen- por gente do porte de Darius Milhaud, que nele se inspirou
to mágico de interação da mistura de raças no Brasil, porque para compor algumas de suas peças. Rui Barbosa era outro
fruto do gênio e da criatividade do mulato brasileiro. O novo personagem famosíssimo que sempre ia ouvi-lo no cinema
gênero, uma música estimulante, solta e buliçosa, era executa- Odeon.
da à base de modulações e de melodias tão trabalhadas que Dentro dessa linha dos primeiros compositores popula-
exigiam de seus executantes competência e talento. E, muitas res para a classe média então emergente, quero registrar ainda
vezes, um virtuosismo que a maioria não possuía. A ponto tal um outro que considero de capital importância: Catulo da
que os editores nem queriam mais editar Callado, que chega- Paixão Cearense. Seu prestígio se consolidaria, de fato, nos
ria, contudo, a ser condecorado pelo Imperador com a Ordem primeiros anos do século, com o advento das gravações mecâ-
da Rosa (1879), morrendo logo depois vitimado por uma das nicas. Pelos velhos discos da casa Edison, na voz do cantor
muitas epidemias que grassavam no Rio de cem anos atrás, Mário, o prestígio de Catulo não pararia de crescer. Para que
insalubre e sem esgotos sanitários. se tenha uma idéia da sua influência, ele foi o primeiro a intro-
Dentre todos os pioneiros, todavia, duas chamas indivi- duzir o violão – instrumento então considerado maldito – no
duais logo se destacariam dos demais: Chiquinha Gonzaga e antigo Instituto Nacional de Música, em rumorosa audição
Ernesto Nazareth. (1908) corajosamente promovida pelo Maestro Alberto
De 1877 até pouco antes de sua morte, a primeira grande Nepomuceno.
autora de música popular no Brasil fez 77 peças teatrais e 2 A mais conhecida composição de Catulo,“O luar do ser-
mil composições, entre as quais jóias como o tango “Corta tão”(1910, gravada pelo Mário para Casa Edison), é usual-
Jaca”e a modinha“Lua branca”. Chiquinha ainda teve coragem mente considerada o hino nacional dos corações brasileiros.A
e tempo para abraçar as causas mais nobres de sua época, famosa peça trouxe a glória definitiva a seu autor e também
como o abolicionismo, saindo muitas vezes de porta em porta um “grave desgosto”, como chegou a confidenciar ao pianista e
para recolher donativos. A revolucionária Francisca também pesquisador de MPB Mário Cabral: a acirrada disputa com o
deitou modas, desenhou seus próprios vestidos, fumou charu- violonista João Pernambuco, que se considerou desde logo o
tos, tornou-se notícia, caiu na maledicência popular. Mas fez autor da música, fato veementemente contestado por Catulo.
de sua vida um ato de pioneirismo e coragem até hoje insupe- Aliás, João Pernambuco foi não só extraordinário músico, mas
ráveis. também autor de obra curta mas interessantíssima, na qual se
A pedido do cordão carnavalesco “Rosa de ouro”, destaca pelo menos um outro clássico, o choro “Sons de
Chiquinha compôs em 1899 a primeira marcha carnavalesca Carrilhão”.
para o carnaval, o “Abre alas”. Foi ainda a fundadora da SBAT Enquanto Catulo era o grande sucesso na Capital
(1917) e morreu no Rio com 89 anos, cercada por uma áurea Federal do país, um Rio ainda acanhado e que dava os primei-
de mito, um ícone tanto de transgressão social quanto da con- ros passos para se modernizar como grande cidade (“quando
solidação da música popular. o Rio se limpava da morrinha imperial”, no dizer de Carlos
De tão grande importância quanto Chiquinha - e talvez Drummond de Andrade), apareceu em 1912 um menino de
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Caetano Veloso
Foto: Mario Thompson

calças curtas tocando flauta melhor que gente grande. Esse O samba iria nascer da música à base de percussão e de
menino virtuoso viria a ser o herdeiro de toda tradição musi- palmas, produzida por esses negros e que podia atender pelos
cal inaugurada e cultivada por Nazareth, Chiquinha, Callado, nomes de batucada, e até lundu ou jongo.A palavra de origem
Patápio e Catulo, e também seria - pelo menos ao meu ver - o africana (Angola e Congo), provavelmente corruptela da pala-
estruturador e o patriarca de toda a música que viria depois vra “semba”, pode significar umbigada, ou seja, o encontro las-
dele: Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha. civo dos umbigos do homem e da mulher na dança do batu-
Autor de vasta obra, em que pontifica uma das mais céle- que antigo. Pode também significar tristeza, melancolia
bres páginas do cancioneiro, Carinhoso (com versos de João (quem sabe da terra africana natal, tal como os blues nos
de Barro, o Braguinha), Pixinguinha criou inúmeros conjun- Estados Unidos).A palavra samba, de resto, foi publicada pela
tos musicais dos quais se destacou “Os Oito Batutas”, o pri- primeira vez (3/2/1838) por Frei Miguel do Sacramento
meiro a excursionar fora do Brasil (1922, Paris), levando na Lopes Gama na revista pernambucana Carapuceiro: definia
bagagem o choro, o samba e o maxixe, todos eles temperados então mais um tipo de dança, sem maior interesse.
com o melhor da alma brasileira mulata e travessa. O Maestro Além das rodas de capoeira e de batucada, quase sempre
Alfredo Viana foi também o primeiro músico brasileiro, já realizadas nas ruas e praças das imediações, ficaram célebres
consagrado como flautista, compositor e chefe de orquestra, a os festejos nas casas das hoje celebradas Tias Baianas, das
fazer arrojados arranjos orquestrais para as marchinhas e quais se destacava a Tia Ciata – a mulata Hilária Batista de
sambas de carnaval em plena Época de Ouro da MPB (déca- Almeida, dentre todas a mais festejada.
da de 30). Justamente nas casas das Tias Baianas registram-se não
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só o nascimento do samba mas também os maior de todos os sucessos de Sinhô foi o
primeiros nomes da sua história. O mais “Jura”, gravado simultaneamente por Aracy
antigo deles todos pode ser considerado o Cortes, a maior estrela do teatro musicado
mestiço José Luiz de Moraes, apelidado de dos anos 20 e 30, e por um jovem cantor da
Caninha porque quando menino vendia alta sociedade carioca, Mário Reis, lançado
roletes de cana na Estrada de Ferro Central na música por Sinhô, de quem ele era aluno
do Brasil. de violão.
Ainda nessa fase heróica de nascimento Nessa época, os anos 20, as revistas
do samba há que ser assinalado o nome de musicais dos muitos teatros da Praça
Heitor dos Prazeres. Nascido em plena Tiradentes eram o maior centro comunica-
Praça XI , onde também morreria, o sam- dor e divulgador da música popular antes
bista Heitor iniciou-se, a partir de 1936, do advento do rádio.
como pintor primitivo, condição em que se O samba só viria, contudo, a ser defini-
consagraria nacional e internacionalmente. tivamente estruturado – em sua forma
A ponto de certa vez, seus quadros, mostra- como é hoje conhecido – por um grupo que
dos em Londres, terem recebido da Rainha habitava o Estácio de Sá, famoso bairro de
Elizabeth a pergunta consagradora:“Quem baixa classe média carioca na segunda meta-
é este pintor extraordinário?” Heitor, que de da década de 20. Esse grupo de composi-
seria premiado na primeira Bienal de São tores, boêmios e malandros, que hiberna-
Paulo, passou boa parte da vida como contí- vam de dia e floresciam à noite nos bote-
nuo do antigo Ministério da Educação e quins “Café Apolo” e “do Compadre”, tinha
Cultura, emprego vitalício que lhe fora atri- por líder o compositor Ismael Silva. O
buído pelo poeta Carlos Drummond, seu grupo do Estácio entraria para a história da
confesso e público admirador. MPB como consolidador do ritmo e da
O samba só veio a ser registrado como malícia do samba urbano carioca, até então
gênero musical específico quando o quarto muito influenciado pelo maxixe em sua
desses pioneiros, o Ernesto Joaquim Maria estrutura formal – como “Pelo telefone” e
dos Santos, o Donga, filho de Tia Amélia quase todas as obras de Sinhô.
mas também freqüentador dos folguedos de Tia Ciata, gravou Ismael Silva, a quem deve ser atribuída a responsabilida-
uma música feita por ele e pelo cronista carnavalesco do Jornal de histórica de ter sido um dos estruturadores do samba urba-
do Brasil Mauro de Almeida, (o Peru dos Pés Frios), baseada no carioca tal como viria a ser conhecido e apreciado nos anos
em motivo popular que ambos intitularam “Pelo Telefone”. subseqüentes, tem ainda o crédito de ter sido o fundador da
Ao começo da década dos vinte, um outro personagem primeira escola de samba, a “Deixa falar” (1928), que ele orga-
muito interessante personificou o gênero que então se conso- nizou junto com Rubem Barcelos, Bide, Baiaco, Brancura,
lidava: José Barbosa Silva, na história do samba imortalizado Mano Edgar e Nilton Bastos, inventor do surdo dentro da
como Sinhô. Nascido em pleno centro carioca (Rua escola.A“Deixa falar”– que sairia apenas nos carnavais de 29,
Riachuelo), desde molecote freqüentando as rodas de boêmia 30 e 1931 – tinha tanto na forma quanto na timidez de seu
da cidade, Sinhô entrou para a história do cancioneiro popu- número de desfilantes a estrutura dos blocos carnavalescos.
lar como o primeiro sambista profissional. Sua popularidade As escolas de samba, na verdade, só se expandiriam com
atingiu a níveis tão altos que a simples cognominação de “Rei a criação das duas outras que se seguiram à Deixa Falar: a
do Samba” demonstrava com clareza o enorme prestígio de Mangueira de Cartola e a Portela de Paulo da Portela e de
que desfrutou entre 1920 e 1930, ano em que morreu. O Heitor dos Prazeres, que vieram a tomar a forma definitiva de
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escolas de samba. E a aglutinar sambistas relevantes em seu antes dele (gente como Manezinho Araújo, Jararaca e
redor, com comovedora e permanente fidelidade a suas cores. Ratinho ou Alvarenga e Ranchinho), nem depois (gente
A partir dos anos 30, registra-se a história da saga glorio- como João do Vale, Alceu Valença, Xangai, Jorge do Altinho,
sa do rádio no Brasil, inaugurado pelo gênio de Edgard Elomar ou o recentíssimo Chico César).
Roquette Pinto, ( um herói modesto e cativante que ainda pre- Voltando ao sucesso de Carmen na América, antecede ele
cisa ser avaliado melhor ao comecinho deste século) e desen- de poucos anos a história do movimento da bossa-nova no
volvido pela esperteza política do estadista Vargas. O rádio (a mercado mundial, que consolida, de uma vez por todas, o
partir de 1923) e a gravação elétrica (a partir de 1928) fizeram prestígio internacional da MPB. A ponto de ejetar nomes
florescer a época de ouro da MPB, os anos 30, em que irrom- como Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes para as
pem talentos nos quatro cantos do país, especialmente no eixo estratosferas do olimpo musical do mundo.
Rio-S.Paulo. Dele saem para o mundo Ary Barroso e A bossa-nova, aliás, foi antecedida – e até provocada , de
Zequinha de Abreu, e, especialmente, Carmen Miranda, uma certo modo – pela enxurrada dos sambas-canções que inun-
fogueira tropical que fez crepitar a Hollywood bem compor- dou a década de 50, transformando a MPB num rio “noir” de
tada e rigorosamente padronizada dos anos 40. lágrimas, fossa e dores de cotovelo, muitas dessas músicas
Foi exatamente em 1945, como que a saudar o fim do escritas por talentos fulgurantes como Antônio Maria,
conflito, que surge uma figura de rara importância dentro do Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran ou até Caymmi,
cancioneiro do povo. E que sustentaria o ritmo e as origens Braguinha e Ary Barroso, que se destacavam da mediocrida-
brasileiras pelos anos de crise para a MPB que o fim da guer- de “noir” em que patinava o gênero lacrimejante.
ra indiretamente traria: a avalanche de músicas norte america- Ao final dos 50, a Bossa Nova nasceu como uma reação
nas ou as importadas pelos Estados Unidos e despejadas em ao processo de estagnação em que se encontrava a música
todo o mundo, sobretudo no Brasil. popular nos anos 50, invadida por ritmos estrangeiros, em
O fenômeno, aliás, é de fácil compreensão quando se ana- especial os boleros, as rumbas e as canções americanas comer-
lisa o fato de que os Estados Unidos saíram da Segunda ciais, além dos ritmos para consumo cíclico da juventude,
Grande Guerra como país vitorioso e em fase de expansão como o chá-chá-chá, o rock, o twist e o merengue. Havia ainda
mundial, propulsionada pela exportação internacional em uma enxurrada de versões e de sambas canções brasileiros, de
massa de seu poderoso parque industrializado, atrás do qual baixo nível, onde falta de talento e vulgaridade eram elemen-
vinha a indústria da diversão. A indústria do lazer representa- tos constantes.
va a consolidação cultural norte-americana no mundo: os fil- A bossa-nova, portanto, surgiria não apenas como uma
mes, os discos e a música popular, com todos seus modismos, reação a esse estado de coisas, senão também como integran-
ainda mais sedutores pelas engenhosas campanhas de marke- te da febre pelas novidades que se abriam para o desenvolvi-
ting com que eram promovidos, remetendo-os quase sempre mento do país. O governo JK prometia cinqüenta anos em
à juventude. cinco e começava a construir Brasília, a abrir estradas de roda-
Essa figura excepcional a que me refiro e que teve decisiva gem e a implantar parques industriais pesados. O Brasil vivia
participação dentro da afirmação de uma cultura nacional um clima de euforia nos 3 últimos anos da década dos 50, do
mais ligada às fontes do Brasil, foi Luiz Gonzaga. qual sairiam também movimentos renovadores no campo de
Graças à força telúrica e à veemência vocal de Luiz vários outros segmentos artísticos: no cinema, o começo do
Gonzaga, o baião não somente se manteria nos anos 50 – a chamado cinema novo; na poesia, os poetas concretistas; na
década do samba-canção – como determinaria o aparecimen- música erudita, os decafonistas; nas artes plásticas, a nova figu-
Foto: Mario Thompson

to de dezenas de intérpretes e compositores, o principal dos ração. Em música popular, esse processo geral de renovação
quais, Jackson do Pandeiro, exibiria um tal sentido rítmico encontraria seu caminho com a bossa-nova.
para cantar côcos (gênero musical nordestino de andamento Historicamente, pode-se determinar o aparecimento for-
bem mais acelerado que o baião) que nunca foi igualado, nem mal da bossa-nova em 1958 quando se juntaram três persona-
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gens em três setores distintos da criação musical: João para melhor combater a burrice da censura oficial, esmagado-
Gilberto – o ritmo, Antonio Carlos Jobim – a melodia e har- ra e intolerável entre 1968 e 1985, se bem que seus arreganhos
monia, e Vinícius de Moraes -– a letra. O mais importante tivessem começado a partir de 1964. A intervenção militar, de
deles (para a bossa-nova, que fique claro), João Gilberto, era resto, provocou uma imediata mobilização de setores musicais
um violonista baiano que trazia dentro do violão toda a malí- universitários (ou pré-universitários) e que tinham epicentro
cia, a manemolência e até a languidez descansada de sua terra. no CCP (Centro de Cultura Popular) da UNE (União
Foi ele o criador do ritmo da Bossa Nova, com uma batida Nacional dos Estudantes).Ali se reuniam compositores como
diferente e pouco usual de tocar violão, que conferia ao ritmo Carlos Lyra, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, ao
um sabor de samba mais lento, mais adocicado, ou mais“agua- lado de cineastas como Gláuber Rocha, Carlos Diegues,
do” - como ironizavam alguns dos algozes do novo movimen- Joaquim Pedro e Leon Hirschman, os últimos já integrados à
to. O primeiro encontro dos três mosqueteiros da bossa-nova revolução do“cinema-novo”, que usava a MPB com veemência
(abril, 1958) se daria no LP “Canção do amor demais”, em e paixão, em suas trilhas sonoras. Esse também foi um tempo
que a cantora Elizeth Cardoso cantava doze músicas da nova de amadurecimento e reflexões desses jovens músicos e letris-
dupla, Vinícius e Tom. Em dois desses números aparecia o tas da classe média, em relação ao caldeirão musical que ainda
violão de João Gilberto, o principal dos quais era o samba inti- se escondia nos morros e favelas cariocas. E aí são revaloriza-
tulado “Chega de saudade” (o outro era “Outra vez”). dos personagens que andavam esquecidos como Cartola e
A história dos festivais dos anos 60 dá parto a estrelas Nélson Cavaquinho, da gloriosa Mangueira, ou Zé Keti da
incandescentes como Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Portela.
Nascimento, Caetano, Gil , Ivan Lins, Gonzaguinha, João Mas como não sublinhar o triunfo em venda de discos
Bosco, todos alinhados – eu até ousaria dizer estimulados – que foi a volta do samba de raiz, a partir de Martinho da Vila,
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Foto: Mario Thompson
populares de grande porte, sejam as tradicionais, sejam as
novas. Umas e outras assumiram nesta década uma dimensão
nunca vista antes. E elas se celebram e se constituem a partir
da música popular, ou seja, aquelas canções que têm autores
definidos (já que a música folclórica se estriba na tradição do
anonimato). As festas ou espetáculos para grandes massas
e/ou platéias nascem nas franjas da sociedade e atingem a
vários níveis, provocando uma solidariedade social muito rara.
E muito valiosa, portanto, para um país de enormes contradi-
ções e diferenças sociais como o Brasil.
As escolas de samba do Grupo Especial do Rio fazem,
especialmente a partir dos anos 90, o espetáculo mais arreba-
tador do mundo: seus cerca de 50.000 desfilantes são aplaudi-
dos por 80.000 pessoas em duas noites e vistos via tevê, por
dezenas de milhões no Brasil e em várias partes do planeta.
Estudiosos afirmam que a indústria do lazer é a que mais
cresce no mundo. E também a que mais gera empregos e a que
apresenta o maior faturamento. Uma em cada 16 pessoas
empregadas no planeta trabalha em atividades ligadas ao lazer.
Calcula-se que só no Brasil a indústria da diversão estará rece-
Daniela Mercury bendo investimentos de cerca de US$ 5 bilhões de dólares até
o ano 2.000. O turismo musical emerge neste contexto, como
Beth Carvalho, Alcione, Clara Nunes e Paulinho da Viola, no uma das atividades a priorizar. No mundo todo, o turismo
iniciozinho da década seguinte, os anos 70, apesar de todo seu gera em torno de 212 milhões de empregos, além do fato de
peso de chumbo do regime militar? Como não registrar, que se trata do setor de menor investimento por emprego
mesmo com alguma eventual insegurança, a chegada do rock gerado. Portanto, o velho dito popular que define o Brasil
brasileiro nos anos 80, com jovens poetas patéticos como como “o país do carnaval e do futebol” deve ser repensado em
Cazuza e Renato Russo dando seqüência aos pioneiros Rita termos econômicos.
Lee, Raul Seixas e Tim Maia? Por quase quatro séculos o carnaval carioca respirou
Toda a história desse século inicial de MPB, argamassada apenas o entrudo português. Somente na segunda metade
pela paixão e tendo como pilares as fraldas da sociedade, desá- do século XIX tomou ares europeus, não exclusivamente
gua agora neste comecinho de século. lusitanos.
Esses últimos anos configuram e dão seguimento, com Até a terceira década do século XX o Carnaval evoluiu
uma certa eloqüência, a todo o legado da MPB, que é hoje, e sem a intervenção do poder público.
disso eu não tenho a menor dúvida, o produto número um da Com a falência das tradicionais bases de sustentação eco-
pauta de exportação cultural com que conta o país. nômica da festa, formadas pela solidariedade de grupos, jor-
Estamos melhores ou piores, em música popular? nais patrocinadores e Livros de Ouro, o Carnaval passou a
Afastando-me do pecado do maniqueísmo e da tentação da ser gerenciado pelo Poder Público, de forma paternalista e
crítica individualizada, eu diria que a MPB, vai, como quase política. Por isso, a festa jamais trouxe benefícios econômicos
sempre esteve, muito bem, obrigado, apesar de alguns pesares. à cidade.
Inicialmente, há que se sublinhar um fato histórico que Mesmo a transformação dos desfiles das Escolas de
considero relevante e que é a expansão dos festejos (ou festas) Samba em grande espetáculo pago, não produziu retornos
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financeiros para o Estado, por falta de tratamento profissional. Quanto aos ritmos com que sempre contou o país –
Na década de 80, o carnaval carioca perdeu quase por aliás, nunca celebramos como deveríamos este extraordinário
inteiro a diversificação que o caracterizava desde o início do tesouro capaz de engrandecer qualquer povo – vão eles
século, reduzindo-se praticamente à sedução esmagadora do sendo bem aproveitados. Como não exultarmos com a volta
desfile principal das Escolas de Samba. do forró a partir de 97/98, pilotado por Alceu Valença, Elba
A indústria do Carnaval na cidade do Rio de Janeiro Ramalho e Lenine, trazendo todo o cadinho energético do
começa a funcionar efetivamente quando as quadras de ensaio nordeste e que tem como epicentro Pernambuco ? É por isso
das Escolas de Samba recebem os concorrentes do concurso e por intermédio deles que voltam agora os cocos, as embola-
dos sambas-enredo, a partir de agosto-setembro. Nesta época, das, os xotes, os xaxados, os baiões e as toadas, além das ciran-
também os barracões iniciam os trabalhos plásticos dos pre- das, maracatus e frevos.
parativos do Carnaval. A partir do mês de janeiro, a indústria Também revitalizam-se, a partir do Rio, as resistências
do Carnaval esquenta nas quadras de ensaios e barracões, esgrimidas pelos pagodes e pelos sambas de Martinho da Vila,
entrando em pleno funcionamento. Ivone Lara, Zeca Pagodinho, Lecy Brandão, Beth Carvalho e
Não existe ainda um entrosamento mais eficaz entre os Alcione, antepondo-se ao baixo nível do pagodinho chinfrim
responsáveis pela movimentação da indústria do Carnaval: e mauricinho, imposto pelas gravadoras à mídia.
Poder Público (Embratur, Riotur, Turisrio), Escolas de Nesses últimos anos, os líderes da geração de 60 conti-
Samba (LIESA) e Agências de Turismo (ABAV). Não há nuam a mil, criando espetáculos e discos especialmente sedu-
comunicação entre essas entidades capazes de planejar, por tores, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Mílton
exemplo, visitas turísticas no pré-Carnaval. Nascimento, João Bosco, Ivan Lins, Djavan, com os quais cor-
Vale dizer que as alas de compositores, tanto do Grupo rem o Brasil e, quase sempre, o exterior.
Especial (Grupo I ), quanto do Grupo de Acesso (Grupo II) As duplas caipiras, de larga penetração junto à massa,
gravam CDs, a cada ano, e que chegaram a vender cerca quase ganharam a adesão da mídia,reconciliando pontas que se afas-
um milhão de cópias. Assim também procede o Grupo tavam. Desse modo, Xitãozinho e Xororó, Zezé de Camargo
Especial das escolas de samba de S. Paulo, com vendagem e Luciano ou Leandro e Leonardo, dupla tragicamente desfei-
mais discreta e prestígio mais modesto, se bem que em fase ta pela morte do primeiro em junho de 1998, passam a rece-
ascensional. ber as simpatias amplas, gerais e irrestritas que antes lhes pas-
Quanto às festas e espetáculos de massa e que se consoli- saram subtraídas, ou exclusividade tributadas a talentos mais
daram nesses últimos anos, como deixar de citar a sedução de robustos como Sérgio Reis, Renato Teixeira, Pena Branca e
Parintins (um espetáculo monumental em plena selva amazô- Xavantinho ou Almir Sater .
nica) e a energia das micaretas e carnavais de inverno, hoje em Também a partir dos anos 90, especialmente no qüinqüê-
quase todos os estados nordestinos? nio 93-98, detectam-se sintomas de novas absorções e mistu-
Pois é a música popular, a mais pura música popular, pro- ras na Bahia, celeiro primordial da capacidade brasileira de
duzida pelos trios elétricos e grupos de frevos, maracatus e aglutinar e digerir culturas diversas.A partir do que se conven-
sambas, que lhes dá essência, substância e conformação de fol- cionou chamar de “axé-music”, irrompem talentos individuais
guedo. do porte de Daniela Mercury e Carlinhos Brown, que desa-
34
Foto: Mario Thompson

Paulinho da Viola

guaram na sucessão de bandas de aceitação comercial inegá- excursionam com certa freqüência.
vel,como É o tchan,Mel,Netinho,Cheiro de Amor etc,suces- Mas, afinal, por que acontece isso com uma música tão
soras legítimas do modismo internacional que foi a lambada, estimulante?
poucos anos antes. Vários, por certo, são os fatores das queixas dos músi-
Mas como falar-se em música popular sem que seja reser- cos, a começar pela demasiada sedução da música cantada,
vado um lugar de honra para o músico do Brasil? Pois é o ins- com letristas e poetas tão antenados em nossa realidade,
trumentista brasileiro consagrado no mundo desde anseios e sonhos.
Pixinguinha, o flautista de gênio, que bem pode ser considera- Por sinal, ainda sobre esse assunto quase crônico, quero
do o patriarca da MPB, até por ser o primeiro (junto com Os lembrar o que Radamés Gnatalli comentou comigo certa
Batutas) a excursionar à Europa para mostrar o samba e o manhã, quando fui buscá-lo em casa para levá-lo ao Museu da
choro, recém-criados pelo nosso gênio mulato (Paris 1922). Imagem e do Som para um histórico depoimento para a pos-
Quando o músico brasileiro excursiona para fora do teridade. Ele estava recebendo dois jovens estudantes, em
país, ele é quase sempre absorvido e, por vezes, fica por lá. busca de suas partituras e ensinamentos. O Mestre foi curto,
Aqui no Brasil, contudo, há uma queixa histórica de que ele grosso e dramaticamente verdadeiro: “– Olhem aqui, meus
não é tão prestigiado quanto poderia e deveria . De há muito filhos, para tocar minhas músicas, vocês vão ter que importar
ouço lamentos de grandíssimas figuras que vão de Waldir dos Estados Unidos. Aqui nunca editei nada.” Isso foi no final
Azevedo, Jacob e Pixinguinha a Sivuca, Altamiro Carrilho, dos anos 60. Hoje a situação já melhorou bastante, mas ainda
Luiz Bonfá e até Tom Jobim e Baden Powell, ou mesmo assim, os esforços para editar mais partituras continuam.
jovens como Leo Gandelman, César Camargo Mariano, Portanto, nutrir-se melhor este personagem essencial da
Carlos Malta, Hélio Delmiro, Nonato Luiz ou Guinga e MPB, que é o músico, sempre vale e valerá a pena.
Rildo Hora. Todos se queixaram das poucas oportunidades Como estão valendo – e cada vez mais neste começo de
de tocar, de gravar, divulgar e exibir música instrumental no século – os selos (mais, ou menos, independentes) que gra-
Brasil. Ao menos, em relação a outros países por onde eles vam preferencialmente CDs de músicos em estúdio,ou extraí-
35
Milton Nascimento

