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Educação Superior no Brasil –

10 Anos Pós-LDB
Organizador-geral e presidente da direção editorial:

Mariluce Bittar (UCDB)

Comitê Científico:

Afrânio Catani
Deise Mancebo (UERJ)
João Ferreira de Oliveira (UFG)
Maria de Lourdes Fávero (UFRJ/UCP)
Maria das Graças Medeiros Tavares (Ufal)
Maria do Carmo de Lacerda Peixoto (UFMG)
Marilia Morosini (PUC-RS)
Mariluce Bittar (UCDB)
Valdemar Sguissardi (Unimep)

Auxiliares de Pesquisa:

Carina Elisabeth Maciel de Almeida (UFMS/UCDB)


Suzanir Fernanda Maia (UCDB)
Valquiria Allis Nantes (UCDB)
Educação Superior no Brasil –
10 Anos Pós-LDB
Mariluce Bittar
João Ferreira de Oliveira
Marília Morosini
(Organizadores)

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)/


Grupo de Trabalho Políticas de Educação Superior

Brasília-DF
Inep
2008
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Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

Educação superior no Brasil - 10 anos pós-LDB / Mariluce Bittar, João Ferreira de Oliveira,
Marília Morosini (Organizadores). - Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira, 2008.
348 p.: il. – (Coleção Inep 70 anos, v. 2)

ISBN 978-85-86260-86-5

1. Educação superior. 2. Acesso à educação superior. 3. Política nacional da educação


superior. 4. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. I. Bittar, Mariluce. II. Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

CDU: 378(81)
Sumário
Apresentação ................................................................................................ 9
Mariluce Bittar, João Ferreira de Oliveira, Marília Costa Morosini

I. DESAFIOS DA EDUCAÇÃO E DA EDUCAÇÃO SUPERIOR


PÓS-LDB ....................................................................................... 15

1. Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB ............................................. 17


Carlos Roberto Jamil Cury

2. Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB:


da expansão à democratização ........................................................... 39
Dilvo Ristoff

II. A EDUCAÇÃO SUPERIOR EM DEBATE 10 ANOS PÓS-LDB ........... 51

A) Acesso .................................................................................................... 53

3. Reforma da Educação Superior:


o debate sobre a igualdade no acesso ............................................... 55
Deise Mancebo

4. Democratização do acesso e inclusão na educação superior


no Brasil .................................................................................................. 71
João Ferreira de Oliveira, Afrânio Mendes Catani, Ana Paula Hey,
Mário Luiz Neves de Azevedo
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

5. Ensino noturno e expansão do acesso


dos estudantes-trabalhadores à educação superior ....................... 89
Mariluce Bittar, Carina Elisabeth Maciel de Almeida, Tereza Christina
Mertens Aguiar Veloso

6. A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:


considerações a partir do caso da UFMG ....................................... 111
Maria do Carmo de Lacerda Peixoto, Mauro Mendes Braga

7. Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:


da intenção à realidade ..................................................................... 137
Otília Maria Lúcia Barbosa Seiffert, Salomão Mufarej Haje

B) Organização Acadêmica .................................................................... 163

8. Universidades e centros universitários pós-LDB/96:


tendências e questões ....................................................................... 165
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero, Stella Cecília Duarte
Segenreich

9. A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades ........................................................................... 183
Maria Estela Dal Pai Franco, Solange Maria Longhi

C) Formação ............................................................................................. 213

10. As mudanças no mundo do trabalho e a formação


dos profissionais da educação no contexto da LDB:
o currículo em questão ................................................................... 215
Arlete Camargo, Olgaíses Maués

11. Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN:


da predominância da ação profissionalizante ao alargamento
das condições de produção e socialização do conhecimento ... 235
Elcio Gusmão Verçosa, Maria das Graças Medeiros Tavares

D) Financiamento ................................................................................... 255

12. Financiamento da educação superior no Brasil:


gastos com as Ifes – de Fernando Collor
a Luiz Inácio Lula da Silva ............................................................. 257
Nelson Cardoso Amaral

E) Internacionalização ............................................................................ 283

13. Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:


o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas ........... 285
Marília Costa Morosini

6
F) Trabalho Docente ............................................................................... 305

14. Universidade, sociedade do conhecimento, educação:


o trabalho docente em questão ..................................................... 307
Maria das Graças Martins da Silva, Tânia Maria Beraldo

G) Reforma ............................................................................................... 327

15. Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique


Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização
da educação superior brasileira .................................................... 329
Vera Lúcia Jacob Chaves, Rosângela Novaes Lima, Luciene Miranda
Medeiros

7
Apresentação
Mariluce Bittar
João Ferreira de Oliveira
Marília Costa Morosini
Apresentação

Este livro resulta da realização do XII Seminário Nacional Universitas/


BR: Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB e Intercâmbio do
Grupo de Trabalho Políticas de Educação Superior da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), ocorrido nos dias 29
e 30 de novembro e 1° de dezembro de 2006, na Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande, com o objetivo de discutir, anali-
sar e avaliar o impacto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei nº 9.394/1996) na educação superior, na última década.
A aprovação da LDB, em 1996, constituiu-se em um marco históri-
co importante na educação brasileira, uma vez que esta lei reestruturou a
educação escolar, reformulando os diferentes níveis e modalidades da edu-
cação. Além disso, desencadeou um processo de implementação de refor-
mas, políticas e ações educacionais, na gestão do governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), tendo por base as transformações em cur-
so na sociedade contemporânea.
A LDB, aprovada em 1996, revogou a primeira LDB (Lei nº 4.024/
61), bem como a Lei n° 5.540/68, que instituiu a reforma universitária,
que havia implementado alterações significativas no ensino superior

11
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

brasileiro. Outorgada no regime militar, a Lei nº 5.540/68 tinha como


propósito pautar as universidades brasileiras por parâmetros de efici-
ência, de eficácia e de modernização administrativa, em uma perspec-
tiva racionalizadora e gerencialista da vida acadêmica. Entre os efeitos
dessa reforma encontra-se a expansão do ensino superior privado, de
caráter empresarial.
Após os anos de ditadura militar (1964-1984), o Brasil elegeu seu
primeiro Congresso Constituinte e aprovou a nova Constituição, em 1988.
Esta Constituição, por sua vez, consolida a indissociabilidade entre o ensi-
no, a pesquisa e a extensão (art. 207) e estabeleceu, também, parâmetros
para a elaboração de uma nova LDB.
Somente após oito anos de intenso debate, em um ambiente de
reconstrução democrática, a nova LDB foi aprovada (Lei nº 9.394/1996).
No entanto, em vez de frear o processo expansionista privado e redefinir
os rumos da educação superior, contribuiu para que acontecesse exata-
mente o contrário: ampliou e instituiu um sistema diversificado e diferen-
ciado, por meio, sobretudo, dos mecanismos de acesso, da organização
acadêmica e dos cursos ofertados. Nesse contexto, criou os chamados
cursos seqüenciais e os centros universitários; instituiu a figura das uni-
versidades especializadas por campo do saber; implantou Centros de Edu-
cação Tecnológica; substituiu o vestibular por processos seletivos; acabou
com os currículos mínimos e flexibilizou os currículos; criou os cursos de
tecnologia e os institutos superiores de educação, entre outras alterações.
Passados dez anos de sua aprovação, a LDB ainda tem enormes
desafios para vencer, entre os quais se pode destacar: a ampliação do
acesso e da garantia da permanência dos estudantes na educação superi-
or; a desmercantilização da oferta desse nível de ensino; o estabelecimen-
to de mecanismos efetivos de aferição e controle da qualidade; a expan-
são da oferta por meio de instituições públicas. Embora complementada
por diferentes mecanismos legais (leis, decretos, portarias, resoluções, pa-
receres), a LDB deve ser tomada como um marco importante na configu-
ração da educação brasileira.
Este livro é, assim, o resultado de um trabalho coletivo de reflexão,
consolidado em uma rede acadêmica de pesquisa e de interlocução entre
pares que têm em comum uma área de conhecimento: a educação supe-
rior. Nesse livro, em especial, a rede Universitas/BR e o GT Políticas de

12
Apresentação

Educação Superior da ANPEd desenvolvem reflexões específicas acerca do


acesso, organização acadêmica, formação, financiamento,
internacionalização, trabalho docente e reforma da educação superior,
com o propósito de avaliar e refletir sobre o significado político e educaci-
onal desses dez anos de vigência da Carta Magna da educação brasileira.
O leitor encontrará, pois, uma análise crítica e embasada de temáticas
importantes da educação superior que poderão contribuir com as refle-
xões e pesquisas da área.
Mariluce Bittar
João Ferreira de Oliveira
Marília Costa Morosini

13
I – DESAFIOS DA EDUCAÇÃO
E DA EDUCAÇÃO SUPERIOR
PÓS-LDB
1
Educação no Brasil:
10 anos pós-LDB
Carlos Roberto Jamil Cury*

* Doutor em Educação e professor adjunto da PUC-MG; e-mail: crjcury@terra.com.br


Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

Introdução

Aos 20 de dezembro de 1996, o presidente Fernando Henrique


Cardoso sancionava a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), denominada oficialmente Lei Darcy Ribeiro, sob o nº 9.394/96.1
Assinou com o presidente, o ministro da Educação Paulo Renato Souza.2
O Diário Oficial da União a fez publicar em 23 de dezembro de 1996.
Estamos, pois, perto de dez anos dessa LDB.
Dez é um numeral cardinal redondo, tradicionalmente tornado um
número de referência para uma avaliação ou base de comemorações. E é
também um número que, na escola tradicional, remetia a uma nota máxi-
ma para provas e resultados gerais.

1
A sanção presidencial representa a adesão do chefe do Executivo ao projeto já aprovado pela Câmara e pelo Senado. A
manifestação presidencial pela sanção positiva ou pela sanção negativa (veto) significa uma forma co-participada entre os
dois poderes no processo legislativo. Nesse sentido, a sanção ratifica a lei fazendo-a entrar em vigor. Trata-se de uma
tradição no direito nacional e sua origem tem a ver com a passagem das monarquias absolutas para as monarquias
constitucionais (cf. art. 66 da Constituição Federal, 1988; Carvalho Neto, 1992; Silva, 1964).
2
De acordo, com o art. 87 da Constituição Federal, os ministros referendam atos presidenciais no âmbito de sua área.

19
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Trata-se aqui de evocar não só conhecimentos relativos ao decê-


nio, mas também reconhecer, a partir desse texto legal, alguns dos cami-
nhos trilhados pela educação escolar brasileira.
Longo e polêmico foi o processo de tramitação legal dos projetos
de LDBEN tanto no âmbito da sociedade civil, quanto no do Legislativo e
Executivo para que se chegasse a termo o mandado constitucional do art.
22, XXIV. Muitas foram as vicissitudes sofridas pelos diferentes textos que
foram sendo escritos desde o início do processo legislativo por meio de
muitas e variadas emendas aos projetos. Isso evidencia, de novo, como
tem sido tradicional no Brasil, difícil e propriamente contencioso quando
o assunto é um marco regulatório da educação escolar.
Muitas foram também as avaliações relativas ao texto final da lei
com copiosa bibliografia a respeito (cf. Cury, 1997, 2006; Demo, 1997;
Frauches, 2000; Catani, Oliveira, 2000, Brzezinski, 2000, entre outros).
Ao lado dessa literatura, seria importante analisar a atuação de
sujeitos coletivos, impossível no espaço desse esboço, como a do Conselho
dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), o da União dos Dirigen-
tes Municipais de Educação (Undime), o do Fórum dos Conselhos Estadu-
ais de Educação e a da União dos Conselhos Municipais de Educação não
só no processo de elaboração como também na efetivação da lei. Muitos
outros sujeitos também se puseram a campo a fim de discutir os projetos
e sugerir alternativas como é o caso de ocupantes de cargos no aparelho
de Estado, associações profissionais de docentes, associações científicas,
organizações não-governamentais e pessoas estratégicas.3

E houve um antes da contagem do decênio

O capítulo da educação na Constituição Federal de 1988 represen-


tou um significativo avanço para a área (cf. Maliska, 2001; Cury, 1989;
Cury, 1991, Farenzena, 2006). Por outro lado, como uma nova LDB era
mandato constitucional a ser efetivado, havia uma coexistência entre o
avanço propiciado pela Constituição e o texto da Lei nº 4.024/61 com a
redação dada pela Lei nº 7.044/82 e da Lei nº 5.540/68.

3
Entrevistas com atores privilegiados, nesse processo, ainda estão por ser feitas.

20
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

Também há de assinalar a Lei nº 9.131/95, a Lei nº 9.192/95 e, de


modo especial, para a educação básica, a Lei nº 8.069/90, mais conhecida
como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A primeira (re)cria o
Conselho Nacional de Educação com suas atribuições e estabelece um siste-
ma nacional de avaliação da educação (cf. Belloni, 2003). A outra estabelece
procedimentos para eleições de dirigentes no sistema federal de educação. O
ECA, enfim, contém uma retomada do capítulo de educação da Constitui-
ção Federal de 1988 nos princípios e em aspectos pedagógicos importantes
não explicitamente postos na LDBEN que viria a ser a Lei nº 9.394/96.
Havia, pois, ante o capítulo constitucional da educação, uma coe-
xistência formada por concepções, ao mesmo tempo distintas e conver-
gentes ou divergentes, resultando ora em recepções juridicamente válidas,
ora em um hibridismo, ora em “buracos negros" e mesmo em revogações.
De todo modo, havia uma coexistência entre o “novo e o velho" sugerindo
dificuldades de hermenêutica quanto a vários pontos na busca de uma
continuidade jurídica viável.
Tal é o caso da nomenclatura da organização da educação, como
ensino fundamental e médio versus ensino de 1º grau e de 2º grau; tam-
bém se apresentam questões relativas aos princípios da gratuidade, da
gestão democrática e do padrão de qualidade entre outros. Há que se
assinalar a imposição constitucional de novos deveres ao Estado como são
os casos da educação infantil, do direito público subjetivo e dos conteú-
dos curriculares mínimos (em vez de currículo mínimo) e do regime de
colaboração. Outros pontos importantes referem-se ao estatuto do siste-
ma privado, ao acolhimento de novidades como a distinção entre língua
oficial e língua materna no ensino, aos novos percentuais de vinculação e
ao acolhimento do sistema municipal de educação autônomo.
Sobre essas congruências e incongruências, Bobbio (1994, p. 177)
sustenta:

O fato de o novo ordenamento ser constituído em parte por normas do


velho não ofende em nada o seu caráter de novidade: as normas comuns
ao velho e ao novo ordenamento pertencem apenas materialmente ao pri-
meiro; formalmente, são todas normas do novo, no sentido de que elas são
válidas não mais com base na norma fundamental do velho ordenamento,
mas com base na norma fundamental do novo. Nesse sentido falamos de
recepção, e não pura e simplesmente de permanência do velho no novo. A
recepção é um ato jurídico com o qual um ordenamento acolhe e torna
suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem
materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma.

21
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Nessa situação, havia que fazer convergir “matéria e forma" em


razão do e em adequação ao novo ordenamento trazido pela Lei Maior.
Isso tudo, de um lado, criava a expectativa com relação a uma nova
LDB e, de outro lado, por força do art. 25 do Ato das Disposições Consti-
tucionais Transitórias (ADCT), a partir de 180 dias da promulgação da
Constituição Federal de 1988, ficavam revogados “todos os dispositivos
legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competên-
cia assinalada na Constituição" (cf. Decreto nº 1.734/95).
Analisando esse artigo, diz Ranieri (2000, p. 163):

[...] o artigo 48, caput, da Constituição Federal determina que cabe ao


Congresso Nacional dispor sobre todas as matérias de competência da União;
e a Lei nº 4.024/61 atribuía, efetivamente, competências normativas ao
CFE (artigo 9º). Não tendo sido tal prazo prorrogado por lei, nem editada
nova lei específica atribuindo aquelas competências, o CFE até a sua extinção,
provocada pela Lei nº 9.131/95, atuou sem competência legal, o que, a
rigor, implica a nulidade dos atos normativos praticados no período.

A chegada da Lei nº 4.024/61 com a redação dada pela Lei nº


9.131/95 formaliza o Conselho Nacional de Educação (CNE), dada a extinção
do Conselho Federal de Educação (cf. Medida Provisória nº 661 de 18/10/
1994 e seguintes até a MP nº 1.126 convertida na Lei nº 9.131/95), e
regulamenta a avaliação da educação escolar, em especial a da educação
superior. Com isso, havia um órgão legal para interpretar as leis educacio-
nais e propiciar a continuidade da ordem jurídica e capaz de arbitrar o
andamento dos sistemas de educação.4
Ao mesmo tempo, estava em curso o processo de elaboração da
nova LDB, exigência constitucional, conducente à solução do caráter hí-
brido então existente, à conformação de coerência à Constituição da Re-
pública de 1988. E, nesse processo, projetos distintos disputavam a
hegemonia na explicitação de princípios gerais postos na Constituição.
Os projetos existentes disputaram acirradamente o campo parla-
mentar, sendo o projeto provindo da Câmara bem mais analítico e o outro,
originado no Senado, bastante sintético.5 O termômetro capaz de medir a
temperatura de ambos era dado pelo maior ou menor “calor" da intervenção

4
Menos do que antecipar a LDB, essa Lei foi uma espécie de lei-ponte do tipo regulamentação prévia dentro de uma
previsibilidade de que o projeto sintético seria aprovado.
5
Além dos projetos do Legislativo, havia propostas advindas do CFE e de outros fóruns profissionais ou associativos.

22
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

do Estado na educação escolar, seja na administração pública, seja no seg-


mento privado. E esse termômetro passou a subir quando o governo eleito
em 1994 e empossado em 1995 não só fez clara opção pelo projeto sintéti-
co, como aderiu à vaga conservadora que perpassou vários regimes latino-
americanos.
Apesar dessa vaga governamental conservadora poder propor leis
regulamentadoras que contivessem dispositivos de igual natureza, há que
se assinalar o papel “amortecedor" de vários artigos da Constituição de
1988 cujo teor mais permanente tornou menor, no âmbito da educação
escolar, o impacto das políticas restritivas aos direitos sociais e de outras
tendentes à saída do Estado de atividades econômicas.

Uma redação final apressada

A redação final da LDB, após oito anos de tramitação parlamentar,


teve uma solução com sua aprovação no Congresso por grande maioria e
sua sanção na Lei nº 9.394/96 tornando-se, de fato e de obrigação legal,
um campo obrigatório de referência educacional.
A opção pelo projeto sintético, ainda que jungido de aspectos pro-
vindos do projeto analítico, deu-se também dentro de uma educação es-
colar nacional complexa (para efeito de sua administração, gestão, finan-
ciamento e controle).6 Imprecisões terminológicas reforçaram a necessida-
de de uma hermenêutica que viabilizasse o novo texto legal.7
Essas dificuldades associadas à inevitável postulação de grupos in-
teressados em alterar aspectos específicos da lei, conduziram, nesses dez
anos, às seguintes mudanças no corpo legal da lei então sancionada:

1. Alterações legais: Lei nº 9.495/97: art. 33


Lei nº 10.328/01: art. 26, § 3º
Lei nº 10.639/03: art. 26-A, §§ 1º e 2º; art. 79 B
Lei nº 10.709/03: art. 10, VII e art. 11, VI

6
A referência aqui é à complexidade não só de um país continental e diverso, como também dos delineamentos do pacto
federativo.
7
Atribuem-se tais imprecisões ao afã de prestigiar em vida o antropólogo Darcy Ribeiro, autor do projeto do Senado.

23
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Lei nº 10.793/03: art. 26, § 3º, I, II, III, IV, V


Lei nº 11.114/05: art. 6º
Lei nº 11.183/05: art. 19, II
Lei8 nº 11.274/06: art. 32; art. 87, § 2º, § 3º, I
Lei nº 11.301/06: art. 67, §§ 1º e 2º
Lei nº 11.330/06: art. 87, § 3º
Lei nº 11.331/06: art. 44, § único

Desse modo, no interior dessas 11 leis habitam 24 alterações inclu-


sive com alterações das alterações como o § 3º na Lei nº 10.328/01, o art.
32 na Lei nº 11.114/05 e o inciso I, letras a, b, c na Lei nº 11.114/05.9
Exceto a alteração ocorrida no art. 44 (referente ao ensino superior)
pela Lei nº 11.331, as outras 23 alterações pertencem ao campo da educa-
ção básica.10

2. Acréscimos legais: Lei nº 10.287/01: art. 12, VIII


Esse acréscimo se refere também à educação básica.

3. Regulamentação por lei: Lei nº 9.536/97: art. 49


Refere-se ao ensino superior (transferência ex-officio)

4. Regulamentações por decretos:


Decreto nº 2.207/97: arts. 19, 20, 45, 46 e § 1º, 52, parágrafo
único, 54 e 88
Decreto nº 2.208/97: art. 36, § 2º, arts. 39 a 42
Decreto nº 2.306/97: arts. 16, 19, 20, 45, 46, § 1º, 52 § único,
54 e 88
Decreto nº 2.494/98: art. 80
Decreto nº 3.276/99: arts. 61 a 6311
Decreto nº 3.860/01: Título V, Capítulo IV
Decreto nº 5.154/04: § 2º, art. 36, arts. 39 a 41

8
Esta lei estatui o ensino obrigatório de nove anos iniciando-se aos 6 anos e prolongando-se até aos 14 anos.
9
Note-se que são alterações provindas de leis específicas com força inovadora em relação à ordem jurídica. Ainda não se fez
um estudo detalhado de quem são os atores manifestos e não-manifestos dessas alterações legais.
10
É de se notar que, ao caráter impreciso de certos termos, se deve adicionar a natureza estrutural flexível no corpo da lei.
11
Este Decreto foi retificado dias após.

24
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

Decreto nº 5.622/05: art. 80


Decreto nº 5.773/06: art. 9º, incisos VI, VIII e IX, e 46.
Decreto nº 5.786/06: art. 45

São dez decretos dos quais ao menos cinco são referentes ao ensi-
no superior, um decreto relativo à educação profissional é substituído por
outro, bem como houve substituição no decreto concernente à educação
a distância.12
Tal quantidade de alterações, praticamente 24% do texto, con-
quanto possível, em qualquer lei, é indicativo de que algo poderia ter sido
mais bem redigido na versão original.13
Além disso, há que se assinalar outras leis concorrentes e complemen-
tares à própria educação escolar derivadas ou não de emenda constitucional.
Em virtude da emenda nº 14/96, foram modificados artigos im-
portantes do capítulo da educação da Constituição Federal, no caso,
os arts. 34, 208, 211, 212. Foi também alterado, por 10 anos, o art. 60
do ADCT, artigo importante do financiamento. Esse artigo faz, com a
LDB, 10 anos de funcionamento e terá, pois, seu prazo de validade
esgotado.
Do conjunto dessa emenda procedeu a Lei nº 9.424/96 sancio-
nada a 24 de dezembro de 1996, publicada no Diário Oficial de 26/12/
1996, mais conhecida como a Lei do Fundo de Manutenção e Desen-
volvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(Fundef). Essa lei nasceu de um projeto do Executivo: PL nº 2.380 (cf.
Oliveira, 2000).
A lei do Fundef, para efeito de políticas educacionais do ensino
fundamental, em matéria de financiamento, tem um impacto tão grande
ou maior do que a própria LDB. Afinal, ela tange ao mesmo tempo o pacto
federativo e o sistema de financiamento do ensino obrigatório seja pela
subvinculação, seja pelo controle dos recursos.

12
Os decretos visam apenas regulamentar o fiel cumprimento das leis quando essas não são auto-executáveis preenchendo
eventuais lacunas ou explicitando aspectos da aplicação da lei.
13
Esse volume de alterações parece indicar um processo contínuo, quase que permanente, de atividade propriamente
legiferante de educação devido ao próprio caráter sintético da LDBEN aprovada. Isso obriga os executivos, em rotatividade
política, a alterar o ordenamento legal para poder levar adiante programas de governo (cf. Couto, 1997).

25
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Já em respeito ao art. 214 da Constituição, tem-se a Lei nº 10.172/


01, mais conhecida como Plano Nacional de Educação (PNE). Sua
tramitação revela a reedição entre dois projetos: o do Executivo, mais
sintético e menos abrangente, e o da sociedade civil, mais analítico e
mais abrangente. A lei aprovada e sancionada, a rigor uma expressão
continuada da LDBEN em matéria de metas e objetivos, apresenta um
realismo no diagnóstico da educação nacional e tem sua eficácia depen-
dente, em maior parte, do financiamento. Contudo, esse último sofreu
vetos presidenciais em todos os itens relativos ao financiamento. Não há
dúvida que tal mutilação significou uma perda substantiva quanto ao
caráter obrigatório do Plano podendo-se dizer que ele, praticamente, se
tornou um Plano declaratório.
Pode-se citar também, como paralelas e concorrentes à LDBEN, as
leis nº 10.436/02 (língua de libras) e nº 11.161/05 (língua espanhola).
Relativamente ao ensino superior, temos o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior, Lei nº 10.861/04 (Lei do Sinaes) que
redefine artigos da Lei nº 9.131/95 e tem o seu complemento na Portaria
MEC nº 2.051/04 regulamentando a figura do Conselho Nacional da Ava-
liação da Educação Superior (Conaes). A Lei nº 11.096/2005 do Programa
Universidade para Todos (ProUni) e suas respectivas regulamentações, por
portaria ou decreto, também representam uma alteração significativa nas
relações público/privado. A Portaria MEC nº 2.051/04 regulamenta a lei do
Sinaes e o Decreto nº 5.245/04 regulamenta o ProUni. Não se pode esque-
cer a existência de um projeto de lei relativo a ações afirmativas e de outro
projeto – em parte antecipado pelo Decreto nº 5.773/06 –, que traduzem
ampla reorganização do ensino superior especialmente quanto à regula-
mentação e avaliação dessa etapa de ensino.
Paralelamente, um esforço para criar um marco regulatório no âmbito
da inovação tecnológica, por meio de incentivos relativos ao ambiente
produtivo, foi a aprovação da Lei nº 10.973/04.14
Tangente à pós-graduação, deve-se destacar a existência do Plano
Nacional de Pós-Graduação: 2005-2010.

14
Em 15/10/06, o Executivo encaminhou ao Congresso projeto de lei que altera e promove a lei de incentivos fiscais, lei
nº 11.196/05, beneficiando as pessoas jurídicas que aplicarem em pesquisas científicas e tecnológicas de acordo com a
Lei nº 10.973/04.

26
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

A atividade normativa

A esses constrangimentos legais deve-se apontar a existência de


múltiplas Portarias15 do Ministério e, sobretudo, a atuação normativa do
Conselho Nacional de Educação, órgão público criado por lei, por meio de
pareceres e resoluções.
A atuação normativa desse Conselho, órgão colegiado por lei, si-
tua-se no âmbito da interpretação da legislação sabendo não ser um
legislativo no sentido próprio do termo. Isto é: um conselheiro não é de-
putado, senador ou vereador que têm delegação popular para inovar a
ordem jurídica. Ele também não dispõe de autoridade para decretos ou
medidas provisórias. A capacidade legal atribuída de normatizar ou disci-
plinar assuntos infraconstitucionais da educação escolar não pode e nem
deve significar iniciativas pontuais incertas quanto à jurisdicidade consti-
tucional ou legal desses mesmos assuntos. Nesse sentido, importa não
confundir o uso interpretativo, legal e legítimo da lei com o abuso de
poder legal.
Um parecer e uma resolução, como atos administrativos, emanados
de um órgão colegiado normativo criado por lei, ligado à administração
pública, de acordo com o art. 1º da Lei nº 9.131/95, ligam-se às atribui-
ções normativas, deliberativas e de assessoramento ao ministro de Estado
da Educação, do Conselho, dentro do assunto ou matéria de sua compe-
tência, respeitada a hierarquia das leis.
Conseqüentes a tais atribuições, as Câmaras do CNE e seu Conselho
Pleno buscaram exercê-las. A Câmara de Educação Básica (CEB) exarou,
em 10 anos, 327 pareceres e 26 resoluções; a Câmara de Educação Supe-
rior (CES) emitiu 7.357 pareceres16 e 69 resoluções e o Conselho Pleno
(CP) aprovou 372 pareceres e 11 resoluções.17
Muitos desses pareceres foram esclarecedores de situações duvido-
sas, mas alguns foram rigorosamente interpretativos no sentido de
explicitação específica do caráter genérico da lei. É o caso das Diretrizes

15
Portarias são expedidas por escalões abaixo do chefe do Executivo para efeito de decisões de efeito interno relativas ao
bom andamento funcional de processos administrativos.
16
Deve-se observar que a maior parte desses pareceres refere-se a processos de autorização e de credenciamento.
17
Esses dados foram retirados da página oficial do CNE no Portal MEC www.mec.gov.br.

27
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Nacionais Curriculares que cobriram toda a educação básica, bem como o


das Diretrizes do Plano de Carreira do Magistério do Ensino Público –
ensino fundamental. Mais ainda: devem-se consultar as Diretrizes
Curriculares Nacionais das áreas de conhecimento do ensino superior. Tais
diretrizes, em que pese a necessidade de sua constante avaliação periódi-
ca, viabilizaram a LDB por serem um marco regulatório da educação naci-
onal, especialmente quando os currículos mínimos deixaram de ser esta-
belecidos pela União.18
Não é fácil atravessar esse denso e emaranhado caminho de tantos
diplomas legais ordenadores da educação escolar como também não se pode
ser simplista na avaliação dessa atuação. E há que se considerar a ação
similar dos Conselhos Estaduais, Municipais que estão desenhando aspectos
de um padrão federativo da educação nacional ainda pouco conhecido.

Um pequeno balanço

O que se pode dizer, preliminarmente, é que a Lei nº 9.394/96


enquanto lei nacional teve um impacto tanto na educação superior quan-
to na educação básica. Repare-se que o art. 92 já revogava expressamente
as leis de educação anteriores.19 Mas como lei específica, o maior impacto
deu-se na educação superior cuja expansão, mercê da flexibilidade posta
na lei, foi espetacular. Já as alterações fundantes da educação básica fo-
ram prefiguradas na Constituição e, em certa medida, antecipadas pelo
ECA. Além da regulamentação nacional, a lei deveria ser aclimatada pelos
sistemas de ensino.
No caso da educação básica, a CF/1988 criava os sistemas de ensino
por colaboração recíproca, a gestão democrática, a gratuidade em todo o
ensino público, o financiamento vinculado, o direito público subjetivo, o en-
sino obrigatório, a autonomia dos sistemas e o Plano Nacional de Educação.
A LDBEN fará a importante distinção entre educação e educação
escolar. A primeira expressando-se por uma grande abertura para processos

18
Sobre a tensão entre Diretrizes Curriculares e Parâmetros Curriculares, cf. Parecer CNE/CEB nº 03/97.
19
Restaram preservados poucos artigos da Lei nº 4.024/61 e da Lei nº 5.540/68.

28
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

formativos, sobretudo extra-escolares e gozando de alto grau de liberdade.


Já a segunda é propriamente a educação escolar e que é disciplinada pelo
próprio emergir da LDB. Isso pode ser verificado logo no artigo 1º da LDB e
seus respectivos parágrafos. O acolhimento dessa distinção permite que haja,
na educação escolar, a valorização seletiva de dimensões educativas trazidas
por processos educativos mais amplos do que a escola.
Por sua vez, a LDB, na condição de lei específica da educação
escolar e dentro dela o ensino, terá grande impacto na relação com os
estabelecimentos, seja pela abertura propiciada pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais via Lei nº 9.131/95 associada à flexibilidade da Lei nº 9.394/96,
seja pela liberdade na organização pedagógica dos estabelecimentos,20
com o acolhimento dos projetos pedagógicos, com a extensão de dias
letivos de 180 para 200 dias, com a determinação da hora como direito do
aluno e com o enfoque no direito do aluno a ter uma aprendizagem com
padrão de qualidade e, mais recentemente, com o ensino obrigatório de
nove anos.
Outro momento significativo da LDB é o do acolhimento do con-
ceito de educação básica como seqüenciação articulada das etapas da
educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio como direito
da cidadania.
Se o princípio da instauração da educação pública repousa no
direito de todo aluno em ter uma aprendizagem qualificada, então a
educação pública tem suas matrizes no princípio da igualdade, do ensi-
no comum e da busca de uma qualidade contemporânea às urgências do
conhecimento.
Já o direito relativo à iniciativa privada oferecer educação escolar
se apóia na liberdade de ensino, garantida a presença legal do Estado
nessa matéria. E o princípio de liberdade de ensinar algo diferente, expres-
so no ato autorizativo, é garantido uma vez que estejam presentes os
elementos comuns da organização da educação nacional e desde que esse
diferencial seja conseqüente com os princípios de uma sociedade demo-
crática e plural.

20
Uma parte dos sistemas públicos adotou o regime de ciclos, enquanto as redes privadas dos sistemas preferiram continu-
ar com a seriação (cf. Negreiros, 2004).

29
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

As alterações na lei, relativas à educação escolar e anteriormente


sinalizadas, devem ser contextualizadas, analisadas caso a caso e avalia-
das pelo grau de aproximação com os critérios clássicos do acesso, perma-
nência e qualidade.
Além disso, há que se verificar o impacto dessas leis nos sistemas de
ensino que, por lei, são responsáveis pela oferta do conjunto das etapas da
educação básica.

E chega o Fundef

Dado o padrão federativo da República e o regime de autonomia


dos entes federativos, o impacto maior sobre a educação básica advirá da
Emenda Constitucional nº 14/96 e da Lei nº 9.424/96 (lei do Fundef).
O Fundef representa a chegada (polêmica) de uma longa trajetória
na busca de uma vinculação financeira para a educação obrigatória no
regime federativo republicano cujo disciplinamento em matéria de
destinação sempre esteve na pauta de educadores. A figura de um Plano
Nacional de Educação, já em 1934, e o custo-aluno-ano posto no salário-
educação representam iniciativas de expansão planejada das etapas do
ensino e o apoio de recursos a serem bem administrados.
Esse custo e essa expansão se cruzam com a demanda histórica dos
entes federativos pela complementação financeira da União para com os
ônus do ensino obrigatório. Tal demanda se refere à efetivação
implementadora de fundos para a educação. Pode-se afirmar que tal de-
manda é nítida no regime da Constituição de 1934 e vai tomando figura
no regime estadonovista, desde a Conferência Nacional de Educação de
1941 até a redemocratização em 1946.21
Os cálculos do custo do então ensino primário explicitam-se em sua
ligação com os estudos relativos à figura do salário-educação. O então Insti-
tuto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) foi acionado para realizar estu-
dos com esse fim, nos quais foi ativa a participação do professor Carlos Pasquale.

21
Se no salário-educação deve-se destacar a figura de Carlos Pasquale, no caso da efetivação dos fundos deve-se afirmar
a presença de Teixeira de Freitas. Para a biografia de ambos, ver Fávero e Britto, 2002.

30
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

Anísio Teixeira, em seu clássico Educação é Direito, é o ponto de


encontro desses dois projetos com vistas a um financiamento sólido do
ensino fundamental (cf. Amaral, 2001),22 síntese que terá seu ápice em
1994 com a Conferência Nacional de Educação (cf. Vieira, 2000).
O governo Fernando Henrique Cardoso tomará os projetos nasci-
dos dessa Conferência e dar-lhes-á um rumo peculiar em conjunto com
sua política descentralizante. Não fora a grave omissão desse mesmo
governo em cumprir a equação aritmética por ele mesmo defendida na
Lei nº 9.424/96 para o valor do custo-aluno-ano e o Fundef, mesmo
remodelado conservadoramente, poderia ter tido uma efetivação muito
mais conseqüente.23
Essa efetivação se deu pela clara subvinculação de impostos para o
ensino fundamental; pelo disciplinamento dos recursos mediante meca-
nismos de financiamento significando uma minirreforma tributária; pela
maior clareza quanto às responsabilidades dos governos na oferta desse
ensino e pela constituição de conselhos de controle social e financeiro dos
recursos.24
Apesar da efetivação, incompleta, lacunosa por conta da escan-
dalosa omissão do poder público da União em trazer sua parte na cons-
tituição do Fundo, ainda assim essa focalização propiciou uma menor
distância entre regiões do País em matéria de dispêndio com essa etapa
da educação básica e auxiliou na universalização do acesso ao ensino
fundamental.
Mas não se pode deixar de apontar que, dentro do conceito de
educação básica, a focalização no ensino obrigatório deixou em segundo
plano políticas consistentes de expansão da educação infantil, de ensino
médio e respectivas modalidades. Essa lacuna, na etapa inicial e final da
educação básica é uma das razões que condicionam um mau desempenho
do conjunto dos estudantes do ensino fundamental.

22
Esse artigo explora as similitudes e diferenças entre os dois "Fundefs".
23
Calcula-se em mais de R$ 12 bilhões o passivo deixado pelo governo FHC no âmbito do Fundef em que pese as sucessivas
cobranças do Tribunal de Contas da União (TCU).
24
Para uma análise do Fundef do ponto de vista da descentralização sem a consideração da omissão da União (cf. Oliveira
e Rezende, 2003).

31
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Outros pontos

Digna de nota é a articulação entre o ensino médio e a educação


profissional.
De um lado, há que se apontar o avanço quanto à concepção do
ensino médio posta na LDBEN, integrando-o à educação básica e qualifi-
cando-o como momento formativo e conclusivo. De outro lado, não se
deixar de considerar que a educação profissional representa um momento
de manifestação do caráter classista da sociedade capitalista e que sua
efetivação carrega o ônus de ser, ao mesmo tempo e em proporções dis-
tintas, imposição e escolha.
A Constituição Federal do Brasil incorporou como princípio que
toda e qualquer educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho
(cf. art. 205). Esse princípio é retomado pelo art. 2º da LDB, após o reco-
nhecimento da importância da vinculação entre mundo escolar e mundo
do trabalho. Assim, a educação profissional, modalidade escolar estratégi-
ca do esforço da nação em prol de uma igualdade de acesso aos múltiplos
bens sociais, participa desse princípio e sob esta luz deve ser considerada.
Apesar do peso que a acomete, a educação profissional, longe de redu-
zir-se a uma rede paralela e secundarizada dentro de um sistema dualista,
pressupõe a educação básica para todos e dentro dessa, em especial, o seu
nível obrigatório: o ensino fundamental. E para sua realização em nível mé-
dio, completada com o respectivo diploma, exige-se, obrigatoriamente, o seu
correspondente formativo: o certificado do ensino médio da educação básica.
Por isso mesmo, a Lei nº 9394/96, em seu parágrafo único do art.
39 abre a possibilidade de acesso à educação profissional a todo o cidadão
e, reforçando dimensões passadas duramente conquistadas, faculta o en-
sino superior a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equi-
valente (art. 44, II).
Já o Decreto nº 2208/97, em seu art. 3º, II, expressando a urgência
contemporânea do ensino médio na formação de todos, determinou que o
nível técnico da educação profissional, a rigor um nível médio, seja
concomitante ou conseqüente ao ensino médio geral. Entretanto, ao arre-
pio da própria LDB no art. 36, § 2º, o Decreto, em seu art. 5º, interditava
uma forma integrada entre ambas as organizações curriculares.

32
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

Ora, o caminho da correlação entre educação profissional e demo-


cracia supõe a possibilidade de uma escolha por parte dos indivíduos de
tal modo que o acesso a essa modalidade de oferta educacional não seja
calcada em fatores sociodiscriminatórios. Por outro lado, tais fatores im-
põem ao indivíduo uma heteronomia advinda de mecanismos sociais que
o impede de se construir como sujeito e se reconhecer como livre para
uma opção autônoma, ainda que sempre relativa e, portanto, arriscada e
incerta. O direito de cada um construir-se como sujeito significa não só
opções diferenciadas em torno de valores e vias profissionais, mas também
a crescente estima de si em sua personalidade.
Ponderando essa realidade e a clara infringência à LDBEN, a lei
retomou seu curso com a substituição do Decreto nº 2.208/97 pelo Decre-
to nº 5.154/04 que restabelece a correlação integrada entre o ensino mé-
dio e a educação profissional.25
Antecipando ao Decreto, afirma Cunha (2001, p. 99):

Dentre as mudanças ocorridas na educação brasileira nos anos 90, verifica-


se a inflexão da tendência que se definia desde os anos 40: a progressiva
fusão entre a educação geral - propedêutica e a educação técnico-profissi-
onal cedeu lugar a uma tentativa de cisão entre elas... atenuada pela exi-
gência de que o curso técnico somente poderá outorgar certificados para
os alunos que tenham também concluído o ensino médio...

O Decreto nº 5.154/04, além de reabrir a possibilidade de a União


investir na abertura de Escolas Técnicas, caminhou o sentido de uma pro-
gressiva fusão entre a função formativa e a propedêutica garantida a fun-
ção profissionalizante.
Outro ponto a ser destacado na LDB é a maior consciência e presença
do direito à diferença. A LDB, apoiada na Constituição, passou a reconhecer,
afirmaria Bobbio (1992) “direitos de especificação" tais como os relativos às
fases da vida, estado normal e excepcional, populações indígenas e negras
entre outros (cf. Parecer CNE/CEB nº 03; Res. CNE/CEB nº 01/04; Cury, 2005).
Nessa matéria, houve significativa normatização desses assuntos
no Conselho Nacional de Educação como é o caso, por exemplo, das

25
De certa forma o Parecer CNE/CEB nº16/99 avizinhava-se da lei de modo cauteloso e tateante. Para uma análise crítica
do último decreto, ver Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005.

33
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

pessoas com necessidades educacionais especiais, das comunidades in-


dígenas e da educação de jovens e de adultos. Pode-se dizer também
que as políticas de focalização ganharam certa continuidade positiva
dentro de alguns programas governamentais federais.26

O que resta a fazer

Nesses dez anos, o acesso ao ensino fundamental chegou a pouco


mais de 97% de crianças na faixa etária obrigatória. Resta enfrentar os
desafios da permanência no ensino fundamental, ampliar o acesso na
educação infantil e no ensino médio e garantir uma via para a tão neces-
sitada qualidade para todas essas etapas.
Nesse sentido, vale afirmar que a efetivação do atual Plano Nacio-
nal de Educação (PNE) em suas metas e objetivos já seria um monumental
avanço.
Por outro lado, está em tramitação na Câmara dos Deputados, em
fase conclusiva, a emenda constitucional (Câmara/PEC original nº 536-E/
97 e agora PEC nº 09/06) do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).27
Caso aprovada essa emenda e caso aprovada a lei de regulamentação da
mesma, pode-se esperar uma mudança na composição e distribuição dos
recursos em educação. Abrem-se as portas para maior atendimento do
ensino médio, da educação infantil e da educação de jovens e adultos
(EJA) dado o maior percentual subvinculado e um aporte de
complementação “carimbado" pela União. Mesmo assim restará o que
fazer com os vetos apostos pelo governo anterior ao Plano Nacional de
Educação (cf. CF/88 art. 57, parágrafo 3º, V, art. 66 e art. 84, V).
Ainda que o Fundeb, como o Fundef, preveja 60% de cada seg-
mento do Fundo para o pagamento do magistério, resta a ansiada valori-
zação do magistério seja na sua remuneração por meio de um salário

26
Atualmente, segundo o Relatório do FNDE de 2005, esse órgão executa ou apóia 14 programas e uma operação especial.
Deles decorrem 75 diferentes ações.
27
No momento de fechamento deste artigo, ainda faltava uma votação na Câmara dos Deputados para então subir à
sanção presidencial.

34
Educação no Brasil: 10 anos pós-LDB

profissional nacional mínimo, seja na sua formação continuada, seja na


obrigação de as instituições de ensino superior oferecerem uma sólida
formação inicial.
Os indicadores da situação socioeconômica-cultural dos docentes
(cf. Codo, 1999; Unesco, 2004; Vieira, 2003) exigem políticas que garan-
tam possibilidades de educação continuada, aperfeiçoamento profissio-
nal, valorização salarial e, conseqüentemente, maior auto-estima e maior
índice de compromisso profissional. São medidas cruciais, caso se queira,
de fato, a qualidade da educação escolar como resultante do acesso e da
permanência dos estudantes.
De qualquer modo, o papel da União no apoio seguro aos ônus repre-
sentados pelo investimento na educação básica, continua crucial para os es-
forços em prol da democratização universalizada da educação escolar.28
O empenho até agora realizado, apesar de alguns avanços alcança-
dos, ainda não foi suficiente para cumprir os dispositivos constitucionais e
legais de nosso ordenamento jurídico. A realidade educacional continua
apresentando um quadro severo muito aquém dos benefícios que a edu-
cação desencadeia para o conjunto social e encontra-se longe das pro-
messas democráticas que ela encerra.
Estamos diante de um desafio instaurador de um processo que
amplia a democracia e educa para a cidadania, rejuvenesce a sociedade e
irriga a economia e da necessidade de uma saída urgente para uma educa-
ção de qualidade. Uma saída que obedeça aos ditames da razão que a
educação inaugura. O Estado que não assume essa via decreta sua perdi-
ção. A sociedade que não busca essa saída aceita a autoridade da submis-
são e refuga o caminho da autonomia.
Para sair de uma condição que nos constrange, em vários aspectos, a
um confinamento educacional próprio do século XIX, é preciso que a socie-
dade e o Estado pactuem um novo esforço em prol da educação sem o qual
não ultrapassaremos os limites dos avanços até agora celebrados. O futuro
não espera! Só uma política de Estado que presentifique o potencial da

28
Em 15/10/06 o Executivo encaminhou projeto de lei que altera o art. 62 da LDB pondo sob o regime de colaboração a
promoção da formação inicial, continuada e capacitação dos profissionais do magistério usando os recursos da EAD. Tal
formação, de acordo com outro projeto de lei, deverá contar com o apoio da Fundação Capes, especialmente por meio dos
recursos e tecnologias de educação a distância.

35
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

educação será capaz de superar as contradições e as barreiras que impedem


a construção de uma democracia mais ampla.
Se quisermos associar democracia e modernidade, ou o país como
um todo toma a decisão inadiável e necessária de priorizar a educação
básica como tarefa inadiável ou perderemos, todos, a velocidade da história.

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2
Educação Superior no Brasil –
10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização
Dilvo Ristoff*

* Diretor de Educação Básica Presencial/Capes.


Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

40
Educação superior no Brasil –10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização

Decorridos dez anos depois da aprovação da Lei de Diretrizes e


Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), persistem grandes desa-
fios para a educação superior brasileira. Transformações de toda ordem
desencadearam-se nesse período, em decorrência das políticas educacio-
nais implantadas sob orientação de organismos econômico-financeiros
multilaterais configurando um quadro de elitização e privatização desse
nível de ensino. A educação superior brasileira continua excludente e ina-
cessível a uma parcela significativa da população brasileira, em especial
para os jovens das classes trabalhadoras.
Para analisar o período pós-LDB (1996-2004), faz-se necessário
identificar as características básicas da educação superior brasileira, sinte-
tizadas em dez itens:
a) Expansão;
b) Privatização;
c) Diversificação;
d) Centralização;
e) Desequilíbrio regional;
f) Ampliação do acesso;

41
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

g) Desequilíbrio de oferta;
h) Ociosidade de vagas;
i) Corrida por titulação;
j) Lento incremento na taxa de escolarização superior.

A expansão, que não pode ser confundida com democratização,


define-se pelo crescimento expressivo do sistema, com índices que, no
período, chegam a, aproximadamente, 120%, para as instituições e as
matrículas, e 180%, para os cursos de graduação presencial.
A privatização pode ser constatada pelo crescimento, principalmente,
das instituições privadas, com essas instituições atingindo em 2004 uma
representatividade de 90% do total das instituições; 65% do total dos
cursos e 70% do total das matrículas da educação superior.
A diversificação tem a ver a um só tempo com a superação do
modelo único de instituição de educação superior e com a aguda
banalização do termo universidade, decorrente da rápida perda de
centralidade por parte das universidades, tal qual definido na Constituição
Brasileira de 1988, isto é, instituições autônomas de ensino, pesquisa e
extensão, de preferência com espaços para estudos avançados, com pro-
gramas de mestrado e doutorado e com linhas de pesquisa clara e forte-
mente definidas. As universidades, que em 1996 representavam um
percentual pequeno (14,8%) em relação ao total das instituições, em 2004
passaram a representar apenas 8,4%, sendo confundidas no imaginário
popular com centros universitários e pequenas faculdades – instituições
exclusivamente dedicadas ao ensino de graduação.
A centralização refere-se principalmente ao sistema regulatório da
educação superior do País. Tendo em vista que a expansão da educação
superior se deu predominantemente por meio da iniciativa privada, a edu-
cação superior brasileira experimentou uma centralização progressiva no
sistema federal, que hoje representa 93% das instituições de educação
superior. Isso significa afirmar que 93% das cerca de 2.300 IES dependem
da União para o seu sistema regulatório, com evidentes e sérias implica-
ções sobre o processo de autorização, reconhecimento, renovação de re-
conhecimento, credenciamento e recredenciamento e, igualmente, sobre
os processos avaliativos.

42
Educação superior no Brasil –10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização

O desequilíbrio regional caracteriza-se principalmente pela


Sudestificação da educação superior. Os quatro Estados da Região Sudes-
te representam cerca da metade das instituições, cursos e matrículas do
Brasil. O predomínio da Região Sudeste, embora venha diminuindo desde
1996, ainda continua sendo um fenômeno expressivo.
A ampliação do acesso nos remete ao fato de que a expansão da
educação superior não teve apenas um sentido de ampliação geográfica,
mas também um sentido de ampliação de oportunidades de acesso para
setores da classe média até então excluídos desse nível de ensino. Esta
ampliação do acesso confunde-se em grande parte com o próprio proces-
so de privatização, pois ocorreu principalmente como resultado da forte
excludência historicamente reinante nas universidades públicas.
O desequilíbrio de oferta pode ser observado no panorama das “vo-
cações" profissionais dos jovens brasileiros, com alguns poucos cursos (Ad-
ministração, Direito e Pedagogia) dominando largamente as matrículas e
revelando uma despreocupação nacional crônica com um projeto nacional
de desenvolvimento e com uma imagem de futuro para o País.
A ociosidade crescente de vagas talvez tenha sido uma das mais
chocantes realidades desde 2003, pois ocorre ao mesmo tempo em que
milhares de jovens buscam a educação pós-média. Em 2004, do total de
vagas disponíveis na educação superior (2.320.421), apenas 1.303.110
(56,2%) foram preenchidas, permanecendo ociosas 1.017.311 vagas (43,8%).
Em 2003, pela primeira vez na história da República, o número de vagas
na educação superior superou o número de concluintes do ensino médio.
A corrida por titulação deve-se em boa parte às exigências
estabelecidas na LDB (Lei nº 9.394/1996) para as universidades. Pode-se
afirmar que as funções docentes estão se qualificando em um ritmo que
acompanha o crescimento do sistema de educação superior, embora os
dados do último Censo da Educação Superior (2005) revelem que a titulação
de doutores cresce em ritmo mais acelerado nas instituições públicas, ou
seja, nas instituições que já detêm os mais altos percentuais de doutores
em seu quadro docente.
O incremento na taxa de escolarização superior, embora muito dis-
tante do preconizado pelo Plano Nacional de Educação (PNE) e sabidamente
minado pelo elitismo histórico instalado, vem ocorrendo. A incorporação
de significativos contingentes de pessoas acima de 24 anos, que estiveram

43
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

excluídos da educação superior, além de revelar a grave e crônica defasa-


gem idade-série em algumas regiões do País, tem pouco efeito sobre a
população que entra no cômputo do PNE, pois 40% de nossos estudantes
estão fora da idade apropriada (18 a 24 anos). Em 2004, apenas 10,4% da
população de 18 a 24 anos estavam matriculados na educação superior.
Esses percentuais não só estão entre os mais baixos do mundo, mas colo-
cam o País na vexatória situação de desperdiçar o potencial de milhões de
pessoas que poderiam contribuir com o desenvolvimento nacional e com a
melhoria da qualidade da vida.
Mantido o atual ritmo de crescimento, deveremos chegar ao ano de
2011 com cerca de 9 milhões de estudantes universitários. Parece muito,
mas não é! Se quisermos atingir a meta do Plano Nacional de Educação
(30% dos jovens de 18 a 24 anos matriculados na educação superior, com
40% das matrículas em instituições públicas), vamos precisar de bem mais
do que o crescimento inercial instalado.
Se por um momento lembrarmos que, nos últimos dois anos, pela
primeira vez na história do País, tivemos mais vagas na educação superior
do que concluintes do ensino médio e que 42% das vagas oferecidas nas
instituições de ensino superior (IES) privadas permaneceram ociosas, fica
evidente que, para garantir a migração desejada de cérebros e pessoas
para a educação superior, será necessária uma participação maior do po-
der público. O mercado, por si só, ao contrário do que sonharam alguns,
não conseguirá viabilizar esse importante projeto de Estado.
É fundamental perceber que a expansão dos últimos anos ocorreu
principalmente pelo setor privado, que hoje representa 90% das instituições.
Quando esse setor deixa quase a metade de suas vagas ociosas, quando índi-
ces alarmantes de inadimplência o desestabilizam e quando a evasão ameaça
inviabilizar mesmo cursos de altíssima demanda, fica evidente que a sua capa-
cidade de expansão está próxima do limite. Junte-se a isso o fato de que os
mais de 9,5 milhões de estudantes do ensino médio têm renda familiar 2,3
vezes menores do que a dos estudantes que hoje estão na educação superior.
O IBGE nos informa, há algum tempo, que entre os estudantes do ensino
médio, há milhões deles tão pobres que, mesmo que a educação superior seja
pública e gratuita, terão dificuldades de se manterem no campus.
Como esse quadro só tende a piorar com a universalização da edu-
cação básica – que trará exércitos de carentes às portas do campus nos

44
Educação superior no Brasil –10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização

próximos anos – falar apenas em expansão é insuficiente. Se é verdade


que a expansão da educação privada teve o mérito de fazer com que o
vestibular deixasse de ser um trauma na vida de pais e filhos da classe
média, é também verdade que ela, para os filhos das classes baixas, até a
chegada do Programa Universidade para Todos (ProUni), tinha trazido
apenas promessa. Esses, porque não conseguem nem vencer a excludência
do campus público, nem pagar os altos preços do campus privado, conti-
nuam fora da educação superior.
Se a palavra de ordem da década passada foi expandir, a desta
década precisa ser democratizar. E isto significa criar oportunidades para
que os milhares de jovens de classe baixa, pobres, filhos da classe traba-
lhadora e estudantes das escolas públicas tenham acesso à educação su-
perior. Não basta mais expandir o setor privado – as vagas continuarão
ociosas; não basta aumentar as vagas no setor público – elas apenas faci-
litarão o acesso e a transferência dos mais aquinhoados.
A democratização, para acontecer de fato, precisa de ações mais
radicais – ações que afirmem os direitos dos historicamente excluídos, que
assegurem o acesso e a permanência a todos os que seriamente procuram
a educação superior, desprivatizando e democratizando o campus público.
O ProUni, a criação de novos campi nas instituições federais de ensino
superior (Ifes), a proposta, sempre tímida, de expansão do ensino noturno
público, a criação de novas universidades federais, a proposta de conver-
são da dívida dos Estados em investimentos na educação, a criação da
Universidade Aberta, a expansão da educação a distância, a criação de
bolsas permanência, a retomada das contratações de docentes e técnicos,
são algumas das ações que apontam para o caminho da democratização.
Há, no entanto, necessidade de se tornar a democratização
indissociável da expansão nos campi públicos, onde permanece fortemen-
te enraizada a noção de que expandir significa piorar a qualidade. Lamen-
tavelmente, escapa à maioria de nós, a percepção de que se preocupar
apenas com a qualidade, sem pensar em quantidade, significa a preserva-
ção de um sistema elitista e excludente! O estranho é que quando a ex-
pansão do setor privado veio beneficiar a classe média, o campus público,
salvo honrosas exceções, fez de conta que a questão não era com ele;
quando, há dois anos, a renúncia fiscal tornou viável a concessão de bol-
sas para centenas de milhares de jovens pobres, no mesmo setor privado,

45
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

o seu protesto foi veemente; agora que a democratização quer dar um


passo adiante para atender aos mais carentes, no espaço público, muitos
se escudam na autonomia e se escondem atrás da qualidade. “Vai piorar a
qualidade" é a ladainha da moda, que evidentemente nega, sem escrúpu-
los, os dados dos processos seletivos do ProUni que comprovam de forma
insofismável: os alunos do ProUni têm desempenho na maioria das vezes
superior ao desempenho dos estudantes que ingressam pelas vias tradici-
onais!1 E assim, democratizar o campus público permanece, no campus
público, ironicamente um tabu. A menos que consigamos mudar essa cul-
tura, grande parte do esforço pela recuperação da centralidade da univer-
sidade pública e gratuita torna-se sem sentido.
Precisamos vencer a afirmação secular, repetida cotidianamente na
grande mídia e em textos acadêmicos mundo afora, de que o campus é
um espelho da sociedade e de que ele a reflete em todas as suas peculia-
ridades, privilégios, comoções e injustiças. Os dados mostram que o campus
pode até ser um espelho da sociedade, mas é com certeza do tipo que
distorce. Contas feitas, a conclusão a que se chega é uma só: sob muitos
aspectos, os cursos de graduação não reproduzem, mas hipertrofiam as
desigualdades sociais existentes.
A oportunidade de acesso para estudantes pobres é um bom exem-
plo. Estudantes com renda familiar de até três salários mínimos, que na
população brasileira representam 50%, na Enfermagem e na Educação
Física – cursos com percentuais mais próximos da realidade – representam
apenas cerca de 30%. Essa distorção se torna mais gritante na Odontolo-
gia e na Medicina nos quais 50% passam a ser apenas 10,5% e 8,8%,
respectivamente. Ou seja, como ressaltam os casos da Enfermagem e da
Educação Física, mesmo o que no campus mais se aproxima da realidade
está profundamente distorcido, e para pior.
Quando se olha a questão pelo viés dos mais ricos (mais de dez
salários mínimos de renda familiar), percebe-se que uma pequena minoria
na sociedade se torna uma grande maioria no campus. É bom lembrar que

1
Os estudantes do ProUni tiveram desempenho superior em todas as 15 áreas do conhecimento avaliadas pelo Exame
Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) em 2006, comprovando o que relatórios freqüentes de reitores, pró-
reitores e coordenadores de curso já haviam informado.

46
Educação superior no Brasil –10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização

na sociedade, esse grupo representa 11,8%. Na Enfermagem, é verdade, ele


representa algo bastante próximo – 15%; na Odontologia e na Medicina, no
entanto, os 11,8% de ricos tornam-se 52% e 67%, respectivamente.
A representação por cor/raça, da mesma forma, mostra que entre
os dez cursos mais brancos cinco estão da área da saúde (Odontologia,
Veterinária, Farmácia, Psicologia e Medicina) – todos com mais de 77% de
representação de brancos. Na população, os brancos representam 52%.
Entre os cursos da área com os menores percentuais de brancos estão
Enfermagem, com 67%, e Biologia, com 69%. Conclusão: mesmo nos
cursos menos brancos, o campus distorce significativamente os percentuais
da sociedade.
Com intensidade ainda mais dramática, o espelho do campus distorce
as proporções dos estudantes originários das escolas públicas – grupo
fortemente sub-representado tanto na educação superior pública quanto
na privada: nas Ifes e nas IES privadas sua representação é de 43%, isto é,
inferior à metade dos 87% que representa no ensino médio. Nos cursos, a
desproporção pode ser maior: apenas 18% dos estudantes de Odontologia
e 34% dos estudantes de Medicina cursaram todo o ensino médio em
escola pública. É necessário inferir, portanto, que para um aluno originá-
rio do ensino médio privado e pago a oportunidade de chegar à educação
superior, em especial em cursos de alta demanda, é várias vezes superior à
de seus colegas originários da escola pública e gratuita.
O espelho do campus também distorce as proporções dos sexos. Os
cursos da saúde, por exemplo, são quase todos majoritariamente femini-
nos, estando fortemente marcados por questões mal resolvidas de gênero:
das 14 áreas, apenas em Educação Física os homens ainda são maioria.
Como os homens são maioria na sociedade até os 20 anos de idade, isto é,
durante o período correto de ingresso na educação superior, é estranho
descobrir que a proporcionalidade não esteja mantida. Justificativas à parte,
está equivocada a afirmação de que o espelho do campus simplesmente
reflete a sociedade.
Talvez pudéssemos argumentar que o campus reflete os vários brasis
que temos, com todas as suas desigualdades regionais e estaduais. Afinal,
quando dizemos que o Brasil forma um médico e um dentista para apro-
ximadamente 19 mil habitantes e que no Norte essa proporção é de um
para mais de 40 mil e no Nordeste um para mais de 33 mil, estamos

47
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

também dizendo que vivemos em um país bastante desigual na formação


de profissionais. No entanto, mesmo essa desigualdade parece mais refra-
tada do que refletida: os campi do Rio de Janeiro, Estado com 8,4% da
população, formam 24% dos médicos do Brasil, enquanto há Estados que
ainda não formaram um único médico, dentista ou enfermeiro. As desi-
gualdades no campus em geral superam as projetadas pela sociedade.
Como o crescimento dos cursos mostra-se muito desigual (nos últi-
mos 14 anos, Fisioterapia e Enfermagem cresceram 741% e 443%, enquan-
to Medicina e Odontologia cresceram apenas 38% e 50%, respectivamente),
é fácil perceber que as políticas públicas para a formação na saúde precisam
estar ancoradas nas realidades específicas de cada uma das áreas do conhe-
cimento vis-à-vis as demandas dos Estados e da sociedade em geral.
Só com políticas de expansão, combinadas com a democratização do
acesso e da permanência, como as em implantação, é possível fazer com
que o campus deixe de ser este espelho que aguça as nossas distorções e se
torne uma lâmpada que ilumine os caminhos rumo à igualdade de oportu-
nidades para todos. Afirmar que o campus apenas reflete a sociedade equi-
vale a atribuir-lhe um papel passivo que, como demonstram os dados, ele
certamente não tem. Significa também retirar dele o papel de agente capaz
de interferir de um modo mais desejável na realidade existente.
Diante desse quadro, ficam evidentes os dez grandes e imediatos
desafios da educação superior que precisam ser enfrentados pelo País nos
próximos anos:
Desafio 1: Superar a expansão da oferta de vagas para chegarmos à
efetiva democratização do acesso e da permanência dos estudantes de
baixa renda.
Desafio 2: Buscar um equilíbrio mais adequado entre o público e o
privado. A meta estabelecida no PNE, embora aparentemente modesta,
deve ser buscada por meio da aceleração do crescimento das matrículas
públicas, em ritmo consideravelmente superior ao das matrículas privadas,
sem desacelerar o ritmo de crescimento do setor privado.
Desafio 3: Trabalhar a diversidade institucional em estreita relação de
seus objetivos aos objetivos maiores do Estado brasileiro, de seu desenvolvi-
mento, de sua economia, de sua cultura, e das necessidades de sua gente.
Desafio 4: Organizar uma cooperação mais intensa da União com
os entes Federados, de modo a evitar a balcanização do sistema educaci-
onal superior.

48
Educação superior no Brasil –10 anos pós-LDB:
da expansão à democratização

Desafio 5: Buscar, por meio de políticas compensatórias, um equi-


líbrio entre a oferta de educação nas diversas regiões do País e a represen-
tação percentual da população na sociedade brasileira.
Desafio 6: Manter a oferta de financiamento estudantil para filhos
de classe média baixa e ampliar o financiamento para jovens de classe baixa,
entre eles os do ProUni, que por vezes são tão pobres que mesmo com a
bolsa do ProUni encontram dificuldades para se sustentarem no campus.
Desafio 7: Induzir o desenvolvimento com a criação de novos cur-
sos de graduação em áreas do conhecimento, por exemplo, Ciências Agrá-
rias e Aqüicultura, que têm papel estratégico para o desenvolvimento do
País, e representação até o momento muito pequena no conjunto da edu-
cação superior.
Desafio 8: Superar a ociosidade das vagas no ensino superior priva-
do com programas de valorização do ensino médio e de políticas mais
agressivas de financiamento estudantil, acompanhada da expansão da oferta
pública e de racionalização da oferta no setor privado.
Desafio 9: Manter a política de apoio à titulação no setor público e
induzir o setor privado a ampliar seus investimentos em capacitação de
mestres e, especialmente, de doutores.
Desafio 10: Não abrir mão do sonho de chegarmos a 2011 com
30% dos jovens da faixa etária apropriada na educação superior, aumen-
tando gradativamente os investimentos públicos em educação até chegar
a 7% do Produto Interno Bruto (PIB).
São estes os grandes desafios que a realidade revelada pelos núme-
ros do Censo da Educação Superior, nos últimos 15 anos, nos impõe. A
superação dos desequilíbrios apontados e a construção de um sistema de
educação superior mais equânime e de melhor qualidade implicam, salvo
melhor juízo, em colocar esses desafios como prioridades inarredáveis da
agenda nacional.

Referências bibliográficas

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2005.

______. Plano Nacional de Educação (PNE). Lei nº 10.172/2001. Brasília:


Congresso Nacional, 2001.

49
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad). Brasília, 2005.


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TEIXEIRA. Sinopse Estatística do Ensino Superior 2004. Brasília, 2005.

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RISTOFF, D.; ARAÚJO, L. Missão Inadiável. In: UNIVERSIDADE XXI: a encruzilha-


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Brasília: Inep, 2004. (Série Documental. Textos para Discussão)

UMA ESCOLA DO TAMANHO DO BRASIL. Programa de Governo do Candidato


Lula, 2002.

50
II – A EDUCAÇÃO SUPERIOR
EM DEBATE 10 ANOS PÓS-LDB
A) Acesso
3
Reforma da Educação Superior:
o debate sobre a igualdade no acesso*
Deise Mancebo**

* Versão preliminar desse texto foi apresentada na XXIX Reunião Anual da ANPEd, em 2006, no colóquio “A educação
superior na América Latina: o debate sobre a igualdade no acesso às universidades".
** Doutora em História da Educação (PUC/SP); pós-doutorado pela USP; professora e pesquisadora do Programa em
Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/Uerj) e do Programa de Psico-
logia Social da mesma universidade; e-mail: mancebo@uerj.br.
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

Introdução

Profundas reestruturações ocorreram nos sistemas educacionais la-


tino-americanos, nos últimos 25 anos, por conta da adoção do receituário
neoliberal pelos governos desses países.
Muito se tem escrito acerca do neoliberalismo e não é minha inten-
ção, neste trabalho, insistir em reiterações desnecessárias. Interessa-me
reafirmar, no entanto, alguns aspectos sobre a natureza e o sentido que
esse projeto tem assumido na educação e, especificamente, na educação
superior, mesmo porque, como uma alternativa política, econômica, soci-
al, jurídica e cultural para a crise econômica do mundo capitalista, inicia-
da com o esgotamento do regime de acumulação fordista, em finais dos
anos 1960, o neoliberalismo representa uma necessidade global de
restabelecimento da hegemonia burguesa, trazendo implicações não só
para a vida econômica, mas também para as diversas relações que se esta-
belecem entre os homens.
No campo educacional, com a adoção da pauta neoliberal, estabe-
leceu-se em todos os países do continente, uma série de medidas, enfeixadas

57
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

ou não sob a denominação de reformas, que, para além das especificidades


locais, evidenciaram uma profunda redefinição do papel do Estado na sua
relação com a educação. Na realidade, em consonância com o receituário
mais geral, assistiu-se a uma retração financeira do Estado na prestação
de serviços sociais (incluindo educação, saúde, pensões, aposentadorias,
entre outros) e a subseqüente privatização ou, pelo menos, tentativa de
privatização, desses serviços. Tratou-se, portanto, de uma redefinição do
Estado em termos classistas, com redução de suas funções de cunho social
universalista, e da ampliação do espaço e do poder dos interesses privados.
A educação não escapou dessa reordenação mais geral, de modo
que os sistemas educacionais foram submetidos a profundos processos de
privatização em nome dos benefícios supostamente advindos do livre
mercado.
No entanto, o discurso neoliberal em defesa do Estado-mínimo e a
conseqüente estagnação ou redução da prestação de serviços públicos
não deve levar à confusão de se supor que o Estado esteja se retirando da
cena econômica e política. Pelo contrário, ele permanece com forte parti-
cipação em um sentido social amplo. No campo educacional, por exem-
plo, o chamado Estado-avaliador priva-se do financiamento da educação,
ou pelo menos, reduz drasticamente sua participação na oferta desse ser-
viço, provoca, em decorrência, a deterioração da infra-estrutura e dos sa-
lários do pessoal docente e não-docente; todavia, incrementa e sofistica
suas funções de fiscalização, descendo a detalhes mínimos para a deter-
minação dos graus de eficácia, de eficiência e de produtividade das insti-
tuições educativas e de seus diversos atores. Os Estados não só não des-
cartaram como refinaram seu papel controlador, disciplinador e regulador
dos sistemas sociais, com o uso de novos sistemas de coordenação, avali-
ação e controle que estimulam a administração gerencial e a competição
de tipo empresarial e submetem os subsistemas de ensino aos mecanismos
e interesses do mercado.
Para tal, em toda a América Latina, foram adotadas novas medidas
jurídicas, com a aprovação de leis de educação, gerais ou específicas, que
viabilizassem, em maior ou menor escala, conforme as particularidades
locais, os seguintes princípios: (1) a racionalização de recursos, descartan-
do ou, pelo menos, minimizando a centralidade dos Estados na manuten-
ção da educação, por meio da transferência das decisões de investimento

58
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

e dos conflitos gerados nessa seara, para a esfera do mercado com toda
carga de exclusão que tal escolha produz; (2) a adoção de avaliações
gerenciais que compreendem o controle do sistema educativo, por parte
de um “núcleo central", mas sem intervir diretamente na sua gestão, pelo
menos no que tange à melhoria da oferta educacional; (3) a flexibilização
de gestão, justificada não raramente pela necessidade de ampliação do
sistema, obviamente, ao menor custo possível, implicando reformas
curriculares, mudanças significativas na gestão escolar; profundas modifi-
cações no trabalho docente e, especialmente no caso da educação superi-
or, a diversificação das instituições, com a definição de novos tipos de
estabelecimentos de ensino que não mais relevem a indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão; (4) a descentralização gerencial, pela qual os
principais parâmetros educacionais continuam a ser estabelecidos, de for-
ma concentrada, em um núcleo, mas com descentralização da gestão ad-
ministrativa, com o que se mascara a heteronomia, na exata medida em
que se constrói uma “ilusão de participação" (Lima, 1997), por meio do
apelo a um maior compromisso e envolvimento dos segmentos educacio-
nais, inclusive no financiamento, ainda que parcial, do sistema; e, por fim,
(5) a privatização dos sistemas educacionais, compreendendo não só seu
aspecto visível, qual seja, a privatização ou o (des)investimento do Estado
na educação pública; como também a delegação de responsabilidades
públicas para entidades privadas; a reconfiguração quanto à oferta do
ensino superior com o estímulo a uma série de ações delegatórias às inici-
ativas empresariais destinadas a substituir ou a complementar as respon-
sabilidades que os governos recusam, ou assumem apenas parcialmente e,
no caso das universidades, a mercantilização do conhecimento, entre ou-
tros aspectos.
A análise do cotidiano dos sistemas educacionais também põe a
nu alguns vieses bastante graves, a partir da absorção/apropriação das
reformas de cunho neoliberal. Tal agenda afeta a cultura acadêmica, de
modo que “representações, motivações, normas éticas, concepções, vi-
sões e práticas institucionais dos atores universitários acerca dos objeti-
vos, das tarefas da docência, investigação, extensão e transferência que
condicionam substancialmente as maneiras de realizar as mesmas"
(Naidorf, 2005, p. 144) são profundamente mudadas no sentido do indi-
vidualismo no enfrentamento das situações problemáticas escolares e da

59
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

vida; do acirramento da competição entre instituições educacionais e entre


os pares; da supervalorização, inclusive por parte dos próprios atores univer-
sitários, das avaliações em escala nacional, com viés pseudomeritocrático,
para não dizer meramente classificatório, normativo e punitivo; do
imediatismo em relação às demandas do mercado de trabalho; em síntese,
ocorre uma construção ideológica, no próprio tecido escolar, nada desprezí-
vel, porque miúda, caucionada pelo discurso do mérito, mas pretensiosa nas
intenções, na medida em que procura agir desmontando os direitos sociais
que possam ser ordenados como compromisso social coletivo.
Por fim, há que se destacar o papel central desempenhado pelos
organismos financeiros internacionais na promoção e no estímulo às polí-
ticas de viés neoliberal, tanto no campo econômico quanto no campo
social, de modo que, para uma compreensão mais ampla das estratégias
nacionais para a educação, não se pode perder de vista que elas são parte
de um processo internacional mais amplo. É preciso atentar, portanto,
para a forte dependência das reformas educacionais em relação às diretri-
zes dos organismos internacionais, não restando surpresa quanto ao fato
de a mercantilização dos serviços educacionais estar, há quase uma déca-
da, na agenda do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS) da
Organização Mundial do Comércio (OMC).

O debate sobre a igualdade no acesso


à educação superior

Esse é o contexto a se considerar no debate sobre a igualdade no


acesso à educação superior.
Existe, obviamente, amplo consenso sobre a necessidade de expan-
são do acesso à educação superior e, sob esse aspecto, é louvável a atenção
que qualquer governo dispense ao tema. No Brasil, por exemplo, a taxa de
escolarização líquida (que expressa as matrículas na educação superior de
estudantes da faixa etária de 18 a 24 anos) está em 10,4%, conforme último
Censo da Educação Superior (Inep, 2004), configurando um estado de alerta
em relação à questão. Não obstante, considerando o contexto anteriormen-
te apresentado, cuidados precisam ser tomados quanto às políticas públicas
para a expansão do acesso a esse nível de ensino:

60
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

1 – A expansão deve ser postulada no pólo público da educação


superior, o que implica se afirmar, por um lado, que os recursos dos Esta-
dos para manutenção desse nível de ensino devem ser ampliados,1 para
contemplar a expansão e interiorização da rede. No caso brasileiro, um
crescimento razoável do acesso é proposto pelo Plano Nacional de Educa-
ção (PNE) (Brasil, 2000) e pelo Projeto de Lei nº 7.200 (Brasil, 2006) que
indicam a meta de 40% das vagas no ensino público até 2011. No entan-
to, o aumento de recursos orçamentários deve pressupor gastos com a
entrada de novos alunos, mas também deve prever a recuperação da re-
muneração da força de trabalho docente, bastante deteriorada, bem como
a assistência estudantil em moldes consistentes com políticas agressivas
de inclusão social.
Por outro lado, a expansão do acesso deve ocorrer sem delegações
diretas ou indiretas dessa responsabilidade à iniciativa privada, bem como,
sem a alocação de verbas públicas, mesmo que indiretas, para os estabele-
cimentos de ensino superior privados, como é o caso da renúncia fiscal
promovida pelo programa brasileiro Programa Universidade para Todos
(ProUni), ao comprar vagas de escolas particulares como forma de ampli-
ação do acesso.
2 – A expansão não pode ocorrer com o sacrifício da própria for-
mação, o que impõe a implementação de instituições de alta qualidade.
Nesse ponto é oportuno definir de que qualidade se trata. Preli-
minarmente, deve-se relembrar que o uso desse conceito – em especial
nos procedimentos avaliativos – remete a um cenário de tensões, com-
porta níveis de conflitividade política e sustenta-se mercê de uma rede
de alianças e de enfrentamentos entre agentes e instituições com inte-
resses individuais e coletivos distintos. A análise dos atores presentes nos
embates, o resultado sempre instável dessas tensões, o projeto que se
alça à condição de hegemônico dão o tom de quais serão as finalidades
da qualidade em causa. Atualmente, conforme Sguissardi (2006, p. 1), a
tendência hegemônica: “[...] é a de associá-la (a qualidade) à avaliação
e/ou à acreditação, o que envolve necessariamente o Estado, ou melhor,

1
O financiamento das instituições federais de ensino superior (Ifes) corresponde, atualmente, a 0,6% do Produto Interno
Bruto (PIB), distando em muito do índice histórico aplicado em 1989 (0,95% do PIB) e da reivindicação do Sindicato
Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) (1,4% do PIB até 2011).

61
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

o chamado Estado Avaliador. Mas se associa também e de forma osten-


siva à competitividade e empregabilidade".
Prossegue afirmando que nesse pólo conceitual e político alinham-se
governos nacionais e regionais, organismos financeiros multilaterais e grandes
conglomerados e corporações econômicas transnacionais. “Todos estes têm
interesse na qualidade da universidade, entre outras razões porque a ciência-
tecnologia e a formação que aí se transmite tornou-se mercadoria-chave, ao
lado do trabalho, da acumulação do capital" (sic) (Ibidem, p. 5).
Na realidade, as mudanças tecnológicas e de organização do traba-
lho por que passam os países de capitalismo avançado a partir de fins da
década de 1970 configuram o mundo produtivo com algumas caracterís-
ticas “novas": flexibilização da produção e reestruturação das ocupações;
integração de setores da produção; multifuncionalidade e polivalência dos
trabalhadores; valorização dos saberes dos trabalhadores não-ligados ao
trabalho prescrito ou ao conhecimento formalizado, o que está a exigir
uma nova educação. Nesse novo contexto, o termo qualidade, mesmo na
sua conotação produtivista, vem sendo apontado como inadequado, pois
remete muito diretamente às relações, por um lado, com a formação teó-
rico-técnica e com os diplomas e, por outro, com os códigos das profis-
sões. Assim, a qualidade e a qualificação não dariam conta da flexibilização
em curso, sendo preferível o uso do termo competência, que com mais
precisão aponta para as formas de adaptação à diversidade do concreto, a
capacidade que os trabalhadores têm de enfrentar situações e aconteci-
mentos próprios de um campo profissional, com iniciativa e responsabili-
dade, guiados por uma inteligência prática do que está ocorrendo e coor-
denando-se com outros atores para mobilizar suas próprias capacidades
(Zarifian, 2001). Enfim, o termo competência vem sendo mais utilizado,
pois traduz um conceito mais apropriado à aferição da capacidade real do
trabalhador, sua subjetividade e capacidade de envolver-se com os saberes
que organizam as atividades de trabalho, supostamente mais integradas e
flexíveis. Em síntese, atende melhor às mudanças em curso e às novas
demandas do capital.
De todo modo, a qualidade tomada sob a ótica empresarial – ou
sua forma mais moderna: a competência – identifica-se com eficiência e
produtividade e tem inspirado boa parte das propostas governamentais
latinas, incluindo as brasileiras.

62
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

Todavia, Sguissardi (2006, p. 12-13) chama a atenção para outra


possibilidade de se conceituar a qualidade na educação superior:

[Trata-se da qualidade] acadêmico-crítica que, ao se propor integrar ensi-


no e pesquisa em cada instituição de ensino superior, tenta fugir à mera
produtividade como medida de desempenho institucional [considerando
menos] o quanto se produz, a que velocidade e a que custo, e muito mais
o que se produz.

No caso do ensino, a qualidade assim entendida remete à capaci-


dade e à habilidade de se contribuir para ultrapassar a mera "socialização"
para o mercado de trabalho ou à adaptação das pessoas ao quadro de
incertezas e instabilidades decorrentes das transformações societárias cor-
rentes (empregabilidade), “para se desenvolver a capacidade de pensar
criticamente e de produzir conhecimento" (Ibidem, p. 13).
Tais considerações implicam alguns desdobramentos: remetem no-
vamente à defesa do pólo público e a situação brasileira é claríssima quan-
to à importância dessa afirmação. Com a adoção das políticas neoliberais,
o que no caso da educação superior brasileira se deu mais sistematica-
mente a partir da década de 1990, as instituições públicas de educação
superior foram profundamente afetadas. Mesmo que se possa observar
leve reversão nessa tendência no último governo, o conjunto das mudan-
ças implementadas nos últimos 15 ou 16 anos, entre outros aspectos,
retraiu o financiamento das universidades, submetendo-as a políticas de
austeridade, com salários arrochados e recursos para manutenção e inves-
timento progressivamente diminuídos.
Esse cenário estimulou, inclusive, a privatização no interior das
instituições por meio da disseminação de parcerias entre as universidades
públicas e as fundações privadas, da oferta de cursos pagos de extensão,
da cobrança de algumas taxas, entre outros procedimentos.
Não obstante todo esse quadro, essas mesmas instituições públicas
também ofereceram uma resposta corajosa à situação, não só pelas diver-
sas lutas que travaram em defesa da educação pública, inclusive com
greves intermináveis, como pelo fato de terem se mantido na liderança no
oferecimento de uma formação de qualidade e na produção de conheci-
mentos nas diversas áreas do saber.
No pólo oposto, a maioria das instituições privadas brasileiras vol-
tou-se tão-somente à absorção de formação estudantil, com oferta para

63
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

carreiras de alta procura e baixos custos operacionais.2 Enfim, expandi-


ram-se como “empresas lucrativas", exceto algumas universidades
confessionais, geralmente católicas e extremamente caras, com propostas
educativas de alta qualidade, mas para as elites.
Assim, as instituições privadas aproveitaram-se com grandes van-
tagens da situação de crise do setor público: captaram para si a demanda
reprimida na população de classe média para a formação superior, desfru-
taram com excepcional senso de oportunidade das facilidades oferecidas
por governos e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que, “median-
te uma regulação pseudoliberalizadora", autorizaram a criação de inúme-
ras novas instituições e se beneficiaram

[...] de recursos financeiros diretos ou indiretos [isenções fiscais, crédito


educativo, Fies [Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superi-
or] e, em menor escala, recursos para pesquisas concedidos por governos
que sistematicamente demonstra[ram] mais generosidade com o lobby
empresarial que controla a educação superior privada, do que com os re-
clamos da comunidade acadêmica que atua nas instituições públicas (Gentili,
2001, p. 99).

O quadro atual no Brasil, conforme dados do Censo da Educação


Superior de 2004, avaliza tal análise: das 2.013 instituições de educação
superior brasileiras, 88,87% (1.789) são do setor privado e 11,13%, do
público. Em síntese, o setor privado responsabiliza-se por 70,8% das ma-
trículas da educação superior existentes no País.
No entanto, a despeito do investimento em educação superior ser
um negócio rentável e garantido até data recente,3 as instituições priva-
das não incrementaram sua qualidade, seja no ensino ou na produção de
conhecimentos.
Entende-se, pois, que a expansão do acesso ao ensino superior,
pelo viés privado, ao contrário de ser incentivada, necessita ser controlada,
pois, longe de resolver ou de corrigir a distribuição desigual dos bens

2
Segundo dados do Censo da Educação Superior (2004), os cinco maiores cursos do Brasil, segundo número de matrículas
e de concluintes são os de Administração, Direito, Pedagogia, Engenharia e Letras, nesta ordem.
3
Atualmente, a alternativa privada tem encontrado limites estruturais no poder aquisitivo de sua clientela (Corbucci, 2002),
ainda mais, quando se levam em conta as restrições econômicas características dos anos 1990 em diante, tais como o baixo
e oscilante crescimento econômico e suas conseqüências mais perversas: desemprego e queda na renda real média. Assiste-
se, assim, a uma crise nesse setor do capital e o esgotamento de seu potencial de expansão é evidente quando se observa
o percentual de vagas não-preenchidas pelo vestibular nessas instituições. Enquanto, em 1998, a proporção já era de 20%,
em 2006, as vagas não-preenchidas saltam para 50%.

64
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

educacionais, tende a aprofundar as condições históricas de discriminação


e de negação do direito à educação superior a que são submetidos os
setores populares. A alocação dos estudantes pobres nas instituições par-
ticulares, mesmo que acompanhada de programas que ofereçam bolsas e
sejam gratuitos para os estudantes (como é o caso do ProUni) cristaliza
mais ainda a dinâmica de segmentação e diferenciação no sistema escolar,
destinando escolas academicamente superiores para os que passarem nos
vestibulares das instituições públicas e escolas academicamente mais fra-
cas, salvo exceções, para os pobres.
O debate sobre a igualdade de acesso à educação superior, em
especial quando está em causa a formação da população mais pobre, não
deve se pautar pela edição de medidas legais baseadas em um imediatismo
pragmático, em ondas de expansão feita às pressas e sem garantias para a
qualidade do ensino. Infelizmente, a Reforma da Educação Superior em
curso no Brasil (Projeto de Lei nº 7.200/2006) não escapa dessa crítica. A
compra de vagas na iniciativa privada, com o ProUni, a abertura de mais
de quatro dezenas de novos campi e a criação de dez novas universidades
federais, sem a necessária contrapartida da área econômica, configuram
um quadro de expansão que enfoca unicamente o ensino e que traz con-
sigo sérios riscos de perdas irreparáveis na qualidade da formação, pelo
menos, se prevalecer a idéia de promover a expansão à custa de um incre-
mento significativo na relação alunos/docente, alcançado por meio de
aumento da dedicação docente à sala de aula, da alocação de um maior
número de alunos por turma e, sobretudo, graças ao esperado uso de
técnicas de ensino a distância, cujo caso exemplar é o da criação da Uni-
versidade Aberta do Brasil (UAB).4
Outro aspecto a ser considerado no debate da igualdade de acesso
à educação superior, já afirmado anteriormente, refere-se à flexibilização
das condições de oferta desse nível de ensino.

4
A UAB, cujo projeto se encontra em discussão, destina-se a ampliar o acesso à educação superior, por meio de cursos e
programas de educação a distância, desenvolvidos em articulação com as instituições públicas de ensino superior do País,
com o estímulo à sua organização em redes regionais, em parceria com os sistemas estaduais e municipais de educação e
que poderá celebrar convênios e acordos com instituições privadas. Conforme entrevista concedida pelo Ministro da Educa-
ção, Fernando Haddad, "o consórcio formado pelas instituições federais com municípios de todo o País, lançado no final de
2005, tem tudo para tornar-se um sucesso e ajudar o País a cumprir a meta de colocar, no mínimo, 30% dos jovens entre
18 e 24 anos na universidade até 2010" (Vaz, 2006).

65
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

O Censo da Educação Superior (2004) informa que, das 2.013 ins-


tituições brasileiras de ensino superior, somente 8,4% (169) são universi-
dades 5 e, portanto, somente nessas instituições está “garantida" a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, a presença de um
terço de doutores e mestres em seu quadro docente e um terço de profes-
sores contratados em regime de tempo integral (conforme reza a LDB, em
seu art. 52).
O Projeto de Lei encaminhado ao Congresso pelo Executivo (PL nº
7.200/2006), que versa sobre a Reforma da Educação Superior, pretende
aprofundar esse quadro de flexibilização, pois, além das universidades,
centros universitários e faculdades, apresenta as universidades
especializadas; os centros universitários especializados, os cursos seqüenciais,
os cursos a distância e os cursos para alunos não-regulares. Cria o que se
vem chamando “certificação em larga escala" (Lima, 2005); de diplomas,
certificados e atestados, obviamente, com valores bastante distintos no
mercado de trabalho e na bagagem de conhecimentos – especialmente os
críticos – auferidos pelos estudantes. Assim, ao flexibilizar as condições de
prestação desse serviço, o Projeto de Lei nº 7.200/2006 cria oportunidades
para que se aprofunde a heterogeneidade do sistema e a desigualdade
educacional. Em síntese, a fragmentação do grau acadêmico de gradua-
ção amplia-se para que se alcance de forma rápida e pragmática a
“universalização" desse nível de ensino, mas tudo isso se dá às expensas
da universalização da qualidade.
Por fim, é preciso cautela máxima em relação a um discurso que,
não raramente, tem permeado os debates brasileiros sobre a necessidade
de expansão da educação superior. Advoga-se que a formação profissio-
nal nesse nível pode ser uma resposta estratégica aos problemas postos
pela globalização econômica, uma resposta que poderia reverter as conse-
qüências nefastas advindas das transformações do mundo do trabalho,
daí a necessidade de sua expansão. Obviamente que em um contexto de
alto desemprego, desenvolvem-se maiores exigências educacionais para o
acesso aos postos de trabalho, de modo que os que têm menos formação

5
O maior número de instituições são faculdades, escolas ou institutos (73,2%); os centros universitários representam 5,3%
do total; as faculdades integradas são 5,9%; e os centros de educação tecnológica (ou faculdades tecnológicas) são 7,2%.

66
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

apresentam menores chances nos processos seletivos. Todavia, o desem-


prego em massa dos jovens que, pelo menos nas duas últimas décadas,
tem sido um instrumento deliberado de política fiscal e monetária para
assegurar estabilidade financeira e de câmbio para os especuladores glo-
bais, em síntese, uma conseqüência direta da política macroeconômica
ditada pela ressurgência liberal, não pode ser apontado como uma decor-
rência nefasta da não universalização do ensino universitário, justifican-
do, assim, a urgência de reformas que ampliem, mesmo que ao custo da
qualidade, o acesso a esse nível de ensino. Enfim, é no mínimo ingênua, a
crença de que é possível corrigir as “distorções" do mercado com base na
ampliação da qualificação dos trabalhadores. Pior ainda, é vender a ilusão
de que o conserto das “distorções" possa ocorrer com o oferecimento de
uma educação de baixa qualidade acadêmico-crítica.

Considerações finais

A análise da expansão da oferta da educação superior não permite


antever, com otimismo, avanços na igualdade de acesso a esse nível de
ensino, pelo menos, nos moldes em que postulamos. Mais particularmente
no Brasil, não se visualizam medidas que fortaleçam o pólo público e
promovam uma efetiva regulação do setor privado comercial; garantindo,
ao mesmo tempo, um acesso ampliado à educação superior de qualidade.
Infelizmente, esse não é um caso específico do Brasil. O processo
pelo qual a universidade se redefine contemporaneamente coincide com
sua adaptação às exigências do tempo histórico: mercado, tecnociência,
organização eficaz e tecnicismo produtivista (Silva, 2005). Com uma agenda
imposta de fora, a universidade tem passado por um mecanismo de
desinstitucionalização, no qual se inscrevem dinâmicas, tais como
heteronomia ou absorção de critérios e paradigmas externos; privatização
ou adaptação aos mecanismos neoliberais de destruição da esfera pública;
subordinação ao mercado, o que inclui a entronização da organização
privada como modelo e mudança drástica de sua cultura interna, na dire-
ção de uma postura acrítica, conciliatória, utilitária, tecnicista, entre ou-
tros aspectos, que em nada avançam no sentido de uma expansão que
viesse a ampliar a igualdade no acesso às universidades.

67
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Todavia, se considerarmos que a produção histórica de nós mes-


mos e de nossas instituições é um processo, não cabe entender os rumos
que a educação superior vem assumindo mundialmente como natural e
invariavelmente postos. Na realidade, conforme Mollis (2005, p. 4) bem
assinala, “la universidad se construye como una instancia de producción,
control y legitimación, en un contexto de tensión constante entre lo que
la sociedad, el Estado, y el mercado productivo le delegan y sus tradicionales
funciones de producción y difusión del saber". Ao que se poderia acres-
centar que as mudanças na cultura acadêmica ocorrem em um contexto
de constante disputa e negociação entre as pressões externas e as opções
éticas e intelectuais dos atores universitários.
Obviamente, não se trata de reivindicar, nostalgicamente, retornos
a pautas institucionais passadas, que se desejaria por força conservar, ig-
norando as mudanças históricas e os novos modos de inserção social da
instituição universitária, o que significaria um aprisionamento no interior
de uma idéia fixa, a-histórica e errônea da universidade pretérita. Na rea-
lidade, se dedicássemos alguma atenção ao passado da universidade, olhan-
do-o criticamente, conforme Silva (2005, p.3):

[...] não encontraríamos nada de vetusto, nem de enobrecedor, nem de


demasiadamente conspícuo, isto é, não encontraríamos nada de uma elite
corporativa que pairasse acima da sociedade e da história. O que vemos, de
fato, é o mesmo que encontramos em todas as realidades humanas. A
tentativa de criação, que passa por inumeráveis contradições, de um modo
novo de construir o saber e os critérios de conduta social e histórica. E na
realização desta tarefa, o confronto com a tradição, com o presente, com o
poder, com as outras instituições e com todas as injunções e contingências
que pesam sobre a teoria e a prática.

No Brasil, mesmo considerando toda a conjuntura adversa para a


educação superior, há que se registrar o que oferece tensão e conflita, o
que daria consistência a outro texto, se espaço houvesse. Mas cabe ao
menos citar a existência, de movimentos que se contrapõem, seja no cam-
po acadêmico, ou no campo sindical,6 às políticas para a educação supe-
rior aqui criticadas. Tais iniciativas críticas e insurgentes dão consistência

6
Sobre a crítica acadêmica, é de valia a consulta aos trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), especialmente os do Grupo de Trabalho 11 que versam sobre Políticas
da Educação Superior (http://www.anped11.uerj.br). Sobre as lutas e enfrentamentos sindicais impõe-se a consulta ao sítio
do Andes-SN (http://www.andes.org.br).

68
Reforma da educação superior:
o debate sobre a igualdade no acesso

à crença de que, em se tratando de universidade, sempre existe a possibi-


lidade de um momento de suspensão, no qual se reelabora outro código
de sociabilidade, outro código de civilidade e de relação com o público, no
qual se pode construir o dissenso, desafiando o paradigma do pensamento
único, para indagar outros saberes, outras práticas, outros sujeitos, outros
imaginários capazes de conservar viva a chama de alternativas para essa
ordem social de hegemonia do capital (Lander, 2001) e de construir um
sentido social, ético e mais igualitário para a universidade.

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70
4
Democratização do acesso e inclusão
na educação superior no Brasil
João Ferreira de Oliveira*
Afrânio Mendes Catani**
Ana Paula Hey***
Mário Luiz Neves de Azevedo****

* Professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG); doutor em Educação pela Universidade de
São Paulo (USP). Pesquisador do CNPq; e-mail: joaofo@terra.com.br
** Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP); livre-docente em Educação pela Universidade
de São Paulo (USP). Pesquisador do CNPq; e-mail: amcatani@usp.br
*** Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp); doutora em
Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); e-mail: anaphey@uol.com.br
**** Professor na Universidade Estadual de Maringá (UEM); doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); e-
mail: mario.de.azevedo@uol.com.br
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

O sistema nacional de educação superior ainda não está aberto às


amplas camadas populacionais no Brasil. A universalização do acesso cons-
titui-se tema emergente, complexo e de fundamental importância, sobre-
tudo se levarmos em consideração o cenário de construção da chamada
sociedade do conhecimento e, ainda, as mudanças do mundo do trabalho,
o processo de mundialização do capital e as alterações que vêm ocorrendo
no papel do Estado desde os anos 1980.
Uma década após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB – Lei
nº 9.394/96)1 verifica-se que as políticas governamentais intensificaram o
processo de descentralização da educação por meio de uma maior atribui-
ção de competências para Estados e municípios, institucionalizando, em
especial, os sistemas municipais de ensino. Além disso, ampliou-se a auto-
nomia das escolas mediante, sobretudo, exigência de projeto pedagógico da

1
Com a aprovação da LDB em 1996 ocorreram modificações significativas na organização da educação escolar brasileira.
Além dos níveis definidos – educação básica (composta pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e
educação superior –, estruturaram-se algumas outras modalidades de educação (de jovens e adultos, especial, profissional,
a distância, do campo e indígena).

73
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

escola e repasse de dinheiro direto para a unidade escolar, tendo também


flexibilizado a organização escolar (por exemplo, com a adoção dos ciclos,
aceleração de estudos, validação de conhecimentos adquiridos fora da esco-
la, etc.). Cabe registrar, no entanto, que foi fortalecido o papel da União na
coordenação política da educação nacional, destacando-se as diretrizes e
parâmetros curriculares, a constituição e implementação de sistema de ava-
liação e as alterações no padrão de gestão e financiamento.
Nos anos 1990, foram significativas as alterações no âmbito da edu-
cação superior. Entre outras, as mudanças na organização acadêmica, nos
processos de avaliação, nas diretrizes curriculares dos cursos de graduação,
principalmente a partir de 1995, tiveram o objetivo de promover a diversifi-
cação, a diferenciação e a rápida aceleração da oferta de educação superior
– o que veio a ocorrer, em especial, por meio do crescimento significativo do
setor privado. A introdução do termo "processo seletivo" para o ingresso no
ensino superior, na LDB, em lugar do tradicional termo "vestibular", aparece
como parte da estratégia de ampliar os mecanismos de acesso a esse nível de
ensino. Torna-se necessário, pois, analisar em que medida as políticas e as
ações governamentais, bem como a legislação decorrente, contribuíram ou
não para a maior democratização do acesso, permanência e aumento do
percentual de concluintes na educação superior.
De modo geral, verifica-se que o crescimento da oferta de educa-
ção infantil (0 a 5 anos), a perspectiva de universalização do ensino
fundamental (6 a 14 anos) e o aumento da demanda e do acesso ao
ensino médio (15 a 17 anos), incluindo a educação de jovens e adultos,
significa, de certa maneira, maior democratização das oportunidades
educacionais nesses níveis de educação/ensino.2 É evidente, no entan-
to, que não basta ampliar o acesso à educação, é preciso garantir a
permanência e a qualidade da educação para todos. Por sua vez, esse
crescimento do atendimento em educação básica,3 sobretudo no ensino
médio, repercutirá cada vez mais no aumento da demanda por educação

2
O Censo da Educação Básica (2005) registrou um total de 33.534.561 matrículas no ensino fundamental, sendo 18.465.505
nas quatro primeiras séries e 15.069.056 nas quatro últimas. Já o ensino médio contabilizou 9.031.302, enquanto o ensino
superior totalizou 4.163.733 matrículas nos cursos de graduação. Em 2004, o número de concluintes do ensino fundamen-
tal foi de 2.462.319, enquanto o ensino médio registrou 1.879.044 e o ensino superior 528.223 concluintes.
3
De acordo com a LDB (Lei n° 9.394/96), integram a educação básica a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino
médio.

74
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

superior, o que representa enorme desafio para o País no que tange à


oferta de vagas nesse nível de ensino.
Atualmente as instituições de educação superior (IES) no país classifi-
cam-se, quanto à sua natureza jurídica, em públicas e privadas (com ou sem
fins lucrativos) e, quanto à sua organização acadêmica, em universidades,
centros universitários, faculdades integradas, faculdades, instituições superio-
res ou escolas superiores. Há, ainda, os centros de educação tecnológica4 e os
institutos superiores de educação, criados e destinados pela LDB à formação
de professores. O Censo da Educação Superior (2004) registrou a existência de
2.013 IES no País, sendo 224 públicas (87 federais, 75 estaduais e 62 munici-
pais) e 1.789 privadas (1.401 particulares e 388 comunitárias/confessionais/
filantrópicas), ou seja, as IES privadas representam 88,87% do total.
Por sua vez, os cursos e níveis da educação superior ofertados no
País são os seguintes: a) cursos seqüenciais (de formação específica e de
complementação de estudos); b) cursos tecnológicos; c) cursos de gradu-
ação; d) cursos/programas de pós-graduação, incluindo especialização,
mestrado (acadêmico e profissional) e doutorado; e) cursos de extensão,
oferecidos nos níveis de iniciação, atualização, aperfeiçoamento, qualifi-
cação, requalificação profissional e outros. Além desses cursos e etapas da
educação superior, é preciso lembrar ainda dos chamados cursos
emergenciais para formação de professores e dos cursos nas modalidades
de ensino semipresencial e a distância, que vêm tendo grande ênfase nas
políticas educacionais na última década.
Em termos da população estudantil, pode-se dizer que há uma
baixa cobertura da educação superior. A taxa de escolarização líquida no
País, para a faixa etária entre 18 e 24 anos, é de apenas 10,5 (Inep, 2005).
De acordo com Sguissardi (2006, p. 1.027),

Trata-se de uma das mais baixas na América Latina, em que há casos de


países, como a Argentina, o Chile e o Uruguai, que já ultrapassavam, em
2002, os 30%, meta que o Brasil estabeleceu para o ano 2011, isto é, dez
anos após a aprovação do Plano Nacional de Educação em janeiro de 2001.

Segundo os dados do Censo da Educação Superior elaborado pelo


Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

4
Cabe registrar, ainda, a criação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), a primeira do País.

75
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

(Inep), havia no Brasil, em 2004, 4.163.733 alunos matriculados, sendo


que apenas 1.178.328 (28,3%) estavam inscritos em IES públicas e 2.985.405
(71,7%) estudantes freqüentavam IES privadas.
Os dados de oferta, atendimento, permanência, desempenho, ou
melhor, de qualidade da educação básica e superior no País, bem como
das modalidades de educação (de jovens e adultos, especial, profissional,
etc.), implicam em discutirmos a educação brasileira como um todo, tendo
em vista um efetivo processo de democratização e de inclusão social no
Brasil. No entanto, neste texto, em especial, examinaremos especifica-
mente a situação da educação superior brasileira, considerando as possibi-
lidades de democratização e inclusão com qualidade social.

Democratização, inclusão e massificação

Apesar de os números anteriores parecerem expressivos, a universi-


dade pública está distante de alcançar o estágio de massificação no Brasil.
Os matriculados em IES públicas (1.178.328) são poucos diante dos nú-
meros totais da população, sua diversidade cultural e fortes desigualdades
sociais. Isso, acreditamos, justifica políticas direcionadas para os segmen-
tos menos favorecidos da sociedade e, sobretudo, para negros, índios e
estudantes provenientes das escolas públicas.

Matrículas na educação superior no Brasil – 2004

Matrículas Federal Estadual Municipal Pública – Privada Total


Total
Diurno 430.388 286.772 35.874 753.034 956.351 1.709.385
Percentual (%) 74,9% 60,8% 27,2% 63,9% 32,0% 41,1%
Noturno 144.196 184.889 96.209 425.294 2.029.054 2.454.348
Percentual (%) 25,1% 39,2% 72,8% 36,1% 68,0% 58,9%
Total 574.584 471.661 132.083 1.178.328 2.985.405 4.163.733
Participação relativa (%) 13,8% 11,3% 3,2% 28,3% 71,7% 100%
Fonte: Inep – Censo da Educação Superior 2004.

Percebe-se pela tabela que existe ociosidade na infra-estrutura


pública universitária no período noturno. As IES públicas, segundo o Inep,
oferecem 36,1% de suas vagas em cursos noturnos. As IES federais têm

76
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

25,1% de suas matrículas à noite, as estaduais possuem 39,2% nessa ca-


tegoria e as IES municipais (quase sempre pagas), mais abertas aos alunos
trabalhadores, oferecem 72,8% de suas vagas no período noturno. Não há
justificativa plausível para se concentrar a oferta de cursos, prioritariamente,
à luz do dia.
Na média, são as IES públicas estaduais que mais se aproximam da
apropriação ideal da infra-estrutura instalada, que giraria em torno de
50%. Sob esse mesmo ponto de vista, as IES municipais apresentam maior
oferta de vagas no turno noturno, gerando ociosidade, paradoxalmente,
no período diurno (somente 27,2% das vagas), demonstrando que seus
cursos são dirigidos para os alunos trabalhadores ou que as instalações
acadêmicas são compartilhadas com escolas do nível básico de ensino.
Dessa maneira, pode-se inferir que políticas públicas dirigidas a um
melhor aproveitamento da infra-estrutura já instalada podem ser vistas
como uma forma pouco custosa de democratizar o acesso. Isto é, ocupar
a infra-estrutura ociosa no período noturno nos campi públicos (federais e
estaduais) com cursos de graduação seria uma oportunidade de se ofere-
cer educação superior gratuita para alunos que estão impossibilitados de
freqüentar cursos diurnos ou integrais. Tal política poderia contrariar os
interesses das IES privadas, que têm seu nicho de mercado (mais de dois
terços do total) no período noturno. A "massificação" encetada a partir
dos anos 1990 teve um viés mercadorizante, via oferta de ensino superior
pago, e visou atingir, majoritariamente, o trabalhador-estudante (ou o
estudante-trabalhador) que, em tempos de flexibilidade no mundo do tra-
balho e de incentivo às soluções individuais, buscou sua formação em
nível superior na iniciativa privada. Em 2004, de 2.985.405 alunos que
estavam matriculados nas IES privadas, 68% estudavam no período no-
turno. Multiplique-se esse número por mensalidades e chegar-se-á a cifras
mais que milionárias (Azevedo; Catani, 2005, p. 78).
Toda política pública ou iniciativa governamental de implementação
de uma política social implica em mudanças no espaço de disposição dos
atores sociais no campo de que trata o objeto de intervenção pública, causan-
do rearranjos de acordo com a nova correlação de forças que pode, a partir
daí, se construir. Assim, percebe-se que os atores sociais estão em luta cons-
tante por espaços e a efetivação de novas políticas apresenta-se como um
momento de oportunidades de deslocamentos políticos no campo social.

77
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

No caso específico da reforma da educação superior, proposta pelo


governo de Luiz Inácio Lula da Silva, nota-se que houve a sinalização de
benefícios para os estudantes provenientes de escolas públicas, para as
etnias sub-representadas nas universidades (negros e índios) e para os
jovens pertencentes às camadas sociais mais empobrecidas. Isto é, inicia-
tivas como o Programa Universidade para Todos (ProUni), a maior oferta
de vagas no período noturno, as cotas para negros, índios e estudantes
provenientes do ensino médio público, em potência, favoreceriam atores
sociais coletivos que tradicionalmente estão distanciados da universidade
pública. O ProUni ofereceu 118.078 vagas no ano de 2005 em 1.142 ins-
tituições de ensino superior particulares. Tal política pública beneficia dois
atores sociais distintos. Em primeiro lugar, os alunos em potencial de se-
leção para ocupar essas vagas e, segundo, a esfera privada, que estaria
aproveitando a ociosidade em sua estrutura e conquistando renúncia fis-
cal.5 Note-se que, conforme o Censo da Educação Superior de 2003, as
IES privadas ofereceram 1.560.968 vagas em seus processos seletivos e
914.840 transformaram-se em matrículas efetivas, ou seja, em 2003,
646.128 vagas (41,39%) ficaram ociosas (Catani; Gilioli, 2005).

A democratização da educação superior


e as diretrizes do Banco Mundial

Nesse sentido, falar sobre a democratização do acesso e a inclusão


na educação superior implica em estabelecer políticas que beneficiam vari-
ados atores sociais. Além disso, deve-se notar que a inspiração de uma
política de matiz popular pode ser uma preocupação de movimentos sociais
e, ao mesmo tempo, de organismos multilaterais postos, paradoxalmente,
sob suspeição pelos próprios movimentos sociais. Para ilustrar tal afirmação,
especificamente a respeito da educação superior no Brasil, tome-se o Rela-
tório 19392-BR – Brazil: Higher Education Sector Study, publicado pelo
Banco Mundial em 30 de junho de 2000. Segundo esse documento,

5
Para Carvalho (2006, p. 988), com o ProUni, "é possível perceber que as instituições que mais se beneficiam são aquelas
com fins lucrativos, já que ficam isentas, a partir da adesão, de praticamente todos os tributos federais que recolhiam".

78
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

O Brasil tem contribuído intelectualmente de maneira considerável para o


desenvolvimento e reforma de seu sistema de educação superior e tem
feito progresso significativo em importantes áreas. Esta seção do relatório
(do Banco Mundial) sugere incrementos para avançar mais o que já foi
implementado no Brasil, focalizando em objetivos estratégicos como o aces-
so, qualidade, relevância e eficiência (World Bank, 2000, p. 46).6

O Relatório observa que existe pouca oferta de cursos de gradua-


ção noturnos (Ibidem, p. 5), que os estudantes universitários provêm dos
extratos mais aquinhoados da população (Ibidem, p. 7) e que o vestibular
não é um meio democrático de recrutamento, pois os cursos preparatórios
para o vestibular são caros, as provas privilegiam a memorização e os
locais de realização dos exames ficam nos centros metropolitanos - longe
de grandes populações do interior (Ibidem, p. 12).
Nesse mesmo Relatório, o Banco Mundial demonstra simpatia pe-
los cursos seqüenciais, pela flexibilização dos currículos, pela instituição
do credenciamento e avaliação – Exame Nacional de Cursos (ENC –
“Provão"), comitê de avaliadores e estatísticas do Inep (Ibidem, p. 17).
Além disso, o documento do Banco Mundial referencia-se no Higher
Education Funding Council for England (HEFCE) como exemplo de finan-
ciamento por intermédio de um fundo para a educação superior (Ibidem,
p. 37). De acordo com o relatório, “o HEFCE é, sozinho, a maior fonte de
financiamento para a educação superior. Abaixo do Council grants (ligado
ao Ministério da Educação), as mensalidades pagas pelos alunos são ge-
ralmente a maior fonte de recursos do fundo" (Ibidem, p. 37).7
A idéia de instituir o pagamento de mensalidades, suprimindo a
gratuidade da educação superior, está conectada a uma maior autonomia
das universidades. Conforme o relatório, “a autonomia acadêmica deveria
ser elevada de acordo com uma maior descentralização (diversificação) do
sistema de gerência de recursos" (Ibidem, p. 38).8
O documento do Banco Mundial procura, de maneira sofisticada,
provar que as instituições particulares oferecem maior assistência a seus

6
Brazil has given considerable thought to the development and reform of its tertiary education system and has made
significant progress in many important areas. This section of the report suggests further developments to progress already
made by Brazil focusing on the strategic goals of access, quality, relevance and efficiency. (World Bank, 2000, p. 46).
7
The HEFCE is the largest single source of income for the higher education sector. After Council grants, tuition fees are
usually the only other major source of funding (Ibidem, p. 37).
8
Academic autonomy should be enhanced under a more decentralized system of resource management (Ibidem, p. 38).

79
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

estudantes (29,14%) que as universidades públicas (10,25% a 13,55%) (Ibidem,


p. 42). Porém, é sabido que a ajuda que as IES privadas fornecem aos alunos
circunscreve-se, em grande medida, a descontos e a bolsas em suas mensali-
dades, em razão da inadimplência e da competição no setor; já as IES públi-
cas, nesse quesito, estariam ajudando a quase totalidade de seus alunos, pois
em geral, são gratuitas. Além disso, não é demais lembrar que as bolsas de
iniciação científica (Pibic), de ensino e extensão, entre outras, são majoritari-
amente destinadas às IES públicas por meio de agências de fomento.
A seção 3 do Relatório do Banco Mundial está reservada às “Estra-
tégias e recomendações para a educação superior no Brasil" que, entre
outros, incentiva a melhoria no acesso (improving access) por intermédio
da diversificação da oferta, de cursos noturnos, da educação a distância e
do fornecimento de crédito aos estudantes pobres (Ibidem, p. 46).

Seletividade social e perspectivas


de democratização do acesso

Os indicadores da educação escolar no Brasil resultam de processo histó-


rico e, ao mesmo tempo, de políticas recentes no campo educacional. Nesse
contexto, é preciso reconhecer que o acesso à educação superior no Brasil sempre
foi um tema polêmico, especialmente porque confronta, de um lado, perspecti-
vas mais elitistas de contenção do acesso visando, em grande parte, à manuten-
ção do prestígio dos diplomas e o status dos profissionais no mercado de trabalho
e, de outro, perspectivas mais populares de ampliação do acesso, o que represen-
ta aspirações de largas camadas da sociedade, objetivando inserção profissional
que garanta melhoria nas condições de vida e de ascensão social.
Criado em 1911, em um movimento de contenção do acesso, o
vestibular tinha como objetivo selecionar candidatos “aptos" para o ensi-
no superior.9 Ele surgiu em um momento em que o número de pessoas
interessadas em fazer curso superior era maior do que o número de vagas
oferecidas pelas IES. Nesse sentido, o vestibular cumpre historicamente o

9
Os exames de admissão/entrada no ensino superior foram criados pelo Decreto n. 8.659, de 5 de abril de 1911, por ocasião
da Reforma Rivadávia Correa. Apenas em 1915 os exames de admissão são chamados de exame vestibular, durante a
Reforma Carlos Maximiliano. Em 1925, na Reforma Rocha Vaz, ocorre o processo de classificação dos candidatos e a fixação
do número de vagas por curso. Já em 1931, durante a Reforma Francisco Campos, foram criados os exames por curso.

80
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

papel de limitar o acesso. É exatamente esse papel que fez dele algo tole-
rado (como um remédio ruim, mas necessário) ou criticado (como meca-
nismo de exclusão social). Por isso, há uma corrente que entende que o
vestibular, ou melhor, o processo seletivo (conforme a atual LDB) apenas
seleciona para as vagas existentes nas IES e, por esta razão, não pode ser
responsabilizado pela seletividade social. O vestibular ou processo seletivo
estaria apenas reproduzindo a seletividade já existente na sociedade e na
escola básica. Outra concepção, por sua vez, preconiza o fim do vestibular
ou seu equivalente por entender que ele intensifica a discriminação social
e produz efeitos danosos sobre as escolas e sobre os sistemas de ensino.
Esse tem sido um impasse nos debates educacionais nas últimas décadas.
A LDB confirmou tendência de reforço à autonomia das universidades
no tocante às formas de acesso dos concluintes do ensino médio aos cursos
superiores, uma vez que essa autonomia havia sido decretada no governo
Collor, em 1990 (Decreto nº 99.490/90), em um contexto de crítica à “seletividade
social promovida pelo vestibular". Com essa autonomia, observa-se que o pro-
cesso de diversificação dos modelos de seleção nas IES intensifica-se; entretan-
to, isso não significa o fim do processo de elitização e de seletividade social.10
De acordo com estudo realizado pelo sociólogo Simon Schwartzman (2002,
p.113),11 “o número de estudantes nas universidades cresceu 76% entre 1992
e 1999, mas esse aumento não significou o ingresso, na mesma medida, dos
menos favorecidos ao 3o grau". Conforme o estudo, “a proporção de alunos
universitários procedentes da camada dos 20% mais ricos da população au-
mentou de 67% para 70% no período. Ao mesmo tempo, a presença dos 20%
mais pobres sofreu queda de 1,3% para 0,9%".12 Verifica-se, portanto, que a
expansão ocorrida na última década, sobretudo por meio do setor privado, não
tem aumentado a participação dos mais pobres no sistema.13

10
Segundo dados do Inep, atualmente existem distintas formas de ingresso nas IES. Entre elas destacam-se: vestibular;
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem); avaliação seriada no ensino médio; teste/prova/avaliação de conhecimentos;
avaliação de dados pessoais/profissionais; entrevista e exame curricular/do histórico escolar.
(www.educacaosuperior.inep.gov.br/formas_acesso.stm, acessado em setembro/2006).
11
O estudo baseia-se em informações levantadas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
12
O Censo da Educação Superior (2000) mostra que as vagas oferecidas nos cursos de graduação contabilizavam 1.100.224,
enquanto as inscrições totalizavam 3.826.293; já os ingressos foram 829.706, as matrículas 2.694.245 e os concluintes
324.734. Assim, foi de 3,5 a relação inscrições/vaga no vestibular, sendo 9,8 na esfera federal, 10,1 na esfera estadual, 2,1
na esfera municipal e 2 na rede privada.
13
O ProUni, por ser uma política afirmativa dirigida aos menos favorecidos pode, possivelmente, alterar, dentro do seu
alcance, essa composição social. Cabe, todavia, exame mais acurado do impacto desse Programa na democratização do
acesso à educação superior.

81
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Desse modo, uma questão continua posta, apesar dessa autonomia


de seleção e da expansão da oferta: como tornar democrático o acesso e a
permanência na educação superior? Um desafio permanente para as IES,
sobretudo públicas, continua a ser o de construir processos seletivos que
contribuam para essa democratização do acesso e para a melhoria da
qualidade de ensino. No entanto, como vislumbrar essa mudança quando
os princípios de igualdade de oportunidade, de demonstração das capaci-
dades e de livre concorrência continuam a ser claramente indicados como
balizadores para as novas formas de seleção, conforme explicita o Parecer
nº 95/98 do Conselho Nacional de Educação (CNE)?
Na maior parte dos processos seletivos para o ingresso no ensino
superior, existentes no País, o ideário das aptidões e capacidades naturais
e a meritocracia estão na base da seleção dos melhores. Os critérios do
mérito e biopsicológicos justificam as diferenças individuais e a
hierarquização social. Acaba por haver um processo de naturalização da
seleção por meio da idealização de processos seletivos considerados mais
isentos e mais justos no que se refere ao princípio de igualdade de condi-
ções para acesso. Prevalecem os critérios naturais de aptidão e de inteli-
gência, em detrimento das variáveis ou condicionantes socioeconômicos
de seleção, mesmo que a sociologia moderna demonstre que o mérito é
socialmente construído. Conforme Bourdieu e Passeron (1982, p. 171),

Nada é mais adequado que o exame [ou o vestibular] para inspirar a todos
o reconhecimento da legitimidade dos veredictos escolares e das hierarqui-
as sociais que eles legitimam, já que ele conduz aquele que é eliminado a
se identificar com aqueles que malogram, permitindo aos que são eleitos
entre um pequeno número de elegíveis ver em sua eleição a comprovação
de um mérito ou de um 'dom' que em qualquer hipótese levaria a que eles
fossem preferidos a todos os outros (sic).

Mesmo em uma sociedade marcada pela heterogeneidade cultural


e pela diferença de classes prevalece a competição livre e aberta entre os
desiguais, o que, infelizmente, faz aumentar o gap cultural, historicamen-
te em construção, entre os atores sociais, reforçando a reprodução social.
Dessa maneira, a instituição do exame vestibular, eliminatório e
classificatório, para o acesso a um número limitado de vagas em cursos de
graduação é, também, uma estratégia velada de reprodução das elites.
É preciso lembrar ainda que, nos moldes atuais, nenhum processo
seletivo poderá ampliar as vagas existentes nas IES. A democratização do

82
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

acesso implica, certamente, em nova fase de expansão do ensino superior


público e gratuito no País, algo ainda distante para sua concretização,
levando-se em conta que o governo FHC vetou – e o atual governo não
alterou em nada tal veto – o artigo do Plano Nacional de Educação (PNE),
aprovado pela Lei nº 10.172/01, que visava “ampliar a oferta de ensino
público de modo a assegurar uma proporção nunca inferior a 40% do
total das vagas, prevendo inclusive a parceria da União com os Estados na
criação de novos estabelecimentos de educação superior". O governo ve-
tou nove subitens do Plano que promoviam alterações ou ampliavam re-
cursos financeiros para a educação, sendo que cinco deles se referiam à
educação superior, indicando que não há intenção em incrementar subs-
tancialmente os recursos para a educação superior, em especial, para aquela
mantida pela União. O vaticínio de Carvalho (2006, p. 996) é oportuno:

O empecilho à massificação do ensino superior brasileiro não está na au-


sência de vagas para o ingresso no sistema, mas na escassez de vagas
públicas e gratuitas. Estas são insuficientes e inadequadas diante do perfil
dos estudantes que concluem o ensino médio. Deste contingente, 63%
estudam em escolas públicas no período noturno.

As políticas de educação superior implementadas no Brasil, na últi-


ma década, consubstanciam expansão acelerada do sistema por intermé-
dio da diversificação da oferta, do crescimento das matrículas no setor
privado e da racionalização dos recursos nas Instituições Federais de Edu-
cação Superior (Ifes), permitindo a ampliação de vagas quase que a custo
zero, sobretudo nas universidades federais.14 Objetiva-se também maior
articulação dos currículos de formação com as demandas do mercado e
maior controle da educação superior, por meio de amplo e diversificado
sistema de avaliação, que ordene as tomadas de decisão em termos de
gestão e do estabelecimento de políticas governamentais.
A ausência dos itens vetados no PNE parece consubstanciar ainda
mais o processo de mercantilização da educação superior em curso no

14
Na vigência do governo FHC (1995-2002) observou-se crescimento acentuado nos indicadores acadêmicos das universi-
dades federais, em especial no tocante ao número de alunos de graduação e de pós-graduação, sem que isso significasse
crescimento nos recursos para manutenção e desenvolvimento dessas instituições e reposição ou aumento dos quadros
docentes e de servidores técnico-administrativos. No primeiro mandato do governo Lula (2003-2004) observou-se, a partir
de 2004, maior investimento na expansão das Ifes e dos Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), além do
aumento de recursos para custeio nas universidades federais e abertura de concursos públicos para recuperação dos quadros
docente e técnico-administrativo.

83
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

País, à medida que favorece o crescimento do setor privado e induz as Ifes


a assumirem um perfil mais empresarial quanto à obtenção de recursos
financeiros para sua manutenção e desenvolvimento, bem como elimina
aportes financeiros para manter ao menos o patamar de 40% das vagas no
setor público, como indica o PNE, uma vez que o setor privado já respon-
de por mais de 70% das matrículas nos cursos de graduação.

Considerações finais sobre as perspectivas


de democratização da educação superior
no Brasil

Parece evidente que a perspectiva de democratização do acesso e


inclusão na educação superior no Brasil não poderá se efetivar sem uma
ampliação dos investimentos da União e dos Estados na oferta desse nível
de ensino, bem como sem um aumento dos gastos públicos na educação
básica e nas diferentes modalidades de educação e ensino.15 Sem esses
recursos, dificilmente será possível cumprir, também, o estabelecido no
art. 47, § 4º da LDB em vigor, que obriga as IES públicas a oferecerem, "no
período noturno, cursos de graduação nos mesmos padrões de qualidade
mantidos no período diurno". Assim, pode-se afirmar que a efetiva demo-
cratização do acesso à educação superior passa mais pela pressão da soci-
edade no sentido da ampliação de vagas, sobretudo nas IES públicas, do
que pela definição de formas e modelos alternativos de seleção.16
As inovações de seleção não têm conseguido alterar o panorama de
seletividade social, uma vez que elas não modificam o paradigma de esco-
lha elitista existente no País. A LDB não ocasionou, na realidade, qualquer
ruptura com o padrão de seleção instituído que privilegia os candidatos
com maior capital econômico e cultural. Continua, desse modo, a seleção

15
Um dos vetos do PNE (item 10.3, subitem 4) dizia respeito à elevação, na década, do percentual de gastos públicos em
educação em relação ao PIB (a meta seria atingir um mínimo de 7% do PIB).
16
Em publicação do Inep, Pacheco e Ristoff (2004) analisam os indicadores e as tendências atuais do sistema de educação,
tendo em vista alcançar as metas de matricular 30% da população na faixa etária de 18 a 24 anos e de expandir as
matrículas no setor público para 40% até o ano de 2010, como prevê o PNE. Os autores concluem que isso não será possível
sem que ocorra "uma participação decisiva do setor público", o que certamente incluirá uma expansão das matrículas nas
instituições públicas federais e estaduais, em especial no turno da noite. Destacam, ainda, o papel do Fundo de Financia-
mento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), do ProUni, da educação a distância e da educação tecnológica nessa
expansão pública.

84
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

baseada nas aptidões e capacidades naturais que, historicamente, tem as-


segurado que a educação superior, sobretudo os cursos de maior prestígio
social, seja destinada a uma elite econômica e culturalmente privilegiada.
Como reconhece o Conselho Nacional de Educação (CNE) em rela-
ção aos condicionantes socioeconômicos, “as diferenças se revelam já no
momento da escolha das carreiras, isto é, na inscrição para o concurso, e
não somente após a classificação dos candidatos que lograram aprova-
ção" (Parecer CNE nº 95/98). De qualquer forma, segundo um ex-ministro
da educação, "o ensino superior deve continuar sendo seletivo, isto é,
destinado aos mais capazes" (Souza, 1999, p. 30). Para ele, todavia, a
“seleção não pode implicar discriminação", o que estará resolvido, segun-
do seu entendimento, se os processos seletivos obedecerem ao princípio
constitucional da igualdade de condições para acesso segundo a capaci-
dade de cada um (art. 206, inciso I e art. 208, inciso V, da Constituição
Federal de 1988).
Em que pese o relativo papel dos processos seletivos na democrati-
zação do acesso à educação superior, devemos reconhecer que tais mode-
los de seleção podem intensificar a reprodução e a seletividade social, bem
como podem interferir na organização escolar e no projeto formativo do
ensino médio. Por isso, temos o desafio de integrar as IES públicas, parti-
cularmente as universidades, ao esforço coletivo de valorização e resgate
da escola pública e de reconhecimento da educação como direito em seus
diferentes níveis e modalidades de ensino. Nesse sentido, devemos pensar
em processos seletivos que contribuam efetivamente para a construção da
educação pública e da sociedade democrática que queremos, significando
que devem ser direcionados no sentido de romper com os fundamentos
que favorecem a seletividade social.
É preciso reconhecer que a elevação da qualificação geral da popu-
lação brasileira constitui-se em aspecto essencial em uma sociedade e em
uma economia baseada cada vez mais na educação e no conhecimento.
Por um lado, portanto, há o desafio de atender a demandas econômicas e
sociais heterogêneas por educação superior; de outro, a necessidade de
ampliar significativamente a produção de conhecimento que contribua
para o bem-estar coletivo e para a construção da sociedade futura.
Assim, as perspectivas de universalização da educação superior no
Brasil implicam, no momento, entre outros fatores, na(o):

85
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

a) retomada da discussão dos vetos ao PNE, que ampliava os recur-


sos dos fundos públicos para a educação, particularmente, para
a educação superior;
b) mudança da lógica de expansão do sistema, que privilegia o cres-
cimento do setor privado e, portanto, a privatização da oferta;
c) melhoria da qualidade do ensino na educação básica, visando
ampliar consideravelmente as possibilidades de acesso dos alu-
nos advindos das escolas públicas;
d) ampliação do programa de financiamento para estudantes com
baixo poder aquisitivo, visando atingir, no mínimo, “30% da po-
pulação matriculada no setor particular", como indicava item
vetado do PNE;
e) ampliação da oferta de ensino pós-médio, incluindo formação
em áreas técnicas e profissionais e a criação de modalidade de
curso universitário intermediário voltado à formação mais geral
e acadêmica, que contribua para atingir, pelo menos, “30% da
faixa etária de 18 a 24 anos" até o final da década da educação
permitindo, assim, a continuidade dos estudos após o ensino
médio; e
f) reforço e ampliação do papel das universidades públicas, especi-
almente das federais, na oferta de maior número de vagas para
cursos de graduação, sobretudo no período noturno, na forma-
ção de quadros profissionais, científicos e culturais, na investi-
gação e pesquisa acadêmica, na busca de soluções para os pro-
blemas da sociedade brasileira e no desenvolvimento científico e
tecnológico do País.

Passados mais de dez anos de aprovação da LDB (Lei nº 9.394/96),


observa-se que ainda são enormes os desafios para uma efetiva democra-
tização da educação escolar no Brasil, incluindo a educação básica (edu-
cação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e a educação superior.
Os fatores explicitados no presente texto evidenciam que não são boas as
perspectivas em termos de acesso, permanência e aumento da taxa de
concluintes na educação superior, com melhoria do nível de qualidade,
pois boa parte desse esforço implica na definição e adoção de políticas
que alterem os rumos do processo de reestruturação da educação

86
Democratização do acesso e inclusão na educação superior no Brasil

implementados na última década. Democratizar o acesso à educação su-


perior com qualidade social significa democratizar a utilização dos recur-
sos do fundo público com efetivo controle social, exercido por organismos
legitimamente aceitos pela sociedade civil.

Referências bibliográficas

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no Brasil: de FHC a Lula. Política Educacional Brasileira. Maringá/PR: Eduem,
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88
5
Ensino noturno e expansão do acesso
de estudantes-trabalhadores
à educação superior*
Mariluce Bittar**
Carina Elisabeth Maciel de Almeida***
Tereza Christina Mertens Aguiar Veloso****

* Este texto é resultado de pesquisa do Projeto Interinstitucional "Ensino Noturno – acesso e democratização da educação
superior", desenvolvido com apoio financeiro do CNPq e da FUNDECT/MS, sob a coordenação da professora doutora
Mariluce Bittar.
** Doutora em Educação; coordenadora do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação da Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas de Educação Superior (Geppes); e-
mail: bittar@ucdb.br
*** Mestre em Educação; doutoranda em Educação (UFMS); pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas
de Educação Superior (Geppes); e-mail: carina.em@pop.com.br
**** Mestre em Educação; doutoranda em Educação (UFG); professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e
pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Políticas de Educação Superior (Geppes); e-mail: tecmav@terra.com.br
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

Introdução

As políticas de educação superior no Brasil, especialmente dos anos


1990 em diante, enfatizam a necessidade de ampliar o acesso dos jovens a
esse nível de ensino, posto que um grande contingente se encontra exclu-
ído dos bancos da universidade. Uma das formas de ampliar esse acesso,
preconizadas por essas políticas, refere-se ao oferecimento de cursos de
graduação noturnos. Segundo Carlos Benedito Martins (2006, p. 1.002),
“uma das tendências do ensino superior contemporâneo, em escala inter-
nacional, diz respeito à ampliação do seu acesso, fenômeno que se iniciou
a partir da segunda metade do século XX". Essa “tendência" se justifica
também devido a uma demanda de estudantes que, ao mesmo tempo é
trabalhadora, isto é, já está engajada no mercado de trabalho, necessita
cursar a educação superior como meio de ascensão socioeconômica.
Implantar políticas que favoreçam o acesso à educação superior é
uma questão legítima da sociedade brasileira e favorece o desenvolvimen-
to do País. Não obstante, muitas instituições de educação superior (IES),
ao criarem cursos predominantemente noturnos, o fazem na perspectiva

91
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

de atender suas necessidades de sobrevivência institucional, cumprindo as


exigências do mercado, em detrimento do oferecimento de cursos com
qualidade de ensino.
Instituições privadas e com fins lucrativos têm ampliado, significa-
tivamente, a oferta de cursos noturnos, aumentando o número de pagantes
e conquistando um público interessante, do ponto de vista econômico,
pois são alunos trabalhadores e que precisam do certificado para manter
ou melhorar seus empregos. Segundo José Marcelino Pinto (2004, p. 752),
“[...] o Brasil tem uma necessidade premente de ampliar o acesso à educa-
ção superior e de democratizar o perfil dos seus alunos, em especial nos
cursos mais concorridos". Entretanto, entre as opções oferecidas no perí-
odo noturno, não se observam os cursos mais concorridos, como Medici-
na, Odontologia e Engenharia. Ao contrário, as características dos cursos
oferecidos no período mencionado convergem no sentido de não necessi-
tarem de laboratórios, não serem oferecidos em mais de um período (no-
turno e vespertino), representando uma alternativa de baixo custo tanto
para as IES quanto para os alunos.
Ressalte-se que a forma de organizar o ensino no período noturno
não pode ser igual à do período diurno, principalmente ao se considerar o
perfil dos alunos que freqüentam tais cursos e que se configuram, na
grande maioria como estudantes-trabalhadores. Nesse sentido, os cursos
noturnos deveriam ter uma organização específica e um modo de funcio-
namento diferente daquele que se imprime aos cursos diurnos, os quais
recebem uma demanda com diferenças significativas em seu perfil.
Paolo Nosella (2005, p. 1-2), refletindo sobre a implantação de
cursos noturnos fundamentada na proposta de Antônio Gramsci, afirma
que “[...] organizar um curso noturno não é um empreendimento fácil,
pois não é uma mera transferência para as horas noturnas dos cursos
diurnos". Ou seja, “[...] os métodos, os instrumentos, os conteúdos, os
mestres e as motivações são absolutamente diferentes [...]" (Ibidem, p. 2)
daqueles direcionados aos cursos diurnos. Analisando, portanto, a propos-
ta de Gramsci de uma escola socialista para os trabalhadores, Paolo Nosella
conclui que “[...] pouco ou nada tem a ver com o nosso ensino noturno
com a proposta pedagógica de Gramsci [...]" (Ibidem, p. 3). Dessa forma,
observamos a necessidade do oferecimento de cursos no período noturno,
mas com organização específica e com características diferentes das que

92
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

estão presentes nesse contexto nos cursos atuais oferecidos pelas IES,
sejam elas públicas ou privadas.
No Brasil, a expansão da educação superior e, notadamente, o ensi-
no superior noturno, reflete a privatização desse nível de ensino, como de-
monstram os dados apresentados páginas a seguir. O paradigma implícito
na Declaração de Bolonha1 “[...] prioriza a diversidade e a competitividade, a
adaptação da formação ao mercado de trabalho e a mobilidade acadêmica"
(Moraes, 2006, p. 188). Essa globalização, ou internacionalização, da edu-
cação superior cresce em consonância com políticas ditadas por organismos
multilaterais que entendem a expansão das IES como meio de crescimento
econômico e social. É nessa conjuntura que o acesso à educação superior,
por meio de ensino noturno, é incorporado às transformações preconizadas
pelas políticas públicas educacionais.
A análise da expansão de vagas, cursos e matrículas na educação
superior noturna, deve articular-se à investigação das políticas de educa-
ção superior implementadas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC),
bem como às orientações de organismos internacionais (Banco Mundial –
BM, Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Bird, Or-
ganização Mundial do Comércio – OMC) que influenciam diretamente a
implementação de políticas públicas para o setor.

O ensino noturno, a educação superior


e a reforma universitária

A Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, instituiu os princípios


para a organização e o funcionamento do ensino superior. Contudo, ou-
tras leis e decretos, com objetivos semelhantes2 estabeleceram mudanças
na vida dos cidadãos brasileiros, especialmente os intelectuais e professo-
res universitários que foram duramente reprimidos, torturados e expulsos

1
A Declaração de Bolonha é um documento elaborado pelo conjunto de “[...] Ministros da Educação Europeus, assinada em
Bolonha, em 1999, para a consolidação de um espaço comum de Ensino Superior Europeu" (Morosini, 2006, p. 118).
2
Decreto nº 34.742, de dezembro de 1953; Decreto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, sobre universidades, sua
organização e seu funcionamento; Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 1967, que estabelece normas complementares
ao Decreto-Lei nº 53 e outras providências; Lei nº 5.539, de 27 de novembro de 1968, que modifica dispositivos sobre o
Estatuto do Magistério Superior.

93
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

do Brasil, sob os auspícios do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de de-


zembro de 1968. De acordo com Bittar (2001, p.125),

O ano de 1968 foi um marco, tanto no campo da política, quanto no


campo da educação. Antes mesmo da promulgação do AI-5, diversos seto-
res da sociedade civil organizaram-se numa tentativa desesperada de res-
guardar o mínimo de dignidade e democracia no país. Foi assim que a
categoria dos estudantes universitários mobilizou-se exigindo reformas em
todos os níveis, mas, sobretudo, uma reforma universitária.

Para Florestan Fernandes (1979, p. XIX), a Reforma Universitária de


1968 tinha como objetivo outro enfoque, diferente do proclamado pelos
representantes do governo:

A reforma universitária não diz respeito a problemas e dilemas mais graves


que os outros que se abatem sobre nossa economia, sobre nossa sociedade
e sobre nossa cultura. [Apresenta] (...) como pano de fundo geral: a incapa-
cidade de organizar as forças materiais, sociais e culturais do ambiente, de
canalizar institucionalmente os recursos disponíveis e controláveis, segun-
do modelos construtivos para a integração nacional da economia, da soci-
edade e da cultura.

Na conjuntura então vigente, a industrialização confundia-se com


a afirmação nacional, e o “[...] industrialismo se torna, praticamente, sinô-
nimo de nacionalismo" (Saviani, 1988, p. 82). Sob a bandeira da educação
como meio para ascensão social e econômica, a classe média fascinava-se
com a idéia de democratização da educação superior, apoiando assim a
nova legislação que aparentemente preconizava tal perspectiva, porém, na
realidade, visava a uma “elite pensante", uma vez que o acesso à universi-
dade era possível apenas para jovens das classes médias altas.
O sistema de créditos implantado pela nova lei tinha como objetivo
político a desmobilização de grupos estudantis e a redução de custos, mas
foi apresentado como solução democrática para os estudantes. “O regime
de créditos e a matrícula por disciplina dispersaram os alunos que passa-
ram a ter várias turmas com colegas diferentes, não lhes possibilitando
freqüentar uma mesma 'classe' do início ao fim do curso" (Bittar, 2001, p.
129); a departamentalização teve, também, como um dos objetivos políti-
cos a desmobilização dos movimentos estudantis. Assim, o “autoritarismo
desmobilizador" (Saviani, 1988, p. 97), instituiu mudanças estruturais nas
instituições de ensino superior que influenciam até hoje as universidades. Na
época, o ambiente era de reivindicações políticas, impelindo os acadêmicos a

94
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

mobilizarem-se em prol de um objetivo comum, movimento esse que modifi-


cou a estrutura da universidade, assim como ofereceu novas dimensões quan-
to a seu papel social e político.

Eis como a Lei nº 5.540/68, cumpriu o seu papel de reformular o ensino


superior brasileiro definindo-se pela aplicação, nesse campo particular, da
estratégia do "autoritarismo desmobilizador" acionada em função da im-
plantação da "democracia excludente". (Saviani, 1988, p. 98).

Nessa perspectiva, a ampliação de vagas no setor público e o estímu-


lo à expansão do setor privado eram objetivos propostos pela Reforma Uni-
versitária de 1968, atendendo às necessidades políticas e econômicas dos
governos militares da época. Consolidou-se a “democracia excludente", com
o objetivo de desmobilizar a sociedade, instituindo a censura, a proibição de
movimentos sociais, cassações e vários outros tipos de repressão política.
Com o final do regime militar e o processo de redemocratização do
Brasil, foi promulgada, em 5 de outubro de 1988 a Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil, que apresenta “[...] o mais longo capítulo sobre
a educação de todas as constituições brasileiras" (Vieira, 2000, p. 62). No
que diz respeito à educação superior, a Constituição Federal fixou para as
universidades a autonomia didático-científica e estabeleceu a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, assim como permitiu
o repasse de recursos públicos para instituições privadas:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, admi-


nistrativa e de gestão financeira patrimonial, e obedecerão ao princípio de
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. [...]
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, poden-
do ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, de-
finidas em lei. (Brasil, 1988, p. 120-121).

A Constituição Federal de 1988 assegura que a educação é direito


de todos e dever do Estado, e deve promover o exercício da cidadania e a
qualificação para o trabalho. Com relação ao acesso e à oferta de cursos
no período noturno, destaca-se o artigo 208 que explicita:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a


garantia de:
[...]
V – acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educan-
do (Brasil, 1988, p. 120).

95
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Entretanto, mesmo após a aprovação da Carta Magna, os dados


apontam maior oferecimento de cursos superiores noturnos nas institui-
ções privadas, enquanto o contingente de estudantes do período diurno
concentra-se em instituições de educação superior públicas, como se pode
observar na Tabela 1:

Tabela 1 – Matrículas de graduação, por turno e natureza


jurídica –2005

Turno Brasil Público (%) Privado (%)


Diurno 1.617.118 729.675 (45,1) 887.443 (54,9)
Noturno 2.270.653 407.444 (17,9) 1.863.209 (82,1)
Total 3.887.771 1.137.119 (29,2) 2.750.652 (70,8)
Fonte: Anteprojeto de Lei da Educação Superior, terceira versão, p. 8 [acesso em 16/09/2005, www.mec.gov.br].

O Brasil, no ano de 2005, teve um total de 3.887.771 matrículas


nos cursos de graduação e, dessas, mais da metade concentrava-se no
período noturno, representando 2.270.653 e apenas 1.617.118 no período
diurno. Tal resultado altera-se, significativamente, ao analisarem-se os
dados em relação à natureza jurídica das IES, isto é, nas instituições públi-
cas, a grande maioria das matrículas (45%) concentra-se no período diur-
no (729.675) e no período noturno somam-se 407.444 alunos matricula-
dos, ou 18% aproximadamente. Nas IES privadas a relação inverte-se, pois
887.443 alunos estão matriculados no período diurno, ao passo que, a
grande maioria das matrículas, concentra-se no período noturno, 1.863.209,
ou 82% do total, confirmando os estudos que apontam a hegemonia das
matrículas em cursos noturnos nas instituições privadas.
Em 1996 foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – nº 9.394, de 17 de dezembro de 1996. A educação superior tem
capítulo específico na nova lei, no qual vários aspectos foram modifica-
dos, incluindo a diversificação de IES que apresentam nova organização
acadêmica: universidades, centros universitários, faculdades integradas,
faculdades isoladas, escolas e institutos e centros de educação tecnológica,
bem como a modalidade de oferta de cursos de graduação, como cursos
seqüenciais e a distância, que retratam o contexto político em que o

96
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

neoliberalismo tem papel principal influenciando na diferenciação de di-


retrizes para as universidades. As orientações preconizadas pela LDB/1996
e por legislação complementar, como por exemplo, flexibilização,
heterogeneidade e diversificação da educação superior, de acordo com
Valdemar Sguissardi (2000, p. 30), apontam para a modernização do siste-
ma de educação superior no País:

Este capítulo é a verdadeira plataforma legal ou moldura jurídica em que se


apoiará uma série de ações de reforma em grande medida identificadas
com as recomendações dos organismos multilaterais já referidos, mas de
há muito também defendidas por analistas e mentores nacionais da mo-
dernização do sistema de educação superior do país (sic).

Estabelece-se nova forma de organização das entidades


mantenedoras privadas de ensino superior, fato que continua motivando
discussões acirradas sobre a qualidade da educação superior, sobre a rela-
ção pública-privada, entre outras. Desde a aprovação da LDB/1996, o nú-
mero de instituições de ensino superior privadas cresceu 88,9%, enquanto
as públicas cresceram 11,1%, no mesmo período (1996 a 2004). Entretan-
to, esse processo de expansão não favoreceu o acesso à educação superior
aos grupos com baixa renda, ou seja, aos que não têm condições de cus-
tear o ensino privado. Para Valdemar Sguissardi (2000, p. 41):

A idéia de universidade associada à de empresa privada alimenta-se na


categoria mercantilização do saber e da ciência, que adquirindo cada dia
mais a condição de mercadorias típicas do atual modo de acumulação
deixam de ser considerados bens coletivos e direito fundamental da cida-
dania, garantidos essencialmente pelo Fundo Público do Estado. Daqui a
força da expressão oficial: educação como atividade não exclusiva do Esta-
do e competitiva (grifos do autor).

O processo de reconfiguração da educação superior acelerou o pro-


cesso de privatização e também de mercantilização desse nível de ensino,
afetando sobremaneira as instituições públicas.