Foto: Mario Thompson


dos de gravações realizadas ao vivo em espetácu- Um dado significativo que ocorreu a partir
los públicos. dos anos 90 foi o aumento progressivo do percen-
Quanto à indústria do disco no Brasil, não tual de discos com artistas brasileiros.
há como deixar de comemorar-se um salto verti- Ao contrário do que muitos de nós acreditá-
ginoso de vendagens nesses últimos trinta anos. vamos e contra o que sempre nos batemos, a pro-
Para que se tenha uma idéia mais precisa, vejam- porção de registros fonográficos com repertório e
se esses números, fornecidos pela ABPD artistas nacionais ultrapassou a 50% em 1995 e
(Associação Brasileira de Produtores de Disco): agora chega quase a 70% de tudo que é gravado
em 1972 venderam-se 15.492.652 unidades de no país.
discos, em 1984 o número subiu para Bondade da indústria multinacional de dis-
43.996.565 e em 1996 para 94.859.730 unida- cos para com a cultura brasileira ou magnanimi-
des de disco em todo o país. O que vale dizer um dade para com os músicos, autores e intérpretes
aumento muitíssimo significativo. que fazem música no Brasil e empregam o portu-
Todo o faturamento do disco no Brasil guês como língua de expressão? Nem uma, nem
envolveu uma soma de quase 1 bilhão de dólares outra. Pura e simplesmente uma lei de mercado,
ao começo do novo século, mesmo com crises eu diria uma deliciosa imposição do consumidor
econômicas, sendo o setor responsável por 8 mil empregos brasileiro, que prefere ouvir o som de seu próprio país e confir-
diretos e 55 mil indiretos, em áreas como shows, radiodifusão, mar sua poderosa identidade nacional.
comércio varejista, gráficas, editoras e “ designers”, os chama- Com isso, a exportação de música brasileira também tem
dos segmentos correlatos. crescido, especialmente para a América Latina.
36
res para a MPB. Fica agora muito claro que uma geração
nova e novíssima começou a chegar para fecundar o final dos
cem anos mais importantes para o nosso cancioneiro, o dolo-
roso, veloz, traumático e riquíssimo século XX.
O melhor desse começo de milênio é que todas as gera-
ções musicais convivem numa razoável harmonia. Afinal,
todas elas lapidaram o legado precioso de Nazareth,
Os ritmos mais consumidos do Brasil no exterior, Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, Noel, Ary, Caymmi e
de 1996 para cá, são a bossa-nova, a chamada música Braguinha, Chico, Milton e Caetano, Martinho, Cartola,
autoral (Chico, Caetano, Gil etc) erroneamente apeli- Paulinho da Viola e Noca da Portela, na certeza de que –
dada pelas gravadoras de MPB, rock, pagode, axé- mesmo com alguns desvios insensatos e certos atalhos inú-
music e música sertaneja. teis – a música popular do Brasil jamais perderá seu prumo.
Quanto aos Festivais de Música – não necessariamente Até porque o alicerce de seus pioneiros e seguidores é sólido
aqueles competitivos e atrevidos dos anos 60, que bem que e sedutor o bastante para faze-la continuar a surpreender o
poderiam voltar, por que não? – mas os encontros de gente mundo no século cujos passos iniciais agora são dados.
ligada à música para troca de informações, “workshops”, Os anos finais do século XX, portanto, foram animado-
ensino, cursos e audições devem também merecer uma refe- res para a MPB. Fica agora muito claro que uma geração
rência especial e calorosa. nova e novíssima começou a chegar para fecundar o final dos
A partir dos Festivais de Inverno de Ouro Preto, tanto cem anos mais importantes para o nosso cancioneiro, o dolo-
os eruditos (dirigidos por José Maria Neves) quanto os roso, veloz, traumático e riquíssimo século XX.
populares (supervisionados por Toninho Horta), o Brasil O melhor desse começo de milênio é que todas as gera-
desabrocha em Festivais de Música, na década de 90, espe- ções musicais convivem numa razoável harmonia. Afinal,
cialmente no Estado do Paraná, onde se realizam vários todas elas lapidaram o legado precioso de Nazareth,
encontros de artistas, liderados pela solidez e respeitabilida- Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha, Noel, Ary, Caymmi e
de do Festival de Londrina.Há festivais em vários outros Braguinha, Chico, Milton e Caetano, Martinho, Cartola,
estados, muitos deles impulsionados pela ação cultural da Paulinho da Viola e Noca da Portela, na certeza de que –
FUNARTE, que também editou uma valiosa coleção de mesmo com alguns desvios insensatos e certos atalhos inú-
livros sobre música, seus compositores e intérpretes. teis – a música popular do Brasil jamais perderá seu prumo.
Aliás, em relação à rubrica livros sobre MPB, os anos 90 Até porque o alicerce de seus pioneiros e seguidores é sólido
foram generosos: nunca se editou tanto sobre o tema, hoje e sedutor o bastante para faze-la continuar a surpreender o
objeto de interesse acadêmico pelas universidades e “scho- mundo no século cujos passos iniciais agora são dados.
lars” de vários níveis. Longe já lá se vão os tempos do pionei-
rismo dos poucos interessados que éramos nós na década de Ricardo Cravo Albin tem formação em Direito, Ciências e Letras.
60, pesquisadores do porte de Ary Vasconcelos, Vasco A sua paixão pela música popular brasileira, porém, o levou por outros
Mariz, Lúcio Rangel, Sérgio Porto, Sérgio Cabral, Marília caminhos profissionais no Rio de Janeiro, cidade que adotou: historiador
Trindade Barbosa, Eneida, Edison Carneiro, Mozart de de MPB, crítico e comentarista. Representa o Brasil em conclaves inter-
Araújo, Almirante, Guerra Peixe, Renato de Almeida, nacionais sobre cultura popular e música, sendo especialmente solicitado
Albino Pinheiro, e mais uns poucos gatos pingados. De por emissoras de rádio e tevê da Europa para entrevistas e emissões dire-
1995 para cá, os livros e as teses sobre temas ligados ao uni- tas. Continua exercendo ativamente nestes 25 anos as funções de autoria
verso da MPB cresceram 200%, segundo fontes da (roteiro) e direção de espetáculos e/ou discos sobre a história da música
FUNARTE. popular brasileira. Atualmente, supervisiona o Dicionário Cravo Albin
Os anos finais do século XX, portanto, foram animado- de MPB, com cerca de 5000 verbetes.
37
Comunidades
do Tambor
Paulo Dias
Foto: Mario Thompson

40
Entre os povos bantos da África Central, tambor é ngoma. Não

só o instrumento, porém, metonimicamente, a dança e o canto

que o tambor põe em ação e, por extensão, toda a comunidade

que se reúne em torno do instrumento para a celebração ritual e

prazerosa. Ngoma atravessou o Atlântico, junto com seus guar-

diães tornados escravos, malungos do Congo-Angola e das ter-

ras de Nagô e Jêje. “Chora ngoma, ê Angola”, canta hoje o velho

capitão de Moçambique numa festa do Rosário em Minas, lem-

brando a dolorosa travessia do Atlântico. E no Brasil a ngoma,

comunidade do tambor, cria elos firmes entre o passado e o pre-

sente da gente afro-brasileira, os viventes e os antepassados, a

Senhora do Rosário e Mãe Iemanjá...ngoma aqui reinventada de

corpo, alma, beleza e mistérios

Olodum
41
D esde os tempos da colônia o som vibrante dos tam-
bores afro-brasileiros ecoa por aqui, em terreiros de
fazendas, pelas ruas das vilas ou nos adros de igre-
jas, com seu poder de arrancar os homens à dispersão forçada
da Colônia e do Império vieram a configurar um grande
leque de manifestações dramático-musicais-coreográficas
que atualmente presenciamos por todo o Brasil entre o sába-
do de Aleluia e o Carnaval. Entre a infinidade de estilos regio-
em que vivem. Noticiados por cronistas e viajantes a partir do nais das danças-músicas negras, é possível perceber alguns
século XVI, as festas e rituais dos africanos são quase sempre núcleos de sentido principais: os Batuques, executados infor-
objeto de descrições levianas e preconceituosas. Sons “monó- malmente nos terreiros recônditos e voltados à celebração da
tonos”, danças “lascivas”, ritos “bárbaros”eram alguns dos qua- memória das próprias comunidades; as Congadas, conjuntos
lificativos utilizados por estes escritores e moralistas, sem rituais de dança e música ligados à tradição das Irmandades
dúvida um tanto assustados com as multidões de negros que católicas Negras, os Candomblés, grupos organizados de
essas festas mobilizavam – multidões que sempre podiam culto às divindades afro-brasileiras; e o Samba Urbano, que se
rebelar-se contra a minoria branca. Paradoxalmente, a festa desenvolveu nas primeiras décadas do século XX a partir de
negra também constituía uma atraente opção de lazer para uma confluência de tradições.
muitos brancos proprietários de escravos, como acontecia nas Essas Comunidades do Tambor, como gostamos de
fazendas e engenhos isolados.“As senhoras chegavam muitas chamá-las, representam distintas formas de expressão dos
vezes para a roda, assim como os homens, e assistiam com pra- negros no Brasil surgidas em resposta às conjunções históri-
zer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos co-sociais peculiares em que evoluíram as populações afro-
negros”, escreve Freire Alemão, em 1859 sobre um batuque descendentes. Não obstante suas especificidades, essas
que presenciara em Pacatuba, Ceará. Comunidades do Tambor compartilham quase sempre dos
Os desdobramentos desses eventos musicais dos negros mesmos atores sociais e de um universo espiritual comum. E

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uma parte essencial desse universo comum é o ritmo, um Tambor de Crioula, por exemplo – ora de caráter sagrado,
certo repertório de padrões rítmicos que se reproduz, em mimetizando os gestos dos Pretos Velhos, os antepassados
diferentes conjuntos instrumentais, através do imenso terri- africanos que morreram na escravidão – é o caso do
tório do Brasil e das Américas negras, criando laços simbóli- Candomblé dançado nas Irmandades mineiras do Rosário, e
cos de parentesco com a África distante. Linhagens rítmicas do Jongo carioca e paulista.
que, mais resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto, Desde sempre condenados pela Igreja como permissivos
atualizam-se a todo instante pelas mãos que tocam e pelos e temidos pelos patrões como perturbadores da ordem
pés que dançam. social, a maior parte dos batuques de terreiro mantêm-se
Os Batuques de Terreiro hoje dançados por todo o Brasil marginais, ainda nos dias de hoje, em relação à sociedade
têm suas raízes nos eventos com dança e música que promo- dominante, execetuando-se aqueles que conseguem uma
viam os escravos fixados na zona rural principalmente – penetração no mundo do turismo e do espetáculo – é o caso
fazendas, engenhos, garimpos – mas também em algumas do Tambor de Crioula e do Carimbó. Com a vinda das popu-
áreas urbanas, realizadas nos poucos momentos de lazer de lações negras para as cidades, essas danças ancestrais passa-
que dispunham. Os batuques marcam a presença da cultura ram da roça às periferias urbanas. Conservando seu caráter
banto, trazida pelos africanos vindos de Angola, do Congo e intra-comunitário, ainda hoje realizam-se à noite em terreiros
de Moçambique para diferentes rincões do Brasil. São for- pouco iluminados ou barracões fora das cidades. A fronteiras
mas vivas dos Batuques o Carimbó paraense; o Tambor de tênues entre o sagrado e o profano ainda caracterizam algu-
Crioula do Maranhão, o Zambê do Rio Grande do Norte e mas dessas rodas, assim como o segredo contido nos versos
o Samba de Aboio sergipano; em Minas, celebra-se o da cantoria desorientam os que vêm de fora. Entenda quem
Candomblé, no Vale do Paraíba paulista, mineiro e fluminen- puder, quem souber. Lamentavelmente, esse patrimônio cul-
se, o Jongo ou Caxambu; na região de Tietê, em São Paulo, tural brasileiro de alta beleza e profundo refinamento, fonte
dança-se o Batuque de Umbigada, entre muitas outras mani- viva de história, religião, arte e identidade para muitas comu-
festações...Sem falar dos primos estrangeiros, como o nidades afro-descendentes, vem sendo sistematicamente
Tambor de Yuca cubano, ou o Bellé da Martinica, em tudo ignorado pela “grande cultura” e pelos meios de comunicação
semelhantes aos nossos batuques. de massa.
Nas fazendas distantes dos tempos do cativeiro, as festas Ao contrário dos Batuques, os Congos ou Congadas tive-
de terreiro realizadas nas folgas semanais e dias feriados con- ram relativa aceitação da classe dominante branca , conforme
centravam a vivência dos escravos enquanto grupo, já que no atesta Antonil já no século XVIII, sendo consideradas “diver-
dia-a-dia eles trabalhavam dispersos no eito. Tudo acontecia são honesta” para os escravos. Além de importante ocasião
africanamente através do canto e do corpo em movimento, ao para os catequistas de imiscuir conteúdo cristão edificante
som dos tambores. Era momento de louvar ancestrais, de nos seus enredos, como a gesta adaptada de Carlos Magno
atualizar a crônica da comunidade, de travar desafios capazes narrando as lutas entre a Cristandade e a Mourama infiel.
de amarrar com a força encantatória da palavra proferida. Os As congadas originaram-se dos séquitos de atores, músi-
versos metafóricos entoados nessas rodas só ofereciam ao cos e dançarinos que acompanhavam seus Reis Congos,
branco um sentido mais literal, inócuo. Fato que deixava per- representantes das linhagens nobres da África na diáspora
plexos os observadores brancos: tratava-se de diversão ou brasileira, por ocasião das festas religiosas e oficiais.
devoção? O mistério permanece até hoje, assim como os Esses cortejos eram formados por membros das
velhos tambores de tronco escavado, afinados a fogo, e vene- Irmandades Católicas de negros banto-descendetes – São
rados como verdadeiras divindades: Gomá, Dambí, Dambá, Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia –, insti-
Quinjengue... As danças, individuais ou coletivas, mostram- tuições que historicamente asseguraram ao negro alguma
se ora sensuais, descrevendo a corte amorosa que culmina no participação numa sociedade que os rejeitava como cidadãos,
contato da umbigada – como no Batuque de Tietê e no e se constituíram em importantes repositórios de tradições
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afro-brasileiras. Foi através dos grupos rituais ligados às religião tradicional, na qual os iaôs, sacerdotes iniciados, são
irmandades católicas – os congos ou congadas – que africa- possuídos pelas divindades durante o transe místico. Orixás,
nos e seus descendentes passaram a participar das festas inquices ou voduns, nome que recebem as divindades segun-
públicas desde os tempos da Colônia. do a nação ou origem étnica do candomblé, representam for-
Maracatús, Taieiras, Catumbis, Moçambiques, Catopês, ças naturais e sociais.
Vilões, Marujos são algumas denominações das diferentes Não obstante o preconceito e as constantes perseguições
formas regionais das congadas de cortejo. Algumas delas policiais de que foram vítimas nas primeiras décadas do sécu-
ainda preservam uma parte dramática, em que se encenam lo passado os terreiros de Candomblé souberam preservar
embaixadas e lutas entre reis africanos; é o caso dos Congos entre suas paredes uma série de práticas culturais africanas,
de sainha do Rio Grande do Norte, das Congadas paulistas como as línguas rituais, um panteão e sua mitologia, instru-
de Ilhabela e São Sebastião e do Ticumbi de Conceição da mentos, ritmos e cancioneiro, culinária, objetos de culto. Mais
Barra, no Espírito Santo. do que isto, perpetuou-se entre os adeptos dessa religião uma
Particularmente em Minas Gerais, as Irmandades de cosmovisão africana, que enxerga o mundo como uma teia de
Nossa Senhora do Rosário ainda desempenham papel fun- forças vitais em interação, as quais devem manter-se equilibra-
damental na organização da vida religiosa entre os afro-des- das através de ritos específicos. Evidentemente, o culto aos ori-
cendentes. Aí o movimento do Congado parece crescer a xás aqui sofreu diversas adaptações e reinterpretações, tornan-
cada ano, reunindo suas festas milhares de pessoas vindas de do-se afro-brasileiro. O ritual predominante jeje-nagô mistu-
diferentes localidades. Há grande diversidade de congadas rou-se a outras expressões religiosas africanas e ameríndias,
nesse Estado, em termos do estilo musical e coreográfico, do gerando formas de culto miscigenadas como os Candomblés
instrumental e da indumentária, reflexo talvez da antiga divi- de Caboclo e, mais recentemente, a Umbanda.
são dos africanos por etnia no seio das Irmandades. Permanece o conceito de nação – cultural, e não mais
Esses grupos são chamados guardas, pois têm por função étnico – relacionado sobretudo à língua ritual, aos repertó-
puxar coroa, isto é, acompanhar os Reis Congos. Carregam rios dos cânticos e aos estilos musicais. Nas festas ou toques
tambores artesanais com duas péles tensionadas por cordas e públicos e privados dos Candomblés, a importância dos tam-
tocados com baquetas: as caixas. O respeito que têm os conga- bores e seus percussionistas rituais, os ogãs, é decisiva para
deiros das Irmandades mineiras pelos seus instrumentos vem chamar as divindades a se incorporarem em seus cavalos e
de sua importância germinal para a tradição do Rosário: bailar o seu mito entre os mortais. Os ogãs conhecem grande
segundo a lenda, foram os tambores feitos pelos escravos afri- variedade de toques das diversas nações do candomblé –
canos que conseguiram tirar Nossa Senhora do Rosário apa- Keto, Angola, Jêje – e podem dominar um repertório de cen-
recida nas águas com a força de seus batuques, após as vãs ten- tenas de cânticos.Traços musicais peculiares aos candomblés
tativas dos brancos. Assim teria se iniciado o festejo à Santa e Jêje-Nagô, como as escalas de cinco notas (pentatônicas) per-
toda a tradição do Reinado.“Madeira santa”, como dizem. manecem praticamente restritos às casas de culto, enquanto o
A religião afro-brasileira conhecida como Candomblé som dos Candomblé Congo-Angola, junto com os batuques
(BA), Xangô (PE), Tambor de Mina (MA) ou Batuque e cortejos de origem banto, participam de um universo meló-
(RS) - nasceu dos aportes míticos e rituais de diferentes dico e rítmico extra-religioso conhecido e reconhecível publi-
etnias ou nações africanas, com influência preponderante dos camente por todo o Brasil, entre os quais se coloca o samba.
sudaneses jejes e nagôs. Trazidos da África Ocidental A música religiosa nagô só pode ser ouvida em ambiente
(Nigéria e Benin atuais) para as capitais do Nordeste a partir público e profano através dos afoxés do carnaval de Salvador
do final do século XVIII, os sudaneses trabalhavam geral- , chamados “candomblés de rua”, e algumas de suas referência
mente como domésticos e negros ao ganho, tendo relativa rítmicas e melódicas transparecem na sonoridade dos blocos
facilidade para se reunirem segundo sua etnia. Esses escravos afro como Ilê aiyê e Olodum.
urbanos puderam, desse modo, rearticular no Brasil a sua As grandes cidades brasileiras foram o ponto de encontro
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de todas as ingomas, Comunidades do Tambor, e o Carnaval, de tambores portáteis percutidos com baquetas. E o
a data fundamental para esse congraçamento. As Escolas de gosto pelo colorido, pelo brilho e pelo luxo, que finca raí-
Samba são o exemplo por excelência da confluência e fusão zes no Barroco Católico da Península Ibérica, e uma dis-
dos muitos elementos da fala afro-brasileira. A cidade do Rio posição peculiar em alas a compor o grande desfile pro-
de Janeiro, capital do Brasil a partir de 1763, concentrou ao cessional.
longo de sua história uma grande população de africanos, O Carnaval, data maior da profanidade, veio a ser o calen-
principalmente os bantos vindos do Congo e de Angola; esse dário disponível para a celebração pública da festa dos negros
contingente de negros engrossou, após a Abolição, com a che- nas metrópoles. Nos anos 20 do século passado surgem as
gada dos libertos, atraídos para aquela metrópole pela espe- Escolas de Samba, fala negra amplificada para muito além do
rança de conseguirem trabalho. Não só negros, mas também pequeno terreiro da comunidade, de e para as grandes massas
mestiços e brancos pobres migraram das fazendas valeparai- humanas das cidades. Pelejando para legitimar sua voz junto
banas, de Minas Gerais, do sertão nordestino, de toda parte. à sociedade dos brancos e obter a visibilidade sonhada. A
Nos morros e subúrbios do Rio misturaram-se tradi- Ópera popular urbana vai para meio da avenida, com orques-
ções culturais tão diversas, mas ao mesmo tempo tão tras de centenas de tambores, instrumentos com pele de nái-
unas: expressavam alegria e devoção, continham a força lon produzidos em série por uma indústria que se especializa.
do desafio e a reverência aos ancestrais, significadas atra- De repente, os desanimados cordões da classe média branca
vés do corpo, da voz e do tambor. Eram coisas de negro, abrem alas, de uma vez por todas, para as evoluções mágicas
herança forte daqueles que, vindos de longe, compartilha- do Samba crioulo. As avenidas viram sambódromos, e o
vam de um mesmo destino subproletário nos bairros Samba, espetáculo de massas e mídias.
periféricos e nas favelas. Assim, foram-se agregando em Este texto foi escrito originalmente para apresentar a
mosaico as muitas memórias afetivamente conservadas. exposição multimídia “Comunidades do Tambor”, montada
De um lado, o terreiro: o ritmo dos tambores de mão, a no SESC Vila Mariana, em São Paulo, durante o evento
cantoria improvisada dos velhos batuques como o “Percussões do Brasil”, em 1999.
Caxambu carioca e o Samba-de-Roda baiano, a ritualida-
de dos cultos como a Cabula e a Macumba, a malícia cor- Paulo Dias, nascido em São Paulo em 1960, é músico e etnomusicó-
poral dos jogos como a Pernada e a Capoeira. De outro, a logo. Desde 1988 dedica-se à pesquisa da música tradicional brasileira,
rua: os Cucumbis cariocas, os Ranchos de Reis baianos, sobretudo à de raízes africanas, trabalho que vem sendo divulgado através
os Maracatús nordestinos, as Congadas mineiras, todas de publicações, vídeo-documentários, CDs e exposições. Fundou e dirige
aquelas danças de cortejo características das festas de a Associação Cultural Cachuera!, voltada à documentação, estudo e
ambulatórias do Catolicismo Popular, trazendo porta- divulgação da cultura popular tradicional brasileira.
bandeiras, reis e sua corte, mascarados, baianas, baterias e-mail: cachuera@uol.com.br
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Chiquinha Gonzaga
e a música popular no Rio de Janeiro
do final do século XIX
Cristina Magaldi

No final do século XIX, a seção de atrações teatrais nos jornais do


Rio de Janeiro oferecia aos Cariocas um número grande de opções.
Em abril de 1888, por exemplo, residentes da capital podiam
escolher entre a “premiére” da zarzuela La Gran Via, de Chueca e
Valverde no teatro Lucinda; a paródia em versão de revista,
entitulada O Boulevard da Imprensa, por Oscar Pederneiras no
teatro Recreio Dramatico; a tradução da comédia Tricoche e
Cacolet, de Meihac e Halevy no teatro Santana; a revista Notas
Recolhidas, de A. Cardoso de Menezes no teatro Sant’anna; ou um
concerto de orchestra organizado por Arthur Napoleão, no
Cassino Fluminense. Em julho do mesmo ano, cariocas que
gostavam da música de concerto podiam ouvir Mendelssohn,
Haydn, Mozart, e Beethoven num concerto regido por Cavalier
Darbilly apresentado no teatro São Pedro de Alcântara. Em
agosto, uma companhia italiana abria a temporada de ópera no
teatro D. Pedro II apresentando várias óperas de Verdi e de outros
mestres do bel canto italiano1.
47
sta proliferação de atrações teatrais e musicais tradu- de artistas e intelectuais, que começavam a olhar para a cultu-

E ziam o caráter nitidamente cosmopolita do Rio de


Janeiro nas últimas décadas do século. Gêneros e
estilos musicais de várias partes do mundo chegavam à cida-
ra afro-brasileira com uma curiosidade quase científica. Ao
aparecer no palcos cariocas e fazer furor com a população,
danças “remexidas” como fandangos, fados, batuques, e jon-
de em grandes números, e especialmente aqueles em voga em gos, eram na maioria das vezes apresentadas como intermezzos
Paris. Os compositores brasileiros deste período que hoje são ou no final de peças teatrais como elemento cômico. Desta
caracterizados como “populares” saíram dessa tradição urba- forma, contrastando com árias de ópera e canções líricas de
na e eminentemente cosmopolita; suas obras refletem os gos- cunho Europeu, o elemento negro era caracterizado como
tos de uma classe média emergente que procurava um meio- exótico e deviante da cultura européia “civilizadora.”
termo entre a tradição operistica e de concerto européia, e as A música popular que emergiu no final do século XIX,
músicas das ruas da capital, particularmente aquela derivada portanto, refletia a síntese das músicas apresentadas nos tea-
da tradição afro-brasileira. No final do século, portanto, a tros da capital, e era o resultado das aspirações artistícas, inte-
linha divisória entre a música popular, música tradicional e lectuais, e políticas da nova burguesia brasileira.
música “erudita” ainda não estava totalmente delineada; a O início da carreira musical de Chiquinha Gonzaga
música “não erudita” era aquela que circulava em grandes (1847-1935) serve como exemplo. Reconhecidamente uma
números e por publicações baratas, arranjadas e simplificadas das personalidades mais importantes da música brasileira no
para atender um número grande de consumidores. Mas esta final do século XIX e começo do século XX, Chiquinha foi
distinção não se aplicava claramente ao gênero ou estilo musi- aluna do imigrante português Arthur Napoleão, um pianista
cal: um tango, uma valsa ou uma canção operistica em italia- virtuoso e prolífico compositor de peças de salão. Napoleão,
no agradavam igualmente ao público carioca. que fez do Rio de Janeiro a sua moradia desde 1868, atuou
As danças em voga nos palcos do Rio de Janeiro neste também no comércio e publicação de música, e como organi-
período eram as mesmas danças de sucesso nos teatros pari- zador de concertos de música clássica na capital brasileira. A
sienses, como a polca, o tango, e a habanera – as duas últimas sua atuação nos meios musicais e artísticos cariocas era reco-
chegavam à capital brasileira pelo circuito Espanha-Paris- nhecida não somente nas altas rodas sociais, mas também
Rio2. Portanto, a popularidade do tango neste período não pelo imperador, que lhe concedeu a Ordem da Rosa.
refletia necessariamente uma tendêcia para a nacionalização Chiquinha iniciou sua carreira seguindo as pegadas de seu
da música popular, mas refletia o gosto da burguesia carioca professor; ela atuou como pianista em salões e escreveu um
que acatava amplamente as modas musicais provenientes de grande número de composições para piano no estilo europeu
Paris. Fora do teatro, estas danças entravam nas salas de visi- que eram tocadas em reuniões sociais e familiares das classes
tas da burguesisa através do piano, e lá subiam de status como média e alta Carioca. Napoleão se engarregou da publicação
música digna de admiração e respeito. e distribuição das primeiras composições de Chiquinha,
Nos palcos do Rio de Janeiro a música e dança européias como as valsas para piano Plangente e Desalento, que apare-
confluiu com estilizações locais da música negra que permea- ceram numa colecão de danças para piano, Alegria dos
va as ruas da cidade. É importante ressaltar que o elemento Salões, ao lado de peças de Strauss, do Italiano Luigi Arditi, e
negro dessa emergente música popular não era advindo das dos franceses Henri Hertz e Joseph Ascher.
autênticas rodas de batuques e de capoeira Afro-brasileiros, Ao mesmo tempo que Chiquinha Gonzaga publicava
mas de adaptações desta música para o palco, feitas para agra- valsas, ela também se ocupava escrevendo peças para o tea-
dar uma burguesia predominantemente branca, cujo gosto tro, como tangos e habaneras no estilo das danças trazidas ao
musical era constantemente regido por ditames parisienses. Rio de Janeiro por companhia espanholas de zarzuela (e com
Na realidade, a inclusão de danças de origem Afro-brasileira sucesso em Paris). Mesmo assim, seus tangos Seductor e
nos teatros cariocas refletia o momento político do pais, a Sospiro, publicados por Arthur Napoleão na década de
eminente abolição da escravatura, e um interesse particular 1880, apareceram em coleções para piano ao lado de peças
48
extraídas da ópera Carmem e de uma ver- realidade, visto como interessante com
são estilizada da zamacueca chilena escri- tanto que fosse exótico.
ta pelo violinista Cubano José White. Dois meses depois da abertura d’A
Em 1885, Chiquinha Gonzaga escre- Mulher Homem, um novo número final
veu a música para a opereta A Corte na foi adicionado à revista, entitulado “Um
Roça, com texto de Palhares Ribeiro. A maxixe na Cidade-Nova.” Para este qua-
peça foi apresentada no teatro Príncipe dro final, Chiquinha Gonzaga e
Imperial como “opereta em 1 ato de cos- Henrique de Magalhães escreveram
tumes brasileiros”. A ação da opereta se música para caracterizar a zona pobre da
passava na “fazenda das Cebolas, em cidade, especificamente a parte chamada
Queimados” e tinha a participação de cidade nova, onde um maxixe era um
“roceiras e roceiros”. Para a opereta Chi- evento dançante da classe baixa com a
quinha escreveu umas “composições o participação de negros, mulatos, e imi-
cunho caracteristico da música de estilo grantes portugueses. Na revista, o maxixe
brasileiro” anunciava o critico do Jornal incluía danças como “fados e jongos de
do Commercio3. Mas o seu lundú e cateretê final,“apimen- negros.” Um crítico local descreveu as novas peças como
tados” como o descreveu o anúncio do jornal, servira para “composições que têm um toque especial…que pode ser visto
caracterizar o “roceiro” – aquele que vivia fora da zona urba- nos seus requebros rítmicos.” O crítico conclui ressaltando
na – e não a música dos cariocas cosmopolitas. Para estes, que “talvez haja um elemento lascivo nestas danças, mas não
cantou-se no intervalo árias de ópera italiana e cançonetas se pode negar a graça e o encanto que vêm naturalmente do
francesas, bem urbanas e cosmopolitas. nosso caráter e do nosso povo6.”Embora o maxixe tenha sido
Um ano mais tarde Chiquinha Gonzaga atingiu o seu apresentado ao público como cena final, com o objetivo espe-
maior sucesso quando compôs algumas peças para a revista cífico de fazer a população rir e se exaltar, talvez tenha sido
A Mulher-Homem, escrita por Valentim de Magalhães e esta aceitação do crítico local um primeiro indicativo de que
Filinto de Almeida e posto em cena “com todo luxo” em janei- o elemento afro-brasileiro, e não as árias e cançonetas euro-
ro de 1885 no teatro Sant’anna4. A revista baseava-se num péias, podia caracterizar uma suposta “brasilidade” na música
escândalo que se passou em 1885, quando um homem vesti- popular.
do de mulher tentou conseguir emprego de doméstica. Em
volta deste evento principal, A Mulher-Homem também NOTAS
comentava, parodiava, e satirizava eventos políticos recentes, 1
Todas estas atrações foram anunciadas no Jornal do Commercio, de
principalmente a lei dos sexagenários que emancipava escra- abril a agosto de 1888.
vos com mais de sessenta anos. Mas apesar da revista ter 2
Paulo Roberto Peloso Augusto, “Os Tangos Urbanos no Rio de
como fio condutor um texto totalmente localizado, os seus Janeiro: 1870-1920, Uma Análise Histórica e Musical,” Revista Música
32 números de música incluiam um coquetel de árias e aber- 8/1-2 (maio/nov, 1997): 106.
tura de óperas, como a abertura da ópera La Gioconda de A. 3
Jornal do Commercio, 23 de Janeiro de 1885.
Ponchielli e a marcha da opera Le Prophète de Meyerbeer5. 4
Jornal do Commercio, 16 de fevereiro de 1886.
No final da peça aparecia o número cômico: um jongo escri- 5
A denominação dos números de música aparece no Jornal do
to por Henrique de Magalhães entitulado “Jongo dos pretos Commercio, de 13 de janeiro de 1886.
sexagenários”. Como era de costume, cariocas ouviam estes 6
Jornal do Commercio, 15 de fevereiro de 1886.
números “apimentados” como peça de fechamento, que ale-
gravam e divertiam uma platéia predominantemente burgue- Cristina Magaldi é professora de história de música na Towson
sa. O elemento afro-brasileiro era desta forma distanciado da University, Universidade Estadual de Maryland, EUA.
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São Pixinguinha

Hermínio Bello de Carvalho


Ilustração sobre foto Prensa 3

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Cada cultura ou religião tem seus mitos e fundamentos.
Faço parte de uma confraria quase religiosa que cultua um
Santo de pele negra, que tinha por hábito – e talvez
missão – enternecer e melhorar a vida dos homens com
sua arte divinal. Falo de Alfredo da Rocha Vianna Junior,
mais conhecido por Pixinguinha. Para mim, seu devoto,
será sempre São Pixinguinha.

51
N a verdade veio ao mundo na Cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro em 23 de abril de
1897 (e não em 98, como durante algum tempo
se acreditou), dia em que, aliás, se celebra um Santo
trumentista, arranjador. Dificil. Mais realista e objetivo é o
crítico Ary Vasconcellos:“Se você tem 15 volumes para falar
de toda a música popular brasileira, fique certo de que é
pouco. Mas se dispõe do espaço de uma palavra, nem tudo
Guerreiro de nome Jorge. Também, já se vê, não era à tôa está perdido; escreva depressa: Pixinguinha”.
que Di Cavalcanti o chamava de “Meu irmão em São Jorge, Tocou desde criança em tudo que era lugar, em teatros e
meu irmão Pixinguinha!”. circo, e na verdade aperturas financeiras não as conheceu por
(Posso afirmar, embora alguns afirmem que é delírio, que falta de trabalho. Quando seu pai morreu em 1917 (ano em
sou testemunha de um belo retrato de Pixinga feito por Di. que era gravado o samba “Pelo telefone”), Pixinguinha já se
Estava lá, em seu atelier na rua do Catete, onde o pintor era sustentava. Dois anos depois estreiaria no Cine Palais o con-
meu vizinho). junto que celebraria uma época da nossa música: Os Oito
Quando acharam por bem criar o Dia do Choro, outra Batutas. Lá estava Pixinga, lá estavam Donga, China e
data não poderia ser escolhida: a do nascimento desse Nelson Alves – negros como ele. Na Companhia Negra de
homem que nasceu para enobrecer o gênero, dar-lhe forma- Revistas foi que conheceu Beti, que tomaria como sua
to e linguagem própria, cheia de melodias ondulantes e ricas mulher para toda a vida. Negro: era negro numa sociedade
de modulações. Quem na vida já não se pegou assoviando racista que contestaria sua ida a Paris com seus companhei-
o “Carinhoso”? Pois é. ros em 1922, para representar o Brasil. Imagine, que desafo-
Antes de conhecer fisicamente Pixinguinha, eu ouvia ro! Mas sua genialidade venceria todos esses preconceitos.
Pixinguinha nas rádios e, sobretudo, o vi, em carne e osso, Villa-Lobos era um de seus admiradores, e o musicólogo-
uma primeira vez, tocando no carnaval na antiga Galeria compositor Basilio Itiberê ensinaria que o contraponto de
Cruzeiro, vizinha ao Café Nice, na Avenida Rio Branco. Pixinguinha (e é só ouvir suas gravações com o flautista
Década de 40. Benedito Lacerda) era coisa de mestre. E já que falamos em
Depois, pra valer mesmo, foi na década de 50 que o Benedito Lacerda, convém lembrar que sua parceria com
conheci – e aí o grande acontecimento se deu na casa de Pixinguinha era meramente simbólica. Pixinga precisava de
Jacob do Bandolim, em Jacarepaguá. Pixinga já triscado nos dinheiro e projeção, que o duo – e mais a parceria que foi
uísques, tocando como gostava seu saxofone perolado, os consagrada contratualmente – acabou lhe garantindo.
dedos que eram feito estalactites de tão longos e bonitos e Único luxo a que se permitia: beber. E bebericava seu
transparentes, as unhas alabastradas e a máscara africana sagrado uisquinho de segunda a sexta no “Gouveia”, na
esculpida em estanho ou ônix ou num piche platinado – e Travessa do Ouvidor – onde existe hoje sua estátua em
aqueles dedos corriam o corpo do instrumento e dele bronze. Era o templo onde seus amigos iam adorá-lo, ele Rei
extraíam sons absurdamente maravilhosos. Já abandonara a Mago. Lá estavam João da Bahiana e Donga, e também
flauta, por essa época. Problemas de embocadura: a boca Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, que o conside-
fibrilava, os lábios já não obedeciam ao contato da flauta – e rava um santo e um gênio e foi lá um dia pedir-lhe a bênção.
o sax entrou na sua vida, definitivamente. Mas Beti, sua Não dá para dizer qual a música mais bonita de
mulher, não se conformava. Afinal, tinha o sopro mais boni- Pixinguinha: se “Carinhoso”,“Ingênuo”,“Sofres porque que-
to entre todos os flautistas. res”,“Rosa”,“Lamentos”. Porque ele foi um escultor de belas
Aliás, essa é uma das grandes dúvidas de seus biográfos: melodias que, hoje, continuam modernas – com aquele
como enquadrá-lo em sua multiplicidade: compositor, ins- toque de eternidade que os gênios conferem àquilo que

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fazem. Inventou também belas introduções para melodias E tão fervoroso que, vou lhes contar agora, que naquele
por vezes pobres que lhe entregavam para orquestrar. Em dia acordou cismarento : imagino tenha se persignado, lem-
tudo que tocava (e tocar, aí, tem o duplo sentido) virava ouro brando com prazer a visita que Jacob do Bandolim, amigo e
puro. Seu sentido de arranjador precedeu o que modernistas devoto, lhe fizera há alguns dias. Preparava-se para ser padri-
como Radamés Gnattali fariam depois. Fez trilhas para nho de um batismo numa igreja em Copacabana, e deixara
cinema, depois de esgotar seu talento como arranjador e recado para que eu comparecesse. Mostrou-se surpreso
autor de todo tipo de música para os teatros de revista da quando apareci, antes, em sua casa, sem avisar, apenas com
época. a saudade apertando o coração. Tocou, que milagre! a flauta
Podemos dizer um pouco mais : ele tinha um agudo sen- que há tanto tempo abandonara. Despedimo-nos.
tido pictórico, diria mesmo cinematográfico, ao elaborar cer- “Morreu como um santo”, repetiriam todos, horas
tas músicas. Ele fazia um humor descritivo em obras como depois, quando se despediu de todos nós em 15 de fevereiro
“O gato e o canário”, “Marreco quer água”, “Um a zero”. de 1972, em plena Igreja Nossa Senhora da Paz, em
Nessa última, sua narrativa musical corresponde aos dos Ipanema.
comentaristas de futebol, descrevendo as firulas e os mágicos
passes dos jogadores. Gênio. Erik Satie não faria melhor. Bibliografia :
Sim, acho que deveria falar de nossa relação pessoal. Ela Pixinguinha,Vida e Obra (Ed. Funarte, 1978) (Lumiar Edit. 1997).
foi inaugurada com um surpreendente pedido para que Filho de Ogum Bexinguento (Marilia T.Barbosa/Arthur Filho. Ed.
fosse seu parceiro num Festival Internacional de Música – Funarte, 1978 e Ed. Griphus, 1997).
nascendo ali o “Fala, baixinho” e uma série de composições
que ampliariam os elos de nossa amizade, consolidada nos
muitos encontros que marcava no Bar Gouveia, ou para par- Hermínio Carvalho
tilhar com ele a carne assada ao molho de ferrugem (“ferru- Na área de rádio e televisão, produziu, a partir de 1958, centenas de
ginosa”, corrigia) preparada magistralmente por sua mulher, programas para a Rádio MEC (“Violão de ontem e de hoje”,
Beti. Lembrá-lo em minha casa, passando uma tarde comi- “Reminiscências do Rio de Janeiro”,“Orquesta de Söpros”) e, também, já
go, é algo que me comove às lágrimas. ná década de 70, para a TVE. Podemos destacar as séries televisivas
Tive a honra também de ter produzido seus últimos dis- “Água Viva”, “Mudando de Conversa”, “Lira do Povo” e “Contra-Luz”.
cos: o “Gente da Antiga” (com Clementina de Jesus e João da Como diretor-roteirista de espetáculos, sua carreira foi pontuada por
Bahiana) e “Som Pixinguinha”, ambos na Emi-Odeon. E diversos sucessos: o musical “Rosa de Ouro” (1965), que lançou
ainda pude levá-lo ao estúdio para gravar com a Divina Clementina de Jesus e Paulinho da Viola; o concerto (1968) que reuniu
Elizeth Cardoso um samba que fizemos – o “Isso é que é Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro.
viver”. Podemos ainda citar os shows “ Festa Brasil” (Europa, EE.UU.e
Quando Mário de Andrade quis saber tudo sobre feiti- Canadá); “Face à Faca (1974), Com Simone ; “ Te pego pela palavra”
çaria, candomblé e adjacências para escrever “Macunaima”, (1975), com Marlene;“ Caymmi em Concerto” (1985),“Chico Buarque
não só consultou Pixinguinha, como o tornou personagem de Mangueira” (1998)e outros espetáculos com Luiz Gonzaga,
daquela rapsódia: é o Olelê Rui Barbosa, Ogan bexinguento, Herivelto Martins, Radamés Gnattali & Camerata Carioca. Em 1999
tocador de atabaques. (Não, pelo que se sabe, Pixinguinha dirigiu os espetáculos “Clássicas” (com Zezé Gonzaga e Jane Duboc) e
nunca tocou atabaques, e no final da vida era um católico fer- “Sessão Passatempo”, com Carol Saboya. Preparou em 2002 o musical
voroso). “O samba é minha nobreza”.

53
Carnaval:
dos ticumbís, cucumbís, entrudo e
sociedade carnavalescas aos dias atuais

Haroldo Costa
54
Ilustração sobre foto: Mario Thompson

Defendo com ardor e a mais profunda convicção que o


nosso Carnaval representa hoje a mais fiel tradução das
nossas heranças, contradições, perplexidades e perspecti-
vas. E é aí que moram a sua originalidade e constante
mutação, além da irresistível sedução que exerce sobre
todos os que ele faz contato em qualquer grau.
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P or que será que o carnaval carioca é tão especial e tão
original ? Por que as escolas de samba adquiriram a
força e o prestígio que hoje desfrutam dentro e fora
do país? Esta é uma história que vem de longe e ainda está
Pereira, corporificado no português José Nogueira de
Azevedo Paredes, que numa segunda-feira de carnaval saiu
às suas com um enorme bumbo, seguido por outros patrí-
cios com tambores menores, fazendo uma enorme algazarra
sendo escrita. e arrastando animados seguidores que logo se transforma-
Os primeiros sons ligados ao carnaval chegaram ao Rio vam numa pequena multidão. O Zé Pereira transformou-se
de Janeiro não em forma de ritmo ou melodia, mas sim de gri- num emblema do carnaval carioca – e por extensão brasilei-
tos de raiva e risos de deboche, era o Entrudo. Palavra origi- ro – que perdura até hoje. Tal foi a sua popularidade que as
nada no latim Introito, usada para definir o início do período revistas teatrais incorporaram a bonachona figura e deram-
da Quaresma. Emigrantes provenientes das ilhas da lhe até um tema musical, adaptado da composição francesa
Madeira, Açores e Cabo Verde, aqui chegados a partir de Les Pompiers de Nanterre ( Os bombeiros de Nanterre) e
1723 e que se espalharam de Porto Alegre – então com o foi um enorme sucesso na revista encenada no Teatro Fênix,
nome de Porto dos Casais – até o Espírito Santo, trouxeram em 1870, com o título de Zé Pereira Carnavalesco, cantado
o hábito do Entrudo, muito popular em Portugal e suas colô- por Francisco Correia Vasques, grande estrela da época :
nias. Mas foi no Rio onde ele criou raízes, tendo sido citado e
descrito pelos viajantes e cronistas da época, como Jean- E viva o Zé Pereira
Baptiste Debret, que o eternizou em desenhos, registrando
até a bisnaga, apetrecho indispensável na brincadeira, se Pois que a ninguém faz mal
assim se podia chamar.
A brutalidade do Entrudo não conhecia limites. As pes- Viva a bebedeira
soas jogavam umas contra as outras polvilho, pó-de-mico,
fuligem, goma, limões feitos de cera e contendo qualquer Nos dias de Carnaval !
líquido, até urina. Das sacadas bacias de água eram entorna-
das sobre os passantes, que não podiam nem parar para recla- Na espontaneidade das ruas nasceram também os cor-
mar, porque senão a situação piorava. Houve alguns casos dões, contando com a participação da população negra que,
graves como o do arquiteto francês Grandjean de Montigny, até então, tinha uma participação secundária nos festejos. A
que fazia parte da missão artística francesa trazida por sua origem remonta às confrarias religiosas como a de N.S.
D.João VI, que morreu em conseqüência de uma pleurisia do Rosário, que abrigava escravos e libertos. Assim foram
contraída durante o carnaval. aparecendo os primeiros grupos dos Ticumbís, reproduzin-
A polícia tentava coibir os exageros do Entrudo, mas era do personagens e desenvolvimento coreográfico próprios da
difícil. Mesmo com a falta dágua, que era uma constante do cultura do Congo. Outro elemento dos cordões foram os
verão carioca, tonéis e tonéis eram carregados pelos escravos Cucumbís, palavra originada em cocumbe, comida servida
para encher as vasilhas que os senhores e as sinhás usavam nas festas da circuncisão dos filhos dos negros congos, nome
nos três dias da folia. com o qual os grupos também ficaram conhecidos.
As autoridades publicavam portarias regulamentadoras, Naquelas ocasiões a dança era um ritual que marcava dois
mas não havia jeito. A cada carnaval o Entrudo era mais vio- momentos importantes, o que acabamos de citar, e as ceri-
lento, até que em 1857 foi formalmente posto fora da lei. mônias fúnebres.
Mesmo assim, a despeito da proibição legal, ele ainda resistiu Os cucumbís foram passando do sagrado para o profano
alguns anos até desaparecer definitivamente, tragado por e com o ritmo proporcionado pelos ganzás, xequerê, choca-
outras novidades que surgiam. Como o Zé Pereira, por lhos., adufes, agogôs e marimbas, foram surgindo grupos
exemplo. como Cucumbis Lanceiros Carnavalescos, Triunfo dos
Foi na rua São José, 22, no centro do Rio, que nasceu o Zé Cucumbis Carnavalescos. Iniciadores dos Cucumbis e deze-
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nas de outros. Pouco a pouco o nome cucumbi foi sendo Assim como os cordões traziam as células da presença
substituindo pelo genérico cordão que proliferava na cidade africana, os Ranchos, outro capítulo importante na história
inteira. Muitos se tornaram famosos, mas nenhum como o do nosso carnaval, trouxe as presença e herança portuguesas.
Rosa de Ouro, para quem, atendendo um pedido da direto- No início faziam parte do ciclo das festas natalinas e da festa
ria, a maestrina Francisca Edwiges Neves Gonzaga, que pas- em louvor à N.S. da Penha, que até hoje é realizada durante
sou para a história como Chiquinha Gonzaga, compôs a o mês de outubro. Se no interior da igreja era celebrado o Te-
marcha que tornou-se musica-símbolo do carnaval brasileiro: Deum, na área externa, entre barraquinhas com bebidas e
comidas podia-se ouvir sambas e marchas que eram uma pré-
Ó abre alas, que eu quero passar via do carnaval. E lá se podia encontrar Pixinguinha, Sinhô,
Donga, João da Baiana, Caninha e outros expoentes musicais
Eu sou da lira não posso negar, do Rio do início do século 20.
Foi neste contato que os ranchos foram tomando outro
Rosa de Ouro é quem vai ganhar formato e adquirindo nomes como Recreio da Flores,
Ilustração sobre foto: Mario Thompson

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Kananga do Japão, Ameno Resedá, Flor do Abacate, impon- profissionais da imprensa, médicos, enfim, pessoas bem dife-
do-se como uma das forças básicas do nosso carnaval. À rentes das que fundaram cordões e ranchos. Mas, ao contrá-
medida que foram crescendo foram se tornando mais opu- rio do que se poderia pensar, estes grupos tinham um gran-
lentos e importantes. Seu cortejo era impressionante com de compromisso social e político com o momento em que
músicos de bandas militares e cantores operísticos. viviam. Em 1876, os Estudantes de Heidelberg, que deram o
Arrebanhavam famílias inteiras e desfilavam para milhares nome de Universidade à sua sede, saíram às ruas esmolando
de pessoas que se acotovelavam ao longo da Avenida Central, para conseguir o suficiente para poder comprar a carta de
depois Rio Branco, sob calorosos aplausos e grande animação alforria para um menor escravo que tinha salvado de morrer
popular. Muitos cronistas carnavalescos descreveram os des- afogada uma menina branca na praia de Icaraí.
files dos ranchos como procissão medieval ou teatro lírico No carnaval de 1888, poucos meses antes da abolição da
ambulante. Os enredos que eram apresentados tinham títu- escravatura, um jornal publicou o seguinte:
los como A Divina Comédia, de Dante Alighieri; Aida, de “O grupo dos Pelicanos, heróica fração do benemérito
Verdi; Salomé, de Oscar Wilde e Rainha de Sabá. clube dos Fenianos, sempre generoso e nobre, mais uma vez
Dividindo a preferência do povo e da imprensa existiam fez realçar os seus reconhecidos méritos e elevados sentimen-
as Sociedades Carnavalescas ou Grandes Sociedades, como tos nobilitando de modo imorredouro o grandioso aconteci-
ficaram conhecidas. As pioneiras foram os Zuavos mento de hoje com a restituição de um homem ao estado
Carnavalescos, depois denominada Tenentes do Diabo, a livre. Não é a primeira vez que os eméritos foliões se reco-
Grande Congresso das Sumidades Carnavalescas, dissolvida mendam aos louvores ou encômios. O escravo alforriado
mais tarde para formar a Sociedades de Estudantes de pelo ilustre clube tem vinte anos, chama-se Teodoro e acom-
Heidelberg, e os Democráticos.A principal característica das panhará os seus benfeitores na vitoriosa passeata carnavales-
sociedades é que os fundadores e diretores eram escritores, ca de hoje. Um Bravo! à heróica falange.”

Ilustração sobre foto: Mario Thompson

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Os três grandes clubes,Tenentes do Diabo, Democráticos abrir os caminhos da plena cidadania para um apreciável
e Fenianos, no período carnavalesco anterior à abolição, com- contingente de jovens.
pravam escravos para aforriá-los depois apresentá-los nos seus Dando continuidade a este lado original do nosso carna-
desfiles, em cima dos carros, com um estímulo e uma lição. val, que o diferencia de qualquer outro, as escolas de sambas
O mesmo se deu em relação aos ideais republicanos. As têm exercido um magnífico papel no resgate de personagens
sociedades cerraram fileiras em torno dos que lutavam para e episódios da nossa história, muitos até desconsiderados
derrubar a monarquia e as armas usadas foram a sátira e as pela história oficial. Quantas figuras marginalizadas, quantos
alegorias. Fato igual aconteceu com relação a adoção do voto momentos importantes na formação do nosso país, ignora-
feminino e à luta contra a ditadura do Estado Novo (durante dos pelos livros didáticos, ganharam sua devida dimensão
os anos 30 e 40). através dos enredos das escolas e seus sambas. Aleijadinho,
Como se pode constatar estas organizações, que também Chica da Silva, Dona Beja, o baile da Ilha Fiscal, Delmiro
se dedicavam ao culto da música e letras, foram peças funda- Gouveia, a revolta dos malês, Zumbi dos Palmares, Monteiro
mentais para grandes conquistas da nossa história política. Lobato, Villa Lobos, a crítica aos vários planos econômicos
Esta é uma das originalidades do nosso carnaval. dos quais já fomos vítimas, a mitologia afro-brasileira, as alter-
Herdeiras dos ranchos e das grandes sociedades, as esco- nativas em torno da versão do descobrimento do Brasil,
las de samba, que surgiram no carnaval carioca nos primeiros enfim, as escolas de samba passaram a ser um fórum para se
anos de década de 30, incorporam elementos das duas for- discutir e conhecer o Brasil. E tudo isto sem pretensões aca-
mas e criaram um modelo novo e irresistível. Nascida no dêmicas, com linguagem e visualização artísticas de fácil
bairro do Estácio de Sá e logo se espraiando pelo morro da compreensão porque, afinal, tudo é feito em canto e dança.
Mangueira e os subúrbios de Oswaldo Cruz e Madureira, Nos dias atuais o barracão é o grande caldeirão da alqui-
estas agremiações são a síntese de todas as manifestações mia carnavalesca, onde tudo se transforma e cria vidas através
acontecidas desde a chegada dos primeiros navios negreiros das mãos dos artesãos que misturam suor, cola, prego e ferra-
e dos festejos dos primeiros cucumbis. gem para materializar visões e delírios. Diferente de um ate-
As escolas de samba são, creio firmemente, uma fatalida- lier ou oficina, o barracão mergulha numa magia que é com-
de histórica. Elas são a síntese do país e do nosso povo. partilhada pelos que lá trabalham e compreendida pelos que
Felizmente não nasceu com forma definitiva e acabada. Ao o visitam.
longo dos anos aconteceram modificações, o que é natural, O fenômeno escolas de samba extrapolou primeiro os
mas sem lhes tirar a essência e mantendo a condição de teste- limites do Rio e, depois, os limites do Brasil. Hoje existem
munha do seu tempo e espelho das ansiedades e expectativas escolas em cidades tão diferentes como Los Angeles, Porto,
dos seus componentes. Uma das instituições mais democrá- Oslo, Toquio ou Londres, adotando não só o nosso ritmo
ticas de que se tem notícia, as escolas não limitam em como também a sua essência.
nenhum grau o ímpeto da sua adesão. Entre os seus desfilan- Do bombo do Zé Pereira ao bumbo que marca o tempo
tes, que hoje chega ao espantoso número de 4.000, em forte na bateria das escolas, muita coisa aconteceu. O nosso
média, e só no grupo mais importante são 14 escolas, estão carnaval, através delas, tem sido a trilha sonora da história do
pessoas de raças, profissões e origens as mais diversas, que se país, registrando, adotando, transformando, modificando ges-
irmanam para desfilar 90 minutos cantando e dançando. tos e modos, comportamentos e aparências. E mais, dão ao
Em todo este período, desde o primeiro desfile-concur- mundo um exemplo de beleza, fraternidade e tolerância.
so realizado no dia 7 de fevereiro de 1932, as escolas têm
crescido como agremiações, ou grêmios recreativos como é
a sua denominação oficial, muitas delas dedicam-se à reali- Haroldo Costa é ator, produtor cultural e autor dos livros Fala,
zação de um trabalho social de grande impacto, usando o Criolo; Salgueiro, Academia de Samba; É Hoje (com o caricaturista
esporte e os estudos profissionalizantes como cunha para Lan), Na Cadência do Samba e 100 Anos de Carnaval do Rio de Janeiro.
59
A Doce Presença do
Chorinho no Ambiente
Musical Alemão
Beate Kittsteiner

Ao contrário do samba e da bossa-nova,


o chorinho é ainda relativamente
desconhecido na Europa. O choro
(chorinho) surgiu por volta de 1870
quando os brasileiros começaram a
abrasileirar danças européias da moda,
como a valsa, a polca e a escocesa. O Rio de
Janeiro era um verdadeiro cadinho cultural. Lá
viviam imigrantes oriundos de diversos países
europeus, que haviam trazido consigo as tradições
musicais de suas pátrias.
Altamiro Carrilho
60
Sobre essa base musical de tradição européia veio
acrescentar-se a influência africana, trazida pelos escravos,
na época já em pleno processo de fusão cultural. Da mistura
das duas influências musicais, ou seja, européia e africana,
resultou o choro, com seu ritmo sincopado de sabor
africano e suas harmonias com nítida afinidade européia.
A música derivada dessa mistura é mais suave e delicada
que o samba, prestando-se a uma rica variedade de
combinações melódicas.

uitos comparam o choro – e o seu significado anos 20, foram introduzidos os típicos instrumentos de per-

M para a recente música brasileira com o rang-time


americano e a importância deste para o jazz. Por
sua vez, costuma-se observar que o choro primitivo se aproxi-
cussão, como por exemplo, o pandeiro, o reco-reco, ou o
pequeno surdo. Em seguida, acrescentou-se uma guitarra de
sete cordas, que possibilita uma melhor reprodução dos con-
ma da música clássica, ao passo que o choro mais recente trabaixos, ou baixarias. Eu própria, com a minha formação
apresenta analogias com o jazz, principalmente quanto ao seu jazzística, além de tocar a flauta, introduzi no meu grupo de
potencial para a improvisação. choro em Munique o saxofone. O cavaquinho é tocado pelo
Uma importante característica do choro, que o diferencia brasileiro Fábio Block, cujo pai já era um famoso chorista; a
de diversas formas das música atuais, dominadas por uma guitarra é tocada pelo alemão Dieter Holisch, que possui um
tendência reducionista, onde a melodia exerce um papel refinado sentido para a música brasileira; no contrabaixo
secundário, é que o choro, com seu amplo arco melódico, temos o virtuoso espanhol Manolo Diaz. Nosso grupo é
apresenta surpreendente variação harmônica. Assim, um dos ainda integrado por dois percussionistas: o brasileiro especia-
grandes atrativos do choro é o fato de que nele se pode pro- lista em pandeiro Borel de Sousa e o alemão, criado no Brasil,
duzir uma rica gama de variações- improvisações, de forma Ulrich Stach, excelente percussionista que em nosso grupo
semelhante ao que ocorre no jazz. Os solistas, nos grupos de toca a timba.
choro, dirigem-se mutuamente melodias que cada um se Como nossos principais inspiradores, poderíamos citar o
esforça em superar, mediante variações, numa espécie de compositor Zequinha de Abreu, cujo Tico Tico no Fubá é
desafio musical. Muitos choros antigos demonstram esta conhecido no mundo inteiro. Dele também tocamos entre
característica em seus títulos, como por exemplo, caiu, não outras composições Não me toques. Apreciamos também,
disse? ou cuidado colega. enormemente, o legendário compositor, saxofonista e flautista
Originalmente, os instrumentos utilizados para tocar o Pixinguinha, cuja música não só possui uma incrível frescura
choro eram a flauta, o violão e o cavaquinho. Mais tarde, nos como também é extremamente comovente.Dele sempre toca-
62
Foto: Prensa 3

Jacob do Bandolim

mos o célebre chorinho, Carinhoso, imenso sucesso, junta- época (1847-1935), não somente em matéria de música
mente com outras composições suas, como Um a Zero, Os como também de costumes, e o seu famoso choro-polca.
Cinco Companheiros, Teu Aniversário e Vamos Brincar. Atraente, consta no nosso repertório. Um compositor dos
Tenho ainda grande veneração pelo velho mestre de cavaqui- anos quarenta que muito apreciamos é Jacó do Bandolim, ver-
nho Waldir Azevedo, cuja composição brasileirinho se tornou dadeiro virtuoso do bandolim, e de quem tocamos, entre
mundialmente conhecida. Nosso grupo toca várias de suas outras composições, Doce de Coco e Vale Tudo. Entre os cho-
composições, além dessas, Cavaquinho Seresteiro, Choro ristas contemporâneos, temos especial admiração pelo flautis-
Novo em Dó, Lembrando Chopin(esta última, como diz o ta Altamiro Carrilho.
título, em homenagem a Chopin, a quem muito admirava) e
Homenagem a Chiquinha Gonzaga. Chiquinha Gonzaga é Beate Kittsteiner é Musicóloga, saxofonista e flautista do seu grupo
outra fonte de inspiração nossa: mulher revolucionária em sua Tocando de Munique.
63
Um pequeno selo
fonográfico surgiu em
P ode parecer que os idealizadores da iniciativa preo-
cupam-se com moinhos de vento. A música popular
brasileira é apreciada por públicos variados, dos
Estados Unidos ao Japão. Tom Jobim está entre os grandes
São Paulo, recentemente, compositores de canções do século XX. Entretanto, a preo-
cupação é compartilhada por muita gente que estranha a
na União Metropolitana maneira como a mídia difunde uns poucos tipos de música,
impondo barreiras à diversidade estética do país, numa
dos Estudantes. Seu lema época em que se alardeia o fim dessas mesmas barreiras, gra-
ças às tecnologias de comunicação. Vale a pena, então, reme-
é “fazendo a música que morar as saídas para a música brasileira imaginadas nos últi-
mos 85 anos por músicos, críticos e intelectuais. Pensadas e
o Brasil merece”. O que se experimentadas entre nós, elas encontram correspondência,
naturalmente, em outras, concebidas na Europa e nas
deduz do catálogo de Américas.
Tomemos como marcos históricos o carnaval de 1917,
títulos e artistas produzidos quando uma canção gravada em disco, intitulada “Pelo
Telefone”, se tornou sucesso nas ruas – depois entrou para a
pelo selo é que as rádios e história como o primeiro samba gravado – e a Semana de
Arte Moderna de 1922, que sacudiu o meio artístico paulis-
redes de televisão aberta tano com concertos, leituras, exposição de obras de pintura e
arquitetura. Os dois constituirão o ponto de partida para o
não distribuem a música pequeno inventário que segue. O leitor perceberá que as
alternativas tiveram repercussão desigual, que algumas
que o Brasil merece. O lema podem ser combinadas e outras não.Alguns nomes são men-
cionados, mas seria simplificar demais o quadro associar uma
é um veredicto sobre o saída a essa ou aquela figura histórica. Elas também não cor-
respondem a grupos de obras que seriam sua exemplificação.
mercado de música e a Pois a complexidade e a singularidade de cada evento musical
não são redutíveis à ilustração de um movimento artístico ou
síntese de uma proposta: projeto político.