Tal situação vem ampliando as ambigüidades ou diferenças entre as cha-


madas universidades brasileiras, notadamente por meio de(a): situação ju-
rídica; titulação do corpo docente; forma de admissão, contrato, carreira,
política salarial e plano de qualificação; qualidade dos cursos; produtivida-
de institucional e docente; modelo de gestão e financiamento; relação
ensino-pesquisa; prestígio social e acadêmico, etc. As diferenças institucionais
desencadeiam um processo de disputa no campo universitário, levando as
instituições a buscarem uma distinção e uma vocação que garanta maior

97
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

legitimidade e relevância no campo, o que pode implicar maior ou menor


financiamento das atividades acadêmicas. Por outro lado naturalizam um
cenário de minimização do papel da educação universitária. (Dourado, Oli-
veira, 2003, p.88 – grifos dos autores).

Após constatação de que o setor privado congrega o maior número


cursos de graduação no período noturno, torna-se, no mínimo, curioso,
observar o que afirma a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1996 (LDB/1996), a respeito do dever do Estado com a oferta de educação
escolar pública:

Título III – Do direito à educação e do dever de educar


Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado
mediante a garantia de:
[...]
V – acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando;
VII – oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com carac-
terísticas e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilida-
des, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e
permanência na escola (grifos nossos).

Mesmo que a letra da Lei acima (LDB/1996) seja semelhante ao


disposto na Constituição Federal de 1988, o prescrito no artigo 4º da LDB/
1996 refere-se ao dever do Estado com as instituições de educação públi-
cas, delegando a oferta do ensino noturno como meio para efetivação
dessa responsabilidade, conforme o inciso VI; outro aspecto a ser conside-
rado é que o inciso anterior (V) refere-se ao acesso aos níveis mais eleva-
dos e, o inciso posterior (VII) menciona a educação a jovens e adultos
trabalhadores, aos quais deve ser garantido acesso e permanência na esco-
la. A relação entre os três incisos aparenta ser complementar, entretanto,
os números observados na Tabela 1, indicam que tal exposto não se con-
cretizou, uma vez que as matrículas dos cursos superiores noturnos con-
centram-se, majoritariamente, nas IES privadas, demonstrando que o Es-
tado não assumiu satisfatoriamente sua função no sentido de garantir a
oferta de educação pública, gratuita e de qualidade a todos que almejam
uma vaga nos cursos de educação superior.
Ainda na LDB/1996, o artigo 47, em seu parágrafo 4º, reforça o
dever do Estado com a oferta de cursos de graduação noturnos e ressalta
a importância de garantir padrões de qualidade compatíveis aos cursos
oferecidos no período diurno:

98
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

Art. 47. Na educação superior, o ano letivo regular, independente do ano


civil, tem, no mínimo, duzentos dias de trabalho acadêmico efetivo, exclu-
ído o tempo reservado aos exames finais, quando houver.
[...]
§ 4º As instituições de educação superior oferecerão, no período noturno,
cursos de graduação nos mesmos padrões de qualidade mantidos no perí-
odo diurno, sendo obrigatória a oferta noturna nas instituições públicas,
garantida a necessária previsão orçamentária.

O disposto no parágrafo 4º do artigo 47 é relevante, principalmen-


te, ao se levar em consideração o resultado de pesquisa realizada por
Marília Spósito sobre os cursos noturnos e o perfil do aluno que o fre-
qüenta, principalmente os do setor privado:

[...] a especificidade das faculdades particulares noturnas só pode ser com-


preendida através do estudo da natureza do vínculo que esse tipo de ensino
mantém com as relações de produção, com o caráter que assume a contradi-
ção capital-trabalho no interior do capitalismo atual. (Spósito, 1989, p. 20).

Segundo a autora, as instituições privadas cumprem seu papel de


manutenção do sistema capitalista, não significando que o acesso à edu-
cação superior “qualifique" o estudante-trabalhador, no sentido de torná-
lo um sujeito com maior conhecimento intelectual e crítico na sociedade
em que vive, entretanto, é um espaço no qual esse estudante tem acesso à
educação e enfatiza que é por meio de uma educação pública e de quali-
dade que a relação aluno-escola pode ser alterada.
Nesse sentido, o Plano Nacional de Educação (2001) apresenta uma
meta a ser atingida e ressalta a importância do setor público, bem como
de sua expansão para o aumento de vagas públicas, inclusive enfatizando
a expansão de vagas no período noturno. O Plano reforça o exposto na
LDB/1996, no sentido de garantir padrões de qualidade, mas especifica
que o aumento de vagas do período mencionado deve considerar, tam-
bém, o acesso às bibliotecas e laboratórios para garantir os mesmos recur-
sos de que os estudantes dos cursos diurnos dispõem:

Deve-se assegurar, portanto, que o setor público neste processo, tenha


uma expansão de vagas tal que, no mínimo, mantenha uma proporção
nunca inferior a 40% do total. [...] Ressalte-se a importância da expansão
de vagas no período noturno, considerando que as universidades, sobretu-
do as federais, possuem espaço para esse fim, destacando a necessidade de
se garantir o acesso a laboratórios, bibliotecas e outros recursos que asse-
gurem ao aluno-trabalhador o ensino de qualidade a que têm direito nas
mesmas condições de que dispõem os estudantes do período diurno. (Bra-
sil, 2001, p. 97) (grifos nossos).

99
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

A preocupação com a qualidade do ensino noturno é pertinente,


uma vez que a história da educação superior é permeada, desde a Reforma
Universitária de 1968, pela bandeira da expansão desse nível de ensino. É
nesse sentido que se analisa o disposto na legislação e os dados que apon-
tam maior presença das instituições de educação superior privadas na
oferta do ensino superior noturno. Tal situação de expansão apresenta
características no sentido de garantir um mercado lucrativo, qualificando
alunos com nível comparável ao do ensino técnico profissionalizante, con-
forme apontam os dados da pesquisa de Spósito (1989).
Outra pesquisa de Maria do Carmo Peixoto (2004) sobre os alunos
dos cursos noturnos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apon-
ta que os estudantes que freqüentam os cursos noturnos têm a mesma
qualidade de ensino que os alunos, dos mesmos cursos, que freqüentam o
período diurno: “Os dados apresentados [...] evidenciam que não se encon-
trou qualquer indício de que, na UFMG, o oferecimento de cursos noturnos
resulte na formação de um profissional de pior qualidade" (Ibidem, p. 195).
É necessário ressaltar que a pesquisa de Spósito foi desenvolvida
em IES privadas e a de Peixoto em IES públicas. As duas pesquisas são
diferentes em vários aspectos, porém, ambas apontam que as IES públicas
deveriam assumir a oferta de cursos superiores noturnos, uma vez que o
interesse das IES públicas e das privadas é diverso e influencia na qualida-
de dessa oferta.
Corroborando para que o Estado assuma a criação de cursos no
ensino noturno com qualidade, o Plano Nacional de Educação (2001)
apresenta como um dos objetivos a diversificação em sua oferta usando o
artifício da flexibilização:

13. Diversificar a oferta de ensino, incentivando a criação de cursos noturnos


com propostas inovadoras, de cursos seqüenciais e de cursos modulares, com
a certificação, permitindo maior flexibilidade na formação e ampliação da
oferta de ensino. (Brasil, 2001, p. 99).

É no bojo desses debates em torno dos novos papéis assumidos e/


ou impingidos à universidade brasileira, que Luiz Inácio Lula da Silva as-
sume a Presidência da República e, de imediato, propõe uma nova Refor-
ma Universitária. Com acentuada ênfase no discurso da inclusão e da
democratização do acesso, o novo governo preconiza “[...] criar condições
para a expansão com qualidade e eqüidade" (MEC, 2005, p. 1).

100
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

Nessa perspectiva, o governo entende que “[...] há uma urgência


nacional de uma reforma da educação superior que, respeitando a legiti-
midade, a diversidade e a identidade das instituições públicas e privadas,
aponte para sua necessária reestruturação [...]" (MEC, 2005, p. 8). Um dos
indicadores que desperta a atenção do governo, em sua proposta, é justa-
mente o que revela a situação do ensino noturno no Brasil, a qual justifi-
caria, também, a “urgente reforma da universidade".
Não há dúvida quanto às evidências apontadas nos dados: há uma
forte concentração de matrículas no ensino noturno, sobretudo nas insti-
tuições privadas de educação superior, o que sugere questionamentos so-
bre o papel do Estado brasileiro em oferecer e assegurar educação pública
e de qualidade para todos. Acrescenta-se, para essa análise, os tipos de
cursos a serem oferecidos onde há uma concentração em determinadas
áreas do conhecimento, a exemplo da área de ciências sociais, negócios e
Direito. De acordo com Ristoff e Giolo (2006, p. 17), o modelo de expan-
são na oferta de cursos adotado no país, principalmente a partir de 1996,
privilegiou aqueles que tinham o “maior apelo popular", direcionando a
oferta para poucos cursos, o que ocasionou um desequilíbrio no panora-
ma das vocações profissionais dos jovens brasileiros: “Do total das matrí-
culas na educação superior em 2004, mais da metade (52,2%), concentra-
se em apenas seis cursos: Administração, Direito, Pedagogia, Engenharia,
Letras e Comunicação" (Idem).

Expansão do ensino superior noturno


nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul

Na Região Centro-Oeste, as características e números observados


expressam-se de forma semelhante aos observados no País, ocorrendo o
mesmo nos estados de Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS);
entretanto, alguns aspectos específicos são destacados e demonstram ca-
racterísticas presentes nesses Estados, uma vez que a consideração das
questões regionais é necessária no sentido de compreender aspectos rele-
vantes na expansão dos cursos superiores noturnos no País.

101
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Na comparação entre o Brasil, a Região Centro-Oeste e os estados


de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, observa-se que apenas este último
apresenta uma taxa de crescimento de oferta de vagas noturnas no setor
público duas vezes maior que a do Brasil, e a do setor privado é a menor
entre os demais. A oferta de vagas nos cursos noturnos das IES privadas é
maior em todas as Federações analisadas na Tabela 2, porém, o Estado de
Mato Grosso do Sul apresenta metade do percentual observado nas de-
mais Federações, nas quais o percentual gira em torno de 400% de cresci-
mento das vagas oferecidas entre o período de 1996 a 2004.
No Brasil, o aumento das vagas noturnas é de 62%, o que repre-
senta, aproximadamente, um quinto do aumento de vagas no período
noturno observado nas IES privadas do País (349%), no mesmo período.
Na Região Centro-Oeste esse percentual é ainda mais distante, pois as
vagas públicas configuram um aumento de 57%, enquanto as IES priva-
das aumentaram suas vagas no período noturno em 445%. Crescimento
similar é observado no Estado de Mato Grosso, no que o setor público
compreendeu aumento de 69%, e na esfera privada teve 428% de cresci-
mento na oferta de vagas. Divergindo do cenário nacional, o Estado de
Mato Grosso do Sul apresentou crescimento de 154% na oferta de vagas
em cursos noturnos do setor público, entretanto, o aumento na esfera
privada (200%), mesmo sendo menor do que o observado no País perma-
nece maior do que nas IES públicas.

Tabela 2 – Oferta de vagas em cursos de graduação presenciais


noturnos, por categoria administrativa Brasil, Centro-Oeste, Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul – 1996/2004
Mato Grosso do
Brasil Centro-Oeste Mato Grosso
ANO Sul
Público Privado Público Privado Público Privado Público Privado
1996 72.869 305.920 7.770 21.432 1.704 4.380 1.103 5.734
2004 118.277 1.375.455 12.243 116.978 2.891 23.131 2.805 17.203
1996-2004
62,31 349,61 57,57 445,81 69,66 428,11 154,31 200,02
(%)
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

Os dados do Estado de Mato Grosso do Sul nos leva a questionar


sobre possíveis causas desses percentuais. Nesse caso é interessante consi-
derar a implantação, na década de 1990, da Universidade Estadual de

102
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

Mato Grosso do Sul (Uems), que foi responsável pela abertura de novos
cursos noturnos no interior do Estado, consolidando alguns de seus obje-
tivos no sentido de promover a interiorização da educação superior, e de
expandir cursos de licenciatura para qualificar e formar professores que já
atuavam na educação básica. Ao oferecer cursos para estudantes-traba-
lhadores, o período elencado foi o noturno, uma vez que nos demais não
haveria possibilidade de freqüência por parte dos alunos mencionados.
Nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, desde a década
de 1990 a maior oferta de vagas era observada no período noturno, tanto
no setor público quanto no privado, entretanto, no ano de 2004, em Mato
Grosso, identificamos maior aumento de vagas oferecidas pelas IES públi-
cas no período diurno, enquanto no Estado de Mato Grosso do Sul essa
oferta apresenta certo equilíbrio entre os períodos, mas prevalece o maior
número de vagas oferecidas no período diurno.

Tabela 3 – Oferta de vagas em cursos de graduação presenciais,


por turno e categoria administrativa em Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul – 1996/2004
Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Ano Público Privado Público Privado
Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno
1996 1.542 1.704 770 4.380 938 1.103 1.890 5.734
2004 3.488 2.891 6.647 23.131 2.430 2.805 6.116 17.203
1996-2004
126,20 69,66 763,25 428,11 159,06 154,31 223,60 200,02
(%)
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

O setor privado, no Estado de Mato Grosso do Sul teve um aumen-


to na oferta de vagas em cursos superiores noturnos de 200% entre os
anos de 1996 e 2004, ao passo que em Mato Grosso esse percentual do-
bra, com 428% de aumento na oferta de vagas. Movimento contrário ao
observado no setor público, conforme análise anterior. Entretanto, mesmo
com esse diferencial entre os dois Estados, o aumento da oferta de vagas
no setor privado é maior do que nas IES públicas, em ambos os Estados.
Quanto às matrículas nos cursos de graduação presenciais notur-
nos, constatamos, por meio da análise do gráfico a seguir, que os Estados
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul mantiveram a mesma tendência
nacional e regional. Considerando as taxas de crescimento de matrículas,

103
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

em cursos noturnos, no período de 1996 a 2004, segundo dados do MEC/


Inep/Deaes, no Brasil essa taxa foi de 140,50%, a Região Centro-Oeste e o
Estado de Mato Grosso apresentaram taxas superiores, 176,27% e 189,17%,
respectivamente e Mato Grosso do Sul, menor que os demais, 130,23%.

35
30
25
20
15
10
5
0
1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

Brasil Região Centro-Oeste Mato Grosso Mato Grosso do Sul

Taxas de crescimento de matrículas no turno noturno Brasil,


Centro-Oeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – 1996-2004
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

Considerando a organização acadêmica das IES, identificamos que as


universidades seguem a mesma lógica, oferecendo em instituições privadas o
maior percentual de cursos superiores noturnos, se comparados às universida-
des públicas. Do total de matrículas do Brasil, em 2004 (4.163.733), 58,94%
(2.454.348) estavam no turno noturno, sendo no setor privado a sua prevalência
com 82,67%, contra 17,63% do setor público. As universidades concentram
46,62% (1.144.242) das matrículas noturnas, onde o setor privado permanece
com a maior concentração, 71,68% (8.202.111) enquanto o setor público tem
28,31% (324.031). Em seguida as faculdades, escolas e institutos concentram
29,33% (695.147), os centros universitários ficam com 17,43% (413.243) as
faculdades integradas, 6,23% (153.125), e os centros de educação tecnológica
com 2% (48.591), segundo dados obtidos no MEC/Inep/Deaes, 2006.
Esse quadro é compatível com o aumento do número de desempre-
gados3 e com o discurso neoliberal que designa a formação de nível superior

3
"O Brasil, cuja taxa de desemprego nas mais importantes regiões metropolitanas é de 10,2%, atinge índices de 60,7% na
faixa etária de 15 a 24 anos, sendo que a maior concentração está nos jovens com baixa escolaridade e pertencentes às
classes de baixa renda" (Terribilli Filho, 2007, p. 2).

104
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

como uma das condições para obtenção de emprego. Dessa forma, o


estudante que já trabalha, encontra nesse nível de educação uma for-
ma de tentar garantir seu emprego, ou mesmo, um meio para obter
novo trabalho, com melhor remuneração, perspectiva que tem impulsi-
onado o aumento na procura por cursos superiores noturnos, uma vez
que esse aluno trabalha e só tem esse período (noturno) para desenvol-
ver seus estudos. Nesse sentido, as IES privadas oferecem maiores pos-
sibilidades de acesso aos estudantes trabalhadores. Segundo Pacheco e
Ristoff (2004, p.12):

Se, por um lado, os dados parecem mostrar de forma inequívoca que o


setor privado tornou-se a principal oportunidade de acesso à educação
superior para o aluno trabalhador, eles demonstraram, também, o quanto a
capacidade instalada nas IES públicas permanece ociosa durante a noite,
deixando fechadas as suas portas para indivíduos que precisam trabalhar
durante o dia para conseguirem seu sustento.

Essa análise ressalta um aspecto interessante, uma vez que as IES


privadas, ao oferecerem cursos noturnos, ocupam um espaço em aberto,
uma vez que o poder público não investe no ensino superior noturno e
público.
No Estado de Mato Grosso, observamos aumento no número de
vagas que, em 1996, era de 6.084 e, em 2004, sobe para 26.022, contras-
tando com aumento significativamente maior entre as matrículas efetiva-
das nos respectivos anos: em 1996 havia 24.213 matrículas no período
noturno e, em 2004, esse número triplica para 64.598. Os dados demons-
tram que a procura pelo ensino superior noturno aumenta mais do que o
número de vagas oferecidas nesse turno.
Em Mato Grosso do Sul ocorre o mesmo fenômeno, sendo que
em 1996 eram oferecidas 6.837 vagas no ensino superior noturno e,
em 2004, esse número sobe para 20.008, representando um aumento
de vagas menor do que o observado em Mato Grosso. As matrículas no
ensino superior noturno diminuem 10% em Mato Grosso do Sul do que
em Mato Grosso, mas triplicam na década de 2000. A diferença entre
as matrículas e as vagas oferecidas, expressa que existe grande deman-
da pelo ensino superior noturno.

105
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Tabela 4 – Matrículas e vagas em cursos de graduação presenciais


noturnos em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – 1996/2004
Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Ano
Matrículas Vagas Matrículas Vagas
1996 24.213 6.084 25.523 6.837
2004 64.598 26.022 64.462 20.008
1996-2004 (%) 166,79 152,56
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

Segundo análise do Censo da Educação Superior em Mato Grosso


do Sul, os dados apresentados expressam uma lógica semelhante à expan-
são do ensino noturno no País e na região, entretanto, ao filtrarmos o
setor privado entre particular e comunitário/confessional/filantrópico, os
dados indicam que o maior número de matrículas no período noturno
aparece nas IES particulares, ao passo que nas comunitárias o maior índice
de matrículas ocorre no período diurno:

Com relação ao percentual de matrículas por turno, no ano de 2004, o setor


público federal apresentava 15,3% das matrículas no período diurno e 15,6%
no noturno, expressando equilíbrio entre os dois turnos. No setor público
estadual a predominância estava no período diurno (15,1%), e, no noturno
estavam 10,1% das matrículas. No setor privado particular a predominância
das matrículas foi no período noturno (12,7%), enquanto no diurno concen-
travam-se 8,9%. No setor privado comunitário/confessional/filantrópico o
quadro se inverte e o diurno acumulava 26,3% das matrículas enquanto o
período noturno 16,9% [...] (sic) (Bittar; Rodriguéz; Almeida, 2006, p. 50).

Em Mato Grosso, as IES privadas tiveram um aumento de 215%


nas matrículas nos cursos noturnos, entre os anos de 1996 e 2004, en-
quanto que em Mato Grosso do Sul esse aumento foi de 116%, no mesmo
período; nas IES públicas o quadro é invertido, sendo que Mato Grosso do
Sul apresenta aumento de 175% nas matrículas nos cursos noturnos, en-
quanto Mato Grosso teve 135%.

Tabela 5 – Matrículas em cursos de graduação presenciais, por turno


e categoria administrativa em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul –
1996/2004
Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Ano Público Privado Público Privado
Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno
1996 7.619 4.639 2.511 9.444 3.720 4.030 4.229 13.544
2004 13.905 10.920 9.969 29.804 10.401 11.089 13.601 29.371
1996-2004
82,50 135,40 297,01 215,59 179,60 175,16 221,61 116,86
(%)
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

106
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

Apesar do setor público em Mato Grosso registrar maior aumento


de vagas no turno diurno, quando analisamos as matrículas em cursos de
graduação, no período de 1996 a 2004 (Tabela 5), registra-se no setor
público um crescimento de 135,4% para o turno noturno contra 82,5%
no diurno; já no setor privado esse aumento foi de 215,59% e 297,01%,
respectivamente. Em relação às matrículas no ensino superior no Estado
em 2004 (64.598), 46,14 % correspondem ao setor privado noturno, 21,53%
ao setor público diurno, 16,90% ao setor público noturno e 15,43% ao
setor privado diurno.
Em Mato Grosso do Sul, o maior crescimento de matrículas no
período está no setor privado diurno, 221,61%, seguido pelo setor diurno
público com 179,60%, setor público noturno com 175,16% e por último o
setor privado noturno com 116,86%. No total de matrículas do Estado em
2004, (64.462), 45,56% são privadas noturnas, 21,10% privadas diurnas,
17,20% públicas noturnas e 16,14% públicas diurnas.
Dessa análise podemos indicar que no Estado de Mato Grosso do
Sul, o setor público possui maior equilíbrio na distribuição das matrículas
públicas entre os turnos diurno e noturno que o Estado de Mato Grosso.
Entretanto, ao compararmos os percentuais dos Estados com os da Região
Centro-Oeste e Brasil, inferimos que a maioria das vagas ociosas do ensino
noturno se concentram nas IES privadas, enquanto nas públicas o quanti-
tativo de matrículas supera o número de vagas oferecidas.

Considerações finais

A educação superior oferecida no período noturno é identificada


como sendo um meio para a expansão das vagas desse nível de ensino,
configurando mecanismo de acesso. Diante da evidência de maior oferta
de vagas em cursos noturnos nas instituições privadas, percebemos uma
contradição, uma vez que a grande maioria dos alunos que freqüentam
esse período são estudantes que trabalham, e que precisam, muitas vezes,
custear o próprio estudo.
A oferta de vagas nos cursos noturnos em instituições públicas não
é ampliada significativamente, forçando grande número de alunos na busca
de cursos noturnos no setor privado. Segundo Terribili Filho (2007, p. 7):

107
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

[...] atualmente vê-se nos cursos de graduação e, sobretudo, na obtenção


de diploma de curso superior, o mais provável viabilizador da inserção no
mercado de trabalho em nível mais elevado, capaz de trazer ao estudante,
uma melhor condição de vida, uma mudança na sua condição
socioeconômica (sic).

É nessa perspectiva que a educação superior noturna vem sen-


do, cada vez mais procurada, mesmo quando oferecida nas IES priva-
das. Na década de 1990, o desemprego é uma característica que influ-
encia a reorganização do trabalho, cuja estrutura sofre alterações sig-
nificativas, diminuindo a força dos sindicatos, fortalecendo a
flexibilização de horários e de organização das indústrias, bem como,
causando impactos sobre os direitos trabalhistas. A capacitação de su-
jeitos para garantir um emprego passa a ser discurso oficial e a interfe-
rir no oferecimento de cursos de educação superior, principalmente
nas IES privadas. Nessa mesma lógica, a globalização é palavra-chave
para a economia e para as relações de trabalho. Segundo Frigotto (2000,
p. 46), “A globalização excludente e as políticas baseadas na doutrina
neoliberal representam a base material e ideológica desta alternativa
dominante neste fim de século".
Mesmo considerando a desproporção entre a oferta de vagas e as
matrículas nos cursos de graduação presenciais no período noturno, en-
tendemos que:

[...] a oferta de cursos noturnos implica também garantir a permanência do


acadêmico na universidade. Reconhecer que os cursos noturnos recebem
estudantes que trabalham é um passo importante no sentido de tentar
vencer os limites que separam o trabalho intelectual do trabalho manual
(Bittar, 2006, p. 201).

Concluímos que faltam vagas no ensino superior noturno público


e sobram vagas nas IES privadas, o que representa ausência de políticas
públicas, no sentido de ampliar a oferta de vagas nos cursos noturnos
em IES públicas, principalmente ao considerarmos as características do
estudante-trabalhador, sujeito que labora no período diurno e que com-
preende o diploma de um curso superior como meio para melhorar suas
condições de vida.

108
Ensino noturno e expansão do acesso dos estudantes-trabalhadores à educação superior

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110
6
A ampliação do acesso à educação
superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso
da UFMG
Maria do Carmo de Lacerda Peixoto*
Mauro Mendes Braga**

* Doutora em Educação e professora na Faculdade de Educação da UFMG, e-mail: mcarmo@ufmg.br.


** Doutor em Química e professor no Departamento de Química da UFMG, e-mail: braga@ufmg.br.
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

Introdução

Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Naci-


onal (LDB), em 20 de dezembro de 1996, ficou estabelecido, no §1º do
artigo 87, que a União deveria encaminhar ao Congresso Nacional o
Plano Nacional de Educação (PNE). Por sua vez, na proposta de diretri-
zes e metas para a educação superior do PNE, aprovada pela Lei nº
10.172, de 9 de janeiro de 2001, o aumento da demanda por vagas
nesse nível de ensino se apresentava como uma das questões mais
importantes. Esse aumento, conforme registra a lei, seria um resultado
conjugado de fatores demográficos, do aumento das exigências do
mercado de trabalho, e das políticas que levaram ao aumento das ma-
trículas e das conclusões no ensino médio. Nesse último caso, no item
4.1 do diagnóstico da educação superior, o texto do Plano indicava
que “a matrícula no ensino médio deverá crescer nas redes estaduais,
sendo provável que o crescimento seja oriundo de alunos das camadas
mais pobres da população. Isto é, haverá uma demanda crescente de
alunos carentes por educação superior".

113
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Outro aspecto do diagnóstico do PNE refere-se à taxa de


escolarização na educação superior no Brasil, comparada com os países da
América Latina, na qual o País se apresenta com um dos índices mais
baixos de acesso nesse nível de ensino. Em relação à população de 18 a 24
anos, o Brasil apresentava a porcentagem inferior a 12% de matriculados
na educação superior, ao passo que os indicadores do Chile, Venezuela, e
Bolívia situavam-se na média de 23%. A Argentina, embora contasse com
40% da faixa etária matriculada no ensino superior, configurava-se como
um caso à parte por ter adotado o ingresso irrestrito, apresentando altos
índices de repetência e evasão nos primeiros anos. A expansão de vagas no
setor público estava compreendida entre as medidas necessárias para
equacionar os problemas apontados.
A análise de uma série histórica dos censos da educação superior
(Peixoto, Braga e Aguiar, 2006), por sua vez, mostra que a expansão que
ocorreu se concentrou no setor privado. Ao longo do período 1991-2004,
houve crescimento significativo do número de instituições, cursos, vagas e
matrículas. No Estado de Minas Gerais, a elevação na oferta de vagas foi
superior aos percentuais verificados no País e na Região Sudeste, com
destaque para a relação candidato/vaga do setor público, que apresentou
tendência crescente. A partir do ano 2000, contudo, o crescimento de
todos os indicadores desse setor apresenta tendência de queda, inclusive
na relação candidato/vaga, principalmente nas instituições federais. Assim
sendo, observa-se que o comportamento dos dados após a aprovação do
PNE indica que não houve qualquer encaminhamento no sentido de con-
templar o atendimento das metas previstas.
Tendo em vista essas questões, é objetivo deste texto analisar os
dados sobre candidatos e aprovados nos vestibulares da Universidade Fe-
deral de Minas Gerais (UFMG), nos anos iniciais deste século, tomados
como pontos de partida para avaliar as perspectivas para atingir o previsto
no Plano. Acreditam os autores que, fundamentados na análise dos dados
de uma universidade federal, seja possível esclarecer aspectos relacionados
às questões apresentadas entre as prioridades da política estabelecida pelo
PNE para a educação superior.
Inicialmente, serão apresentadas as características do processo se-
letivo realizado na UFMG, com destaque para o programa de isenção da
taxa de inscrição no concurso vestibular. A seguir, serão analisados os

114
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

dados relativos aos candidatos e aprovados nos exames de 2003 a 2006,


enfocando as características de seletividade social presentes nesse proces-
so seletivo. Serão também analisadas algumas especificidades da aborda-
gem do acesso à educação superior com base nas características étnicas
dos estudantes, bem como serão analisadas três combinações de grupos
de variáveis: concluintes de ensino médio público e privado; estudantes
brancos e negros; e alunos de cursos diurnos e noturnos.
A delimitação do período 2003-2006 para esta análise teve por
objetivo, entre outros aspectos, esclarecer os aspectos do diagnóstico do
PNE relacionados ao fato de que o crescimento da demanda por vagas no
ensino superior far-se-ia, principalmente, por parte de estudantes oriun-
dos das camadas mais pobres da população. Como a população
afrodescendente está presente de modo mais significativo nesse segmen-
to, e somente após o vestibular de 2003 o item “declaração de cor ou
raça" foi introduzido no questionário respondido pelos candidatos ao se
inscreverem no vestibular, situar a data inicial em 2003 possibilita proce-
der à análise mais abrangente acerca das condições e características em
que a ampliação da demanda ocorreu na UFMG.

A escala socioeconômica

A análise do perfil de candidatos e aprovados nos exames vestibu-


lares, além de ser um instrumento para conhecer essa população, é ponto
de partida para a introdução de modificações nos processos seletivos, bem
como fornece orientações para que as instituições de ensino superior ela-
borem políticas acadêmicas. A Universidade Federal de Minas Gerais tem
se valido dessa análise há longo tempo, utilizando-se das respostas dadas
pelos candidatos no questionário que acompanha a ficha de inscrição no
vestibular, como fonte para compor a base de dados.1
A metodologia utilizada para mensurar a condição socioeconômica
dos candidatos e aprovados baseia-se numa escala construída pelos autores

1
Apesar de seu preenchimento não ser obrigatório, o índice de respostas é muito elevado - superior a 90% - tornando
possível proceder a estudos de diversas ordens. Entre eles, está sendo realizado o censo socioeconômico e étnico dos
estudantes de graduação, estando sua primeira parte publicada em Braga e Peixoto, 2006A.

115
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

e denominada Fator Socioeconômico (FSE), empregada em diversos traba-


lhos relativos à UFMG desde 1999 (c.f. Araújo, Peixoto, Braga e Fenati,
2004; Braga, Peixoto e Bogutchi, 2001; Braga, Peixoto, Bogutchi, 2003;
Gazzola, Peixoto e Braga, 2004 e Braga e Peixoto, 2006.). Essa escala com-
bina dados obtidos das respostas ao questionário, abrangendo renda fami-
liar, nível de instrução e profissão dos pais dos estudantes, além de aspectos
de sua trajetória escolar. Os indicadores que a compõem estão sumariados
no Quadro 1.

Quadro 1– Critérios para a construção da escala FSE


Item avaliado Pontuação atribuída*
0, Escola pública
Ensino médio freqüentado pelo estudante
1, Escola privada
0, Curso profissionalizante
Curso médio freqüentado pelo estudante
1, Colegial
0, Noturno
Turno no qual concluiu o ensino médio
1, Diurno
0, Trabalhava
Situação de trabalho ao inscrever-se no vestibular
1, Não trabalhava
0, Inferior a dez SM**
Renda familiar 1, Entre dez e vinte SM
2, Superior a vinte SM
0, Nenhum deles é graduado em curso superior
Instrução dos pais 1, Um deles é graduado em curso superior
2, Ambos são graduados em curso superior
0, Profissão típica de classe média baixa
Profissão do responsável*** 1, Profissão típica de classe média
2, Profissão típica de classe média alta
Notas: * Para um determinado estudante a escala FSE só pode assumir valores discretos, inteiros, entre zero e dez. Ao calcular os valores médios de FSE para
grupos de estudantes, contudo, esses são expressos em uma escala contínua, com um decimal.
** SM = salário mínimo.
*** Considerou-se como responsável o genitor com profissão de pontuação mais elevada.

Diversas comparações já foram feitas entre essa escala e a da Asso-


ciação Brasileira dos Institutos de Pesquisa e Mercado (Abipeme),2 obser-
vando-se uma excelente correlação entre ambas, o que sugere ser a escala
FSE adequada para descrever a situação socioeconômica dos candidatos
ao vestibular da UFMG. A preferência pela utilização da escala FSE em
lugar da Abipeme reside na inadequação desta última para expressar a
condição socioeconômica do estudante em um único indicador numérico,
o que impede a comparação entre grupos diferentes de alunos, a partir
dos valores médios e dos desvios padrões associados a esse indicador.

2
A escala da Abipeme é também denominada Critério Brasil. Franco e Loschi, 2005, em estudos independentes sobre as
chances de aprovação no vestibular da UFMG verificaram ainda, que a escala FSE tem maior poder para discriminar os
candidatos do que a escala Abipeme.

116
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

O vestibular da UFMG

O processo do vestibular na Universidade Federal de Minas Gerais


tem sido objeto de constante análise e debate, principalmente no que
concerne à sua adequação diante dos sistemas de educação básica. Per-
manente também é a preocupação com a atualização dos requisitos des-
tinados a garantir as condições de segurança na sua realização, conside-
rando o elevado número de candidatos que a ele concorrem. Mais recen-
temente, o aumento da demanda por vagas no ensino superior e a dife-
renciação existente na composição dessa demanda estão, com freqüência,
presentes nesse debate.3
O vestibular é realizado sob a coordenação da Comissão Perma-
nente de Vestibular (Copeve), integrada por docentes da universidade, res-
ponsáveis tanto pelos aspectos administrativos e operacionais envolvidos
na execução do concurso, como pelos pedagógicos relacionados às pro-
vas. O exame é realizado apenas uma vez por ano e em duas etapas.
A primeira etapa ocorre geralmente no início de dezembro, sendo
composta de oito provas de múltipla escolha: português, matemática, físi-
ca, química, história, geografia e língua estrangeira.4 A segunda etapa é
discursiva, constando de uma prova obrigatória de redação, e de um con-
junto variável de duas a três provas por curso, conforme indicação feita
pelos colegiados dentro do conjunto das matérias da primeira etapa.5 Os
candidatos ao curso de Artes Visuais fazem também uma prova de avalia-
ção específica, prévia à primeira etapa. Os que se candidatam aos cursos
de Música e Teatro, também fazem duas provas de habilidade específica
na segunda etapa.
Com o objetivo de tornar o vestibular mais adequado ao perfil da
demanda, e de promover melhor orientação para as escolas e os estudan-
tes das redes municipal e estadual, a UFMG tem promovido um elenco

3
A referência aqui é o período imediatamente anterior a 2003, ocasião em que a demanda por vagas no ensino superior
brasileiro se acentuou fortemente, característica que também se fez presente na UFMG. Em dez anos, o número de candi-
datos ao vestibular da universidade quase triplicou, passando de 32 mil, em 1992, para 85 mil, em 2002. A partir desse ano,
entretanto, esse número vem caindo, fato que, em boa parte, pode ser explicado pela diminuição do número de concluintes
do ensino médio em Minas Gerais, o que será discutido um pouco mais a frente.
4
O candidato pode optar entre inglês, francês e espanhol.
5
Este é o único caso em que é permitido ao candidato fazer a inscrição para mais de um curso. O objetivo da dupla inscrição
é o de não inviabilizar a participação no vestibular, caso ocorra reprovação nessa avaliação prévia.

117
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

diversificado de atividades. Reuniões anuais são realizadas com as escolas


públicas e privadas de ensino médio, para colher apreciações e sugestões a
respeito das provas que foram aplicadas, e para informar sobre alterações
a serem introduzidas no ano seguinte. Outra iniciativa é a Mostra das
Profissões, evento promovido anualmente, a partir de 2003, com duração
de três dias. Nessa ocasião, estudantes do ensino médio da capital e de
municípios da região metropolitana têm a oportunidade de ouvir palestras
sobre os cursos oferecidos, e de visitar salas interativas onde os colegiados
esclarecem sobre as áreas de interesse de cada estudante. A UFMG distri-
bui, ainda, com o manual do candidato, um número da revista Diversa,6
contendo artigos de professores e alunos sobre os cursos que estão ofere-
cendo vagas no vestibular.

A isenção da taxa de inscrição

Um indicador da preocupação da UFMG em acolher estudantes de


camadas sociais mais pobres, é o programa de isenção da taxa de inscrição
no vestibular. desde 1971. Para a concessão dessa isenção são considera-
dos como critérios: o tipo de escola de ensino médio freqüentado pelo
candidato – pública ou privada – o grau de escolaridade do provedor da
família, a posse de bens móveis e imóveis, e a renda mensal per capita do
grupo familiar. Até 2004, era concedida apenas a isenção do valor total da
taxa, sendo introduzida, a partir do ano seguinte, também a isenção de
metade do valor.
Nesse programa podem ser contemplados tanto estudantes da es-
cola pública como privada; no segundo caso, apenas se cursada com bolsa
integral. No período entre 2003 e 2006, a média anual de inscrições si-
tuou-se em 33 mil, sendo concedidas em média 18 mil isenções anuais. A
Tabela 1 compara as isenções que foram concedidas nos vestibulares des-
se período, com o total de candidatos inscritos no vestibular e com os

6
A revista Diversa é uma publicação bianual, de caráter não-científico, que aborda a produção do conhecimento, o ensino
e a extensão realizados pela UFMG, traduzindo as diferentes faces da instituição. Tem por principal objetivo mostrar a
variedade e a diversidade do compromisso de uma instituição pública. Para consulta aos números já publicados, www.ufmg.br/
online/diversa.

118
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

isentos que se inscreveram. O número, total e relativo, de isenções conce-


didas apresentou grande variação entre 2003 e 2005. Por fugir ao escopo
desse trabalho, não serão analisadas as razões dessa oscilação. Cabe regis-
trar, entretanto, que, excetuado o ano de 2004, a proporção de estudantes
beneficiados com a isenção aproxima-se ou supera a casa dos 20%.

Tabela 1– Programa de isenção da taxa do vestibular da UFMG –


período 2003-2006
Ano Candidatos Isenções concedidas Isentos % de isentos inscritos em
inscritos inscritos relação ao total de
candidatos
2003 78.312 24.125 20.867 26,6
2004 71.670 11.369 9.806 13,7
2005 73.730 18.561 14.104 19,1
2006 67.864 18.958 14.891 21,2
Fonte: Programa de Isenção do Vestibular da UFMG.

Por razões ainda desconhecidas, uma média de 18% de isentos não


efetivam a inscrição. Diversos motivos poderiam ser apresentados para
explicar esse comportamento. Entre as hipóteses possíveis estão as se-
guintes: o beneficiado com a isenção não teria se sentido suficientemente
preparado para disputar a vaga na UFMG; o interessado ter sido reprovado
na 3ª série do ensino médio dado que a inscrição no concurso ocorre cerca
de cinco meses após a solicitação do pedido de isenção; ou, ainda, que o
estudante tenha optado por concorrer ao vestibular em outra instituição
pública. É bom lembrar que a UFMG está situada em um Estado que
apresenta característica única no País, no que concerne à oferta de educa-
ção superior pública: em Minas Gerais estão localizadas 11 universidades
federais e duas estaduais. Não há dados disponíveis, atualmente, que per-
mitam investigar as hipóteses formuladas. O certo é que, a criação do
ProUni em 2005, pela Lei nº 11.096, não poderia à primeira vista, ser
responsável por essa não-inscrição no vestibular da UFMG. Se assim fosse,
a ampliação das possibilidades de acesso ao ensino superior privado que
esse programa proporcionou, teria feito com que, em 2006, a redução no
percentual de isentos que não se inscreveram tivesse sido mais elevada, o
que não se verificou.

119
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

A demanda por vagas na UFMG

O movimento de expansão da demanda observado ao longo dos


anos 1990 no vestibular da UFMG, conforme registra o Gráfico1, a partir
de 2003 vai apresentar tendência de reversão. Após mais de uma década
registrando, a cada ano, um total de candidatos em seu vestibular em
torno de 30 mil, na segunda metade da década de 1990, a UFMG experi-
mentou acentuado e rápido crescimento desse número, que se aproximou,
em 2002, de um total de 85 mil inscritos.7 Após esse ano, observa-se uma
progressiva diminuição no número de inscritos, de tal sorte que, em 2006,
eles chegaram a ser 20% a menos que em 2002.8

100

75
total
milhares de candidatos

50

rede pública
25 rede privada

0
1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008

Gráfico 1– Candidatos inscritos no vestibular da UFMG,


conforme o tipo de escola de ensino médio

7
Análise sobre a demanda aos vestibulares da UFMG nesse período pode ser encontrada em Braga, Peixoto e Bogutchi,
2001, e Peixoto e Braga, 2004.
8
Essa tendência permanece para o vestibular de 2007, que registrou aproximadamente 64 mil inscritos, contra 68 mil, em
2006. Ou seja, houve redução de 6% de um ano para outro.

120
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

Esses dois fatos – o aumento do número de candidatos na segunda


metade dos anos 1990 com seu impacto até 2003, e a redução observada
após esse ano –, em especial o segundo deles, se manifestaram de modo
particular entre os egressos da rede pública do ensino médio. Enquanto na
rede privada a queda do número de candidatos, após 2002, foi pouco supe-
rior a 5%, na rede pública a redução foi de um terço. Verifica-se, desde
então, contínua diminuição da proporção de estudantes da rede pública que
concorrem ao vestibular da UFMG: 61%, em 2002, 52%, em 2006.
Por que razão o número de candidatos ao vestibular da UFMG está
decrescendo? Como indicam os dados acima, a redução que se verificou
no número de estudantes que concluem o ensino médio em Minas Gerais,
entre 1999 e 2002, que afetou quase exclusivamente as escolas públicas,
certamente tem contribuído para isso. Essa assertiva é comprovada pela
observação de que, no período de quase uma década, entre 1997 e 2005,
com a única exceção do ano de 2001, o número de candidatos inscritos ao
vestibular da UFMG pode sempre ser reproduzido, de forma muito aproxi-
mada, a partir do número de concluintes do ensino médio de Minas Ge-
rais. Uma simulação dessa reprodução pode comprovar essa afirmação.
Chamando de I o número de inscritos, de C o número de concluintes e de
Y o ano do vestibular, essa lei é expressa na expressão (1) a seguir, e os
resultados de sua aplicação são mostrados na Tabela 2.

0,15 x CY-1 + 0,10 x CY-2 + 0,06 x CY-3 = 78% de I

Tabela 2 – Comparando o número de inscritos no vestibular UFMG,


em milhares de estudantes, com o simulado pela expressão (1)
Ano 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Valor real 46 51 62 78 79 85 78 71 74
Valor simulado 42 50 60 79 89 86 77 72 74

A relação estreita entre inscritos no vestibular da UFMG e os


concluintes do ensino médio em Minas Gerais, pode ser também observa-
da quando se considera a proporção de estudantes que se inscrevem ao
vestibular da UFMG imediatamente após a conclusão desse nível de ensi-
no sendo mais elevada na rede privada do que na pública. No caso da

121
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

primeira, a proporção é de cerca de 50%, a cada ano, enquanto que, na


rede pública, a porcentagem correspondente é inferior a 7%. Isso indica
que esses últimos necessitam um tempo maior de preparação para se ins-
creverem no vestibular, e também sugere algumas pistas com relação às
respostas das hipóteses acerca das razões pelas quais há um percentual
dos isentos que não se inscreve.

Vestibular e seletividade social

A Tabela 3 apresenta características de estudantes inscritos e aprova-


dos nos vestibulares da UFMG. Os dados evidenciam, ao longo dos anos,
estabilidade do perfil de candidatos e de aprovados, mas apontam também
para algumas importantes diferenças entre inscritos e aprovados – que, igual-
mente, se mantêm ao longo dos anos – diferenças essas que espelham a
seletividade social do concurso. Tais questões serão abordadas a seguir.

Tabela 3 – perfil dos candidatos e aprovados ao vestibular da UFMG;


período 2003-2006.
2003 2004 2005 2006
Item
Insc. Apr. Insc. Apr. Insc. Apr. Insc. Apr.
FSE médio 4,2 5,7 4,6 5,9 4,6 5,9 4,7 5,9
Idade média 21,0 20,3 20,9 20,2 20,9 20,3 20,6 20,2
% conclui escola pública 58 38 55 38 55 37 52 35
% solteiros 93 93 93 96 94 96 95 96
% residentes MG 93 95 95 95 95 95 92 98
% sexo feminino 58 47 57 48 57 47 58 47
% trabalham 33 24 31 24 30 24 27 23

O candidato no vestibular da UFMG é, em elevada proporção, sol-


teiro e reside em Minas Gerais, características que não distinguem os ins-
critos dos aprovados. Por outro lado, a idade média dos inscritos registra
pequena queda ao longo dos anos, talvez em decorrência da diminuição
da sua participação no concurso, efeito que, como visto, atinge quase
exclusivamente os concorrentes oriundos da rede pública de ensino mé-
dio. Tal fato, entretanto, não se reflete na idade média dos aprovados, que
é praticamente a mesma. Na comparação entre inscritos e aprovados, a
idade média dos últimos é de seis meses inferior à dos primeiros, evidenci-
ando a maior proporção de aprovados entre os candidatos mais jovens.

122
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

Os valores médios de FSE, praticamente inalterados ao longo dos


anos, e a proporção de egressos da rede pública de ensino médio, são itens
que apresentam expressivas diferenças, na comparação entre inscritos e
aprovados, diferenças essas que expressam claramente a seletividade soci-
al do concurso. Entre os aprovados, a média de FSE é cerca de 30% supe-
rior à registrada entre os inscritos, enquanto que a proporção de egressos
da rede pública de ensino médio é uma vez e meia menor entre os aprova-
dos, quando cotejados com os inscritos.
Outro quesito que expressa, de forma muito evidente, a seletividade
social do concurso é a renda familiar, cujos resultados são apresentados nos
Gráficos 2a e 2b, referentes à renda familiar declarada de inscritos e apro-
vados na UFMG. No Gráfico 2a, está registrada a renda familiar média de
candidatos e aprovados, em reais de junho de 2006, que, invariavelmente, é
cerca de 50% maior para os segundos, quando comparados aos primeiros.
No Gráfico 2b, está registrada a distribuição, por faixa de salários mínimos
(SM), da renda verificada para o período 2003-2006. Observa-se que, entre
os inscritos, predominam os estudantes cujas famílias têm menor renda
familiar, sendo a metade deles proveniente de famílias que ganham até
cinco salários mínimos, diminuindo a população de cada faixa à medida que
o montante da renda aumenta. Entre os aprovados, contudo, a população
relativa das faixas de renda mais elevada é sempre nitidamente maior do
que entre os inscritos, enquanto que a população relativa da menor faixa de
renda é a metade daquela que se verifica entre os inscritos.

5.000
reais de junho de 2006

4.000 aprovados

3.000
inscritos

2.000

1.000
2002 2003 2004 2005 2006 2007

Gráfico 2a – Renda média, em reais de junho de 2006,


conforme o ano do vestibular

123
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

60
Percentual
50

40 inscritos
aprovados
30

20

10

0
até 5 SM de 5 a 10 SM de 10 a 20 SM de 20 a 40 SM maior que 40 SM

Gráfico 2b – Histograma da renda declarada, em faixas de salários


mínimos, para a média do período 2003-2006

Por sua vez, os dados da Tabela 3, relativos ao item trabalho refle-


tem de forma apenas moderada a seletividade social do concurso. Entre os
inscritos, a proporção dos que declararam trabalhar é da ordem de 30% e
vem caindo ao longo dos anos. Entre os aprovados, quase um quarto dos
estudantes informaram trabalhar, fração que não se alterou, no período
de tempo considerado neste estudo, de modo que, a proporção dos que
trabalham entre os aprovados, vem se aproximando daquela observada
entre os inscritos. A relação entre essas duas proporções, ao longo do
período considerado neste estudo, se deu de acordo com os seguintes
valores: 73%, em 2003, 77%, em 2004, 80%, em 2005 e 85%, em 2006.
Em parte, a razão para a seletividade social não se expressar fortemente
nesse quesito encontra-se na oferta de vagas noturnas. Metade dos estu-
dantes deste turno trabalha, contra um percentual inferior a 20%, no caso
do turno diurno, justificando a dimensão da presença dos estudantes tra-
balhadores entre os aprovados.
A instrução dos pais também reflete a seletividade social do concur-
so, conforme ilustra a Tabela 4. Estudantes que têm um dos pais, ou ambos,
com instrução superior estão presentes em maior proporção entre os apro-
vados do que entre os inscritos. Quase 60% dos aprovados são filhos de pai
ou mãe que concluíram o ensino superior, proporção essa que é da ordem
de 35%, entre os candidatos. Já aqueles cujos pais não possuem diploma de

124
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

curso superior estão presentes em proporção superior a 60% entre os inscri-


tos, mas representam pouco mais de 40% entre os aprovados.

Tabela 4 – Instrução dos pais, considerando a conclusão


de curso superior – %
Conclusão de curso 2003 2004 2005 2006
superior Insc. Apr. Insc. Apr. Insc. Apr. Insc. Apr.
Ambos concluíram 13 29 14 29 15 29 17 30
Um concluiu 19 25 20 27 21 28 22 28
Nenhum concluiu 68 46 66 44 64 43 61 42

Ainda em relação aos dados apresentados na Tabela 3 há, ainda,


um último aspecto a ser comentado, mas que não se refere à seletividade
social do vestibular. Trata-se da proporção de estudantes do sexo femini-
no presente no universo de inscritos e aprovados. Essas proporções se
mantêm praticamente inalteradas no período aqui considerado, indicando
maior dificuldade das mulheres para serem aprovadas no vestibular da
UFMG, quando comparadas aos homens, sendo que, entre os inscritos, a
proporção de candidatas aproxima-se de 60%, enquanto que, entre os
aprovados, esse percentual não alcança 50%. Uma análise mais acurada
desses dados da Tabela 3, cujo detalhamento foge ao escopo do presente
trabalho, indica ainda que os homens têm chances de aprovação 50%
superiores às das mulheres nos vestibulares da UFMG. A análise da série
histórica dos censos da educação superior (Peixoto, Braga e Aguiar, 2006)
indica que o percentual de mulheres, no ensino superior do Estado de
Minas Gerais, chega a ser superior aos índices do Brasil, no setor público,
em 12 pontos percentuais. Considerando os dados da UFMG, essa diferen-
ça dificilmente poderia ser a ela atribuída.

Declaração de cor ou raça:


uma questão complexa

A questão étnica tem sido tema freqüente e polêmico no debate


atual sobre o acesso à educação superior e a análise aqui apresentada adici-
ona alguns elementos a esse debate. Nos dados da UFMG, as informações

125
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

evidenciam, principalmente, a complexidade do uso da autodeclaração como


requisito principal para o estabelecimento de políticas de ações afirmativas
nesse acesso. As tabelas 5 e 6 apresentam a distribuição dos candidatos e
aprovados no vestibular da UFMG, conforme sua declaração de cor ou raça.

Tabela 5 – Declaração de raça ou cor de candidatos – período


2003-2006

MG ?
Cor/raça declarada MG 2000 2003 2004 2005 2006
11 anos
Amarela 1,6 0,3 3,4 2,9 2,6 2,5
Branca 53,5 71,5 65,4 61,9 58,8 58,1
Indígena 0,3 0,2 0,8 0,6 0,6 0,5
Parda 37,6 24,0 23,8 27,1 29,5 30,6
Preta 7,8 4,0 6,7 7,4 8,4 8,2
% Não declarado 0,6 0,4 - 4,9 5,5 6,7
A opção “não desejo declarar” foi introduzida no questionário apenas a partir do vestibular de 2004.

Tabela 6 – Declaração de raça ou cor de aprovados – período


2003-2006

MG ?
Cor/raça declarada MG 2000 2003 2004 2005 2006
11 anos
Amarela 1,6 0,3 1,9 1,7 1,4 1,7
Branca 53,5 71,5 74,2 71,2 70,3 67,5
Indígena 0,3 0,2 0,4 0,3 0,3 0,3
Parda 37,6 24,0 20,2 22,9 24,4 26,4
Preta 7,8 4,0 3,3 3,9 3,6 4,1
% Não declarado 0,6 0,4 - 6,2 7,9 9,9
A opção “não desejo declarar” foi introduzida no questionário apenas a partir do vestibular de 2004.

Nessas tabelas, a comparação entre as respostas de cada vestibular


com os dados do Censo Demográfico do IBGE de 2000 para o Estado de
Minas Gerais, é feita de duas formas: em relação à população total, e em
relação à população do Estado com 11 anos ou mais de escolaridade, que
é aquela que se encontra em condições de pleitear o acesso ao ensino
superior. Entre os candidatos, no primeiro e no segundo caso, à exceção
dos que se declararam pardos, as demais categorias encontram-se repre-
sentadas em proporção superior à sua distribuição no Estado. Entre os
aprovados, por sua vez, embora a quantidade de estudantes pardos e pre-
tos se aproxime da registrada para a população com 11 anos ou mais de
escolaridade, ela está bastante distanciada em relação ao total de sua

126
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

participação no Estado. Os demais, em especial os brancos, embora este-


jam super-representados em relação à sua participação no Estado, aproxi-
mam-se bastante da representação na população que já atingiu o nível de
escolaridade adequado.
Os dados constantes da Tabela 6, relativos aos aprovados em cada
vestibular, podem induzir à conclusão de que a UFMG vem, progressiva-
mente, incorporando mais pretos e pardos à sua população estudantil.
Quando se observa o universo dos candidatos na Tabela 5, entretanto,
essa regularidade também é observada, e em proporções muito similares.
Em 2003, o percentual dos que se declararam pardos foi de 23,8% entre
os inscritos e de 20,2% entre os aprovados, valores que, em 2006, passa-
ram a ser, respectivamente, 30,6% e 28,4%. Em ambos os casos houve um
aumento de cerca de 30% da proporção de pardos. Situação semelhante
pode ser verificada, quando se acompanham os que se declararam pretos.
Ou seja, quando comparados aos brancos, pretos e pardos mantêm as
mesmas chances relativas de aprovação no vestibular, de modo que sua
presença na lista de aprovados aumenta, na mesma proporção em que ela
cresce entre os inscritos.
As observações do parágrafo anterior sugerem que o padrão de respos-
tas a esse quesito pode ser alterado de um ano para outro. Para avaliar essa
possibilidade, compararam-se as respostas que foram dadas à autodeclaração
de cor ou raça por um mesmo candidato, em anos diferentes.
Cerca de 20 mil estudantes concorreram ao vestibular da UFMG em
dois anos subseqüentes. E algo como 10 mil estudantes concorreram em
três anos seguidos, sendo possível verificar, então, se esses estudantes
modificaram suas respostas, e em que direções o fizeram.
Quando esse exercício é feito, verifica-se um elevado percentual de
candidatos que troca a autodeclaração de um ano para outro. No conjun-
to, o percentual de mudanças encontradas supera 20% e atinge todas as
declarações de cor ou raça, ainda que as modificações efetuadas sejam
bem mais expressivas para aqueles que se declararam amarelos ou indíge-
nas, em relação aos pouco mais de um terço que mantiveram a declaração
do ano anterior.
O resultado desse processo é apresentado na Tabela 7, que consi-
dera três grupos específicos de estudantes: os que prestaram vestibular
em 2003 e 2004, os que concorreram em 2004 e 2005 e aqueles que se

127
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

inscreveram em todos esses três anos. Como se vê, um mesmo grupo de


estudantes, em dois ou três anos subseqüentes, tende a se apresentar
crescentemente com maior proporção de pretos e pardos, e menor con-
tingente de brancos.

Tabela 7 – Declaração de cor ou raça dos candidatos, excluídos


os que não quiseram declarar – período 2003-2005

2004
Cor/raça declarada 2003 A B 2005
Amarela 3,0 2,6 2,7 2,3
Branca 66,3 62,0 61,9 58,8
Indígena 0,6 0,5 0,5 0,6
Parda 23,6 27,1 27,4 30,1
Preta 6,4 7,8 7,5 8,3

É importante ressaltar, que a UFMG não implementou nenhum


mecanismo de inclusão social que privilegiasse as características étnicas
do estudante, argumento que seria suficiente para justificar as alterações
ocorridas, como sendo decorrentes de um desejo de obter vantagem no
processo seletivo. Algumas hipóteses podem ser formuladas, para compre-
ender esse fenômeno, entre elas a de que os candidatos não se lembram
de qual declaração fizeram no ano anterior. Outra é de que, assim como o
significado dessas categorias étnicas não é claro para a população em
geral, também para eles isso é um ponto obscuro, impedindo uma identi-
ficação efetiva com as denominações apresentadas.9 Esse é um aspecto
que necessita ser analisado em maior profundidade, e os autores alertam
para o fato de que a complexidade dessa questão deve ser considerada por
ocasião do estabelecimento de mecanismos de inclusão que visem a ca-
racterísticas étnicas.

9
Vários estudos abordam a complexidade produzida pela diversidade de denominações que são atribuídas, no Brasil, à
identificação de cor ou raça. Entre eles, ver Osório, 2003 e Queiroz, 2004, em especial, Rosemberg, 2004 que confirma a
existência de mudanças na autodeclaração de cor ou raça, tendo em vista a obtenção de vantagens em programa de ação
afirmativa.

128
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

Comparando diferenças entre grupos


de variáveis

A combinação de algumas variáveis permite perceber melhor o sig-


nificado dos resultados do processo de seleção da UFMG. Três delas, por
comportarem traços indicativos de condições sociais distintas, assumem
maior importância para esta análise: as comparações entre estudantes pro-
venientes de escola pública e privada, de estudantes autodeclarados bran-
cos e negros, e daqueles que escolheram o turno diurno ou noturno para
os cursos. Essas comparações serão apresentadas a seguir, apenas para os
aprovados, a começar pela Tabela 8, onde estão representados os estu-
dantes aprovados segundo o tipo de escola em que concluíram o ensino
médio.

Tabela 8 – Diferenças entre grupos de aprovados que concluíram


o ensino médio na escola pública e privada – período 2003-2006
2003 2004 2005 2006
Itens
Públ. Priv. Públ. Priv. Públ. Priv. Públ. Priv.
FSE médio 3,2 7,2 3,5 7,4 3,5 7,3 3,5 7,1
Média de idade 21,6 19,5 21,3 19,5 21,7 19,6 21,4 19,4
% Negros 33 17 35 19 36 20 40 21
% Trabalhavam 36 17 36 17 38 16 36 15
Renda média SM 7,6 19,3 7,0 17,4 6,5 17,2 6,8 15,7
% Pais sem superior 76 27 73 28 71 26 69 28

Em razão da maior concentração dos estudantes de origem mais


pobre nas escolas públicas, a posição média dos aprovados na escala FSE
mostra que a relação entre os que concluíram o ensino médio na escola
privada é sempre pouco superior ao dobro dos que o concluíram na escola
pública. A média de idade de ingresso na UFMG é sempre um pouco mais
elevada entre esses últimos, indicando que eles enfrentam mais dificulda-
des para conclusão do ensino médio e/ou para conseguirem ser aprovados
no vestibular. Os autodeclarados negros (soma de pretos e pardos), e os
que trabalhavam quando se inscreveram no vestibular, também apresen-
tam comportamento semelhante ao verificado para o FSE médio. Por sua
vez, as diferenças entre a renda média em salários mínimos são um pouco
maiores, à exceção do último ano da série analisada, enquanto os

129
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

percentuais relativos à escolarização dos pais apresentam fortes diferenci-


ações, da ordem de 40%, também com uma ligeira queda no ano de 2006.
As diferenças socioeconômicas expressam-se também quando se
confrontam estudantes negros e brancos, conforme revela a Tabela 9.

Tabela 9 – Diferenças entre grupos de aprovados que se declararam


brancos e negros – período 2003-2006
2003 2004 2005 2006
Itens
Bran. Negr. Bran. Negr. Bran. Negr. Bran. Negr.
FSE médio 6,1 4,5 6,4 4,9 6,4 4,8 6,3 4,8
Média de idade 20,1 20,8 20,1 20,5 20,2 20,7 19,9 20,6
% Escola pública 33 54 32 53 31 50 28 51
% Trabalhavam 22 30 22 29 22 29 20 29
Renda média SM 16,2 10,6 14,9 10,2 14,9 9,4 14,0 9,5
% Pais sem superior 40 63 38 60 37 59 36 57

As diferenças, no entanto, são agora um pouco menores – e em


alguns itens, bem menores – do que aquelas que separam egressos das
escolas públicas e privadas do ensino médio. As condições socioeconômicas
dos brancos e negros na sociedade brasileira são bastante diferenciadas,
conforme atestam, entre outras, as análises do IBGE com base nos dados
do Censo Demográfico e das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicí-
lios (Pnads) (cf. IBGE, 2000 e 2004), mas não se apresentam de forma tão
pronunciadas quanto aquelas que distinguem estudantes de escolas pú-
blicas e privadas, quando se considera o universo dos que concorrem ao
vestibular da UFMG. Aqui, as diferenças nos valores médios de FSE e na
renda média, no caso da universidade, estão na faixa de 50% e a propor-
ção dos estudantes que trabalham é cerca de um terço maior entre negros,
do que entre brancos. No caso da idade de ingresso, por sua vez, as dife-
renças entre negros e brancos são muito pequenas.
As articulações que se produzem entre diversos fatores na socieda-
de, como a renda como indicador de classe social, e a cor da pele como
indicador de raça, estão refletidas nos resultados da interação entre as
declarações de cor ou raça, e a renda média em salários mínimos. Nesse
caso, em lugar dos dados estarem representando a existência de um
determinismo de classe que se sobrepõe a um determinismo de raça, eles
indicam a interação que existe entre ambas as dimensões, renda e raça
(ver Backes, 2006). Ou seja, a relação é mais forte nas diferenças entre
escola pública e privada, do que entre brancos e negros.

130
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

A Tabela 10, finalmente, apresenta as diferenças entre os aprovados


conforme o turno do curso escolhido quando da inscrição no vestibular.

Tabela 10 – Diferenças entre grupos de aprovados conforme o turno


do curso; período 2003-2006
2003 2004 2005 2006
Itens
Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno Diurno Noturno
FSE médio 6,1 3,6 6,3 4,3 6,3 4,8 6,2 4,4
Média de idade 19,8 23,7 19,6 22,5 19,7 22,9 19,5 22,6
% Escola pública 33 63 33 57 32 54 30 54
% Negros 22 33 25 34 27 34 26 35
% Trabalhavam 17 57 17 49 18 49 15 50
Renda média SM 15,8 9,7 14,1 11,1 13,8 11,2 13,3 10,0
% Pais sem superior 41 72 39 60 39 56 37 60

As diferenças observadas entre os estudantes que freqüentam cur-


sos diurnos e noturnos são também expressivas, ainda que no quesito
renda familiar média, a divergência entre os valores observados para os
dois turnos não tenha sido superior a 30%, à exceção do ano de 2003. Isso
se deve, certamente, ao fato de que o aluno dos cursos noturnos, em
elevada proporção, trabalha e, possivelmente, contribui para a renda fami-
liar. A elevada proporção de estudantes dos cursos noturnos que traba-
lham, seria também, o fator mais importante para explicar a diferença de
idade média de ingresso entre os turnos de estudo, situada entre três e
quatro anos. Mencione-se, ainda, que os estudantes negros e, sobretudo,
os egressos da rede pública do ensino médio concentram-se nos cursos
noturnos, evidenciando o potencial de inclusão social desses cursos.
Esse dado foi determinante, inclusive, para a tomada de decisão
pelo Conselho Universitário da UFMG de, em 2003, aprovar a ampliação
de vagas e a criação de cursos no turno noturno como mecanismo
prioritário da política de inclusão social da universidade. No período que
se seguiu, as vagas oferecidas nesse turno na UFMG sofreram pequeno
acréscimo, passando de 16,5% para 22%.10 Em termos percentuais, a

10
Em 2003, a UFMG ofereceu em seu vestibular, 720 vagas no noturno, número que foi ampliado para 960 em 2004, e para
1.000 em 2005 e em 2006, correspondendo, respectivamente, a 16,3%; 20,9% e 21,3% do total de vagas.

131
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

pequena dimensão verificada nessa expansão no decorrer da realização


de três vestibulares, e o número reduzido dos cursos abrangidos por ela,
reflete as dificuldades enfrentadas pela universidade para colocar essa
política em prática.11
Essas dificuldades têm sua origem tanto nas resistências ofereci-
das, por parte do corpo docente, à implementação de procedimentos des-
tinados a promover a inclusão social, como nas restrições com que as
instituições federais têm se defrontado no que diz respeito à ampliação do
seu corpo de servidores docentes e técnico-administrativos. No segundo
caso, há o risco de que uma deliberação de criar um curso noturno, ou de
ampliar a oferta de vagas nesse turno, resulte em aumento da carga de
trabalho sem expectativa de solução imediata. Isto se constitui, sem dúvi-
da, no entrave mais grave para que a implementação dessa política se faça
com a velocidade e o ritmo necessários para atender à urgência que essa
demanda apresenta para as instituições públicas de ensino superior.

Conclusão

As questões que foram analisadas nesse texto fornecem subsídios


para a formulação de políticas acadêmicas. Por esse motivo, estudos nessa
direção devem ter continuidade, visando produzir análises de médio e
longo prazo que indiquem a configuração ou a alteração de tendências no
acesso à universidade. Agindo assim, a instituição poderá exercer, de for-
ma efetiva, seu papel como instituição pública.
A análise dos dados do vestibular da UFMG mostra, em primeiro
lugar, que esse exame comporta um filtro de seletividade social no acesso
ao ensino superior público no País. Os candidatos estão localizados em
maior proporção nos pontos inferiores da escala FSE e concluem o ensino
médio na escola pública, situação que se inverte entre os aprovados. As
diferenças de renda familiar e de nível de instrução dos pais também reve-
lam que são maiores as facilidades de ingresso na universidade pública
para os estudantes oriundos de famílias com maior renda e para filhos

11
Análise sobre a implementação da política que prioriza a ampliação da oferta de vagas noturnas na UFMG foi feita por
Braga e Peixoto, 2006B.

132
A ampliação do acesso à educação superior pública pós-LDB:
considerações a partir do caso da UFMG

cujos pais concluíram o ensino superior. Os estudantes provenientes dos


estratos sociais menos favorecidos, contudo, também são encontrados em
proporções significativas nessa universidade, considerando-se que a maior
parte dos aprovados se distribui de modo equilibrado nas faixas de renda
familiar situadas entre 0 e 20 salários mínimos. Isso indica que, apesar de
terem maiores chances de ingresso, a parcela da população considerada
como elite socioeconômica da sociedade não é a predominante na UFMG.12
As declarações de cor ou raça dos candidatos, por sua vez, evidenciam
que, em relação ao encontrado no Estado de Minas Gerais, no total da sua
população e no conjunto dos que têm 11 anos ou mais de escolaridade, suas
proporções não são comparáveis: os brancos estão em maior proporção, e os
negros em posição inferior. Essa situação se modifica entre os aprovados, à
exceção dos que se declararam brancos, ainda super-representados em rela-
ção à sua composição na população total do estado. Quando se consideram
apenas as declarações de cor ou raça daqueles que têm a escolaridade ade-
quada para fazer um curso de nível superior, contudo, verifica-se que sua
participação no conjunto se faz em proporção mais equilibrada. Os percentuais
de pretos e pardos, por sua vez, aproximam-se daqueles da população do
Estado que tem 11 anos, embora estejam em menor proporção, quando se
considera a sua representação na população total do Estado.
Considerando o disposto no Plano Nacional de Educação, é preciso
observar que, a tomar como exemplo o caminho trilhado pela UFMG na
primeira metade da década abrangida por esse Plano, há ainda muito a
percorrer para que o que foi estabelecido nas suas diretrizes seja cumprido.
A dimensão da expansão das universidades públicas, necessária para atingir
o patamar de escolarização almejado, para atender à expectativa de deman-
da crescente, sobretudo no segmento dos alunos carentes, e para ampliar a
oferta de vagas no período noturno, enfrenta dificuldades acentuadas, que
não se restringem à disponibilidade de recursos financeiros necessária para
viabilizar esses objetivos. As grandes limitações interpostas às universidades
federais em razão das restrições à autonomia administrativa e de gestão,
constituem-se em fortes impeditivos para realizar as metas estabelecidas.

12
Esse, aliás, é o quadro que impera nas instituições de ensino superior federais do País, como demonstra o estudo Andifes,
2005.

133
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Os vetos presidenciais interpostos às metas do PNE de ampliar a


oferta de ensino público, assegurando proporção nunca inferior a 40% do
total das vagas, e de garantir, na esfera federal, pelo menos 75% dos
recursos vinculados da União, destinados à manutenção e expansão da
rede de instituições federais, basearam-se na inexistência de previsão or-
çamentária no Plano Plurianual. O êxito do Plano Nacional de Educação,
no que concerne à educação superior, além da necessidade de retirada
desses vetos, com conseqüente dotação orçamentária, depende, também,
da ampliação da base de cálculo da receita vinculada à educação, dado
que, sabidamente o percentual de 75% é insuficiente para atender até
mesmo ao patamar de funcionamento hoje existente.
A persistir essa situação, suplantar as resistências que segmentos
docentes contrapõem às tentativas de tornar a universidade pública mais
inclusiva, será uma façanha que requererá muito mais do empenho e von-
tade política dos gestores das universidades públicas federais. Não impor-
ta se, nesse caso, o que esteja em questão seja a ampliação da oferta de
vagas noturnas, visando incorporar alunos trabalhadores em maiores pro-
porções, ou a busca de alternativas que tenham por objetivo abrigar gru-
pos de estudantes provenientes de camadas sociais e de grupos étnicos
que hoje se encontram inseridos em posição inferiorizada no ensino supe-
rior. Em qualquer caso, as possibilidades de que as políticas sejam bem-
sucedidas serão restritas. Resta manter a esperança na possibilidade de
que as condições vigentes não são imutáveis, e de que as prioridades de
política podem vir a ser alteradas, viabilizando, em futuro próximo, me-
lhores condições para o encaminhamento dessas questões.

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136
7
Políticas de Ações Afirmativas
para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade
Otília Maria Lúcia Barbosa Seiffert*
Salomão Mufarej Hage**

* Professora do Programa de Mestrado Ensino em Ciências da Saúde/UNIFESP. Doutora em Psicologia da Educação/PUCSP;


e-mail: oseiffe@attglobal.net
** Professor do Centro de Educação da UFPA, doutor em Educação/PUCSP; e-mail: salomao@uol.com.br
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

Introdução
Pensemos no número de jovens das classes populares que cursam o suple-
tivo de forma precária em cursos noturnos, na sua grande maioria pagos.
Os jovens das classes médias da mesma geração percorrem o seu curso de
1° e 2° graus em escolas pagas, exigentes, e, ao chegar o momento de
ingressar na universidade, fazem revisões de conhecimentos e capacitação
em 'cursinhos' para submeter-se ao vestibular.
Neste momento, os que podem pagar e cursaram escolas privadas caras,
vêm para as universidades gratuitas federais e estaduais. Os poucos jovens
pobres que conseguiram, a duras penas, chegar ao fim dos cursos médios,
não podendo competir com os outros, não tem outro seio onde se abrigar,
senão o das faculdades caras, quase sempre sem rigor nenhum. (sic)
(Paulo Freire, 2005)

No período mais recente, as políticas de ação afirmativa têm estado


em evidência no debate nacional, na legislação, na mídia e nas políticas
públicas, assumidas enquanto estratégias importantes de enfrentamento
das desigualdades sociais historicamente construídas. No Brasil temos um
cenário em que a igualdade formal é garantida e a presença de preconcei-
tos e discriminação não é aceita no corpo jurídico presente, entretanto a
igualdade real não se concretiza, quando os indicadores sociais explicitam
as enormes desigualdades impostas aos grupos sociais menos favorecidos.