travar um combate 1 – Atualização mimética. Acertar o passo


com a produção artística européia foi a saída vislumbrada por
desigual, quixotesco, para muitos artistas brasileiros, numa época em que Paris era a
capital mítica da civilização. A intimidade de alguns músicos
retirar da sombra músicos, cariocas com a música francesa de sua época surpreendeu o
compositor Darius Milhaud, quando de sua chegada ao Rio
repertórios e tradições que de Janeiro, precisamente naquele ano de 1917. Em suas
memórias (Ma vie heureuse), conta que veio conhecer
merecem ser ouvidos. melhor a música de Eric Satie na casa do professor de piano
Leão Veloso!
66
Encontram-se elementos desse anseio de atualização na A solução conheceu sucesso duradouro no Brasil e atraiu
Semana de Arte Moderna. A conferência que o escritor numerosos artistas. Com ela identificaram-se os composito-
Graça Aranha (recém-chegado da Europa) proferiu na oca- res Luciano Gallet, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone.
sião trazia, didaticamente, notícias dos nomes mais pronun- Quem melhor a formulou teoricamente foi Mário de
ciados no modernismo parisiense – Igor Stravinski, Satie, o Andrade, outro participante da Semana de 1922. Segundo
Grupo dos Seis. Cumpria, pois, o papel de difundir, entre ele, a elaboração de uma música artística propriamente brasi-
nós, a própria idéia de uma “música moderna”. leira seria possível a partir da utilização consciente dos traços
O mimetismo costuma ser vulnerável à crítica. Um exem- nacionais que emergiam, com naturalidade, nas músicas
plo da observação irônica da importação de modernismos é a populares. Assim, sairíamos do estágio do mimetismo e a
marcha A-B-surdo, composta por Lamartine Babo e Noel música brasileira estaria apta a figurar nos programas de con-
Rosa em 1931. Parodiando a poesia moderna e a febre de certo, ao lado das grandes tradições nacionais européias.
futurismo que sucedeu a visita de Marinetti, eles cantaram: O sucesso de Heitor Villa-Lobos em Paris, nos anos
1920, confirmava o acerto da tese que combinava nacionalis-
É futurismo, menina mo e modernismo, integração ao mundo civilizado ocidental
É futurismo, menina e mergulho nas particularidades brasileiras. A obra de Villa-
Isso não é marcha Lobos era interpretada pelos críticos europeus como expres-
Nem aqui nem lá na China. são do vigor primitivo e opulência natural de um país jovem
– portanto, como autêntica expressão do Brasil. Além disso,
2 – Reconhecimento da feição nacional. os tangos, polcas e maxixes, que não despertavam interesse
Ilustração sobre foto Prensa 3

Oswald de Andrade
67
no meio acadêmico brasileiro, começavam a ser vistos sob cordões de Botafogo”, proclamou Oswald de Andrade no
nova luz. Na Revue Musicale, Milhaud falava de seu esforço Manifesto Antropófago, em 1928. A Antropofagia voltou-se
para capturar a bossa das síncopas nas peças dos composito- contra a atualização mimética e a atitude reverente diante das
res brasileiros, dentre eles o “genial” Ernesto Nazareth. obras prestigiadas pelo universo acadêmico. A expressão “cul-
tura brasileira” começou a ser entendida como algo bem mais
3 – Euforia da técnica. As inovações tecnológi- amplo do que a produção dos setores letrados, nessa propos-
cas, na primeira metade do século XX, transformaram radi- ta híbrida de nativismo, primitivismo e febre modernista de
calmente a relação da maioria dos homens com a música. renovação. Misturando agressividade e humor, a antropofa-
Gravação sonora e radiodifusão desvincularam a audição do gia prega a devoração do colonizador, isto é, a incorporação
convívio entre músicos e ouvintes, no mesmo espaço e tempo. de seu poder num festim selvagem, inspirado nos rituais dos
A música mecanizada gerou tanto visões sombrias quanto nativos tupis.
otimistas da técnica. Os que depositaram confiança no pro- Trata-se, então, de repor os termos da relação entre a
gresso viram também com entusiasmo o surgimento das música brasileira e a música dos centros da civilização ociden-
músicas da era industrial, capazes de expressar a velocidade e tal. Abandona-se a atitude temerosa diante do estrangeiro,
excitação do mundo moderno. Surpreende-se essa atitude no que não será simplesmente rejeitado. Promove-se, em lugar
editorial da revista Klaxon (1922) celebrando o cinema como disso, a absorção de suas qualidades.
a arte representativa da época, os Oito Batutas e o jazz-band. Há fartos exemplos de devoração das tradições européias
na música praticada por brasileiros, antes e depois da formu-
4 – Antropofagia. “Wagner submerge ante os lação teórica da antropofagia. No século XIX, a partir do trio
de flauta, cavaquinho e violão, os chamados “chorões” trans-
Noel Rosa formaram a música das danças européias, como a polca,
Ilustração sobre foto Prensa 3

gerando novos estilos. Mais tarde, no âmbito do movimento


denominado “Tropicália”, canções antigas do repertório
romântico brasileiro juntaram-se a cantigas de sabor rural e
às modernas guitarras elétricas, identificadas com uma nova
moda estrangeira – o rock’n roll.

5 – Educação das massas. Nessa proposta


civilizatória, enfatiza-se o papel social do artista e o apoio do
Estado. Daí resultam ações de grande alcance para distribuir
os benefícios da educação e formar, antes de mais nada, o
ouvinte.
Tal foi a aposta de Villa-Lobos quando dirigiu a
Superintendência de Educação Musical e Artística, no antigo
Distrito Federal. O fascínio do compositor pelas grandiosas
manifestações corais encontrou eco no espírito disciplinador
do regime implantado por Getúlio Vargas, em 1930. O fim
da Primeira República, em meio aos percalços do comércio
de café e a crise internacional de 1929, enfraqueceu a crença
nos valores liberais. Nesse contexto, espetáculos com milha-
res de vozes simbolizavam a vitória dos interesses coletivos
sobre o individualismo.
68
O plano de educação musical de Villa-Lobos
Villa-Lobos ambicionava uma verdadei-
ra reforma da mentalidade, alcançada
mediante a formação de um público e de
professores. Esse seria o antídoto eficaz
para os venenos da vitrola e do cinema,
aos quais Villa-Lobos, como outros em
sua época, atribuía a degeneração do
gosto musical.

6 – Vanguarda e arte
malsã. O avanço das formas de distri-
buição massificada de música gerou
novos ídolos e novos estilos. Pouco lugar
restou para o compositor que, após longo
período de formação especializada, com-
põe artesanalmente, por escrito, obras
complexas, de difícil execução pelos
intérpretes e difícil assimilação pelos
ouvintes. A dupla frustração, com o regi-
me político totalitário do Estado Novo,
Ilustração sobre foto Prensa 3

de um lado, e com a lógica do mercado,


de outro, fez alguns artistas acirrarem sua
atitude de rejeição, não apenas às sonori-
dades rotineiras, espalhadas nos ares
pelos aparelhos de rádio, mas à própria
sociedade.
Na atmosfera sombria da Segunda Guerra Mundial, das formas de perceber os problemas da cultura brasileira.
Mário de Andrade fez reflexões amargas sobre a arte musical Por isso, não têm valor de receita, não podem ser convertidas
no Brasil. Ainda que mantivesse, em geral, convicções otimis- em ações. Um eixo importante do debate sobre a música no
tas acerca da música brasileira, deixou entrever, na voz de seus Brasil – a relação de oposição entre nacional e estrangeiro –
personagens d’O Banquete, que a atitude radical das van- foi deslocado desde a Antropofagia. Ainda assim, as questões
guardas despontava como uma resposta aos problemas de evocadas não ficaram obsoletas. A necessidade de conhecer
seu tempo. Diz um dos personagens, o compositor Janjão, melhor os diversos idiomas musicais praticados no Brasil e a
num trecho do diálogo: busca da excelência artística sem desdenhar a educação con-
O melhor jeito de me utilizar, de acalmar a minha cons- tinuam em pauta.
ciência livre, imagino que será fazer obra malsã... Malsã, se
compreende: no sentido de conter germes destruidores e Elizabeth Travassos é doutora em Antropologia Social pelo Museu
intoxicadores, que malestarizem a vida ambiente e ajudem a Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Leciona
botar por terra as formas gastas da sociedade. Folclore e Etnomusicologia na Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO).
As alternativas desse breve inventário apresentaram-se É autora de Os mandarins milagrosos. Arte e etnografia em Mário de
em contextos históricos particulares, vinculadas a determina- Andrade e Béla Bartók (1997) e Modernismo e música no Brasil (1999).
69
DOS REIS DO RÁDIO
À BOQUINHA DA GARRAFA
Tom Tavares

Quando oficialmente aconteceu a primeira transmissão


de rádio no Brasil, oitenta projetores de som espalhados
pela antiga capital federal veicularam o discurso do
Presidente da República, Epitácio Pessoa, em seu último
ano de governo. Depois do som do poder, foi a vez do
poder do som: e pôde ser ouvida a protofonia da ópera
“O Guarani”, do compositor campineiro Antônio Carlos
Gomes, transmitida diretamente do Teatro Municipal do
Rio de Janeiro.

Carmen Miranda
71
T
udo isso se deu no dia 7 de setembro de 1922, Francisco Alves fazia sua estréia no Teatro São José, ao lado
durante as comemorações dos cem anos da inde- do já famoso Vicente Celestino; e Ernesto Nazareth desfru-
pendência, espaço de tempo em que a federação tava do sucesso de composições como “Brejeiro”, “Odeon” e
viveu crises políticas sucessivas, distinguida por uma econo- “Apanhei-te Cavaquinho”.
mia frágil, já devedora da Inglaterra, transferência de uma E havia mais: em São Paulo, Zequinha de Abreu fazia os
realeza anacrônica para a real farsa de uma nova república pares dançarem ao som de “Tico-Tico no Farelo” que, depois,
que cedo se mostrou velha. se transformou no mundialmente famoso “Tico-Tico no
Quando este setembro chegou, a despeito dos desman- Fubá”. Mais ao sul, em Porto Alegre, Radamés Gnattali toca-

dos praticados pelos condutores do país, também era tempo va piano no Cine Colombo, ao tempo em que produzia suas
de contabilizar alguns bons motivos para expressar esperan- primeiras partituras tendo como referência elementos musi-
ça, otimismo. E um desses motivos era a produção musical. cais eminentemente brasileiros.
Tínhamos uma boa herança do som da flauta de Joaquim Assim, quando Roquette Pinto inaugurou a nossa pri-
Antônio da Silva Calado e ainda contávamos com o piano de meira emissora, a Rádio Sociedade, no dia 20 abril de 1923,
Chiquinha Gonzaga. Estávamos há vinte anos da gravação o acervo composicional desenvolvido em terras brasileiras já
do primeiro disco contendo música popular brasileira (“Isto era vasto e variado o suficiente para atender à demanda da
É Bom”, de Xisto Bahia, realizado pela Casa Edison) e sete clientela alcançada por aquele novo meio de comunicação. A
meses depois da Semana de Arte Moderna, evento em que a deficiência não era, pois, no campo da criação. Era na área da
música brasileira se fez representar através de Ernani Braga, gravação, uma vez que os estúdios existentes não dispunham,
Fructuoso Vianna e Heitor Villa-Lobos. ainda, de recursos técnicos ideais para captação e reprodução
No início da terceira década do século passado, o Brasil já sonora. E, se os discos gravados em 78 rotações não ofere-
fazia das suas artes. ciam fidelidade, tampouco os microfones, tampouco os trans-
Despontavam, nesse período, alguns dos mais importan- missores e, menos ainda, os raríssimos receptores. Mas, dava
tes artistas da nossa história: Pixinguinha excursionava pela pro gasto. E o rádio caiu no gosto do povo. O povo entrou na
França e gravava com Os Oito Batutas na RCA-Victor da onda do rádio.
Argentina; ao bandolim, Luperce Miranda integrava o Jazz Rapidamente, novas emissoras foram criadas, envolvidas
Leão do Norte, em Recife; o som do piano de Ari Barroso numa saudável disputa pela audiência através da qualidade.
enchia a sala de espera do Cinema Íris, localizado no Largo Não apenas pela capacidade dos produtores e apresentado-
da Carioca; Josué de Barros retornava ao Brasil depois de rea- res. É que os homens do rádio de então, talvez até mesmo por
lizar as primeiras gravações de música brasileira na Europa; falta de opções outras, estruturaram toda a programação
72
Foto: Mario Thompson
Foto: Prensa 3
Sílvio Caldas Nelson Gonçalves

baseada na música. E, aí sim, por sorte e competência, a músi- artista daquele período: só faz ao vivo quem tem competên-
ca era boa. cia para tal. Havia, pois.
Dessa forma, estabelecia-se uma relação em que eram A partir do surgimento da Rádio Nacional, em 1936, o
atendidos todos os interesses: a gravadora via divulgado o público passou a disputar, também, um lugar para ver os pro-
seu trabalho; o artista, ao ser veiculado pela emissora, expan- gramas de rádio. Isto mesmo: ver o rádio.
dia o seu campo de ação; e o rádio, em desenvolvimento, Chegavam os programas de auditório que dividiam o seu
carente em material para preencher a sua programação, ali- tempo entre apresentações de instrumentistas, cantores con-
mentava-se do rico e variado filão musical. É bem verdade sagrados e, também, novos valores, chamados de “calouros”,
que a Rádio Jornal do Brasil distinguia a criação erudita. contribuindo para o aumentar a já extensa relação das nossas
Mas, também é verdade que as demais se fartassem em vei- atrações musicais.
cular a fina-flor da nossa jovem música de então. Jovem Nesse tempo, o rádio experimentava a sua primeira
música de Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, Mário transição. Pouco a pouco, os locutores foram perdendo o
Reis, Ari Barroso, Carmen Miranda, Sílvio Caldas, Donga. posto de comando dos programas, agora ocupado, princi-
Jovem música cheia de novos rítmos, do lundú, do maxixe, palmente, por cantores e compositores, contratados com
do choro, da marcha, do samba, que, graças à inexorabilida- exclusividade. A Rádio Mayrink Veiga exibia Carlos
de do tempo, cedo integraria o repertório do que se conven- Galhardo, Sílvio Caldas; a Tupi apostava em Dircinha
cionou chamar de “velha guarda”. Batista; a Rádio Educadora se encontrava nas “Horas
Complementando o acervo sonoro recebido das gravado- Lamartinescas”; a presença de Almirante era patente na
ras, ainda nos anos 20 as emissoras começaram a veicular Tamoio; Ari Barroso brilhava na Cruzeiro do Sul. A Rádio
música ao vivo, executada ali mesmo, em seus estúdios de Nacional, por seu turno, colocava no ar com um time de
transmissão. E, mais uma vez, se comprova a qualidade do peso, em que se destacavam Francisco Alves, Linda Batista,
73
Nuno Rolando, Manezinho Araújo, Nelson Gonçalves e ser cantado pela nação.Tom Jobim,Vinícius de Morais, Baden
Orlando Silva. Powell,Geraldo Vandré,Jair Rodrigues,Chico Buarque,MPB
Líder absoluta em audiência nos anos 40 e 50, a Nacional 4, Nara Leão, Wilson Simonal, Roberto Carlos, Edu Lobo,
chegou a ter, sob contrato, 15 maestros, mantendo, ainda, no Elis Regina, Caetano Velloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Os
seu elenco, dois conjuntos regionais e grande orquestra for- Mutantes, Tom Zé, Sérgio Ricardo, Dori Caymmi, Nelson
mada por 144 membros. De quebra, empregava solistas da Mota, Luiz Bonfá, Antonio Adolfo, Milton Nascimento,
qualidade de Jacob do Bandolim, Abel Ferreira, Luperce Guarabira, Paulinho da Viola, Marcos Valle, Sueli Costa, Ivan
Miranda, Luiz Americano, Dilermando Reis, Garoto e Lins, Beth Carvalho, Antonio Carlos e Jocafi, Gonzaguinha,
Chiquinho do Acordeon. Não satisfeita com tanto, ainda Egberto Gismonti e Jorge Benjor foram alguns dos grandes
atropelou o nosso regime presidencialista ao fazer de nomes que surgiram nessa época.
Marlene, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Ângela Maria e Os programas musicais, a exemplo de “O Fino da Bossa”
Dóris Monteiro, as Rainhas do Rádio, vozes de ouro na trilha (Tv Record),“Um Instante Maestro” (Tv Tupi),“A Grande
sonora dos anos românticos da metade do século vinte. Chance” (Tv Tupi), “Vamos S’imbora” (Tv Record), “Esta
A partir de 1950, a disputa pela audiência aumentou, Noite Se Improvisa”(Tv Record),“Rio Hit Parade”(Tv Rio)
ainda mais, com o advento da televisão no Brasil. dominavam o horário nobre. A juventude podia escolher
Nasceram as tevês Tupi, Nacional, Rio, Paulista, entre “Todos os Jovens do Mundo” (Tv Record),“Os Brotos
Continental, Excelsior e Record, as mais importantes desta Comandam” (Tv Continental),“Festa do Bolinha” (Tv Rio),
fase de implantação. Esse novo veículo de comunicação “Jovem Guarda” (Tv Record), “Jovem Urgente” (Tv
ganhou os lares brasileiros usando como atrações os mes- Cultura),“Poder Jovem” (Tv Tupi),“Brasa 4” (Tv Itacolomi-
mos grandes nomes do rádio. E, se a programação era ver- BH), e outros mais.
dadeiramente diversificada, com novelas, notícias, filmes, Esta ebulição continuou até, pelo menos, o final dos anos
era inegável a liderança dos programas musicais. Dessa setenta, saindo de cena ao tempo em que desapareciam as
forma, também a tevê nasceu, aprendeu a andar, cresceu tevês Paulista, Tupi, Excelsior, Continental, emissoras engoli-
ancorada na música brasileira: não só a vigente mas, tam- das pelas grandes redes, que têm na Globo o seu paradigma.
bém, a resultante dos novos movimentos que balançaram o O processo de desmanche passou, obviamente, pela
país entre os anos cinquenta e sessenta: Bossa Nova, Jovem demissão de conjuntos regionais, orquestras inteiras, regen-
Guarda e Tropicalismo. tes, em resumo, todas as cabeças musicais que não se ren-
Havia espaço para todos na telinha quando os Festivais de dessem aos ditames do mais novo diretor artístico das emis-
MPB (iniciados pela TV Excelsior em 1965, imitados pela soras: o mercado. Para a vaga deixada pelos reis e rainhas do
Record e, depois, pela TV Globo) selecionavam o repertório a rádio, os donos da mídia elegeram os seus astros ideais:

74
luminosos reis da submissão, da subserviência, cordeiros Donga
ideologicamente áridos.
Era o fim de uma relação plural, culturalmente exitosa,
entre as indústrias da música e das comunicações. A partir
daí, as grandes redes se impuseram como grandes exércitos a
lotear alemanhas derrotadas, descumprindo frontalmente a
legislação que lhes permite o funcionamento. As emissoras
de rádio e tevê praticamente jogaram no lixo a lei das conces-
sões, aliando-se a empresários cuja sensibilidade musical se

Foto: Prensa 3
restringe ao fascínio pelo tilintar das moedas.
Dito assim, beira a fantasia, pode parecer mentira.
Lamentavelmente, é verdade.
Houve um tempo em que a música, projetada através do desenvolvimento do pensamento artístico, comprimindo
alto-falante, identificava, no formato cônico deste acessório, tudo e todos num mesmo embrulho, empurrado em direção
um dos seus símbolos. Era o desenho representativo do cres- à boquinha da garrafa.
cimento, da evolução, da expansão, da liberdade.
Hoje, os meios de comunicação procedem de modo a não Tom Tavares – Compositor e Regente, Professor da Escola de
contemplar a diversidade, desestimulando, sabotando o livre Música da Universidade Federal da Bahia

Foto: Mario Thompson


Gilberto Gil

75
TRANSFORMAÇÕES DO
SAMBA CARIOCA
NO SÉCULO XX

Carlos Sandroni

O
samba vem sendo reconhecido, nas últimas déca- tiços emigrados da Bahia, que se instalara nos bairros próxi-
das, como a expressão musical mais tipicamente mos ao cais do porto, a Saúde, a Praça Onze, a Cidade Nova.
brasileira. Mas a palavra “samba” designa, no Essas pessoas cultivavam muitas tradições de sua terra natal:
Brasil, muitas coisas diferentes. Sua acepção mais comum era uma gente festeira, que gostava de cantar, comer, beber e
refere-se ao gênero musical desenvolvido no Rio de Janeiro ao dançar. Chamavam suas festas de “sambas”. E usavam a
longo do século XX. mesma palavra para designar uma modalidade musical-
O samba carioca tem inúmeras variantes, mas uma dife- coreográfica de sua especial predileção, que consistia no
rença especialmente importante tem sido sublinhada pelos seguinte. Formava-se uma roda, para o centro da qual ia
historiadores do gênero entre o samba que se fez nos anos alguém que começava a dançar e dançando escolhia um par-
1910 e 1920 e o que foi feito dos anos 1930 em diante. No ceiro do sexo oposto. (A maneira pela qual esta escolha era
início do século XX, quem falava em “samba” no Rio eram comunicada ao parceiro é importante: trata-se da “umbiga-
sobretudo as pessoas ligadas à comunidade de negros e mes- da”, ou choque de umbigos, gesto coreográfico que, acredita-
78
se, recebia em uma das línguas do tronco banto o nome de mais tradicionais do carnaval da cidade, como a Mangueira, a
“semba”, suposta origem de “samba”...). Os dois dançavam no Portela e a Salgueiro. Essa criação se deu no final dos anos
centro da roda enquanto todos cantavam curtos refrões, 1920 e início dos 1930, concomitantemente aliás à criação do
alternados com partes solistas também curtas e muitas vezes respectivo concurso carnavalesco.
improvisadas, e acompanhados por palmas e instrumentos Por que o samba do Estácio foi tão influente? É difícil res-
como o pandeiro, o prato-e-faca, o chocalho. Em seguida, a ponder de forma cabal a essa pergunta, mas um fator parece
pessoa que havia começado deixava o centro da roda e seu ter sido importante. Os compositores do Estácio rapidamen-
parceiro escolhia segundo o mesmo procedimento um novo te atraíram a atenção de uma figura de enorme sucesso no
par, e assim sucessivamente até que todos tivessem dançado mundo da música profissional: o cantor Francisco Alves. No
no centro. final dos anos 1920, época em que começou a gravar sambas
Entre os freqüentadores destas festas baiano-cariocas de Bide e Ismael Silva, Chico Viola (como também era
estavam músicos em vias de profissionalização, como os conhecido) já era a estrela mais brilhante no firmamento do
depois famosos Pixinguinha, Sinhô e Donga. Eles se inspira- rádio e do disco no país. Associando-se à turma do Estácio,
ram, para suas composições, em muito do que ouviam por lá. catapultou-a para um patamar de prestígio que só mais tarde
Donga, filho de uma baiana festeira, não foi o primeiro a usar seria alcançado pelo pessoal da Mangueira e dos outros redu-
o nome “samba” como denominação de gênero para uma des- tos de samba. Não é de estranhar que estes tenham visto
tas composições; foi o primeiro a obter enorme sucesso popu- naquela um modelo a ser imitado.
lar ao fazê-lo, com o famoso “Pelo telefone”, de 1917. Mas Os testemunhos sobre os desfiles de escolas de samba nos
Sinhô é que iria se notabilizar, durante os anos 1920, como o anos 1930 indicam que eles não tinham muito em comum
“Rei do Samba”, em composições como “Jura”,“Gosto que me com o que se vê hoje no Sambódromo. Cada escola cantava
enrosco” e “A Favela vai abaixo”. três sambas, e não apenas um como a partir de 1940. Estes
Esta bem sucedida atividade de compositores profissio- não eram “sambas-enredo” pois o desfile não representava um
nais iria modificar sensivelmente as conotações da palavra enredo, isto é, não contava uma história nem desenvolvia um
samba no Rio de Janeiro, popularizando-a enormemente, tema geral. Cada samba consistia de um refrão cantado em
alargando cada vez mais a faixa da população capaz de iden- coro, depois do qual um solista improvisava versos.
tificar-se com ela. Evidentemente não havia amplificação, e os solistas tinham
No final dos anos 1920 são criadas as primeiras “escolas que ter voz potente o bastante para ser ouvida em meio à
de samba”. A origem da denominação é incerta. O que pare- bateria. (Esta tinha muito menos integrantes que as de hoje,
ce certo é que está ligada a um bloco carnavalesco do bairro mas mesmo assim precisava tocar baixinho nas partes dos
do Estácio de Sá, de nome “Deixa falar”. Este bloco teria sido solistas.)
o primeiro a desfilar no carnaval ao som de uma orquestra de As transformações do samba na primeira metade do
percussões formada por surdos (tambores graves), tambo- século XX se deram em múltiplos planos: nos desfiles de car-
rins (tambores agudos) e cuícas (tambores de fricção), aos naval, mas também nos estúdios de gravação. Estes diferentes
quais se juntavam os já mencionados pandeiros e chocalhos. planos eram controlados por forças sociais distintas: simplifi-
Este conjunto instrumental foi chamado de “bateria”e presta- cando um pouco, pode-se dizer que, no desfile, quem manda-
va-se ao acompanhamento de um tipo de samba que já era va eram pessoas como Cartola ou Paulo da Portela, perten-
bem diferente dos de Donga, Sinhô e Pixinguinha. centes a camadas desfavorecidas da população; enquanto nos
O samba feito à moda do Estácio de Sá – cujos principais estúdios, mandavam os diretores artísticos das gravadoras, ou
criadores foram Ismael Silva, Nílton Bastos, Bide e Marçal – em última instância os próprios donos destas. O extraordiná-
firmou-se rapidamente como o samba carioca por excelência. rio relevo da música popular brasileira produzida naquele
Foi seguindo suas pegadas que gente como Cartola e Paulo período (e também posteriormente) está ligado sem dúvida a
da Portela criou as escolas de samba que viriam a tornar-se as que domínios sociais tão distintos tenham podido se entrela-
80
çar, como co-protagonistas de uma história até certo ponto obsessão nos arranjos da época, sendo declinada em todas
comum a ambos. as variantes possíveis, nas introduções, nas pausas do canto
No início dos anos 1930, sob o impacto das inovações e nos acordes finais. Ora, as gravações de samba de ca.
musicais do Estácio, mas também das inovações tecnológicas 1932 em diante – quando a importância dos ritmistas já
– como a substituição do sistema dito “mecânico” pelo dito era sólida – não mostram nem vestígio da referida “pontua-
“elétrico” de gravação –, se redefinem as relações entre o ção”. É tentador pensar, pois, com Silva, que um elemento
samba de rua e o estúdio. Um dos aspectos mais importantes tenha substituído o outro: as gravações já não precisariam
da nova sonoridade que do martelar rítmico de
resultaria desta redefinição é trombones e tubas, dado que
Ilustração sobre foto de Mario Thompson

a presença, nas gravações, agora podiam contar com


dos chamados “ritmistas”. surdos, pandeiros etc.
Essa palavra – e não a pala- De fato, talvez a caracte-
vra “percussionistas”, de ado- rística mais marcante das
ção muito mais recente – era gravações de samba dos anos
usada para se referir aos 1930 – ao menos por con-
músicos populares, egressos traste com as da década ante-
das escolas de samba, espe- rior, e até certo ponto, tam-
cialistas em surdos, cuícas, bém da seguinte – seja a forte
tamborins e pandeiros. A presença de instrumentos de
primeira vez que tais músicos batucada. Ao contrário
foram admitidos em estúdio porém do que acontecia nos
no Rio de Janeiro, ao que desfiles de carnaval, esta pre-
tudo indica, foi por ocasião sença acontecia de maneira
da gravação do samba “Na reduzida: um surdo, um pan-
Pavuna”, de Candoca da deiro, um ou dois tamborins.
Anunciação e Almirante, em (De cuíca, não conheço
1930. É somente por volta de exemplo nas gravações da
1932, no entanto, que a prá- época: o instrumento era
tica se torna comum. considerado demasiado
A presença dos ritmistas bizarro, exótico, estranho,
provavelmente se relaciona, como sugeriu Flávio Silva, a como atestam inúmeros testemunhos.) Esta “batucada de
outra mudança importante, que diz respeito ao papel dos ins- câmara” foi acoplada de maneira feliz a um conjunto instru-
trumentos de sopro nos arranjos. Nas gravações da década de mental do tipo dos que no começo do século se chamava de
1920, onde não havia percussão, o papel mais característico “choro”, isto é, base harmônica de violões e cavaquinho acres-
dos instrumentos de sopro – sobretudo os de timbre mais cida de um ou dois solistas, como flauta, clarineta ou bando-
grave, trombone, tuba – era fazer uma espécie de pontuação lim. Esta nova síntese instrumental entre elementos prove-
rítmica nos intervalos das frases dos cantores, baseada na nientes de tradições afro-brasileiras e elementos vindos das
célula que Mário de Andrade batizou de “síncope caracterís- práticas musicais de camadas médias urbanas é que foi cha-
tica”, geralmente começando por uma pausa de semicolcheia. mada, nos estúdios de gravação e nas rádios, de “regional”,
Esta “pontuação” pode ser ouvida por exemplo no início de abreviação de “orquestra regional”, para diferenciá-la da
“Jura”, de Sinhô:“Jura... jura... jura... pelo Senhor – pom, pom orquestra tida por “universal”, à base de cordas de arco.
pom pom, pom pom pom etc.” Mas ela foi uma verdadeira Os primeiros concursos de escolas de samba acontece-
81
ram numa praça vizinha ao bairro do Estácio, a Praça Onze. senão em 1888) e de imigrantes vindos do interior. A música
Esta foi nas primeiras décadas do século XX, na expressão popular do Rio na virada dos séculos XIX/XX (o choro, o
feliz do sambista Heitor dos Prazeres, algo como uma maxixe) foi criada e tocada em grande parte por lá.
“Pequena África”. De fato, a Praça Onze foi celebrada em Do lado da rua Senador Eusébio, a Praça acompanhava o
prosa e verso como berço do carnaval popular do Rio de trecho final da Estrada de Ferro Central do Brasil, que trazia
Janeiro. Isto se deve em grande parte à sua posição na geogra- ao centro da cidade enorme contingente de trabalhadores
fia urbana. A Praça formava um retângulo enquadrado à vindo do subúrbio. Um pouco mais longe na mesma direção,
Oeste pela rua Santana, ao Norte pela rua Senador Eusébio, havia os morros da Saúde e da Gamboa, também muito
ao Sul pela rua Visconde de Itaúna e a Leste pela rua General populares e habitados por muitos estivadores por sua proxi-
Caldwell. Do lado da rua Santana, estava a extremidade do midade com o porto. Do lado da rua Visconde de Itaúna
canal do Mangue, à volta do qual se havia construído, por achava-se a casa de Tia Ciata. Baiana e mãe-de-santo, esta foi
volta de 1870, a “Cidade Nova”, bairro popular, cheio de figura de proa na origem do samba e do culto dos orixás no
negros alforriados (a escravidão não terminou no Brasil Rio de Janeiro.
Finalmente, do lado da rua General
Ilustração sobre foto Mario Thompson