139
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Inúmeras ações, medidas e programas institucionais nos vários cam-


pos sociais, governamentais ou não, têm sido elaborados e implementados
com vistas a promover a concretização do princípio constitucional da igual-
dade em prol dos segmentos sociais minoritários.1 Entretanto, o sistema
educacional brasileiro, ainda marcado pela exclusão por diversos mecanis-
mos, tem reservado aos pobres, negros, indígenas, mulheres, jovens, idosos,
homossexuais, pessoas do meio rural, portadores de necessidades especiais,
entre outros grupos sociais, uma educação de inferior qualidade, dedicando
o essencial dos recursos materiais, humanos e financeiros destinados à edu-
cação de todos os brasileiros, a um pequeno contingente da população que
detém a hegemonia política, econômica e social do País (Gomes, 2003).
Se a escolarização não é o principal entrave para que os grupos
sociais minoritários experimentem melhores condições de vida, ela é certa-
mente um instrumento importante, para a diminuição de hierarquias e
assimetrias históricas, sociais, raciais, regionais, de gênero, de idade, de
origem, étnica e cultural em nosso País.
A escola constitui-se em num espaço privilegiado de crescimento
pessoal, intelectual, profissional e social, bem como de construção de va-
lores, da democracia e da cidadania. Pode, portanto, ser considerada lócus
que possibilita a reprodução e a superação de desigualdades e hierarquias,
de estereótipos, de segregação, e de efeitos perversos que esses fenôme-
nos têm sobre os seres humanos.
Nesse sentido, ganha cada vez mais importância a discussão sobre
as ações afirmativas na educação superior. Ao entendermos que as insti-
tuições de ensino superior são espaços de contradição, reprodução e
legitimação da ascensão social, que têm favorecido amplamente as elites
brasileiras, reconhecemos que se constituem também em arena e via privi-
legiada de disputa pela democratização da sociedade brasileira, com a

1
Pode parecer estranho falar em "minoria" para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente
formam a maioria. A expressão minoria não é usada no sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamento
político liberal definiu os que teriam direito à cidadania, usou como critério a idéia de maioridade social: seriam cidadãos
aqueles que tivessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são
independentes, isto é, não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários dos meios privados de
produção e os profissionais liberais. São dependentes, e, portanto, em estado de minoridade racional: as mulheres, as
crianças, os adolescentes, os trabalhadores e os “selvagens primitivos" (africanos e índios). Formam a minoria. Como há
outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias". A “maioridade"
liberal refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal (Chauí, 2003).

140
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

participação mais efetiva de movimentos sociais anti-racistas e anti-sexis-


tas, do campo e da cidade, entre outros.
Nessa disputa não se devem incluir somente as reivindicações
concernentes ao acesso dos segmentos que têm sido excluídos do ensino
superior, mas também a sua permanência com autonomia. Isso implica no
enfrentamento a distintos momentos e movimentos de reforço das hierarqui-
as no interior da comunidade acadêmica, que incluem o acesso a financia-
mento, bolsa de estudo, possibilidade de produção e difusão de conhecimen-
tos, entre outros. Esse enfrentamento tem se mostrado impeditivo ao proces-
so de construção de um ambiente de diversidade que, por se encontrar regio-
nal, cultural, racial e/ou sexualmente concentrado, concorre para o fortaleci-
mento de um pensamento científico com marcas de distintas subjetividades
das elites brasileiras. Por conseguinte, as idéias e significados produzidos, ao
não considerar as percepções oriundas da experiência de vida dos segmentos
minoritários, colaboram para a perpetuação das distintas hierarquias e das
desigualdades sociais e culturais no Brasil (Santos e Lobato, 2003).
Cabe salientar que a Constituição Federal (1988) estabelece que:
“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promo-
vida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho" (art. 205). Direito humano gradualmente
incorporado na legislação brasileira, representando uma das grandes con-
quistas do século XX no País.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) ratifica
esse direito ao preconizar que: “A educação, dever da família e do Estado,
inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade huma-
na, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 2º).
Nessa perspectiva, as diretrizes estabelecidas para o sistema educacional
brasileiro direcionam-se à democratização das oportunidades educacio-
nais, entretanto, na realidade, as ações empreendidas estão ainda distan-
tes das concretas necessidades da população e do projeto de construção
de uma nação soberana e democrática.
Torna-se assim, indispensável reconhecer que “os direitos humanos
não são um dado, mas um construído, uma invenção humana em cons-
tante processo de construção e reconstrução" (Arendt apud Piovesan, 2005,

141
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

p. 44). Assim sendo, a educação é um direito humano, e pautá-la nesse


pressuposto implica reconhecer o direito à igualdade e à diferença, assu-
mindo o desafio de implementar políticas públicas e práticas educativas,
que contemplam a totalidade da população brasileira e que sejam capazes
de enfrentar as desigualdades sociais em seus múltiplos aspectos.
Em concordância com Pinheiro (2006), destacamos que a igualda-
de a que estamos nos referindo traz como premissa o respeito à diversida-
de, significando a “igualdade na diferença". Isso implica em assumir que
para todos terem assegurado o seu direito à igualdade é necessário consi-
derar as diferenças de cada grupo. Assim, para que a população tenha
acesso ao ensino, por exemplo, é essencial admitir as particularidades e as
necessidades específicas da população indígena, o histórico da escravidão
dos afrodescendentes e os papéis sociais assumidos por homens e mulhe-
res, do campo e das periferias urbanas. O reconhecimento da diferença é
entendido, portanto, como instrumento fundamental para o alcance da
igualdade e para a conseqüente aproximação dos indicadores sociais dos
diferentes grupos que compõem a sociedade. Logo, o desenvolvimento
humano e a concretização das metas de uma sociedade democrática têm
na educação um caminho essencial, devendo ser orientada pelo respeito
às bases multiculturais constituintes da nação.
Entretanto, as estatísticas educacionais indicam que o acesso e a per-
manência na escola, sobretudo nos níveis mais elevados do sistema educacio-
nal, se diferenciam em relação ao nível socioeconômico, gênero, raça, etnia,
idade, entre outros aspectos da população. Esse quadro reflete as condições
adversas que os estudantes dos segmentos sociais minoritários enfrentam em
suas trajetórias escolares, quando comparadas às dos estudantes das elites
sociais. Em relação a esse aspecto, Guimarães (2003, p. 8) chama a atenção
que “a proporção de jovens que se definem como ‘pardos' e ‘pretos' nas
universidades brasileiras, principalmente naquelas que são públicas e gratui-
tas, está muito abaixo da proporção desses grupos de cor na população."
No âmbito dessa problemática, assumimos a importância de reali-
zar uma reflexão, tomando como referências, informações e dados estatís-
ticos, que oferecem um mapeamento da presença/ausência de segmentos
sociais minoritários no sistema de educação superior brasileiro.
Neste texto, apresentamos alguns programas de ações afirmativas,
que objetivam a expansão da participação de segmentos sociais minoritários

142
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

na educação superior. Optamos ainda por analisar dados estatísticos, que


sinalizam a presença/ausência de afrodescendentes, mulheres, pessoas da
zona rural e portadores de necessidades especiais no ensino superior do
País. Os dados apresentados são originários do Instituto Brasileiro de Ge-
ografia e Estatística (IBGE), obtidos por meio da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (Pnad/2004), do Censo da Educação Superior de
2004 realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-
nais Anísio Teixeira (Inep) e do Exame Nacional de Desempenho dos Estu-
dantes de 2004 (Enade), um dos instrumentos do Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior (Sinaes).
Cabe ressaltar que, neste estudo de natureza descritivo-exploratória,
temos o objetivo de traçar uma fotografia inicial da presença/ausência des-
sas minorias na educação superior, procurando apreender esse quadro com
vistas a contribuir para problematizações acerca dos desafios e compromis-
sos inerentes ao processo de democratização do acesso ao ensino superior.
Esperamos que as reflexões e análises apresentadas possam subsidiar deba-
tes e ações que priorizam a garantia da real “igualdade na diferença" entre
os grupos sociais da sociedade brasileira, estimulando os mais diferentes
públicos – movimentos sociais, pesquisadores, gestores, parlamentares, edu-
cadores e estudantes –, a engajarem-se nessa construção.

As políticas de ação afirmativa para


a educação superior no Brasil

Projetos de ação afirmativa emergem no enfrentamento à desi-


gualdade com relação às oportunidades educacionais, com o propósito de
potencializar o acesso de grupos minoritários à educação superior, entre
outros. Essas ações materializam reivindicações com marcas e ecos de
lutas sociais de séculos.
Mas, o que são ações afirmativas? A origem da expressão é norte-
americana, forjada na década de 1960, quando se formam movimentos
sociais que demandam igualdade de oportunidades para todos e exigem do
Estado leis que garantam a melhoria das condições das populações negras.
Em estudo acerca da história das ações afirmativas no Brasil,
Moehlecke (2002) destaca, entre inúmeras definições resgatadas, a de

143
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Guimarães (1997, p. 233) que reconhece como objetivo central dessas


ações: “promover privilégios de acesso a meios fundamentais – educação
e emprego, principalmente – a minorias étnicas, raciais ou sexuais que, de
outro modo, estariam deles excluídas, total ou parcialmente". Enfatiza
esse autor que, estando atreladas a sociedades democráticas, essas ações
representam um

[...] aprimoramento jurídico de uma sociedade cujas normas e mores pau-


tam-se pelo princípio da igualdade de oportunidades na competição entre
indivíduos livres, justificando-se a desigualdade de tratamento no acesso
aos bens e aos meios, apenas como forma de restituir tal igualdade, deven-
do, por isso, tal ação ter caráter temporário, dentro de um âmbito e escopo
restrito (Ibidem, p. 233).

No âmbito da diversidade e polissemia que revestem essas ações,


destacamos o conceito apresentado por Moehlecke (2002, p. 7), que define:

[...] ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou pre-


ventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade
infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, através da valo-
rização social, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um
período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do
grupo visado e do contexto histórico e social (sic).

Entretanto, é fundamental reconhecer que a política compensató-


ria é uma forma de minimizar o problema sem resolvê-la. O Estado aten-
de, em parte, às reivindicações dos excluídos, de modo que a realização da
política nunca se completa. As políticas de ações afirmativas na educação,
se compreendidas e implementadas nessa perspectiva, consistem em aten-
der parcialmente às reivindicações dos segmentos sociais minoritários, eli-
minando os focos de tensão e conflito, promovendo o acesso de parcela
desses segmentos aos sistemas de ensino e, conseqüentemente, deman-
dando novas formas de mobilização para que as condições de permanên-
cia sejam concretizadas (Fernandes e Cavalcante, 2006).
Da perspectiva dos direitos humanos, ou seja, da universalidade,
indivisibilidade e interdependência desses direitos, o respeito à diferença
significa não mais utilizá-la para a aniquilação de direitos, mas para a sua
promoção. Os grupos minoritários (afrodescendentes, mulheres, crianças,
pessoas do meio rural, portadores de necessidades especiais, entre outros)
devem ser vistos nas especificidades e peculiaridades de sua condição social,

144
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

sendo-lhes assegurado o direito à diferença, ou seja, ao tratamento especial


(Piovesan, 2005).
No Brasil, o esforço para a implementação de políticas de ação
afirmativa ainda é recente. Estudos revelam que, apesar da ditadura mi-
litar reprimir atividades políticas e a liberdade intelectual, a luta pela
inclusão da população afrodescendente começa a despontar de forma
tímida no final da década de 1960 (Heringer, 2002). Registram-se na
esfera do trabalho manifestações para a criação de uma lei, obrigando as
empresas privadas a manter uma percentagem mínima de empregados
negros. Contudo, somente no início dos anos 1980, é proposto um Pro-
jeto de Lei com o objetivo de criar uma “ação compensatória" para afro-
brasileiros. Apesar de não ser aprovado, a derrota no Congresso Nacional
não sufocou as vozes das reivindicações e denúncias do “mito" da de-
mocracia racial no Brasil.
Na ocasião do Centenário da Abolição (1988) foi criada a Fundação
Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, com o objetivo de
apoiar a ascensão social da população negra. Nesse ano, com a promulga-
ção da Constituição Federal do Brasil, são estabelecidas medidas para ga-
rantir a proteção da mulher e a inclusão dos portadores de necessidades
especiais (Moehlecke, 2002).
Dos inúmeros investimentos e iniciativas de movimentos negros no
País pela promoção da igualdade racial, é somente em 1996, quando do
lançamento do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), que se
fortalecem os debates e reivindicações no âmbito da questão racial.
Importantes eventos colocaram em pauta a discriminação racial e
as políticas de inclusão no Brasil (Convenção Internacional sobre a Eli-
minação de todas as Formas de Discriminação Racial/ONU/1968; as Con-
ferências Mundiais contra o Racismo e a Discriminação Racial/ONU/1978
e 1983; o Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: o Papel
da “Ação Afirmativa" nos Estados Democráticos Contemporâneos/Mi-
nistério da Justiça/1996; o Seminário Ações Afirmativas: estratégias
antidiscriminatórias/Ipea/1996; entre outros). Contudo, é a III Conferên-
cia Internacional Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância/ONU, realizada em Durbam, África do
Sul em 2001, que impulsiona e dá visibilidade político-social às ações
afirmativas.

145
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Os efeitos de Durbam se fizeram sentir no Brasil de imediato. O governo


estava atento a demonstrar, no plano internacional, seu interesse em cum-
prir resoluções elaboradas em fóruns multilaterais em nome dos princípios
da igualdade, inclusive racial, sob o signo dos direitos humanos (Maio e
Santos, 2005, p. 6).

Nesse sentido, o poder público brasileiro assume as políticas de


ações afirmativas como:

[...] medidas especiais e temporárias tomadas pelo Estado, com o objetivo


de eliminar desigualdades raciais, étnicas, religiosas, de gênero e outras -
historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tra-
tamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e
marginalização (MEC/SESu, 2006a).

No caso da educação superior as justificativas defendidas para a


implementação dessas ações fundamentam-se em estatísticas, que evi-
denciam o insignificante acesso da população pobre e negra ao ensino
superior; no resgate de motivos históricos, como a escravidão ou o massa-
cre indígena, cujos desdobramentos se explicitam na situação de desigual-
dade ou exclusão de negros e índios (Moehlecke, 2002).
Entre as ações afirmativas2 que envolvem a educação superior des-
tacamos o Sistema de Cotas Raciais para Acesso ao Ensino Superior, que é
incentivado pelo poder público quando se institui o Programa Nacional de
Direitos Humanos em 1996, que propõe:

(1) Apoiar a formulação, a implementação e a avaliação de políticas e


ações sociais para a redução das desigualdades econômicas, sociais e
culturais existentes no País, visando à plena realização do direito ao de-
senvolvimento e conferindo prioridade às necessidades dos grupos soci-
almente vulneráveis;
(122) Apoiar a adoção, pelo poder público e pela iniciativa privada, de
políticas de ação afirmativa como forma de combater a desigualdade;
(191) Adotar, no âmbito da União, e estimular a adoção, pelos Estados e
municípios, de medidas de caráter compensatório que visem à eliminação
da discriminação racial e à promoção da igualdade de oportunidades, tais
como: ampliação do acesso dos afrodescendentes às universidades públi-
cas, aos cursos profissionalizantes, às áreas de tecnologia de ponta, aos
cargos e empregos públicos, inclusive cargos em comissão, de forma pro-
porcional à sua representação no conjunto da sociedade brasileira;

2
Consultar o portal do MEC/SESu (http://portal.mec.gov.br/sesu/) para conhecimento de outros Programas desenvolvidos
na área da educação.

146
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

(325) Estabelecer mecanismos de promoção da eqüidade de acesso ao


ensino superior, levando em consideração a necessidade de que o contin-
gente de alunos universitários reflita a diversidade racial e cultural da
sociedade brasileira. (BRASIL, 2002)

Entretanto, o Sistema de Cotas tem sido fruto de uma decisão dos


Conselhos Universitários ou órgãos equivalentes, o que lhe confere dife-
rentes formas e percentuais de vagas disponibilizadas entre as instituições.
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) é a primeira a adotar o
sistema de cotas (2003) e a Universidade de Brasília (UnB) a primeira uni-
versidade federal (2004). O Inep informa que, em 2006, 29 instituições
adotam essa política, sendo 15 do setor privado e 14 do público, distribu-
ídas entre 14 universidades, 10 faculdades, 3 centros universitários, 1 fa-
culdade integrada e 1 instituto superior. Se considerarmos as 2.013 insti-
tuições registradas no Censo de 2004, evidencia-se que apenas 1,44%
assumem a reserva de cotas em todo o País (Inep, 2006a).
Essa política ganha força com o Projeto de Lei nº 3.627/2004, que
estabelece um sistema especial de reservas de vagas para estudantes egressos
de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públi-
cas federais de educação superior. As instituições devem garantir, no mí-
nimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integral-
mente o ensino médio em escolas públicas. É ainda estabelecido que essas
vagas devam ser preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados
negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na
população da unidade da Federação onde está instalada a instituição,
segundo o último censo do IBGE (art. 2º).
E o Programa Universidade para Todos (ProUni), criado pela Lei nº
11.096 de 13 de janeiro de 2005 tem a finalidade de conceder bolsas de
estudos integrais e parciais para estudantes de cursos de graduação e
seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino
superior, com ou sem fins lucrativos (art. 1º). Garante ainda a instituições
privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, a isenção de
alguns tributos na adesão do Programa. As bolsas de estudo destinam-se
a estudantes que tenham cursado o ensino médio completo em escola
pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral; a
estudantes portadores de deficiência; e a professores da rede pública de
ensino, para cursos de licenciatura, normal e pedagogia, com vista ao
magistério da educação básica, independente da renda. Será concedida a

147
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

bolsa integral ao brasileiro não-portador de diploma de curso superior,


cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até um salário
mínimo e meio. E a bolsa parcial de 50% ou de 25% aos não-portadores
de diploma de curso superior, cuja renda familiar mensal per capita não
exceda o valor de até três salários mínimos (art. 1º.) (MEC/SESu, 2005b).
Desde sua criação, foram ofertadas 250.943 bolsas de estudo, sen-
do meta do governo federal a oferta de 400 mil novas bolsas nos próximos
quatro anos. Em 2005, foram 112.275 bolsas para 200.969 inscritos, sen-
do 71.905 integrais e 40.370 parciais, abrangendo 1.142 instituições de
ensino superior. Em 2006 são 138.668 bolsas, somando 35.162 integrais e
11.897 parciais (MEC/SESu, 2006c). Da perspectiva da política de expan-
são do ensino superior no País, este Programa caminha em "direção às
metas do Plano Nacional de Educação, que prevê a presença, até 2010, de
pelo menos 30% da população na faixa etária de 18 a 24 anos na educa-
ção superior, hoje restrita a 10,4%" (Inep, 2006b).
Essas medidas ganham suporte com o Programa de Ações Afirma-
tivas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Supe-
rior (Uniafro), criado em 2005 pelo acordo entre a Secretaria de Educação
Superior/SESu e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade/Secad. Tem o objetivo de “apoiar e incentivar o fortalecimen-
to e a institucionalização das atividades dos Núcleos de Estudos Afro-
Brasileiros/Neabs ou grupos correlatos das instituições públicas de educa-
ção superior, contribuindo para a implementação de políticas de ação
afirmativa voltadas para a população negra" (MEC/SESu, 2006d).
Ainda no plano das etnias, inclui-se o Programa de Formação Su-
perior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), implementado em 2006, para
apoiar projetos, desenvolvidos pelas instituições de educação superior
públicas em conjunto com as comunidades indígenas, que visem à forma-
ção superior de docentes indígenas para o ensino fundamental (5ª a 8ª
séries) e ensino médio e permanência dos estudantes indígenas em cursos
de graduação. Tem os objetivos de mobilizar e sensibilizar as instituições
de ensino superior, com vistas à implementação de políticas de formação
superior indígena e de cursos de licenciaturas específicas; mobilizar e sen-
sibilizar as instituições de educação superior, com vistas à implementação
de políticas de permanência de estudantes indígenas nos cursos de gradu-
ação; promover a participação de indígenas como formadores nos cursos
de licenciaturas específicas (MEC/SESu, 2006e).

148
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies),


criado em 1999 para substituir o Crédito Educativo, é também um progra-
ma de ação afirmativa do MEC. Destina-se a financiar a formação de nível
superior de estudantes que não têm condições de arcar integralmente com
os custos de sua formação. Os alunos devem estar regularmente matricu-
lados em instituições não-gratuitas, cadastradas no Programa e com ava-
liação positiva nos processos conduzidos pelo MEC. O Fies é
operacionalizado pela Caixa Econômica Federal e constitui-se em um fi-
nanciamento de longo prazo, implicando um ano de estudo financiado
para um ano e meio para efetuar o pagamento após a certificação. O
governo federal assume como uma estratégia importante para a democra-
tização do acesso à educação de qualidade, favorecendo a um maior nú-
mero possível de estudantes a permanência e a conclusão do ensino supe-
rior (MEC/SESu, 2006f).
Acrescenta-se a essas ações o Programa Incluir, que fomenta proje-
tos desenvolvidos por instituições federais de ensino superior (Ifes), que
garantam o acesso e permanência em igualdade de oportunidades para
estudantes com necessidades especiais. Em 2005 foram financiados 13
projetos de universidades das diversas regiões do País. Em 2006 visa apoi-
ar propostas desenvolvidas nas Ifes, que buscam a superação de situações
discriminatórias contra os estudantes com necessidades especiais, tais como:
acesso à comunicação desses alunos em todas as atividades acadêmicas;
aquisição de equipamentos e materiais didáticos específicos; adaptação
de mobiliário; reforma nas edificações para a acessibilidade física; forma-
ção profissional de docentes e funcionários para atuar com os alunos com
deficiência; e contratação de pessoal para os serviços de atendimento edu-
cacional especializado (MEC/SESu, 2006g).
Um destaque deve ser feito ao Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (Pronera), vinculado ao Instituto Nacional de Coloniza-
ção e Reforma Agrária (Incra), do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA). Tem o objetivo de promover ações educativas nas áreas da reforma
agrária, que atualmente envolvem um conjunto de 6.175 assentamentos e
acampamentos e um contingente de 502.828 famílias em todo o País.
Criado em 1998, o Pronera pode se constituir em um exemplo importante
de ação que resulte no enfrentamento das precariedades que configuram
a educação no meio rural.

149
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Até 2003, atendeu cerca de 120 mil jovens e adultos em suas ações
educativas que incluem: projetos de alfabetização de jovens e adultos
assentados (EJA); formação continuada de educadores nos assentamentos
e formação técnico-profissional para as áreas de produção e administra-
ção rural; e escolarização nos níveis fundamental, médio e superior (Andrade
et al., 2004). No que tange à educação superior, um levantamento prévio
realizado para este estudo na Comissão Pedagógica Nacional do Pronera,
com base nas informações obtidas do Sistema de Informação de Projetos
de Reforma Agrária (Sipra), permitiu constatar que em 2005 encontravam-
se em execução 28 projetos educativos, favorecendo o acesso a 2.097
jovens e adultos a esse nível de ensino nas diversas regiões do País, envol-
vendo um investimento na ordem de R$ 5.071.831,66 (MDA, 2006).3
Esses programas, entre outros em desenvolvimento, são evidências
de mudanças nas políticas públicas, orientadas pela proteção e promoção
dos direitos humanos, rumo à minimização das desigualdades sociais. No
entanto, somos desafiados e instigados a saber se e como essas ações
afirmativas têm afetado o cenário da educação superior no País no que
concerne à democratização do acesso dos segmentos minoritários.

A presença/ausência de segmentos
minoritários na educação superior:
fragmentos de uma realidade

A análise que apresentamos a seguir privilegia um conjunto de


dados estatísticos, que consideramos capazes de sinalizar certos tipos de
desigualdades estruturantes da sociedade brasileira no âmbito da educa-
ção superior, produzidas pela interface das hierarquias de renda, de gêne-
ro, de cor/raça, de origem e de condições de vida. Como conseqüências
desse quadro, têm-se consolidado condições de vulnerabilidade distintas

3
Um inventário dos cursos de educação superior ofertados pelo Pronera, com o objetivo de analisar a sua contribuição para
a ampliação do acesso e permanência na educação superior pública de jovens e adultos dos assentamentos rurais e os
impactos na vida dos estudantes, assentamentos, movimentos sociais e instituições de educação superior envolvidas com o
Programa, está sendo construído pelo professor Salomão Hage, com o apoio da ANPEd/Secad, por meio da pesquisa
denominada: "Democratização da Educação Superior Pública no Campo: impactos do Pronera nos assentamentos de
reforma agrária".

150
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

para cada um dos grupos sociais, que apresentam os piores indicadores em


praticamente todas as situações aqui analisadas.
O processo de coleta desses dados foi desafiante, tanto para orga-
nizar as informações oriundas de fontes diversas como para a seleção do
que apresentar neste texto. É importante esclarecer que nessa trajetória
fomos ratificando a insuficiência de estatísticas que tratam de forma de-
talhada as matrículas no ensino superior por raça/cor, portadores de defi-
ciências, indígenas, pessoas do meio rural, não permitindo, dessa forma,
uma nítida visualização da realidade. Quanto a isso, Guimarães (2003, p.
7) faz a denúncia, num estudo sobre o acesso de negros a universidades
públicas que, até recentemente (2000),

[...] não havia em nenhuma universidade pública brasileira registro sobre a


identidade racial ou de cor de seus alunos. Só quando a demanda por
ações afirmativas para a educação superior se fez sentir é que surgiram as
primeiras iniciativas, na forma de censos e de pesquisas por amostra, para
sanar tal deficiência.

Em vista dessa situação, reunimos neste trabalho um conjunto de


dados que mostram a configuração do cenário para o qual têm sido projetadas
as ações afirmativas. Reconhecemos os limites desta análise, o que nos com-
promete a dar continuidade ao estudo, e ao mesmo tempo o seu potencial
de contribuição ao debate acerca das políticas de inclusão em pleno proces-
so de construção. Foi com esse propósito que procuramos revelar a presen-
ça/ausência de segmentos minoritários na educação superior.
As estatísticas educacionais mais recentes continuam a confirmar
que o sistema educacional brasileiro é seletivo e excludente. Os dados dos
Censos da Educação Básica e Superior de 2004 registram que a taxa líqui-
da de escolarização da educação fundamental era de 93,8%, com uma
queda progressiva e drástica no ensino médio (44,4%) e na educação su-
perior (10,5%). Os dados também indicam que a esfera pública responsa-
biliza-se por quase a totalidade das matrículas dos estudantes brasileiros
(82,98%), incluindo os estudantes matriculados na educação infantil (cre-
che e pré-escola), no nível fundamental (1ª a 8ª série), no nível médio (1ª a
3ª série), na educação especial, na educação de jovens e adultos, no nível
técnico e na educação superior; enquanto a iniciativa privada responsabi-
liza-se somente por 17% das matrículas. (Inep, 2005).

151
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Quando se analisa as informações obtidas por meio dos questioná-


rios socioeconômicos preenchidos pelos participantes do Exame Nacional
de Desempenho de Estudantes (Enade/2004), evidencia-se que uma par-
cela expressiva dos estudantes originários do ensino médio público não
consegue ingressar na educação superior. Embora o Censo Escolar da Edu-
cação Básica (2004) revele que o setor público concentra 87,9% das ma-
trículas no ensino médio, o percentual de matrículas de jovens oriundos
das escolas públicas nas instituições de educação superior é muito inferi-
or, totalizando apenas 46,8%. É importante ressaltar que, apesar das ma-
trículas em escolas de ensino médio privadas representarem apenas 12,1%
do universo dos matriculados nesse nível de ensino, o percentual de estu-
dantes oriundos dessas escolas correspondem a 51,7% das matrículas em
IES públicas e 33% nas privadas, o que nos permite concluir que a maioria
dos estudantes oriundos do ensino médio privado encontra-se na educa-
ção superior pública em nosso País.
As contradições explicitadas tornam-se mais complexas quando con-
sideramos os dados da Tabela 1. Podemos evidenciar que a participação dos
estudantes das escolas públicas nas IES é maior que os das escolas privadas
em quase todas as categorias administrativas, excluindo a esfera federal.

Tabela 1– Participação nas IES de alunos originários do ensino médio


público e privado, segundo a categoria administrativa
% de estudantes
% de estudantes originários da
Categoria administrativa originários da escola
escola pública
privada
Federais 42,2 42,5
Estaduais 53,3 31,4
Municipais 59,8 23,5
Privadas 45,9 34,9
Fonte: Inep/MEC, 2004.

A análise que envolve a relação entre o percentual de matrícula dos


estudantes da educação básica pública e o acesso desses aos níveis mais ele-
vados do sistema educacional brasileiro, não pode ser desvinculada da discus-
são sobre os contrastes de renda no Brasil. Em uma rápida aproximação aos
dados referentes à participação das famílias na sociedade e nas IES, de acordo
com o seu rendimento mensal, os dados divulgados pelo IBGE na Pnad/2004,
indicam que 50,1% da população brasileira encontram-se na faixa de renda
de até três salários mínimos. No entanto, o Censo da Educação Superior de

152
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

2004 indica que essa faixa da população está representada por somente 26,5%
dos alunos matriculados nas IES públicas e por 12,9% nas privadas. Essa
discrepância também é observada entre os que têm renda familiar superior a
dez salários mínimos, porém de maneira inversa, conforme explicita os dados
da Tabela 2. Embora esse segundo grupo represente 11,8% da sociedade
brasileira, os alunos com essa faixa de renda concentram 29% das matrículas
nas IES públicas, sendo essa taxa de participação ainda mais elevada nas IES
privadas, correspondendo a 41,6% da matrícula (Inep, 2006).

Tabela 2 – Representação de famílias por renda familiar no campus


e na sociedade
Sociedade IES Pública IES Privada
Até 3 mínimos 50,1% 26,5% 12,9%
Mais de 10 mínimos 11,8% 29% 41,6%
Fonte: IBGE/Pnad; Inep/MEC/2004.

Um retrato mais ampliado da presença/ausência de segmentos


minoritários na educação superior pode ser obtido pela Taxa de Escolarização
Líquida4 (18 a 24 anos), apresentada na Tabela 3, que revela diferenças
substanciais em termos de performance educacional entre as regiões, loca-
lização de domicílios e grupos sociais, considerando gênero e cor ou raça.

Tabela 3 – Taxa de escolarização líquida – ensino superior


(18 a 24 anos)
Diferença 1996/2005
Ano 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005
% ?%
Brasil 5,8 6,2 6,8 7,4 8,9 9,7 10,6 10,5 11,2 5,4 93,1
Norte 3,3 3,3 3,5 3,8 5,2 6,7 6,1 5,7 7,0 3,7 112,12
Nordeste 3,1 3,0 3,2 3,7 5,0 5,1 5,7 5,8 6,0 2,9 93,54
Sudeste 7,3 8,1 8,8 9,4 10,9 12,0 12,8 13,0 13,8 6,5 89,04
Sul 7,7 8,1 9,6 10,4 12,7 13,7 15,9 15,3 16,2 8,5 110,38
Centro-Oeste 6,5 6,3 6,8 7,7 9,7 11,9 12,3 12,2 14,0 7,5 115,38
Localização
Urbano metropolitano 9,1 9,6 10,4 10,7 12,3 13,6 14,3 14,4 15,2 6,1 67,03
Urbano não-
5,7 6,1 6,7 7,6 9,0 9,9 10,9 10,9 11,7 6,0 105,26
metropolitano
Rural 1,1 0,8 0,9 1,5 1,4 1,6 1,5 1,7 2,1 1,0 90,9
Sexo
Masculino 5,0 5,7 5,9 6,3 7,8 8,3 9,2 9,1 9,7 4,7 94,0
Feminino 6,6 6,8 7,8 8,5 10,0 11,3 12,0 11,8 12,7 6,1 92,42
Raça ou cor
Branca 9,4 10,1 11,1 11,9 14,3 15,5 16,6 16,1 17,3 7,9 84,04
Negra 1,8 2,0 2,1 2,5 3,2 3,8 4,4 4,9 5,5 3,7 205,55
Fonte: IBGE/ Microdados Pnad – Elaboração Ipea/Disoc.
Nota: Nas pesquisas de 1992 e 1993 a freqüência à escola era investigada apenas para pessoas com cinco anos ou mais de idade.
Obs.: 1) A Pnad não foi realizada em 1994 e 2000; 2) Raça negra é composta de pretos e pardos; 3) A partir de 2004 a Pnad passa a
contemplar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

4
A taxa de escolarização líquida indica o percentual de matrícula em determinado nível de ensino e com idade adequada
para cursá-lo. Para o ensino fundamental, a população considerada adequada é de 7 a 14 anos de idade, para o ensino
médio, a população é de 15 a 17 anos, e para o ensino superior, a população é de 18 a 24 anos.

153
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Estes dados nos permitem identificar que no período de uma déca-


da (1996-2005), tendo como marco inicial a promulgação da Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei nº 9.394, 1996), o
percentual de freqüência à escolarização líquida na educação superior obteve
um crescimento de 93,1%, registrando, em 2005, o índice de 11,2%. Esse
percentual ainda se apresenta muito inferior ao que prevê o Plano Nacio-
nal de Educação (PNE/2001): cobertura para a educação superior ao final
da década de 30% da população entre 18 e 24 anos.
Ao se considerar a diferença rural/urbano e as variações do urbano
(metropolitano e não-metropolitano), as desigualdades são sinalizadas nas
taxas de escolarização líquida na educação superior. O espaço urbano
metropolitano apresenta uma diferença superior de pouco mais de 13
pontos percentuais sobre o espaço rural em 2005 (15,2% sobre 2,1%,
respectivamente). É curioso notar ainda, que, em meio às desigualdades
registradas, o espaço rural apresenta 90,9% de crescimento na taxa de
escolarização líquida na educação superior no período analisado, contras-
tando com o espaço urbano metropolitano e com o espaço urbano não-
metropolitano, que registraram 67,3% e 105,26% de crescimento.
No período de 1996-2005, as mulheres apresentaram índices de
escolarização líquida na educação superior maiores que os dos homens. Os
contrastes em relação a esse indicador também se evidenciam, à medida que
as mulheres, em 2005, registraram uma diferença superior de três pontos
percentuais sobre os homens, atingindo 12,7% contra 9,7%, respectivamente.
Os brancos (17,3%), assim como as mulheres (12,7%), apresenta-
ram índices superiores aos negros (5,5%), atingindo em 2005, uma dife-
rença superior de quase 12 pontos percentuais. É interessante notar que a
desigualdade apontada entre esses grupos não impediu que os negros
obtivessem um crescimento de 205,55% na última década, em contraste
com os brancos, que obtiveram um crescimento de 84,04% no período.
O Relatório das Desigualdades, elaborado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea/2001), apresenta dados ainda mais expressivos,
que envolvem a intersecção de gênero e raça e oportuniza a identificação da
dupla discriminação a que as mulheres negras, vítimas do racismo e do
sexismo encontram-se submetidas. Tal situação traz como conseqüência
uma condição de inserção social muito mais fragilizada para esse grupo, o
qual apresenta os piores indicadores sociais e, educacionais, especificamen-
te (Pinheiro et al., 2006).

154
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

A Tabela 4 apresenta os dados de escolarização líquida por gênero


e cor do estudante, segundo o nível de ensino, em 2004. É importante
notar que, conforme aumenta o grau de ensino, as taxas de escolarização
líquida diminuem para todos os grupos analisados.

Tabela 4 – Taxa de escolarização líquida por cor/raça e sexo,


segundo nível de ensino – Brasil, 2004
Mulher negra
Homem branco % Mulher branca % Homem negro %
%
Ensino Fundamental 95,2 95,0 92,0 93,6
Ensino Médio 41,5 60,8 28,6 38,9
Ensino Superior 14,6 17,4 3,9 6,0
? % Ensino médio –
-64,82 -71,38 -86,36 -84,57
Ensino superior
? % Ensino
fundamental – -84,66 -81,68 -95,76 -93,58
Ensino superior
Fonte: Pnad 2004.
Obs.: A população negra é composta de pretos e pardos.

Os dados da Tabela 4 demonstram que no ensino fundamental a


desigualdade entre os grupos não é tão expressiva em termos de freqüên-
cia líquida à escola, situação reforçada por políticas de financiamento da
educação atualmente em vigor. A cobertura de atendimento a esse nível
de ensino tem garantido o acesso de grande parte da população brasileira
à escola. Contudo, faz-se necessária a realização de estudos mais amplia-
dos, que possam diagnosticar os índices de permanência e qualidade dos
resultados da escolarização dos grupos menos privilegiados, em que se
incluem os homens e as mulheres negras.
No ensino médio, as desigualdades tornam-se bem mais expressi-
vas do que no ensino fundamental. Os dados revelam que os homens
brancos apresentam uma diferença de quase 13 pontos percentuais no
índice de freqüência líquida à escola em relação aos homens negros (41,5%
contra 28,6%); e as mulheres brancas, de forma ainda mais preocupante,
apresentam uma diferença de quase 22 pontos percentuais no índice de
freqüência líquida à escola em relação aos homens negros (60,8% contra
38,9%). É curioso notar, que as mulheres brancas apresentam uma dife-
rença significativa em relação aos homens brancos na taxa líquida de
escolarização nesse nível de ensino (mais de 19 pontos percentuais), o que
indica uma maior escolaridade, mas não necessariamente uma melhor in-
serção no mercado de trabalho.

155
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Se tomarmos o caso específico do homem negro, segmento com o


mais baixo percentual de representação nas IES brasileiras (3,9%), os da-
dos da Tabela 4 indicam que o seu índice de escolarização líquida é quase
11 pontos percentuais inferior ao índice dos homens brancos (14,6%).
Entretanto, a presença desse grupo na educação superior, quando compa-
rada à no ensino médio, apresenta um crescimento negativo de -86,36%;
e quando comparada à no ensino fundamental, cai ainda mais, atingindo
um percentual de -95,76%.
A situação de desigualdade das mulheres negras nas IES brasileiras
permanece em patamares muito próximos aos dos homens negros. Seu
índice de freqüência líquida na educação superior é pouco mais de 11
pontos percentuais inferior ao índice das mulheres brancas (14,6%). Con-
tudo, a presença das mulheres negras na educação superior, quando com-
parada à no ensino médio apresenta um crescimento negativo, ou seja,
uma ausência, de -84,57%; e quando comparada ao índice de freqüência
líquida no ensino fundamental, atinge um percentual de -93,58%.
No processo de apreensão da presença/ausência de segmentos
minoritários na educação superior, buscamos também dados referentes
aos indígenas nas IES brasileiras. As informações sobre essa população
ainda são pouco expressivas. Ao tomarmos o questionário socioeconômico
do Enade de 2004, temos a possibilidade de identificar que os estudantes
autodeclarados indígenas registraram seu percentual de presença na edu-
cação superior, variando entre 0,2 e 5,2%, nas IES públicas e privadas das
unidades da Federação, com destaque para o Estado do Amapá, que apre-
sentou o percentual mais elevado nas IES públicas, atingindo 5,2%; e nas
IES privadas, igualando-se ao Estado do Amazonas com um percentual de
4,6%. O Estado do Rio Grande do Sul registrou o menor índice de
representatividade nas IES públicas (0,3%) e o Estado de Alagoas registrou
o menor índice nas IES privadas (0,2%).5

5
Por meio do questionário socioeconômico aplicado aos estudantes que participam do Exame Nacional de Desempenho dos
Estudantes (Enade) temos a possibilidade de definir as características pessoais dominantes do estudante da educação superior.
A questão de número 4 desse instrumento aborda especificamente o quesito raça/cor, com alternativas definidas pelos critérios
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): branco(a), negro(a), pardo(a)/mulato(a), amarelo(a) (de origem orien-
tal) e indígena ou de origem indígena. Em 2004, 2.187 cursos participaram da avaliação, dentro das 13 áreas de conhecimento
focadas: Agronomia, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária,
Nutrição, Odontologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional e Zootecnia. Foram selecionados para participar do Exame 83.661
estudantes ingressantes e 56.679 estudantes concluintes, totalizando 140.340 participantes (Inep, 2005).

156
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

Incluem-se ainda ao quadro até agora descrito os dados referen-


tes aos portadores de necessidades especiais. O Censo da Educação Su-
perior (2004) indica que há 5.077 pessoas com necessidades especiais
matriculadas em cursos de graduação no Brasil. Isso representa 0,12%
das 4.163.733 matrículas no ensino superior brasileiro. Do total de por-
tadores de necessidades especiais, 1.220 freqüentam instituições públi-
cas e 3.857 estão em instituições privadas. O Estado do Rio de Janeiro
lidera no número de matriculados nessa condição, 1.006, enquanto o
Acre é o que registra o menor número de matrículas de pessoas especiais
(Inep, 2006).
Múltiplas informações são necessárias para se ter uma visibilidade
nítida do atendimento dos segmentos da população mencionados. Porém, o
retrato que conseguimos traçar, apesar do foco ainda ser limitado, revela
objetivamente diferenciais de participação das minorias sociais nos níveis de
ensino mais avançados. Mostram também a necessidade urgente de inter-
venções integradas do Estado, de ONGs, dos movimentos sociais, das pró-
prias universidades e da população em geral, no âmbito das políticas públi-
cas e das práticas sociais e educacionais, que possam enfrentar e minimizar
as desigualdades existentes entre os níveis de ensino e no interior de cada
um deles em relação à representatividade dos grupos minoritários, cumprin-
do assim os preceitos constitucionais mencionados neste estudo.
Esses indicadores educacionais sinalizam as desigualdades defron-
tadas por diferentes parcelas da população na esfera educacional, as quais,
certamente, são reproduzidas de forma ainda mais intensa no mercado de
trabalho, implicando em discriminações substanciais no tocante às suas
condições de inserção, qualidade dos postos de trabalho ocupados, remu-
neração, entre outros.

Reflexões conclusivas

A construção deste trabalho representou para nós um caminho im-


portante para nos apropriar de indicadores referentes à presença/ausência
de segmentos minoritários na educação superior em nosso País. O desafio
de reunir dados recentes, que se encontram dispersos e de difícil acesso à
população em geral, nos motiva a prosseguir juntos com a investigação

157
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

sobre a temática. Conseguimos apreender fragmentos dessa realidade, en-


tretanto somos instigados a aprofundar as reflexões construídas, visando
à produção de sínteses analíticas, que possam explicitar informações da
realidade mais substanciais e reveladoras da participação das minorias bra-
sileiras na educação superior.
Nosso propósito fundamental foi apresentar recentes Programas de
Ações Afirmativas para a educação superior e traçar uma fotografia da
presença/ausência dos segmentos minoritários a partir de indicadores edu-
cacionais, considerados por nós relevantes ao debate e à tomada de deci-
sões acerca do acesso às IES.
As políticas de ações afirmativas para a educação superior são mui-
to recentes e começaram a ganhar espaço significativo após a LDB de
1996. Percebemos que, nos últimos anos, órgãos responsáveis pelas esta-
tísticas socioeducacionais (IBGE e Inep), vinculados ao governo federal,
começam a incluir em seus instrumentos de investigação questões que
tratam mais especificamente dessa situação, cujos resultados, aos poucos,
são disponibilizados e, também, tomados como objeto de estudos por
parte do próprio governo. As informações acessadas e analisadas sinali-
zam esforços do governo federal, universidades, ONGs e movimentos soci-
ais representativos dos segmentos minoritários para privilegiar debates sobre
as políticas de ação afirmativa assim como para implementar programas,
visando à democratização do acesso à educação superior.
O direito à educação a todos é um lema fundamental das políticas
de ações afirmativas na área da educação. Há o reconhecimento de que o
saber sistematizado deve ser disponibilizado a todos os cidadãos, favore-
cendo a participação autônoma e crítica na transformação da sociedade
na qual estão inseridos.
A realidade educacional brasileira ainda tem marcas profundas e
consolidadas das desigualdades sociais, que se traduzem ao longo da
história do País pela discriminação e racismo estrutural. Nesse sentido,
as ações afirmativas emergem como estratégias reparatórias, compensa-
tórias e/ou preventivas dessas desigualdades (Silvério, 2002). Podemos
observar que essas iniciativas de alguma forma abrem perspectivas de
favorecer o acesso à educação superior, sobretudo quando se considera
a reserva de cotas, as bolsas do ProUni, o financiamento dos estudos
pelo FIES, entre outros.

158
Políticas de Ações Afirmativas para a Educação Superior no Brasil:
da intenção à realidade

Por outro lado, temos que reconhecer que essas ações têm mobili-
zado tensos e antagônicos debates, tanto no meio acadêmico como na
sociedade em geral. Afinal, quais os melhores caminhos a induzir a supe-
ração das desigualdades sociais? Não estariam as ações afirmativas pro-
movendo uma discriminação de uma outra natureza? Não estariam com-
prometendo ainda mais a desqualificação da educação superior? Afinal,
qual a diferença que essas ações estão fazendo para a democratização do
acesso à educação superior? Estas e tantas outras perguntas têm gerado
inquietações sobre o significado das ações afirmativas no Brasil.
O cenário para o qual essas ações são dirigidas mostra que uma
longuíssima caminhada deve ser ainda realizada. Os dados de realidade
continuam denunciando a pouca expressividade da presença das minorias
nesse nível de ensino, sobretudo quando comparamos a representatividade
desses segmentos na sociedade e nas IES.
De um fato temos clareza: as políticas de ações afirmativas
implementadas devem assumir um caráter emancipatório, para que não
sejam reeditadas as tradicionais medidas compensatórias, de caráter
assistencialista, que pouco favorecem o enfrentamento do núcleo central
de manutenção das desigualdades sociais existentes. Portanto, no proces-
so de democratização do acesso desses grupos à educação superior, de-
vem ser abertos caminhos para fomentar a construção de um ambiente de
igualdade e diversidade capaz de fortalecer a produção de um pensamen-
to científico com as marcas das distintas subjetividades, que compõem as
minorias brasileiras, promovendo assim a “igualdade na diferença".

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162
B) Organização Acadêmica
8
Universidades e centros
universitários pós-LDB/96:
tendências e questões
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero*
Stella Cecília Duarte Segenreich**

* Professora da UFRJ e coordenadora do Proedes/UFRJ; e-mail: favero@infolink.com.br.


** Doutora em Educação (UFRJ) e professora da UCP; e-mail: stella.segen@terra.com.br.
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

Introdução

Na análise dessa temática, será oportuno ter em vista a colocação


de Poulantzas (1990, p. 93), ao assinalar que a lei, por um lado, impõe
silêncio e, por outro, deixa falar; ela tanto pode encobrir, obrigar a fazer,
como sancionar direitos. Como membros de instituições universitárias e
do Grupo Integrado de Pesquisa Universitas/BR, procuramos acompanhar
atentamente a implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional (LDB), Lei nº 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996, e de
outros editos, dispositivos, preceitos e normas pertinentes às universida-
des e aos centros universitários que vêm sendo criados. Mais ainda, em
estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Universitas/BR encontra-
mos indícios de como esses dispositivos e normas estão se refletindo na
realidade do sistema de educação superior do País.
Em trabalho desenvolvido recentemente para o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), sobre a trajetória da
educação superior no Estado do Rio de Janeiro (Segenreich, Fávero, Casta-
nheira e Mancebo, 2006), no período 1991-2004, os dados apresentados em

167
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

uma das tabelas-síntese, elaborada com o objetivo de comparar o cresci-


mento das universidades públicas e privadas e dos centros universitários no
Estado do Rio de Janeiro, despertaram especialmente a atenção dos pesqui-
sadores. Neste estudo, a Tabela 1 reproduz dados relativos ao período 1996-
2004, que nos interessa mais de perto.

Tabela 1 – Distribuição e taxa de crescimento do conjunto


de universidades e centros universitários, por categoria
administrativa – Estado do Rio de Janeiro, de 1996 a 2004

Instituições públicas Instituições privadas


Ano
Universidades Total* Total Universidades Centros Universitários
1996 5 10 10 ----
2004 6 25 12 13
1996-2004 Δ % 20 150
Fonte: MEC/Inep/Deaes.
* Existem somente universidades.

Analisando a tabela, percebemos o fato significativo de que, no


Estado do Rio de Janeiro, enquanto são credenciadas somente três univer-
sidades, sendo uma pública e duas privadas, nesse período, 13 centros
universitários são criados a partir de 1997. Ao se agregarem as universida-
des privadas e os centros universitários (todos privados), é possível consta-
tar, também, o crescimento significativo do conjunto das instituições de
educação superior (IES) privadas (150%) em comparação com as públicas
(20%). Conseqüentemente, há uma presença percentual crescente daque-
las instituições, nesse Estado, que atinge 80,6% (25 em 31) do universo
pesquisado, em 2004.
No Resumo Técnico do Censo da Educação Superior de 2004, a pre-
sença crescente de centros universitários no Brasil, aparece assim registrada:

[...] os centros universitários são instituições pertencentes quase que exclu-


sivamente (97,2%) ao setor privado. [...] Seu crescimento desde 1997 é
bastante expressivo, tendo passado de 13 para 107 instituições, um cresci-
mento de 723,1% (Brasil, 2005, p. 14).

Diante do exposto, mais de uma década após a promulgação da LDB,


torna-se imprescindível refletirmos sobre as implicações e conseqüências des-
sa lei, bem como de dispositivos que regulamentam o Sistema Federal de

168
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

Ensino Superior1 no País, no que se refere, principalmente, à construção da


nova figura institucional que é o centro universitário.
E mais, urge trabalhar esses dispositivos, reconhecendo que o ato
das decisões instituidoras em matéria de educação não será apenas um
ato técnico como pensam alguns, mas implica decisões políticas que vão
exigir um processo incessante de pesquisa e de reflexão sobre a natureza
das instituições de ensino superior no Brasil, tornando esse processo, ob-
jeto de propostas e não de múltiplas desobrigações, como às vezes tem
ocorrido.
Com o presente estudo, pretendemos mostrar o caminho percorri-
do pelos centros universitários nesses dez anos de vigência da LDB, em
contraposição à universidade pluridisciplinar, dando ênfase a duas dimen-
sões de análise: sua concepção como figura institucional e a autonomia
que lhes é atribuída. Nessa linha, serão retomados alguns momentos mais
marcantes de discussão dessas duas dimensões em relação à universidade,
que se inicia bem antes da LDB. E, em seguida, será feita uma descrição da
trajetória de criação e regulamentação dos centros universitários, no País.
Por último, levantaremos algumas questões que, embora não sejam co-
mentadas aqui, poderão oferecer subsídios para outras análise e estudos
relativos a essa temática.

A universidade e a LDBEN de 1996

Os debates em torno da educação superior e da universidade tive-


ram, nos anos 80 do século passado, espaço privilegiado: a Assembléia
Nacional Constituinte. Na área da educação, muitos estudos foram produ-
zidos. Na defesa do ensino público e gratuito destaca-se o papel do Fórum
em Defesa da Escola Pública constituído por 15 entidades nacionais que
se integraram para debater e apresentar à Constituinte uma "Proposta
Educacional". Algo de novo em relação à educação e à universidade foi
incorporado à Constituição Federal de 1988. Ressaltamos especificamente

1
Decreto nº 2.207, de 15 de abril de 1997; Portaria Ministerial nº 639, de 13 de maio de 1997; Decreto nº 2.306, de 19 de
agosto de 1997; Decreto nº 3.860, de 9 de julho de 2001, além de outros.

169
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

o art. 207 “As universidades gozam de autonomia didático-científica, ad-


ministrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princí-
pio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". A existência
da autonomia universitária como princípio constitucional foi um ganho
significativo. No entanto, passadas quase duas décadas de promulgação
da Lei maior do País, percebemos, mais uma vez, não ser fácil passar do
campo dos princípios ao da ação.
No que se refere à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), consideramos pertinente assinalar que, após tramitar durante
oito anos no Congresso Nacional e de vários debates na comunidade aca-
dêmico-científica, em 17 de dezembro de 1996, ela foi aprovada pelo
Legislativo, sem que tivesse havido superação de pontos divergentes dos
projetos da Câmara e do Senado. Três dias depois, o presidente Fernando
Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.394/96. A forma como ocorreu sua
aprovação torna oportuna a observação do grande sociólogo e então de-
putado federal, Florestan Fernandes (1991, p. 34) que, ao analisar o pro-
cesso de tramitação dessa Lei, assinala:

O setor privado aproveitou a oportunidade para especificar ou aperfeiçoar


formulações que não atendiam às suas peculiaridades. Embora os deputa-
dos mais familiarizados com a elaboração da lei tenham opinado a respei-
to, coube ao relator cuidar das emendas controvertidas, como fiel da ba-
lança e maior responsável pela integração delas no texto. No fim, elas
permitiram obter a aprovação do projeto Jorge Hage e enviá-lo à etapa
consecutiva, que é a remessa à Mesa da Câmara e a sua tributação em
plenário. O episódio esclareceu, além disso, que os deputados do centro e
da direita possuem recursos para encurralar qualquer projeto de lei, quan-
do ele já parece potencialmente aprovado. Esse ponto é essencial para a
análise sociológica do “processo de conciliação".

Esse comentário feito há mais de 15 anos por personagem tão


eminente na vida pública e acadêmica como foi Florestan Fernandes,
oferece elementos para uma reflexão. Passada mais de uma década da
promulgação da LDB, é preciso não esquecer, também, que essa Lei
representou uma oportunidade para se repensar conseqüentemente as
instituições universitárias e o ensino superior no País. Assim sendo, será
necessário considerar que, apesar das críticas que lhe possamos fazer,
não deve ser vista apenas como uma lei que, uma vez promulgada, con-
gelou todas as mudanças. Além disso, mesmo reconhecendo, como bem
observa Cunha (2003, p. 40), tratar-se de uma “lei minimalista", por não

170
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

conter, “propriamente nem todas as diretrizes nem todas as bases", no


que se refere à educação superior, a Lei nº 9.394/96 apresenta um capí-
tulo específico (Capítulo IV) com 15 artigos – do 43 ao 57 –, o que
representa 16,3% no conjunto dos 92 artigos (Cury, 1997, p. 12). Entre-
tanto, uma questão poderia ser colocada: que aspectos esses artigos
contemplam? Analisando-os, observamos que os artigos 43 a 50 estão
voltados mais para a educação superior em geral e os demais para as
universidades. Destacaremos, nesses artigos sobre as universidades, os
dois pontos de interesse neste capítulo: sua concepção e autonomia.

a) Concepção de universidade – são definidas

como instituições pluridisciplinares de formação de quadros profissionais de


nível superior, de pesquisa e extensão e de domínio e cultivo do saber huma-
no, que se caracterizam por: [uma] produção intelectual institucionalizada,
mediante o estudo sistemático dos temas e problemas relevantes, tanto do
ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional [...], devendo
ter um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de
mestrado e doutorado; e, um terço do corpo docente em regime de tempo
integral (Lei n. 9.394/96, art. 52, incisos I, II e III).

O art. 52, no § único, ao contrário da legislação anterior, dispõe: “É


facultada a criação de universidades especializadas por campo de saber".
Reiteramos Cury (1977, p. 15) quando assinala que, se de um lado, esse
dispositivo possibilita uma ruptura com uma homogeneização imposta
pela Lei n. 5.540/68, por outro, a flexibilidade apontada poderá contribuir
para um alto grau de dispersão.

b) Autonomia universitária – sobre esse princípio a Lei n. 9.394/96,


mediante os artigos 53 e 54, dispõe sobre as atribuições asseguradas às
universidades, sem prejuízo de outras, no exercício de sua autonomia:
criar, organizar e extinguir cursos; fixar currículos de seus cursos e progra-
mas, de acordo com as diretrizes gerais pertinentes; estabelecer planos,
programas e projetos de pesquisa científica, bem como de produção artís-
tica e de atividades de extensão; elaborar e reformar seus estatutos e
regimentos; conferir graus, diplomas e outros títulos; estabelecer contra-
tos, acordos e convênios; aprovar e executar planos, programas e projetos
de investimentos, assim como administrar rendimentos e deles dispor na
forma prevista nas leis e nos respectivos estatutos, além de poder receber

171
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

subvenções, doações e heranças, legados e cooperação financeira resul-


tante de convênios com entidades públicas e privadas (art. 53, incisos de I
a X). Esse mesmo artigo, em seu parágrafo único dispõe sobre a autono-
mia didático-científica das universidades e as competências de seus
colegiados de ensino e pesquisa para decidir de acordo com os recursos
disponíveis.
Feitas essas considerações, analisaremos o que a legislação prescre-
ve em relação aos centros universitários.

Os centros universitários
e a legislação pós-LDB

Embora o capítulo específico sobre educação superior seja o que


contém o maior número de artigos, há omissões em relação às novas
figuras institucionais como a do centro universitário. Ao tratar da educa-
ção superior, a Lei nº 9.394/96 prevê apenas, em seu artigo 45, que esta
“será ministrada em instituições de ensino superior públicas ou privadas,
com vários graus de abrangência e especialização" (Brasil, 1996), sem
maiores especificações. Somente um mapeamento da legislação pós-LDB
ofereceu subsídios para analisar a concepção de centro universitário e a
questão da autonomia nesse tipo de instituição.
O primeiro semestre de 1997 foi tomado por intensa produção de
dispositivos legais e textos para a construção de um quadro de referências
sobre os centros universitários. As discussões desenvolvidas no seminário
“A Construção do Projeto dos Centros Universitários: orientações do MEC
e realidade das escolas", realizado em agosto desse mesmo ano, retratam
com clareza as primeiras indicações legais sobre o assunto e as questões
mais polêmicas em relação à criação dessa nova figura institucional.
Ao descrever os aspectos legais dos centros universitários, Eurides
Brito da Silva (1997, p. 10) apresenta as fontes de sua definição inicial,
nos seguintes termos: “O Decreto nº 2.207/97 e a Portaria nº 639/97 esta-
beleceram, oficialmente, a tipologia das instituições de ensino superior,
regulamentando o disposto no art. 45 da Lei nº 9.394/96".
Consoante o Decreto nº 2.207/97, de 15 de abril de 1997, em seu
artigo 6º, esses centros são definidos como

172
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

[...] instituições de ensino superior pluricurriculares, abrangendo uma ou


mais áreas do conhecimento, que se caracterizam pela excelência do ensi-
no oferecido, comprovada pela qualificação do seu corpo docente e pelas
condições de trabalho acadêmico oferecidas à comunidade escolar, nos
termos das normas estabelecidas pelo ministro de Estado da Educação e do
Desporto para seu credenciamento.

Analisando os dois documentos legais mencionados, Brito da Silva


organizou um quadro no qual procura estabelecer a diferença entre uni-
versidade e centro universitário, de particular interesse para este trabalho,
no que se refere à dimensão concepção institucional.

Quadro 1– Características dos centros universitários


e das universidades pós-LDB/96
Características Centros universitários Universidades
Obrigatório Facultativo Obrigatório Facultativo
Ensino
Graduação X X
Pós-graduação lato sensu X X
Pós-graduação stricto sensu X X
Corpo docente
1/3 de mestres e doutores X X
1/3 em tempo integral X X
Plano de carreira X X
Pesquisa
Iniciação científica X X
Produção sistematizada de pesquisas X X
Extensão
Programas extensionistas X X
Fonte: Silva, 1997, p. 12.

Nesse quadro, chama a atenção o fato de que as características


consideradas facultativas – pós-graduação stricto sensu, percentual míni-
mo de qualificação e dedicação do corpo docente, assim como produção
sistematizada de pesquisas – são justamente aquelas que elevam o custo
de manutenção da IES (preocupação maior dos provedores das institui-
ções), mas que, por outro lado, têm estreita relação com a "excelência do
ensino" que, segundo o próprio decreto, deve ser comprovada pela quali-
ficação do seu corpo docente e pelas condições de trabalho acadêmico
oferecidas à comunidade escolar.
No que se refere à pesquisa, entretanto, Silva (1997, p. 13) inter-
preta como obrigatória a presença da iniciação científica nos centros uni-
versitários, justificando:

173
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Embora o centro universitário não esteja comprometido com o desenvolvi-


mento institucionalizado da pesquisa, esta sim, uma função universitária,
não há como eximi-lo da obrigação de promover a iniciação científica, que
é componente indispensável na formação do graduado em nível superior. E
por iniciação científica não entendemos apenas a administração da disci-
plina Metodologia Científica nos diversos cursos de graduação. Há que
fazer a aplicação prática desse conteúdo. Eis uma boa oportunidade, além
de outras, para se propiciar uma boa prática profissional para os discentes.

Sem dúvida, a autora defende a existência de um espaço institucional


para o desenvolvimento de pesquisas pelo seu corpo docente, tendo-se pre-
sente a formação básica do graduado. Caso contrário, como promover inici-
ação científica se não existe nenhuma atividade de pesquisa na instituição?
Esses primeiros dispositivos, entretanto, provocaram reação das ins-
tituições privadas no que se referiam, principalmente, a questões ligadas
aos contornos da autonomia concedida aos centros e às relações entre
ensino e pesquisa. O mencionado seminário “A Construção do Projeto dos
Centros Universitários: orientações do MEC e realidade das escolas" foi
programado justamente para debater essas questões. Poucos dias após
seu encerramento, foi aprovado o Decreto nº 2.306/97, que substituiu o
Decreto n. 2.207.
Leitura atenta desse novo decreto2 permite inferir que se introdu-
ziu uma modificação em alguns aspectos em relação às entidades
mantenedoras de instituições privadas de ensino superior sem fins lucrati-
vos. Esse dispositivo suprime a exigência de representação acadêmica no
Conselho Fiscal de cada entidade, que constava da legislação anterior;
permitindo, em vez de um balanço anual, a publicação de demonstrações
financeiras certificadas por auditores independentes, com parecer do Con-
selho Fiscal, ou órgão similar; reduzindo em 60% a parcela da receita das
mensalidades escolares destinada ao pagamento de professores e funcio-
nários, incluídos os encargos e benefícios sociais, abrangendo nesse côm-
puto, as reduções, os descontos e bolsas de estudo oferecidas, bem como
gastos com pessoal, encargos e benefícios sociais dos hospitais universitá-
rios. Será pertinente lembrar, também, que em relação às

2
O Decreto nº 2.306/97, que revoga o Decreto nº 2.207/97, regulamenta, para o Sistema Federal de Ensino, as disposições
contidas no art. 10 da Medida Provisória nº 1.477-39, de 8/8/97, nos artigos 16, 19, 20, 45, 46 e §1º, 52 único, 54 e 88 da
Lei nº 9.394/96 e dá outras providências.

174
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

[...] instituições privadas de ensino, classificadas como particulares no sen-


tido estrito, com finalidade lucrativa, ainda que de natureza civil, quando
mantidas e administradas por pessoa física, ficam submetidas ao regime da
legislação mercantil, quando aos encargos fiscais, parafiscais e trabalhistas,
como se comerciais fossem, equiparados seus mantenedores e administra-
dores ao comerciante em nome individual (Decreto nº 2.306/97, art. 7º).

No entanto, vale observar que essas instituições, legalmente, não


ficam isentas de controle estatal, conforme o disposto no caput do art. 4º
e inciso II desse decreto: “As entidades mantenedoras de instituições de
ensino superior, com finalidade lucrativa, ainda que de natureza civil, de-
verão submeter-se, a qualquer tempo, à auditoria pelo Poder Público".
Esse dispositivo legal é substituído pelo Decreto nº 3.860, de 9 de julho de
2001, aprovado no segundo mandato do governo Fernando Henrique Car-
doso, que ratifica a concepção de centro universitário do decreto anterior
e seu grau de autonomia.
Não obstante, após quase três anos de intervalo, dois decretos, no
decorrer do governo Luiz Inácio Lula da Silva, merecem destaque, no que se
refere às dimensões objeto de estudo neste trabalho: o primeiro, o Decreto nº
4.914, de 11 de dezembro de 2003, expedido no início de seu primeiro man-
dato (Brasil, 2003) e o Decreto nº 5.786, de 24 de maio de 2006, no segundo
(Brasil, 2006). Procuramos identificar as diferenças entre os dois decretos, em
termos da concepção de centro universitário e da questão dos contornos da
autonomia a ele concedidos, por meio de um quadro comparativo das duas
medidas legais. Elas estão destacadas, em negrito, no Quadro 2.

Quadro 2 – Concepção e grau de autonomia dos centros


universitários nos Decretos nº 4.914/2003 e nº 5.786/2006
Decreto nº 4.914/2003 Decreto nº 5.786/2006
Art. 1º Fica vedada a constituição de novos centros Art. 2º Os centros universitários, observado o disposto
universitários, exceto aqueles em fase de tramitação no Decreto nº 5.773 de 9 de maio de 2006, poderão
no Ministério de Educação para credenciamento [...] criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e
ficando restritos os seus cursos e vagas ao limite programas de educação superior, assim como
constante do seu Plano de Desenvolvimento remanejar ou ampliar vagas nos cursos nos termos
Institucional – PDI [...] deste decreto.
Art. 1º Os centros universitários são instituições de
ensino superior pluricurriculares, que se caracterizam
Art. 2º Os centros universitários já credenciados e os de
pela excelência do ensino oferecido, pela qualificação
que trata o artigo 1º, se credenciados, deverão
do seu corpo docente e pelas condições de trabalho
comprovar, até 31 de dezembro de 2007, que
acadêmico oferecidas à comunidade escolar. [...]
satisfazem o princípio da indissociabilidade entre
Parágrafo único. [...] que atendam aos seguintes
ensino, pesquisa e extensão [...]
requisitos:
sendo que os trinta e três por cento do corpo docente
I um quinto do corpo docente em tempo integral
em regime de tempo integral [...]
II um terço do corpo docente, pelo menos, com
titulação acadêmica de mestrado ou doutorado.
Art. 2º § 4º Os centros universitários poderão registrar
diplomas dos cursos por eles oferecidos.
Fonte: http://www.presidencia.gov.br/legislação/decretos

175
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

A primeira coluna do quadro oferece uma visão clara da tentativa


preliminar do governo federal, em 2003, no sentido de aproximar a con-
cepção de centro universitário à concepção de universidade, ao introduzir
em seu artigo 2º a exigência de comprovação do princípio da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão para seu
credenciamento, conjugada ao estabelecimento de um percentual mínimo
de professores em tempo integral. Está prevista, inclusive, em seu artigo
primeiro, a suspensão de pedidos de credenciamento de novos centros
universitários até a aprovação da nova regulamentação e o cumprimento
das novas exigências para as instituições já credenciadas. Entretanto, no
decreto de maio de 2006, constante da segunda coluna, não somente se
volta à definição de centro universitário de 1997, em que se enfatiza a
excelência do ensino sem menção à indissociabilidade entre ensino e pes-
quisa, como também é reduzido o percentual mínimo de professores em
tempo integral a ser exigido nas avaliações, diminuindo de 33% para 20%.
Quanto ao grau de autonomia, ele atende aos principais interesses das
mantenedoras dessas IES, na medida em que mantém seu direito de criar,
organizar e extinguir cursos e programas de educação superior, assim como
remanejar ou ampliar vagas nos cursos.
Ao caracterizar a concepção e o grau de autonomia de centro uni-
versitário, preconizada na legislação vigente, percebemos que prevaleceu
a visão de uma instituição que tem, praticamente, todas as prerrogativas
de autonomia da universidade sem a obrigação de desenvolver
institucionalmente a pós-graduação stricto sensu e a pesquisa.
Continuando essa análise, identificamos qual o espaço que vem
sendo ocupado por essa nova forma de instituição no âmbito do Sistema
Brasileiro de Educação Superior.

A presença dos centros universitários


no sistema de educação superior

Na Tabela 2, procuramos mostrar como os centros universitários


distribuíam-se por categoria administrativa e pelas diferentes regiões do
Brasil, tomando como base os dados do Censo da Educação Superior de
2004.

176
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

Tabela 2 – Centros universitários por região e categoria


administrativa – 2004
Regiões Totais Público Privado
No %/Brasil No %/Região No %/Região
Norte 07 6,5 - - 07 100,0
Nordeste 03 2,8 - - 03 100,0
Sudeste 72 67,3 3 4,2 69 95,8
Sul 15 14,0 - - 15 100,0
Centro-oeste 10 9,4 - - 10 100,0
Brasil 107 100,0 3 --- 104 ----
Fonte: MEC/Inep/Deaes.

De forma clara, observamos a presença da maioria dos centros


universitários na Região Sudeste, representando 67,3% do total dessas
IES existentes no Brasil, em 2004. Tal predominância está presente em
toda a trajetória da criação de centros universitários nessa região, no
período de 1997 a 2004, com pequenas oscilações, como se pode verifi-
car na Tabela 3.

Tabela 3 – Centros universitários do Brasil e Região Sudeste,


de 1997 a 2004
Ano Brasil Sudeste %

1997 13 10 76,9
1998 18 16 88,9
1999 39 29 74,4
2000 50 37 74,0
2001 66 50 75,8
2002 77 58 75,3
2003 81 60 74,0
2004 107 72 67,3

Δ 1997-2004 723,1 620,0


Fonte: MEC/Inep/Deaes.

À medida que se delimita o período de tempo de análise, a partir da


criação dos primeiros centros universitários, em 1997, percebemos o cres-
cimento acelerado desse tipo de IES no Brasil (723,1%), acompanhado de
perto pela Região Sudeste (620%). Com o intuito de aprofundar a análise
da estatística dessa região para a realidade dos seus diferentes Estados,
construímos a Tabela 4.

177
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Tabela 4– Centros universitários da Região Sudeste por Estado


e categoria administrativa
Ano Sudeste Rio de Janeiro São Paulo Minas Gerais Espírito Santo
tot publ Priv tot publ priv tot publ priv tot publ priv tot publ priv
1997 10 - 10 04 - 04 03 - 03 03 - 03 - - -
1998 16 - 16 03 - 03 11 - 11 02 - 02 - - -
1999 29 - 29 07 - 07 19 - 19 03 - 03 - - -
2000 37 01 36 08 - 08 22 01 21 06 - 06 01 - 01
2001 50 02 48 09 - 09 30 01 29 09 01 08 02 - 02
2002 58 03 55 10 - 10 33 02 31 13 01 12 02 - 02
2003 60 03 57 10 - 10 35 02 33 13 01 12 02 - 02
2004 72 03 69 13 - 13 41 02 39 15 01 14 03 - 03

Δ 1997-
620 - 590 225 - 225 1266 - 1200 400 - 367 - - -
2004
Fonte: MEC/Inep/Deaes.

Com base nessa tabela, observa-se, inicialmente, que os três cen-


tros universitários públicos existentes em todo o Brasil surgiram a partir
do ano de 2000, localizando-se nos Estados de São Paulo e Minas Gerais,
segundo os dados do MEC/Inep. Quanto ao índice de crescimento desses
centros, São Paulo destaca-se em primeiro com 1.266%, seguido por Mi-
nas Gerais com 400% e Rio de Janeiro com 225%. O Espírito Santo não
apresenta índice de crescimento nesse período porque somente após 2000
passou a contar com centros universitários em seu sistema.
Os dados levantados permitem antever, ainda, o impacto que esse
tipo de instituição poderá ter na configuração do perfil do Sistema de
Educação Superior nos próximos anos, principalmente se forem levadas
em consideração as condições facilitadoras que foram introduzidas medi-
ante o Decreto nº 5.786/06. Diante do exposto, pareceu-nos necessário
dar continuidade à discussão sobre o que se espera dessas instituições.