Caldwell, a Praça abria-se em direção ao cen-


tro da cidade, aos bairros ricos. Pois ela não era
freqüentada apenas pelos pobres dos bairros
que a circundavam, mas também pelos “do
outro lado”, ou porque estes procurassem
exotismos, ou porque mantivessem relações
pessoais com os do mundo popular. Esta
“abertura” em direção a outras esferas geo-
sociais levou o antropólogo Artur Ramos a
considerar a Praça Onze como uma “válvula
de escape entre o mundo dos negros e o dos
brancos”.
A Praça Onze era assim o lugar por exce-
lência do carnaval dos pobres, do “pequeno
carnaval”, como se dizia na época. O “grande
carnaval”, por outro lado, era o dos ricos, eles
também organizados em grupos carnavales-
cos: os “ranchos” e “Grande Sociedades”.
Estes desfilavam na atual avenida Rio
Branco, que era, do ponto de vista do simbo-
lismo urbano, diametralmente oposta à
Praça Onze. A avenida em questão foi aber-
ta em 1903-4 e batizada de “avenida Central”
pelo prefeito Pereira Passos. Considerada
pelo historiador Jeffrey Needel, a justo títu-
lo, como “a melhor expressão da Belle
Époque carioca”, a nova avenida exprimia os
desejos da elite brasileira de ver “sua” capital
82
mais parecida com a Paris de Haussman que com uma adquirida nas cenografias de óperas do Teatro Municipal;
cidade tropical e mestiça. depois, os desfiles passam a ser realizados na própria ave-
“A avenida foi planificada não somente com objetivos nida onde estas instituições estavam instaladas: a avenida
urbanísticos: ela foi concebida como uma proclamação. Central, agora rebatizada como Rio Branco.
Quando, em 1910, seus edifícios foram terminados e seu Em trinta anos, o caminho percorrido foi enorme. Pois
conceito finalizado, uma magnífica paisagem urbana descor- não se pode imaginar nada mais contrário ao que teriam
tinou-se no centro do Rio. A capital federal possuía agora um desejado os construtores da ex-avenida Central: que sua jóia
boulevard de fato civilizado e um monumento ao progresso fosse servir um dia a desfiles de negros de morros e subúr-
do país [...] A imaginação popular era dominada pelo con- bios, tocando instrumentos de origem africana como a bizar-
junto dos edifícios públicos, na extremidade sul da avenida: o ra cuíca, e dançando à sua maneira. Caminho percorrido
Teatro Municipal, o Palácio Monroe, a Biblioteca Nacional e tanto pela escolas de samba, que se organizaram e transfor-
a Escola de Belas-Artes [...] Estas fachadas e as forças sociais maram, quanto pela própria cidade, com som dos sambas
aí representadas tinham sido tão cuidadosamente planejadas gravados nos estúdios, como os de Ari Barroso e Carmen
quanto o próprio traçado da avenida.” (Needell, 1993) Miranda, abandonou seu modelo exclusivamente europeu
O carnaval de elite, Avenida de elite. Os edifícios mencio- para adotar a mestiçagem cultural como valor possível.
nados formavam juntos uma espécie de súmula da cultura e
da arte letradas de estilo europeu: assim o Teatro Municipal, Bibliografia:
uma cópia do Opéra Garnier, de Paris, defronte à Escola de Cabral, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de
Belas-Artes onde se ministravam aulas no mais estrito respei- Janeiro: Lumiar, 1996.
to ao cânon acadêmico. Needell, Jeffrey. Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das
Mas a história iria provar que a oposição entre a Praça Letras, 1993.
Onze e a avenida Central não era tão insuperável quanto Sandroni, Carlos. Feitiço decente – transformações do samba no
parecia... Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.
Durante os anos 1930 e 1940, as escolas de samba Silva, Flávio. Origines de la samba urbaine à Rio de Janeiro, disserta-
ganhavam cada vez mais prestígio, à medida que o samba, ção, Paris: EHESS, 1976.
como gênero musical, se transformava numa espécie de Vianna, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge
emblema sonoro do Brasil (Vianna, 1996). A Praça Onze e Zahar/UFRJ, 1996.
as ruas que a circundavam desapareceram no fim dos anos
30, na época das reformas no centro da cidade, quando foi Carlos Sandroni – Nascido no Rio de Janeiro em 1958, Carlos
aberta a enorme avenida Presidente Vargas (uma perpendi- Sandroni é doutor em Musicologia pela Université de Tours, França e
cular ao norte da avenida Central). A partir de então, o local Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ. Publicou os livros Mário contra
do desfile das escolas de samba mudou quase que a cada car- Macunaíma: cultura e política em Mário de Andrade (São Paulo:
naval, mas sempre atraindo cada vez mais turistas, classe Vértice, 1988) e Feitiço decente – transformações do samba carioca
média e curiosos de todos os cantos do Rio. 1917-1933 (Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001) além de vários arti-
Em 1953, um jornalista ousa pela primeira vez opinar gos em publicações brasileiras e européias. Desde 2000, é professor-adjunto
que as escolas de samba tornavam-se – talvez – a principal do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em
atração do carnaval do Rio, mais importantes até que os Antropologia da UFPE. É presidente da Associação Brasileira de
ranchos e Grandes Sociedades. E no fim dos anos 1950, Etnomusicologia (gestão 2001/2002). É também compositor, letrista e vio-
duas mudanças importantes acontecem. Primeiro, as esco- lonista, tendo canções gravadas por Clara Sandroni, Olívia Byington, e
las começam a convidar, para tratar do aspecto visual do Adriana Calcanhoto, entre outros. Sua versão Guardanapos de papel (feita
desfile (fantasias, carros alegóricos etc) profissionais for- a partir da canção Biromes y servilletas, do uruguaio Leo Masliah) foi grava-
mados pela Escola de Belas-Artes, e cuja experiência foi da por Milton Nascimento nos discos Nascimento e Tambores de Minas.
83
A Rádio
Nacional...
Sérgio Cabral

85
automóveis que se desloquem imediatamente
para o aeroporto a fim de que a pista de aterris-
sagem seja iluminada pelos faróis dos seus auto-
móveis.”
O apelo foi repetido várias vezes, até que a
Rádio Nacional foi informada de que o proble-
ma estava resolvido. Às 23h45, o avião pousava
no aeroporto de Campo Grande iluminado
pelos faróis de centenas de automóveis.

E
m 1951, a tripulação de um avião da Força Enfim, um texto sobre a Rádio Nacional poderia limi-
Aérea Brasileira, daqueles que eram chama- tar-se a fatos como o descrito acima e que justificam a posi-
dos de “fortaleza voadora”, dava início às pro- ção dos que consideram a emissora o maior fenômeno de
vidências para a aterrissagem na cidade de Campo comunicação do Brasil, mesmo levando em conta outros
Grande, quando foi surpreendida por um“apagão”no aero- exemplos impressionantes, como o da velha revista O
porto local. Voando desde Manaus, a tripulação sabia que Cruzeiro e o da atual TV Globo. Como não se pretende
a reserva de combustível não era suficiente nem para pro- neste espaço promover um desfile de histórias que ilustra-
curar o aeroporto mais próximo
(situado a centenas de quilômetros Orlando Silva
de distância) nem para esperar
muito tempo pela volta da luz.
O comandante do avião comu-
nicou-se com o responsável pela
unidade da FAB de Campo
Grande, a quem transmitiu o
drama que estava vivendo. A
comunicação seguinte foi feita de
Campo Grande para a Base Aérea
de Santa Cruz, no Rio de Janeiro,
que, por sua vez, entrou em conta-
to com a Rádio Nacional, situada
na Praça Mauá, no Centro do Rio,
para pedir ajuda. Minutos depois,
um locutor transmitia aos ouvin-
tes de Campo Grande – portanto,
a mais de dois mil quilômetros de
distância – a seguinte mensagem.
“Atenção, Campo Grande,
Foto: Mario Thompson

Mato Grosso! Uma fortaleza voa-


dora da FAB precisa aterrissar e o
campo de pouso está às escuras.
Apelamos aos proprietários de

86
riam ainda mais o poderio da Rádio Nacional, o assunto é Nacional. Falando, por exemplo, do cantor Francisco
encerrado com a informação de que, em 1949, o programa Alves, um dos primeiros ídolos da música popular brasilei-
“No mundo da bola” promoveu a eleição do jogador de ra, vem logo à lembrança a abertura do seu programa, ao
futebol preferido pelos ouvintes. Os votos eram enviados meio-dia, quando a locutora dizia que, naquele momento,
num envelope de comprimido para dor de cabeça, o patro- os ponteiros se encontravam. A morte de Francisco Alves,
cinador do concurso. Os funcionários da emissora conta- em setembro de 1952, num acidente de carro, paralisou o
ram, no final da eleição, mais de 19 milhões de envelopes, Brasil e levou pela primeira vez a Rádio Nacional a suspen-
sendo que o craque vitorioso – o atacante Ademir, do der a programação e passar 24 horas tocando apenas dis-
Vasco da Gama e da seleção brasileira – recebeu cos do cantor.
5.304.935 votos, marca que, em matéria de eleição, só seria Seria difícil apontar o maior ídolo entre as centenas de
superada em 1960, quando Jânio Quadros foi eleito presi- cantores que passaram pela emissora, mas Orlando Silva,
dente da República com pouco mais de 6 milhões de votos. sem dúvida, foi o primeiro deles, pelo menos cronologica-
Fundada em 1936 e sendo transferida para mente. Contratado pela Rádio Nacional logo
o governo federal em 1941, a Nacional Seria difícil na sua fundação, com uma carreira de
dispensava a ajuda oficial, pois, duran- apontar o maior ídolo somente dois anos, Orlando era um
te mais de 20 anos, foi o veículo de intérprete excepcional, para muitos,
entre as centenas de
comunicação com a maior receita o melhor que o Brasil já teve ( João
publicitária do país. Tal receita cantores que passaram pela Gilberto, um dos criadores da
era suficiente para pagar os salá- emissora, mas Orlando Silva, Bossa Nova, vai mais longe: para
rios de 9 diretores, 240 funcioná- sem dúvida, foi o primeiro ele, Orlando Silva era o melhor
rios administrativos, 10 maes- cantor do mundo de todos os
deles, pelo menos
tros, 124 músicos, 33 locutores, 55 tempos). Seus discos e a própria
radiatores, 39 radiatrizes, 52 canto- cronologicamente. Rádio Nacional se encarregaram de
res, 44 cantoras, 18 produtores de pro- Contratado pela Rádio espalhar sua voz por todo o país e não
gramas, 1 fotógrafo, 5 repórteres, 13 infor- Nacional .... demorou muito para assumir a condição
mantes, 24 redatores e 4 editores de jornais fala- de ídolo nacional. Nas grandes cidades, os
dos. empresários se viram obrigados a programar apresenta-
A programação era variada. A audiência feminina fica- ções do cantor nas praças públicas para que fosse visto pelo
va por conta das novelas, que, em estilo de folhetins, se pro- maior número possível de pessoas.
longavam por vários meses. Havia também os programas Dois nomes intimamente ligados aos tempos áureos
humorísticos, a cobertura dos acontecimentos esportivos, da Rádio Nacional são os das cantoras Emilinha Borba e
os programas de auditório, os (muitos, podem acreditar) Marlene. Profissional desde os 14 anos de idade, Emilinha
programas culturais e os programas musicais. Estes últi- apresentou-se em outras emissoras e nos cassinos da Urca
mos, provavelmente, são os que mais resistiram ao esqueci- e Copacabana, antes de ser contratada pela emissora em
mento a que foram condenados não só os programas 1945, ano em que foram lançados os grandes programas
como os próprios radialistas, uma sina que parece confir- de auditório. Foi ela o grande destaque desse tipo de pro-
mar o que diziam os anunciantes contrários à publicidade grama. Os ouvintes sabiam que ela ia cantar, antes mesmo
radiofônica nos tempos pioneiros, recusando-se a fazer de ser anunciada, pela gritaria de um público formado
propagando em rádio: palavras o vento leva. Mas o pessoal geralmente de gente humilde, na maioria mulheres, que
da música não foi esquecido e, durante muitos anos, seus madrugava na porta da Nacional para garantir um lugar
nomes permaneceram ligados à história da Rádio no auditório (por serem, em grande parte, negras e mula-

87
comandado por César de Alencar (Emilinha) e
o de Manuel Barcelos (Marlene). Marlene tam-
bém caminha para os 80 anos, mas depois de
Emilinha, em novembro de 2004.
A cantora Dalva de Oliveira foi um dos
casos mais impressionantes de sucesso repenti-
no na Rádio Nacional. Sua carreira já caminha-
va para os 15 anos, quando se separou do mari-
do, o compositor Herivelto Martins, o que a
tas, não escaparam do apelido racista de “macacas de audi- levou a afastar-se do Trio de Ouro, liderado por Herivelto.
tório”. Pouco depois de ser contratada, Emilinha passou a Até a separação, estava longe de ser uma cantora de gran-
contar com um fã-clube, que produziu filiais em todo o de popularidade, uma vez que, tanto nos seus discos e
Brasil. Esse fã-clube se mantém firme até hoje e não deixa quanto nos seus shows, era apenas a voz feminina do Trio
de homenagear a cantora todos os anos, no seu aniversário. de Ouro ou dos duetos que, eventualmente, fazia com
Já se prepara para comemorar os seus 80 anos, em agosto Francisco Alves. Mas, provocada por uma música lançada
de 2003. por Herivelto Martins, Cabelos brancos, cuja letra não
A soberania de Emilinha Borba na Rádio Nacional só hostilizava um ex-amor (“não falem dessa mulher perto
foi abalada em 1949, quando a cantora Marlene derrotou- de mim”, dizia a letra), Dalva deu início à sua carreira solo
a na eleição para Rainha do Rádio. Tal acontecimento ren- com um samba-canção cuja letra tinha tudo a ver com o
deu uma das rivalidades mais famosas da histó- fim do seu casamento: Tudo acabado, de Jota
ria do rádio e da nossa música. Baseado Em 1954, foi Piedade e Osvaldo Martins. Nascia assim
nessa rivalidade – sem dúvida, gosto- a vez de Caubi Peixoto, uma polêmica que os ouvintes acom-
samente estimulada pela Rádio panhavam como se fosse um folhe-
Nacional – o senador Caiado de
o último ídolo da época tim – também estimulada pelos
Castro afirmou que a sociedade áurea da Rádio Nacional. dirigentes da Rádio Nacional –
brasileira era dividida entre emi- Seu empresário, o compositor com uma expressiva vantagem
linistas e marlenistas, frase que Di Veras, informou-se sobre para ela, que contando com a evi-
levou a revista Radiolândia a dente simpatia do público, trans-
fazer uma visita ao Congresso
os recursos utilizados pelos formava suas músicas em sucessos
para saber quem era de um lado e empresários americanos excepcionais. Para se ter uma idéia,
quem era do outro. Todos os parla- para projetar seu num levantamento feito em 1951, o
mentares consultados responderam, mas, artistas..... disco mais vendido era Tudo acabado; em
sendo um eleitorado político, acabou vencendo segundo lugar, Errei, sim (Ataulfo Alves) e, em
a ala que votou nas duas. terceiro, Que será? (Marino Pinto e Mário Rossi), as três
Marlene é paulista e se chama, na verdade, Vitória gravadas por ela. No ano seguinte, foi eleita Rainha do
Bonaiutti (seu nome artístico é uma homenagem à atriz Rádio. A partir de 1953, porém, Dalva deixou de lado a
alemã Marlene Dietrich). Também dispõe de um fã clube sua condição de ídolo da Rádio Nacional para dedicar-se
fiel e dedicado. Quando venceu o concurso para Rainha às viagens para o exterior. Cantou várias vezes em países
do Rádio, a Nacional tratou de garantir a audiência sepa- sul-americanos e na Europa. Quando encerrou a fase
rando-a de Emilinha Borba, escalando cada uma num dos internacional, seu prestígio no Brasil continuava grande,
dois maiores programas de auditório da emissora, o mas a popularidade já não era a mesma.

88
Em 1954, foi a vez de Caubi Caubi Peixoto
Peixoto, o último ídolo da época
áurea da Rádio Nacional. Seu
empresário, o compositor Di Veras,
informou-se sobre os recursos utili-
zados pelos empresários americanos
para projetar seu artistas e aplicou-
os no lançamento de Caubi, um can-
tor que, havia seis anos, cantava em
casas noturnas sem a menor reper-
cussão. Contratou falsas fãs para
“desmaiarem” no auditório quando
ele cantava e fazia com que ele enver-
gasse paletós com as mangas preca-
riamente costuradas para dar a
impressão de que as admiradores
rasgavam as suas roupas. Além
disso, toda vez que estivesse em
público, deveria estar cercado de fal-
sos fotógrafos espoucando flashes,
como ocorre com as celebridades
artísticas.
Encorajado pelo êxito obtido no
Brasil, Di Veras resolveu levar
Caubi Peixoto para os Estados
Foto: Mario Thompson

Unidos, mas a experiência foi frus-


trante. Nem mesmo a mudança do
seu nome para Ron Cobby foi sufi-
ciente para transformá-lo num can-
tor popular na América do Norte.
A solução foi manter as conquistas no Brasil, enviando de que se adaptaram rapidamente aos novos tempos. Mas
Nova York para a Revista do Rádio e para a Radiolândia legou, sem dúvida, a mais bela história do rádio brasileiro.
primeiras páginas de importantes jornais norte-america-
nos com o nome de Ron Cobby na manchete. Mas eram Sérgio Cabral, carioca, 65 anos, jornalista desde 1957, trabalhou
apenas aquelas primeiras páginas vendidas por uma em vários jornais e revistas do Rio de Janeiro e São Paulo (é um dos
pequena quantia, principalmente aos turistas, com man- fundadores do “Pasquim”), compositor, autor e diretor de espetáculos
chetes imaginárias contendo os nomes dos clientes. musicais e escreveu, entre outros, os seguintes livros:“Antônio Carlos
Na década de 1960, com o crescimento da televisão e Jobim, uma biografia”,“No tempo de Ari Barroso”,“Elisete Cardoso,
com acontecimentos políticos no Brasil, a Rádio Nacional uma vida”,“Nara Leão, uma biografia”,“Pixinguinha, vida e obra”,“As
não tinha mais condições de manter o seu elenco e, aos escolas de samba do Rio deJaneiro”, “No tempo de Almirante” e “A
poucos, foi perdendo a liderança para outras emissoras MPB na era do rádio”.

89
Mário Adnet

Era JK:
ensaios de
uma utopia
Foto: Mario Thompson
Sou um músico gerado e nascido no Rio de Janeiro em
1957, durante os “anos dourados” do governo de Juscelino
Kubitchek, e fui certamente contagiado, e ainda continuo até
hoje, pelo otimismo desse período que muitos descrevem
como um dos mais felizes da história do país, sobretudo para
a música brasileira.
Não se pode falar em Bossa Nova sem se falar, obvia-
mente, em João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e Vinícius
de Moraes, mas é de fundamental importância o ambiente
favorável criado por Juscelino Kubitschek. E logicamente a
contribuição de nossos grandes heróis irrequietos, entre
compositores, arranjadores, músicos e intérpretes que já
vinham modernizando a música brasileira apesar dos tem-
pos menos azuis (a lista é interminável).
Quando ouvimos falar em Bossa Nova, associamos
imediatamente o rótulo a um movimento musical feito por
uma pequena elite da zona sul do Rio de Janeiro. Alguns crí-
ticos puristas diziam que era a música popular que passava
das casas para os apartamentos, minimizando, talvez sem se
dar conta, a extensão do que realmente aconteceu. Na verda-
de essa novidade não foi de última hora mas fruto de um
processo de incubação que levou anos se manifestando iso-
ladamente durante um longo inverno, até a chegada daquela
primavera, o ambiente perfeito com jeito de Shangri-lá, que
foi a “Era JK”. Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de
Moraes foram, portanto, a ponta de um iceberg. E se pensar- João Gilberto
92
mos bem, a obra que fizeram é tão utópica e desbravadora mamãe tinha um temperamento exatamente contrário ao
quanto a de JK. Vai muito além da zona sul do Rio e é maior dele – uma mulher severa, rigorosa, filha de um alemão
do que o Brasil, tanto que atravessou as fronteiras. muito disciplinado”.A cidade de Diamantina, assim como as
No início dos anos 50, Tom Jobim dava duro nas noites outras cidades de Minas daquele tempo, eram muito isola-
do Rio para sustentar a família mas já mostrava a que veio, das e tinham que se bastar em termos de cultura. Criavam
com suas melodias e harmonias avançadas. João Gilberto seus próprios clubes literários e as escolas eram também
ainda não havia tido o estalo daquela batida sintética do vio- núcleos culturais. – “ Durante quase 200 anos, oito ou nove
lão e Vinícius de Moraes era um diplomata que fazia uma estabelecimentos de ensino, distribuídos por Diamantina,
poesia ainda um tanto erudita. Juscelino era governador de Mariana, Ouro Preto, Serro, concentraram a cultura de
Minas e já tinha feito alguns ensaios para o futuro próximo, Minas Gerais. De modo que todos nós que ali vivíamos,
com a ampliação da cidade (planejada) de Belo Horizonte, tínhamos orgulho dos diamantinenses que já haviam passa-
incluindo aí a criação de um novo bairro inteiro, a Pampulha, do por ali, e que, saindo de Diamantina, tinham conquistado,
projetada por um jovem em outros pontos do país, glória ou fama. Sobretudo a políti-
arquiteto, Oscar Niemeyer. ca ensejava estas oportunidades; e também a literatura.”
Vê-se que JK já tinha um João Nepomuceno Kubitschek, tio-avô de Juscelino, um
faro fino para perceber e esti- dos primeiros ídolos do menino Nonô, chegou a vice-gover-
mular novos talentos. nador do estado, mas se tornou famoso pela sua poesia, que
É interessante observar, gostava de declamar nas históricas noites de luar de
sob o ponto de vista artístico Diamantina. “Ele estudava em São Paulo, juntamente com a
musical é claro, esses perso- plêiade de outros brasileiros muito ilustres na literatura, entre
nagens a começar pelo o os quais o grande, o imenso Castro Alves, que cuidavam só de
então presidente da repúbli- escrever ou de produzir versos”.
ca, cuja a afinidade com Aos seis anos de idade teve, pela primeira vez, a “sensa-
artistas e literatos fez com ção de contato com uma pessoa importante” com a visita
que aquele período fosse tão do “presidente” de Minas (como era chamado um governa-
generoso com a música. dor de estado na época), João Pinheiro à Diamantina, que
Juscelino nasceu em chegou a cavalo depois de vários dias de viagem e foi rece-
Diamantina em 1902, teve bido por sua mãe. O “presidente”, na sala de visitas de sua
infância e juventude pobre, casa, prometeu que fundaria o primeiro grupo escolar de
ficou órfão de pai aos dois Diamantina, o que foi cumprido à risca ainda no mesmo
anos de idade e foi alfabetiza- ano. Com isso D. Júlia foi a primeira professora nomeada
do e educado pela mãe, a e passou a receber um salário do estado, o que melhorou
professora primária Júlia um pouco a vida da família. Juscelino foi um menino extre-
Kubitschek de Oliveira. O mamente estudioso. Devorou os trezentos livros da biblio-
pai, João César de Oliveira teca, além de todos os outros da cidade, “sobre qualquer
era um homem inteligente, assunto”, que pedia emprestado. Estudou francês com
boêmio e, como todos os uma francesa que tinha vindo de Paris com o marido, no
habitantes da cidade, gostava início do século passado, um minerador de diamante, que
de serenata. Era também depois de explorar as minas à exaustão e aumentar os
excelente dançarino e bom estragos nas encostas da cidade, voltou à terra natal aban-
violonista. “Em todas as fes- donando a mulher no Brasil. Com ela, Juscelino traduziu
tas, ele era convocado; todo o teatro clássico francês: Molière, Voltaire e Racine.
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Esses dados sobre sua infância e adolescência parecem de orquestrador o levaria a projetos ousados como a
suficientes para dar a pista da importância que teriam a ‘Sinfonia do Rio de Janeiro’, que talvez tenha sido um ensaio
música, a literatura, a poesia, a cultura de maneira geral, na para ‘Orfeu do Conceição’, o primeiro trabalho com
formação do futuro presidente. E com certeza a herança dos Vinícius, que conheceu já nos anos JK, e, mais tarde,‘Brasília,
exemplos de disciplina e rigidez da mãe, do tio político- Sinfonia da Alvorada’. Vinícius parecia estar descobrindo
poeta, da promessa cumprida do “presidente”de Minas, além que a simplicidade da poesia era o grande segredo da expres-
da simpatia, a alegria de viver e a boêmia, provavelmente her- são da música popular. Aos poucos foi rompendo os laços
dadas do pai. Mas sua trajetória não foi só alegria e boêmia. com os meios acadêmicos
Num último depoimento em 1976, pouco antes de sua para se tornar o nosso “poe-
morte, ele mesmo admitiria: - “É muito difícil um homem tinha”. Musicalmente Tom
sair de Diamantina, filho de uma viúva, pobre, chegar à pre- Jobim já era moderno e
sidência da República. É preciso ter um feitio muito especial tinha todas as característi-
de comunicação, senão não vence as dificuldades que eu tive cas musicais que o torna-
que vencer. Primeiro, tive que vencer as dificuldades de riam o “maestro soberano”,
baixo, depois as médias, e, finalmente, as de cima. Eu tive que na feliz expressão cunhada
enfrentar todas, porque enfrentei as dificuldades decorrentes por Chico Buarque. Como
da situação política municipal, estadual, federal, militar; tudo me disse uma vez, numa
foi um conjunto”. Ou terá sido uma orquestra? entrevista gravada para o
De volta ao início dos anos 50, esse “feitio muito especial rádio, existia uma necessi-
de comunicação”já havia levado Juscelino duas vezes à câma- dade de se limpar a música,
ra dos deputados, à prefeitura de Belo Horizonte e ao gover- seja nos arranjos, na forma,
no de Minas. faltava uma linguagem mais
Enquanto isso no Rio de Janeiro, Antônio Carlos Jobim sintética. – “Meu piano é
continuava tentando resolver “as dificuldades de baixo”, João econômico. Sempre tentei
Gilberto nem isso e Vinícius de Moraes, bem mais velho, tal- ser conciso com as notas,
vez estivesse passando pelas “médias”. usando poucas e boas,
Também para Jobim a vida não era só boemia. numa tentativa de fazer
Descobriu em pouco tempo que como pianista da noite não algo que significasse alguma
chegaria a lugar algum e que ainda poderia ficar doente. coisa. Acho que essa minha
Havia estudado com grandes mestres como Koellreuter, preocupação deu resultado.
Tomás Teran e Lúcia Branco e para ser alguém, precisaria Essa coisa que eu fiz, você
trocar a noite pelo dia. Com o incentivo da família, ele saiu vê hoje em dia na música, os
do “cubo das trevas”, como se referia às boates, e passou aos músicos procurando dizer
trabalhos “diurnos”. Primeiramente arrumou um emprego muito com poucas notas.
na editora Euterpe e, pouco depois, na gravadora Antigamente o pianista, o
Continental, onde se tornou arranjador da casa, com a ajuda virtuoso, era aquele cara
do maestro e compositor Radamés Gnattali, um de seus ído- que fazia um monte de
los. A partir de 1953 começou a ter suas músicas gravadas, arpejos e escalas. Os músi-
além de fazer arranjos para artistas como Orlando Silva e cos de sopro, muitos ainda
Dalva de Oliveira em final de carreira. Em 54, veio o primei- tocam muitas notas no
ro sucesso,‘Tereza da Praia’, com Billy Blanco, nas vozes sem saxofone, no clarinete e
firulas de Dick Farney e Lúcio Alves. Seu talento também assim havia essa tentativa
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de dizer o essencial. O samba tinha mil percussionistas, os para integrar o grupo vocal Garotos da Lua, contratado da
espaços estavam todos ocupados, a bateria mais parecia um Rádio Tupi, a convite de Alvinho, seu amigo e integrante do
mar durante uma tempestade. Era muita coisa tocando ao conjunto. Naquele tempo ele soltava a voz à la Orlando
mesmo tempo, daí a necessidade de ir limpando”... Silva, um de seus maiores ídolos. Chegou a gravar dois dis-
O detalhe que faltava para a mudança a que Tom se cos de 78 rotações cantando assim. Um detalhe curioso é
referia foi, com certeza, a batida também econômica do vio- que uma das características das interpretações de Orlando
lão de João Gilberto. Silva é a brincadeira que ele fazia com as melodias, adiantan-
João Gilberto chegou ao Rio de Janeiro em 1950, vindo do e atrasando, em relação ao acompanhamento, o que se
de Salvador, onde era crooner da Rádio Sociedade da Bahia, tornou mais tarde a marca registrada de João Gilberto. A
diferença é que como João tocava bem violão e era antes de

Foto: Mario Thompson


tudo um músico, tinha maior controle rítmico sobre a “brin-
cadeira,” pois era o responsável pelo próprio acompanha-
mento. Pode parecer mentira mas esse “achado” de João teria
sido gestado justamente em Diamantina, durante os oito
meses em que passou confinado na casa de sua irmã
Dadainha, enquanto Juscelino estava em plena campanha
para presidente. Estaria tudo planejado e ensaiado ?…

Mário Adnet – Compositor, violonista, arranjador e produtor


carioca, Mario Adnet atua como profissional desde 1977. Em 1980 lan-
çou seu primeiro disco, em duo com o compositor e pianista Alberto
Rosenblit, e passou a atuar também como arranjador. Em 1984 lançou
seu primeiro disco solo,“Planeta Azul. Nos anos 90 passou a ser gravado
no exterior por intérpretes como Lisa Ono, Joyce, Charlie Byrd, Chuck
Mangione e outros. Ao mesmo tempo, produziu e apresentou progra-
mas de música nas rádios MEC e Alvorada, com entrevistas de artistas
da MPB. Em 1994 Tom Jobim incluiu em seu último disco (“Antônio
Brasileiro”) o arranjo de “Maracangalha” (Dorival Caymmi) feito por
Adnet, o que projetou seu trabalho como arranjador. Em seguida lançou
seu CD “Pedra Bonita”, com participação de Tom Jobim, e excursionou
pelo Japão ao lado de Lisa Ono. Em 98 passou a escrever perfis de artis-
tas da MPB para o Segundo Caderno do jornal O Globo. Em 1999 lan-
çou o CD “Para Gershwin e Jobim” que foi gravado entre o Rio e Nova
Iorque. Depois vieram “Villa-Lobos-Coração Popular” no final de 2000,
com canções do maestro em arranjos populares, “Para Gershwin e
Jobim-Two Kites” em 2001, além de produzir ao lado do saxofonista Zé
Nogueira, o álbum duplo “Ouro-Negro”, dedicado à obra do maestro
Moacir Santos. Entre 2001 e o primeiro semestre de 2002 esteve por
duas vezes no Japão como arranjador dos últimos CDs da cantora Lisa
Antônio Carlos Jobim Ono. Lançou no início de 2002 “Rio Carioca”, em homenagem à cidade
e Vinícius de Moraes do Rio de Janeiro.
95
Luiz Roberto Oliveira

O sol e o sal
da zona sul
“Porque o samba nasceu lá na Bahia”. A esta afirmação ca das letras girava entre tristeza, desengano e amores não
de Vinicius de Moraes na letra do Samba da Bênção, feito em correspondidos. Neste estilo impregnado de fumaça de cigar-
parceria com Baden Powell, eu acrescentaria, para polemizar: ros e pileques talvez provenientes do pós-guerra europeu, um
“...e a Bossa Nova também”. Seriam as lavadeiras de Juazeiro estado de espírito cinzento e nebuloso acrescentou ao nosso
possuidoras da fórmula secreta? repertório jóias lindas e inesquecíveis — infelizmente, já um
O samba veio de uma junção de ingredientes: ritmos da tanto esquecidas.
Bahia, com ancestrais africanos, trazidos por negros e mesti- Ainda na juventude, Vinicius de Moraes começou a dar
ços para o Rio de Janeiro, foram combinados com as formas mostras de suas vocações. Aluno dos padres jesuítas no
melódicas e harmônicas praticadas na capital, de fortes raízes curso ginasial do colégio Santo Inácio, já era atraído pela
na cultura européia, tais como se ouvia em valsas, polcas e palavra e pelo texto. Em 1927, produziu talvez a única edi-
schottisches. ção de um pequeno jornal,“O Planeta”. Aos 15 anos, partici-
Nas reuniões em casa de Tia Ciata, mãe de santo baiana pava, com os irmãos Paulo, Haroldo e Oswaldo Tapajós de
que morava no centro do Rio de Janeiro, foram ouvidos os um conjunto musical que se apresentava nas casas dos ami-
primeiros acordes do samba. Naquele começo do século XX, gos e em festas colegiais. Suas primeiras letras são deste
algumas das presenças frequentes eram Hilário Jovino, tempo, em parceria com Haroldo e Paulo.
Sinhô, Germano Lopes da Silva, Pixinguinha, e Donga, que É curioso como alguns fatos da infância podem, até por
em 1916 teve sua música “Pelo Telefone” gravada em disco coincidência, antecipar tendências. Em dezembro de 1937, o
pela Odeon. A História acabou consagrando Donga e seu Externato Mello e Souza, em Copacabana, promoveu uma
parceiro Mauro de Almeida como autores do primeiro festa para comemorar o encerramento do ano letivo. Um dos
samba gravado, embora “Pelo Telefone” estivesse muito mais quadros das apresentações era a Orquestra Maluca, pequeno
para maxixe do que para samba. Ainda por cima, a autoria de grupo instrumental formado por alunos do curso de admis-
Donga também é questionada, sendo mais provável que a são ao ginásio.A regência da orquestra, cargo da mais alta res-
música tenha resultado de colaborações improvisadas dos ponsabilidade, foi confiada a ninguém menos que Antonio
participantes das rodas de samba promovidas por Tia Ciata. Carlos Jobim, então com 10 anos.
Impulsionado pelo compositor Sinhô, o samba começou Em 1953, aos 40 anos, Vinicius de Moraes fez o samba
a ganhar aos poucos sua forma e seus intérpretes. Na década “Quando tu passas por mim”, em que música e letra são, pela
de 30, deixando para trás a influência do maxixe, e com sua primeira vez, de sua autoria. Nas tertúlias do Clube da
identidade caracterizada, passou a fazer jus ao nome. Chave, em Copacabana, assim chamado porque cada sócio
Com o passar dos anos, muitos compositores e intérpre- tinha a chave de um escaninho com uma garrafa de whisky
tes continuaram a enriquecer o cenário da música brasileira. individual,Vinicius ficou conhecendo Tom. Não ficaram ínti-
Na década de 40, ganhou força o samba-canção, gênero deri- mos: a relação manteve-se por algum tempo simplesmente
vado do samba, porém mais lento e romântico, em que a tôni- cordial. E a roda que o poeta frequentava — literatos, críti-
96
cos, artistas, embaixadores — impunha respeito pelo conteú- Oscar Niemeyer. Ficava selado o início de uma grande ami-
do e pela idade, e certamente contribuía para manter à distân- zade e um raro entendimento entre música e poesia, tendo
cia o músico de 26 anos, que tocava piano nos bares do bair- como conseqüência alguns anos da mais profícua e brilhante
ro para acertar suas contas de fim de mês. parceria da música popular brasileira.
Vinicius carregou o time nas costas. De alma generosa, Tom e Vinicius navegavam basicamente em três estilos:
corajoso para sorver a vida sem se submeter a limites ou con- o samba (que na época era o sambão, ou samba-batucada),
venções, o poeta multiplicou-se, emprestando seu talento a o samba-canção, e a canção de câmara — esta, a meu ver, o
uma geração inteira de compositores, muitos dos quais ponto mais forte e singular da parceria, sem pretender, no
teriam tido uma carreira bem mais difícil não fosse a preciosa entanto, diminuir-lhes a qualidade nos outros gêneros.
parceria. Assim, o primeiro samba de Edu Lobo teve letra de Assim foi que, em 1958, os dois parceiros convidaram a
Vinicius. O estilo denso de Baden Powell encontrou seu cantora Elizete Cardoso para ser a intérprete de uma sele-
grande parceiro. Carlos Lyra e o poeta ainda hoje embalam ção de canções de câmara, sambas, uma valsa, e até uma
corações apaixonados. Francis Hime ganhou letras lindas e toada, que seriam reunidas no LP Canção do Amor
desesperadas. Para Toquinho, Vinicius caiu do céu. Isto, sem Demais, da gravadora Festa. Tom Jobim faria os arranjos e a
falar em Ary Barroso, Capiba, Claudio Santoro, Paulo regência da orquestra. Este disco foi um divisor de águas na
Soledade, Antonio Maria, Adoniran Barbosa, Pixinguinha, e história do nosso cancioneiro. As músicas e letras, de rara
uma série de outros, de ilustres a humildes — inclusive o beleza; os arranjos de Tom, delicados e de extremo bom
autor destas linhas. gosto; a qualidade e o porte da cantora; tudo garantia um
E também Vadico, o ignorado companheiro de Noel resultado excelente. Mas, um pouco pela sorte e muito pela
Rosa em tantos sucessos do calibre de“Feitiço da Vila”.As cir- visão de Tom, um outro atributo haveria de marcar definiti-
cunstâncias e a saúde de Vadico fizeram com que ele, sem vamente a importância do projeto.
saber, abrisse caminho para o maior de todos os parceiros de Naquela época, alguns jovens compositores cariocas,
Vinicius. Em 1956, o poeta, recém-chegado da Europa, tra- como Carlos Lyra e Roberto Menescal, insatisfeitos com o
zendo na algibeira, letra e música, sua Valsa de Eurídice, pro- ritmo do sambão, que consideravam quadrado e pesado,
curava um compositor para as canções da peça teatral Orfeu andavam em busca de uma nova forma para tocar samba no
da Conceição, de texto pronto e premiado — uma adaptação violão. Outros músicos importantes já haviam esboçado
para a favela carioca do mito grego de Orfeu, o músico da caminhos: Dick Farney, Lucio Alves, Garoto (Aníbal
Trácia que desce aos infernos em busca de sua amada Augusto Sardinha), e o pianista e compositor Johnny Alf,
Eurídice. Vadico, compositor e pianista de mão-cheia, foi o atualmente morando em S. Paulo e em plena forma. Mas foi
primeiro convidado. Mas não aceitou a tarefa, talvez pesada um baiano desconhecido que conquistou os louros da desco-
demais para uma saúde que já inspirava cuidados. berta sensacional.Tocando o samba de uma maneira comple-
O segundo convidado ouviu pacientemente a longa tamente nova, com uma batida mais econômica, num ritmo
explanação de Vinicius sobre como deveria ser a música para sincopado, e articulando seu canto em surpreendente entro-
a peça, durante histórico encontro no Bar Villarino, no centro samento com o violão, João Gilberto chegou para arrasar.
do Rio. Seu único e famoso comentário ao final da prédica, Rapidamente passou a ser assunto nos meios musicais cario-
ainda que de justo fundamento, retrata uma preocupação que cas, provocando o fascínio de muitos e repúdio de uma mino-
o acompanharia durante um bom tempo, mesmo quando já ria. Um diretor da gravadora Odeon em S. Paulo, ao ouvir
não houvesse razão para tal:“Tem um dinheirinho nisso?” uma gravação de João, quebrou o disco, indignado:“É esta a
As músicas de Orfeu da Conceição foram os primeiros novidade que o Rio nos manda?”
trabalhos da dupla Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Tom Jobim rapidamente percebeu que o baiano não
Moraes. A peça estreou no mesmo ano no Teatro Municipal estava para brincadeiras. E convidou João para tocar violão
do Rio, com atores negros, direção de Leo Jusi e cenários de em duas faixas de Canção do Amor Demais. Ouvindo-se o
98
disco atentamente, não é difícil perceber o contraste e o para um show no Canecão, no Rio, que ficou meses em car-
encontro de duas vertentes no tempo. De um lado, a voz clás- taz, antes de temporadas em S. Paulo e no exterior.
sica de Elizete; numa linha divisória, as orquestrações de João e Tom se afastaram também na década de 60, e
Tom, camerísticas, lindas, mas ainda um pouco envolvidas anos mais tarde, uma tentativa de reaproximá-los levou-os
pelos estilos vigentes; e do lado oposto, nas faixas Chega de ao palco, mas nenhum dos dois ficou à vontade.
Saudade e Outra Vez, a locomotiva que é o violão revolucio- Permaneceram o respeito e a admiração de um pelo outro.
nário de João Gilberto. Até hoje, João inclui em seu repertório inúmeras composi-
Tom e outros compositores mais jovens aderiram sem ções de Tom.
hesitação ao novo ritmo de samba. É interessante notar que o Numa fase mais madura, Tom Jobim resolveu dar maior
samba evoluiu também geograficamente, progredindo na vazão a sua veia literária, talvez sentindo a lacuna deixada por
esteira da ocupação do Rio de Janeiro: dos subúrbios e do Vinicius, ou porque Chico Buarque não tivesse tempo para
centro, em direção à zona sul. E dos morros para o litoral. O uma colaboração mais assídua. Criou excelentes letras.
samba do subúrbio cedia a vez à Bossa Nova de Copacabana. Águas de março, Luiza, Falando de amor, Passarim e
Aliás, o nome Bossa Nova, trazido à baila por circunstâncias Gabriela são apenas alguns exemplos. Aliás, Tom sempre se
sem grande relevância, tornou-se mundialmente conhecido, sentiu à vontade nas letras, mesmo em começo de carreira,
apontando não somente para uma nova maneira de tocar quando fez Outra Vez, As Praias Desertas, e Corcovado.
samba, mas refletindo uma atitude característica dos jovens Mas o tempo passa, e dois destes três gênios já nos dei-
da zona sul, que gostavam de freqüentar a praia e de se reunir
para cantar baixinho ao som do violão. As letras deixaram a Vinícius e Toquinho
tristeza de lado, passando a curtir a beleza das garotas, o sol,
o mar. Tom Jobim, que volta e meia mudava de residência,
seguiu o mesmo movimento: nascido na Tijuca, transferiu-se
com a família para Copacabana, e depois para Ipanema, onde,
no apartamento da Rua Nascimento Silva, fez alguns de seus
maiores sucessos.
Com colaboração e participação de Tom Jobim, João
Gilberto gravou na Odeon três LPs históricos: Chega de
Saudade em 1959, O Amor, o Sorriso e a Flôr em 1960, e
João Gilberto um ano depois. No auge da forma e do gás,
João mostra quem é e a que veio. O terceiro LP tem, em cinco
faixas, a sensacional participação do conjunto do organista
Walter Wanderley. Se você ainda não conhece, ouça depressa
antes que acabe.
Quis o destino que a colaboração de Tom Jobim com
seus dois companheiros se tornasse rarefeita até quase a
Ilustração sobre foto de Mario Thompson

interrupção. Vinicius e Tom produziram até meados da


década de 60; após isto, pouca ou nenhuma parceria.
Embora menos próximos, continuaram grandes amigos. A
obra-prima Amparo, gravada em forma instrumental em
1970, teve o nome mudado para Olha Maria quando
Vinicius e Chico Buarque lhe deram letra, um ano depois.
Em 1977, Tom e Vinicius se juntaram a Miucha e Toquinho
100
xaram. Se me perguntassem por nomes de brasileiros mun- que já vi. Para ele só existe o essencial: canto e violão. Até a
dialmente conhecidos e reconhecidos, sem hesitação citaria forma como apresenta suas interpretações aponta para este
Tom Jobim e Pelé. A música de Tom tem dois atributos núcleo. Prova disto é seu desinteresse por adornos: para mui-
inquestionáveis: a qualidade, que garante ao compositor a tas músicas que canta nem introdução faz. Entra diretamen-
posição de maior entre os maiores da música popular brasilei- te no tema, no que importa, repetindo a canção inteira várias
ra; e a universalidade, que a faz admirada nos cantos mais vezes, como num tremendo esforço para superar o insuperá-
remotos do planeta. Outros compatriotas, não menos ilus- vel. Perguntado aonde teria ido buscar sua batida, respondeu:
tres, não chegam a ter seu nome e seus méritos tão difundi- “Aprendi com os requebros das lavadeiras de Juazeiro”.
dos – e globalizados. Poeta e diplomata, erudito, falando várias línguas,
João Gilberto, aos 71 anos, mantém seu modelo de per- Vinicius foi aos poucos procurando uma forma de comunica-
feição. Influenciou músicos pelo mundo afora. Ainda que em ção mais abrangente e popular. Funcionário do Itamaraty,
seu país possa, de vez em quando, ser mal compreendido, ou, com trânsito livre nos refinados salões da intelectualidade,
o que é pior, mal recebido. É demais pretender impôr a um íntimo de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, pas-
artista de sua dimensão o ônus de ter de se comportar como sou a fazer canções de grande lirismo com Tom e Carlos
o resto de nós. Criticá-lo ou até vaiá-lo em suas excentricida- Lyra; ao lado de Baden Powell, enfronhou-se no denso uni-
des é não saber respeitar a enormidade de seu talento. João é verso das heranças negras, criando um dos mais fascinantes
um dos músicos mais íntegros e mais dedicados ao trabalho conjuntos de peças de nosso cancioneiro, os afro-Sambas;
mantendo a trajetória, desaguou na parceria com Toquinho,
de melodias e letras bem mais simples, algumas quase ingê-
nuas. Interessante é notar que ele também estimulou Tom
Jobim a despir-se de maneirismos e meandros da erudição.
No texto para a contracapa de Canção do Amor Demais,
refere-se com carinho ao parceiro:
“...gostaria de chamar a atenção para a crescente simplici-
dade e organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez
mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que
tiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibili-
dade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade do
seu espírito, voltado para os valores permanentes na relação
humana.”
Com Vinicius começamos, e nele encerraremos. A ele
dirigimos nosso pensamento e nossas homenagens. O capi-
tão do time e do mato Vinicius de Moraes, parceiro de tantos
compositores que fizeram de nossa música uma das melhores
do mundo, cantou como poucos a beleza da mulher brasilei-
ra, fez da vida sua maior poesia, e jamais será esquecido. A
bênção, poeta. Saravá.

Luiz Roberto Oliveira é músico, diretor da produtora Norte


Magnético, administrador do site Clube do Tom (www.clubedotom.com),
curador do site oficial de Tom Jobim (www.tomjobim.com.br), e
parceiro de Vinicius.
101
Luiz Carlos Maciel

O CONTEÚDO POLÍTICO
E A EVOLUÇÃO DA MPB
Chico Buarque:
sai o Quando Pedro pedreiro, composição de Chico Buarque,
foi lançada no início da década dos 60, revelou não só o talen-
to do jovem compositor, até então um desconhecido, como
assinalou uma nova e poderosa tendência no processo de

barquinho, modernização da música popular brasileira que se iniciara na


década anterior. A letra retratava o cotidiano de um operário
na construção civil, suas preocupações e suas esperanças;

entra o nela, a preocupação social ganhava o primeiro plano e apon-


tava uma nascente consciência política.
Pedro Pedreiro é o resultado de um fenômeno histórico-
social manifesto na experiência de toda uma geração de bra-

conteúdo sileiros que viviam, então, a sua juventude. Essa geração esta-
va convencida que seu destino histórico era o de promover a
emancipação do Brasil como nação, libertando-o do subde-

político senvolvimento, e de seu povo, assegurando-lhe justiça social e


uma vida mais humana. A música popular brasileira passava,
a partir desse momento, a expressar esse projeto.
A nova postura rompia com a tradição lírica da música
popular brasileira, em especial com sua vanguarda na época –
a bossa nova original que passou a ser caracterizada pela
Ilustração sobre foto Mario Thompson

música do Barquinho, uma composição de Menescal e


Bôscoli típica da poesia graciosa, delicada, inegavelmente
bela, embora politicamente inofensiva, que marcou os primei-
ros tempos da nova música. Tudo é verão e o amor se faz/ num
barquinho pelo mar/ que desliza sem parar – diz a letra do
Barquinho. Pedro pedreiro, penseiro/ esperando o trem/ Manhã
104
parece carece/ de esperar também/ para o bem de quem tem bem de intérpretes e instrumentistas – de fazer uma música popular
quem não tem vintém... – diz a letra de Pedro Pedreiro. O tema tão sofisticada quanto a que se fazia nos países desenvolvi-
de uma é o prazer das classes médias; o da outra é a labuta dos, em especial os Estados Unidos. Ela refletia o projeto
cotidiana do proletariado. nacional da chamada era juscelinista, na qual o país, num
A bossa nova nascera orientada por um propósito artís- avanço de cinquenta anos em apenas cinco, estava destinado
tico sem compromissos, um ideal esteticista. Seu objetivo era a ultrapassar os limites do chamado Terceiro Mundo, reali-
colocar a música popular brasileira na vanguarda musical do zando finalmente sua vocação para ser uma potência cultu-
planeta. Contudo, em extensa medida, ela obedecia à tradi- ral e possivelmente econômica. De fato, artistas como
ção. O ritmo básico continuava a ser o samba, embora enri- Antonio Carlos Jobim e João Gilberto estão entre os maio-
quecido por recursos mais sofisticados, como as síncopas res e mais importantes que a música popular internacional
criadas por João Gilberto; as melodias eram líricas e ternas; e, produziu no século vinte.
finalmente, as letras ainda tinham como principal tema os Evidentemente, a música popular brasileira tradicional já
problemas das relações afetivas, as dores do amor, e preserva- era notável pelo lirismo de sua invenção melódica e, principal-
vam o prazer no sofrimento que caracteriza tradicionalmen- mente, por sua vitalidade rítmica. A proposta fundamental,
te as canções românticas. As novidades, portanto, eram mais agora, era de enriquece-la com um avanço em termos de har-
formais do que conteudísticas. Mas essas inovações formais monia. Cantores da pré-bossa nova, como Dick Farney,
eram importantes e manifestavam um novo espírito, urbano, Lucio Alves e Dolores Duran, já eram influenciados pelo
culto e mesmo sofisticado. requinte dos intérpretes da música popular norte-americana;
A modernização da música popular brasileira havia e instrumentistas como o pianista Johnny Alf, pelas harmo-
começado nos anos 50, com o que se convencionou cha- nias audaciosas do jazz moderno, especialmente o chamado
mar de pré-bossa nova. Sua principal motivação foi a necessi-
dade experimentada por artistas jovens – compositores,

106
cool jazz que floresceu na West Coast norte-americana. Essa O terceiro salto da nova música foi, finalmente, no senti-
assimilação, devidamente digerida, haveria de resultar no que do da participação social e política – o momento da transi-
acabou sendo conhecido como bossa nova. A introdução de ção do Barquinho para Pedro Pedreiro. Nem todos os artis-
Bolinha de papel, gravação de João Gilberto, por exemplo, tas da bossa nova o acompanharam, dividindo o movimento
parece mesmo um arranjo típico de Gerry Mulligan. por um lado numa tendência tradicionalista, esteticista e,
Mas não foi apenas no plano estritamente musical que se por outro, numa nova tendência política e participante.
verificou uma evolução. Ao contrário dos antigos artistas da Num primeiro momento, houve inclusive um certo con-
música popular brasileira tradicional, vindos das camadas fronto entre os partidários das duas tendências, com os
mais pobres da população brasileira, de instrução modesta e políticos chamando os esteticistas de “alienados” e estes qua-
informação escassa, os novos artistas tinham freqüentemente lificando os primeiros como “hipócritas”.
formação universitária, eram informados e até cultos. As Os novos temas, da tendência participante, abordavam
letras das canções passaram a manifestar uma inédita inten- diretamente os problemas do subdesenvolvimento e da
ção literária, fazendo com que muitos desses compositores pobreza num país do chamado Terceiro Mundo. As dificul-
acabassem sendo considerados “poetas” até mesmo por crité- dades do cotidiano das populações menos favorecidas, que de
rios acadêmicos. Não foi por acaso que Vinicius de Moraes, o vez em quando surgiam na música popular tradicional, em
Ilustração sobre foto Folha Imagens

principal letrista da bossa nova, era um poeta consagrado geral na forma de queixa ou lamento, recebiam agora um tra-
conforme os padrões estéticos mais exigentes, sendo conside- tamento mais agressivo, simbolizada nos versos de uma com-
rado mesmo um dos nomes mais importantes da poesia bra- posição tradicional, a Opinião, de Zé Keti que, em tom de
sileira moderna. Vinicius foi um dos responsáveis por fazer desafio, declarava que podem me bater/ podem me prender/ podem
da beleza e dos encantos da mulher brasileira um dos princi- até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião...
pais temas da bossa nova.