Os centros universitários:
a relação ensino-pesquisa e a questão
da autonomia

Uma questão a ser considerada, refere-se aos centros universitários


serem definidos como “instituições de ensino superior pluricurriculares,
que se caracterizam pela excelência do ensino prestado, pela qualificação
do seu corpo docente e pelas condições de trabalho acadêmico oferecidas
à comunidade escolar" (Decreto nº 5.786/06, art. 1º). Examinando esse

178
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

dispositivo somos levadas a indagar sobre o que os autores desse decreto


entendem por excelência, termo utilizado nele, supomos, como sinônimo
de qualidade.
Parece indiscutível que qualidade e excelência são características mais
do que desejáveis em qualquer organização, especialmente nas instituições
de educação superior e no trabalho por elas desenvolvido. Isso posto, será
pertinente levantar a questão: Como no Brasil pode-se pensar em centros
universitários que se caracterizam pela excelência do ensino, sem o desen-
volvimento da atividade de pesquisa por seus professores e alunos?
A criação dos centros universitários, com essa concepção
institucional, reaviva a discussão dos anos 80 do século passado, quando
a proposta do Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superi-
or (Geres), traduzida na dualidade entre universidades de pesquisa e uni-
versidades de ensino foi severamente contestada. Como bem assinala Saviani
(1999) estas últimas ressurgiram chamadas eufemisticamente, pelo MEC,
de “centros universitários". Quanto à presença opcional da pesquisa, ob-
serva o autor que:

[...] não parece, pois, sensato abrir mão da pesquisa na organização dos
cursos de nível superior. [...] Realmente, faz uma grande diferença formar
profissionais num ambiente de produção de conhecimento, no qual os
alunos, a partir da graduação, têm contato com laboratórios, grupos de
pesquisa, criadores de cultura a formá-los à margem dessa possibilidade
(Saviani, 1999, p. 131).

Desde a década de 1980, a questão da associação ou dissociação


entre ensino e pesquisa como princípio natural vem sendo objeto de polê-
mica dependendo, inclusive, da definição de pesquisa adotada como pon-
to da partida. A expressão ensino com pesquisa foi utilizada por Paoli
(1990, p. 31) para traduzir sua forma de pensar a relação ensino-pesquisa:
“[...] não se trata apenas de introduzir inovações no nível de conteúdo da
disciplina, mas também de disseminar atitudes científicas, ou seja, predis-
posições para conhecer de forma inteligente e não apenas repetitiva e
reprodutiva". Essa posição coincide com a interpretação de Silva (1997)
sobre a necessidade da presença da iniciação científica nos centros univer-
sitários, conforme referimos anteriormente, no Quadro 1.
Entretanto, uma questão parece ainda sem resposta: Como as ati-
vidades de práticas de pesquisa terão lugar no cotidiano da sala de aula, se

179
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

o professor não desenvolve, ele próprio, esse tipo de atividade? A diminui-


ção do percentual mínimo de professores em tempo integral, de um terço
para um quinto, nos centros universitários (conforme dispõe o Decreto nº
5.786/06), certamente vai agravar as condições institucionais de atendi-
mento ao compromisso com a qualidade do ensino.
No que se refere às implicações dessa política dual para o futuro
desenvolvimento do sistema de educação superior como um todo, um
estudo de Segenreich sobre a relação entre ensino de graduação e pesqui-
sa (publicado em 2001) assinalava:

[...] no que se refere às atuais políticas públicas relacionadas à questão, o


discurso passa pela negação da indissociabilidade ensino-pesquisa, vista
como pesquisa científica, em nível individual (do professor) e pela restrição
deste preceito constitucional às universidades que realmente desenvolvam
pesquisa. Isto significa que as demais universidades ou se tornarão Univer-
sidades Classe B ou serão descredenciadas, engrossando o número de cen-
tros universitários já existentes (Segenreich, 2001, p. 208).

Quanto à autonomia, a grande novidade dos centros universitários


é terem, segundo Cunha (2003), o privilégio de usá-la para criar, organizar
e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior, além
de outras atribuições definidas em seu credenciamento pelo Conselho
Nacional de Educação. Assim sendo, passam a ser instituições com prerro-
gativas de universidade, mas de universidade sem pesquisa.
Diante do exposto uma questão desafiadora impõe-se: Se a autono-
mia não constitui um fim em si mesma, mas condição necessária para que
sejam concretizados os fins da universidade: ensino, pesquisa e extensão, por
ser uma característica do cerne dessa instituição (Fávero, 2005), como aceitar
que os centros universitários "quase autônomos ou detentores de quase toda
a autonomia universitária ocupem o lugar, no discurso reformista oficial, da
universidade de ensino, definida por oposição à universidade de pesquisa, esta
sim, a universidade plenamente constituída?" (Cunha, 2003, p. 54).

Concluindo...

Em suma, pode-se inferir que a reforma da educação superior


contida na LDBEN e na legislação complementar contém tanto limites
como virtualidades, cabendo aos docentes-pesquisadores refletir sobre

180
Universidades e centros universitários pós-LDB/1996:
tendências e questões

duas questões intimamente interligadas. A primeira, em que condições,


no contexto atual, é possível realizar um ensino de qualidade em nível
universitário, em uma instituição que não se preocupe com a produção
do conhecimento, com a criação de um ambiente de saber e que não
desenvolva pesquisa nas áreas de ensino às quais se dedica? A segunda,
qual o impacto que a perspectiva de expansão dessa forma diferenciada
de instituição universitária, predominantemente privada e progressiva-
mente particular, no seu sentido estrito, teria para o Sistema de Educa-
ção Superior nos próximos anos? E mais, no caso das universidades pú-
blicas, como essa questão será encaminhada se o poder público não
injetar recursos para manter vivo o princípio da indissociabilidade do
ensino, pesquisa e extensão?
Finalizando, observamos: como não há pesquisa acabada, com o
presente estudo pretendemos levantar questões e oferecer subsídios que
poderão ser retomados e complementados em outras pesquisas e trabalhos.

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182
9
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades
Maria Estela Dal Pai Franco*
Solange Maria Longhi**

* Professora titular PPGEdu/UFRGS, coordenadora do GEU-Ipesq/UFRGS; e-mail: medpf@orion.ufrgs.br


** Doutora em Educação UFRGS; professora da UPF; e-mail: somalon@upf.tche.br
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

Olhar para esta primeira década pós-Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996) e as políticas públicas dela decor-
rentes, implica em reconhecer que foram impressas diversas marcas na
educação superior, intensificando características responsáveis por uma
verdadeira metamorfose, como a própria Unesco designa o atual estado
da educação superior (ES)1 na região em que o Brasil se situa (Iesalc/
Unesco, 2006). Tais marcas decorrem dos processos de reformas constan-
tes que vêm se impondo à educação, seguindo as tendências definidas
globalmente e pelas próprias instituições de ensino superior (IES).
Flexibilização, internacionalização, expansão, acesso e inclusão, avaliação
e qualificação institucional, capacitação docente, diversificação de mode-
los e muitas outras são expressões que marcam o contexto da educação
superior pós-LDB.
Tomando apenas a marca da diversificação de modelos, é impres-
cindível reconhecer que esta não é prerrogativa dos anos de 1990, pois nas

1
No presente trabalho não se fará diferença entre os termos ensino superior e educação superior.

185
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

raízes do ensino superior brasileiro encontram-se tentativas de diversificar


instituições e cursos, no bojo de políticas públicas. Entretanto, é inegável
que um dos mais expressivos exemplos de diversificação foi objetivado
pela LDB de 1996, mas já aventado na Constituição da República Federa-
tiva do Brasil de 1988: o segmento das instituições de educação superior
comunitárias no Sistema de Educação Superior brasileiro, que hoje ocupa
um significativo nicho e conta com 51 instituições.
A procedência de tal constatação se revela no fato de que as IES
comunitárias têm sido estudadas sob duas idéias centrais: a procura da
diferenciação em face dos demais segmentos da ES e o seu caráter alter-
nativo (Longhi, 1998; Bittar, 1999; Neves, 2003; Morosini e Franco, 2004;
Longhi e Franco, 2006; Bittar, 2006). O caráter alternativo tem expressão
no esforço de conferir ao segmento das IES comunitárias um traço
diferenciador daquelas particulares de orientação comercial, e de entendê-
las, mesmo que privadas, em uma perspectiva de instituições públicas não
estatais. É o espaço ambíguo, reconhecido por Longhi (1998) e Bittar (2006),
no qual subjazem identificações com o público e com o privado e a cons-
trução da própria identidade, num processo eivado de tensões. No enten-
der de Longhi (1998) a LDB aprovada em 1996, distingue as comunitárias
dentro do grupo das privadas, mas adiciona uma ambigüidade ao estabe-
lecer que as confessionais, além de orientações específicas, atendam ao
disposto para a categoria das comunitárias.2 Tal colocação subentende
duas categorias de instituições comunitárias: confessionais e não-
confessionais.
No espaço ambíguo das IES comunitárias, é pertinente reconhecer
sua condição de instituições privadas cujo número de estudantes que po-
deriam pagar taxas estaria próximo ao limite. Amaral (2006), consideran-
do um conjunto de indicadores entre os quais o número de pessoas que

2
As universidades comunitárias, propriamente ditas, surgiram de iniciativas essencialmente comunitárias; são “[...] defini-
das como não-confessionais, não-empresariais, sem alinhamento político-partidário ou ideológico de qualquer natureza.
Sob o ponto de vista patrimonial, as universidades comunitárias não pertencem a um dono ou grupo privado, mas a
fundações ou associações comunitárias (designadas de mantenedoras), cuja totalidade dos bens tem, conforme o explicitado
em seus estatutos, destinação pública, revertendo, em caso de dissolução, para o controle do Estado. Os dirigentes dessas
mantenedoras não recebem remuneração no exercício de sua função. A forma de gestão caracteriza-se pela eleição de seus
dirigentes, com participação de toda comunidade acadêmica. Em seus conselhos superiores participam representantes da
comunidade externa, inclusive do poder público municipal e, em algumas delas, do poder público estadual. Seus balanços,
de domínio público, após análise e aprovação interna, são submetidos a auditores independentes, a um conselho fiscal e à
aprovação do Ministério Público." (Longhi, 2003, p. 341).

186
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

residem em domicílios com renda nas faixas que permitem pagar o ES,
mostra que o sistema privado suportaria somente uma pequena expansão
de novas matrículas e em áreas específicas. Portanto, para o autor, a res-
ponsabilidade por atingir a meta governamental de 30% dos alunos com
idade entre 18 e 24 anos no ES até o ano de 2011, tem de ser conjunta do
setor privado e do setor público. Isso realça as dificuldades enfrentadas
pelas IES de hoje, explicita indagações que incidem no âmbito das tensões
entre socialização e mercantilização do conhecimento e retoma os
questionamentos sobre o compromisso social da universidade comunitária
enquanto produtora e socializadora do conhecimento.
Os pontos acima levantados sinalizam a importância de entender o
que amalgamou a proposta de universidade comunitária, como ela se en-
contra hoje, quais suas fragilidades, nesse contexto complexo e de ambi-
güidades políticas e práticas, no entorno de processos de globalização e
quais pontos fortes se apresentam ante as possibilidades da Pós-gradua-
ção e dos grupos de pesquisa para enfrentar os desafios e atender ao
compromisso histórico-social desse segmento de IES. É o espaço e o obje-
tivo do presente trabalho.
Aguçar o olhar sobre a problemática exige adentrar alguns dos
pontos levantados. A educação superior no Brasil, assim como em ou-
tras partes do mundo, tem se defrontado nestes anos 2000 com pro-
blemas sérios e inusitados: a expansão de ofertas sem qualidade e con-
trole, a ênfase mercadológica, a concorrência acirrada, a inadimplência,
as desigualdades, entre outros. Como nunca, talvez, em sua trajetória,
as IEs têm encarado tão intensamente a pressão de forças opostas,
captadas de modo diferenciado, mas que revelam um cerne comum: o
dilema mudar e/ou manter. Analistas do hemisfério norte, como
Stensaker e Norgard (apud Tight, 2003, p. 151), por exemplo, perce-
bem nesse tipo de enfrentamento a dinâmica entre inovação e
isomorfismo: de um lado o movimento em direção a objetivos inova-
dores e de outro o das forças para se adaptar às pressões externas de
padronização.
Santos (2004a) vai além e vê a questão no prisma mais de tran-
sição paradigmática, na dimensão epistemológica e na societária. É a
transição entre o paradigma da modernidade, em falência visível para
o autor, e, um paradigma emergente, que aos poucos vai se delineando

187
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

com base na análise das experiências nem tão bem-sucedidas, decor-


rentes da lógica hegemônica globalizante vigente. Na transição
epistemológica do paradigma da modernidade concorre a ciência mo-
derna (conhecimento-regulação) com a emergência do paradigma do
conhecimento prudente para uma vida decente (conhecimento-eman-
cipação). Menos visível para o autor é a transição societária entre o
paradigma dominante e o novo paradigma. O ainda dominante está
ligado à sociedade patriarcal, à produção capitalista, individualista e
mercantilista; constituído por identidades-fortaleza; manifesto pela
democracia autoritária; expresso pelo desenvolvimento global, desi-
gual e excludente; de um conjunto de paradigmas emergentes, apenas
se vislumbram sinais.
No contexto brasileiro Sguissardi (2004) coloca a questão no âmbi-
to da universidade neoprofissional, heterônoma e competitiva, configura-
da a partir dos ajustes da economia e da reforma do Estado dos anos de
1990, voltadas principalmente para o mercado.
A questão comum que, por vezes somente se vislumbra, e, por
vezes aflora e lança acintosamente, o germe da dúvida quanto à possibi-
lidade de respondê-la é: o que manter e o que mudar nessa transição para
sobreviver?
Três razões levam este estudo a focalizar universidades comunitá-
rias do Rio Grande do Sul (RS): a evolução da idéia de escolas comunitárias
instituídas pelos imigrantes (Both; Frantz, 1985); o número significativo
de universidades comunitárias que revelam o espírito original das “propri-
amente ditas" localizadas no Estado; e o reconhecimento de que no RS
está situada uma das IES que caracteriza substantivamente o segmento
das comunitárias, o que se reflete na escolha de Bittar (2006) ao analisar a
Unijuí como exemplar do “modelo" comunitário. O estudo fez uso de
consulta a sítios institucionais e oficiais, de documentos político-legais,
bem como de sete entrevistas3 realizadas com reitores e pró-reitores de
UC. Utiliza princípios de análise de conteúdo (Grawitz, 1967).

3
Participaram das entrevistas gestores de quatro universidades: Unisc (duas entrevistas); UPF (uma entrevista), URI (três
entrevistas) e a Unijuí (uma entrevista). As autoras agradecem à Morosini e Franco (2004) pela disponibilização de duas
entrevistas realizadas em 2003. As demais entrevistas foram realizadas em 2006.

188
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

Caracterização e traços marcantes


na emergência e trajetória da universidade
do RS: a busca pela democratização do ensino,
a dimensão regional, o patrimônio comunitário,
o caráter de resistência, a religiosidade,
a força étnica e os movimentos associativos

É preciso reconhecer a força transformadora das demandas e pres-


sões sociais para que a democratização ganhe espaços concretos na tessitura
decisória da educação superior brasileira. Os movimentos construtores da
LDB de 1996 assim o atestam. Nesse bojo estão incluídos os movimentos
propositores que visaram à Assembléia Nacional Constituinte (1987-88) e
à tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1988-
1996). Muitas dessas contribuições, mesmo não sendo contempladas na
proposta final, permitiram prenunciar tendências e conseqüências, esta-
belecendo referências que, atualmente, podem servir de suporte à análise
crítica de sua concretização.
A análise do surgimento das universidades comunitárias em uma
concepção ampla remete ao surgimento tardio das primeiras universidades
públicas brasileiras (começo do século XX). No Rio Grande do Sul, embora
o início do ensino superior também ocorra antes, sua constituição em
universidades também aconteceu mais tarde tanto quanto no centro do
País. Esse ensino foi implantado primeiro em regiões mais desenvolvidas
na época. Assim, no final do período imperial (1883), foi a cidade de
Pelotas que recebeu a primeira faculdade do Estado (Agronomia), igual-
mente uma das primeiras do País.
Decisivas foram as influências, tanto da Igreja como da tendência
laica (liberal e positivista, unida à maçonaria), na origem e no desenvolvi-
mento de escolas e faculdades. Em decorrência da tendência laica, as
primeiras instituições destinadas ao ensino superior que surgiram no Esta-
do dirigiam-se aos estudos e à profissionalização nas áreas de ciências da
vida, da terra e tecnológicas, áreas-chave da doutrina positivista.
Em decorrência desta forte influência das idéias positivistas de-
fendidas por políticos proeminentes no Estado, em 1896, foi estabelecida
a Escola de Engenharia (EE) de Porto Alegre, que pode ser considerada
uma das origens da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).

189
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Constituiu-se como Universidade Técnica em 1922, no bojo do que Franco


e Morosini (2006) denominam de uma cultura institucional que pode ser
interpretada como de resistência antecipativa. A Escola de Engenharia,
já nas primeiras décadas do século XX, aproximava-se da idéia de univer-
sidade, tanto pela estrutura como pelo conhecimento, este entendido na
diversidade de cursos oferecidos e na produção de pesquisas veiculadas
em periódicos especializados.
A influência acentuada da igreja na educação no Brasil identifica-se,
também, no RS, especialmente na origem dos cursos nas áreas de Ciências
Humanas e Sociais, tanto na capital como nas localidades interioranas. Con-
tudo, nesse caso, podem-se acrescer elementos vinculados à imigração eu-
ropéia. Os cursos na área de educação começaram nas Faculdades de Filo-
sofia Ciências e Letras (na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS, em 1940; na então Universidade de Porto Alegre – UPA, mais
tarde Universidade do Rio Grande do Sul – URGS e depois UFGRS, em 1942).
O ensino superior federal, na forma de universidade, interiorizou-se
no Rio Grande do Sul, apenas na década de 1960. A expansão lenta do
ensino superior organizado em universidades, no Brasil e no RS, deu-se,
tanto pela via do público como pela via do privado (efetivada pelas
pontifícias universidades católicas), concentradas nas grandes capitais.

Após a Segunda Guerra, o modelo econômico brasileiro modificou-se para


integrar-se ao capitalismo mundial, buscando a modernização do campo,
desenvolvendo a industrialização nos centros urbanos. Isso fez com que se
desenvolvesse, juntamente com a classe média, em cidades que acabaram se
tornando pólos de atração para grandes segmentos de populações rurais, o
desejo de acesso a níveis de ensino mais elevados. Assim, onde a demanda de
ensino de 1º grau (primário e ginasial) havia sido atendida, as reivindicações
eram no sentido da instalação do 2º grau (secundário) e, da mesma forma,
do ensino superior, o que fez com que a expansão desse nível de ensino
significasse, também, sua interiorização (Longhi, 1998, p. 176).

Isso caracteriza a tipicidade com que se desenvolveu o ensino su-


perior no interior do Estado gaúcho, durante a segunda metade do século
passado. Acentuou-se, então, a instalação de instituições de ensino supe-
rior, isoladas em um primeiro momento e que, aos poucos, foram procu-
rando aglutinar-se, principalmente nas comunidades interioranas. As ten-
tativas de articulação foram estimuladas pelas políticas públicas do MEC,
mas também foram desenvolvidas em uma perspectiva político-ideológica
das próprias instituições.

190
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

Diversas experiências de integração regional ocorreram entre as ins-


tituições que se formavam no interior do Estado nesse período. Elas foram
alimentadas , na década de 1970, pela constituição dos Distritos
Geoeducacionais (DGEs)4 e pelas políticas de desenvolvimento regional
(no Sul, por meio da Superintendência do Desenvolvimento dos Estados
do Sul – Sudesul). O DGE-38 não esgota o território onde se localizam as
universidades comunitárias no RS, mas ele é basilar por duas razões: a
primeira porque reforçou a cultura de solidariedade entre instituições
congêneres, elemento fundante das comunitárias; a segunda, porque nele
concentrou-se um significativo número de IES comunitárias.
As IES que foram surgindo se fortaleceram e, mesmo sendo priva-
das, distinguiam-se das empresariais pelo enraizamento nas comunidades,
pelas perspectivas de regionalização. Nas trocas decorrentes, foram cons-
truindo suas identidades comunitárias institucionais. Elas não foram
introduzidas nas localidades por grupos de empreendedores de fora das
comunidades que ali vinham se estabelecer, como se estabelecem empre-
sas, cuja perspectiva de mercado promete lucros seguros, porque ali há
uma clientela, porque ali se encontrou um filão, um nicho de mercado. Ao
contrário: elas foram emergindo como concretização do desejo, da neces-
sidade de maiores estudos em níveis superiores e por isso, organizadas
pelo esforço de segmentos de suas comunidades. Não se pode ignorar
que, tais segmentos eram constituídos por pessoas com maior preparo
cultural e profissional, mas, não constituído, somente por pessoas de mai-
or poder econômico. Inúmeros relatos demonstram que a colaboração da
comunidade abrangia vários segmentos da população organizada em as-
sociações de professores, de membros das comunidades, em sociedades
pró-universidade (cf. Longhi, 1998).
A explicitação do termo comunitário requer não apenas uma volta
às origens histórico-sociais, mas, especialmente, uma oxigenação pelas
práticas institucionais diante do momento atual da vida brasileira. Tem

4
Nas regiões norte e noroeste do RS, as primeiras tentativas de integração do ensino remontam ao denominado Distrito
Geoeducacional – DGE-38, iniciadas ainda 1970. Desde sua origem o DGE-38 traçou uma filosofia voltada para a integração
das pessoas e das instituições mediante tarefas comuns. Na década de 1980 após reestruturação do seu modelo organizacional,
criaram-se conselhos setoriais nos quais participavam, além das IES as então denominadas Delegacias de Educação (hoje
Coordenadorias Regionais de Educação – CRES) da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul.

191
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

havido esforços, como o de Paviani (1985; 1995), de Piran (1997); de


Paviani e Pozenato (1980), de Both e Frantz (1985), de Tramontin e Braga
(1988), de Neves (2003), para a explicitação do conceito de comunitário.
Há um consenso entre estes autores de que, embora tenha se projetado no
cenário nacional após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988,
este conceito já era empregado desde períodos anteriores no âmbito mais
geral das escolas comunitárias brasileiras, conforme demonstra o estudo
de Longhi (1998).
A LDB de 1996 (Brasil, 1996), atualmente em vigor, explicita no
art. 19, a natureza administrativa das instituições de ensino dos diferentes
níveis, classificando-as em públicas (mantidas pelo poder público em qual-
quer instância) e privadas (mantidas por pessoa física ou jurídica de direito
privado). Segundo o art. 20 dessa mesma lei, enquadram-se na categoria
das privadas quatro diferentes modalidades: a particular (que denomina-
mos de empresarial), a confessional, a comunitária e a filantrópica. Por-
tanto, a universidade comunitária enquadra- se na categoria das privadas;
algumas delas são confessionais e de natureza filantrópica.
Isso atendeu ao pretendido pelas universidades que, no período
que antecedeu à elaboração da Carta Constitucional, desenvolveram níti-
da movimentação (em especial as do Rio Grande do Sul), com repercussões
em âmbito nacional. Tais universidades consideravam-se como um mode-
lo alternativo entre a pública e a particular (empresarial). As universidades
comunitárias defendiam uma compreensão diferente das demais particu-
lares; não tinham fins lucrativos; os resultados financeiros obtidos devi-
am, obrigatoriamente, ser reinvestidos nas próprias IES, em benefícios do
ensino, da pesquisa e da extensão.
Embora diferentes em seu formato, as universidades caracteriza-
ram-se, desde suas origens, por forte direcionamento de ações ao seu
entorno social, seja por propostas de extensão, pelo atendimento às ne-
cessidades de ensino ou pela ênfase nas atividades de pesquisa voltadas à
região. Disso resultou acelerado processo de regionalização o que fez com
que fossem se constituindo estruturas organizacionais na modalidade de
campi, centros de extensão e de núcleos. Poucas ainda mantêm, apenas,
extensão de cursos (estes, geralmente de caráter esporádico). Isto demons-
tra a concretização, em níveis locais, de uma tendência de resistência das
regiões, em busca do acesso ao ensino superior para as suas comunidades.

192
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

Vários movimentos articuladores, objetivados em associações, ten-


deram a desenvolver um lastro identitário comum, ajudando, pois a amal-
gamar a universidade comunitária no RS. O primeiro a ser destacado é o da
Associação de Escolas Superiores Formadoras de Profissionais do Ensino
(Aesufope).5 Antes de uma orientação repassadora de políticas governa-
mentais, na transposição dos anos de 1970 para 1980, a Aesufope passou a
assumir uma linha contestatória e antecipadora no forjamento das políticas
públicas de educação superior e serviram de modelo, por meio de encontros
de pesquisadores, para outras regiões do País e possivelmente, para linhas
de ação da própria Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação (ANPEd) Regional. Os eventos representavam um “fórum" de tro-
ca de experiências e divulgação da produção docente e deram impulso ao
desenvolvimento da pesquisa e do ensino e da liderança educacional em
diversos níveis. Posteriormente, foram fortalecidos pelo Fórum de Coorde-
nadores de Pós-Graduação da Região Sul e ANPEd (Engers, 2003.).
Outro movimento associativo que merece ser lembrado é o Consór-
cio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung).6 É pertinente não
esquecer que o próprio movimento do DGE-38 nas regiões norte e nordes-
te do RS promoveu a pressão política pela existência e pela qualidade da
educação superior no interior do RS, por meio de movimentos articuladores
e de fortalecimento das IES pela via associativa. Dessa forma, o referido
programa, repetindo experiências anteriores das IES, ainda no âmbito do
DGE-38, estabelecia como marcos para essa ação interinstitucional a par-
ticipação efetiva e integrada em programas nacionais de aperfeiçoamento
do ensino básico, o estabelecimento de parcerias com segmentos comuni-
tários, incluindo administrações municipais, e a agilização na produção e

5
Constituiu-se em um espaço de resistência único, criado em 1970, na conjunção de oito faculdades de Filosofia, Ciências
e Letras de instituições privadas, integrantes do Programa de Formação de Professores Polivalentes (PFPP) que, desde 1967,
funcionava no RS com o apoio da Fundação Ford. Foi notória a liderança da PUC-RS, congregando um grupo de institui-
ções (UCS em Caxias do Sul, Unisinos em São Leopoldo, Unijuí em Ijuí, UCPel, em Pelotas, Imaculada Conceição em Santa
Maria, UPF em Passo Fundo e uma instituição de Uruguaiana), que, anos mais tarde participaram no estabelecimento do
Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung). A preocupação com a pesquisa na universidade esteve
presente desde 1973, quando a Aesufope organizou o primeiro de uma série de eventos de pesquisa, criando, inclusive um
Departamento de Pesquisa (DPE). Segundo Engers (2003) esses encontros congregavam os Estados do Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná – encontros da Região Sul.
6
O Comung, é uma rede universitária, oficializada em 1993, integrada por universidades e centros universitários do Rio
Grande do Sul, cujos objetivos fundamentam-se na idéia de integração de ideais e forças. Pode-se considerar a origem desse
movimento, a organização, no ano de 1990, de algumas dessas universidades em torno do então Programa Interinstitucional
de Integração da Universidade com a Educação Fundamental (hoje Pieb, em decorrência da terminologia – educação
básica), concebido pelos reitores dessas instituições (Longhi, 2003).

193
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

socialização do conhecimento nas instituições participantes, pela articula-


ção entre ensino, extensão e pesquisa. Esse movimento tomou força e,
como Comung liderou o movimento de resistência ao anonimato das IES
comunitárias no RS, fundando-o no conjunto das ações integradas que
vinham sendo desenvolvidas.
Assim como a Aesufope, pode-se dizer que esse movimento
associativo foi precursor de outros, neste caso como a Associação Brasilei-
ra das Universidades Comunitárias (Abruc),7 que se organizou em âmbito
nacional apenas em 1995. A defesa deste modelo solidário, na expressão
de um dos dirigentes entrevistados para o presente estudo (Dirigente C),
como parte do sistema de educação superior do País, atualmente, encon-
tra-se em uma fase difícil e perigosa: a de

[...] não conseguirmos passar a educação que nós entendíamos como


princípio, como atividade-fim, do modelo comunitário. A preocupação
com os problemas de autofinanciamento parece estar se sobrepondo ao
de educar, em um Estado que hoje tem uma expansão desordenada no
ensino superior.

Outro dirigente da mesma instituição (Dirigente D) explicita que

[...] há um espaço sobre as comunitárias que não está tendo a compreen-


são e a valorização que mereceria ter, porque elas, há mais de 20 ou 30
anos, ocuparam um espaço deixado (de propósito ou de forma involuntária)
pelo Estado [...] estas universidades desempenharam papéis públicos, aten-
dendo a diversos públicos e atenderam bem.

O caráter associativo dessas instituições representa, sem dúvida,


uma das fortalezas das comunitárias do Sul. Entretanto, o momento

7
A Abruc é uma associação civil que reúne, em 2006, mais de 50 instituições de ensino superior entre universidades e
centros universitários comunitários. Foi fundada em janeiro de 1995, com sede em Brasília. “O objetivo da Abruc é promo-
ver, consolidar e defender os conceitos de universidade e centro universitário comunitários. A associação tem tido atuação
destacada no cenário educacional brasileiro, participando de diversos fóruns oficiais e organizando eventos e seminários em
todo o País. As associadas à Abruc assumem-se como entidades sem fins lucrativos, voltadas prioritariamente para ações
educacionais de caráter social. Aplicam integralmente, os recursos gerados ou recebidos, em suas atividades de ensino,
pesquisa extensão. Não pertencem a famílias ou a indivíduos isolados; podem ser leigas ou confessionais. Assim, são
mantidas por comunidades, igrejas, congregações. Com esse perfil, elas destinam parte de sua receita a atividades de
educação e assistência social, como bolsas de estudo, atendimento gratuito em hospitais, clínicas odontológicas ou psico-
lógicas, assistência jurídica, entre outras. Essa forma de atuar é o fundamento principal do projeto educacional das institui-
ções filiadas à Abruc, na medida em que estabelece um compromisso social dos seus estudantes e professores com a
comunidade onde estão inseridas. As universidades comunitárias entendem que as atividades sociais não podem ser mono-
pólio do Estado, devendo ser cada vez mais democratizadas com a participação da sociedade civil, através de instituições
sérias e competentes" (sic) (Longhi, 2003).

194
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

presente, pela ação dos processos de econômicos, concretizados pelas


inúmeras empresas educacionais instaladas na região das comunitárias,
tem abafado essa especificidade das universidades, fazendo-as
redimensionarem sua expansão e sua própria organização. No dizer de
dirigente de outra IES (Dirigente A), “[...] o crescimento do oferecimento
de vagas das IES estatais, por um lado, e, por outro, o crescimento de
pequenas instituições de ensino superior presenciais ou a distância, está
produzindo um recuo no número de alunos das nossas instituições como
um todo". O mesmo dirigente considera que, nos tempos atuais, o Comung
poderia ter outra função: “[...] tornar-se uma rede de cooperação econô-
mica e institucional".
O modelo das comunitárias continua presente no cenário gaú-
cho, entretanto, poderia ter sido mais bem entendido no conjunto do
sistema da educação superior e ter sido mais valorizado como uma
alternativa viável e complementar às públicas federais. É de se questi-
onar se seria possível a universidade comunitária representar um esfor-
ço contra-hegemônico (à globalização econômica da educação superi-
or), como Santos (2005) preconiza. O dirigente de outra instituição
(Dirigente B) também enfatiza que “[...] o nosso modelo (o comunitá-
rio), é uma alternativa, nós temos qualidade, nós temos capilaridade e
nós custamos mais barato para o governo". Segundo outro dirigente
(Dirigente E),

[...] estamos iniciando um processo de banalização da educação superior e


talvez se instale a mediocridade ao invés de se instalar o diálogo necessário
entre a pesquisa, o ensino e a extensão. [...] há uma tendência ao individu-
alismo, ao egocentrismo; isso é perigoso impede de se estabelecer a solida-
riedade acadêmica, científica, tecnológica.

Em 2006 o Comung encontra-se ampliado e já congrega duas gran-


des universidades confessionais. Em que pese essas serem membros da
Abruc, descaracteriza-se a interpretação original do Comung, de reunir
pequenas IES, para se fortalecerem nas lutas comuns. Embora as opiniões
dos dirigentes entrevistados não sejam unânimes quanto a esta nova con-
figuração, há expectativas de que o Comung retome as questões essenci-
ais que lhe deram vida.

195
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Sistema de educação superior,


pós-graduação e grupos de pesquisa no RS:
o segmento da universidade comunitária

Assim como é difícil estabelecer delimitações precisas entre as par-


tes e o todo, pois o todo se edifica com as partes e estas se imbricam no
todo, é difícil discutir, em separado, as universidades comunitárias no RS e
no Brasil. Aquelas fazem parte destas e, ao fazê-lo, não apenas recebem
sua identidade como constroem a própria identidade do que vem sendo
entendida como a universidade comunitária brasileira.
No período de 1996-2004 o Brasil apresentou taxa de crescimento
de 118,3% no número de IES, pulando de 922 instituições para 2.013.
Somente de 1999 a 2004 o número de IES atingiu o crescimento de apro-
ximadamente 55% (Inep, 2006). O setor público, no período 1996-2004,
apresentou a taxa de crescimento de 6,2 e no setor privado a taxa foi de
151,6, aqui incluídas as particulares e as comunitárias. Na categoria de
comunitárias foram incluídas as confessionais/filantrópicas, segundo a
orientação do referido instituto. A partir de 1997, um ano após a aprova-
ção da LDB (Lei nº 9.394/96), os centros universitários surgiram no cenário
com 13 IES nessa categoria, atingindo o número de 104 instituições em
2004. No Rio Grande do Sul, em 1996, havia 43 IES, chegando a 83 insti-
tuições (englobando todas as categorias) no ano de 2004.
Vale mencionar que a diversificação de IES, no Brasil, em 2004, é
marcada pela presença do segmento de comunitárias nas diferentes organi-
zações acadêmicas: universidades (60), centros universitários (44), faculda-
des integradas (19), faculdades, escolas e institutos (263), centros de educa-
ção tecnológica e faculdades de tecnologia (2). A diversificação tem um
caráter promissor. Não é de estranhar que ela tenha presença em diferentes
organizações acadêmicas (universidades, faculdade, centros universitários),
em diferentes cursos de formação, sejam de pós-graduação (doutorados e
mestrados acadêmicos e mestrados profissionais) ou de perfis de graduação
acompanhados de grande variedade de diplomas e certificados (seqüenciais
e regulares), sem esquecer as modalidades de oferecimento (presenciais e a
distância). Tais expressões de diversidade são orientadas por políticas do
Estado em consonância com princípios que têm norteado a educação supe-
rior brasileira: a diversificação, a expansão e a democratização. É inegável,

196
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

no entanto que essa mesma diversificação não reflita, necessariamente, be-


nefícios no que tange à aproximação do paradigma do “conhecimento pru-
dente para uma vida decente (conhecimento-emancipação)".
Bittar (2006) chama a atenção para o fato de que até 2002 as
estatísticas oficiais do MEC/Inep apresentavam os dados do setor privado
como um todo, sem distinguir as com finalidades lucrativas daquelas sem
finalidades lucrativas. Se bem que distintas das particulares propriamente
ditas, no âmbito do Censo, a partir de 2004, na categoria de comunitárias
estão sendo incluídas todas as instituições confessionais e as filantrópicas,
quando nem sempre isso é verdadeiro. A Abruc, como entidade associativa
e representativa do segmento comunitário é cuidadosa ao certificar como
tal, mesmo quando a IES apresenta a confessionalidade no seu estatuto
legal. É o caso de instituições que na prática não pertencem a uma ordem
religiosa ou religião, mas sim a grupos de associados de uma dada locali-
dade, cujos objetivos são ligados diretamente ao mercado do conheci-
mento e cuja filosofia não afina e, muitas vezes nem sequer se aproxima
das comunitárias ligadas à Abruc. Caso semelhante ocorre com IES que,
mesmo tendo orientação empresarial/comercial, foram agraciadas com o
certificado de filantrópicas.
A ambigüidade classificatória que, em certo sentido, é endossada
pelas esferas oficiais, fragiliza as instituições comunitárias associadas à
Abruc. Em 2006, das 51 instituições associadas à Abruc, 14 são centros
universitários (8 não-confessionais e 6 confessionais); 37 são universida-
des (20 confessionais e 17 não-confessionais). As IES filiadas à Abruc
estão localizadas na Região Sul (20), na Região Sudeste (25, das quais 11
confessionais), na Região Nordeste (3) e na Centro-Oeste (3).
No Rio Grande do Sul estão localizadas 14 dessas instituições; 4
delas são centros universitários (dos quais 2 são confessionais e 2 não-
confessionais), e, 10 são universidades (das quais 7 não-confessionais e 3
confessionais). Destas 14 IES, 12 têm presença fora de sede por meio de
campi e/ou núcleos e/ou unidades e/ou até mesmos cursos.
A Tabela 1, além de ressaltar a fragilidade oriunda da ambigüidade
classificatória, reveladora de uma ambigüidade conceitual, mostra que das
4.163.733 matrículas de educação superior nas IES, no Brasil, segundo o
Censo ES 2004 (INEP, 2006), 1.388.511 (33,34%) são matrículas das IES
comunitárias/confessionais/filantrópicas.

197
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Tabela 1 – Número de IES comunitárias, confessionais


e filantrópicas e matrículas, 2004
Número de instituições Número de matrículas MEC/Inep
Centros Outras
Total
Universidades
Local universitários IES Centros
Total Universidades
MEC/ MEC/ MEC/ MEC/ universitários
Abruc* Abruc* Abruc*
Inep Inep Inep Inep
Brasil 388 51 60 37 44 14 284 1.388.511 939.491 261.914
RS 39 14 11 10 5 4 23 252.205 207.098 34.139
Fonte: Censo da Educação Superior Inep/MEC, 2004. Abruc.
* Observação: Dados da Abruc relativos a novembro de 2006.

Tais dados tornam-se preocupantes e indicativos de mais um en-


fraquecimento quando se tem presente o depoimento (Dirigente B) sobre
vagas ociosas e matrículas que não se completam e a perda do número de
alunos pela inadimplência; isso tudo repercute nos planos de carreira dos
docentes que enfrentam dificuldades em sua sustentação.
Nesse quadro de diversificação as fragilidades e os pontos que for-
talecem a universidade comunitária no RS, convergem para três eixos: da
lógica que redireciona o olhar, da pós-graduação como condição e dos
grupos de pesquisa como uma política.

A lógica que redireciona o olhar

O panorama atual da acelerada expansão do ensino superior privado


(Censo ES 2004), na lógica da globalização tem forçado as universidades
comunitárias a reverem suas formas de divulgação e a intensificarem suas
estratégias de marketing. A presença de inúmeras empresas privadas de ensino
superior, com cursos de vários níveis e áreas, presenciais ou a distância (auto-
rizados ou não, pelo MEC), brotados de um momento para outro, têm sido
constante nas principais cidades do Estado do RS, onde anteriormente, ape-
nas existiam as comunitárias. Isso está produzindo um recuo no número de
alunos das instituições, como um todo e esse é um dos primeiros problemas:

[...]; estamos muito preocupados com essa formação de professores que é,


com certeza, a mais atingida, no sentido de ter uma multiplicação de ofer-
ta, e não haver nenhum tipo de controle de qualidade [...]; qual é o meca-
nismo que nós vamos ter para saber qual tipo de professor nós estamos
formando? (Dirigente A).

198
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

Não da mesma forma, a presença do Estado, até pouco tempo


inexistente nas regiões de atuação das comunitárias no RS, por meio do
estabelecimento do ensino público, estão forçando as comunitárias senão
a recuar, obrigatoriamente, a redimensionar as áreas em que a oferta pú-
blica sombreia as propostas institucionais as quais, sempre dependeram
das mensalidades dos alunos. Essa presença “compete com nossas insti-
tuições" (Dirigente B).
A presença do ensino público estatal concretizou-se na criação da
Universidade Federal do Pampa (Unipampa), na região em que se encon-
tram diversos campi da Universidade da Região de Campanha (Urcamp),
pela expansão por meio da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
de cursos superiores na região de Frederico Westphalen onde se situam os
campi da Universidade Regional Integrada (URI) e da Universidade de Pas-
so Fundo (UPF) – Palmeira das Missões – e da criação da Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), com campi espalhados em diversas
regiões do Estado.
As iniciativas iniciais da Uergs, sustentadas por uma política de
integração, com base em princípios de não-duplicação de esforços, procura-
ram uma articulação com as comunitárias existentes. Havia, implicitamente
nesta busca de integração, o reconhecimento pela trajetória das comunitá-
rias que haviam definido sua função de públicas não-estatais ao “preencher
os vazios do Estado" (Longhi, 2003), por longos anos, em torno de meio
século. Ao exerceram o papel de defesa da educação como direito, as comu-
nitárias fizeram, de fato as vezes do Estado. O quadro atual, no entanto,
desconfigura essa política e as comunitárias como públicas não-estatais
parecem ser vistas pelo Estado quase como empresariais.
Para o Dirigente A “[...] várias questões estão incidindo em nossas
universidades: o fenômeno da globalização, [...] o nível de desenvolvi-
mento das comunidades e uma acomodação [...] do sistema de ensino
superior do Brasil". Explicita, ainda, mostrando que tais pontos levam ao
reposicionamento das instituições: “[...] de uma agência do processo de
desenvolvimento para mais um integrante do processo de desenvolvimen-
to". E em relação à globalização o desafio é como funcionar em redes,
integrar-se, com outras iniciativas, o que segundo o Dirigente cria uma
reacomodação de todo o sistema, no desenvolvimento regional. Mudar,
para o Dirigente A, mais do que alterar o núcleo, é qualificar recursos

199
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

humanos para um pensamento crítico: “[...] temos de redimensionar o


nosso tamanho, priorizar atividades, e qualificar as nossas atividades para
o mercado de alta concorrência".
O Dirigente C é pontual ao afirmar que

[...] alguns princípios têm de ser trazidos novamente à tona, revigorando-


os [...] são os princípios da ética e da co-responsabilidade, com esses dois
princípios o consórcio sobreviverá, e também fará jus frente aos problemas
que enfrenta o ensino superior não só no RS, mas como segmento (sic).

A lógica que redireciona o olhar é a de adaptar-se, de sobreviver na


ambivalência das pressões de um mundo globalizante que exige respostas
rápidas. A revisão estratégica fortalece as comunitárias para enfrentar a
concorrência em um mundo de acirrada competição ao mesmo tempo as
fragiliza pela desfiguração dos conceitos originais.

A pós-graduação como condição

A pós-graduação é reconhecida como fator marcante na diversifi-


cação da educação superior, em diferentes fases das políticas públicas
brasileiras: 1) a fase da expansão das instituições de ensino superior e
criação de cursos de pós-graduação (década de 1970); 2) a fase da expan-
são dos cursos de pós-graduação (mestrado, doutorado e pós-doutorado)
no movimento de pressões por titulação (década de 1980 e meados da
década de 1990); e 3) a terceira fase de expansão do sistema de educação
por meio da diversificação de cursos e programas. Essas fases analisadas
por Franco e Morosini (2001), expressam, segundo as autoras, a coexis-
tência de lógicas na perspectiva da homogeneização e da autonomia.
É inegável que nos últimos anos houve um crescimento significati-
vo dos cursos de pós-graduação no País, isto é, aqueles que são oferecidos
para os candidatos diplomados em cursos de graduação plena, considera-
dos indispensáveis para a formação e qualificação dos quadros de pessoal
do ensino superior. A pós-graduação stricto sensu, que começou a ser
implantada no Brasil a partir dos anos 1960, inspirada no modelo norte-
americano, teve como mote o fortalecimento do potencial técnico-cientí-
fico e a formação de quadros de pessoal. Na legislação pertinente estavam

200
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

claros os objetivos de formar professorado competente para atender à


expansão quantitativa do ensino superior, garantindo, ao mesmo tempo,
a elevação do nível de qualidade; estimular o desenvolvimento da pesqui-
sa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores e garantir
o treinamento eficaz de técnicos e trabalhadores intelectuais do mais alto
nível diante das necessidades do desenvolvimento nacional. Foi funda-
mental para o desenvolvimento da pós-graduação e sua institucionalização,
a implantação dos Planos Nacionais de Pós-Graduação (Franco, 2003).
Em 2000 o Brasil contava com 1.453 cursos de mestrado acadêmi-
co, 37 cursos de mestrado profissional e 821 cursos de doutorado,
totalizando 2.311 cursos. Em 2006, este número elevou-se para 3.572
cursos (sendo 2.157 de mestrado acadêmico, 187 de mestrado profissional
e 1.228 de doutorado). A verdade é que, nos últimos anos, as universida-
des, inclusive as comunitárias, têm buscado a criação de cursos de pós-
graduação. Em 2002, as universidades comunitárias mantinham próximo
a uma centena e meia de cursos de PG stricto sensu. Em 2004, segundo a
Abruc esse número eleva-se para mais de 250. O crescimento verificado
não surpreende, considerando a própria natureza e caráter das instituições
comunitárias que têm imbricado o sentido de serviço à comunidade, in-
clusive por meio da pesquisa. Depoimentos de dirigentes assinalam este
aspecto como uma das forças da instituição comunitária que, aliada ao
caráter regional, comporia o quadro de articulação da pesquisa/ensino/
extensão. Colocações semelhantes foram encontradas em dois estudos
anteriores, de Longhi e Rocha (2005) e de Bittar (1999) que mostram a
pós-graduação e a pesquisa com a finalidade social e identidade desse
tipo de instituição.
Os pontos levantados adentram o sentido de pós-graduação como
condição, pois reflete o embasamento, a sustentação da ação justificada
não só como estratégica, mas como fundante da ação. É a pós-graduação
organizada, contínua, reconhecida na instituição e fora dela modelada em
uma visão crítica e ancorada nas demandas regionais.
O estudo desenvolvido por Longhi e Rocha (2005) sobre a pós-
graduação nas dez IES ligadas ao Comung (não constaram PUCRS, Uni-
versidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, Centro Universitário
Franciscano – Unifra, e Centro Universitário La Salle – Unilasalle), mostrou
o oferecimento, em 2005, de 26 cursos de mestrado e 4 de doutorado.

201
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Dois pontos destacam-se nos resultados do estudo: o primeiro é o da


distribuição dos cursos em diferentes áreas de conhecimento e o segundo
é o da forte inserção regional, mostrando que a escolha das áreas atendeu
a demandas locais/regionais e às suas condições socioeconômicas, refor-
çando, portanto, as vias para o desenvolvimento regional.
Na perspectiva das fragilidades e forças, pode-se dizer que o referi-
do estudo desfez dois mitos ligados às IES, aqui não incluídas as grandes
públicas federais: o primeiro é o de que a pós-graduação no interior do RS
se limita às áreas de formação de professores e o segundo é o de que a
academia e seus campos teóricos travam diálogo de “ouvidos moucos"
com o desenvolvimento regional. As instituições comunitárias do RS não
só atendem a várias áreas de conhecimento nos seus cursos de pós-gradu-
ação, como tais cursos são diretamente ligados às necessidades regionais.
Talvez essa seja uma das maiores forças do segmento comunitário. No Rio
Grande do Sul as grandes IES confessionais comunitárias como a PUCRS e
a Unisinos, certamente pelos inúmeros cursos de pós-graduação que ofe-
recem incrementam a diversidade de oferecimento. A inserção dessas uni-
versidades não é só local, mas bem mais ampla, fruto de sua complexidade
crescente e tamanho. Ela se dá com a comunidade em um sentido amplo
e cujos laços revelam centros de pesquisa avançada, em conjunto com
empresas, como da área de informática. É o caminho da articulação pelo
desenvolvimento de pólos tecnológicos. É confortante saber que, além da
relação universidades-empresas, as IES mencionadas cultivam a inserção
na comunidade imediata, como a instalação de campi aproximados tal
qual o da Vila Fátima, nas imediações da PUCRS.
A pós-graduação e a pesquisa como diferencial diante das novas
instituições que estão se instalando no Estado, com ausência da pesquisa,
perpassou de modo explícito ou implícito a fala dos dirigentes. O Dirigente
A claramente considera a pesquisa e a pós-graduação stricto sensu como
políticas fortes da instituição que passam a ser um diferencial. A assertiva
de outro dirigente é de que

[...] devemos nos legitimar à medida que a pesquisa for se estabilizando


como a atividade fundamental; hoje temos cinco mestrados e doutorados
e isso com o grande recurso que investimos em pesquisa em nossa univer-
sidade e com um plano de carreira que beneficia as pessoas para chegar ao
cargo de professor titular por meio de pesquisas (Dirigente B).

202
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

No contexto da pós-graduação e da pesquisa o Dirigente C lembra


que, na sociedade brasileira, uma das questões críticas “[...] é a ética,
problema que a universidade vai ter de enfrentar, se quiser ser reconhecida
como uma instituição de referência, que prima pela criatividade, qualida-
de e ação solidária".
Estreitamente ligado às colocações anteriores encontra-se o tercei-
ro eixo para o qual convergem as fragilidades e forças da universidade
comunitária no RS.

A pesquisa: os grupos como política

Em que pese o fato de que as universidades possam contar com


grupos de pesquisa emergentes, no contexto atual das políticas de C&T
brasileira é de importância primordial a inclusão no Diretório de Grupos de
Pesquisa no Brasil (CNPq/MCT), porta de entrada para a legitimação de
cursos e de pesquisadores na comunidade científica nacional. O DGPB é
uma base de dados desenvolvida no CNPq desde 1992, que contém infor-
mações sobre os grupos de pesquisa em atividade no País, tendo um cará-
ter censitário. Os grupos de pesquisa inventariados estão localizados em
universidades, IES isoladas, institutos de pesquisa científica, institutos
tecnológicos, laboratórios e organizações não-governamentais.
Com exceção de um centro universitário e de uma universidade
não-confessional, as comunitárias gaúchas apresentam grupos de pesqui-
sa certificados pelo CNPq, inscritos no DGPB totalizando 810 grupos e
2.339 linhas de pesquisa. Até mesmo uma das universidades que não dis-
põe de curso de pós-graduação stricto sensu revela a presença de um
significativo número de grupos. Contatos informais com professores das
duas instituições que não possuem grupos certificados mostram que ativi-
dades de pesquisa existem e os grupos emergentes estão em busca de
consolidação. Parece existir ampla consciência da ligação entre pesquisa e
a raiz identitária das instituições desse segmento. Uma das instituições
que não oferece curso de pós-graduação stricto sensu, mas que apresenta
um bom número de grupos de pesquisa, esclarece quais marcas da
transversalidade da instituição a mostram como genuinamente comunitá-
ria, entre elas: “forte vinculação com a extensão comunitária e pesquisa e
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

desenvolvimento tecnológico; princípio da integração entre ensino, pesqui-


sa e extensão; forte integração da cultura local, regional e nacional; ativida-
des acadêmicas voltadas aos serviços comunitários" (Moreira, 2004, p. 7).
As universidades não-confessionais têm 371 GP e 1.103 linhas de
investigação. Já as confessionais dispõem de 396 grupos que operam em
1.116 linhas de pesquisa. Apesar dos números guardarem certa proximi-
dade, tal montante decorre da participação das duas grandes confessionais
comunitárias a PUC-RS (247 GP e 743 LP) e a Unisinos (110 GP e 233
LP). Somente a PUC-RS contribui com mais de 30% dos grupos de pes-
quisa das comunitárias, mostrando a vinculação entre pesquisa/PG/in-
serção regional.
No que diz respeito à pesquisa e à pós-graduação, para o Dirigente A

[...] o grande mérito da instituição é colocar os projetos que deram certo ...
a serviço do desenvolvimento da região o que inclui curso criado com o
setor produtivo local que proporcionou por um lado a qualificação do
setor produtivo, e por outro novas iniciativas de ensino na universidade.
Menciona como grande preocupação, [...] a criação do pólo tecnológico
uma espécie de incubadora de empresas de alta tecnologia.

É nítida, pois sua preocupação com a qualificação crítica, mas, tam-


bém, com a necessidade de desenvolvimento regional, assentado no
empreendedorismo. O atendimento às necessidades regionais aflora na dis-
cussão sobre pesquisa. O Dirigente E chega a registrar que a pesquisa na sua
instituição se caracteriza por ser voltada para a necessidade regional:

[...] dos 200 projetos de pesquisa em andamento, 90% estão voltados, para
problemas regionais e as experiências de ciência e tecnologia, pesquisa e
ensino, voltados principalmente aos pólos de desenvolvimento regional,
onde se busca desenvolver alguma nova tecnologia, em função das neces-
sidades na região.

Longhi e Franco (2006) alertam para a responsabilidade social em


nome da qual são exigidas respostas imediatas das instituições universitá-
rias, nem sempre refletindo compromissos com as necessidades sociais
mais amplas da sociedade.

Ao mesmo tempo em que lhe é imputado o alto desenvolvimento científi-


co-tecnológico, sobra-lhe a crítica em torno das conseqüências maléficas
do mau uso dos recursos de toda ordem, mas, especialmente, dos recursos
naturais e dos efeitos perversos do próprio conhecimento produzido e de
sua crescente mercantilização (Ibidem, p. 9).

204
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

O Dirigente C é cristalino ao apontar os conflitos da universidade


comunitária:

[...] ela é da comunidade e ela é de todo mundo e ela não é de ninguém,


porém, na sua vivência interna, os grupos que assumem a direção, a admi-
nistração da universidade, muitas vezes se colocam como donos de uma
grande empresa, e administram como se fosse uma grande empresa... nós
temos a participação, é verdade, de bispos, prefeitos, secretários, que repre-
sentam o pensamento da comunidade, mas na sua essência, na sua vivência
interna, ela é muito complicada, ela é paradoxal, ela é contraditória.

O Dirigente F ressalta o trabalho com diferentes grupos, o que


potencializa as ações e relações com a comunidade “[...] porque é muito
difícil fazer atividade que não seja ensino, fazer atividade de pesquisa e
extensão, contando com o recurso dos nossos alunos. Esse é o grande
limitador". Para o Dirigente H o ponto a ser salientado é o de que a
universidade precisa avançar mais em relação à cooperação interinstitucional
e internacional. “Ela não precisa apenas receber dos outros; ela já tem
condições de oferecer convênios, pondo à disposição de IES nacionais e de
outros países sua capacidade de conhecimento produzido".
Neste entorno discursivo insere-se o ponto forte da existência da
pesquisa no âmago da identidade comunitária e a fragilidade de vinculá-
la aos ditames estabelecidos pelas demandas de mercado quando se dis-
tanciam do “conhecimento prudente para uma vida decente" (Santos,
2004b). É também essa perspectiva de entendimento da idéia que perpas-
sa os três eixos de fragilidades e forças, ou seja, a da extensão como
fundante da identidade do segmento comunitário.

Fragilidades e forças:
encaminhamentos conclusivos

O presente trabalho projetou-se na busca investigativa de como as


instituições comunitárias do RS se encontram hoje, no contexto complexo e
conturbado de processos de globalização e no contexto da educação brasi-
leira mais recente, período que sucede a LDB de 1988, trazendo à tona,
pontos fortes e fragilidades do segmento focalizado. A primeira constatação
de fragilidade que convive hoje com as universidades comunitárias do RS,

205
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

manifesta-se pelo mais visível: as vagas ociosas, as matrículas que não se


completam, a inadimplência progressiva, a perda do número de alunos que
começam a engrossar as salas ou os possíveis espaços virtuais das demais
instituições que oferecem cursos de ensino superior na região em que ou-
trora eram exclusivas. Pode-se dizer que isso se caracteriza tanto pela ambi-
güidade como pela perda de espaços.
O espaço ainda em construção das comunitárias (Longhi, 1998),
encontra-se perpassado por diferentes identidades e eivado de tensões
que se manifestam tanto pela caracterização das confessionais com os
mesmos qualificativos das comunitárias, acrescidas das especificidades das
primeiras. A recente inclusão no grupo do Comung da PUC-RS e Unisinos,
IES reconhecidas pela seriedade no ensino e na pesquisa, certamente pro-
vocarão discussões em torno da ambigüidade conceitual. Igualmente há
ambigüidade de espaços e territórios quando se examina a presença do
ensino a distância, não apenas nos espaços das comunitárias, mas que
transcende qualquer fronteira. Ao mesmo tempo em que fragiliza contor-
nos, fortalece presenças. Não existem mais territórios delimitados.
É necessário reconhecer, em uma introspecção menos superficial,
que tal fragilidade se dá também devido à perda de espaços de integração
com a comunidade à qual sempre foi garantia de maior legitimidade das
comunitárias. Segundo o Dirigente B,

[...] a nossa pertinência, a nossa integração com a comunidade, a nossa


legitimidade perante a comunidade está em cheque nesse momento. [...] as
pessoas se afastam da extensão, também porque muitos esperam ganhar
pagamento das atividades externas [...] é a lógica de uma sociedade extre-
mamente elitizada.

A expansão de oferta do ensino superior sem controle de qualidade,


sem regulamentação mais adequada sobre a diversificação, criou um quadro
bastante problemático na realidade educacional brasileira, pela presença de
uma ênfase acentuadamente mercadológica, que acirra a competição e a
disputa em relação aos serviços da educação superior, nivelando modelos
como os comunitários àqueles exclusivamente empresariais.
Essa fragilização é nutrida pela imposição dos processos econômi-
cos em outras áreas da vida social como a da educação, em escala global,
sustentados pelo avanço da informática e das novas tecnologias da infor-
mação e comunicação (TICs) (Santos, 2005). Em conseqüência ocorre uma

206
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

fragilização social do conhecimento; há um sentimento de que a universi-


dade comunitária não está conseguindo cumprir seu compromisso social
de melhorar as condições de vida da população. De fato, ela não está
garantindo a permanência em seus bancos, dos menos favorecidos, devido
ao esgotamento da capacidade de pagamento das mensalidades, denunci-
ado por Amaral (2006).
Ela está lutando para se manter enquanto instituição. É a agudização
da crise institucional e de legitimidade da universidade preconizada por
Santos (1994 e 2004b), há mais de dez anos. Assim, está encontrando
dificuldades em realizar seu projeto de extensão, com outros professores
além do grupo reduzido que o entendem em sua proposta original: o
compromisso com a comunidade, hoje acrescido de um novo compromis-
so, com o desenvolvimento, entendido como sustentável.
Cabe, enfim, destacar que a educação superior como um todo (e
não apenas o modelo comunitário), se depara com a emergência e com a
agudização de problemas naturais e sociais que decorrem do paradigma
epistemológico no qual a ciência é entendida como força produtiva cen-
tral. Esta redução tem gerado degradação ambiental e humana em con-
fronto com necessidades urgentes de maior conhecimento sobre o social.
A educação superior confronta-se, principalmente, com as atuais caracte-
rísticas dos processos de globalização, com o crescimento da importância
atribuída ao mercado e mudanças no mundo do trabalho. Vê-se envolvida
com a atribuição dessa crise (oriunda do modelo científico, econômico e
social contemporâneo), ao Estado, exigindo que esse se redimensione (para
menos), aumentando os encargos da sociedade civil e deixando que essa
assuma, por meio da invenção de novas formas de organização, as fun-
ções de bem-estar social que são próprias da esfera pública.
As fragilidades e os pontos que fortalecem a universidade comuni-
tária no RS, convergem para três eixos: da lógica que redireciona o olhar,
da pós-graduação como condição e dos grupos de pesquisa como uma
política
No que se refere à lógica que redireciona o olhar, pode-se dizer que
todos os dirigentes de algum modo colocam a necessidade de mudar, de
adaptar-se para sobreviver, mostrando as concessões que fazem para lo-
grar sua permanência em cena. Eles têm consciência da lógica de mercado
que embasa decisões e têm ciência de que se a adaptação as revigora, por

207
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

um lado, por outro enfraquece na concepção comunitária. Tal constatação


mostra que fragilidades e forças podem ser duas faces de uma mesma
moeda.
No eixo da pós-graduação como condição é de se mencionar que
instituições marcadas pela perda de espaço (cursos, disciplinas e alunos),
devido à invasão de instituições particulares e instalação de públicas, hoje
oscilam entre o oferecimento de umas poucas áreas de conhecimento e de
cursos de pós-graduação. O avanço de cursos de especialização ligados a
grupos exógenos, para instituições de pequeno e médio porte, em regiões
antes atendidas somente pelas universidades comunitárias é mais um exem-
plo de perda de espaço destas universidades, que passam a ver na pós-
graduação stricto sensu a condição alternativa e diferenciadora que acena
para a sua manutenção e sobrevivência.
O terceiro e último dos eixos, o da convergência dos grupos de
pesquisa como política, revela-se no fato de que a maior parte das univer-
sidades comunitárias do RS, confessionais e não-confessionais possui gru-
pos de pesquisa certificados pelo CNPq/DGPB e tem linhas de pesquisa
definidas. É voz comum entre os dirigentes apontarem para a importância
de inserção na comunidade e na região, inclusive em uma abordagem
empreendedora e orientada para o desenvolvimento científico tecnológico.
Os dirigentes, no entanto, revelam a ambigüidade com que se defrontam:
reconhecem a importância do desenvolvimento técnico-científico e o uso
de estratégias que às vezes se aproximam da universidade do mercado; de
outro eles sinalizam para uma proposta assentada na crítica e na busca de
um conhecimento emancipatório.
É preocupante a fragilização social do conhecimento-ação perse-
guido pelas universidades comunitárias desde sua trajetória inicial. Essa
fragilidade será só das comunitárias ou da própria educação superior, que
fica debilitada com a desenfreada expansão desse nível de ensino nesse
tempo de processos de globalização? "Os problemas da Universidade não
dizem respeito somente a ela, são problemas de toda a sociedade" (Dias
Sobrinho, 2005). Tampouco, diz o autor, serão eles resolvidos com medi-
das apenas internas ou externas. Será preciso combinar as análises, será
preciso examinar por vários ângulos, instituições e ações.
Foi tal pensamento que norteou o processo de lançar mais luzes
sobre o que amalgamou a proposta de universidade comunitária, as

208
A Universidade Comunitária:
forças e fragilidades

fragilidades e forças que sobre ela incidem, uma década pós-LDB 96,
no entorno de suas ambigüidades políticas e práticas, dos desafios da
educação superior no bojo do mercantilismo dominante e das possibi-
lidades de conhecimento sistematizado e produzido pela pós-gradua-
ção para enfrentar os desafios da educação superior e atender ao com-
promisso histórico-social deste segmento de IES.

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212
C) Formação
10
As mudanças no mundo do trabalho
e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB:
o currículo em questão
Arlete Camargo*
Olgaíses Maués**

* Doutora em Educação (UFMG); professora associada da UFPA; e-mail: acamargo@ufpa.br.


** Doutora em Sciences de L'éducation (Université Des Sciences Et Technologies de Lille, França); professora associada da
UFPA. e-mail: olgaises@uol.com.br.
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

Este artigo tem como objetivo analisar as mudanças no processo e


na organização do trabalho e as relações dessas mudanças com as políti-
cas de currículo e formação de professores, estabelecidas pela Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), demonstrando como
esse processo ocorreu nesses dez anos da promulgação da referida lei.
As mudanças que ocorreram na estrutura da sociedade, principal-
mente no processo de trabalho, com a introdução de novas tecnologias
e com o esgotamento do modelo taylorista/fordista, que dominou o
mundo por um século, exigiram a formação de outro trabalhador, mais
flexível, eficiente e polivalente. A escola que preparou o trabalhador para
um processo de trabalho assentado nesse paradigma industrial, caracte-
rizado pela rígida separação entre a concepção do trabalho e a execução
padronizada das tarefas, deixou de atender às demandas de uma nova
etapa do capital. A escola foi criticada e responsabilizada pelo insucesso
escolar, pelo despreparo dos alunos ao término dos estudos, pela
desvinculação dos conteúdos ensinados das novas demandas oriundas
do mundo do trabalho. Da mesma forma, os professores sofreram pro-
fundas críticas, havendo uma espécie de responsabilização dos mesmos

217
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

pelo “fracasso" escolar. A formação desses profissionais passou a ser


vista como muito "teórica", desvinculada de uma prática efetiva e afas-
tada das demandas das escolas e da sociedade.
Essas análises realizadas por alguns organismos internacionais (Ban-
que Mondiale, 1995) evidenciam a necessidade de uma reforma no siste-
ma educacional, visando qualificar melhor as pessoas para enfrentarem
um mundo mais competitivo, mais afinado com o mercado, um mundo
globalizado, ou seja, um processo socioistórico que apresenta dimensões
ideológicas, econômicas e políticas e representa uma nova etapa do capi-
talismo mundial.
É nesse contexto de globalização e de neoliberalismo, este na quali-
dade de um construto ideológico do primeiro, que a educação é, novamen-
te, vista como uma forma eficiente de enfrentar essas mudanças que estão
se processando na base, na estrutura social. Nesse sentido, a formação do
profissional da educação passa a ser alvo preferencial das políticas educaci-
onais e o currículo, sendo uma das formas de materialização das diferentes
concepções de educação e formação, também sofre reestruturações.

O mundo em transformação e a educação

As mudanças ocorridas no mundo do trabalho, nas duas últimas


décadas do século XX e no início do novo milênio, têm alterado o proces-
so, a gestão e a organização do trabalho nas diferentes esferas da produ-
ção e da circulação de bens e serviços. Essas alterações estão ligadas à
crise vivida pelo capital, no processo cíclico inerente a natureza desse
modo de produção (Marx, 1983). Busca-se, então, como saída, a
reestruturação na base produtiva, como forma de enfrentar a crise estru-
tural da sociedade.
O processo produtivo que caracterizou o século XX, dominado pelo
binômio taylorismo-fordismo, foi a expressão do paradigma industrial
(Antunes, 2000) e representou, na realidade, um modo de vida capitalista.
Esse modelo, com o keynesianismo, formou a base econômica e política,
necessária para a expansão do capital no pós-guerra. A teoria de Keynes,
uma forma de abordar as questões políticas, sociais e econômicas do capi-
talismo pelo prisma do Estado, considerava que este deveria assumir o

218
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

papel de promotor do crescimento e do bem-estar material, além de ser


um regulador da sociedade civil.
A mudança do paradigma produtivo alterou, substancialmente, a
gestão e o processo de trabalho. O novo paradigma produtivo/tecnológico
ou informacional representou, para alguns autores, a possibilidade de uma
nova etapa do capitalismo, o que Harvey (1998) denominou de “acumula-
ção flexível", considerando como tal a flexibilidade dos processos de tra-
balho, dos mercados, dos produtos e dos padrões de consumo. Mudou o
paradigma, a forma de gerenciamento e o processo de trabalho.
Toda essa reestruturação produtiva, que começou no final do sécu-
lo XX e que ainda está em curso, tendo em vista o descompasso da assimi-
lação pelos países centrais e periféricos, exige dos países maior preocupa-
ção com o chamado “recursos humanos", que continuam à frente das
mudanças, sendo protagonistas, sujeitos e atores das mesmas.
As reformas na educação que pontuaram o mundo civilizado não
poderiam fugir da intencionalidade posta pelo novo padrão tecnológico e
das implicações dela decorrentes. Portanto, as reformas que estão sendo
realizadas podem ser analisadas como formas de arranjos que facilitem
um reordenamento social e político condizente com os novos padrões de
produção.
Nesse cenário de mudança, exige-se um novo perfil para o traba-
lhador, mais adequado às demandas da nova etapa do capital, cujas ca-
racterísticas principais são: a “desespecialização"; a polivalência e
plurifuncionalidade; a criatividade; a flexibilidade; a capacidade de resol-
ver problemas, portanto de pensar – qualidades negadas no modelo fordista.
Para tanto, era preciso “reestruturar" a formação dos trabalhadores base-
ando-a nesses novos aportes, que incluem não somente o conhecimento e
o domínio do mundo informatizado e robótico, mas também dessa nova
subjetividade que inclui uma adesão sem restrições à empresa e uma ca-
pacidade de trabalhar em equipe, de conjugar vários processos do traba-
lho, de ser flexível e capaz de encontrar soluções rápidas e baratas para as
questões que possam se apresentar no cotidiano do chão da fábrica.
As mudanças que se processaram na base material de produção
modificaram os processos de trabalho, trazendo como conseqüência uma
forte modificação na questão do emprego na sociedade. A educação, nes-
se cenário, passa a ser vista como um investimento capaz de permitir a

219
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

solução das dificuldades de desemprego pelos quais passam os países di-


tos emergentes. A solução simplificadora/redutora apresentada pelos or-
ganismos internacionais para a formação de novos quadros impõe à edu-
cação novos desafios.
Ao mesmo tempo, a educação definida nas políticas do governo
está vinculada à lógica do capital. O que interessa é a formação do homem
e da mulher que sejam capazes de se adaptar, sem delongas, a essa socie-
dade cuja lógica é condicionada pelo mercado. Passa-se, assim, a ter uma
concepção produtivista da educação, isto é, aquela que venha ao encontro
da formação do consumidor e não do(a) cidadão(ã), uma educação para a
submissão, para a domesticação e não para a libertação e a emancipação.
As novas exigências postas para a educação vêm como uma forma
de fazer frente à crise mundial do capitalismo iniciada na década de 1970,
crise essa representada, sobretudo, pela incapacidade do modelo taylorista/
fordista de dar conta das exigências de produção e consumo do mercado,
que vinha se modificando em função tanto das inovações tecnológicas
quanto da dificuldade de o Estado de Bem-Estar continuar financiando o
setor privado e de desenvolver políticas sociais de reprodução da força de
trabalho.
Sabe-se que cada etapa do desenvolvimento cria um projeto peda-
gógico que possa responder às demandas postas pela sociedade. No caso
específico, em função da crise do modelo taylorista/fordista, outro modelo
da acumulação configura-se, baseado na introdução de novas tecnologias
(informática, robótica, microeletrônica) e de novas formas de gestão. Nes-
se contexto, outro modelo foi desenhado para a educação, traduzido pelo
ordenamento jurídico em vigor, tendo à frente a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional de nº 9.394, de dezembro de 1996.
As políticas oficiais para a educação procuram responder ao mode-
lo de reprodução ampliada do capital por meio de um processo pedagógi-
co que privilegie a formação de um trabalhador “[...] com as seguintes
características: flexibilidade, versatilidade, liderança, princípios de moral,
orientação global, hora de decisão, comunicação, habilidade de discernir,
equilíbrio emocional" (Frigotto, 1995, p. 157).
É com a lógica da educação sendo uma peça fundamental à “recu-
peração" do capitalismo que surge a necessidade imediata de se rever a
formação dos profissionais da educação. Essa revisão tem como principal

220
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

objetivo adequá-la às novas exigências oriundas das mutações no mundo


do trabalho que levaram a uma reestruturação produtiva, o que implica
novas exigências postas pela sociedade ao trabalhador.
A educação que é demandada nesse contexto de reestruturação
produtiva é aquela vinculada aos interesses do mercado. Maués (2006),
citando um autor belga (Hirtt, 2004), comenta sua análise sobre a
mercantilização da educação e considera que esta seria a adaptação dos
sistemas educacionais às exigências do mundo econômico, podendo to-
mar, pelo menos, três formas: (1) adaptação dos programas, das estrutu-
ras, das práticas pedagógicas e dos métodos de gestão do sistema de
ensino às condições do mercado; (2) utilização do ensino com a finalidade
de estimular certos mercados, em particular aqueles das tecnologias de
informação e comunicação; (3) transformação do ensino em si em merca-
doria, quer dizer, a privatização, também a comercialização das relações
entre os usuários e as instituições educativas.

O profissional da educação
e as diretrizes curriculares

A educação e o profissional que nela atua ganharam peso e signi-


ficado traduzidos pelas reformas na formação explicitadas na LDB 9.394/
96 e nos demais instrumentos reguladores, tais como portarias ministeri-
ais, pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação e mesmo
em decretos-lei.
A formação dos professores tem sido considerada como uma das
etapas mais importantes das reformas educacionais, nesse contexto de
mudanças estruturais. A própria LDB dedica um capítulo especial para
esses profissionais, deixando antever, nos Artigos 61, 62 e 63, uma nova
configuração com a implantação de um novo lócus para a formação tanto
na organização acadêmica – os institutos superiores de educação – quan-
to no aspecto pedagógico – o curso normal superior.
A mudança de lócus determinada na LDB segue a concepção de
aligeiramento que devem ter os cursos de formação, na concepção dos
ideólogos do Ministério e do Banco Mundial, haja vista a declaração de
Namo de Mello a respeito do assunto:

221
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

[...] Seria inviável para o poder público financiar a preços das universidades
“nobres" a formação de seus professores de educação básica que já se
contam em mais de milhão. Com um volume de recursos muito menor, um
sistema misto de custos baixos tanto públicos quanto privados configura
um ponto estratégico de intervenção para promover melhorias sustentá-
veis a longo prazo na escolaridade básica (Mello, 1999, p. 8).

Dessa forma, seguindo a legislação em vigor (cf. Decreto nº 2.207,


de 15 de abril de 1997, revogado pelo Decreto nº 2.306, de 19 de agosto
de 1997),1 a formação poderá ser feita nos institutos superiores, que po-
dem estar dentro da universidade ou fora dela, mas, em qualquer um dos
casos, são instituições de ensino que têm exigências diferentes das postas
para as universidades, pela LDB, em relação à titulação do corpo docente
(art. 52, inciso II), à forma de contratação (tempo integral ou parcial), ao
número de cursos de graduação, entre outras que identificam os institutos
como instituições que têm como objetivo apenas o ensino.
Em um primeiro momento, no afã de cumprir o determinado pela
LDB, a indicação é de que a formação ocorra “fora" da universidade, sig-
nificando dizer: sem pesquisa, apenas com o ensino. A mudança do lócus
organizacional e pedagógico e a obrigatoriedade de elaboração das dire-
trizes curriculares – outra determinação da LDB, no artigo 53, inciso II2 –
completam a tríade que deveria dar sustentação a essa “reforma conserva-
dora" da formação dos professores.
Essa indicação na LDB, que trata da organização acadêmica, con-
tribuiu efetivamente para que a formação dos profissionais da educação
ficasse simplificada e superficial. Aproveitando essa possibilidade da exis-
tência de cursos de formação em institutos, há um crescimento vertigino-
so desses em relação às universidades. O Censo da Educação Superior de
2004 informa que, das 2.013 instituições de educação superior existentes,
169 eram universidades (únicas que têm a obrigatoriedade da
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão); 107 eram centros

1
Esse decreto foi revogado por outro nº 3.860, de 9 de julho de 2001, que no artigo 7º dizia: “[...] quanto à sua organização
acadêmica, as instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino, classificam-se em I– universidades; II – centros
universitários; e III – faculdades integradas, faculdades, institutos ou escolas superiores." Esse Decreto foi revogado pelo
Decreto nº 5.773, de maio de 2006, que determina, no artigo 12, que as instituições de educação superior serão credenciadas
em faculdades, centros universitários e universidades.
2
Esse artigo determina que as universidades devem "fixar os currículos dos seus cursos e programas, observadas as
diretrizes gerais pertinentes".

222
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

universitários (responsáveis pelo ensino e a extensão); 119 faculdades in-


tegradas; 1.474 faculdades, escolas e institutos (responsáveis apenas pelo
ensino) e 144 centros de educação tecnológica. Esses dados indicam que
73,22% das instituições de educação superior não produzem conheci-
mento, e entre essas se incluem aquelas responsáveis pela formação dos
profissionais da educação (Brasil, 2004).
Essa nova institucionalidade para a formação do profissional da
educação tem nas diretrizes curriculares, com as competências como
eixo nuclear, um novo marco regulatório, fruto dos ajustes impostos
pela agenda neoliberal. A LDB extinguiu o currículo mínimo obrigatório
em todo o País para os cursos de ensino superior e criou as Diretrizes
Curriculares Nacionais.
As Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação surgem de
forma explícita a partir da criação do Conselho Nacional3 e da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
A primeira tentativa de tradução da norma em ação ocorreu em
dezembro de 1997. Naquela ocasião, o Ministério da Educação (MEC)
divulgou o Edital nº 4, que tinha como objetivo fazer uma chamada
nacional para que os cursos elaborassem suas diretrizes seguindo algu-
mas “orientações", entre as quais se destacam: a flexibilidade, a adap-
tação ao mercado, a definição e desenvolvimento de competências e
habilidades.
Da mesma forma, o CNE aprovou, no mesmo período, um parecer4
que também visava normalizar o assunto. Esse parecer estabelece alguns
princípios, entre outros, aquele que propugnava a diminuição da duração
dos cursos de graduação; o reconhecimento de conhecimentos, habilida-
des e competências adquiridas fora do ambiente escolar, a serem
contabilizados para a integralização curricular.
Em abril de 2001, o CNE aprovou o Parecer nº 583 também como
uma orientação para as diretrizes curriculares dos cursos de graduação,
constando no voto do relator o que segue:

3
O CNE foi criado pela Lei nº 9.131, de 24/11/1995, antes, portanto, da aprovação da LDB. No artigo 9° parágrafo 2º, alínea
c fica explicitada a atribuição da Câmara de Ensino Superior de "deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo
Ministério da Educação e do Desporto, para os cursos de graduação".
4
Parecer nº 776/97 de 3/12/1997 – Orientação para as diretrizes curriculares dos cursos de graduação.

223
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

As diretrizes devem contemplar: a) perfil do formando/egresso/profissio-


nal – conforme o curso, o projeto pedagógico deverá orientar o currículo
para um perfil profissional desejado; b) competência/habilidades/atitu-
des; c) habilitações e ênfases; d) conteúdos curriculares; e) organização
dos cursos; f) estágio e atividades complementares; g) acompanhamento
e avaliação.

As diretrizes são a tradução de uma política curricular que vem no


bojo da reforma do ensino superior, que está em processo desde o início
da década de 1990. Essa política, colocada como uma forma de ajuste da
educação às reformas estruturais do Estado brasileiro, está assentada na
reestruturação produtiva e na adoção do paradigma tecnológico.
As mudanças curriculares, dentro da óptica mercantilista, tendo como
referência as políticas estabelecidas pelo Ministério da Educação visam “[...]
sintonizar a universidade com uma Nova Ordem Mundial, de modo a adap-
tar diferentes perfis profissionais às contínuas transformações do mercado
de trabalho" (Taffarel, 2001, p.148). Essas modificações no perfil dos cursos
estão impondo à graduação uma flexibilização na formação e outros
parâmetros para seu reconhecimento e credenciamento, adequando-os às
mudanças ocorridas no mundo do trabalho e adaptando-os à lógica
mercantilista que preside as políticas educacionais em vigor.

Principais impasses e tendências


no currículo de formação de professores

As novas orientações curriculares para os cursos de formação de


professores estão relacionadas com as mudanças no mundo do trabalho
citadas neste texto, o que significa que a formação dos profissionais da
educação deve atender, sobretudo, às demandas postas pelo mercado.
Essas orientações se contrapõem à concepção de que a formação é um
processo de desenvolvimento humano interligado à realidade social em
que o profissional está inserido.
Durante a aprovação das diretrizes curriculares para esses cursos é
possível identificar, além das orientações oficiais – traduzidas inicialmente
no Parecer CNE/CP n. 009/2001 e, posteriormente, na Resolução CNE/CP
nº 1, de 18 de fevereiro de 2002 –, outra posição que vem igualmente
influenciando novos desenhos curriculares em todo o Brasil, apresentada

224
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

pelos movimentos sociais organizados, em especial, pela Associação Naci-


onal pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope).
Goodson (1995, p. 20) destaca a importância de compreender as
lutas precedentes em torno da definição pré-ativa de currículo,5 que se
evidenciam no conflito existente no processo de concepção, tramitação e
aprovação das diretrizes curriculares para a formação de professores e pela
produção de um conjunto de documentos que contribuem para a forma-
ção do discurso sobre currículo da formação de professores no Brasil.
Após a aprovação da LDB, torna-se predominante a noção de “com-
petência". A justificativa para tal vincula-se à idéia de que “não basta a
um profissional ter conhecimentos sobre seu trabalho, é fundamental que
saiba mobilizar esses conhecimentos, transformando-os em ação" (Pare-
cer CNE/CP nº 9/2001, p. 29). A centralidade da pedagogia das competên-
cias que se observa nesse documento, que inclui o conjunto das reformas
educativas empreendidas, vai, paulatinamente, consolidando um modelo
educacional que tem repercutido nos diferentes níveis de ensino no Brasil.
Após a aprovação da LDB, torna-se predominante a noção de “com-
petência". A justificativa para tal vincula-se à idéia de que "não basta a um
profissional ter conhecimentos sobre seu trabalho, é fundamental que saiba
mobilizar esses conhecimentos, transformando-os em ação" (Parecer CNE/
CP nº 9/2001, p. 29). A centralidade da pedagogia das competências que se
observa nesse documento, que inclui o conjunto das reformas educativas
empreendidas, vai, paulatinamente, consolidando um modelo educacional
que tem repercutido nos diferentes níveis de ensino no Brasil.
Para Ramos (2001), a elevação do conceito de competência no
contexto atual apresenta uma estreita relação com um deslocamento
conceitual ocorrido em relação ao conceito de qualificação.6 O autor
atribui à noção de qualificação três dimensões: a conceitual, a social e
a experimental. Na dimensão conceitual, entende-se a qualificação como
função do registro de conceitos teóricos formalizados, dos processos
de formação associados ao valor dos diplomas. Já na dimensão social

5
Por currículo pré-ativo Goodson entende o currículo escrito ou oficial.
6
Conceito originado do modelo taylorista-fordista de produção. Baseia-se nos sistemas de convenções coletivas que
classificam e hierarquizam os postos de trabalho e o ensino profissional, que classifica e organiza os saberes em torno de
um diploma (Ramos, 2001, p. 42).

225
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

coloca-se a qualificação no âmbito das relações sociais que se estabe-


lecem entre os conteúdos das atividades e o reconhecimento social
dessas atividades, remetendo-as às grades de classificação coletiva. A
dimensão experimental relaciona-se ao conteúdo real do trabalho, no
qual se inscrevem não somente os registros conceituais, mas também o
conjunto de saberes que são postos em jogo quando da realização do
trabalho.
No processo de reestruturação produtiva em curso, já mencionado
neste texto, alguns aspectos são valorizados, destacando-se os conteúdos
reais do trabalho, os saberes tácitos,7 ou seja, os conhecimentos que se
apresentam ligados à vivência concreta do trabalhador em uma situação
específica, pode ser entendido como tal.
Os saberes sociais ou saber-ser, que compreendem mais que os
saberes técnicos estão relacionados a aspectos de personalidade e aos atri-
butos do trabalhador, como os que se relacionam à capacidade de abstra-
ção, de comunicação, de liderança, de trabalho em equipe, entre outros
(Ramos, 2001, p. 53).
A centralidade atribuída ao conceito de qualificação na relação
trabalho-educação passa a ser dada, contemporaneamente, à noção de
competência. A possibilidade de atingir um novo patamar no âmbito da
qualificação procede das competências, uma vez que os aspectos referidos
estão relacionados às características de natureza pessoal. É valorizada a
dimensão experimental, relacionada ao conteúdo do trabalho e tornando-
se, assim, condição de eficiência produtiva (Idem).
Esse movimento identificado no campo da pedagogia, inicialmente
restrito ao ensino técnico e profissionalizante, acabou por influenciar a
educação geral, contribuindo para a redefinição dos conteúdos de ensino
e para difundir o entendimento de que é necessário atribuir sentido práti-
co aos saberes-escolares.
A influência do processo produtivo nos modelos educacionais
adotados não se constitui em uma novidade. Ela ocorreu nas primeiras

7
"[...] Conforme explica Castro, os saberes tácitos seriam de conhecimento que, conquanto essencial à aquisição e ao
desenvolvimento de tarefas qualificadas, é sempre aprendido através da experiência subjetiva, sendo muito difícil a sua
transmissão através da modalidade da linguagem explícita e formalizada [...]" (Ramos, 2001, p. 53).

226
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

décadas do século XX, sob influência do taylorismo, que ensejou o desen-


volvimento de um movimento na educação intitulado “eficiência social".
Esse movimento concebia o currículo como organizado dentro da lógica da
linha de montagem e, com base nesse currículo, cidadãos úteis, do ponto de
vista econômico e social, seriam produzidos (Santos, 2001, p. 26).
Há uma estreita relação entre a emergência do ensino por compe-
tências e o crescimento do controle sobre ele por meio de exames nacio-
nais, como é o caso do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
(Saeb); do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Exame Nacional
de Desempenho de Estudantes (Enade), os quais buscam aferir os resulta-
dos obtidos pelos estudantes em um determinado nível de ensino.
As críticas dirigidas ao ensino por competências estão relacionadas
à emergência do caráter instrumental que a educação passou a ter, uma
vez que as competências acabaram por se tornar o elemento central no
processo ensino-aprendizagem, em detrimento do desenvolvimento de
valores que priorizem a ética, a sensibilidade, a criatividade e a criticidade,
a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades intelec-
tuais, os valores morais e as atitudes em relação aos diferentes problemas
da realidade (Ibidem, p. 38).
Ao ser valorizada a dimensão da prática, da vivência e do saber
fazer, predomina o entendimento de que o domínio dos conceitos e co-
nhecimentos de uma dada profissão que decorre da obtenção de um di-
ploma são secundários.
No caso da formação de professores, essa concepção já havia sido
explicitada por textos relevantes na configuração das novas diretrizes
curriculares, como é o caso das orientações do Banco Mundial (cf. Torres
apud Tomasi, Warde e Haddad, 1996), e do documento de Mello (2000).
Nesses documentos fica evidente que, mais do que a obtenção de um
diploma de nível superior, o que se deve incentivar é a formação contínua,
que deverá complementar uma provável formação obtida no âmbito do
ensino médio.
No que diz respeito ao ensino por competências, a introdução des-
se conceito como referência para a compreensão do campo discursivo
sobre formação de professores contribui para colocar no debate educacio-
nal a discussão acerca da necessidade de associar os conhecimentos apren-
didos no processo de escolarização à possibilidade de sua aplicação na

227
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

prática educativa, tendo em vista a adequação do processo educativo às


novas demandas que decorrem das mudanças econômicas e sociais em
curso (Camargo, 2004, p. 122).
A proposta básica incluída no Parecer CNE/CP nº 9/2001 é a de que
o planejamento dos cursos de formação de professores deve prever

[...] situações didáticas em que os futuros professores coloquem em uso os


conhecimentos que aprenderem, ao mesmo tempo em que possam mobi-
lizar outros, de diferentes naturezas e oriundos de diferentes experiências,
em diferentes tempos e espaços curriculares.

As situações didáticas propostas materializar-se-iam no interior das


áreas ou disciplinas, em tempo e espaço curricular específico (denominado
de coordenação da dimensão prática) e nos estágios a serem feitos nas
escolas de educação básica.
A crítica ao modelo de currículo centrado no ensino por disciplinas,
ainda predominante nos dias atuais, é um aspecto igualmente importante
na chamada pedagogia das competências. Segundo a lógica dessa proposta,
o ensino disciplinar não conseguiria dar conta das necessidades hoje postas.
A ênfase no ensino centrado em disciplinas ganhou força a partir
da segunda metade do século XIX. Segundo Santomé (1998, p. 55) uma
disciplina “é uma maneira de organizar e delimitar um território de traba-
lho, de concentrar a pesquisa e as experiências dentro de um determinado
ângulo de visão".
Essa tendência inclui a diferenciação do conhecimento em uma
multiplicidade de disciplinas autônomas, o que vem ocorrendo a partir do
século XIX. Seu surgimento está vinculado aos processos de produção re-
alizados nos países mais desenvolvidos, naquela época, os quais deman-
davam uma maior especialização, em decorrência da industrialização em
curso naquele momento (Idem).
Caracterizando o que seria o currículo integrado, Santos (op. cit., p.
40) explicita que este privilegia o estudo em situações contextualizadas de
diferentes áreas. Essa forma permite que os estudantes trabalhem com
conteúdos culturais relevantes, o que possibilita a discussão de questões
que usualmente não são abordadas no limite de uma única disciplina.
Para Santomé (op. cit., p. 25), o currículo integrado refere-se àqueles
cursos nos quais os alunos manejam referenciais teóricos, conceitos, proce-
dimentos e habilidades de diferentes disciplinas, na busca de compreensão e

228
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

solução das questões e problemas propostos. Esse autor mostra que, por
diferentes motivos de ordem psicológica e epistemológica, a opção por um
currículo integrado (também chamado globalizado e interdisciplinar) tem
sido justificada. Além disso, nos últimos anos, verifica-se o predomínio de
razões pragmáticas para justificar a conveniência de currículos mais
globalizados e interdisciplinares (Idem).
Os documentos produzidos nos encontros promovidos pela Anfope
são de fundamental importância para compreendermos como ocorreu o
debate das orientações curriculares sobre formação de professores, sobre-
tudo a partir da promulgação da LDB nº 9.394/96, com destaque para o
conceito de base comum nacional, surgido no início das discussões que
marcaram o movimento dos educadores brasileiros no começo da década
de 1980. Ao longo de aproximadamente 20 anos pôde-se observar como
esse conceito vem sendo construído, incorporando ou rejeitando diferen-
tes idéias e explicações, nos vários encontros promovidos ainda quando da
existência da Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Forma-
ção do Educador (Conarcfe – criada em 1983), precursora da Anfope.
O surgimento do conceito de “base comum nacional" tem como refe-
rência a crítica ao modelo de orientação curricular que vigorava no final da
década de 1970 e no início da década de 1980. Nessa crítica predominava a
idéia de que os currículos dos cursos de graduação deveriam ser organizados
tendo como base os currículos mínimos, definidos por um órgão central, que,
nesse caso, era o Conselho Federal de Educação (CFE), responsável pela regu-
lamentação das funções e atividades educacionais em diferentes níveis de
ensino. Os currículos dos cursos concebidos segundo essa orientação caracte-
rizavam-se por excessiva rigidez, originada pela fixação detalhada de mínimos
curriculares, o que resultou na redução da autonomia das IES no que se refere
à definição curricular. Isso ocasionou excesso de disciplinas obrigatórias e um
desnecessário alongamento dos cursos de graduação.
O documento final do IX Encontro Nacional da Anfope (1998) re-
cuperou contribuições de encontros anteriores, em especial, a idéia de
formulação das áreas temáticas ou eixos norteadores8 da base comum

8
Expressos na proposta da Anfope, de Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Formação dos Profissionais da
Educação, no documento final do IX Encontro Nacional, realizado em Campinas, 1998.

229
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

nacional, quais sejam: sólida formação teórica, unidade entre teoria e prática,
gestão democrática, compromisso social e ético, trabalho coletivo e
interdisciplinar, articulação entre a formação inicial e a formação continuada.
Segundo esse documento, os cursos de formação dos profissio-
nais da educação deveriam orientar-se pelos seguintes princípios: for-
mação para o humano, forma de manifestação da educação unilateral;
docência como base da formação profissional de todos aqueles que se
dedicam ao estudo do trabalho pedagógico; trabalho pedagógico como
foco formativo; sólida formação teórica em todas as atividades
curriculares – nos conteúdos específicos a serem ensinados pela escola
básica e nos conteúdos especificamente pedagógicos; ampla formação
cultural; criação de experiências curriculares que permitam o contato
dos alunos com a realidade da escola básica, desde o início do curso;
incorporação da pesquisa como princípio de formação; possibilidade
de os alunos vivenciarem formas de gestão democrática; desenvolvi-
mento do compromisso social e político da docência; reflexão sobre a
formação do professor e sobre suas condições de trabalho; avaliação
permanente dos cursos de formação dos profissionais da educação,
como parte integrante das atividades curriculares e entendida como
responsabilidade coletiva a ser exercida à luz do projeto político-peda-
gógico de cada curso.
No que diz respeito às diretrizes curriculares para a formação de
professores, destaca-se, ainda, o tempo decorrido entre a publicação do
Edital nº 4/1997 e a aprovação tardia das Diretrizes Curriculares do Cur-
so de Pedagogia (2006) após um processo que vinha se arrastando há
quase dez anos. Entre as principais controvérsias que contribuíram para
retardar a aprovação dessas diretrizes destacam-se o debate sobre a
pertinência da formação de professores para as séries iniciais do ensino
fundamental, no referido curso (posição defendida pela Anfope, pelo
Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e os Centros de Educação
das Universidades Públicas (Forumdir), Associação Nacional de Pós-Gra-
duação e Pesquisa em Educação (ANPEd), entre outros) e a criação dos
cursos normais superiores que, segundo as diretrizes oficiais, deveriam
ser, juntamente com os institutos superiores de educação, o lócus onde
essa formação deveria ocorrer.

230
As mudanças no mundo do trabalho e a formação dos profissionais
da educação no contexto da LDB: o currículo em questão

Essa discordância na concepção de formação ensejou a edição de


uma série de regulamentações por parte do governo central, como foi o
caso do Decreto nº 3.276 de 6 de dezembro de 1999,9 posteriormente
modificado pelo Decreto nº 3.554, de 7 de agosto de 2000.

Conclusão

As reformas do ensino, nos diferentes níveis, têm procurado res-


ponder às demandas do capital. Agora, na sua etapa transnacional, a edu-
cação passa a ser considerada como um instrumento de homogeneização
para, em uma racionalidade técnica e mercadológica, promover um con-
senso que tenha no mercado a sua principal referência.
Nessa concepção de educação, que na realidade é a tradução de
um projeto econômico social político e ideológico, a escola é equiparada à
empresa, portanto, deve formar consumidores, em vez de cidadãos.
A LDB procurou valorizar o profissional da educação, tendo dedica-
do o capítulo VI para tratar do assunto. Contudo, o que está posto, entre
outros aspectos, é a criação de espaços que privilegiem a formação fora da
universidade, nos institutos superiores e no curso normal superior,
desconfigurando, assim, o papel que, a partir da década de 1980, grande
parte dos cursos de Pedagogia vem cumprindo, ou seja, formar professores
para atuarem na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental,
como docentes ou como especialistas (coordenadores pedagógicos).
Outro ponto da LDB refere-se à concepção de currículo, adotada
em cumprimento às Diretrizes Curriculares Nacionais. Os pareceres e reso-
luções sobre o assunto emanados do CNE deixam evidenciado o papel que
as competências desempenham na formação, tornando-se, então, o eixo
nuclear fundamental.
Essas são as principais marcas da formação dos profissionais da
educação pós-LDB, e não se pode deixar de relacioná-las às mudanças no

9
Esse decreto definiu que a formação de professores para atuarem na educação infantil e séries iniciais do ensino funda-
mental dar-se-ia exclusivamente em cursos normais superiores. Após a mobilização e resistência dos movimentos sociais e
de setores da academia o decreto foi revogado pelo Decreto nº 3.554/2000.

231
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

mundo do trabalho, às novas formas do processo de trabalho, às novas


demandas postas ao trabalhador na nova sociabilidade do capital.
É nessa lógica que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a for-
mação dos profissionais da educação estão assentadas no modelo de com-
petências, em uma concepção utilitarista de currículo, que de forma prag-
mática adequa a formação aos interesses do mercado.
O modelo das competências, ou a pedagogia das competências
contribuía para a formação desse “novo" trabalhador exigido pelo paradigma
tecnológico e pelo capital internacional. Desta forma, “[...] é o mundo
econômico que vai determinar os conteúdos de ensino e atribuir sentido
prático aos saberes escolares" (Ramos, 2001, p. 222).
Os movimentos sociais e os sindicatos progressistas têm aderido à
formação do professor de acordo com uma concepção de sociedade que
tem como referência a distribuição da riqueza, a inclusão social e a demo-
cratização do ensino, entendendo-se como tal o acesso e a permanência
na escola, além da defesa intransigente da escola pública e gratuita.
A escolha da categoria competência como eixo central para a forma-
ção de professores traz a marca da empregabilidade e precisa ser considerada
ao se definir a concepção de formação de professor que se vai adotar. Apesar
de se saber que não há um vínculo determinístico entre educação e economia,
não se pode ignorar a relação existente e os desdobramentos que dele advém.

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234
11
Educação superior pública em Alagoas
– 10 anos pós-LDBEN:
da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento
das condições de produção
e socialização do conhecimento
Elcio de Gusmão Verçosa*
Maria das Graças Medeiros Tavares**

* Doutor em Educação pela USP, é professor emérito da Ufal, onde atua como voluntário do Programa de Pós-Graduação
em Educação do Centro de Educação; professor visitante da Funesa/Uneal – Universidade Estadual de Alagoas; e-mail:
elciogv@uol.com.br
** Doutora em Educação pela UFRJ, é pró-reitora de Graduação da UFAL e professora/pesquisadora do Programa de Pós-
Graduação em Educação do Centro de Educação desta Universidade; e-mail: graccatavares@uol.com.br
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

Tendo em vista que a universidade é uma instituição ocidental que


contabiliza mais de oito séculos de existência, considerando-se as escolas
monásticas, catedráticas e os studia generalia que lhe deram origem, na
Alta Idade Média, a educação superior em Alagoas é um fenômeno muito
recente, mesmo para os padrões brasileiros. Se considerarmos que essa
modalidade de educação institucional, sancionada pelos poderes públicos,1
somente veio a se estabelecer formal e regularmente em terras alagoanas
mais de uma década após a Revolução de 1930, no rastro de várias experi-
ências malogradas e até traumáticas para muitos de seus usuários, a criação
efetiva de uma rede de instituições de educação superior em Alagoas dar-
se-á na capital do Estado, ao longo da década de 1950, exclusivamente por
meio da iniciativa privada,2 ainda que sem fins lucrativos, e na forma de
instituições de educação superior isoladas (Verçosa, 1997).

1
O Seminário Diocesano Nossa Senhora da Assunção, fundado, em 1902, pela recém-criada Diocese de Alagoas, será a
única instituição alagoana voltada ao estudo dos saberes de natureza pós-secundária pelas próximas três décadas que se
seguirão.
2
A exceção era a Faculdade de Direito, já federalizada, que não era integrante da leva das IES surgidas na década de 1950.

237
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

A todas as faculdades alagoanas criadas até o final da década de 1950


unia, contudo, o fato de que, com sua ação, “abriam espaço na hermética
sociedade alagoana para indivíduos que não pertenciam às famílias tradicio-
nais" (Tenório, 1994, p. 76), representando, assim, uma relativa ampliação do
estreito canal existente, de acesso a empregos e funções para novos grupos
sociais urbanos que, até a pouco, com eles poderiam apenas sonhar, ainda
que a forma de concretização tenha sido a mais tradicional possível.
Resultante de uma magistral engenharia política liderada por um
dos fundadores da Faculdade de Medicina, Aristóteles Calazans Simões,
nos Executivo e Parlamento federais (Verçosa, 1997, p. 121-132), a idéia
inicial de apenas federalizar a Faculdade de Medicina terminaria por se
concretizar, no apagar das luzes do governo Juscelino Kubitschek (início
de 1961), na criação, como instituição federal, da Universidade de Alagoas,
que resultou da junção de sete das oito instituições de educação superior
(IES) existentes em Maceió.
Nessa ação que culminaria com o surgimento da primeira universi-
dade alagoana, evidentemente que

[...], pesou significativamente para a mobilização, não apenas dos estudan-


tes, para a federalização e, conseqüentemente, a gratuidade dos cursos
superiores existentes em Alagoas: o fato de o ensino secundário, a par das
restrições de acesso via exames de admissão, ser predominante e
crescentemente privado, numa sociedade historicamente concentradora de
renda pelas suas características sócio-econômicas e políticas, era ainda mais
agudizado, frente a uma oferta de ensino superior inteiramente privado.
[...] Daí não ser estranhável que todas as justificativas apresentadas por
interessados na criação da universidade - docentes ou não - tenham tido,
como base principal, a necessidade de se criarem oportunidades locais de
formação profissional, em nível superior, para a juventude alagoana, cujos
talentos vinham sendo desperdiçados por falta de condições financeiras
(sic) (Tavares; Verçosa, 2006).

Por isso, não é de se estranhar que a Universidade Federal de Alagoas


(Ufal), até a década de 1970, tenha permanecido como uma federação de
faculdades e mantido o traço napoleônico de suas origens – predominan-
te ainda no Brasil, àquela altura, diga-se de passagem. Com essa caracte-
rística, a Ufal vai chegar ao início dos anos de 1970, com uma matrícula
total de 2.476 estudantes, representando mais do dobro da sua matrícula
inicial de 1.008 estudantes.
Os elementos novos no âmbito da educação superior a se registrarem
em Alagoas desde a criação da Ufal, em 1961, até meados dos anos 1970,

238
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

serão os excedentes de Medicina,3 no final dos anos 1960, o que culminou


na criação da Escola de Ciências Médicas de Alagoas (Ecmal), assumida pelo
governo do Estado, com a criação de três IES – sendo duas delas Faculdades
de Formação de Professores, no interior do Estado – além do registro, feito
pelos gestores da única universidade, que assumiam nos últimos meses de
1972, de que o seu maior desafio era, antes de tudo,

[...] retirar a Ufal da condição pouco lisonjeira de ser a menor, de menor


orçamento, de menor quadro docente, com professores qualificados em
número deficiente, de todas as demais universidades do país (sic) (Verçosa,
1997, p.149).

Como novo na década de 1970, no âmbito da Ufal, teremos, além


da incorporação, em 1972, do curso de Serviço Social, por proposta da
Arquidiocese que o mantinha, a diversificação de sua oferta, com a criação
dos cursos de graduação em Agronomia, Arquitetura, Enfermagem, Física,
Matemática, Química, Biologia e Educação Física, além de Tecnólogos
Mecânico, Industrial de Açúcar de Cana, Bovinocultura e Saneamento
Ambiental, que tiveram existência efêmera, mas que, juntos, ampliariam a
matrícula, de 2.476 estudantes no início dos anos de 1970, para 5.104,
todos em cursos de graduação, pois a Ufal ainda levaria um bom tempo
para instituir seu sistema de pós-graduação stricto sensu e, conseqüente-
mente, sua pesquisa institucionalizada para a maioria das suas unidades.
Assim, a educação superior, em Alagoas, chegaria ao ano de 1980
com o seguinte perfil:

Tabela 1– IES por dependência administrativa, número de cursos,


matrícula e funções docentes, em Alagoas – 1980
Dependência Número de IES Número de cursos Número de Funções docentes
administrativa matrículas
Federal 1 32 5.104 701
Estadual 1 1 441 97
Privada 3 45 6.396 327
Total 5 88 11.941 1.125
Fonte: Censo do IBGE.

3
Sendo a regra vigente para acesso ao ensino superior, no final dos anos 1960, a aprovação com nota igual ou superior a
5, os candidatos colocados acima desse ponto de corte, mas não-matriculados pela Ufal por falta de vaga, eram os "exce-
dentes", que passaram a lutar pelo direito à matrícula, mas cuja presença a ditadura logo cuidaria em fazer desaparecer, pela
transformação do vestibular em um concurso apenas classificatório, sendo matriculados os colocados dentro do número de
vagas disponibilizadas, independentemente da nota conseguida.

239
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Considerada tão significativa ampliação de oportunidades de aces-


so ao longo de toda a década de 1970 – ainda que proporcionalmente
limitada diante da população alagoana (Tavares; Verçosa, 2006) e majori-
tariamente pela via privada, – importa destacar que o modelo de cresci-
mento, além de privatista, ocorre pelo modelo de IES isoladas que, com
uma única universidade de perfil "napoleônico", concentra-se no ensino,
salvo honrosas exceções representadas por acadêmicos, individualmente.
Alagoas chega, assim, à década de 1990, com uma matrícula majo-
ritariamente concentrada na capital do Estado e com a interiorização feita
apenas por meio de três IES isoladas, assim mesmo com todos os seus
cursos concentrados no campo da formação de docentes para a educação
básica. Em que pese o sentido social dessa tarefa de formar professores
para um setor cuja matrícula vinha se ampliando desde a década de 1970,
a concentração da interiorização nos cursos de licenciatura fortaleceu o
caráter “napoleônico" desse fenômeno, eliminando, praticamente, o
envolvimento da ação docente com a pesquisa e com a extensão.4 As
instituições de educação superior que viriam a existir em Alagoas um pou-
co antes e logo depois da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), em fins de 1996, quanto a sua forma de
organização, viriam a se apresentar, do ponto de vista acadêmico, com
uma única universidade – a mesma Ufal do início dos anos 1960 –, um
único centro universitário, e seis faculdades isoladas, a saber: a Escola de
Ciências Médicas (em Maceió), a Faculdade de Formação de Professores de
Penedo (FFPP), a Faculdade de Formação de Professores de Arapiraca (FFPA),
a Faculdade de Administração, Ciências Contábeis, Jurídicas e Sociais do
Estado de Alagoas (Fajeal,5 em Arapiraca), a Escola Superior de Ciências
Humanas Físicas e Biológicas do Sertão (Esser, em Santana do Ipanema), a
Escola Superior de Ciências Humanas e Econômicas de Palmeira dos Índi-
os (Espi, em Palmeira dos Índios).

4
Pensando-se a extensão, não simplesmente como a ação de prestação de serviços, que já ocorria com muita força e
vivacidade, desde a década de 1970, no seio da Ufal, via Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária
(Crutac), sob os auspícios do regime militar, mas, antes e, sobretudo, como a socialização do saber produzido pela IES, a par
de uma intervenção qualificada, quando necessária e oportuna, a simples ausência da pesquisa já tornava praticamente
impossível a "extensão acadêmica" no sentido verdadeiramente universitário da expressão.
5
Primeiro, denominada Escola Superior de Administração e Negócios do Agreste (Esag), a sua denominação passa a ser
Fajeal, em 1998.

240
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

Esse era um cenário que parecia promissor por três razões princi-
pais: primeiro, parecia, finalmente, desconcentrar-se o ensino superior da
capital para o interior; depois, começava a se diversificar o perfil dos cur-
sos dessas IES, inteiramente concentrado nas licenciaturas, a considerar o
que suas denominações prometiam, a par do surgimento alvissareiro de
cursos de Ciências Contábeis e Administração em Arapiraca, e de Zootecnia
em Santana do Ipanema; além da denominação de universidade dada pelo
governo estadual ao que resultara da Faculdades Integradas de Santa Fé
do Sul (Funec),6 mantenedora da FFPA, à qual seriam acrescidas a Esser, a
Fajeal e a Espi.
De fato, a Funec, instância privada no sentido real do termo, a
considerar sua forma de gerir e manter a IES por ela instituída, em ativida-
de desde o início dos anos 1970, nascida, na prática, apenas para manter
a Faculdade de Formação de Professores de Arapiraca, em 1995, através
da Lei Estadual nº 5.762, de 29 de dezembro, teria seu nome alterado para
Fundação Universidade Estadual de Alagoas (Funesa). Embora sem contar
com a credencial acadêmica de Universidade, primeiro pelo Conselho Na-
cional de Educação (CNE), já que “transformada" sob o império das velhas
normas educacionais, e, depois da última LDB, pelo Conselho Estadual de
Educação, uma vez que integrava o Sistema Estadual de Ensino Superior,
no entanto, àquela altura, a instituição parecia ter todas as condições
legais e de financiamento para avançar da situação acadêmica de faculda-
des integradas7 para o status de instituição universitária capaz de desen-
volver, de forma indissociável, o ensino, a pesquisa e a extensão de que as
regiões onde estava instalada necessitavam.
Infelizmente, por força do agravamento de uma severa crise políti-
ca que já vinha se abatendo sobre o Estado de Alagoas – cuja face mais
perversa era a progressiva redução da capacidade da máquina estadual
pública de fazer frente a seus encargos financeiros –, problemas político-

6
Fundação municipal de direito privado criada, no início dos anos 1970, seguindo tendência nacional, incentivada pelo
governo federal, para instituir e manter a FFPA.
7
A denominação de "faculdades integradas" que estamos atribuindo às quatro IES vinculadas à Funesa não corresponde ao
modo como elas aparecem nos dados do Inep/MEC – inclusive nos últimos –, onde figuram como IES isoladas, mas se deve
ao conhecimento que temos de sua forma de funcionamento, em unidades que se articulam e por sua natureza de fundação
pública, integralmente mantida pelo erário estadual, sob a gestão de uma presidência nomeada pelo governo do Estado,
dinâmica político-administrativa essa seguida desde a "transformação" legal por que passou, nos meados de 1990, até
recentemente.

241
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

administrativos do Estado incidiram de modo contundente sobre a Fun-


dação Universidade Estadual de Alagoas, como também sobre a Ecmal8
que, de natureza pública estadual desde sua origem, por lei estadual dita-
da de cima para baixo, também viria a ser chamada de universidade, com
o nome de Universidade de Ciências da Saúde (Uncisal).
Por conta do que ficou conhecido como a crise fiscal do Estado de
Alagoas, engendrada desde o acordo com os usineiros, celebrado pelo
governo Fernando Collor de Melo (1987-1990) e agravada nos governos
Geraldo Bulhões (1991-1994) e Divaldo Suruagy (1995-1997), que levaria
o Tesouro estadual à bancarrota, a Funesa não apenas não desfrutaria do
financiamento público de que necessitava para o seu desenvolvimento
como universidade, como seria uma das instituições estaduais que mais
sofreu com o Programa de Demissão Voluntária (PDV), criado pelo gover-
no estadual, como estratégia desesperada para contornar a crise de indi-
gência do erário público. Sendo, pela sua própria natureza, uma institui-
ção cujas atividades demandavam intenso aporte de mão-de-obra, não
havendo qualquer restrição para se aderir ao PDV e encontrando-se os
servidores sem os seus salários por, praticamente, um ano inteiro, esse
programa levado a efeito nos anos de 1996 e 1997, atingiu a IES com um
impacto de efeito tão destrutivo que quase a fechou de vez.
Se o impacto do PDV não foi tão grave para a Ecmal/Uncisal, teve,
contudo, seus efeitos perversos também sobre essa IES, principalmente
quando ela buscou se ampliar com a criação dos cursos de Fisioterapia,
Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, em 1994, já que, àquela altura,
não podia admitir docentes com vínculo permanente.
Entre os efeitos mais perversos do PDV para as duas IES públicas
estaduais, além da diminuição drástica de seus quadros docentes e técnico-
administrativos estáveis, importa aqui ressaltar, com a perda de profissionais
de grande experiência e com muitos anos nas instituições, a admissão de
professores em caráter emergencial – por meio do que denominamos de
“contratos precários", porque, na verdade, seus salários, além de muito bai-
xos, não garantiam qualquer regularidade de remuneração, “vinculando" os
docentes às IES como horistas e pagando-os com uma periodicidade tão

8
Escola de Ciências Médicas de Alagoas que, por mais de 20 anos ofereceu, apenas, o curso de Medicina.

242
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

irregular que chegava até a deixá-los por seis meses sem qualquer valor
remuneratório. Claro que sem mencionar a total falta de estabilidade. Isso,
evidentemente, teve repercussões graves no funcionamento regular e harmô-
nico das duas instituições, mercê da disparidade de salários entre os professo-
res do quadro permanente, que ainda se encontravam em exercício, e o grupo
horista, que, com o PDV, passara a representar, sobretudo no caso da Funesa,
o contingente mais significativo do corpo docente necessário ao funciona-
mento e à expansão da IES, que havia se dado muito recentemente.
Diante desse quadro aqui apenas esboçado, dá para imaginar os
prejuízos sofridos pela Funesa, por exemplo: do ponto de vista acadêmico
é bastante dizer que até recentemente tivemos um ano letivo inteiro per-
dido naquela IES por conta das repercussões do PDV que, na verdade, foi
apenas a expressão mais visível do descalabro político-administrativo que,
por vários anos, se abateu sobre os alagoanos e que, em números, pode ser
assim representado:

Tabela 2 – Situação funcional da FUNESA depois do PDV


Servidores da Funesa Com vínculo permanente após Com vínculo
o PDV precário

Docentes 51 144
Técnico-administrativos 04 80

Fonte: Departamento de Assuntos Acadêmicos/Funesa.

Quanto à Uncisal, embora com menor impacto, como dissemos, os


efeitos do PDV apresentam o quadro que segue:

Tabela 3 – Impacto do PDV sobre o quadro funcional da Uncisal*


Servidores da Uncisal Com vínculo permanente após o Com vínculo precário
PDV

Docentes 90 117
Técnico-administrativos 2.142 600

Fonte: Setor Financeiro da Uncisal.


Nota: * O alto número de servidores na Uncisal deve-se ao fato de que a IES possui quatro hospitais-escola.

243
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Mesmo diante de todos esses entraves, porém, integrantes das duas


instituições públicas estaduais – remanescentes do PDV ou recém-chegados
pela via do contrato precário – não esmoreceram em sua luta por retomar os
ideais de fazer daquelas IES as universidades a que a população de Alagoas
tinha direito. Assim foi que, ainda em meio ao rescaldo da crise desencadeada
pelo PDV, docentes, discentes e servidores técnico-administrativos do qua-
dro permanente ou não, fizeram acontecer eventos e gestões que iriam
definir Estatuto e Regimento Geral para as IES9 que esperavam ver renascer
das cinzas. Encontrava-se Alagoas, nesse momento, animada por novos
ventos políticos soprados desde 1997, que haviam culminado com a altera-
ção do grupo político no governo estadual, justamente nesse ano de 1999.
Enquanto isso, se, por conta da crise das duas IES públicas estaduais,
era impossível, no período acima retratado, um crescimento orgânico por
dentro da instituição, foi buscado por elas e conseguido do Conselho Esta-
dual de Educação de Alagoas, a partir de 2001, apoio para enfrentar os
problemas de legitimidade das instituições, todos de natureza acadêmica.
Como expressão de seu apoio, o Conselho Estadual de Educação de Alagoas
passou a tratar os cursos e as próprias IES de um ponto de vista emancipatório,
desenvolvendo uma avaliação para fins de regulação que buscava induzir
qualidade e, dessa perspectiva, priorizava, pela ordem, a necessidade de
realização imediata de concurso para a regularização dos quadros docentes
e o aparelhamento das IES para maior ampliação, diversificação e um me-
lhor desempenho do ensino, com a institucionalização da pesquisa e da
extensão. É que, àquela altura, tanto o Conselho, quanto as IES, ao analisa-
rem os dados educacionais, começaram a perceber que a pressão, de muito
tempo já intensa sobre o ensino superior público em Alagoas, por conta de
uma oferta contida, então começava a ser avassaladora.10

9
Aqui é necessário registrar, a bem da fidelidade aos fatos, que a Funesa sofreu mais do que a Uncisal, sobretudo no plano
da gestão: refiro-me ao rodízio de diretores-presidentes, promovido por uma década e meia, com uma celeridade às vezes
espantosa, sobretudo, na Funesa, já que na Uncisal ocorreu a permanência dos dirigentes por períodos mais dilatados, o
que, na realidade brasileira e alagoana, significa descontinuidade de políticas e de gestores de primeiro e segundo escalões,
com os prejuízos daí decorrentes.
10
Essa pressão nascida do acesso mais alargado ao Ensino Fundamental, formalmente desde 1971, por determinação da
LDB/71, mas tornado real, pela via das condições de financiamento oriundas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que teve impacto altamente positivo sobre a contenção
histórica do ensino pós-primário em Alagoas, foi tornando-se cada vez mais visível, quanto mais o governo estadual ia
ampliando a oferta do ensino médio a ponto de transformá-lo, no Estado, de majoritariamente privado, em predominante-
mente público e estadual. Os dados do Gráfico 1 mostram claramente esse fenômeno pós-LDBEN de 1996, já que tomam
mais sentido, ainda, quando confrontados com o incremento ocorrido no País como um todo, a par da forma como se deu
a expansão por dependência administrativa.

244
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

A expansão em quase três vezes do ensino médio em Alagoas, no


período de 1996 a 2005 – causa maior dessa pressão – apresenta a seguin-
te configuração:

120.000
100.000
Rede federal
80.000
Rede estadual
60.000
Rede municipal
40.000
Rede privada
20.000
0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Gráfico 1 – Evolução no número de matrículas do ensino médio


em Alagoas, por dependência administrativa
Fonte: Censo Escolar/Inep/MEC.

É bem verdade que a restrição de financiamento para o ensino


médio tem feito com que a ação do poder público estadual, nesse nível
de ensino, tenha se dado de forma precarizada – sobretudo em termos
de alocação de pessoal docente estável e adequadamente
profissionalizado.11 Mesmo assim, tendo em vista que a amplitude do
Programa Universidade para Todos (ProUni), não é significativa em
Alagoas (apenas 414 bolsas em 2005, entre integrais e parciais)12 e
que o Fundo de Financiamento do Estudante do Ensino Superior (Fies)
– antigo Crédito Educativo – tem seus limites em face da realidade
socioeconômica do Estado (cf. Carvalho, 2005), o atingimento dos 40%
de matrícula líquida na educação superior em Alagoas, determinado
pelo Plano Estadual de Educação (PNE/2001), pela lei, para 2015, so-
mente poderá ser alcançado pela via pública e gratuita. Daí porque a
consolidação e ampliação da Funesa e da Uncisal, mesmo que forte-
mente fincadas no aspecto restrito da oferta de vagas para a gradua-
ção, já podem ser consideradas um avanço importante, inclusive sob o

11
Em muitos casos, o ensino médio toma "carona" nos recursos já bem limitados para o ensino fundamental, ou pela via
dos aportes de recursos oriundos dos organismos financeiros multilaterais, que contribuem com a infra-estrutura, mas não
aportam recursos para o mais oneroso, que é a manutenção.
12
Dados obtidos no sítio www.prouni.mec.gov.br em dezembro de 2006.

245
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

aspecto da democratização, e não apenas da expansão de oportunida-


des formais,13 ainda que a nossa atenção esteja voltada para as possi-
bilidades e os limites dessas instituições para a ultrapassagem de seu
perfil marcadamente napoleônico.
A Uncisal, como única IES alagoana especializada por campo de
saber, mantida pelo Estado, com uma opção pública e gratuita de
profissionalização, antes existentes, apenas, na Ufal – a Medicina – e ou-
tras agora nela presentes, além de ofertadas também na rede privada –
referimo-nos à Terapia Ocupacional, à Fisio e Fonoterapia – e, a Funesa,
como única instituição pública e gratuita de educação superior já presente
em cinco regiões importantes do interior alagoano, não poderiam perma-
necer na crise em que se encontravam, existindo como se estivessem, pra-
ticamente, entregues a sua própria sorte, tendo como responsáveis por
elas quase que somente o empenho de seus docentes, servidores e discen-
tes. Assim, procurando cumprir seu papel dentro do Estado, ao tempo em
que vão conseguindo regularizar seus cursos e recompor seus quadros
docentes, a Uncisal e a Funesa encaminham aos órgãos superiores do
Estado, providências solicitando sua transformação em Universidades, no
pleno sentido da palavra.
Insistindo nesse intento, com as iniciativas legais até seu
credenciamento pelo Conselho Estadual de Educação, primeiro a Uncisal,
em dezembro de 2005, e a Funesa, em outubro de 2006, que passa a se
chamar Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), essas IES públicas esta-
duais têm avançado em pontos básicos e estratégicos para sua reinstituição.
Feito o concurso para docentes e já preenchidos de forma permanente os
quadros necessários ao seu funcionamento como universidade, via aumento
da titulação e da carga horária de seus docentes com mestrado e doutorado,
Uncisal e Uneal vêm perseguindo e buscando estabelecer formalmente, por
meio de seus projetos pedagógicos e planos de desenvolvimento institucionais,
sua identidade acadêmica e sua autonomia para agir de modo a responder

13
Sob esse aspecto, a criação da Coordenadoria de Educação Superior e Ensino Profissionalizante (Cesep), no seio da
Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Lei nº 6.145, de 13 de janeiro de 2000), a par da alteração
qualitativa que irá sofrer o Conselho Estadual de Educação, em 2001, teriam um papel significativo na potencialização das
lutas das comunidades acadêmicas da Funesa e da Uncisal pela sua reinstitucionalização como universidades de direito e de
fato.

246
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

aos desafios dos novos tempos vividos pelo Brasil e, particularmente, por
Alagoas. Aqui, onde o PIB, em 2002, segundo o Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE), superava apenas o Piauí, entre os Estados do
Nordeste, e com uma sociedade que tem 62% de sua população considera-
da como pobre pela pesquisa Radar Social do Ipea/Pnud (2005) e metade
dela considerada alvo do Programa Fome Zero (Carvalho, 2005), como am-
pliar o acesso à educação superior pela ampliação da via privada?
Desse modo, o crescimento democrático da educação superior seria
aquele que fosse viabilizado pela via pública e gratuita que, em Alagoas,
em particular, vem se dando predominantemente pelas IES públicas esta-
duais, em consonância com o que ocorreu com as IES e cursos que tam-
bém cresceram proporcionalmente de forma destacada, por meio do poder
público, agora com o reforço dado, nesse ano de 2006, pelas ações de
interiorização da Ufal.
Na verdade, o crescimento da Ufal, via política de interiorização
das instituições federais de educação superior (Ifes), inaugurado no ano de
2006, apresenta um perfil de cursos, vagas e localização geográfica que
merece atenção,14 pelo que pode representar em termos de oportunidades
para as populações mais pauperizadas do interior do Estado. Esse fato
aponta para alguns elementos alvissareiros em relação às políticas históri-
cas para a educação da população do interior do Estado: com as licencia-
turas, todas concentradas em áreas de grande carência nas cidades mais
distantes de Maceió, aparecem, pela primeira vez, na rede pública, cursos
de alta procura e de prestígio social, alguns deles, inclusive, de significati-
va relevância para a proposição de um desenvolvimento auto-sustentável
para Alagoas, sobretudo no agreste e no sertão. Ressalte-se, porém, a
presença exclusiva de cursos de graduação, abertos com corpo docente
autônomo em relação ao do campus de Maceió, o que nos induz a uma
preocupação com o caráter napoleônico das novas atividades, quando
esse freio à vida plenamente universitária encontra-se praticamente ultra-
passado nas unidades da Ufal situadas na capital.

14
Os cursos implantados são os de Administração, Agronomia, Arquitetura e Urbanismo, Enfermagem, Ciência da Compu-
tação, Zootecnia, Educação Física, Biologia, Física, Matemática, Química, Psicologia, Serviço Social, Engenharia de Pesca,
Turismo e Medicina Veterinária, espalhados pelas cidades de Arapiraca, Palmeira dos Índios, Penedo e Viçosa.

247
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

De qualquer modo, essa foi uma postura dos governos estadual e


federal, que foram capazes de perceber que, diante do atraso e da depen-
dência de Alagoas dos recursos do erário federal, que fazem com que o
nosso Estado disponha do que Carvalho (2005) chama “renda sem produ-
ção", havia de se investir em políticas estruturantes, entre as quais se
destaca a educação superior. O governo estadual – cujo mandato foi con-
cluído em 2006, tal qual fez e continua a fazer o governo federal, respon-
deu às pressões sociais e, encarando os dados educacionais alagoanos, em
termos de ensino superior de graduação, foi capaz de enxergar os seguin-
tes índices de escolarização bruta e líquida no cenário nacional e regional:

Tabela 4 – Taxa de escolarização, por nível de escolarização


e de ensino – 2004

UF Taxa Taxa UF Taxa Taxa UF Taxa bruta Taxa


bruta líquida bruta líquida líquida
AC 15,1 6,1 MA 10,4 4,8 RN 9,8 5,6
AL 8,9 4,0 MT 17,2 8,1 RS 25,2 14,4
AP 19,2 8,2 MS 20,4 11,6 RJ 25,5 14,4
AM 13,0 5,3 MG 18,8 10,4 RO 15,1 7,6
BA 10,5 5,5 PR 28,3 17,0 RR 13,9 4,9
CE 12,2 6,4 PB 10,8 5,7 SC 26,1 14,1
DF 34,8 17,7 PA 9,0 4,4 SE 17,1 7,7
ES 22,0 11,9 PE 11,0 6,3 SP 22,4 13,9
GO 22,1 12,1 PI 13,5 6,5 TO 19,2 10,1
Brasil 18,6 10,5
Fonte: IBGE/Pnad, 2004. Tabela elaborada pelo MEC/Inep/DTDIE.

Por esses dados, encontramos Alagoas com as mais baixas taxas do


País, quando o Plano Nacional de Educação (2001), apresenta como meta,
para 2011, 30% de taxa líquida, e o Plano Estadual de Educação (2005),
determina 40% para 2015. Diante desse quadro, é impossível a indiferença
de qualquer governante que tenha um projeto de desenvolvimento auto-
sustentável para a sociedade alagoana, sobretudo quando o fato se torna
objeto do conhecimento público e elemento considerado por todos os
estudos como entrave definitivo até para o simples crescimento econômi-
co duradouro e consistente.
Assim, credenciadas mais duas universidades públicas estaduais,
expandida a única federal, Alagoas entra no ano de 2006 com instituições
que apresentam o seguinte perfil acadêmico de seus docentes:

248
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

DOUTORES
5%

MESTRES
41%

ESPECIALISTAS

54%

Gráfico 2 - Funesa
Fonte: DDA/Uneal (2006)

DOUTORES

11%

MESTRES

18%

ESPECIALISTAS

71%

Gráfico 3 - Uncisal
Fonte: Prograd/Uncisal (2006)

ESPECIALISTAS

7%
DOUTORES
43%
MESTRES

50%

Gráfico 4 - Ufal/Interior
Fonte: Prograd/Ufal (2006)

Esse quadro pode tomar um sentido ainda maior se computarmos


os docentes das três IES em cursos de mestrado e os mestres em processo
de doutoramento, o que nos dá a configuração a seguir apresentada:

249
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

MESTRANDOS
41%

DOUTORANDOS
S

59%

Gráfico 5 - Uneal
Fonte: DDA/Uneal (2006)

DOUTORANDOS

8%

MESTRANDOS
92%

Gráfico 6 - Uncisal
Fonte: Prograd/Uncisal (2006)

MESTRANDOS

12%

DOUTORANDOS

88%

Gráfico 7 - Ufal/Interior
Fonte: Prograd/Ufal (2006)

Trazendo à baila, finalmente, outro elemento indispensável para o


trabalho docente voltado para a pesquisa e a extensão – que é a forma
como se dá o vínculo trabalhista com a IES temos, no caso das duas
recém-credenciadas universidades estaduais e na expansão da Ufal para o
interior de Alagoas, o seguinte quadro de regime de trabalho:

250
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

TEMPO
INTEGRAL TEMPO
50% PARCIAL
50%

Gráfico 8 - Uneal
Fonte: DDA/Uneal (2006)

TEMPO
INTEGRAL
33%

TEMPO

PARCIAL
67%

Gráfico 9 - Uncisal
Fonte: Prograd/Uncisal (2006)

DedicaçãoExclusiva

Gráfico 10 - Ufal/Interior
Fonte: DRH/Ufal (2006)

Para um conhecimento mais preciso dos dados acima apresenta-


dos, vale registrar que a Uneal contava, em 2006, com um total de 201
docentes e a Uncisal com 291, enquanto integravam a Ufal/Interior ape-
nas 58, explicando-se o número pouco expressivo desta última pelo fato
de que aquele foi o primeiro ano de funcionamento dos seus cursos, com
plano de ampliação do corpo docente para os próximos três anos. Já quanto
ao Regime de Trabalho, enquanto as universidades estaduais de Alagoas
trabalham com tempo parcial (20 horas) e tempo integral (40 horas), a
Ufal tem como regra a dedicação exclusiva, sendo os outros regimes con-
siderados excepcionais. Sob esses elementos de caráter acadêmico e polí-
tico-administrativo acima apresentados, parecem estar dadas as condições

251
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

internas às IES para seu desenvolvimento, como universidades capazes de


se desenvolver, não apenas no ensino, isso sem desprezar o caráter
determinante que têm as políticas públicas das instâncias federadas às
quais se encontram ligadas as estaduais, seja por ação direta, seja pelos
organismos públicos de fomento à pesquisa e à extensão. Daí porque,
quanto ao que pode significar o credenciamento da Uneal, reinstituída
como autarquia, e da Uncisal, como universidade especializada por campo
de saber, hoje atuando em áreas da saúde para além da medicina,15 a par
da expansão da Ufal para o interior de Alagoas, no sentido do crescimen-
to, não apenas da matrícula na graduação, mas das possibilidades de am-
pliação e implantação regular da pós-graduação stricto sensu e da produ-
ção institucionalizada de pesquisa e extensão necessárias ao desenvolvi-
mento e ao bem-estar da população de Alagoas, alguns elementos são
indispensáveis, além das condições internas, incluindo o credenciamento/
crescimento, entre os quais destacamos:

1. a responsabilidade dos poderes públicos estadual e federal com a


sustentabilidade econômica das universidades recém-credenciadas
ou expandidas e seu desenvolvimento harmônico, com valoriza-
ção profissional de seus docentes e servidores;
2. desenvolvimento de políticas públicas das instâncias federadas
às quais se encontram ligadas as IES, que ultrapassem apenas o
custeio, mas que encarem efetivamente a manutenção regular e
até a ampliação das condições de fixação dos docentes nas ins-
tituições, bem como o investimento na ampliação e manutenção
da infra-estrutura instalada em nível adequado ao desenvolvi-
mento de programas e projetos de pesquisa e extensão, seja dire-
tamente, seja por meio dos organismos públicos de fomento;
3. a sintonia da comunidade acadêmica das duas IES estaduais
com seu projeto pedagógico e seu plano de desenvolvimento
institucionais – que foram elementos chaves para o

15
Além das graduações em Medicina, Fisioterapia, Terapia Ocupacional e Fonoaudiologia, a IES implantou, no ano de
2006, quatro cursos tecnológicos, a saber: Informação na Saúde, Radiologia, Processos Gerenciais em Alimentação e
Sistemas Biomédicos.

252
Educação superior pública em Alagoas – 10 anos pós-LDBEN: da predominância da ação
profissionalizante ao alargamento das condições de produção e socialização do conhecimento

credenciamento acadêmico – com a conseqüente assunção de


sua vocação socialmente comprometida;
4. a atenção para as políticas de atendimento aos estudantes ca-
rentes, de modo a proporcionar não apenas o acesso, mas a per-
manência necessária ao sucesso que, na maioria das vezes, não é
conseguido apenas com o ingresso na educação superior pública
e gratuita, ainda que se adotem quotas;
5. a compreensão de todos os integrantes da coletividade acadêmi-
ca – composta por docentes, discentes e servidores técnicos e
administrativos – de que uma universidade é uma instituição de
formação humana, cujas riqueza e legitimidade não se esgotam
na qualidade do ensino ministrado, mas se afirmam e se fortale-
cem pela produção de conhecimento e tecnologias e sua divul-
gação em proveito da sociedade.

Essas são as condições de possibilidade para que mais duas univer-


sidades novas e uma significativamente expandida em Alagoas – todas
públicas – representem o desenvolvimento de mais pesquisa e extensão
com relevância social para os alagoanos, que, até bem recentemente, eram
obrigação institucional apenas da Ufal, como senhora absoluta do status
que, por décadas, nem sempre foi adequadamente aproveitado em termos
acadêmicos. A nosso ver, os elementos formais e reais para tanto estão
estabelecidos, a depender, para o sucesso, como já dito e aqui reafirmado,
por indispensável, das políticas educacionais assumidas concretamente pelos
Executivos estadual e federal e pelas posturas abraçadas pela comunidade
acadêmica, sobretudo das novas IES, aqui consideradas as unidades ex-
pandidas da Ufal. O mais é profecia, cujo múnus, a nós, como simples
mortais, não é dado exercer.

Referências bibliográficas

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BRASIL. Plano Nacional de Educação. 2001.

IBGE. Censo 1997, 1990 e 2000.

253
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

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______. Cultura e Educação em Alagoas: história, histórias. Maceió: Edufal, 4.


ed., 2006.

254
D) Financiamento
12
Financiamento da educação superior
no Brasil: gastos com as Ifes –
de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula
da Silva*
Nelson Cardoso Amaral**

* Estudo parcialmente financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa (Funape).


** Doutor em Educação (Unimep); professor da UFG; e-mail: nelsonamaral@cultura.com.br.
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

Introdução

O financiamento da educação superior (ES) brasileira, a partir dos


anos 1990, tornou-se um tema de extrema relevância em discussões que
ocorrem no meio acadêmico, nos setores definidores das políticas públicas
nacionais e em diversos ambientes da sociedade.
Essa relevância pode ser explicada pela necessidade de elevarmos o
percentual de estudantes de 18 a 24 anos matriculados na educação su-
perior e pela enorme expansão ocorrida no setor privado no Brasil, acom-
panhada por uma grande inadimplência e por um percentual elevado de
vagas que não são preenchidas nos processos seletivos. Associados a essas
causas estão a já conhecida incapacidade financeira do Estado de suportar
uma elevação substancial dos recursos públicos que se dirigem às institui-
ções públicas, sem comprometer o pagamento dos encargos financeiros
da União,1 e a limitada condição das famílias brasileiras para arcarem com
o pagamento das mensalidades escolares (Amaral, 2003).

1
Encargos financeiros da União são aqueles que se dirigem ao pagamento de juros, encargos e amortização das dívidas
interna e externa.

259
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Adiciona-se a esse fato a exigência cada vez maior, no ambiente de


mundo “globalizado", da capacitação das pessoas para exercerem funções
que exigem cada vez mais habilidades que só são desenvolvidas por aque-
les que em alguma etapa da vida tenham participado do mundo da educa-
ção superior. Sabe-se, também, que o ambiente em torno da “globalização"
(Batista Júnior, 1998) é fortemente influenciado pelas posições dos orga-
nismos multilaterais,2 principalmente após o estabelecimento da crise do
Estado de Bem-Estar Social europeu.
A discussão sobre o financiamento da educação superior é sensível,
pois a dependência dos recursos financeiros é responsável pela existência de
amarras à liberdade acadêmica das instituições, o que pode comprometer o
papel desempenhado por elas no processo de desenvolvimento da Nação.
A discussão sobre o financiamento desse nível educacional no Bra-
sil complica-se pela grande diversidade e complexidade das Instituições de
educação superior (IES): são universidades (8,4%), centros universitários
(5,3%), faculdades integradas (5,9%), faculdades, escolas e institutos (73,2%)
e centros de educação tecnológica (7,2%) (Inep, 2005). Além disso, elas
são públicas – federais, estaduais, municipais – ou privadas – particulares
em sentido estrito, comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Predomi-
na, ainda, nesse cenário, um conjunto de instituições que prioritariamente
desenvolvem atividades relacionadas ao ensino de graduação, ficando a
pós-graduação, a pesquisa e as ações mais efetivas de interação com a
sociedade por conta de poucas instituições.
Entretanto, não se pode falar sobre o financiamento das IES sem se
perguntar o que se espera desse conjunto heterogêneo de instituições, ou
seja, que papel e que funções elas devem desempenhar, considerando-se a
legislação, a cultura e a realidade do país.
As instituições públicas são financiadas pelo fundo público,3 e há a
“tentativa ou a tentação do controle estatal, a fim de obrigar a universidade
a cumprir seus deveres com a sociedade" (Berchem, 1990, p. 28-29). O

2
Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e Organização Mundial do Comércio (OMC).
3
O fundo público de um país reúne os recursos financeiros colocados à disposição dos seus dirigentes – poderes Executivo
e Legislativo – para implementar políticas públicas.

260
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

financiamento das instituições privadas se dá no quase-mercado4 educaci-


onal, pelo pagamento de mensalidades pelos estudantes e pela assinatura
de contratos com a iniciativa privada. Assim, é o mercado que tende a fazer
o controle dos rumos das atividades acadêmicas da universidade. Quando o
financiamento com recursos do fundo público se torna insuficiente, as ins-
tituições públicas são forçadas a dirigirem-se ao mercado prestando servi-
ços, oferecendo cursos, assessorias e consultorias remuneradas, e passam,
então, a enfrentar dois pólos de controle: o estatal e o do mercado. O
Estado e o mercado, cada um a seu modo, procura, em geral, tolher a
liberdade acadêmica da instituição. A ida ao mercado representa, conse-
qüentemente, uma mercantilização da educação superior (Sguissardi; Silva
Júnior, 2005).
As instituições públicas, por viverem essa tensão entre as ações do
estado e do mercado, passam a desenvolver um conjunto de atividades
que as caracteriza como uma multidiversidade, que é “muito sucintamen-
te, uma universidade funcionalizada, disponível para o desempenho de
serviços públicos e a satisfação de necessidades sociais conforme as solici-
tações das agências financiadoras, estatais e não-estatais" (Santos, 1999,
p. 206). Portanto, as instituições afastam-se da possibilidade de conquis-
tar a autonomia (Fávero, 2000) e inserem-se em um processo de
heteronomia (Sguissardi, 2004).
As instituições privadas, por dependerem quase exclusivamente
do pagamento de mensalidades, sofrem pressões dos estudantes, do go-
verno e da sociedade para que exerçam plenamente as suas funções
acadêmicas. Entretanto, a concorrência imposta pelo quase-mercado
educacional praticamente as forçam a reduzir o valor pago mensalmente
pelos estudantes, o que, além de comprometer a qualidade das ativida-
des desenvolvidas pelas instituições, as impede de dar resposta satisfatória
às pressões que recebe.

4
“Quase-mercados são mercados porque substituem o monopólio dos fornecedores do Estado por uma diversidade de
fornecedores independentes e competitivos. São quase porque diferem dos mercados convencionais em aspectos importan-
tes" (Afonso, 2000, p. 115). Em outros termos, ocorrem diferenças no “quase-mercado" em relação ao mercado livre tanto
do lado da demanda como da oferta. As características dos “serviços educacionais" ou da “mercadoria educacional" são
diferentes das dos serviços e mercadorias típicas. Os maiores controle e regulação do poder público sobre os “fornecedores"
e os próprios “serviços" educacionais são muito mais estritos e normatizados.

261
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

A legislação brasileira, por meio da Constituição de 1988, da Lei de


Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, e do Plano Nacional de
Educação (PNE), de 2001, parece estabelecer papéis diferentes e comple-
mentares para o setor público e para o setor privado da educação superior
brasileira. Caberia ao setor público o desenvolvimento da pesquisa e da pós-
graduação que, sabidamente, oneram sobremaneira as instituições que as
realizam. Para o desenvolvimento de suas atividades as instituições públicas
teriam garantido, segundo a LDB (artigo 55), uma quantidade de "recursos
suficientes" em seus orçamentos globais. As metas financeiras estabelecidas
no PNE foram vetadas no governo FHC e, dessa forma, segundo o Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o PNE “pode ter se reduzido a uma
mera carta de intenções" (Brasil, 2002, p. 49-50). Há, portanto, que se per-
guntar: o que ocorreu com o financiamento das instituições federais de
ensino superior (Ifes), importante conjunto de instituições públicas, ao lon-
go dos anos 1990 e nos primeiros anos do novo século?
Este estudo explicita uma resposta para essa questão e, para isso,
apresenta primeiro, o perfil do financiamento das IES brasileiras, tanto
públicas quanto privadas. Em segundo lugar apresenta como a legislação
brasileira estabelece as funções e as regras de financiamento das institui-
ções públicas para, finalmente, apresentar o financiamento das Ifes du-
rante os governos Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio
Lula da Silva, destacando os recursos do pagamento de salários e encargos
sociais dos professores e servidores técnico-administrativos em atividade,
para a efetiva manutenção das instituições e aplicação em investimentos.
Explicita-se ainda o comportamento dos recursos financeiros em relação à
riqueza nacional, representada por três indicadores: o Produto Interno
Bruto (PIB),5 as despesas correntes do Fundo Público Federal (FPF)6 e os
impostos arrecadados pela União.7

5
O PIB de um país expressa a sua riqueza e é a soma de todos os bens e serviços adquiridos pela população e pelos governos
(federal, distrital, estadual, municipal), com os investimentos realizados, além de adicionar a diferença entre exportação e
importação (www.ipib.com.br, acesso em 9/10/2006).
6
As despesas correntes do Fundo Público Federal são: pagamento de pessoal ativo (civil e militar), aquisição de material de
consumo, pagamento de serviços de terceiros (pessoa física e jurídica), pagamento de encargos diversos, pagamento de
subvenções sociais e econômicas, pagamento de inativos, pensionistas, salário-família, abono familiar, pagamento de juros
e encargos da dívida pública (interna e externa), contribuições de previdência social etc.
7
Os impostos da União são os seguintes: Imposto sobre Importação, Imposto sobre a Exportação, Imposto sobre Produtos
Industrializados, Imposto sobre a Renda, Imposto sobre Operações Financeiras e Imposto Territorial Rural.

262
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

Perfil das IES brasileiras: financiamento

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio


Teixeira (Inep), ao divulgar os resultados dos censos da educação superior,
classifica as IES brasileiras em categorias administrativas, conforme a
vinculação de suas mantenedoras: instituições federais, estaduais, muni-
cipais, particulares e comunitárias/confessionais/filantrópicas.
No Censo da Educação Superior de 2004 foram coletadas informa-
ções em 2.013 instituições, sendo 87 federais, 75 estaduais, 62 munici-
pais, 1.401 particulares e 38 comunitárias/confessionais/filantrópicas; das
instituições federais, 55 são classificadas como instituições federais de
ensino superior.
Os dados financeiros das IES brasileiras, tanto públicas quanto pri-
vadas, apurados pelo Inep por meio dos Censos da Educação Superior, nos
anos de 2001 a 2004 (Inep, 2006b) revelam a origem dos recursos que
mantêm o funcionamento das instituições.8
Os recursos que financiam as atividades das instituições federais são,
em sua maior parte, originários da União, 88%; os recursos restantes vincu-
lam-se a convênios, 9%, e receitas próprias, 3%, oriundas de prestação de
serviços e de taxas cobradas dos estudantes. Registra-se que são ínfimos os
recursos aplicados nas instituições federais, pelos Estados e municípios.
As instituições estaduais recebem recursos dos Estados, 87% de
seus recursos, da União, 0,8%, e dos municípios, menos de 0,3%; os
recursos restantes originam-se da execução de contratos, convênios e de
taxas estudantis.
As instituições municipais recebem poucos recursos da União, dos
Estados e dos municípios, em torno de 5%, sendo que o montante de recur-
sos oriundos de mensalidades atinge um elevado percentual de cerca de
80%; os outros recursos são os do Programa de Financiamento Estudantil
(Fies), da ordem de 2,5%, recursos das mantenedoras – em geral fundações
– e de convênios e contratos. Deve-se ressaltar que as IES municipais, apesar

8
Os recursos financeiros apurados no censo de um determinado ano significam aqueles recursos efetivamente gastos no
ano anterior. Os recursos financeiros presentes neste estudo e que foram apurados pelo Censo da Educação Superior são,
portanto, aqueles referentes aos anos de 2000 a 2003.