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Falava-se também, como nunca antes, dos problemas do norte-americana. Não houve, contudo, uma influência dire-
campo, principalmente no Nordeste, discutindo a posse da ta mas, antes, uma sincronia histórica. Sem nenhum tipo de
terra e reclamando a necessidade de uma reforma agrária – e programação ideológica, multiplicavam-se na época as
também acompanhando um movimento de protesto e reivin- manifestações de rebeldia juvenil; essas manifestações iriam
dicação que, apesar de duramente reprimido durante a dita- aumentar em número e intensidade no correr da década até
dura militar, voltou a emergir e alcançar os nossos dias. O o clímax de 1968.
Carcará de João do Vale é a canção emblema desta tendência; Antes disso, no início do processo, um show musical era
a letra se refere a um pássaro predador do Nordeste que mata apresentado em Copacabana, Rio de Janeiro, com o título
para comer. Carcará/ pega, mata e come/ carcará não vai morrer de Opinião e a presença de tres artistas de origens diversas. O
fome/ carcará/ mais coragem do que homem... – diz a letra. primeiro era o próprio Zé Keti, um negro das favelas do Rio
A canção de protesto que emergiu no Brasil, no início e compositor de sambas em estilo tradicional, popular; o
dos anos 60, coincidiu com o surgimento da protest song segundo era outro negro pobre, João do Vale, mas vindo do

Zé Kéti

Ilustração sobre foto Mario Thompson

108
Nordeste e compositor de canções com os ritmos típicos de na letra da canção de que “amanhã há de ser outro dia”...
sua região de origem; o elenco era completado por uma can- Como o resto de sua geração de brilhantes compositores
tora branca, Nara Leão, nascida na alta classe média, com (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu
educação, gostos e informação sofisticados. Lobo etc), Chico ficou nacionalmente conhecido através dos
A importância de Nara na vertente participante da nova festivais de música realizados no final da década dos 60. Com
música popular brasileira,nos anos 60,não deve ser subestima- A Banda, cantada por Nara Leão, ele ganhou o Festival da
da. Dona de um fio de voz, em contraste com a voz poderosa Record, em São Paulo, e uma grande popularidade em todo
das cantoras tradicionais,ele aprendera a cantar com os primei- Brasil. É uma marchinha simples, delicada e poética, cuja pos-
ros bossanovistas, em especial o mestre de todos eles, João sível referência ao protesto social é sutil demais. ... a minha
Gilberto. Tornou-se muito popular e o show Opinião foi, sem gente sofrida/ despediu-se da dor/ pra ver a banda passar/ cantando
dúvida, um marco na história da música popular brasileira. coisas de amor... – dizia a letra.
Com o início da ditadura militar, em 1964, os teatros das Chico ganhou também o Festival Internacional da
principais cidades brasileiras foram transformados em trin- Canção, no Rio de Janeiro, com Sabiá, uma belíssima canção,
cheiras da resistência democrática – e os shows musicais feita em parceria com Antonio Carlos Jobim, que contudo foi
eram a sua vanguarda. Liberdade, Liberdade, montado no vaiada por razões políticas! A favorita do público era a
Rio de Janeiro, no teatro que acabou batizado com o mesmo Caminhando, de Geraldo Vandré, considerada um protesto
nome de seu show de lançamento, Opinião, e Arena conta mais frontal contra o poder militar. A torcida pelas canções
Zumbi, em São Paulo, pelo Teatro de Arena, foram dois era apaixonada, ardente, insensata, como a do futebol.
eventos igualmente importantes. O compositor Geraldo A música popular sempre teve, através da História, uma
Vandré, que tivera uma de suas canções, Caminhando, censu- importância muito grande na vida brasileira. Cada uma de
rada pelo governo militar, apresentava no seu show ao vivo suas diferentes manifestações capta, não só algum aspecto
uma nova composição feita sobre os mesmos acordes da can- essencial da própria alma do país, como também o espírito do
ção proibida; o artista tocava seu violão mas calava, baixando tempo em que foi criada. O momento de passagem e, em
a cabeça, deixando que a própria platéia cantasse em coro, a seguida, o de convivência, da poética original da bossa nova e
plenos pulmões, a letra de Caminhando. do advento do compromisso político marcaram fortemente a
A supressão das liberdades democráticas, pelo regime experiência da geração. Mas, com o passar dos anos, as dife-
autoritário, manifesta abertamente na atividade da censura a renças se atenuaram, a oposição pareceu mais superficial do
todas as formas de expressão, criava um clima de asfixia que que significativa, e os artistas das duas tendências se reencon-
tornava vitalmente necessária a invenção de alguma maneira traram em terreno comum – o rico e múltiplo universo da
de respirar. A música popular forneceu esse respiradouro. música popular brasileira.
Chico Buarque, em particular, sustentou um confronto
com a censura ditatorial durante praticamente toda sua car- Luiz Carlos Maciel é do signo de Peixes com ascendente Gêmeos.
reira, do início até o momento da redemocratização do país, Sua natureza por assim dizer quádrupla, o leva a muitas atividades difer-
já nos anos 90. Ele foi, sem dúvida, um dos mais censurados entes. É roteirista, jornalista, escritor, professor, diretor, ator e sabe-se lá
artistas brasileiros, tanto como compositor quanto como mais o quê. Já trabalhou em jornal, em teatro, em cinema, em televisão,
escritor e dramaturgo. Suas canções foram proibidas, suas etc. Publicou vários livros, sendo os dois últimos Geração em Transe, em
peças teatrais mutiladas. Para driblar a censura, foi inclusive que trata do Tropicalismo no cinema, no teatro e na música popular e As
obrigado a criar um compositor popular chamado Julinho da Quatro Estações, em que traça sua trajetória intelectual nas últimas qua-
Adelaide, a quem atribuía seus sambas mais populares. Mas tro décadas. No momento, tem no prelo, pela editora Record, O Poder do
deu ao poder ditatorial uma resposta incisiva em Apesar de Clímax - Fundamentos do Roteiro para Cinema e TV, no qual tenta reg-
você, música que foi cantada por milhões de brasileiros em istrar no papel a metodologia dos cursos de roteiro que vem dando há
todos os recantos do país, unidos pela esperança enunciada muitos anos.
109
Dado Villa-Lobos

A imagem clara que eu tenho, e


A Explosão das que permanece até hoje, do inicio
bandas de rock, dos anos 80, é da cidade de Brasília
sitiada pelas forças armadas brasilei-
blocos afro e ras sob o comando do general
novos ritmos Newton Cruz, que em pessoa
comandava as operações de repres-
são às manifestações populares pelas
“diretas já”. O general empunhava
seu chicote à la Goering, tentando
em vão encerrar com o “buzinaço” na
av. L2 sul, arrancando à força as pes-
soas de seus carros enfeitados com
balões verdes e amarelos. O rebuliço
era geral, ecoando ao fundo o hino
nacional; era o entardecer de um dia
de Outono, um pôr-do-sol bíblico
anunciando o crepúsculo de um dos
períodos mais terríveis de nossa his-
toria contemporânea. Revelava-se
assim a aurora de um novo tempo,
novos ares, outros formatos, outras
Paralamas do Sucesso pessoas…
117
“Sentado embaixo do bloco sem ter nada o que fazer, geração na busca da reconquista de seu espaço social perdido
olhando as meninas que passam…” o trecho dessa canção de há décadas.
1982 de Renato Russo (uma analogia ao clássico de Jobim e Apresentações em praças públicas, bares, universidades,
Moraes “garota de Ipanema”?!) traduz precisamente o que era festivais de cinema, teatro e dança eram sistematicamente
Brasília no começo dos anos 80 para alguém que estava no organizadas e acabavam despertando o interesse do público,
começo de sua vida, num lugar sem muitas perspectivas, a sacudido pelo impacto de poder se relacionar, entender e par-
não ser a certeza de que um dia você vai partir e deixar aque- ticipar do que então era colocado de forma direta, racional e
le lugar. De fato eu estava sentado no pilotis do meu bloco na emocional em sintonia com suas próprias vidas.– “Não tem
SQS 213 quando por acaso surgiram quatro “punks”, aliení- mais corinho vocal e vozes em falsete falando das belezas
genas, assustadores, armados de seus colorjets que picharam naturais de um país imaginário, nem violãozinho com cordas
o muro do meu prédio – Aborto Elétrico – , o que era aqui- e orquestra, agora é energia e distorção, tambores rufando em
lo? Qual a mensagem? Quem eram aqueles caras? Alguma 4 por 4 e a voz gritando pra você: “Somos os filhos da revolu-
coisa existia e estava representada ali. Era, mal sabia eu, a ção, somos burgueses sem religião, nós somos o futuro da
senha que abriria as portas para o sentido da vida naquele nação, geração coca-cola…”,” Nas favelas, no senado, sujeira
lugar, eram jovens se comunicando com outros jovens, era pra todo lado…Que país é esse?”
explícito, as coisas finalmente começavam a fazer sentido. A seguir o caminho estava traçado, aberto e magnetiza-
O Aborto Elétrico foi a primeira manifestação musical do, lá vem a perspectiva e a nítida sensação de prazer e von-
na Brasília dos anos 80 que se diferenciava da chatice musical tade de estar ali pra sempre. Não havia volta, vamos em fren-
que então vigorava amarrada às presas do conformismo, do te, sempre em frente.
marasmo cultural estabelecido há anos. Era impossível resis- O que de fato ocorreu a partir dessa insurreição da
tir à força e explosão de suas apresentações da mais pura camada jovem e pensante dos grandes centros urbanos na
catarse, catálise e aglutinação de novas idéias. A vontade de época pode ser visto como um terremoto sem epicentro, sem
ser jovem e estar bem consigo e fazer valer seu direito à indi- nome ou procedência, uma revolução cultural sem Mao ou
vidualidade intelectual, cultural, social, e poder então deixar Qing, tampouco lideres carismáticos identificáveis. Apenas
tudo isso bem claro através da música, dança, teatro, cinema jovens artistas, citando aqui apenas o universo musical,
ou artes plásticas, esses eram verdadeiros estandartes de transformando o país de norte a sul, como no Rio de Janeiro
motivação juvenil dispostos a propagar a força de uma nova com a Blitz, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho; em São

Olodum
Ilustração sobre foto Mario Thompson

118
Paulo, os Titãs, Ultraje a rigor, Ira!, Inocentes; em Salvador, o possibilitando assim o surgimento e consagração de inúme-
Camisa de Vênus, os blocos afro Olodum, Ilê Ayê; de Recife ros artistas nesse farto caldeirão heterogêneo que é a cultura
a Porto Alegre muitos outros vieram disseminando suas ori- brasileira. Transformaram-se os hábitos, atitudes e posições
gens, crenças, ritmos, rompendo todas as barreiras da do pensamento juvenil, finalmente votou-se para presidente
expressão cultural urbana, integrando o sertão ao asfalto, o e, entre altos e baixos, as pessoas começavam a acreditar no
mar ao morro, disseminando através de sua onipotência país. A redemocratização estava estabelecida, a missão esta-
característica os novos meios da produção cultural nesse va cumprida, na verdade ela continua, por outros motivos,
país, causando drásticas mudanças estruturais na indústria mas eu continuo por aí sentado embaixo do bloco…, pen-
do disco e entretenimento. Com a invasão desses novos sando seriamente em começar a gritar de novo.
artistas nos meios de comunicação de massa, a realização de
enormes festivais de música com artistas nacionais e interna- Dado Villa-Lobos, sobrinho-neto do famoso maestro compositor
cionais como “Rock in Rio”,“Hollywood Rock,” entre outros Heitor Villa-Lobos, nasceu em Bruxelas na Bélgica. Chegou em Brasília
mais, a indústria fotográfica se prontificou de imediato à em torno de 1979, aos 14 anos. Formou sua própria banda Dado & o
absorção da promissora matéria-prima. Nunca até então se Reino Animal e em 1983 assumiu as guitarras da Legião Urbana. Ao
havia produzido e lucrado tanto com as crescentes venda- longo dos anos, aprimorou sua técnica nas guitarras. Juntamente com
gens de disco no Brasil. A indústria do disco passou a ser Bonfá, compôs e elaborou quase todos os arranjos do repertório da banda.
vista com a respeitabilidade e prestígio de quem alcançara a Produziu a parte musical do Filme Bufo & Spallanzani, no qual também
sexta posição do mercado mundial. participa do vídeo clipe "Dentro de Ti" que pertence ao filme e tem voz de
As portas estavam definitiva e finalmente escancaradas, Cássia Eller. Compôs a trilha do filme "O Homem do Ano".

Titãs

Legião Urbana Kid Abelha Barão Vermelho

Fotos: Prensa 3
119
Martha Tupinambá de Ulhôa

Novos ritmos e nomes:


Marisa Monte, Carlinhos
Marisa Monte

Ilustração sobre foto Mario Thompson

120
Brown, Manguebeat, Rap. Rio de Janeiro, canto lírico e samba;

Salvador, culto a Ogun e carnaval de rua;

Recife, hip hop e maracatu. Marisa Monte,

Carlinhos Brown, Chico Science... Novos

nomes e novos ritmos na MPB? Novos

nomes, sim, mas sonoridades nem tão


Ilustração sobre foto Prensa 3

novas assim. O que têm eles em comum? O

ecletismo e a mistura de gêneros e ritmos, o


Ana Carolina
que é tradicional para a cultura musical bra-

sileira, uma cultura que se caracteriza pela

absorção e reinterpretação de ritmos e for-

mas das mais variadas procedências étnicas


Ilustração sobre foto Mario Thompson

e sociais. O rap parece ser uma outra histó-

ria, talvez o único elemento absolutamente

novo no cenário da MPB.


Carlinhos Brown
121
A carioca Marisa Monte encanta pela fluência com que
interpreta, de uma maneira refinada, desde sambas tradicio-
nais a clássicos do repertório norte-americano. Incluem-se
aí recriações que se tornaram emblemáticas, como
“Chocolate”, de Tim Maia, gravado no disco Marisa Monte
ao Vivo, de 1988. Iniciando-se no canto lírico, Marisa
Monte passa posteriormente a interpretar o repertório
popular em casas noturnas, de onde parte para uma carrei-
ra artística. Em seus shows e gravações introduz também
composições próprias. Nessa categoria destaca-se a parceria
com Arnaldo Antunes, na intrigante “Amor I Love You”,
sucesso de público registrado em Memórias, Crônicas e
Declarações de Amor, de 2000. Um outro campo de atua-
ção de Marisa é a produção musical, seja da ala de composi-
tores de uma escola de samba tradicional, como a Velha
Guarda da Portela, seja de discos de outros artistas, como
Carlinhos Brown no disco Omelete Man.1
O baiano Carlinhos Brown fascina pela exibição atléti-
ca da sua percussão, que perpassa inclusive suas letras, esco-
lhidas mais pela sonoridade do que pela semântica. Sua tra-
jetória se inicia na percussão de rua, relacionada à cultura de
carnaval, dos trios elétricos e da axé music. Mais uma perna
de sustentação de Carlinhos está inscrita no próprio nome
artístico: a influência de James Brown, apontando a prefe-
rência pelo soul/funk e pelo uso do corpo como instrumen-
to performático. A outra base do tripé é a tradição musical
relacionada a Ogun, orixá africano do ferro cultuado em
Candeal Pequeno, território onde Carlinhos nasceu e cres-
ceu. Foi lá que, em 1992, o artista criou a banda Timbalada,
um grupo com mais de 100 percussionistas do bairro. São
vários os códigos musicais que se misturam. É funk, rap,
reggae, samba, rock e candomblé produzindo uma música
híbrida, ao mesmo tempo pop, globalizada e também muito
baiana. Em 1996 é lançado Alfagamabetizado (um jogo
com a palavra “alfabetizado” e o primeiro e o último caracter
do grego,“alfa” e “gama”), um disco bem recebido pela crítica
e pelo público. Ainda no mesmo ano é criada uma escola
profissional para músicos de rua. Além da escola e da
Foto: Mario Thompson

Timbalada, Carlinhos patrocina também uma banda de


percussão feminina, chamada Bolacha Maria, e outra banda
Lenine
infantil, a Lactomania.
O pernambucano Chico Science se destaca mas não é
122
enquanto manifesto (Caranguejos com Cérebro, publicado
No século XIX em 1992) conceitua o Manguebeat (a lama fértil e viva dos
mangues potencializada pelos bits da cibernética). A sono-
a polca empresta ridade emergente, a batida do mangue (Manguebeat) no
entanto não é única, como mostram os trabalhos das ban-
das Mundo Livre S.A. e Mestre Ambrósio, outros grupos
a forma de dança relacionados ao movimento.
São muitos ritmos, tradicionais e importados, locais e
agitada em pares transnacionais. Nessa cena globalizada onde fica a especifi-
cidade da música brasileira? A questão sugere uma reflexão
sobre essa trajetória, com influências e adaptações de músi-
enlaçados à ca estrangeira e, também, com a articulação de uma lingua-
gem musical muito particular. O aspecto rítmico é sem
tradição da dúvida o elemento mais marcante dessa discussão. Mas o
ritmo é muito mais que uma seqüência de durações organi-
zadas num motivo, reconhecível aqui e ali. Existem aspectos
dança de pares rítmicos muito sutis na música popular brasileira, responsá-
veis por seu “molho” e sua “ginga”. Esse estilo brasileiro de
soltos do lundu. fazer música foi construído num longo processo histórico
de contatos, empréstimos e trocas entre gêneros brasileiros
e estrangeiros.
No século XIX a polca empresta a forma de dança agi-
tada em pares enlaçados à tradição da dança de pares soltos
do lundu. Os ritmos que acompanhavam o lundu eram os
ritmos entrelaçados dos tambores de origem africana. Cada
bailarino do par desafiante podia fazer uma coreografia
individual e livre no lundu. A polca de compasso e coreogra-
fia sincronizados e regulares é rearticulada na nova dança
único dentre vários representantes do movimento musical que surge, o maxixe. Dança que estilizada na primeira déca-
pulsante que surge da região dos mangues de Recife. Com da do século XX pelo dançarino Duque nos salões de Paris,
uma passagem pelo hip hop e rock pós-punk o grupo de se espalha a outros países latino-americanos. No Brasil,
Chico Science se junta a outros músicos de samba-reggae muita música chamada de polca nessa época era na realida-
formando a banda Chico Science & Nação Zumbi. O de maxixe. Por trás dos primeiros sambas gravados também
segundo trabalho gravado do grupo, Afrociberdelia (1996) se escondia a nova dança.
mostra bem o tipo de mistura que se tornou típica dos O samba se consolida como gênero comercial na déca-
representantes do movimento (rap, música eletrônica, rock da de 1930, numa cristalização que só seria contestada
e gêneros tradicionais de Pernambuco, tais como maracatu, cerca de 30 anos depois. É quando o jazz empresta suas har-
coco, ciranda, etc.). Não é sem razão que Chico Science e monias de acordes alterados à renovação do samba,
Nação Zumbi colocam três versões do original de Jorge empreendida pela bossa nova. Na segunda metade do sécu-
Mautner e Nelson Jacobina, “Maracatu Atômico” no CD lo, o rock, com o som de suas guitarras contribui para a
mencionado. Maracatu pela relação com o local, o mangue; emancipação da música popular de suas raízes tradicionais,
atômico pela referência à cultura pop global. O movimento através do curto mas influente movimento da Tropicália.
123
Nenhum desses empréstimos, no entanto, interfere no
“sotaque” musical do samba, da Bossa Nova e de outras
manifestações da chamada MPB, em especial no que se
conhece como “divisão”, ou seja, na maneira de distribuir as
notas entre melodia e acompanhamento, uma divisão que
nem sempre respeita os tempos fortes do compasso. Na
canção, o uso dessa maneira frouxa de sincronizar permite
adequar o sistema de acentuações do português, que é irre-
gular, à regularidade métrica dos compassos musicais. Esse
aspecto rítmico, que chamo de “métrica derramada” distin-
gue o estilo “brasileiro” na performance de vários gêneros de
música popular (Ulhôa 1999).
O musicólogo Mário de Andrade comenta num estu-
do sobre o lundu, escrito em 1928, sobre essa liberdade rít-
mica que aparece não só no gênero mas também em cocos,
emboladas e desafios da música tradicional nordestina. São
formas de metro livre e o que ele chamou de “processos silá-
bicos e fantasistas de recitativo” (Andrade 1976: 80). O
mestre está se referindo aos padrões de acentuação da lín-
gua falada, que carregam para o canto popular tradicional
seu ritmo oratório. Essa métrica livre está muito presente
nas incursões do pessoal do Manguebeat, assim como a
métrica derramada é típica do samba e derivados.
Novos gêneros musicais se formam a partir da ação
deliberada de músicos ao privilegiar determinadas manifes-
tações melódicas, rítmicas, tímbricas e harmônicas. São
práticas musicais, por seu lado fundadas e fundidas a práti-
cas sociais histórica e geograficamente específicas. Um
exemplo da ação desses agentes é a versão da já mencionada
polca pelos músicos de choro no final do século XIX.
Introduzida no Brasil em 1845, a polca tem um papel
importante na formação de gêneros urbanos no Rio de
Janeiro, centro cultural da época. Apesar de utilizar essa
denominação até os primeiros decênios do século XX, essa
dança boêmia em compasso binário de forte acentuação
tética – com ênfase no primeiro tempo dos compassos – é
altamente estilizada na performance pelos músicos popula-
res cariocas de choro. Essa estilização ocorre também, e
Foto: Mario Thompson

principalmente, na dança de pares enlaçados que adapta o


estilo de desafio coreográfico individual do lundu à quadra-
tura da dança de salão. Essa adaptação, como mencionado Zeca Baleiro
acima, vai contribuir para a criação do maxixe, dança e
124
Outro aspecto peculiar se relaciona à sincronização
O rock não foi entre as partes musicais, novamente precisa no modelo
europeu e maleável no caso brasileiro. Como comento em
abrasileirado relação à métrica derramada, os próprios limites do com-
passo são flexibilizados na performance dos sambas.
Nessas canções o número de sílabas do verso e seu padrão
como a polca, pois de acentuação nem sempre coincidem com o número de
tempos e localização de acento do compasso musical. Essa
foi introduzido independência entre melodia e acompanhamento aparece
nas partituras sob a forma de síncopes internas e em anteci-
pações do tempo forte atravessando a linha imaginária dos
num espaço onde compassos.1 Ou seja, nesses casos a música segue a lógica
européia do metro binário, mas a estrutura do compasso é
já estavam reinterpretada, não pela oposição, fazendo algo completa-
mente diferente, mas pela “assimilação da diferença”. 2
Os gêneros musicais “estrangeiros” são abrasileirados, se
definidos os não na sua forma, no seu conteúdo. Foi assim com a polca,
com o fox, com o bolero, com o jazz, mesmo com o rock, ou
contornos de uma seja, se afirma a identidade pela mistura e pela sutileza ao
lidar com o outro. Talvez por isso a música brasileira popu-
lar exerça um certo fascínio também para ouvintes das mais
produção nacional. diversas procedências culturais.
Se no século XIX a polca tem um papel importante
para a formação de gêneros de música urbana brasileiros, no
século XX é o rock que vai ser central para a modernização
da música popular. Essa modernização é assinalada pela
atuação de grupos que funcionam como verdadeira van-
guarda em seus campos de produção específicos. De um
depois canção que aparece muitas vezes sob o nome de lado, e num primeiro momento, a Jovem Guarda, liderada
polca ou tango, e que será o precursor do samba. por Roberto Carlos, modelo para a produção musical de
Chama a atenção em especial o aspecto rítmico desse ampla aceitação popular e sucesso comercial. De outro, a
processo de incorporação, no qual a métrica angular da Tropicália capitaneada entre outros por Caetano Veloso,
polca, em contato com outros ritmos, como a habanera cari- modelo de produção preocupada com originalidade e ela-
benha e o lundu foi flexibilizada. Um dos aspectos dessa fle- boração artística. Para ambos os campos, os Beatles são
xibilização é a estrutura de tempos fortes e fracos do com- fonte de inspiração musical: para a Jovem Guarda o rock
passo, que permanece binário, como no modelo europeu, adolescente iê-iê-iê (uma clara alusão à canção She loves
mas com o tempo forte deslocado do primeiro para o you); para a Tropicália a experimentação pós album
segundo tempo, como aparece mais tarde no samba. Esse Revolver.
deslocamento do tempo forte é bastante óbvio no samba- O rock não foi abrasileirado como a polca, pois foi
enredo, sendo enfatizado pelo toque do surdo de primeira, introduzido num espaço onde já estavam definidos os con-
o tambor maior e mais potente da orquestra de percussão tornos de uma produção nacional. O uso da guitarra elétri-
(bateria) que integra os desfiles da escola de samba. ca foi inclusive questionado pelo segmento da juventude
125
universitária engajada com a crítica social na época (década
de 1960). O uso de elementos do rock pelos tropicalistas, Com a abertura
eles próprios membros dessa comunidade, representou um
gesto de auto-crítica, inclusive do samba como o único
representante legítimo de brasilidade. A partir da
política e eleições
Tropicália, os cancionistas MPB iriam incorporar gêneros
os mais variados ao seu repertório, não somente de outras presidenciais em
origens regionais (como o baião nordestino), mas também
estrangeiros (como o reggae jamaicano). Nesse cenário a
Jovem Guarda foi considerada como “alienada” dos proble-
meados da década
mas sociais e políticos do país sob ditadura militar. Nas
décadas de 1960 e 1970, o uso de gêneros musicais específi- de 1980 a ligação
cos por certos compositores desse segmento (como Chico
Buarque de Hollanda ao compor sambas) tinha uma cono-
tação de protesto.
com algum tipo de
Com a abertura política e eleições presidenciais em
meados da década de 1980 essa ligação com algum tipo de raízes étnicas
raízes étnicas como índice crítico se esgota. O apelo à iden-
tidade nacional se dá no âmbito do próprio rock, agora
reconhecido como Rock Brasileiro. Uma canção emblemá-
como índice
tica dos anos 80 é Faroeste Caboclo do grupo Legião
Urbana (EMI, 1987), que utiliza várias texturas de rock crítico se esgota.
como trilha sonora para narrar a trajetória de um jovem
nordestino que vai para a capital federal (Brasília) para se
apaixonar, se envolver com a violência urbana e morrer em
frente às câmeras da televisão. O elemento de identificação
étnica e cultural é bastante sutil, pois sonoramente a canção
não teria nada de particularmente “brasileiro” a não ser pelo
uso do português. Pois é exatamente esse uso da língua por- ser na pouca ênfase para os tempos fortes de cada compas-
tuguesa que quero continuar a explorar. so, uma vez que as frases longas de notas repetidas ou com
Faroeste Caboclo já foi comparado pelo crítico de rock intervalos de âmbito muito curto produzem um resultado
Artur Dapieve a Hurricane de Bob Dylan. De fato, as sonoro de caráter horizontal e sem acentos métricos. Isso é
semelhanças são muitas, entre elas o tema, narrando uma diferente do samba que é claramente binário, mas também
trajetória heróica e o contorno melódico próximo da fala. diferente do rock em inglês. Esse rítmo prosódico é aquele
No entanto, o modelo prosódico não é o do folk-rock nor- observado por Mário de Andrade, como comentado acima.
teamericano, mas o da tradição brasileira conhecida como Certos padrões rítmicos básicos distinguem a maioria
repente. Como menciona o próprio autor de Faroeste dos gêneros musicais difundidos pela mídia internacional.
Caboclo, Renato Russo, em várias entrevistas, a canção foi Um exemplo disso são os teclados eletrônicos para uso
fácil de compor por usar o estilo declamatório de métrica caseiro, que fornecem ao usuário um conjunto dos padrões
livre típico dos desafios improvisados e cocos tradicionais mais comuns na música pop (tais como rock, valsa, Bossa
do nordeste brasileiro. Nesse estilo de canto declamado, o Nova, bolero, balada, reggae, salsa, entre outros). Essas sim-
repente, não observo a questão da métrica derramada, a não plificações estereotipadas não substituem, no entanto, o
126
vigor e excitação de uma performance criativa, onde o músi-
co interfere na construção da base ritmico/harmônica. Isso
porque a máquina não consegue simular as indetermina-
ções rítmicas próprias do discurso musical. E esse discurso
musical pressupõe uma competência musical específica,
uma familiaridade com normas gramaticais culturalmente
determinadas.
Para ficar somente com um exemplo, basta pensar na
Bossa Nova, que soa “pasteurizada” quando tocada nos
teclados eletrônicos com a base rítmica predeterminada.
Ou que soa artificial e “dura” quando tocada por músicos
não familiarizados com a “ginga” brasileira. E esse elemento
sutil está, a meu ver, intimamente relacionado ao ritmo da
linguagem falada que se insere na prática musical.
O português brasileiro, como muitas outras línguas,
usa o acento silábico como um meio de identificação fono-
lógica. Um exemplo típico pode ser a palavra de três sílabas
cujo significado modifica dependendo da localização da
sílaba tônica: “sabiá” (o pássaro), cujo acento cai na última
sílaba;“sabia”(passado do verbo saber), acentuado na penúl-
tima sílaba; e “sábia” (pessoa possuidora de sabedoria), com
ênfase na antepenúltima sílaba. Um número grande das
palavras em português está na segunda categoria, ou seja,
com acentuação na penúltima sílaba. Como adequar essa
tendência à métrica musical ocidental, cujos compassos se
iniciam com um tempo forte? Simples, é só iniciar a canção
antes do primeiro tempo do compasso.3 Ou seja, a mesma
maneira de acentuar deslocada mencionada acima e que
caracteriza o samba, estando também presente de uma
maneira sutil na Bossa Nova.
Na performance de certos cantos, a linha melódica
existe quase independente do tecido sonoro acompanhante.
Esse é o caso dos gêneros estudados por Mário de Andrade
e, de certa maneira também, do rap que, como o próprio
nome diz, é poesia recitada sobre uma base ritmica. Mas
uma coisa é a métrica da língua inglesa, como aparece no
rap norte-americano, outra é a métrica da língua portugue-
sa como pronunciada no Brasil.
Foto: Mario Thompson

A prosódia usada no Brasil é silábica, os versos sendo


especificados pelo seu número de sílabas (de uma a doze,
Zélia Duncam geralmente, contadas até a última sílaba acentuada); cada
tipo de verso tem um número fixo de sílabas, delimitados
127
pelo acento tônico final. Embora cada palavra possa ter suas
sílabas tônicas e átonas, é a lógica da sentença que prevale- O rap é
ce. Dependendo da sua localização num verso ou frase, uma
palavra ou sílaba acentuada pode ter seu acento negligencia-
do, ou variar em termos de limites silábicos. Ou seja, agru-
introduzido no
pamentos ritmicos são variados, formando frases de tama-
nho e estrutura métricas diferentes. Brasil por
É interessante notar que, em certas línguas européias,
como no inglês, os padrões de acentuação são isócronos,
isto é, usam uma mesma quantidade de tempo entre uma
equipes de baile
sílaba e outra acentuadas. Portanto, pelo menos no caso da
língua inglesa, a métrica parece ser organizada em “compas- soul e se
sos”regulares. Quando Chico Science canta um hip hop em
português, como na música “Etnia”, do disco Afrociberdélia,
usa a divisão métrica livre da tradição nordestina, e dessa
desenvolve
maneira transforma e recria o gênero pela absorção parcial
da diferença. sobretudo em
Uma sonoridade absolutamente nova aparece com o
rap, especialmente o paulista, que imprime nas suas letras
em português a regularidade própria da língua norte-ame-
São Paulo.
ricana. Suas bases ritmicas são também construídas de uma
maneira radicalmente diferente do que aparece na MPB.
Em vez da criação de um tecido sonoro composto pela inte-
ração entre os instrumentistas, o aproveitamento de “sobras”
dos samplers pirateados numa colagem mecânica. Em vez
do contorno melódico fluido do canto o metralhar áspero ção independente de 1998 que vendeu mais de um milhão
do texto recitado. de cópias.
O rap é introduzido no Brasil por equipes de baile Mas é sobretudo na métrica que o rap paulista se dis-
soul e se desenvolve sobretudo em São Paulo. As letras são tingue da produção de MPB dominante. O rap contrasta
declamadas sobre bases tiradas de discos de funk e even- com a tradição da métrica derramada ao imprimir às pro-
tuais scratches. A partir do final dos anos 80, rappers sur- duções em português o padrão de acentuação isócrona do
gem em todo país (Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, inglês, e se apresenta como um elemento estranho às for-
Belo Horizonte, Recife) mas São Paulo permanece como mas de expressão musical consolidadas. O rap contrasta
o centro de uma produção independente do gênero. O inclusive com as tradições de cantos recitados nordestinos,
grupo mais conhecido de rap, os Racionais MCs despe- de divisão silábica mas sem padrões regulares de acentua-
jam sobre essas bases um discurso denunciador da condi- ção. Por isso a constatação de que o rap se coloca à margem
ção do jovem negro e pobre dos bairros marginalizados de da MPB. Os rappers se colocam em oposição ao “brasileiro”
São Paulo. Conquistam um público expressivo para seus da música popular e tentam construir para o gênero um
shows (alguns com cerca de 10.000 pessoas) e empreen- espaço com suas próprias normas de funcionamento.
dem campanhas de conscientização da juventude sobre No entanto, na terra do manguebeat o rap tem sido
temas como drogas, violência policial e racismo. Seu disco incorporado e integrado a sonoridades e gingas locais.
mais importante é Sobrevivendo no Inferno, uma produ- Grupos como Faces do Subúrbio declamam letras no ritmo
128
Foto: Mario Thompson
dos desafios de embolada por sobre bases utilizando per-
cussão de pandeiro, instrumento tradicional. No Rio de
Janeiro, MV Bill, o rapper de maior expressão grava com
músicos de samba. Ou seja, raízes continuam a se misturar
com tendências estrangeiras reinventadas e novos nomes
surgem para revigorar o velho som da música popular. De
Marisa Monte ao rap é o Brasil que canta e dança seu ritmo
plural e original.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Andrade, Mário de. “Lundu do escravo” [1928]. In Música doce
Música. 2 ed. São Paulo: Livraria Martins Editora; Brasília: INL, 1976, p.
74-80.
Hollanda, Heloisa Buarque de.“The law of the cannibal or How to
deal with the idea of “difference” in Brazil” http://acd.ufrj.br/pacc/litera-
ria/paper1helo.html [1998, com consulta em 03/09/2002]
Sandroni, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no
Rio de Janeiro (1917-1933) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Editora
UFRJ, 2001.
Ulhôa, Martha Tupinambá de. “Métrica Derramada: prosódia
musical na Canção Brasileira Popular “ Brasiliana 2 (maio de 1999):
48-56.
NOTAS
1
O leitor pode encontrar exemplos de métrica derramada (com o
nome de “contrametricidade”) em transcrições de gravações de sambas no
estudo de Carlos Sandroni (2002).
2
O termo é de Heloisa Buarque de Hollanda (1998), para caracte-
rizar essa preferência pela absorção constante, apesar de parcial da dife-
rença nos discursos de identidade no Brasil.
3
É o fenômeno conhecido em música como “anacruse”, ou seja, a
frase musical começa antes e termina depois do primeiro tempo do
compasso.