263
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

de públicas, cobram mensalidades, fato admitido pelas disposições transitó-


rias da Constituição Federal de 1988 para as IES municipais já existentes
naquele ano.
As instituições particulares, no sentido estrito, são financiadas quase
totalmente pelos recursos oriundos do pagamento de mensalidades, 88%,
e do Fies, 5%; os recursos aplicados pelas mantenedoras não chegam a
2% e os recursos restantes originam-se de convênios e contratos. Os re-
cursos aportados pela União, Estados e municípios são ínfimos.
As instituições comunitárias/confessionais/filantrópicas possuem,
assim como as particulares, a maior parte dos seus recursos com origem na
cobrança de mensalidades, 84% e do Fies, 5,5%; as mantenedoras aplicam
2% dos recursos dessas instituições e a União, Estados e municípios, 0,3%
dos seus recursos. Os outros recursos são aqueles que se originam de con-
vênios e contratos.
As instituições federais e estaduais executam muitos contratos e
convênios por meio de fundações de apoio. Deve-se ressaltar que esses
recursos não são apuráveis de forma simples e que, portanto, não estão
presentes em nenhum dos componentes de gastos presentes neste estudo.
A Tabela 1 sistematiza as informações relativas à origem dos recur-
sos que financiam as IES, sejam públicas ou privadas.

Tabela 1 – Origem dos recursos que financiam as atividades das IES


Convênios/Contratos/
Organização União Estado Município Mensalidades
FIES % Prestação de
administrativa % % % %
Serviços/Mantenedora %
Federais 88 - - - - 12
Estaduais 0,8 87 0,3 - - 11,9
Municipais Soma = 5% 80 2,5 12,5
Particulares - - - 88 5 7
Com./Conf./Filan. Soma = 0,3% 84 5,5 10,2
Fonte: Censo da Educação Superior 2001-2004 – MEC/Inep.

Verifica-se, portanto, que as instituições federais e estaduais são


financiadas quase exclusivamente pelos fundos públicos federal e estadu-
al; as instituições municipais, particulares e comunitárias/confessionais/
filantrópicas são financiadas basicamente pelos estudantes, por meio do
pagamento de mensalidades.

264
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

As instituições federais gastam cerca de 80% dos recursos com o


pagamento de pessoal, o que engloba o pagamento de pessoal ativo, 49%,
o pagamento de inativos e pensionistas, 22%, o pagamento de benefícios,
2,5%, e o pagamento de outras despesas de pessoal, da ordem de 4,5%; as
despesas de custeio das instituições federais atingem 18% e as de capital
não chegam a 2% que são aqueles recursos destinados à aquisição de acer-
vo bibliográfico, equipamentos, material permanente, obras e instalações.
As instituições estaduais aplicam 74% dos recursos para o paga-
mento de pessoal, sendo 50% para o pagamento de ativos e 17% para o
pagamento de inativos e pensionistas. Os benefícios atingem 1,5% e as
outras despesas de pessoal, 6%. Os recursos de custeio representam 21%
do total de recursos e os de capital, em torno de 5%.
As instituições municipais gastam 62% de seus recursos com o
pagamento de pessoal, sendo 56% para o pagamento de ativos. Apenas
0,3% são utilizados para o pagamento de inativos e pensionistas. Os re-
cursos de custeio atingem 25% do total e os de capital, 11%.
As instituições particulares dedicam 53% para o pagamento de
pessoal, sendo 49% para ativos; o pagamento de inativos e pensionistas
não chega a 0,2%; os benefícios, 1,7%, e o restante dirige-se ao paga-
mento de outras despesas de pessoal. Os gastos com custeio atingem 28%
do total de recursos e as despesas de capital atingem 20%.
O pagamento de pessoal das instituições comunitárias/confessionais/
filantrópicas atinge 55% das despesas; o pagamento de inativos é pratica-
mente nulo; os benefícios atingem 2% e as outras despesas de pessoal não
chegam a 2%. As despesas com o custeio atingem 29% do total e as de
capital, 15,5%.

Tabela 2 – Despesas realizadas pelas IES, com pessoal, custeio


e capital
Pessoal Custeio Capital

Organização Ativo Inativos e Benefícios Outras despesas % %


administrativa % Pensionistas % %
%
Federais 49 22 2,5 4,5 18 2
Estaduais 50 17 1,5 6 21 5
Municipais 56 0,3 4 1,7 25 11
Particulares 49 0,2 1,7 2,1 28 20
Com./Conf./Filan. 51 - 2 2 29 15,5
Fonte: Censo da Educação Superior 2001-2004 – MEC/Inep.

265
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Nota-se que o percentual aplicado pelas instituições em pessoal ati-


vo gira em torno de 50% dos recursos gastos pelas instituições, indepen-
dentemente da organização administrativa, sendo que as instituições fede-
rais e estaduais possuem como item de suas despesas o pagamento de ina-
tivos e pensionistas, em elevados percentuais de 22% e 17%, respectiva-
mente. Portanto, se quisermos fazer comparações, por exemplo, entre cus-
tos para a formação de um aluno de graduação, não podemos considerar os
gastos que as IES federais e estaduais fazem com o pagamento de inativos
e pensionistas. Verifica-se também o baixo percentual das despesas totais
aplicado em despesas de capital pelas IES federais e estaduais em relação às
IES municipais, particulares e comunitárias, confessionais e filantrópicas.

Funções e financiamento das IES brasileiras

Há um complexo de funções a serem cumpridas pelas instituições


de educação superior brasileiras, o que compõe um largo espectro de ati-
vidades desde estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito
científico e do pensamento reflexivo, como prevê a LDB, até encontrar
solução para os problemas atuais, em todos os campos da vida e da ativi-
dade humana objetivando um futuro melhor para a sociedade brasileira,
reduzindo as desigualdades, como estabelece o PNE.
Algumas diretrizes estabelecidas no PNE parecem organizar papéis
diferentes e ou complementares para o sistema público e para o sistema
privado. Este está previsto na Constituição Federal (1988), em seu artigo
209, que estabeleceu que o ensino é livre à iniciativa privada, sob as con-
dições de cumprimento das normas gerais da educação nacional e autori-
zação e avaliação de qualidade pelo poder público.
O PNE ressalta a importância do setor privado no processo de ex-
pansão do número de vagas na educação superior: “É importante a con-
tribuição do setor privado, que já oferece a maior parte das vagas na
educação superior e tem um relevante papel a cumprir, desde que respei-
tados os parâmetros de qualidade estabelecidos pelos sistemas de ensino".
Explicita, ainda, que “as instituições não-vocacionadas para a pesquisa,
mas que praticam ensino de qualidade e, eventualmente, extensão, têm
um importante papel a cumprir no sistema de educação superior e sua
expansão, devendo exercer inclusive prerrogativas da autonomia".

266
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

As instituições públicas merecem, no PNE (Brasil, 2001), um desta-


que especial quando se fala da pesquisa e da pós-graduação e, ainda, quan-
do é prevista a expansão de suas vagas para absorver um maior contingente
de pessoas carentes e aquelas que só poderiam estudar no período noturno.
O PNE, em suas diretrizes, expressa esses fatos da seguinte forma:

(a) Há necessidade de expansão das universidades públicas para


atender à demanda crescente dos alunos, sobretudo os caren-
tes, bem como ao desenvolvimento da pesquisa necessária ao
País, que depende dessas instituições, uma vez que realizam
mais de 90% da pesquisa e da pós-graduação nacionais – em
sintonia com o papel constitucional a elas reservado;
(b) Ressalte-se a importância da expansão de vagas no período
noturno, considerando que as universidades, sobretudo as fe-
derais, possuem espaço para esse fim, destacando a necessida-
de de se garantir o acesso a laboratórios, bibliotecas e outros
recursos que assegurem ao aluno-trabalhador o ensino de qua-
lidade a que têm direito, nas mesmas condições de que dispõem
os estudantes do período diurno.

Assim, para o setor público, ficariam as responsabilidades de realizar


pesquisa, oferecer programas de pós-graduação e desenvolver ações que per-
mitam uma expansão que procure absorver alunos carentes e aluno-trabalha-
dor em cursos noturnos. Ao setor privado especifica-se o papel de suportar
uma grande expansão do número de vagas mantendo-se um determinado
nível de qualidade, além do fato de que a instituição privada classificada
como universidade precisaria, também, desenvolver pesquisa e oferecer pós-
graduação stricto sensu. Dessa forma, o que se notou nos anos 1990 foi a
cristalização de um conjunto de instituições de educação superior que abri-
gou, como já afirmamos, uma grande heterogeneidade entre elas.
No que se refere ao financiamento, a legislação brasileira (CF,
artigo 213) estabeleceu em relação às instituições privadas que aquelas
classificadas como comunitárias, confessionais ou filantrópicas, que
comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes fi-
nanceiros em educação e que assegurem a destinação de seu patrimônio
a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao poder
público, no caso de encerramento de suas atividades, podem receber

267
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

recursos públicos. Quando se trata de atividades de pesquisa e exten-


são, qualquer instituição privada, mesmo a particular em sentido estri-
to, poderá receber apoio financeiro do poder público.
No que diz respeito às instituições públicas, tendo em vista o papel
que elas devem desempenhar, os legisladores procuraram estabelecer bases
concretas para o seu financiamento pelo Fundo Público. A Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 207, estabeleceu que as universidades e as
instituições de pesquisa científica e tecnológica gozam de autonomia de
gestão financeira e o artigo 212 vinculou recursos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos municípios à manutenção e desenvolvimento do ensi-
no, em todos os níveis:

A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o


Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da
receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferên-
cias, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

A LDB em seu artigo 47, no parágrafo quarto, garante a previsão orça-


mentária para que as instituições públicas ofereçam no período noturno, sendo
obrigatório que o façam, cursos de graduação nos mesmos padrões de qualida-
de dos cursos oferecidos no período diurno. O artigo 55 da LDB é enfático ao
estabelecer que “caberá à União assegurar, anualmente, em seu Orçamento
Geral, recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das institui-
ções de educação superior por ela mantidas." A LDB legislou, ainda, sobre a
autonomia universitária, explicitando atribuições inerentes às universidades.
Uma efetiva preocupação com o tema do financiamento e gestão
da educação superior ficou explicitada no PNE com a introdução de obje-
tivos e metas específicas sobre essa temática. Deve-se, entretanto, ressal-
tar, que as metas (a), (c) e (f), apresentadas a seguir, foram vetadas pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso.
Algumas metas e objetivos do PNE, relacionadas ao financiamento
e gestão institucional, são:

(a) (vetada) assegurar, na esfera federal, por meio de legislação, a criação


do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Superior, cons-
tituído, entre fontes, por pelo menos 75% dos recursos da União vincula-
dos à manutenção e desenvolvimento do ensino, destinados à manutenção
e expansão da rede de instituições federais; (b) estabelecer um sistema de
financiamento para o setor público, que considere, na distribuição de re-
cursos para cada instituição, além da pesquisa, o número de alunos atendi-
dos, resguardada a qualidade dessa oferta; (c) (vetada) ampliar o programa
de crédito educativo, associando-o ao processo de avaliação das institui-
ções privadas e agregando contribuições federais e estaduais, e, tanto quanto

268
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

possível, das próprias instituições beneficiadas, de modo a atender a, no


mínimo, 30% da população matriculada no setor particular, com priorida-
de para os estudantes de menor renda; (d) oferecer apoio e incentivo go-
vernamental para as instituições comunitárias sem fins lucrativos, prefe-
rencialmente aquelas situadas em localidades não atendidas pelo Poder
Público, levando em consideração a avaliação do custo e a qualidade do
ensino oferecido; (e) estimular, com recursos públicos federais e estaduais,
as instituições de educação superior a constituírem programas especiais de
titulação e capacitação de docentes, desenvolvendo e consolidando a pós-
graduação no País; (f) (vetada) ampliar o financiamento público à pesquisa
científica e tecnológica, por meio das agências federais e fundações esta-
duais de amparo à pesquisa e da colaboração com as empresas públicas e
privadas, de forma a triplicar, em dez anos, os recursos atualmente desti-
nados a esta finalidade; (g) utilizar parte dos recursos destinados à ciência
e tecnologia, para consolidar o desenvolvimento da pós-graduação e da
pesquisa; (h) estimular a adoção, pelas instituições públicas, de programas
de assistência estudantil, tais como, bolsa-trabalho ou outros destinados a
apoiar os estudantes carentes que demonstrem bom desempenho acadê-
mico (Brasil, 2001, p. 78-80).

Com relação ao montante dos recursos financeiros aplicados pelo


poder público brasileiro em educação – todos os níveis – os legisladores
ousaram ao propor no PNE que se elevasse

[...] na década, por meio de esforço conjunto da União, Estados, Distrito


Federal e Municípios, do percentual de gastos públicos em relação ao PIB,
aplicados em educação, para atingir o mínimo de 7%. Para tanto, os recur-
sos devem ser ampliados, anualmente, à razão de 0,5% do PIB, nos quatro
primeiros anos do Plano e de 0,6% no quinto ano.

No entanto, essa meta foi também vetada pelo presidente Fernando


Henrique Cardoso.

Os gastos das Ifes nos governos Sarney,


Collor, Itamar, FHC e Lula

Tendo em vista a dimensão e a importância das Ifes para o Brasil, em suas


funções de realizar pesquisa e oferecer programas de pós-graduação há que se
analisar como se comportaram os recursos originários do fundo público, excluí-
dos os seus recursos chamados de próprios, e que se dirigiram às Ifes para o
pagamento de pessoal e encargos sociais daqueles trabalhadores em atividade,
para a efetiva manutenção de suas atividades e para os investimentos realizados
pelas instituições. As informações contidas neste estudo analisam os recursos
aplicados nos governos Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006).

269
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Os recursos financeiros para o pagamento


de pessoal e encargos sociais

Ao se analisar os recursos do fundo público que se dirigiram ao


pagamento de pessoal e encargos sociais, é preciso examiná-lo retirando-
se o pagamento de inativos, pensionistas e precatórios. Dessa forma pode-
mos obter os valores que se destinam ao pagamento daqueles que se
encontram em efetiva atividade em um determinado ano acadêmico.
A Tabela 3 apresenta os valores, em milhões de reais, corrigidos
pelo IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas, a preços de janeiro de 2006,
gastos com o pagamento de pessoal e encargos sociais das Ifes, retirando-
se o pagamento de inativos, pensionistas e precatórios. A tabela apresenta
ainda esses valores em relação a três importantes indicadores da riqueza
nacional, o Produto Interno Bruto (PIB), as despesas correntes do Fundo
Público Federal (FPF) e o total da arrecadação de impostos da União.

Tabela 3 – Recursos para pessoal e encargos sociais das Ifes retirando-se


inativos, pensionistas e precatórios, como percentual do PIB, das
despesas correntes do FPF e da arrecadação de impostosda União
Valores em R$ milhões, preços de janeiro de 2006 (IGP-DI/FGV)
,p ç j ( )
Ano PIB Despesas Impostos Ifes
correntes Recursos para pessoal e encargos sociais
do FPF Recursos %PIB %FPF % Impostos
1990 1.697.785 277.019 162.884 9.823 0,58 3,55 6,03
1991 1.725.579 201.352 113.459 6.852 0,40 3,40 6,04
1992 1.681.524 222.591 68.546 5.669 0,34 2,55 8,27
1993 1.678.387 285.934 125.715 6.839 0,41 2,39 5,44
1994 1.658.483 276.324 167.905 7.831 0,47 2,83 4,66
1995 1.832.684 315.744 144.248 8.937 0,49 2,83 6,20
1996 1.988.410 326.167 144.353 7.830 0,39 2,40 5,42
1997 2.059.926 334.493 147.838 7.259 0,35 2,17 4,91
1998 2.081.781 368.525 164.946 7.034 0,34 1,91 4,26
1999 1.992.138 381.340 165.869 7.582 0,38 1,99 4,57
2000 1.980.085 356.775 151.286 7.160 0,36 2,01 4,73
2001 1.953.001 381.049 158.464 6.499 0,33 1,71 4,10
2002 1.932.057 376.801 169.142 6.832 0,35 1,81 4,04
2003 1.819.019 355.023 146.786 5.250 0,29 1,48 3,58
2004 1.890.294 371.151 149.975 6.365 0,34 1,71 4,24
2005 1.953.671 428.258 167.884 5.958 0,30 1,39 3,55
2006* 1.961.486 494.152 187.932 7.591 0,39 1,54 4,04
Fonte:PIB:http://w w w .ipeadata.gov.br; Impostos: Arrecadação da Receita Administrada pela SRF.
http://w w w .receita.fazenda.gov.br; Recursos das Ifes: 1995-2005 :Execução Orçamentária da União –
http://w w w .camara.gov.br; Desp. correntes do FPF: Execução Orçamentária do Governo Federal e Balanço
Geral da União.
* O valor do PIB de 2006 foi estimado com uma correção de 4% em relação ao PIB de 2005. As despesas
correntes do FPF e os impostos foram corrigidos na mesma proporção de crescimento de 2004 para 2005. Os
recursos das Ifes são os previstos no Orçamento de 2006.

270
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

Os gráficos 1, 2 e 3 ilustram os percentuais explicitados na Tabela 3.

0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 1 – Total de recursos para pessoal e encargos sociais das Ifes,


retirando-se inativos, pensionistas e precatórios, como percentual
do PIB

4
3,5
3
2,5
2
1,5
1
0,5
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e LULA (2003-2006)

Gráfico 2 – Total de recursos para pessoal e encargos sociais das Ifes,


retirando-se inativos, pensionistas e precatórios, como percentual
das despesas correntes do FPF

271
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e LULA (2003-2006)

Gráfico 3 – Total de recursos para pessoal e encargos sociais das Ifes,


retirando-se inativos, pensionistas e precatórios, como percentual
dos impostos

Os recursos em relação ao PIB caíram de 0,58% em 1990, primeiro


ano do governo Collor, para 0,34% em 1992, ano do impeachment do
presidente. Pode-se, portanto, afirmar que houve uma grande perda da
massa salarial dos professores e servidores técnico-administrativos das Ifes.
Em preços de janeiro de 2006 (IGP-DI a FGV), o montante de salários
pagos nas Ifes reduziu-se de R$ 9.823 milhões para R$ 5.669 milhões, ou
seja, uma redução percentual de 42,3%. No ano de 1993, primeiro ano do
governo Itamar Franco, o percentual do PIB gasto com o pessoal ativo das
Ifes foi de 0,41%, chegando a 0,47% em 1994, último ano desse governo.
Em 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso o percentual
subiu para 0,49% e caiu para 0,35% no ano de 2002, último ano de seu
governo. O montante do pagamento dos salários caiu de R$ 8.937 milhões
para R$ 6.832 – uma redução de 23,6%. No governo Luiz Inácio Lula da
Silva, os percentuais foram de 0,29% no ano de 2003 e a previsão para o
ano de 2006 é de 0,39% do PIB. Há que se considerar que no ano de 2006
efetivou-se o início de uma expansão do sistema em que foram transfor-
madas faculdades em universidades, campus em instituições independen-
tes e foram criadas novas universidades.
Examinando os percentuais em relação às despesas correntes do
FPF encontra-se que há uma queda sistemática desse indicador, de 3,35%,
em 1990, para 1,54%, em 2006. Com relação aos impostos arrecadados

272
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

pela União os percentuais oscilaram entre 3,5% e 6%, atingindo um valor


de pico em 1992, 8,27%, resultante não do aumento dos recursos das Ifes,
mas sim de uma drástica redução na arrecadação de impostos, R$ 113.459
milhões em 1991 para R$ 68.546 milhões em 1992.

Os recursos financeiros para


a efetiva manutenção das Ifes

Para analisar os recursos financeiros que se dirigiram à efetiva ma-


nutenção das Ifes consideraremos aqueles recursos que se destinaram aos
gastos com outras despesas correntes9 e retiraremos os que foram gastos
com vale-transporte, auxílio-alimentação, assistência médica e odontológica
a servidores e seus dependentes, apoio à educação das crianças de 0 a 6
anos – chamado de vale-creche –, e o Programa de Formação do Patrimônio
do Servidor Público (Pasep), formação do Patrimônio do Servidor Público.
São esses itens de despesas que se caracterizam como benefícios aos ser-
vidores, muitos deles implantados para amenizar arrochos salariais que
impediram os aumentos lineares nos salários. Retiraremos, ainda, o paga-
mento de professores substitutos e de médicos residentes; os professores
substitutos deveriam ser pagos com recursos de pessoal, o que ocorreu até
o ano de 1996, e o pagamento de médicos residentes caracterizar-se-ia
como bolsas e não como manutenção das instituições. Ressalte-se que a
contratação de professores substitutos se faz necessária pela proibição de
abertura de novos concursos públicos para as vagas deixadas por aqueles
que se aposentaram.
A Tabela 4 apresenta os valores gastos com a efetiva manutenção
das Ifes, excluídos os recursos próprios, em milhões de reais, com preços
de janeiro de 2006, corrigidos pelo IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas,
além dos respectivos percentuais em relação ao PIB, despesas correntes do
FPF e impostos da União.

9
Outras despesas correntes são aquelas que se destinam à aquisição de material de consumo para os laboratórios, paga-
mento de água, luz, telefone, fotocópias, pagamento de serviços de terceiros, pagamento de professores substitutos (a
partir de 1997), etc.

273
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Tabela 4 – Recursos para a efetiva manutenção das Ifes, excluídos os


recursos próprios, como percentual do PIB, das despesas correntes
do FPF e da arrecadação de impostos da União
Valores em R$ milhões, preços de janeiro de 2006 (IGP-DI/FGV)

Ano PIB Despesas Impostos Ifes


correntes Recursos para a efetiva manutenção
do FPF Recursos %PIB %FPF % Impostos
1990 1.697.785 277.019 162.884 1.318 0,0777 0,4759 0,8094
1991 1.725.579 201.352 113.459 1.144 0,0663 0,5683 1,0086
1992 1.681.524 222.591 68.546 1.104 0,0657 0,4959 1,6105
1993 1.678.387 285.934 125.715 1.496 0,0891 0,5233 1,1902
1994 1.658.483 276.324 167.905 1.368 0,0825 0,4951 0,8148
1995 1.832.684 315.744 144.248 995 0,0543 0,3152 0,6900
1996 1.988.410 326.167 144.353 1.090 0,0548 0,3343 0,7554
1997 2.059.926 334.493 147.838 951 0,0462 0,2843 0,6432
1998 2.081.781 368.525 164.946 841 0,0404 0,2281 0,5096
1999 1.992.138 381.340 165.869 767 0,0385 0,2010 0,4621
2000 1.980.085 356.775 151.286 830 0,0419 0,2328 0,5489
2001 1.953.001 381.049 158.464 799 0,0409 0,2097 0,5043
2002 1.932.057 376.801 169.142 504 0,0261 0,1337 0,2979
2003 1.819.019 355.023 146.786 426 0,0234 0,1201 0,2905
2004 1.890.294 371.151 149.975 610 0,0323 0,1645 0,4070
2005 1.953.671 428.258 167.884 779 0,0399 0,1819 0,4640
2006* 1.961.486 494.152 187.932 1.258 0,0641 0,2546 0,6694
Fonte:PIB: Ipea – http://w w w .ipeadata.gov.br; Impostos: Arrecadação da Receita Administrada pela SRF.
http://w w w .receita.fazenda.gov.br; Recursos das Ifes: 1995-2005: Execução Orçamentária da União –
http://w w w .camara.gov.br; Desp. correntes do FPF: Execução Orçamentária do Governo Federal e Balanço
Geral da União.
* O valor do PIB de 2006 foi estimado com uma correção de 4% em relação ao PIB de 2005. As
despesas correntes do FPF e os impostos foram corrigidos na mesma proporção de crescimento
de 2004 para 2005. Os recursos das Ifes são os previstos no Orçamento de 2006.

Os gráficos 4, 5 e 6 ilustram a evolução dos percentuais em relação


aos indicadores estabelecidos.

0,1

0,08

0,06

0,04

0,02

0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 4 – Total de recursos para a efetiva manutenção das Ifes,


excluídos os recursos próprios, como percentual do PIB

274
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 5 – Total de recursos para a efetiva manutenção das Ifes,


excluídos os recursos próprios como percentual das despesas
correntes do FPF

1,8
1,6
1,4
1,2
1
0,8
0,6
0,4
0,2
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 6 – Total de recursos para a efetiva manutenção das Ifes,


excluídos os recursos próprios, como percentual dos impostos

A evolução dos recursos para a efetiva manutenção das Ifes apre-


sentou-se com as seguintes características:

a) No governo Collor os valores percentuais caíram de 0,077%, em


1990, para 0,066%, em 1992 - houve uma redução nos recursos
de R$ 1.318 milhões para R$ 1.104 milhões, ou seja, uma redu-
ção de 16,2%;
b) No governo Itamar os recursos aumentaram para 0,089% do PIB,
em 1993, e, em 1994, o percentual abaixou para 0,083% do
PIB;

275
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

c) Em 1995, primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso


esse percentual sofreu uma queda para 0,054% do PIB, atingin-
do, em 2002, o valor de 0,026%;
d) No período 2003-2006, governo Luiz Inácio Lula da Silva, o
percentual em relação ao PIB passou de 0,023% para 0,064%,
provocando uma recuperação nos valores de R$ 426 milhões
para R$ 1.258 bilhão. Há que se lembrar da expansão dos novos
campi universitários, o que fez aumentar automaticamente os
recursos para a efetiva manutenção das instituições.

Em relação às despesas correntes do FPF há uma persistente


queda, com flutuações, de 1990 até 2003, passando de 0,476%, em
1990, para 0,12%, em 2003, primeiro ano do governo Lula. De 2004 a
2006 houve um crescimento, de 0,16% para 0,25%, retornando a valo-
res percentuais dos anos de 1997-1998. Com relação aos impostos,
retirando-se o ano atípico de 1992 (grande queda na arrecadação dos
impostos), o comportamento é semelhante ao apresentado pelos
percentuais em relação às despesas correntes do FPF: queda até 2003
e recuperação de 2004 a 2006, retornando aos percentuais de 1996-
1997.

Os recursos financeiros para


investimentos nas Ifes

Os recursos especificados para investimentos são aqueles que se


destinam à aquisição de equipamentos, mobiliários, material bibliográfi-
co, obras físicas etc. Esses recursos, excluídos os diretamente arrecada-
dos pelas instituições, constam da Tabela 5, que apresenta ainda os
percentuais em relação ao PIB, despesas correntes do FPF e Impostos da
União.
Os gráficos 7, 8 e 9 ilustram os percentuais em relação a esses
indicadores da riqueza brasileira, PIB, despesas correntes do FPF e impos-
tos da União.

276
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

Tabela 5 – Recursos para investimentos nas Ifes, excluídos os


recursos próprios, como percentual do PIB, das despesas correntes
do FPF e da arrecadação de impostos da União
Valores em R$ milhões, preços de janeiro de 2006 (IGP-DI/FGV)
p j ( )
Ano PIB Despesas Impostos Ifes
correntes Recursos para investimentos
do FPF Recursos %PIB %FPF % Impostos
1990 1.697.785 277.019 162.884 508 0,0299 0,1834 0,3120
1991 1.725.579 201.352 113.459 379 0,0219 0,1880 0,3337
1992 1.681.524 222.591 68.546 316 0,0188 0,1420 0,4612
1993 1.678.387 285.934 125.715 307 0,0183 0,1074 0,2443
1994 1.658.483 276.324 167.905 299 0,0180 0,1081 0,1779
1995 1.832.684 315.744 144.248 198 0,0108 0,0626 0,1371
1996 1.988.410 326.167 144.353 261 0,0131 0,0801 0,1810
1997 2.059.926 334.493 147.838 143 0,0069 0,0427 0,0966
1998 2.081.781 368.525 164.946 10 0,0005 0,0028 0,0063
1999 1.992.138 381.340 165.869 26 0,0013 0,0069 0,0158
2000 1.980.085 356.775 151.286 91 0,0046 0,0255 0,0601
2001 1.953.001 381.049 158.464 51 0,0026 0,0135 0,0324
2002 1.932.057 376.801 169.142 40 0,0021 0,0107 0,0239
2003 1.819.019 355.023 146.786 49 0,0027 0,0138 0,0334
2004 1.890.294 371.151 149.975 95 0,0050 0,0257 0,0636
2005 1.953.671 428.258 167.884 155 0,0080 0,0363 0,0926
2006 1.961.486 494.152 187.932 416 0,0212 0,0842 0,2214
Fonte:PIB: Ipea – http://w w w .ipeadata.gov.br; Impostos: Arrecadação da Receita Administrada pela SRF.
http://w w w .receita.fazenda.gov.br; Recursos das Ifes: 1995-2005: Execução Orçamentária da União –
http://w w w .camara.gov.br; Desp. correntes do FPF: Execução Orçamentária do Governo Federal e Balanço
Geral da União.
* O valor do PIB de 2006 foi estimado com uma correção de 4% em relação ao PIB de 2005. As
despesas correntes do FPF e os impostos foram corrigidos na mesma proporção de crescimento
de 2004 para 2005. Os recursos das Ifes são os previstos no orçamento de 2006.

0,035
0,03
0,025
0,02
0,015
0,01
0,005
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 7 – Total de recursos para investimentos nas Ifes,


excluídos os recursos próprios, como percentual do PIB

277
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

0,2

0,15

0,1

0,05

0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 8 – Total de recursos para investimentos nas Ifes, excluídos


os recursos próprios, como percentual das despesas correntes do FPF

0,5
0,45
0,4
0,35
0,3
0,25
0,2
0,15
0,1
0,05
0
1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006
%

Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Gráfico 9 – Total de recursos para investimentos nas Ifes, excluídos


os recursos próprios, como percentual dos impostos

Os recursos para o investimento nas Ifes, em relação ao PIB, apre-


sentaram um perfil de uma queda vertiginosa de 1990 a 1998, de R$ 508
milhões para apenas R$ 10 milhões; flutuações de 1998 a 2002 e um
rápido crescimento de 2003 a 2006; R$ 49 milhões em 2003 e R$ 416
milhões em 2006, retomando valores percentuais de 1991. É necessário
lembrar que uma parte da expansão desses recursos para investimento se
deve ao processo de transformação e de instalação de novas Ifes no País.
Em relação às despesas correntes do FPF e impostos, os gráficos 8
e 9 explicitam um comportamento semelhante ao do Gráfico 7 em relação
ao PIB. Ressalte-se, novamente o valor atípico de 1992, quando os recur-
sos de investimentos são relacionados aos impostos.

278
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

Considerações finais

Neste estudo tratou-se de examinar o perfil das instituições de edu-


cação superior (IES) brasileiras em relação aos seguintes aspectos: origem
dos recursos financeiros que são aplicados nas IES e como são distribuídos
os recursos para o pagamento de pessoal, custeio e capital. As funções das
IES e como se dá o financiamento das instituições na legislação brasileira
foram examinadas em seguida, para, depois apresentarmos como se efeti-
vou o financiamento nas instituições federais de ensino superior (Ifes) nos
governos Collor, Itamar, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula.
A análise da origem dos recursos das instituições mostrou que as
IFES dependem dos recursos da União, as estaduais são financiadas com
recursos dos Estados e as municipais, particulares e comunitárias/
confessionais/filantrópicas dependem fundamentalmente das mensalida-
des pagas pelos estudantes. Os recursos advindos de convênios, contratos,
prestação de serviços e das mantenedoras não atingem 13% dos recursos
das instituições, sejam elas públicas ou privadas.
Ao se examinar a distribuição das despesas realizadas com pessoal,
custeio e capital explicita-se que a presença de inativos e pensionistas na
execução orçamentária das federais e estaduais deforma a distribuição de
recursos, o que impossibilita uma comparação direta dos dados financei-
ros entre as instituições.
As Ifes constituem um conjunto heterogêneo de instituições insta-
ladas em todos os Estados brasileiros, promovendo uma intensa atuação
na pós-graduação stricto sensu em quase todos eles e, por isso mesmo,
tornam-se locais ideais para examinarem-se como, ao longo do tempo, os
governantes do País (poderes Executivo e Legislativo) trataram de aportar
recursos financeiros para o pagamento de pessoal em atividade, e para
custeio, no sentido de efetiva manutenção e realização de investimentos.
Portanto, a partir do detalhamento dos recursos das Ifes pode-se inferir
em que períodos houve expansão financeira e em que ocasiões o sistema
foi submetido a arrochos financeiros, que provocam degenerescência das
instituições que, como vimos, desempenham o importante papel de
homogeneizar a educação superior em todo o País, contribuindo para
diminuir as desigualdades regionais e para preparar os jovens para implan-
tarem e desenvolverem novas tecnologias.

279
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Pode-se verificar que houve, a parir de 1990, uma diminuição subs-


tancial nos recursos originários do tesouro nacional com tendência à recu-
peração nos anos 2004 a 2006, no governo Lula, com a ressalva de que
uma parte dos recursos se dirigiu ao financiamento da expansão das Ifes
que se consolidou de 2005 para 2006.
Faz parte da proposta para a educação, apresentada pelo então
candidato Lula, em 2002, no documento intitulado “Uma Escola do Ta-
manho do Brasil", o aumento, em relação ao PIB, do percentual dos recur-
sos financeiros aplicados em educação pública. A Tabela 6 e o Gráfico 10
mostram os valores aplicados de 1989 a 2006 nas Ifes, considerando todas
as fontes de recursos.

Tabela 6 – Total de recursos das Ifes, todas as fontes, como


percentual do PIB, das despesas correntes do FPF e da arrecadação
de impostos da União
Valores em R$ milhões, preços de janeiro de 2006 (IGP-DI/FGV)
p ç j ( )
Ano PIB Despesas Impostos Ifes
correntes Total de recursos, todas as fontes
do FPF Recursos %PIB %FPF % Impostos
1989 1.696.848 289.169 131.789 16.472 0,9707 5,6962 12,4985
1990 1.697.785 277.019 162.884 13.412 0,7900 4,8417 8,2343
1991 1.725.579 201.352 113.459 10.554 0,6116 5,2414 9,3016
1992 1.681.524 222.591 68.546 9.542 0,5675 4,2869 13,9211
1993 1.678.387 285.934 125.715 12.387 0,7380 4,3321 9,8533
1994 1.658.483 276.324 167.905 15.064 0,9083 5,4515 8,9717
1995 1.832.684 315.744 144.248 16.156 0,8816 5,1169 11,2003
1996 1.988.410 326.167 144.353 14.558 0,7321 4,4633 10,0850
1997 2.059.926 334.493 147.838 14.302 0,6943 4,2758 9,6743
1998 2.081.781 368.525 164.946 14.050 0,6749 3,8126 8,5182
1999 1.992.138 381.340 165.869 13.753 0,6903 3,6064 8,2913
2000 1.980.085 356.775 151.286 12.964 0,6547 3,6336 8,5691
2001 1.953.001 381.049 158.464 11.863 0,6074 3,1133 7,4865
2002 1.932.057 376.801 169.142 12.063 0,6243 3,2013 7,1317
2003 1.819.019 355.023 146.786 10.707 0,5886 3,0158 7,2941
2004 1.890.294 371.151 149.975 11.851 0,6269 3,1930 7,9018
2005 1.953.671 428.258 167.884 11.465 0,5869 2,6772 6,8293
2006 1.961.486 494.152 187.932 13.751 0,7011 2,7827 7,3170
Fonte: PIB: Ipea – http://w w w .ipeadata.gov.br; Impostos: Arrecadação da Receita Administrada pela SRF.
http://w w w .receita.fazenda.gov.br; Recursos das Ifes: 1995-2005: Execução Orçamentária da União –
http://w w w .camara.gov.br; Desp. correntes do FPF: Execução Orçamentária do Governo Federal e Balanço
Geral da União.
* O valor do PIB de 2006 foi estimado com uma correção de 4% em relação ao PIB de 2005. As
despesas correntes do FPF e os impostos foram corrigidos na mesma proporção de crescimento
de 2004 para 2005. Os recursos das Ifes são os previstos no Orçamento de 2006.

280
Financiamento da educação superior no Brasil:
gastos com as Ifes – de Fernando Collor a Luiz Inácio Lula da Silva

1,2
1
0,8
0,6
0,4
0,2
0
1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996
1997

1998
1999

2000

2001

2002
2003

2004

2005

2006
%

Sarney, 1989
Collor (1990-1992), Itamar (1993-1994), FHC (1995-2002) e LULA (2003-2006)

Gráfico 10 – Total de recursos das Ifes, todas as fontes,


como percentual do PIB

Nota-se no Gráfico 10 que elevar os recursos totais das Ifes, todas


as fontes, em relação ao PIB, é uma meta importante ainda a ser persegui-
da já que, apenas no ano de 2006, em perspectiva, é que o total de recur-
sos aplicados nas Ifes se elevou em relação ao PIB, depois de uma persis-
tente queda de 1994 a 2005.
As estratégias utilizadas pelos governos, ao longo do tempo, de
redução dos recursos dos fundos públicos aplicados nas instituições públi-
cas atingem frontalmente o que elas possuem de mais caro, a autonomia
acadêmica. Sob o achatamento de seus recursos, há um tolhimento à
liberdade acadêmica das instituições, que passa a dirigir muitas de suas
ações para atender aos interesses utilitaristas de, em geral, exigentes
financiadores privados.
A situação de reversão, que passou a existir a partir de 2006, preci-
sa se manter por muito tempo, a fim de não existir o risco de o Brasil
perder um complexo de instituições que além de “estimular a criação cul-
tural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexi-
vo", como prevê a LDB, deveria ter condições para “encontrar solução para
os problemas atuais, em todos os campos da vida e da atividade humana
e abrindo um horizonte para um futuro melhor para a sociedade brasileira,
reduzindo as desigualdades", como estabelece o PNE.

281
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

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É possível conciliar avaliação educativa com processos de regulação e controle
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282
E) Internacionalização
13
Internacionalização da Educação
Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades
tecnologicamente avançadas
Marilia Costa Morosini*

* Doutora em Educação (UFRS); professora PUC-RS; coordenadora da Rede Universitas (http://www.pucrs.br/faced/pos/


universitas); bolsista Produtividade CNPq; pós-doutora junto ao Institute of Latin American Studies (Llilas), da Universida-
de do Texas; e-mail: morosini@via-rs.net.
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

Se uma pessoa tivesse saído do Brasil há 10 anos e retornado hoje,


em 2006, sem ter nesse período, contatos com a realidade brasileira, fica-
ria surpresa com as mudanças que ocorreram na educação superior do
País. De um sistema praticamente intocado desde a sua implantação, em
meados do século XIX, essa pessoa encontraria um país com 2.013 insti-
tuições de educação superior (IES), 1.001 na Região Sudeste e somente
118 na Região Norte, 89% privadas e, 73% faculdades, escolas e institu-
tos, 4.163.733 milhões de alunos matriculados em 18.644 cursos e 293.242
funções docentes, dos quais 21% com doutorado, e grande parte das fun-
ções docentes em regime de trabalho parcial (MEC/Inep, 2006).
As IES pautavam-se em uma concepção, de longa data existente,
de modelos universitários mistos, de origem napoleônica e/ou humboldtiana,
nos quais a figura de universidade era a regra e, destacadamente a da
universidade pública. A LDB nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional), de 20 de dezembro de 1996, foi um dos marcos
normativos dessa mudança. Hoje, estamos diante de um sistema comple-
xo e diversificado pendendo para um modelo híbrido, heterônimo e
neoprofissional (Sguissardi, 2003), em um sistema de educação superior

287
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

caracterizado pela: concentração em regiões desenvolvidas do país; ex-


pansão; privatização; centralização da avaliação de IES e/ou de cursos; e,
mais recentemente, pela internacionalização da educação superior.
Didriksson (2006, p. 2) registra:

[...] la importancia que está adquiriendo la internacionalización de los procesos


de aprendizaje y de conocimiento, la aparición de redes y asociaciones
académicas, la movilidad de estudiantes y los nuevos procesos de transferencia
de conocimientos y tecnologías. Las anteriores son tan solo algunas de las
tendencias fundamentales que durante los últimos decenios están en proceso
en la educación superior de América Latina y el Caribe, y hacia el futuro éstas
aparecen aún más pronunciadas y diferenciadas.

Nesse contexto, o presente artigo objetiva analisar a inserção da


internacionalização da educação superior, no Brasil, destacando a pers-
pectiva institucional, ou seja, a das funções universitárias (ensino e pes-
quisa). Essa perspectiva é inerente “à universidade como modelo e se faz
presente, basicamente, desde o desenvolvimento da pós-graduação no
País, na década de 1970". O trabalho considera, secundariamente, a pers-
pectiva da internacionalização da educação superior nos textos da Orga-
nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
diante da importância que este organismo multilateral ocupa no panora-
ma mundial. Exemplos de integração regional no Mercosul e na América
Latina (AL) são apresentados. A perspectiva de integração transnacional
como a Organização Mundial do Comércio (OMC), não é abordada neste
trabalho.

Sociedades tecnologicamente avançadas


e os novos padrões da educação

O contexto macrossocial de concepção de mundo está em uma


fase de transição (Santos, 2004) e um novo conceito de sociedade nos
desafia. Do paradigma da sociedade pré-industrial, do século XVIII, ao da
sociedade industrial, dos séculos XIX e XX, estamos, hoje, em fase de tran-
sição para o paradigma das sociedades tecnologicamente avançadas
(Tezanos, 2001).
Nessas sociedades, no plano do sistema econômico, as forças
produtivas não têm mais o esforço físico como definidor, mas sim o

288
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

conhecimento,1 objeto da educação superior. Mesmo que exista o re-


conhecimento do declínio do monopólio do conhecimento na universi-
dade e em suas antigas funções e a existência de uma diversidade de
modelos de universidades e tipos de conhecimento (Delanty, 2001), tal
razão de ser se mantém. A universidade pós-moderna contesta o co-
nhecimento global e reconhece a emergência de conhecimentos locais
e um crescente ceticismo sobre a afirmação de universalismo construído
sobre valores da racionalidade cognitiva.
No plano do sistema social, as referências são a transnacionalização
e a universalização dos costumes, com conteúdos culturais heterogêneos e
pluricurriculares em uma diversidade de modelos e referenciais sociais, com
tendências residenciais suburbanas e com dispersão do hábitat, em modos
de vida caracterizados por estilos imaginativos, alternativos e com rupturas.
No plano do sistema político o modelo de Estado será o caracteri-
zado por espaços políticos supranacionais, transnacionalização das esfe-
ras políticas efetivas, descontrole político da atividade econômica e novos
modelos de eficiência e de qualidade dos serviços públicos.2
Resumindo o pensamento do autor, nestas sociedades
tecnologicamente avançadas, estar empregado e, ainda mais, bem empre-
gado, é importante para a posição que o indivíduo vai ocupar na sociedade
e, por conseguinte tal valor passa a orientar as aspirações sociais e indireta-
mente as universitárias. Quanto maior a titularidade acadêmica maior é a
renda e menor o desemprego. No Brasil, os estudantes da educação superi-
or, segundo a renda, apresentam concentração em classe social: 23,4% dos
10% dos mais ricos e somente 4% dos 40% dos mais pobres.3

1
O esforço produtivo é criativo, adaptativo e submetido a exigências de mobilidade geográfica e funcional, flexível e sem
localização. Os recursos produtivos básicos são bens intangíveis, o dinheiro é plástico ou digital e o lócus produtivo são as
empresas-rede, em escalas multinacionais e pequenos negócios com bases de circulação e de intercâmbio de bandas largas,
redes inteligentes, tendo como enfoque de produção de mercadorias a particularização e não mais a massificação.
2
Os governos nacionais constituir-se-ão como supervisores e orientadores e o grande poder subjacente será o das comu-
nicações, apoiados em partidos de cartel, com papel mediador e declinante. As formas de organizações sociais em ascensão
serão as ONGs e movimentos sociais e os âmbitos de integração e de referência serão a região, a comunidade territorial os
grupos primários, onde a prestação de serviços será privatizada, semipública e em regressão. As principais fraturas sociais
são: a exclusão social e a precarização do trabalho marcada por desigualdades internacionais e por grandes grupos setoriais.
3
Segundo as regiões esses dados se acirram: no Norte os percentuais são 2,1% dos 40 % mais pobres e 25,1% dos 10 %
mais ricos; no Nordeste, respectivamente, 0,9% e 25,8%; no Sudeste 5,5% e 22,2%; no Sul 9,4% e 34,1; e no Centro-Oeste
5,1% e 21,3%. Os dados foram fornecidos pela Pnad/IBGE-2001 e incluem o rendimento mensal de todos os trabalhos das
pessoas ocupadas de dez anos e mais de idade com rendimento. Não inclui população rural de Rondônia, Acre, Roraima,
Pará e Amapá.

289
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

É neste contexto que as relações Estado-universidade se transfor-


mam: o Estado reduz seu papel em relação às universidades, principal-
mente quanto ao financiamento, mas fortifica sua presença como Estado
avaliativo, baseado no princípio de que a educação é um bem público e
conseqüentemente deve ter qualidade para que tenha impacto sobre a
sociedade.
Os anos 1990 são marcados pela emergência dos sistemas de ava-
liação da qualidade. Van Damme (2000) identifica como possíveis causas
o potencial declínio de padrões de vida, a massificação da educação supe-
rior, a diminuição da confiança em dirigentes na gestão da qualidade
acadêmica tradicional bem como na habilidade de adequar os egressos
com as necessidades da sociedade; restrições orçamentárias em fundos
estagnados e a pressão para aumentar a relação custo-benefício; um mer-
cado mais competitivo na educação superior no qual a qualidade transfor-
ma-se em atributo e em mecanismo rotulante, e a emergência de um
modelo geral de avaliação de qualidade, baseado em programa de melhoria
da função universitária, o qual tem como fases a auto-avaliação, avalia-
ção externa e relatórios públicos.
O mesmo autor reconhece que a globalização da educação superior
se expressa na mobilidade global dos estudantes, em novos provedores de
educação superior – principalmente universidades privadas, campus de uni-
versidades americanas, franchising e modelos universitários de educação a
distância, liberalização dos serviços educacionais, acordos de comércio in-
ternacionais, tais como o Gats, da WTO, e o impacto de reconhecimento
externo de títulos e diplomas por meio de agências de reconhecimento pro-
fissionais como, por exemplo, as do US, chamadas para operar na Europa,
Abet, Washington Accord, Gate, Equis.4
Tensões são postas entre a relação norte-sul e entre o domínio da
concepção de Estado-Nação ou de transnacionalização. No caso especí-
fico do Brasil as tensões colocam-se entre a constituição de uma unida-
de subcontinental, latino-americana, sonho de Bolívar, ou a de uma

4
Uma discussão maior sobre a internacionalização da educação superior transnacional pode ser encontrada no exame das
políticas internacionais decretadas por organismos multilaterais: aí se ressalta, principalmente, as do Banco Mundial (Siqueira
2003).

290
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

unidade pan-americana, sustentada pela doutrina Monroe – América


para os americanos (Morosini, 1997) ou mesmo a de uma realidade
transnacional.
Interconectadas com as políticas nacionais e internacionais a Unesco
tem merecido papel de destaque e o tema da internacionalização tem sido
constante, não tanto a questionando, mas procurando minimizar os desafi-
os à integração e à inclusão dos estudantes e professores nesse circulo vital.
Em 2003, a Unesco realizou a Segunda Reunião dos Parceiros da
Educação Superior, Paris + 5, ou seja, cinco anos após a Conferência Mundial
de Educação Superior (1998), que teve entre seus temas prioritários a
cooperação internacional5 para a melhoria da qualidade da educação su-
perior, administração e financiamento da educação. Neste encontro de
2003 a Unesco dá continuidade à referida Conferência e destaca também
a internacionalização da educação superior. Aponta como desenvolvimentos
mais importantes pós-Paris: a maior complexidade das estratégias e do
crescimento das várias iniciativas voltadas para alcançar ou fortalecer a
internacionalização, devido principalmente à globalização acelerada; a
combinação das racionalidades acadêmica e econômica que impulsionam
o processo; e a importância geral da internacionalização e do contexto
global na discussão sobre políticas posteriores, nos níveis institucional,
sistêmico e internacional na educação superior (2003, p. 159).
Reconhecendo a urgência de realizar ações, a Associação Internaci-
onal de Universidades (IAU), ligada à Unesco, recomenda que: as IES to-
mem iniciativas de internacionalização, entre as quais a formulação de
políticas institucionais e, especificamente, de currículos para a formação
de cidadãos internacionais e de garantia da qualidade no processo de
internacionalização; ocorra a expansão dos fluxos de internacionalização
para as regiões subdesenvolvidas baseada em códigos de ética internacio-
nais e no desenvolvimento de parcerias entre iguais; haja a remoção de
obstáculos à mobilidade e o aproveitamento de professores aposentados
no processo; e finaliza com a necessidade de fóruns para a discussão.

5
Art. 11 – A qualidade exige também que a educação superior se caracterize pela sua dimensão internacional: intercâmbio
de conhecimento, redes interativas, mobilidade dos professores e estudantes e projetos internacionais de pesquisa, ao
mesmo tempo em que levam em conta valores culturais e as circunstâncias dos países.

291
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Prosseguindo em sua caminhada de orientação à educação superi-


or, em 2006, a Unesco realizou encontro com os líderes do G8 (congregador
dos países desenvolvidos) que reafirmaram seu compromisso com a Edu-
cação para Todos6 e o desenvolvimento e avanço da coesão social e da
imigração, bem como a integração dos povos por meio da educação.7
Com tal postura, a Unesco objetiva maximizar o capital social e
humano das pessoas por meio de políticas que reconheçam a diversidade
no setor educacional e no mercado de trabalho, o avanço da inovação e o
estímulo à criatividade. O sucesso de políticas de coesão social, incluindo
educação de cidadãos poderá ajudar a combater a intolerância e a discri-
minação. O sistema educacional deve facilitar a aquisição de tais objetivos
fundamentais, paralelos à consideração de que cada país pode utilizar um
conjunto de diferentes políticas para promover a aceitação e a integração
na economia e na sociedade.
Em 2007, entre os tópicos específicos da educação superior a
Unesco selecionou o acesso à educação superior, estabelecendo parce-
rias com a International Association of Universities (IAU) e, secundari-
amente, com a American Council of Education (ACE). A IAU estabele-
ceu a Task Force para organizar uma conferência mundial, em 2007,
que debaterá e procurará levantar propostas para o processo de acesso
à educação superior. Tais questões são relacionadas com a inclusão
social de migrantes do exterior, por exemplo, nos EUA os de origem
latina e na União Européia os de origem muçulmana e africana. Já nas
regiões menos desenvolvidas a inclusão via acesso à educação superi-
or, está basicamente relacionada à inclusão de categorias sociais

6
Reconhecem a importância do desenvolvimento de sistemas educativos modernos e capazes de responder aos desafios de
uma economia global baseada no conhecimento, "exortando a inversão do Triângulo do Conhecimento – Educação (inclu-
indo a formação continuada), Investigação e Inovação" no qual são ressaltados como pontos-chave o desenvolvimento de
uma sociedade inovadora global, a construção de habilidades para a vida e o trabalho via uma educação de qualidade,
7
Referente a este último item a declaração da Unesco estabelece: promoção de participação cívica, bem como igualdade de
oportunidades e entendimento da perspectiva além fronteira, para auxiliar o povo na maximização de seu potencial indivi-
dual e para vencer barreiras para sua participação na sociedade. Sociedades eqüitativas e inclusivas que providenciem a
maioria das condições para adquirir habilidades e conhecimentos, promover inovações, e orientar-se para o sucesso econô-
mico e social. Considera como atributos inovadores e de inclusão de uma sociedade a diversidade cultural e o conhecimento
de línguas estrangeiras aberto a novos talentos e a mobilidade da força de trabalho. Facilitar a integração social, cultural e
profissional em nossas sociedades, por meio da promoção do suporte para o aprendizado ao longo da vida e encorajar as
competências lingüísticas necessárias para o emprego seguro de acordo com os níveis de habilidade e experiência. Também
afirma a pesquisa conjunta e a parceria do conhecimento, experiências e boas práticas entre os países do G8 e outros
mantenedores dessa área.

292
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

desfavorecidas, vinculadas a questões étnicas como, por exemplo, no


Brasil, os afrodescendentes e os indígenas.
Os organismos multilaterais têm força de espraiar para outras lati-
tudes os temas por eles eleitos. Assim, o tópico imigração e desenvolvi-
mento é também tema da Cúpula Ibero Americana, que se realizou, em
Montevidéu, em novembro de 2006, e que teve como um dos pontos
centrais a liberdade de imigração e a complexa integração a cultura origi-
nária do país receptor.

Internacionalização das funções


universitárias no Brasil

Neste contexto de internacionalização da educação superior, o que


vem ocorrendo no Brasil, pós-LDB? Para responder a este questionamento
buscamos identificar essa categoria nas funções universitárias de ensino e
de pesquisa.8

Internacionalização da pesquisa

A troca de informações, o desenvolvimento de redes de pesquisa,


a socialização do conhecimento caracterizam o que Clark define como a
idade do ouro da universidade, na qual não haveria barreiras de circula-
ção ao conhecimento, e este seria universal. Mesmo que tal utopia ainda
esteja longe de ser alcançada, a troca de informações e as parcerias são
comuns no meio universitário. No Brasil a internacionalização da educa-
ção superior sempre veio acoplada ao desenvolvimento dos programas
de pós-graduação. Esses são fomentados pela cooperação internacional
apoiada pelas duas principais agências governamentais – o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). É de

8
Alguns resultados anteriores já foram abordados em Morosini (2006).

293
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

registrar também o apoio à internacionalização por parte de algumas


fundações estaduais de pesquisa, com destaque para a Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).9
O CNPq, criado na década de 50, vem apoiando a formação de
recursos humanos (em 2004, 75% dos investimentos foram para bolsas de
estudo), e a pesquisa científica (25%).10 A Capes volta-se, prioritariamente,
à capacitação de recursos humanos, via programas de pós-graduação.
No plano do apoio a bolsas no exterior a distribuição percentual de
investimentos entre 1996–2005 identifica, durante todo o período, o predo-
mínio das GDE (doutorado), seguidas das PDE (pós-doutorado) e após das
SWE (doutorado-sanduíche). Entretanto, apesar da predominância ainda
das bolsas de GDE, em 2005, a trajetória desde 1995, identifica uma dimi-
nuição das distâncias entre os diferentes tipos de bolsas: GDE (62% para
41%), PDE (20% para 30%) e SWE (13% para 24%, entre 1996 e 2005).

80
75
70
65
60
55
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
Doutorado- GDE Pós- Doutorado- PDE
Doutorado Sanduíche- SWE Estágio Sênior- ESN
Estágio Júnior- Ejr Aperfeiçoam ento- APE
Estágio/Esp./Mestrado- SPE/GME

Gráfico 1 – Bolsas no exterior segundo a modalidade – CNPq – 2004


Fonte: http://www.anpq.br.

Examinando o número de bolsas (Gráfico 1) estas apresentam uma


diminuição entre os anos considerados, de 1.655 para 414. As bolsas de dou-
torado diminuíram de 68%, em 1996, para 44% em 2005, o que representa

9
Em marco de 2006 a Fapesp abriu inscrições para o programa "Novas Fronteiras" destinado a apoiar doutores com vínculo
empregatício na realização de estágios de longa duração em centros de excelência no exterior em áreas de pesquisa ainda
não bem desenvolvidas no Estado de São Paulo. (www.fapesp.org).
10
Os percentuais de investimento referente a bolsas são de 70% para bolsas no País e 5% no exterior. Nas bolsas no País
esses variam de 87% na área da Lingüística, Letras e Artes a 71% nas Ciências Biológicas. Nas bolsas no exterior variam de
7% na área da Lingüística, Letras e Artes, na área das Ciências Sociais Aplicadas até 4% nas Ciências Agrárias e na Saúde.
No fomento da pesquisa os investimentos variam de 35% na área da das Ciências da Saúde até 6% na área da Lingüística,
Letras e Artes (CNPq, 2006).

294
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

1.118 para 181 bolsas. A modalidade do doutorado-sanduíche (SWE) tam-


bém diminuiu de 227 (1996) para 108 (2006) novas bolsas apoiadas e o PDE
de 254 (1996) para 114 em 2006. Ressalta-se que o maior número de bolsas
de doutorado ocorreu em 1992 com um número de 2.843. Provavelmente,
esta política de diminuição de bolsas no exterior e de realocação das bolsas
entre as diferentes modalidades reflita o desenvolvimento da pós-graduação
no Brasil. No primeiro caso é notório o reconhecimento de que programas de
doutorado brasileiros já estão dando conta de uma grande parte da qualifica-
ção do corpo docente do País. No segundo caso – o da realocação das bolsas
entre as diferentes modalidades, a expansão das bolsas de SWE reflete a
complementação dos doutorados brasileiros com a experiência no exterior,
bem como a expansão dos programas de PDE reflete a necessidade de atendi-
mento aos doutores na sua formação continuada.
Examinando o destino dos bolsistas no exterior ressalta-se o pre-
domínio dos USA, seguido da Grã-Bretanha e da França (Gráfico 2).

50
Estados Unidos
Grã- Bretanha
França 40
Alemanha
Espanha 30
Canadá
Itália
20
Portugal
Austrália
10
Holanda
Chile
Outros países 0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Gráfico 2 – Bolsas no exterior, segundo o país de destino – CNPq –


1996-2005
Fonte: Construído a partir de http://www.cnpq.br.

No caso da cooperação bilateral, o CNPq vinha desenvolvendo-a de


forma pulverizada nas diversas áreas do conhecimento, apoiando projetos
de pesquisa focalizados em áreas de interesse mútuo. Essa mudança en-
volveu um maior aporte de recursos em um menor número de projetos, de
forma a obter-se resultados de maior impacto institucional e regional. No
Gráfico 3, identificamos as principais parcerias brasileiras. Ressalta-se a
parceria com a França, EUA, Alemanha e Portugal.

295
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Gráfico 3 – Projetos apoiados por convênio – CNPq – 2000 a 2006


Fonte: http://www.anpq.br.

A partir deste século, a cooperação sul-sul vem sendo estimulada,


por meio do apoio aos programas: Cooperação Multilateral: Programa Sul-
Americano de Apoio às Atividades de Cooperação Científica e Tecnológica
(Prosul) – Gráfico 4, Programa de Cooperação Temática em Matéria de
Ciência e Tecnologia (Proáfrica), Programa de Apoio à Cooperação Cientí-
fica e Tecnológica Trilateral entre Índia, Brasil e África do Sul (Ibas), e o
Programa Ciências Sociais (Comunidade dos Países de Língua Portugue-
sa). O CNPq participa também da Colaboração Interamericana em Materi-
ais (Ciam), com outros países do continente americano.

Gráfico 4 – Prosul – Participação dos países da América do Sul –


2001 a 2005
Fonte: www.cnpq.br

296
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

Na formação de recursos humanos o CNPq concede bolsas de dou-


torado e pós-doutorado a estrangeiros no Brasil, no âmbito do acordo
com a Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) no
qual a maioria dos bolsistas provém da Ásia (47%) e da África (31%). Os
bolsistas de países da América do Sul correspondem a 13% e os bolsistas
originários da América do Norte somam 9%. O CNPq também concede
bolsas de mestrado e doutorado por meio do Programa Estudantes-Con-
vênio – Pós-Graduação (PEC-PG), em articulação com a Capes e o Minis-
tério das Relações Exteriores.

Gráfico 5 – Bolsistas estrangeiros no Brasil – 1996-2005


Fonte: http://www.cnpq.br/.

No tocante à Capes, neste século, esta vem se destacando por Pro-


grama de Centros Associados, dos quais se pode citar:
Programa de Centros Associados de Pós-Graduação Brasil/Argenti-
na, fruto da Cooperação Capes/SPU, que tem como objetivos estimular a
parceria acadêmica e o reforço recíproco das atividades acadêmicas e da
formação pós-graduada, enfatizando o intercâmbio de docentes e alunos
de pós-graduação. É destinado às instituições de ensino superior (IES) que
possuem cursos de pós-graduação considerados de excelência pelos ór-
gãos respectivos de avaliação (Coneau e Capes).
Programa Capes/Secyt, tem como objetivos apoiar projetos con-
juntos de pesquisa e cooperação científica vinculadas a instituições de
ensino superior do Brasil e da Argentina que promovam a formação em

297
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

nível de pós-graduação (doutorado-sanduíche e pós-doutorado) bem como


o aperfeiçoamento de docentes e pesquisadores.
Buscando uma análise mais pontual – estatística da internacionalização
da educação superior no Brasil, entre 1997 e 2003, segundo a média anual da
produção científica dos pesquisadores doutores, constatamos que, de 1997 a
2000, o número de artigos completos publicados em periódicos especializados
com circulação internacional era de 16.937 por ano e em 2000-2003 passa
para 26.475, por ano, identificando um aumento de 60%. As áreas de maior
coeficiente de produção internacional, ou seja, a relação entre o total da
produção e o número de doutores são a das Ciências Exatas e da Terra (1,21)
e a das Ciências Biológicas (1,09), entre 1997 e 2000 e, entre 2000 e 2003,
destaca-se a área das Ciências Exatas e da Terra (1,20).
O aumento na produção científica nacional é muito maior do que o
internacional. Nos artigos de circulação nacional, a média entre 1997 e
2000 era de 16.884 e, entre 2000 e 2003, de 41.393, por ano.
Examinando o brain drain, deslocamento de estudantes e profes-
sores muito qualificados para outros países, na busca de melhores condi-
ções de estudo e de formação, condições de trabalho, de salários e de
oportunidades em países centrais no mundo da ciência e da pesquisa,
constatamos que dos 82.905 professores estrangeiros nas universidades
americanas, em 2003/2004,11 1.341 são brasileiros.
Entre as relações internacionais regionais o Mercosul merece des-
taque. Foi criado em 1991, pelo Tratado de Assunção, o Mercado Comum
do Sul, integrado hoje pelos quatro países originários Argentina, Brasil,
Paraguai e Uruguai e pelos países associados – Bolívia, Chile, Peru e
Venezuela. Também em 1991 foi criado o Mercosul Educacional, o qual,
nestes dez anos pós-LDB, teve progresso integrativo na pesquisa universi-
tária. Foram criadas redes de pesquisa praticamente em todas as áreas. O
governo brasileiro tem apoiado essa perspectiva e buscado fortificar a pós-
graduação nos outros países.

11
Segundo a OECD (2006), baseada em dados do Institute of International Education (IIE), de abril de 2004, a contribuição
advém de 14.871 chineses, 7.290 koreanos, 6.809 indianos, 5.627 japoneses, 4.737 alemães, 4.125 canadenses, 3.117
reino-unidenses, 2.842 franceses, 2.403 russos, 2.317 italianos, 1.893 espanhóis e 26.874 de outros países, incluindo os
brasileiros.

298
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

Internacionalização da educação superior

Em termos da função “ensino", o processo de integração é bastante


lento. Isso porque a pesquisa tem autonomia vinculada ao pesquisador, en-
quanto o ensino está inserido em um sistema cartorial que define os níveis, os
pré-requisitos, a qualificação e o regime de trabalho do corpo docente, a orga-
nização didático-administrativa do curso, a infra-estrutura, o egresso, etc.
Em nível de integração regional merece destaque o Mercosul, que
vem buscando a criação de um mercado comum não mais somente entre
Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, mas ampliou seu espectro para pa-
íses da América do Sul. Para a integração da função ensino, torna-se
importante o desenvolvimento de um sistema de avaliação que seja menos
doméstico e mais latino-americano, seja mais efetivo, seja mais confiável,
mais transparente, possibilite a transferência de créditos, a mobilidade, a
cooperação e o intercâmbio de alunos e professores.
Para que o Mercosul Educativo se efetive, várias ações estão sendo
desenvolvidas, tais como: estabelecimento dos mecanismos de reconheci-
mento de diplomas de graduação somente para a realização de pós-gra-
duação em um dos outros países integrantes do Mercosul e/ou para in-
gresso na carreira acadêmica superior. Na equivalência de cursos foi im-
plantado o Mecanismo Experimental de Credenciamento para Cursos de
Graduação do Setor Educacional do Mercosul que se destinou a promover
o conhecimento mútuo e estimular a melhoria da qualidade da educação
superior (graduação). Esse mecanismo foi implementado entre 2003 e 2006
para os cursos de Agronomia, Engenharia e Medicina. Hoje esse mecanis-
mo está se transformando em prática usual para todos os cursos, confor-
me havia sido estabelecido nas metas do programa.12

12
Foram fixadas as seguintes metas para a definição dos projetos a serem executados: colocar em funcionamento o
Mecanismo Experimental de Reconhecimento para as carreiras de graduação em Agronomia, Engenharia e Medicina; au-
mentar a sua aplicação para as outras carreiras; aprovar um acordo de reconhecimento de cursos de graduação; implementar
um programa de capacitação de pares avaliadores; aprovar um acordo de mobilidade; colocar em funcionamento um
programa de mobilidade de estudantes, docentes, pesquisadores e administradores; eliminar as restrições legais que dificul-
tam a implementação do Programa de Mobilidade; implementar um programa de pós-graduação em políticas públicas;
operar um banco de dados de programas de pós-graduação na região; consolidar os programas de pós-graduação da região
no marco do Protocolo de Integração Educativa para a Formação de Recursos Humanos em nível de Pós-Graduação entre
os países-membros do Mercosul; coordenar a reunião especializada em Ciência e Tecnologia do Mercosul, em desenvolvi-
mento de atividades de interesses comuns; implementar ações conjuntas na área de formação docente, com a Comissão
Regional Coordenadora de Educação Básica; aprovar um acordo de reconhecimento de títulos de nível terciário não-
universitário para a continuidade de estudos nos países do Mercosul.

299
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Já a Integração do Mercosul, em termos de exercício profissional


não ocorreu, progresso, acarretado, principalmente pela identificação de
desemprego estrutural nos paises da América Latina.
Na América Latina há propostas de integração de cursos na gradu-
ação similar ao que vem ocorrendo na União Européia,13 com o projeto de
Bolonha. Cita-se a proposta do Centro Nacional de Evaluación para la
Educación Superior (Ceneval): Projeto 6x4 Uealc (Unión Europea, América
Latina y el Caribe). Seis profissões em quatro eixos: um diálogo universitá-
rio. Esta proposta abarca seis profissões (administração, engenharia elétri-
ca, história, medicina, química e matemática) e quatro eixos principais
(competência profissional, créditos acadêmicos, formação para a inovação
e investigação e acreditação e evolução). Ela baseia-se em competências
acadêmicas mais do que em disciplinas e tem como objetivo maior estabe-
lecer as condições operativas que propiciem uma maior compatibilidade e
convergência dos sistemas de educação superior, por meio do diálogo e do
trabalho colaborativo entre instituições. A colaboração está centrada nas
práticas e enfoques educativos de profissionais de carreiras específicas a
fim de construir marcos de referência que orientem a mudança e aumen-
tem a pertinência e qualidade da oferta educativa. O Ceneval utiliza a
noção de competências da EU,14 a reestruturação da “licenciatura" para
fazê-la mais flexível e oferecer a quem cursa uma preparação voltada à
comunidade, ênfase à qualidade das aprendizagens, com uso abundante
das tecnologias de informação e comunicação (TIC), e a manutenção da
atratividade nas IES.15
Essas competências se sintetizam em competências básicas (como o
uso adequado da linguagem escrita, oral e matemática), genéricas (capaci-
dade de análises e sínteses, auto-aprendizagem, resolução de problemas,

13
Na UE os princípios de um sistema de reconhecimento de títulos e diplomas buscam considerar: convergência sem
harmonização; respeito pela diversidade nacional e cultural; flexibilidade na mudança do ambiente, respeito pela autono-
mia institucional, perspectiva de poderes de baixo para cima, perspectiva do mantenedor institucional, avaliação da melhoria,
levando em conta um balanço entre melhoria interna e externa das funções de avaliação; existência de valor agregado nos
sistemas de avaliação da qualidade; e construção de experiências metodológicas de avaliação da qualidade.
14
“... combinação dinâmica de atributos – com respeito ao conhecimento e sua aplicação, as atitudes e responsabilidades
– que descrevem os resultados do aprendizado de um determinado programa, ou como os estudantes serão capazes de
desenvolver-se ao final do processo educativo..." (Comissão Europea, s.d., p. 280).
15
O CENEVAL ainda esclarece que o processo principal é o de aprendizagem no qual se faz necessário conhecer e compre-
ender (conhecimento teórico de um campo acadêmico); saber como atuar (aplicação prática e operativa do conhecimento a
certas situações) e saber como ser (valores como parte integrante da forma de perceber aos outros e viver em um contexto
social).

300
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

aplicação de conhecimentos, gestão da informação, etc.) e específicas (mé-


todos e técnicas específicos próprios de uma profissão).16
Em outubro de 2006, na conferência da International Association
of Universities, foram apresentados os resultados da pesquisa sobre
internacionalização da educação superior na qual se configura um quadro
relativamente positivo em termos da valoração da importância da

[...] internacionalização e do incremento no número de IES que se moveu


de uma situação secundária para um approach (aproximação) de planeja-
mento da internacionalização. O quadro é menos encorajador no nível
nacional [...] os governos nacionais não deram uma adequada atenção à
educação internacional e não assumiram o papel que eles deveriam tê-lo
feito em termos de política nacional e financiamento da pesquisa interna-
cional, de projetos de desenvolvimento e de mobilidade e também para
assegurar a apropriada avaliação da qualidade e sistemas de acreditação
para programas além da fronteira.

Entre as tendências observadas foi destacado

[...] um contínuo crescimento nas redes institucionais, na mobilidade dos


estudantes, na seleção de estudantes não-pagantes, na dupla diplomação
e na pesquisa como forma internacional de colaboração, bem como chave
para a cooperação internacional na busca da competitividade nacional como
razão para a internacionalização.