Martha Tupinambá de Ulhôa é professora titular de musicologia do


Instituto Villa Lobos e do Programa de Pós-Doutorado em Música na
Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO). Primeira secretária da
ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música) e Vice-presidente da IASPM-LA (Associação Latino-
Nação Zumbi
Americana de Estudos da Música Popular). Como pesquisadora do
CNPq tem se dedicado ao estudo da música brasileira popular.
129
Mauro Ferreira

A contemporaneidade
da música
brasileira
Fruto da semente tropicalista plantada em 1968, em
movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, a
Olodum se fundiram com a batida do reggae e criaram o
samba-reggae, ritmo que é a célula-máter da música generica-
música brasileira contemporânea tem hoje sotaque planetá- mente rotulada como axé-music. Analisada com preconceito
rio. Referência mundial de padrão estético desde que a Bossa dentro de seu próprio país de origem, por ser produto da ins-
Nova agregou ao samba elementos do jazz, a partir de 1958, piração de compositores negros, a axé-music teve sua força
a música brasileira interage cada vez mais com os sons univer- diluída no Brasil pela indústria fonográfica – que desgastou o
sais sem perder as suas características básicas. João Gilberto repertório dos compositores baianos em sucessivos e deslei-
voltou ao Carnegie Hall, em junho, para celebrar os 40 anos xados discos ao vivo – mas seu ritmo impera nas ladeiras da
do célebre concerto que popularizou naquele palco america- Bahia e o som de seus tambores ecoa nos quatro cantos do
no, em escala mundial, a velha bossa, mas a MPB – sigla Mundo. Astros como Paul Simon e Michael Jackson já
que carimba a produção fonográfica nacional desde os anos recrutaram o batuque do Olodum. E Daniela Mercury – a
60 – já representa aos olhos do Mundo muito mais do que o cantora que propagou com mais ênfase a música baiana a
samba sincopado de João Gilberto, Tom Jobim e Cia. partir dos anos 90 – desenvolve sólida e progressiva carreira
Terra natal de João Gilberto, a Bahia é também o maior internacional.
celeiro dessa interação da música brasileira contemporânea A Bahia ainda dá as cartas no mercado nacional – se
com o Mundo. Foi lá que o batuque de blocos afro como levada em conta a origem de ícones da MPB como Caetano
Foto: Mario Thompson

Martinho da Vila
130
Veloso, Gilberto Gil e João Gilberto, além do sucesso popu- Recife foi revitalizada, com o aparecimento de muitas bandas
lar dos intérpretes de axé-music, como a cantora Ivete e repercussão em todo o Brasil e até no exterior.
Sangalo – mas o sotaque planetário da música brasileira se Fenômeno semelhante ao de Pernambuco, mas ainda
faz ouvir em cada canto do Brasil. No Recife, o falecido restrito ao Espírito Santo, aconteceu mais recentemente em
Chico Science fez história nos anos 90 quando, a bordo de Vitória, a capital do Estado. O grupo Casaca arrasta multi-
seu grupo, a Nação Zumbi, reprocessou o maracatu, ritmo dões estimadas em 30 mil pessoas para ver seus shows. A
nativo, com linguagem pop. Nascia o Mangue Beat, ou receita, no caso, é tocar o congo (tradicional ritmo capixaba)
Mangue Bit, como também é chamado o movimento mais com a mesma linguagem pop com que Chico Science deu
influente da música brasileira na última década. A reboque um banho de loja no maracatu. Atenta ao fenômeno capixa-
do sucesso de Science, outros grupos aprofundaram a sua ba, a gravadora multinacional Sony Music contratou o grupo
receita – caso do Mundo Livre S/A – e a cena musical do

Chico César

Ilustração sobre foto de Mario Thompson

131
Casaca e está lançando em escala nacional o segundo disco da Chico Science
banda, na esperança de projetar a versão pop do congo em
todo o Brasil. Enquanto isso, o Maranhão se torna a Jamaica
nacional e de lá exporta o reggae de grupos como Tribo de Jah.
Por conta desses fenômenos locais, segmentação e plu-
ralidade se tornaram as palavras-chaves da música brasileira
contemporânea. O mercado musical trabalha hoje com dife-
rentes fatias de público. Se o samba ainda dá o tom nos quin-
tais do Rio de Janeiro, com muita repercussão nos pagodes
arrmados em São Paulo, a música gaúcha continua restrita
ao Rio Grande do Sul, Estado caracterizado pela autosufi-

132
ciência e independência do seu mercado local. E é essa plura-
lidade permite o aparecimento de compositores como o
paraibano Chico César e o pernambucano Lenine. Ambos
temperam as matrizes dos ritmos nordestinos com molho
pop eletrônico e, não por acaso, Chico César e Lenine são
dois dos artistas mais bem-sucedidos no exterior. Também
faz sucesso no exterior uma cantora carioca que soube como
ninguém soar universal cantando samba, balada, pop e qual-
quer ritmo. Seu nome? Marisa Monte, uma das campeãs de
vendas no mercado fonográfico brasileiro.
Na ala pop, fortalecida no mercado contemporâneo
desde 1982, quando o estouro da Blitz abriu o mercado para
o rock nacional, a repercussão externa é bem menor. Talvez
pelo fato de a maioria dos grupos reproduzir em seu som a
estética universal do rock. Mas é inegável a importância na
cena nacional de grupos como Titãs, Barão Vermelho e
Paralamas do Sucesso, esta a primeira banda a mesclar ritmos
brasileiros com reggae e rock, já em 1986.
Os grupos de rock desempenharam, a partir dos anos
80, o papel revolucionário feito pela estupenda geração reve-
lada nos anos 60, quando despontaram nomes como Chico
Ilustração sobre foto de Mario Thompson

Buarque, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Milton Nascimento


(estrela quase solitária no céu mineiro), Martinho da Vila e os
já citados Caetano e Gil. Hoje, estes compositores produzem
de forma menos profícua e, não raro, dedicam-se a projetos
revisionistas, mas é essencial a importância deles para a cons-
trução e solidificação da música brasileira contemporânea.
Aos olhos do Mundo, o Brasil é cada vez mais reconheci-
do pela sua produção nacional. E este reconhecimento já não
se limita ao visual exótico de Carmen Miranda ou à batida da
Bossa Nova, que bebeu nas águas do jazz americano e, por
isso, foi rapidamente assimilada nos Estados Unidos.A músi-
ca brasileira contemporânea hoje tem identidade própria e, ao
incorporar sotaque pop, esta rica música nacional, longe de se
diluir, fica cada vez mais forte para conquistar o mundo.

Mauro Ferreira, 37 anos, é jornalista, crítico e pesquisador musical.


Atua no mercado desde 1987. Foi repórter e crítico de MPB do jornal
carioca O Globo de 1989 a 1997, ano em que foi convidado a ingressar
no jornal carioca O DIA, onde assina até hoje a coluna Estúdio, sobre
novidades do meio musical. Paralelamente, Mauro faz críticas de discos
para a revista IstoÉGente, de circulação nacional.
133
tr o
Max de Cas
Sérgio Martins

Perspectivas
para a nova MPB

3
Foto: Prensa
"Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada."
Brasil Pandeiro, canção que o compositor Assis Valente
(1911-1958) escreveu na década de 40, previu que a Música
Popular Brasileira possuía vibração e malemolências para
seduzir não apenas os Estados Unidos como tam- Si m on in ha
bém outros países. Valente não estava errado: desde
os tempos de Carmen Miranda (que, por ironia do
destino, se recusou a gravar Brasil Pandeiro), exporta-
mos da sonoridade cool da bossa nova, dos vocais sus-
surrantes de João Gilberto e Tom Jobim ao heavy
metal tribalista de Sepultura e Max Cavalera; as ino-
vações sonoras de Tom Zé e Caetano Veloso às expe-
riências de Bossa Nova com música eletrônica de Bebel
Gilberto – filha e herdeira musical de João Gilberto.
Foto: Mario Thompson

O Brasil, no entanto, possui mais ritmos, gêneros


musicais e artistas para mostrar para o resto do mundo.
Apesar de serem rotulados como world music, essa
nova geração de popstars pode ser apreciada por pes-
soas nos Estados Unidos, Mongólia, Tanzânia – e nin-
guém poderá dizer que eles são brasileiros a não ser pelas
batidas maravilhosas e a ginga das canções que estão sendo Otto
executadas. Muitos desses artistas são razoavelmente conhe-
cidos pelo público internacional. É o caso da diva Marisa
Monte, cujos álbuns venderam mais de cinco milhões de
Thompson

cópias no Brasil. Alguns críticos internacionais podem rotu-


lá-la como "exótica" ou "folclórica", mas Marisa Monte é uma
Foto: Mario

cantora excepcional e sabe escavar algumas das pérolas de


artistas veteranos do samba.
É impossível não se emocionar com as releituras dela
para as canções de Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola,
além do belo álbum de Argemiro Patrocínio (integrante da
134
R it a R ib e ir o
Velha Guarda da Portela, cujo disco de estréia foi produzido
por Monte). A cantora carioca mistura com propriedade
ingredientes como beleza, carisma, talento e marketing.
Marisa Monte é apenas uma das enormes revoluções musi-
cais que têm acontecido no Brasil nos últimos anos. A come-
çar pela música pop, que passou por sensíveis mudanças
ompson

desde a década de 60. A Jovem Guarda, primeiro grande


Foto: Mario Th

movimento musical adolescente, se esmerou em traduzir as


canções de bandas inglesas e americanas da época.
Nos anos 70, artistas do quilate de Tim Maia, Raul
Seixas e Novos Baianos misturaram a linguagem internacio-
nal (soul music, rock) com ritmos brasileiros. Outros adeptos
J a ir d e O dessa macumba sonora são sucesso até hoje. O Trio Mocotó,
li v e ir a
que acompanhou Jorge Ben no início da carreira,
colhe louros pelo recém-lançado Samba Rock. Boa
parte dos shows atuais do grupo são em águas inter-
nacionais. Como por exemplo no Womad, festival
organizado pelo cantor inglês Peter Gabriel e que
reúne os artistas que realmente valem a pena serem
conhecidos pelos adeptos da world music. A receita
foi aprimorada na década seguinte pelo grupo
Paralamas do Sucesso em discos como Selvagem?, de
1986. Os artistas brasileiros de hoje adicionaram outro
elemento a essa salada sonora: a sofisticação.
on
io Thomps

O desenvolvimento das técnicas de estúdio e a cria-


tividade dos nossos músicos nos coloca numa posição a
Foto: Mar

quilômetros de distância do exótico. "Se eu quiser vatapá,


eu vou para o Brasil. Se tiver de comer hambúrguer, fico
nos Estados Unidos mesmo", declarou certa vez Jon
Pareles, crítico do jornal americano New York Times e brasi-
M e ll o
L u c ia n a lianista de primeira hora. Certamente mister Pareles está
tendo de mudar de opinião, face às brilhantes bandas de rock
brasileiras. O quarteto mineiro Pato Fu, por exemplo, foi
incluído numa edição internacional da revista americana
Time no ano passado como uma das dez bandas surgidas
fora dos Estados Unidos e que merecem audição imediata. A
lista é engrossada por pesos-pesados do quilate de
Radiohead e Portishead, grupos de alta rotação no mercado
de música internacional. Os discos do Pato Fu, por sinal, esta-
rão sendo lançados nos Estados Unidos e na Europa ainda
sa 3
Foto: Pren

este ano. No início da década passada, o estado de


Pernambuco nos presenteou com o manguebit, uma colagem
135
de heavy metal, punk, música eletrônica e os tambores toni- punk" sobre os problemas sociais de Recife.
truantes do maracatu. A revolução foi iniciada por Chico O Mundo Livre S/A. gerou também Otto, ex-percus-
Science & Nação Zumbi, que lançou dois grandes discos e sionista do combo, que tem recebido aclamações da impren-
excursionou por diversos países da Europa. Em 1997, sa internacional. Seu álbum de remixes, Changez Tout, foi
Science morreu num desastre automobilístico. Mas a Nação eleito como um dos melhores discos do ano passado pelo
Zumbi continua ativa, lançando álbuns como Radio New York Times. Do Recife há de se louvar também artistas
S.AM.B.A, que recebeu loas do crítico americano Ben como Lenine, Mestre Ambrósio e o DJ Dolores, que tratou
Ratliff. "Se eles lançassem seus álbuns por qualquer selo de de "eletronizar" a música do Recife. A Belo Horizonte que
heavy metal americano, conquistariam o mundo", declarou. gerou o Clube da Esquina de Milton Nascimento e mais
O alter ego da Nação Zumbi é o Mundo Livre S/A. Eles adiante o Pato Fu também é responsável por uma boa revo-
são liderados por Fred 04 (que tem este apelido porque usa lução pop. O quinteto Skank foi um dos grandes sucessos da
óculos, ou seja, é "quatro olhos") e mistura punk rock e Jorge música pop dos últimos anos. Venderam mais de 4,5
Ben. Fred escreve letras sensacionais, perfeitos "sambas milhões de cópias com uma sonoridade deliciosa, que mistu-
ra ritmos jamaicanos com o folclore do estado de Minas
Gerais. Hoje eles estão voltados para o rock. O Pato Fu é
mais criativo. Os vocais de Fernanda Takai podem ser defi-
nidos como uma espécie de "Astrud Gilberto" da música
pop. A música do grupo foge de rótulos. Varia entre heavy
metal, pop e um tanto de MPB. Outro talento surgido
desse estado é o Berimbrown. Eles se definem como
"congopop" e misturam música negra norte-america-
na com tambores de Minas Gerais. O Rio de Janeiro,
por seu turno, também contribuiu com grandes ban-
das. O Rappa começou na década passada como um
a grupo de reggae, mas hoje faz de tudo um pouco: reggae,
Pa u la L im
música eletrônica, samba e afins. São bastante conheci-
dos pelo seu trabalho à frente de comunidade pobres do
Fotos: Mario Thompson

Rio de Janeiro.
O grande talento da música brasileira dos últimos
anos, no entanto, vem de São Paulo. Max de Castro, 30
anos, foi aclamado na mesma edição da revista Time que
aclamou o Pato Fu. Só que o cantor e guitarrista apare-
D a n ie l C ceu na capa, dividindo o
a r lo s M a espaço com a colombia-
gno
na Shakira e a islandesa
Bjork. Max de Castro
tem dois discos no mer-
cado (Samba Raro e
Orchestra Klaxon) que
são o fino da música
brasileira. As compo-
sições dele agregam
136 no
Pe d ro M a r ia
samba, ritmos eletrônicos, bossa nova e soul music que des influências. Nessa categoria, há de se louvar também o
encantaram os críticos americanos. Mais do que isso, Max investimento da Petrobrás no álbum Ouro Negro, tributo
de Castro reassume algumas tradições que andavam em ao maestro brasileiro Moacir Santos. Ele, que vive nos
falta na música brasileira. Como por exemplo, as melodias e Estados Unidos desde 1967, criou uma espécie de afo-
as harmonias. "Os movimentos musicais seguintes acaba- samba-jazz que tem deixado os americanos malucos. Ouro
ram por privilegiar a letra em detrimento do ritmo", atesta de Negro reuniu a nata da música instrumental brasileira
Castro. Isso não quer dizer que sua música seja "alienada" comandada pelo saxofonista Zé Nogueira e pelo violonis-
(para usar um discurso batido de certas facções da música ta Mario Adnet. Juntos, eles traduziram e recriaram as par-
brasileira). Max de Castro sabe falar de temas como discri- tituras originais de Moacir Santos num álbum duplo que
minação racial e problemas sociais com uma delicadeza que trouxe como convidados o pianista João Donato e os can-
faz qualquer brutucu do cinema americano se debulhar em tores Milton Nascimento, Joyce e Ed Motta. Ouro Negro
lágrimas. Max de Castro pertence à Trama, gravadora inde- também foi incluído na lista do New York Times como um
pendente brasileira que tem mudado o conceito de se fazer dos grandes álbuns do ano passado e freqüenta a prateleira
música no país. do trompetista americano Wynton Marsalis – que, mara-
Ao invés de optar pelos ritmos da moda, ela aposta em vilhado pela música de Moacir Santos, pensa até em
novos talentos da composição. "Queremos descobrir nos chamá-lo para uma parceria. O mesmo país caiu de joelhos
novos Chicos, Miltons e Caetanos", dispara João Marcello à frente de duas herdeiras da bossa nova. A primeira é
Bôscoli, presidente da companhia. Ao lado do empresário Bebel Gilberto. Seu álbum Tanto Tempo, lançado há dois
André Sjzaman, eles mostraram não apenas o talento de anos, é o disco brasileiro mais vendido no mercado ameri-
Max de Castro como Simoninha, irmão de Max de Castro. cano desde Getz/Gilberto, colaboração entre o saxofonis-
Simoninha tem um estilo diferente do irmão. Atua mais ta americano e João Gilberto na década de 60. Luciana
como um crooner, em canções que emulam soul music e Souza é filha do cantor Walter Santos, conterrâneo de João
baladas apaixonantes. O vocalista também atuou como dire- Gilberto (ambos nasceram na cidade baiana de Juazeiro) e
tor artístico da companhia e lançou o último disco do violo- que na década de 80 criou o selo de música instrumental
nista Baden Powell. A Trama tem revelado artistas com Som da Gente.
talento e sofisticação para ganhar o resto do mundo. São os As novas divas possuem trabalhos distintos. Bebel
casos de Jairzinho Oliveira e Luciana Mello, rebentos do Gilberto recria canções da bossa nova sob uma perspectiva
cantor Jair Rodrigues. Mello inclusive transferiu-se para eletrônica – sua versão de Samba da Benção (clássico de
major, a Universal. Outro talento da companhia é o cantor Baden Powell e Vinícius de Moraes) é magistral. Cai no gosto
Pedro Mariano, filho de Elis Regina e do pianista e arranja- do americano médio que adora ouvir uma canção relaxante
dor César Camargo Mariano, e uma das vozes mais doces após o trabalho. Luciana Souza é mais ousada e bastante res-
surgidas nos últimos anos no Brasil. Os artistas da Trama peitada entre o circuito de jazz. Sim, Assis Valente, Tio Sam
têm despertado interesse internacional. ainda está querendo conhecer a nossa batucada. Mas tem se
Os DJs Marky e Patife (ambos são do cast de música impressionado com a máquina de ritmos e criatividade da
eletrônica da companhia) são presença constante nas festas Música Popular Brasileira.
mais badaladas da Inglaterra e a Trama ainda fechou con-
trato com o cantor e compositor Ed Motta. A Trama abriu Sérgio Martins, 35 anos, é subeditor de Artes & Espetáculos da
espaço para que o público brasileiro se deliciasse com revista Veja. Passou também pela redação da BIZZ, uma das principais
outros artistas d’antanho. Nos últimos dois anos foram publicações musicais do Brasil, da revista Época e colaborou para os
relançadas obras-primas de astros do samba-jazz (o saxo- matutinos Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde.
fonista J.T. Meirelles e o baterista Edison Machado), que a Também escreveu um artigo sobre Música Popular Brasileira para a edi-
toda hora são citados por Max de Castro como suas gran- ção americana da revista Time.
137
Mana Kuniyasu

Olhares
Estrangeiros
Desde a segunda metade dos anos 90, A difusão em maior escala iniciou-se a
tenho presenciado cenas surpreendentes partir de 79, com o belo espetáculo de Elis
em shows de artistas brasileiros promovi- Regina e Hermeto Pascoal que entusiasma-
dos em Tóquio: a presença maciça de ram o público amante de jazz norte-ameri-
jovens japoneses, vestidos à maneira de seus cano, participando do Live Under the Sky
ídolos de dia a dia, muitas vezes importados realizado em Tóquio, a versão japonesa
de alguma parte do mundo. O público apa- compacta do Festival de Jazz de Montreux.
rentemente pouco tem a ver com a música e E a década seguinte foi fortemente marcada
a cultura brasileiras. Jovens do tipo rara- pela leva da MPB que enviou seus porta-
mente visto nesses shows durante a década vozes para mostrarem o trabalho, tais como
de oitenta, quando houve uma apresenta- Gal Costa, Djavan, Clara Nunes, João
ção intensiva da MPB em nosso mercado. Bosco, Joyce, Gilberto Gil, Milton
O primeiro encontro do Japão com a Nascimento, Ivan Lins e muitos outros. A
música brasileira teve lugar em remoto ano primeira e a única apresentação do maestro
de 1964, quando Sérgio Mendes e Nara Antônio Carlos Jobim teve lugar em 86. O
Leão excursionaram por aqui, fazendo terceiro e o último tour de Elizete Cardoso
parte de um show de moda patrocinado aconteceu em 87. No fim da década a pró-
por uma empresa privada, e dando abertu- pria leva se diversificava extendendo-se ao
Foto: Image Bank

ra ao posterior processo, lento mas firme, de pagode, o choro e o samba de velha guarda.
infiltração da bossa nova entre os japoneses. Uma das características desse período
138
em algum lugar, independentemente da capacidade dos
locais de show. As cadeiras nos teatros eram dos poucos bra-
sileiros residentes no Japão e dos japoneses um pouco mais
numerosos, amantes da música brasileira que acompanha-
vam com cuidado escassas notícias vindas do Brasil.
Porém, essa situação pouco estimulante para quem que-
ria que a música se difundisse em maior escala e naturalidade
sofreu mudanças a partir da última década. Hoje muitos
artistas e músicos brasileiros atraem para suas apresentações
uma massa de jovens com aparência roqueira, hip-hopper,
rapper, clubber e enfim, que não distinguem a música desses
artistas das demais importadas dos Estados Unidos, da euro-
pa ou de qualquer outra parte do mundo. E o público é, mui-
tas vezes, puramente japonês quando se trata de shows pro-
movidos por agentes japoneses. Isto é, há um relativo distan-
ciamento entre os canais de promoção dos shows, aqueles
desenvolvidos pelos japoneses e outros pelos dekasseguis, os
de difusão da música brasileira seria que o interesse do brasileiros de descendência japonesa que começaram a che-
público geral era mercadologicamente formado em cone- gar e residir no país após a época de economia de bulha, da
xão com algum outro fator adicional, de preferência trazido segunda metade dos 80 aos primeiros anos dos 90, formando
dos Estados Unidos, uma referência mais familiar para o grandes comunidades.
público. Assim, muitos artistas brasileiros chamaram a Várias explicações podem ser apontadas para essa
atenção inicial dos japoneses por terem trabalho de colabo- mudança do tipo de público nos shows promovidos pelos
ração com os músicos europeus ou norte-americanos, o agentes japoneses: a aproximação dos artistas e músicos japo-
fenômeno que, na verdade, já havia sido observado junto à neses aos elementos musicais brasileiros tal como no caso do
bossa nova dos anos 60, apresentada ao Japão pelas mãos cantor e compositor de rock Kazufumi Miyazawa; a maior
dos jazzistas previdentes. facilidade de acesso às informações culturais brasileiras possi-
Do jazz à música brasileira, rumou esse interesse do bilitada pela presença das comunidades brasileiras no país; e
público no decorrer dos anos. Ainda que sob o rótulo inevitá- o amadurecimento do mercado fonográfico japonês. Mas a
vel de “world music” que antecede a qualquer nome específico razão decisiva que trouxe a maior infiltração da música brasi-
de país, região, raça ou cultura, a procura por horizontes des- leira, seria a transformação da própria música que passou a
conhecidos de música sempre foi intensa até constituir uma ter a cara “planetária”, no sentido da afirmação do cantor e
massa apreciadora de elementos musicais tipicamente brasilei- compositor Lenine.
ros. Aliás, o interesse básico pela música brasileira dos japone- Os artistas da atual geração de ponta da música brasilei-
ses nunca tomou outra direção, o fato que explica sua relativa ra levam a vantagem de ser “antropofágica” de nascença.
indiferença em relação ao rock brasileiro oitentista, apesar da Absorvem diversos elementos, seja da música universal seja
intensidade com que ele se mostrava na terra de origem. da brasileira, e criam seus sons inteiramente originais, com
Nesse período, a platéia dos shows dos artistas da MPB maior naturalidade. Quem reconheceu a importância do
realizados nas grandes cidades do Japão era composta mais direito de ser assim vantagioso e lutou para garanti-lo foram
ou menos pelas mesmas pessoas. Era até interessante olhar os artistas mais velhos, principalmente do movimento tropi-
para o público e sempre encontrar alguns espectadores, e em calista que, por sua vez, também usufruiram do rico acervo
número não muito pequeno, com quem penso que já cruzei musical brasileiro até então constituído. E muitos deles, ativos
140
no cenário, continuam exercendo influências diretas para os
que estão a vir. Graças ao clima cultural do Brasil que se des-
carta do excesso de peso dado à diferença de idade ou de gera-
ção, o que se observa então é uma cadeia alimentar extrema-
mente complexa e rica na qual os agentes se influenciam entre
si, ou se devoram, pelo bom que cada um possui.
Por outro lado, existe a descentralização geográfico-eco-
nômica da função emissora da música no Brasil, que está con-
tribuindo para diversificar essa cadeia alimentar. As localida-
des anteriormente consideradas como culturalmente margi-
nais, tais como Salvador e Recife, se tornaram emissoras das
informações musicais formadas a partir da forte tradição
local. A música fornecida por essas cidades sem passagem
pelos grandes centros nacionais, o eixo Rio-São Paulo, chega
com mais frescor à mesa dos ouvintes do mundo inteiro à
espera de pratos novos. Esta tendência descentralizante con-
tinuará recebendo impulso, da expansão das redes locais e
internacionais de comunicação de alta velocidade. pops universais na sociedade japonesa, mais aberta para o
E o terceiro fator fortificante dessa cadeia alimentar é a mundo, onde se procura dar maior enfoque à individualidade
diversificação da criação no seio da música, como se vê nos e não à unidade, um valor tradicionalmente respeitado. O
casos do choro e samba tradicionais que, além de nunca mor- universo musical do ponto de vista deles, onde a música bra-
rerem. parecem estar rejuvenecidos por contar com os apre- sileira está sendo inserida, é livre de barreiras de gênero ou de
ciadores e seguidores surgidos nas novas gerações. A mesma movimento. Nele há apenas a exposição e a expansão de duas
coisa pode ser dita em relação aos veteranos da bossa nova das propriedades humanas, a criatividade e a espontaneidade,
retomando suas carreiras com novas gravações. que simplesmente entusiasmam as pessoas com seus traba-
Todos esses fenômenos ou tendências fornecem, juntos, lhos de variedade infindável.
o ambiente para a cohabitação das vertentes mais diversifica- E a face pluralista da música brasileira atual sem dúvida
das possíveis da música no Brasil. Ou seja, o livro de cardápio se apresenta como uma referência importante e preciosa, não
está repleto de pratos que podem satisfazer ouvintes de qual- apenas para nós japoneses mas também para todos que
quer gosto, tanto no interior do Brasil como no exterior. E vivem e amam a música neste planeta, por possuir força sufi-
ainda, há o espetacular fato de cada um desses pratos ser a ciente para procurar equilíbrio com a tendência de unifica-
especialidade de um determinado mestre. A era não está ção de valores que cada dia mais se intensifica em nome da
sendo regida por um movimento, como afirmam alguns globalização. Uma força que não pode ser exercida por qual-
músicos do Rio de Janeiro, a cidade onde a multiplicidade de quer cultura musical, uma vez que para isso é indispensável
vertentes parece ser mais nítida. ter a firmeza nos seus próprios valores constituintes, ou seja,
A ausência de um movimento centralizador no cenário a tradição. E a música brasileira tem isso e muito. Felizmente
musical brasileiro e a conseqüente diversidade e pluralismo para ela, e para nós ouvintes.
fazem com que nós, os ouvintes japoneses, lembremos de um
fato talvez ordinário para os outros povos: que o contexto Mana Kuniyasu - Nascida no Japão, residiu em São Paulo de 75 a
social, racial ou cultural é um elemento constituinte de indiví- 83, devido ao contrato de trabalho do pai. Formou-se em Ciências Sociais
duos e não de conjuntos de pessoas. Certamente é isso que pela Universidade de São Paulo e trabalha atualmente como jornalista,
atrai os jovens que nasceram e cresceram ouvindo o rock ou tradutora e intérprete em Tóquio.
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