As atividades além fronteira podem dar uma importante contribui-


ção para o fortalecimento da educação superior se forem desenvolvidas e
disponibilizadas efetivamente e com responsabilidade. Recomenda-se que:
A educação superior além fronteira deve buscar contribuir para o desenvol-
vimento econômico, social e cultural das comunidades, fortalecer a capaci-
dade da educação superior nos países em desenvolvimento, a fim de promo-
ver a eqüidade global; além de formar experts profissionais e disciplinares
deve desenvolver nos estudantes o pensamento crítico que subjaz a cida-
dãos responsáveis nos níveis local, nacional e global; deve ser acessível não

16
As competências básicas são entendidas como capacidades intelectuais indispensáveis para a aprendizagem de uma
profissão e incluem as competências cognitivas, técnicas e metodológicas adquiridas em níveis educativos prévios. As
competências genéricas são atributos compartilhados que podem criar-se em qualquer disciplina, comuns entre as profis-
sões. Sua importância radica na necessidade de responder às demandas de um mundo em mudança. As competências
específicas relacionam-se com a disciplina e são próprias de cada profissão. Permitem a comparabilidade entre os diferentes
programas de uma disciplina e a definição de cada profissão e são conseqüência dos conhecimentos e das habilidades
adquiridos por meio de um programa educativo e resultam da aprendizagem.

301
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

somente para aqueles que podem pagá-la, mas também para qualificados
estudantes com necessidades financeiras; deve ter os mesmos altos padrões
de qualidade acadêmica e organizacional em todo o local onde ela é ofertada;
ser avaliada pelo público, estudantes e pelo governo; deve possibilitar a
expansão de oportunidades para a mobilidade internacional de professores,
pesquisadores e estudantes.

Considerações finais

A internacionalização da educação superior apresenta diferen-


tes estágios de desenvolvimento no Brasil pós-LDB. Por sua natureza
de produção de conhecimento a universidade sempre teve como norma
a internacionalização da função pesquisa. Assim, a internacionalização
da educação superior é mais ágil e mais rápida na função acadêmica de
pesquisa. Isso porque a função investigativa tem uma autonomia liga-
da ao pesquisador e este busca relações internacionais para o desen-
volvimento do conhecimento. Já a função ensino, principalmente o de
graduação, é controlada pelo Estado e, no caso brasileiro fortemente,
desde o processo de (re)credenciamento de uma IES, autorização e re-
conhecimento de cursos superiores, adequação às diretrizes curriculares
dos cursos, implantação e execução do processo de avaliação
institucional e o reconhecimento de títulos e diplomas realizados no
exterior. O formalismo e a dependência às políticas estatais dificultam
a autonomia da função ensino no contexto da internacionalização da
educação superior. Com o crescimento dos blocos econômicos, a
internacionalização da função ensino vem sendo estudada e estratégi-
as estão sendo propostas, tanto na União Européia como na América
Latina. Entretanto, fica claro que predomina, no Brasil, ainda de forma
incipiente, o Modelo Periférico, processo que se caracteriza pela pre-
sença de atividades internacionais em alguns setores da IES e não o
modelo central de internacionalização da educação superior, onde toda
a IES está imbuída desta característica.

302
Internacionalização da Educação Superior no Brasil pós-LDB:
o impacto das sociedades tecnologicamente avançadas

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304
F) Trabalho Docente
14
Universidade, sociedade do
conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão
Maria das Graças Martins da Silva*
Tânia Maria Lima Beraldo**

* Mestre em Educação (UFMT); professora da UFMT; e-mail: renardes@terra.com.br.


** Doutora em Educação (Unicamp); professora da UFMT; e-mail: tmlima@ufmt.br.
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

Neste capítulo discutimos a educação superior no contexto da cha-


mada sociedade do conhecimento, tendo como foco o papel que vem
sendo atribuído à universidade e, por sua vez, os desafios que se lançam
ao professor universitário com vista à realização da educação universitá-
ria. Esse propósito exigiu buscar relações entre o projeto sociopolítico e
econômico mais amplo, sociedade do conhecimento e universidade, a fim
de deslindar caminhos para o trabalho docente. O texto foi organizado em
três partes. Na primeira, apresentamos considerações gerais sobre a socie-
dade do conhecimento e sobre o sentido que é atribuído à ciência e à
tecnologia na produção das inovações que fomentam a competitividade
econômica. Na segunda parte, focalizamos a universidade brasileira no
contexto da globalização excludente, observando as orientações do poder
público para a educação superior, especialmente para a pós-graduação. A
centralidade na pós-graduação justifica-se por ela ser lócus privilegiado
para a formação de docentes da educação superior, conforme artigo 66,
da Lei Nº 9.394/96 (Brasil, 1996), e para a produção de conhecimentos e
de tecnologias (Brasil, 2004a). Finalizando, apresentamos nossas reflexões
sobre os desafios que se impõem aos docentes que atuam na educação

309
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

superior, considerando a realidade posta e a utopia que é (ou deveria ser)


inerente ao trabalho educacional. Destacamos, então, a necessidade de
aprofundamento de estudos e de ampliação das discussões sobre a proble-
mática em questão, entendendo que “[...] à medida que o trabalho da
educação é reposicionado dentro da nova ordem global, o papel dos agen-
tes de mudança também é reposicionado" (Goodson, 1999, p. 113). A
não-compreensão dos posicionamentos assumidos pode resultar em mu-
danças cujos efeitos são totalmente diferentes daqueles que desejamos.

Sociedade do conhecimento:
que conhecimento e que sociedade?

Na atualidade, o discurso que ganha destaque na mídia, nos sindica-


tos, na literatura educacional, na academia, enfim no cotidiano, dá
centralidade ao termo globalização, também denominado mundialização
(Carnoy, 2002). Esse fato decorre da internacionalização da economia, fe-
nômeno que cria uma teia de relações entre as diferentes nações do globo e
envolve até mesmo as sociedades menos organizadas, segundo a lógica
capitalista. Isso é possível porque a globalização traz em si o globalismo,

[...] construção ideológica que pretende explicar e justificar a globalização


com todos seus abusos, excessos, assimetrias e perversões e estendê-las
pelo mundo com uma clara estratégia dos países industriais para conquis-
tar mercados, acrescentar laços de dependência externa e aprofundar a
clássica divisão internacional do trabalho, além de exercer dominação ide-
ológica, política, econômica, científica e tecnológica (Borja apud Cunha,
2006, p. 259).

Essa tessitura complexa e contraditória que caracteriza a sociedade


contemporânea tem implicações diretas na educação superior, particular-
mente na universidade, instituição social interessada na “formação de
quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de do-
mínio e cultivo do saber humano", conforme preceitua o artigo 52, da Lei
nº 9.394/96 (Brasil, 1996). Tais implicações precisam ser investigadas a
fim de se vislumbrarem as potencialidades da educação e as possibilidades
de enfrentamento dos desafios da sociedade globalizada. Analisando o
papel da universidade em tempos de globalização, Sobrinho (2004) desta-
cou três aspectos relevantes: a) o acúmulo de conhecimentos, ocorrido

310
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

nos últimos 50 anos, é incomparavelmente superior ao de qualquer outro


período; b) há uma tendência de passagem da ciência básica (considerada
muitas vezes desinteressada) para os contextos de aplicação e de controle
de conhecimento; c) o desenvolvimento científico e tecnológico afeta tanto
as macro como as microdimensões da vida humana.
O crescimento exponencial do conhecimento ocorrido na
contemporaneidade favoreceu a realização do que vem sendo denomina-
do de Terceira Revolução Industrial. Esta nova revolução se caracteriza
pelo acentuado interesse do capital pela ciência, pois o valor de um pro-
duto industrializado não se esgota na qualidade e/ou na quantidade de
material que ele agrega, mas, envolve sua capacidade de ser competitivo
em relação a outros da mesma ordem no mercado, o que implica conside-
rar a qualidade e a quantidade de conhecimento que ele traz. A intensida-
de com que o conhecimento científico e tecnológico se processa revela-se
nas inovações dos produtos postos à venda diariamente, em uma veloci-
dade não vista antes, e com a tônica da descartabilidade. Nesse contexto,
a marca das inovações manifesta-se no que tem sido denominado de con-
fluência de mídias. Um aparelho celular de última geração, por exemplo,
representa muito mais do que um telefone móvel, uma vez que pode
funcionar como agenda, relógio, despertador, gravador, máquina fotográ-
fica, filmadora, rádio, televisão. Além disso, envia mensagem escrita, toca
música no formato MP3 e possibilita acesso à Internet.
A confluência de mídias faz com que a informação seja processada
de forma veloz e extensiva, em tempo quase real, tornando o mundo uma
aldeia global (Ianni, 2003). Nessa aldeia, os grandes capitalistas podem
identificar nichos ideais para realizar investimentos financeiros e, em caso
de risco, podem movimentá-los rapidamente para outras regiões do mun-
do, visando à garantia dos lucros desejados.
A transformação do conhecimento em insumo, ou seja, em produto
de valor potencialmente econômico, tem implicações epistemológicas para
a própria ciência, pois esta passou a ser vista também como mercadoria.
Dessa forma, ela declina da sua função de ser atividade interessada na inter-
pretação crítica dos fenômenos físicos e sociais para tornar-se uma ativida-
de de caráter utilitário, fomentada e controlada por interesses econômicos.
Os altos índices de pobreza e de analfabetismo que ocorrem no
mundo de hoje dão evidências de que o desenvolvimento exponencial da

311
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

ciência e da tecnologia não alterou as distorções sociais que ocorrem no


mundo. Enquanto uma minoria privilegiada consome, compulsivamente,
bens e serviços derivados da tecnociência para preservar seu status quo,
cerca de 35 milhões de pessoas morrem a cada ano, corroídas pela fome.
Essa contradição revela que a sociedade do conhecimento é também a
sociedade da exclusão, da indústria da guerra, da indiferença. Revela, por
igual, que a ciência não é neutra e muito menos universal, como foi apre-
goado no ideário da modernidade.
O consumo compulsivo dos produtos da tecnociência afeta vee-
mentemente a cultura humana, pois cria paixão pelo efêmero, pela moda,
pela grife e pela aparência, em uma inversão de valores que se distancia do
verdadeiro sentido atribuído ao termo humanidade. Esse tipo de paixão
não potencializa a aquisição de conhecimento e a reflexão criadora que
nutre e promove a cultura. Ao invés disso, dá azo ao comércio de símbo-
los, que são rapidamente substituídos. “Em outras palavras, a mercadoria,
que já é um fetiche, se duplica numa imagem de prestígio, poder, juventu-
de, sucesso, competência etc., portanto, num simulacro de si mesma, e é
esse simulacro que opera na esfera do consumo" (sic) (Chauí, 2001, p. 22).
No contexto da globalização, fica entendido que países que ainda
não atingiram o nível de desenvolvimento desejado, como é caso do Bra-
sil, precisam adequar rapidamente suas velhas estruturas políticas, econô-
micas, sociais, jurídicas, educacionais à nova lógica econômica, posto ser
questão-chave para entrar na ciranda da competitividade instaurada em
escala global. Isso explica o conjunto de reformas que foram promovidas
nas últimas décadas nos diversos setores da administração pública, de
modo evidente, inclusive no campo educacional.
Em se tratando da educação superior, subtende-se que tais insti-
tuições precisam dar respostas positivas e imediatas às demandas do mer-
cado, o que comporta a adoção da mesma lógica que rege as relações de
produção. Espera-se que a universidade se renove a galope, porque ela é o
espaço voltado, por excelência, para o desenvolvimento de pesquisas e
para a formação de profissionais criativos, dinâmicos, inovadores, compe-
titivos, aptos para ingressar no mundo do trabalho que, cada vez mais, se
torna seletivo, exigente e flexível.
Sob essas sinalizações devem ser compreendidas as reformas da
educação superior e as adaptações legais ocorridas nos últimos anos, da

312
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

mesma forma que, sob elas, deve ser analisado o trabalho do docente na
universidade e aquilo que ele produz, ou pretende produzir, na esfera do
conhecimento e de projetos educacionais.

A universidade brasileira
em tempos de globalização

Analisar a universidade brasileira na contemporaneidade exige con-


siderar o papel que a ela foi estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), e em outros dispositivos legais que deram sus-
tentação a ela. Antes disso, é pertinente observar o sentido que é dado ao
termo Lei. Conforme observou Severino (1997), a lei pretende ser a expres-
são do direito das pessoas que vivem em sociedade. O direito, por sua vez,
surgiu como tentativa de instauração de determinada ordem social pelo
zelo de simetria nas relações que se processam entre as pessoas. A LDB e
demais textos legais dela conseguintes deveriam, portanto, expressar zelo
por práticas educativas verdadeiramente democráticas. Contudo, análises
realizadas por pesquisadores do campo das políticas educacionais (Saviani,
1997; Belloni, 1997; Severino, 1997; Freitas, 1999) revelam contradições
na referida Lei decorrentes das relações de poder que se estabeleceram no
processo de elaboração, promulgação e materialização em iniciativas go-
vernamentais. As análises que incluem o período relativo ao governo Luiz
Inácio Lula da Silva – considerado representante dos grupos populares –
(Sguissardi, 2006; Silva Júnior e Sguissard, 2006; Carvalho, 2006; Otranto,
2006) indicam que houve mais continuidade do que ruptura com a deno-
minada modernização conservadora que caracteriza as políticas neoliberais.1
Compreender o papel atribuído à universidade no contexto da mo-
dernização conservadora requer entendimento do sentido paradoxal desse
termo (modernização/conservação), o que pode ser explicado pela
readequação da teoria do capital humano, em que mudam conceitos, mas

1
No Brasil, a modernização conservadora iniciada no governo Fernando Collor de Mello (1990-1991) foi assumida por
Itamar Franco (1992-1993), recrudescida no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e está sendo mantida
pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (Sguissardi, 2006).

313
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

permanece o fundamento de conservação da natureza excludente das re-


lações sociais, conforme observou Frigotto (1996). Explica o autor que a
teoria do capital humano foi formulada no cerne das teorias do desenvol-
vimento nos centros mais avançados do capitalismo monopolista, tendo
se disseminado de forma rápida pelos países do Terceiro Mundo. No Brasil,
fez escola no final da década de 1960, divulgando e concretizando a idéia
do economicismo na educação. Anos depois, entre as décadas de 1970 e
1980, foram explicitadas novas demandas para a educação, presentes em
documentos dos organismos internacionais (Fundo Monetário Internacio-
nal – FMI, Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento –
Bird, Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, Comissão Econô-
mica para a América Latina e o Caribe – Cepal), anunciando-se os limites
das concepções da teoria do capital humano e propondo-se nova adequa-
ção da educação aos interesses econômicos.
Miranda (2005) fazendo referência a conteúdos presentes em do-
cumentos produzidos no início da década de 1990, pela Cepal,2 destaca
idéias ou propostas centrais ali expressas: a institucionalização do conhe-
cimento, a fim de oferecer acesso aos códigos da modernidade; a difusão
dos materiais científico-tecnológicos; e o fomento às políticas que propi-
ciem uma gestão institucional responsável. No discurso dos documentos
dos organismos internacionais, evidencia-se a centralidade no conheci-
mento como estratégia para enfrentar o desafio da revolução tecnológica,
matriz de novo tempo de prosperidade. Implicitamente, outro padrão de
conhecimento tem sido forjado, conforme explicita a autora: menos
discursivo, mais operativo, menos particularizado, mais interativo, comu-
nicativo, menos intelectivo, mais pragmático, menos setorizado, mais glo-
bal, não apenas cognitivo, mas também valorativo e expresso em atitude.
Trata-se de tipo de conhecimento que se adquire pela ação (o saber fazer),
pela utilização (o saber usar) e pela interação (o saber comunicar).
O próprio conceito de sociedade do conhecimento, ao oferecer sus-
tentação ideológica ao processo de reestruturação capitalista, imprime
exigências educativas e de formação a ele condizentes. Conecta-se, pois,

2
Os documentos referidos pela autora são: "Transformación productiva com equidad", 1990; "Educación y conocimiento:
eje de la transformación productiva com equidad", 1992.

314
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

com os referenciais do mercado e tem como desdobramento objetivo a


redução do trabalho vivo no processo produtivo. O desemprego é conside-
rado, então, fenômeno inevitável e conseqüência da falta de preparo/com-
petência do trabalhador para atuar competitivamente e vencer os desafi-
os. Miranda (2005) observou que o tema da centralidade do conhecimento
é entronizado e agrega simpatizantes porque não deixa de fazer contraponto
ao conhecimento tradicional, considerado contemplativo, imobilista. Des-
sa forma, cria-se uma blindagem em relação às críticas e uma retórica
justificadora das reformas que se processam.
Espera-se, na perspectiva desse referencial, que a universidade atue
não apenas na formação do trabalhador competitivo, mas também que ela
se torne agente da produção tecnológica, da ciência aplicada, produzindo
conhecimentos que se transformem em inovação, ou seja, em fator de
incremento ao mercado.
Essa direção pode ser identificada, por exemplo, no IV Plano Naci-
onal de Pós-Graduação (IV PNPG), aprovado em 5/1/2005, documento
que se propõe evidenciar um diagnóstico da pós-graduação e estabelecer
um conjunto de metas e ações que visam enfrentar os problemas identifi-
cados. Em relação à universidade, o Plano enfatiza o papel que pode
representar no incentivo ao desenvolvimento de pesquisas e de inovações
que possibilitem agregação de valor a produtos e processos, aumentando,
assim, as possibilidades de o País vir a ter presença marcante e autônoma
no mundo globalizado, conforme excerto que se segue.

As atividades de pesquisa científica, tecnológica e inovação são hoje com-


ponentes fundamentais de uma presença atuante e autônoma, como na-
ção, e da agregação de valor a produtos e processos, com reflexos diretos
nas possibilidades de inserção competitiva no mercado mundial. O desen-
volvimento científico e tecnológico tornou-se, com isso, um fator
determinante na geração de renda e na promoção de bem-estar social. Não
por acaso, muitas nações se referem à ciência e tecnologia como uma
questão de poder, capaz de dividir o mundo entre os países produtores de
conhecimentos e tecnologias e aqueles que, no máximo, conseguem copiá-
las. Ciência e tecnologia compõem hoje dimensão estruturante do desen-
volvimento nacional – alavanca crucial para o Brasil superar as desigualda-
des que marcam a sua inserção no sistema internacional (Brasil, 2004, p.
45) (grifo nosso).

O documento resultante da 3ª Conferência Nacional de Ciência,


Tecnologia e Inovação (Ministério da Ciência e Tecnologia, 2006) reforça o
papel conferido às universidades no cenário que se examina. O documento

315
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

assinala que, apesar das dificuldades, o Brasil construiu, nas últimas quatro
décadas, uma comunidade científica e tecnológica de mais de 60 mil pes-
quisadores com doutorado, sendo possível afirmar que:

[...] pela primeira vez na história do País, existe em muitas áreas da ciência
e da tecnologia uma 'densidade de competências' suficiente para contri-
buir de forma decisiva para a realização de ambiciosos projetos de desen-
volvimento com conhecimento nacional (Ibidem, p. 57).

Nova agenda, pois, faz-se necessária, de forma que os avanços em


ciência, tecnologia e inovação “[...] contribuam para uma melhor posição
do Brasil no contexto internacional [...]", o que requer entender a política
nessas áreas como parte da política econômica na sua totalidade, especi-
almente como um dos elementos centrais da política industrial. (Ibidem,
p. 79). O documento afirma que, a par dessas questões, o modelo de pós-
graduação deve conformar-se “[...] às condições contemporâneas de pro-
dução e aplicação do conhecimento", o que representa, entre outras me-
didas listadas, “[...] criar, no âmbito da universidade, agências de inova-
ção, aptas a estimular e dar suporte à realização de projetos em parceria
entre pesquisadores acadêmicos e empresas" (Ibidem, p. 228). Nesse senti-
do, já é possível identificar no entorno de algumas universidades (incluin-
do as federais) mecanismos que possibilitam o estreitamento das relações
empresa e academia: escritórios para patenteamento e licenciamento
tecnológico, parques tecnológicos, encubadoras de empresas, etc.
Nota-se que a promoção do bem-estar social é considerada decor-
rência do desenvolvimento científico e tecnológico. Subentende-se que a
comunicação instantânea e planetária seria fator de democratização de
conhecimentos e de coesão humana. “É como se não houvesse nenhum
problema na tão glorificada sociedade do conhecimento e em sua correlata
economia do conhecimento" (Sobrinho, 2004, p. 8).
A relação direta entre pesquisa e progresso econômico e social ex-
plica porque a pós-graduação é convocada a dar prioridade a determina-
das áreas do conhecimento em detrimento de outras.

A política industrial voltada para setores estratégicos – a indústria de


software, fármacos, semicondutores e microeletrônica, e bens de capital
– como também nas áreas consideradas ‘portadoras de futuro'
(biotecnologia e nanotecnologia) são campos nevrálgicos na correlação
de forças internacionais em que o Brasil apresenta enorme potencialidade

316
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

e nas quais a pós-graduação deveria dar maior atenção. Nessa perspecti-


va, torna-se necessário o fortalecimento dos programas espacial e de
energia, a criação de programas de exploração do mar e da biodiversidade,
assim como o efetivo desenvolvimento da região amazônica como ins-
trumento de integração nacional (Brasil, 2004a, p. 46).

Em relação à avaliação da qualidade dos programas de pós-gradu-


ação, são propostos indicadores que dêem ênfase à produtividade dos
professores e alunos bem como à participação desses na produção cientifica
e tecnológica dos laboratórios ou nos grupos de pesquisa integrados à
pós-graduação (Brasil, 2004a). A pauta de sugestões quanto aos critérios
de avaliação inclui, entre outros:

– Produção tecnológica e seu impacto e relevância para o setor econômico,


industrial e social, através de índices relacionados a novos processos e pro-
dutos, expressos por patentes depositadas e negociadas, por transferência
de tecnologia e por novos processos de produção que poderão dar uma
vantagem competitiva ao país;
– Incentivo à inovação através da adoção de novos indicadores, que esti-
mem o aumento do valor agregado de nossos produtos e a conquista
competitiva de novos mercados no mundo globalizado. Um maior peso
deve ser dado a processos inovadores, que refletirão em maiores oportuni-
dades de emprego e renda para a sociedade (sic) (Brasil, 2004a, p. 59).

Nesses excertos, chama a atenção a recorrência ao termo inovação


e sua relação com a pesquisa realizada na universidade. A concepção de
inovação apresentada não é referente a buscar o novo no plano da ideali-
zada autonomia especulativa do saber, conforme o modelo clássico de
universidade de pesquisa (modelo alemão). O novo deve ser buscado na
fina articulação entre os centros de pesquisa/sistemas educacionais e as
empresas que estabelecem os critérios de qualidade, de produtividade e de
evolução.
O sentido atribuído à inovação no contexto da pesquisa acadêmica
foi identificado por Oliveira (2002), no documento que resultou da confe-
rência Ciência, Tecnologia e Inovação: desafios para a sociedade brasileira,
realizada em 2001 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Conforme ob-
servou Oliveira (op. cit., p. 76), no citado documento, o termo é concebido
como “[...] o principal determinante do aumento da produtividade e da
geração de oportunidades de investimento. A inovação compreende a in-
trodução e exploração de novos produtos, processos, insumos, mercados e
formas de organização".

317
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Também nessa linha, o termo aparece no artigo 2º, da Lei de Inova-


ção Tecnológica (Brasil, 2004a) como “[...] introdução de novidade ou
aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos
produtos, processos ou serviços". Refere-se, portanto, à capacidade de
transformar recursos técnicos em riquezas econômicas e supostos benefí-
cios sociais.
As orientações expressas no IV PNPG e corroboradas na Lei de Ino-
vação Tecnológica indicam que à pós-graduação cabe a tarefa de produzir
profissionais dispostos a contribuir para o processo de modernização do
País o que requer interesse pela inovação. Em outras palavras, requer ca-
pacidade de aplicar o conhecimento na solução de problemas concretos
enfrentados pela sociedade criando assim, novos produtos e novos pro-
cessos produtivos (Idem).
A universidade, portanto, é responsabilizada pela produção da ci-
ência, tecnologia e inovação e pela formação científica e tecnológica de
alto nível, com o intuito de fundamentar o crescimento econômico do
País. Em torno dessa idéia-chave, parece manifestar-se a política de pós-
graduação, entendendo a produção do conhecimento associada a resulta-
dos imediatos, pragmáticos, colocando a cultura e a educação como ele-
mentos civilizadores em segundo plano (Silva Júnior, 2005).
Pergunta-se: em que medida a Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção, aprovada em 1996, dessa forma, sob o contexto das mudanças polí-
tico-econômicas em pauta, seria fonte de inspiração e base legal para esse
movimento que, ao que parece, está em curso? A resposta não pode ser
absoluta nem linear, pois a LDB oferece um traçado geral que as políticas
públicas, no conjunto, acabam editando e concretizando a indicação da
necessidade de análise mais ampla. Contudo, uma avaliação preliminar da
LDB de 1996 mostra-se capaz de revelar a ênfase dada ao desenvolvimen-
to da pesquisa, o que pode ser ilustrado pelo artigo 43, que define as
finalidades da educação superior: dos oito itens constantes, quatro men-
cionam a pesquisa científica ou a ciência e tecnologia.
A afirmação ou a consolidação da atividade de pesquisa na ins-
tituição universitária, por sua vez, é construída no artigo 45, que insti-
tui que “a educação superior será ministrada em instituições de ensino
superior públicas ou privadas, com variados graus de abrangência ou
especialização", trazendo como conseqüência a diferenciação entre a

318
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

universidade e as demais instituições por efeito do desenvolvimento da


pesquisa naquela. (Brasil, 1996). Se não, veja-se o artigo 52, em que a
universidade é definida, entre outros aspectos, como instituição de pes-
quisa, sendo também caracterizada, no inciso I, pela “produção intelec-
tual institucionalizada, mediante o estudo sistemático dos temas e pro-
blemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural,
quanto regional e nacional". (Idem).
Portanto, no conjunto, verifica-se um destaque ao termo pesquisa
e/ou tecnologia, cujos desdobramentos e significados carecem de análise
mais aprofundada. Se bem que, assim, é possível perceber que a referida
legislação se insere em um panorama político-econômico (datado a partir
da década de 1990) que alavanca um conjunto de reformas a ele condi-
zentes, iniciando novo ciclo que detém uma agenda própria.
No campo da educação superior, essa agenda é sustentada pelos
princípios da diversificação e da diferenciação, expressos na LDB de 1996 e
nos vários decretos e leis que a cercam, tanto no período que a antecede
como no que a sucede. Essa orientação se reflete na organização acadêmi-
ca, nas finalidades institucionais, nos cursos ofertados (como os seqüências
e os tecnológicos), conforme analisam Catani, Oliveira e Dourado (2004).
Para os propósitos deste texto, importa, sobretudo, analisar se a
política da educação superior, na esteira da LDB de 1996, tem expressado
uma tendência de tecnologização do conhecimento científico capaz de
afetar a instituição universitária e o trabalho docente, o que nos remete a
vários sinais que corroboram para uma resposta afirmativa. Contudo, é
preciso lembrar que essa tendência já se expressava antes, por exemplo, na
Reforma Universitária de 1968, momento em que o governo militar “[...]
baseava sua linha de raciocínio também nas questões de segurança inter-
na e de desenvolvimento nacional", e em que a ciência e a tecnologia se
coadunavam com tal pensamento, visto ser este o caminho para chegar ao
desenvolvimento (Trigueiro, 2003, p. 15). É possível argumentar, então,
que a atual LDB agudiza, aprofunda essa inclinação, agora se
compatibilizando com o pensamento neoliberal e a globalização excludente.
Como exemplo emblemático da materialização desse ideário nas po-
líticas públicas, pode-se também citar a já mencionada Lei de Inovação
Tecnológica (Lei nº 10.973/2004), que no artigo 1º estabelece “[...] medidas
de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente

319
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

produtivo, com vistas ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvol-


vimento industrial do País" (Brasil, 2004b). Faculta às instituições de ciência
e tecnologia a celebração de contratos de transferência de tecnologia e
licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação,
com contrapartida de valores, podendo o servidor público envolvido receber
pagamento e afastar-se das atividades de docência.
Essas alterações, combinadas com o financiamento insuficiente das
instituições públicas e com a precarização salarial dos docentes, certa-
mente estimulam a que se busque, por meio da pesquisa científica
mercadorizada, fonte de renda, seja para viabilizar a condição de trabalho,
o funcionamento da instituição, seja para estabelecer a sustentação pes-
soal e familiar do docente. A saída para os problemas é traçada no sentido
do pragmatismo, do mercado, do modelo de educação economicista e
instrumental, do docente empreendedor, aquele que põe essa engrenagem
a funcionar – o que certamente causa, no seu interior e ao seu redor,
ambigüidades, incertezas, desencontros.

Professor universitário: dilemas


e perspectivas no contexto da globalização

A educação é prática social que se define a partir do e no conjunto


das relações sociais. Da mesma forma que o capitalismo apresenta, no
curso da história, formas distintas de organizar-se, construindo novas adap-
tações de acordo com as necessidades de sustentação e de potencialização
de suas forças, também a educação vai se modificando e alterando a sua
história. Entretanto, não se pode concebê-la a reboque das relações pro-
dutivas. Ela é prática social e, como tal, mobiliza interesses diferenciados
e complexos, podendo potencializar iniciativas que pretendem legitimar a
ordem estabelecida como também outras que lhes são divergentes ou mesmo
antagônicas.
Análises realizadas por Goodson (1999), sobre as atuais iniciativas
de reestruturação dos currículos, indicam que estamos vivendo uma crise
de posicionamento. No meio dessa crise “[...] não há onde se firmar e,
permanecer no mesmo local é se arriscar a ficar em uma posição que pode
sofrer mudanças" (Ibidem, p. 114).

320
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

O docente da educação superior, que deseja construir projetos pau-


tados em princípios democráticos, precisa estar atento à natureza e ao
ritmo das mudanças, mantendo uma atitude de suspeição em relação aos
fundamentos de sua atuação profissional. Assim, pode identificar as con-
tradições, dilemas, desafios e possibilidades de seu trabalho. Nessa pers-
pectiva, é profícuo buscar respostas para indagações como: Quais são as
implicações das inovações, com sentido mercadológico, na educação su-
perior? Qual é a concepção de ciência explicitada no trabalho do docente?
Que sentido é atribuído à educação? Qual é a finalidade da docência
universitária no contexto da sociedade do conhecimento?
As reflexões que temos realizado sobre essas indagações chamam a
atenção para a necessidade de nós, educadores, aprofundarmos os estu-
dos e ampliarmos o debate sobre questões como as pontuadas a seguir:

• As atuais políticas educacionais para a educação superior brasileira


induzem ao estabelecimento de relação direta entre o trabalho do-
cente e as inovações requeridas pela produção econômica. Nesse
sentido, as inovações proclamadas têm implicações negativas so-
bre a educação porque remetem à formação pragmática, centrada
na produtividade, na excelência, na competitividade, em detrimen-
to da formação omnilateral, crítica e ética que historicamente vem
sendo apontada como papel da universidade. O distanciamento
dessa função social não vitima somente a universidade, mas tam-
bém a própria sociedade que se vê desprovida dessa importante
instância reflexiva, cultural e civilizacional (Sobrinho, 2004).
• À medida que a produção de conhecimento fica atrelada ao avanço
da tecnologia e à demanda do mercado, as informações produzi-
das, ou mesmo o produto criado, tornam-se secretos, particulares e
transformam-se em objetos de disputa por poder. Desconsidera-se
assim que a ciência faz parte do patrimônio cultural da humanida-
de e que sua finalidade é “[...] ampliar os horizontes de liberdade,
expandir a capacidade de percepção dos nossos sentidos e compre-
ender as relações existentes na natureza, bem como aquelas gera-
das pelos grupamentos humanos" (sic) (Godoi Filho, 2006, p. 1).
• A explosão de conhecimento e a velocidade com que são produzi-
dos e difundidos motivam rompimento com antigos referenciais de

321
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

tempo e de espaço, criando aproximações com o descartável, o


efêmero. Destarte, a educação fica comprometida, porque focaliza
apenas o presente, o imediato, a inovação, o lucro. Como explica
Chauí (2001), educação exige relação com o tempo, com o passa-
do, com a cultura instituída, com a história. Há educação e, por-
tanto formação profissional quando há obra de pensamento, e

[...] há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que


exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão, da crítica, de tal maneira
que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experi-
mentado como questão, pergunta, problema, dificuldade (Ibidem, p. 9).

• Os fenômenos e os objetos tecnológicos, quando remetidos à


educação superior, exigem que se defina que tipo de homem e
que tipo de mulher se quer formar, a que se destina a educação.
Supõe que se considerem suas conseqüências

[...] para a humanização ou a realização de todo o potencial humano em


um mundo dominado, material e ideologicamente, pelo lucro fácil, pelas
guerras, pela destruição da natureza e desumanização das condições de
vida dos povos (Ciavatta, 2006, p. 911).

• Os princípios defendidos pela chamada sociedade do conheci-


mento motivam a redução da docência universitária a um con-
junto de ações neotecnicistas referenciadas na competitividade,
quantidade e nas inovações requeridas pelo mercado. Nessa
conceituação, a pesquisa é considerada uma estratégia para pro-
dução de inovações, desprezando-se o significado que remete à
postura epistemológica que favorece a interpretação dos aconte-
cimentos do mundo, a aprendizagem e a produção de conheci-
mento socialmente relevantes. O produtivismo acadêmico (gru-
pos de pesquisas isolados e competitivos, publicação compulsiva
de artigos e de livros, participação intensiva em eventos científi-
cos; prestação de serviços a empresas com restrito fim mercantil,
etc.) parece, pois, carregar uma valoração que se sobrepõe às
experiências didáticas e ao conhecimento pedagógico.

Movidas por questionamentos que essas reflexões suscitam, temos pro-


curado desenvolver ações que nos insiram nos debates sobre os problemas

322
Universidade, sociedade do conhecimento, educação:
o trabalho docente em questão

educacionais de Mato Grosso. O primeiro passo dado nessa direção foi a cria-
ção, em 2001, de um Grupo de Trabalho – GT Universidade – no Seminário de
Educação, evento acadêmico realizado anualmente no Instituto de Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso, sob a coordenação do Programa de
Pós-Graduação em Educação. O Grupo foi estratégico para aglutinar pessoas
provenientes de diversas instituições e divulgar a produção de pesquisa na
área da educação superior, problematizando temáticas e realidades diversas.
Foi o estímulo necessário para que um grupo de professores da
instituição se organizasse para desencadear outras atividades, destacan-
do-se inicialmente as relacionadas com o desenvolvimento de estudos e
pesquisas na área de política e docência universitária. Entre outras ações
empreeendidas, cita-se a realização de três cursos de especialização em
docência na educação superior (com a participação de docentes da insti-
tuição na condição de professores e de alunos do curso) e do Ciclo de
Estudos e Debates, evento que congregou docentes para debater temáticas
variadas (universidade, conhecimento, docência universitária, currículo,
avaliação, pesquisa e uso de novas tecnologias da comunicação na educa-
ção superior). Além disso, o grupo está desenvolvendo pesquisas sobre a
formação de professores universitários em estágio probatório, com o in-
tuito de subsidiar a elaboração de uma política institucional de professo-
res universitários.
Consideramos que os investimentos feitos nessa área são ainda
incipientes, mas representam algumas das possibilidades de fazer da
docência uma prática social comprometida com a emancipação humana e
da pesquisa uma tarefa de vida.

À guisa de conclusões

Ensaiando um desfecho para esta reflexão, é importante afirmar


que, em tempos de globalização, a adoção de projetos educativos
referenciados em princípios democráticos, coletivos, emancipadores é uto-
pia sujeita a muitas previsões e narrativas. Paradoxalmente, a utopia –
concebida aqui como expressão de intencionalidade e desejo de mudan-
ças - é fator preponderante na definição de projetos educativos consisten-
tes que auxiliem os processos de resistência à lógica competitiva e excludente

323
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

instaurada como fato social inexorável. A definição de tais projetos requer


revisão da concepção de ciência e da ideologia que sustenta o trabalho
docente. Requer ainda disposição para ir ao encontro dos pares, reconhe-
cendo-os não como concorrentes, mas, sim, como partícipes de projetos
educativos comuns.
É no fulcro deste processo de recuperação de intencionalidades, de
princípios e de espaços que se pode desnaturalizar a realidade e lançar
dúvidas sobre o discurso que relaciona mecanicamente felicidade, pro-
gresso econômico, disposição para o trabalho, criatividade, competitividade,
conhecimento aplicável, renda. Pode haver algo errado nesta lógica, se
não for questionado o modelo que a acompanha que está subjacente a
cada um dos temas. Esvaziar o referido discurso e suas respectivas teorias
pelo uso da dimensão crítica é desafio que se impõe a nós, docentes da
educação superior. Faz-se necessário definir outros posicionamentos e
outros pressupostos para que a universidade não se converta em fator de
produção, mas em um dos alicerces importantes na trajetória da constru-
ção humana. Certamente, isso envolve formação-educação, a nossa parte,
a que pode estar sendo esvaecida, esmorecida. Nessa perspectiva, a reto-
mada de experiências coletivas para pensar o mundo que nos cerca pode
conter um potencial de transformação do trabalho docente na educação
superior e deste mundo.

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326
G) Reforma
15
Reforma da educação superior
brasileira – de Fernando Henrique
Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação
e privatização da educação
superior brasileira
Vera Lúcia Jacob Chaves*
Rosângela Novaes Lima**
Luciene Miranda Medeiros***

* Doutora em Educação (UFMG); professora da UFPA; e-mail: vjacob@uol.com.br.


** Doutora em Ciências Sociais (Unicamp); professora da UFPA; e-mail: rolima@uol.com.br.
*** Doutora em Ciências Sociais (Unicamp); professora da UFPA; e-mail: soridem@amazon.com.br
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

Introduzindo a temática de estudo

A reforma da educação superior empreendida nos governos de


Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2006), para ser compreendida, exige a análise do contexto da reforma do
Estado capitalista e seus desdobramentos que se configuram nas transfor-
mações implementadas nas políticas sociais. No entanto, a discussão so-
bre o caráter do Estado capitalista e a redefinição de seu papel está inserida
em um movimento maior de reformas estruturais adotadas como estraté-
gia para a superação das crises do capitalismo.
Seguindo essa lógica, o objetivo deste trabalho consiste em discutir
o papel que o Estado brasileiro passou a assumir, em face das reformas
estruturais adotadas no País da década de 1990 aos dias atuais, e as con-
seqüências reais para a política educacional, especialmente na educação
superior.
Como ponto de partida, adotamos a premissa de que a crise
conjuntural que afeta a educação superior está interligada ao movimento
de reforma do Estado, implementada pelo governo brasileiro como parte

331
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

da estratégia mundial de enfrentamento da crise de acumulação do capi-


tal. A centralidade dessa reforma consiste na redefinição do papel do Esta-
do que reafirma, por um lado, o valor do Estado democrático como o
âmbito natural da justiça e como instância estratégica de redistribuição de
recursos, ao mesmo tempo em que, ele é desmantelado em função do
reforço darwiniano do mercado, procurando, a qualquer custo, a manu-
tenção dos lucros. Essa crise, portanto, se manifesta de forma tencionada,
notadamente devido à supressão dos vários direitos de cidadania.
Neste texto, explicitaremos alguns elementos centrais da reforma
do Estado brasileiro e da política da educação superior implementada nos
governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2006) e o processo de expansão, diversificação
e privatização desse nível de ensino, para cumprir as seguintes tarefas: a)
refletir sobre a reforma do Estado e seus efeitos na implementação das
políticas de ajuste neoliberais, em especial no campo das políticas sociais;
b) analisar as conseqüências dessa reforma nas políticas implementadas
na educação superior brasileira nos governos de Fernando Henrique Car-
doso e Luiz Inácio Lula da Silva, com ênfase para o período após a apro-
vação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/
1996).

A Reforma do Estado e as políticas


de ajuste estrutural

As reformas do Estado, implementadas na América Latina nos anos


1990, tiveram como fundamento a doutrina neoliberal. De acordo com
essa concepção, a responsabilidade pela crise econômica dos países capi-
talistas é do próprio Estado que, ao longo dos anos, produziu um setor
público ineficiente e marcado pelo privilégio, diferente do setor privado,
que desenvolve as atividades com eficiência e qualidade. Esse argumento
vem sendo utilizado para justificar a necessidade de reduzir o tamanho do
Estado, em especial na oferta dos serviços sociais à população. Para os
defensores do neoliberalismo, as conquistas sociais, como o direito à edu-
cação, à saúde, aos transportes públicos, entre outros, devem ser regidos
pelas leis do mercado, ou seja, o Estado deve liberar os serviços sociais

332
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

para exploração do mercado capitalista, direcionando suas ações com vis-


tas à reprodução do capital.
As políticas de ajuste estrutural desenvolvidas, na América Latina,
centraram-se na desregulamentação dos mercados, na abertura comercial
e financeira, na privatização do setor público e na redução do Estado. A
implantação dessas políticas tem provocado uma exclusão social e econô-
mica muito grave e o Estado age apenas nos casos de “alívio" da pobreza
absoluta e de produção de serviços que a iniciativa privada não quer exe-
cutar, principalmente por meio de programas assistencialistas. São abolidas
as idéias de “direitos sociais e a obrigação da sociedade por meio da ação
do Estado garanti-los, bem como a universalidade, igualdade e gratuidade
dos serviços sociais" (Soares, 2001, p. 44).
O argumento é o de que, para solucionar a crise do Estado, é ne-
cessário reduzir o déficit causado por excessivos gastos públicos com pes-
soal e políticas sociais. Como conseqüência, a privatização vem sendo
utilizada com a finalidade de reduzir a presença do Estado, tanto na área
produtiva quanto na área social.
No Brasil, a doutrina neoliberal passa a direcionar a política brasileira
a partir do governo de Fernando Collor de Mello. No entanto, nos governos
de Fernando Henrique Cardoso essa política foi acentuada por meio de uma
série de reformas no Estado, tendo a privatização como um dos eixos cen-
trais. Os pressupostos básicos da reforma do Estado no Brasil estão especi-
ficados no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, publicado em
novembro de 1995, que “define objetivos e estabelece diretrizes para a re-
forma da administração pública brasileira" (Pereira e Spink, 1998, p. 186).
Essa reforma tem por finalidade intensificar a abertura do mercado
para investimentos estrangeiros, provocando a falência de vários setores da
economia nacional. Como resultado, aumentou o desemprego e a demanda
por serviços públicos de assistência social, previdência, saúde e educação,
entre outros. A defesa da universalização dos direitos sociais foi substituída
pela da focalização e o princípio da igualdade pelo da eqüidade.

As propostas de focalização no ataque à pobreza e de economicidade e


eficiência, consagradas no chamado ‘Consenso de Washington', e, em
particular, nos programas do Banco Mundial, a nosso modo de ver não
passam de tentativas de ‘racionalizar' a situação de agravamento geral da
pobreza e do desamparo social a que foram conduzidos quase todos os
países periféricos na última década, independentemente de sua matriz
histórica de desenvolvimento econômico e político (Soares, 2001, p. 22).

333
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Políticas sociais têm sido direcionadas à população de baixa renda,


aliviando a miséria dos excluídos, mantendo, entretanto, a desigualdade
social e a pobreza. Na área educacional, a política de focalização, mani-
festa-se por meio da priorização dos recursos da União para o atendimen-
to ao ensino fundamental; pela criação de bolsas para os estudantes do
ensino superior privado, a exemplo do Programa Universidade para Todos
(ProUni); e pela redução dos investimentos públicos às instituições de
ensino superior (IES), públicas induzindo-as à captação de recursos no
mercado capitalista. Como conseqüência, a educação superior deixa de ser
direito social transformando-se em mercadoria.
As reformas implementadas na educação superior, nas décadas de
1990 e início dos anos 2000, seguiram as diretrizes dos organismos inter-
nacionais, cuja tese é a de que o sistema de ensino superior, deve se tornar
mais diversificado e flexível, objetivando uma expansão com contenção
nos gastos públicos.1
Essa flexibilização na oferta do ensino superior fortaleceu-se com a
construção de um consenso sobre a ineficiência e ineficácia dos serviços
públicos em geral. No caso específico da universidade pública, ganhou
força o argumento da necessidade de diversificação das fontes de financi-
amento, via setor privado, e o fortalecimento da expansão do ensino su-
perior privado, por meio da liberalização dos serviços educacionais e da
isenção fiscal, como será evidenciado a seguir.

Reforma da educação superior brasileira –


de Fernando Henrique Cardoso a Luiz
Inácio Lula da Silva

A política educacional executada pelos governos de Fernando


Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva revela o caráter ideologi-
camente privado assumido na reforma da educação superior brasileira.

1
Esses dois elementos estão estabelecidos no documento La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiência,
publicado em 1995, pelo Banco Mundial, no qual são apresentadas as diretrizes para a reforma da educação superior, na
América Latina, Ásia e Caribe. Essas diretrizes foram seguidas pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz
Inácio Lula da Silva, na implementação da política educacional brasileira, em especial nas reformas da educação superior.

334
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

Essa reforma foi implementada por meio da edição de uma série de instru-
mentos normativos, tendo como marco de referência a LDB, aprovada em
20 de dezembro de 1996, na qual o Estado assumiu papel destacado no
controle e na gestão das políticas educacionais.2
Entre as diversas alterações adotadas na educação superior brasi-
leira a partir da LDB, merece destaque, nesse estudo, a flexibilização/frag-
mentação por meio da diversificação institucional e a expansão pela via
do setor privado, acentuando a privatização desse nível de ensino.
A LDB define no art. 20 três tipos de instituições privadas de ensino:
as particulares, em sentido estrito (empresariais); as comunitárias; as
confessionais e filantrópicas. Observa-se, no entanto, uma imprecisão na
definição das instituições confessionais e comunitárias como IES de direito
privado. São consideradas comunitárias as IES que tiverem a presença de
representantes da comunidade na sua entidade mantenedora. Às confessionais
é exigida, além da presença de representantes da comunidade, que tenham
orientação confessional e ideologia específicas. Essa imprecisão contribuiu
para que a maioria das IES, consideradas sem fins lucrativos, se
autodenominem, simultaneamente, de comunitárias, confessionais e filan-
trópicas, favorecendo as grandes empresas de ensino superior que, por se-
rem julgadas filantrópicas, continuem a receber subsídios públicos.
A subdivisão do setor privado em duas vertentes diferenciadas: de
um lado os tidos como não-lucrativos e, de outro, os que se apresentam
como empresas lucrativas; oferece nova configuração à disputa clássica
entre os defensores da escola pública e os defensores da escola privada. Ao
distinguir-se das instituições lucrativas, as confessionais ou filantrópicas
visam aproximar-se do setor público reivindicando o acesso a verbas pú-
blicas. Utilizando a justificativa do caráter não-lucrativo essas instituições
se autodenominam de públicas não-estatais. A aprovação da LDB, no en-
tanto, favoreceu não apenas as instituições ditas não-lucrativas, mas tam-
bém o setor empresarial que almeja somente o lucro.

2
Entre as outras medidas legais baixadas para a educação superior aprovadas nos dois governos de Fernando Henrique
Cardoso destacam-se: a Lei nº 9.192, de 21 de dezembro de 1995 (que estabeleceu normas para a escolha de dirigentes das
universidades federais); a Lei nº 9.131, de 24 de novembro de 1995 (que criou o Conselho Nacional de Educação (CNE), ao
mesmo tempo em que instituiu o exame nacional de cursos para os alunos que concluem a graduação); o Decreto nº 2.207, de
15 de abril de 1997, logo alterado pelo Decreto nº 2.306, de 19 de agosto de 1997 (que alterou artigos da LDB, em especial os
que se referem à diversificação das instituições de ensino superior); o Decreto nº 3.860, de 9 de julho de 2001 (que revogou os
dois decretos anteriores, alterando as regras de organização do ensino superior e da avaliação de cursos e instituições).

335
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Nesses dez anos de vigência, a LDB vem sofrendo alterações, exigidas


pela matriz neoliberal, que se expressam no ajuste e na reestruturação
educacional impostos aos países da América Latina pelos organismos in-
ternacionais como o Banco Mundial (BM). Na educação superior, as alte-
rações foram feitas por meio da edição de decretos, leis, portarias e outros
instrumentos normativos. Para efeito deste estudo, destacamos as altera-
ções instituídas no Decreto nº 2.207, de 5/4/1997, alterado pelo Decreto
nº 2.306, de 19 de agosto de 1997, que regulamentou o Sistema Federal
de Educação – por meio do qual o governo normatizou as atribuições das
instituições superiores privadas de ensino, admitindo de forma definitiva
as instituições com fins lucrativos e estabelecendo a diversificação das
instituições de ensino superior em cinco tipos: I – universidades; II – cen-
tros universitários; III – faculdades integradas; IV – faculdades; e V –
institutos superiores ou escolas superiores.
Embora esse decreto tenha sido fundamental para a estrondosa
expansão do empresariamento do ensino superior no Brasil, a consolida-
ção desse processo se deu por meio da instituição, novamente autoritária,
do Decreto nº 3.860, do dia 9 de julho de 2001, que alterou as regras de
organização do ensino superior e da avaliação de cursos e instituições, e
definiu nova mudança na diversificação das instituições de ensino superi-
or. Em lugar dos cinco tipos de instituições de ensino superior, o novo
decreto estabelece apenas três: I – universidades; II – centros universitári-
os; III – faculdades integradas; faculdades; institutos superiores e/ou es-
colas superiores. Observa-se, no entanto, que, de fato, não foi alterada a
natureza das IES existentes, sendo apenas reagrupadas diferentemente.
Dando continuidade à reforma privatista da educação superior, o go-
verno de Luiz Inácio Lula da Silva aprovou os seguintes instrumentos legais:
Decreto nº 4.914, de 11/12/2003 (dispõe sobre os centros universitários, alte-
rando o art. 11 do Decreto nº 860, de 9 de julho de 2001); Lei nº 10.861, de
14/4/2004 (que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Supe-
rior – Sinaes); Lei nº 10.973, de 2/12/2004 (que dispõe sobre incentivos à
inovação tecnológica); Lei nº 11.079, de 30/12/2004 (que institui a Parceria
Público Privada - PPP); o Decreto Presidencial nº 5.225, de 1º/10/2004 (que
elevou os centros federais de educação tecnológica – Cefets – à categoria de
instituições de ensino superior); o Decreto Presidencial nº 5.245, de 18/10/
2004 transformado na Lei nº 11.096/05 (que criou o Programa Universidade

336
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

para Todos – ProUni); o Decreto Presidencial nº 5.205, de 20/12/2004 (que


regulamenta as fundações de apoio privadas no interior das Ifes); o Decreto
Presidencial nº 5.622, de 19/12/2005 (que regulamenta a educação a distân-
cia no Brasil e consolida a abertura do mercado educacional brasileiro ao
capital estrangeiro); e mais recentemente o Decreto nº 5.773, de 9/5/2006
(que estabelece normas para as funções de regulação, supervisão e avaliação
das instituições de ensino superior) e o Projeto de Lei nº 7.200/06, encami-
nhado pelo governo federal ao Congresso Nacional, em junho de 2006, que
estabelece nova regulamentação para a educação superior brasileira.
Esse conjunto de medidas normativas, mantém, fortalece e dá con-
tinuidade à política de expansão do ensino superior sob a lógica da diver-
sificação e da privatização. É importante ressaltar que a diversificação das
instituições de ensino superior segue as orientações do Banco Mundial
para a educação superior na América Latina, sistematizadas no documen-
to: La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiência (1995),
que recomenda:

A introdução de uma maior diferenciação no ensino superior, ou seja, a


criação de instituições não-universitárias e o aumento de instituições pri-
vadas podem contribuir para satisfazer a demanda cada vez maior de edu-
cação superior e fazer com que os sistemas de ensino melhor se adeqüem
às necessidades do mercado de trabalho (Banco Mundial, 1995, p. 31).

Essa política de diversificação institucional e da liberalização para a


criação de instituições isoladas, se expressa por meio dos dados do Censo
da Educação Superior que mostram que, no Brasil, havia, em 2005, 2.165
instituições de educação superior; dessas, 176 eram universidades, 114
centros universitários, 117 faculdades integradas, 1.574 faculdades/esco-
las/institutos e 184 centros federais de educação tecnológica e faculdades
de tecnologia (Brasil, 2005).
No período pós-LDB, de 1996 a 2005, ocorreu um crescimento de
27,5% no número de universidades e de 144,8% no número de faculda-
des, escolas e institutos. Observa-se uma tendência à substituição do modelo
de faculdades integradas, que apresentaram um decréscimo de 18,2% no
período analisado, pelos centros universitários e os centros de educação
tecnológica e faculdades tecnológicas que apresentaram maior crescimen-
to no período pós-LDB. No ano seguinte à aprovação da LDB, iniciou-se a
criação de centros universitários, passando de 13 centros em 1997, para

337
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

114 IES desse tipo em 2005, um crescimento de 777%. Os centros de


educação tecnológica e faculdades de tecnologia foram criados a partir de
1999, após a aprovação do Decreto n. 2.208 de 1997, que transformou as
escolas técnicas federais em centros federais de educação tecnológica.
Esse tipo de IES foi a que apresentou o maior crescimento após a aprova-
ção da LDB passando de 16 em 1999, para 184 em 2005, aumentando
1.050% em apenas seis anos. A Tabela 1 evidencia a evolução da diversi-
ficação institucional.

Tabela 1 – Evolução das IES no Brasil, por organização acadêmica –


1996-2005
Centros de
Faculdades, educação
Centros Faculdades
Ano Universidades escolas e tecnológica e
universitários integradas
institutos faculdades de
tecnologia
1996 138 0 143 643 0
1997 150 13 78 659 0
1998 153 18 75 727 0
1999 155 39 74 813 16
2000 156 50 90 865 19
2001 156 66 99 1.036 34
2002 162 77 105 1.240 53
2003 163 81 119 1.403 93
2004 169 107 119 1.474 144
2005 176 114 117 1.574 184
1996/2005
27,5 - -18,2 144,8 -
%
Fonte: MEC/Inep/Deaes, 2006.

Ao analisarmos a diversificação institucional nas IES públicas e pri-


vadas, os dados do Censo da Educação Superior demonstram que o setor
privado expandiu de forma mais acentuada que o setor público, evidenci-
ando o aprofundamento da política privatista adotada pelos governos bra-
sileiros no período pós-LDB. Das 922 IES existentes no Brasil, em 1996,
211 eram públicas (22,9%) e 711 eram privadas (77,1%). No ano de 2005,
eram 2.165 IES no País, sendo 231 (10,7%) públicas e 1.934 (89,3%) pri-
vadas. O crescimento das IES no período foi de 134,8%, sendo que as
públicas cresceram 9,5% e as privadas 172%. O Gráfico 1 mostra a evolu-
ção das IES públicas e privadas pós-LDB.

338
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

89,3%

2000
77,1%
1500 públicas
privadas
1000
22,9% 10,7%
500
0

Gráfico 1 – Evolução das IES públicas e privadas, Brasil – 1996-2005


Fonte: MEC/Inep/Deaes

Chama a atenção o fato de que, tanto no setor público como no


privado, a diversificação institucional é uma característica desse nível de
ensino. Analisando os dados do Censo da Educação Superior no período
pós-LDB, fica evidente que a forma de organização institucional predomi-
nante no setor privado é de faculdades, escolas e institutos, com 515 IES
desse tipo, no ano de 1996, passando para 1.493, em 2005, apresentando
um crescimento de 190%. As universidades têm sido a forma de organiza-
ção mais predominante no setor público que no privado. Das 231 IES
públicas em 2005, 90 eram universidades (39%) enquanto no setor priva-
do, das 1.934 IES, apenas 86 eram universidades (4,4%). Observa-se, ain-
da, que as IES organizadas em faculdades, escolas e institutos vêm decres-
cendo a cada ano no setor público, apresentando, no período de 1996 a
2005, um crescimento negativo de 36,7%. Outro tipo de IES que vem
decrescendo são as faculdades integradas, que, no período analisado, fo-
ram reduzidas em 63,6% no setor público e 14,4% no setor privado. Por
outro lado, o tipo de IES que mais cresceu no período em estudo foram os
centros de educação tecnológica e faculdades tecnológicas que, apesar de
serem o tipo de organização institucional mais recente no País, apresenta-
ram no setor público um crescimento de 231,3%, no período de 1999 a
2005, e no setor privado cresceram 1.625%, de 2001 a 2005, passando de
8 IES para 131. A Tabela 2 mostra a evolução das IES públicas e privadas,
por organização acadêmica no período pós-LDB.

339
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

Tabela 2 – Evolução das IES públicas e privadas, por organização


acadêmica, Brasil – 1996-2005

Centros de
Faculdades,
educação
Centros Faculdades
Universidades tecnológica e
escolas e
Ano universitários integradas
institutos
faculdades de
tecnologia
Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada
1996 72 64 0 0 11 132 128 515 0 0
1997 77 73 0 13 1 77 133 526 0 0
1998 77 76 0 18 0 75 132 595 0 0
1999 72 83 0 39 2 72 102 711 16 0
2000 71 85 1 49 2 88 83 782 19 0
2001 71 85 2 64 2 97 82 954 26 8
2002 78 84 3 74 3 102 80 1.160 31 22
2003 79 84 3 78 4 115 82 1.321 39 54
2004 83 86 3 104 3 116 86 1.388 49 95
2005 90 86 3 111 4 113 81 1.493 53 131
1996/2005
25 34,4 - - -63,6 -14,4 -36,7 189,9 - -
%
Fonte: MEC/Inep/Deaes.

Os dados do Censo evidenciam que a política implementada no


País para a educação superior favoreceu também a expansão desse nível
de ensino, com ênfase para o setor privado. Ao analisarmos o Plano Naci-
onal de Educação, elaborado em 1998 e aprovado pela Lei nº 10.172, de 9
de janeiro de 2001, fica evidente que o governo reconhecia a necessidade
de expansão do ensino superior no Brasil, mas defendia que essa devia ser
feita com a “racionalização dos gastos e diversificação do sistema" além, é
claro, da contribuição valiosa das instituições privadas. A meta a ser atin-
gida, em dez anos, era a do atendimento de 30% da população, na faixa
etária de 18 a 24 anos, sendo estabelecido que o setor público teria uma
expansão de vagas que se mantivesse em uma proporção nunca inferior a
40% do total.3 Essa meta, no entanto, está longe de ser atingida, uma vez
que em 2004, os dados da Pnad (2004) apontam que apenas 10,5% da
população brasileira de 18 a 24 anos, teve acesso a esse nível de ensino.
Para agravar essa situação, o PNE prevê, ainda, que a expansão
dependerá de uma racionalização, no uso dos recursos, que diminua o

3
Essa meta de ampliação do ensino superior público, prevista no Plano Nacional de Educação, foi vetada por Fernando
Henrique Cardoso, mantido o veto por Luiz Inácio Lula da Silva, o que confirma a hipótese de que a expansão desse nível
de ensino se dará principalmente pelo setor privado.

340
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

gasto por aluno, nos estabelecimentos públicos; da criação de estabelecimen-


tos voltados mais para o ensino que para a pesquisa; da ampliação do ensino
pós-médio; e do estabelecimento de parcerias entre União, Estados e institui-
ções comunitárias, para ampliar, substancialmente, as vagas existentes.
Pode-se afirmar que a política de expansão das IES privadas refle-
tem, de um lado, a omissão dos governos em relação à expansão das
instituições públicas, criando uma reserva de mercado para o setor priva-
do. Por outro lado, é recorrente a liberalização e desregulamentação desse
setor que tem encontrado facilidades para expandir, por meio da adoção
pelo Estado brasileiro de uma série de mecanismos, tais como: a liberalização
dos serviços educacionais, isenções tributárias, isenção da contribuição
previdenciária das filantrópicas, isenção do salário educação, bolsas de
estudo para alunos carentes via programa do Crédito Educativo hoje trans-
formado no Financiamento Estudantil (Fies), empréstimos financeiros a
juros baixos por instituições bancárias oficiais como o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Programa Universidade
para Todos (ProUni),4 entre outras formas de estímulo.
Sobre a expansão do setor privado, os dados do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) são reveladores
da política desenvolvida pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Inácio Lula da Silva. Ao analisarmos os dados oficiais sobre o ensino
superior brasileiro, observa-se que a predominância do setor privado, tan-
to em relação ao número de instituições, como de alunos atendidos e
cursos de graduação, é uma característica do quadro desse nível de ensino.
De acordo com o Censo da Educação Superior (MEC/INEP), no ano
de 2005, foram registradas 4.453.156 matrículas em cursos de graduação
presenciais, sendo 1.192.189 em IES públicas e 3.260.967 em IES privadas,
o que corresponde respectivamente, a 26,8% e 73,2% do total de matrícu-
las. Analisando o período de 1996 a 2005, verifica-se um crescimento de

4
Entre as políticas privatistas do governo Lula destaca-se o Programa Universidade para Todos (ProUni) implementado pelo
então ministro da Educação, Tarso Genro, que nada mais é do que a extensão dos benefícios fiscais que as IES filantrópicas
já possuem para todas as instituições de ensino superior privadas, em “troca" de preenchimento das “vagas ociosas" por
alunos “carentes", afrodescendentes, portadores de necessidades especiais, indígenas, ex-presidiários. Na prática, repete-se
a mesma política dos governos anteriores de transferência de verbas públicas para as privadas, a diferença é o discurso
demagógico e populista de “inclusão dos excluídos" no ensino superior. É uma política discriminatória, pois aos ditos
“excluídos" o governo oferece uma educação de qualidade duvidosa, segundo dados do próprio Ministério de Educação.

341
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

138,3% alunos matriculados no ensino superior brasileiro, observa-se, no


entanto, que no setor privado esse crescimento foi de 187,8%, mais do
triplo que o apresentado pelo setor público, que cresceu 62,1%.
Segundo ainda dados divulgados pelo referido Censo, foram
registrados em 2005, 20.407 cursos de graduação presenciais ofertados
pelas IES no Brasil, sendo 6.191 cursos ofertados por IES públicas e 14.216
por IES privadas, correspondendo a 30,3% e 69,7 %, respectivamente.
Observando o período de 1996 a 2005, o percentual de crescimento de
cursos de graduação presenciais foi de 207,1% em todo o País, sendo que
nas IES públicas, cresceram 107,9% enquanto nas privadas 287,8%. A
Tabela 3 mostra a expansão das matrículas e cursos no período pós-LDB.

Tabela 3 – Evolução das matrículas e cursos de graduação


presenciais, por setor, Brasil – 1996-2005

Cursos
Ano Matrículas
Total Pública Privada Total Pública Privada
1996 6.644 2.978 3.666 1.868.529 735.427 1.133.102
1997 6.132 2.698 3.434 1.945.615 759.182 1.186.433
1998 6.950 2.970 3.980 2.125.958 804.729 1.321.229
1999 8.878 3.494 5.384 2.369.945 832.022 1.537.923
2000 10.585 4.021 6.564 2.694.245 887.026 1.807.219
2001 12.155 4.401 7.754 3.030.754 939.225 2.091.529
2002 14.399 5.252 9.147 3.479.913 1.051.655 2.428.258
2003 16.453 5.662 10.791 3.887.771 1.137.119 2.750.652
2004 18.644 6.262 12.382 4.163.733 1.178.328 2.985.405
2005 20.407 6.191 14.216 4.453156 1.192.189 3.260.967
1996-
2005? % 207,1 107,9 287,8 138,3 62,1 187,8
Fonte: MEC/Inep, 1996-2005.

Outro dado significativo para a análise da política de privatização


implementada pelos governos neoliberais brasileiros é o fato de que o
acelerado crescimento do ensino superior evidenciado acima, não tem sido
suficiente para atender à demanda populacional uma vez que a taxa de
escolarização nesse nível de ensino é muito baixa. De acordo com os da-
dos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2004 (Pnad/IBGE),
a taxa de escolarização era 18,6%, em 2004, enquanto a taxa líquida, era
de, apenas, 10,5%. Isso quer dizer que, dos 24.072.318 jovens brasileiros

342
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

que estão na faixa etária de 18 a 24 anos, apenas 10,5% estão matricula-


dos no ensino superior. Comparando com dados de outros países, fica
evidente que o Brasil apresenta uma das piores taxas de escolarização
bruta, perdendo apenas para o Paraguai e África do Sul, Coréia, 72%;
EUA, 72%; Portugal, 47%; Argentina, 48%; Chile, 38%; Uruguai, 34%,
Bolívia, 33%; Colômbia, 22%; Cuba, 21%; México, 20%; África do Sul,
15%; Paraguai, 14% (Unesco, 2003). Com isso, percebe-se a dimensão do
problema a ser enfrentado em um mundo globalizado onde a ciência, a
tecnologia e a cultura são fundamentais para o desenvolvimento societário.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2004 (Pnad/
IBGE) mostra que a desigualdade na distribuição de renda no Brasil é cada
vez mais acentuada. Dos 181.270.380 moradores em domicílios particula-
res permanentes, 17.670.978 (9,7%) pertencem à classe de rendimento
mensal domiciliar de até 1 salário mínimo; 35.934.490 (19,8%) pertencem
à classe de renda mensal de 1 a 2 salários mínimos e 29.255.748 (16,1%)
são moradores em domicílios cuja renda mensal é de 2 a 3 salários míni-
mos. Portanto, nessas faixas mais baixas de rendimento, encontra-se um
total de 45,7% dos habitantes do País. Os moradores em domicílios parti-
culares, cuja renda mensal é acima de 20 salários mínimos, são 6.669.825
o que representa 3,7% da população residente no Brasil.
Em estudo realizado para o Inep, Amaral (2006) demonstra, por
meio da análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicíli-
os de 2004, que a expansão do setor privado chegou ao limite devido ao
baixo rendimento médio mensal das famílias residentes em domicílios par-
ticulares no País. Essa desigualdade evidencia que a política de expansão
do ensino superior pela via do setor privado, encontra limites que se dão
pela própria incapacidade financeira das famílias de manterem seus filhos
nesse tipo de estabelecimento de ensino.

Considerações finais

A reforma do Estado brasileiro implementada nos governos de


Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da adoção
de uma série de ajustes estruturais na economia, trouxe conseqüências dire-
tas para a política educacional brasileira, com ênfase na educação superior.

343
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

O movimento de privatização desse nível de ensino tem sido inten-


so e se evidencia tanto pela expansão do setor privado como pela
privatização das IES públicas. Esse movimento vem transformando a uni-
versidade pública em um modelo educacional que privilegia a
mercantilização do ensino como a principal forma de superação da crise
institucional que ela vivencia. Assim, a privatização interna das institui-
ções públicas ocorre por meio da utilização de diferentes mecanismos,
entre os quais destacamos: criação de fundações de direito privado; co-
branças de taxas de mensalidades de cursos de pós-graduação lato sensu;
convênios e contratos de prestação de serviço com empresas privadas para
o desenvolvimento das atividades de ensino, pesquisa e extensão, com a
finalidade de captar recursos no mercado.
Os dados evidenciam que a política para a educação superior, pro-
movida pelos governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio
Lula da Silva, incentivou a ampliação da oferta desse nível de ensino com
a redução dos custos e o privilegiamento da mercantilização do mesmo,
seja por meio do crescimento de IES privadas com fins exclusivamente
lucrativos ou da abertura das IES públicas para o mercado.
Para implementar essa política, os governos neoliberais brasileiros
defenderam o afastamento do Estado da manutenção plena da educação
superior pública (o que ficou explícito nos vetos do Plano Nacional de
Educação por Fernando Henrique Cardoso e sua manutenção pelo gover-
no de Luiz Inácio Lula da Silva) 5 incentivando a livre competição
mercadológica entre as instituições de ensino superior. Com isso, as polí-
ticas para a educação superior foram reduzidas a uma política de gastos,
ao mercado e ao econômico, “aproximando-se as universidades públicas
ao modelo de empresas prestadoras de serviços que conduzem a novas
formas de organização e gestão, acirrando o movimento de concorrência
entre essas instituições" (Chaves, 2005).
A redução dos investimentos públicos e a defesa da diversificação
das fontes de financiamento foram centrais na reforma da educação su-
perior adotada no País. Essa reforma cumpre as orientações do Banco

5
Dos sete vetos feitos pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ao Plano Nacional de Educação e mantidos por Lula, a
maioria refere-se ao financiamento da educação superior pública.

344
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

Mundial que apresenta como uma de suas teses a de que a crise da educa-
ção brasileira deriva do modelo de universidade de pesquisa (modelo
humboldtiano), que seria excessivamente unificado e caro. Nesse sentido,
a defesa da indissociabilidade entre ensino-pesquisa e extensão é inviável
teórica e financeiramente, como se evidencia no relatório:

[...] maior autonomia institucional é a chave para o êxito da reforma do


ensino público superior, especialmente a fim de diversificar e utilizar os
recursos mais eficientemente (...) A experiência demonstra que se quer em
que as instituições estatais melhorem sua qualidade e eficiência, os gover-
nos deverão efetuar reformas importantes no financiamento a fim de mo-
bilizar mais recursos privados para o ensino superior em instituições esta-
tais (...) de várias maneiras: mediante a participação dos estudantes nos
gastos; arrecadação de recursos de ex-alunos; utilização de fontes exter-
nas; realização de outras atividades que gerem receitas (Banco Mundial,
1995, p. 44 e 69) (grifos nossos).

Essa tese fundamenta-se no argumento de que o conhecimento


propiciado pelo ensino superior deve ser visto como um investimento pro-
dutivo (pois garante ganhos), um bem privado ou uma mercadoria de
interesse individual negociado no mercado de trocas. Isso fortalece a idéia
de que o Estado deve se afastar da manutenção desse nível de ensino uma
vez que a educação superior passa a ser considerada como um serviço
público não exclusivo do Estado e competitivo.
Assim, a reforma em curso na educação superior brasileira vem
paulatinamente transformando as Instituições de Ensino Superior públi-
cas em organizações sociais, cujos contratos de gestão estabelecidos com
o governo, por meio do Plano de Desenvolvimento Institucional, traduzem
a proposta do Plano Diretor da Reforma do Estado preconizada por Bresser
Pereira. Trata-se, de fato, da implantação de um Estado, economicista e
empresarial-gerencialista, onde a satisfação das demandas do mercado e
de sua lógica da competição ocupam lugar de destaque.
Após dez anos da promulgação da LDB, os dados evidenciados
neste estudo revelam que a política expansionista adotada, pelos governos
de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da
diversificação institucional e pelo aprofundamento da privatização do en-
sino superior, sem acréscimo de recursos públicos, apesar de ter promovi-
do a expansão do acesso, não corresponde à grande demanda populacional
existente, em especial, na faixa etária de 18 a 24 anos. O Censo da Educa-
ção Superior demonstra que apenas 10,5% desses jovens tiveram acesso à

345
Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB

educação superior sendo que, a maioria expressiva dos alunos matricula-


dos no ensino superior brasileiro, 73,2%, está no setor privado e em insti-
tuições isoladas de ensino que não desenvolvem pesquisa e extensão.
É possível afirmar que a meta estabelecida no Plano Nacional de
Educação de atender 30% dos jovens na faixa etária de 18 a 24 anos no
ensino superior até 2011 está longe de ser cumprida pelo governo, se
mantidas essas políticas. Somente com acréscimo significativo de recursos
públicos esse quadro poderá ser alterado em médio prazo.
Ressalta-se que a Reforma da Educação Superior proposta pelo
governo Luiz Inácio Lula da Silva e encaminhada ao Congresso Nacional
por meio do Projeto de Lei 7.200/2006,6 não contribuirá para a mudança
desse quadro, uma vez que limita os recursos para as Ifes em 75% dos
18% dos recursos de impostos vinculados da União por um período de 10
anos, além de manter a Desvinculação de Recursos da União (DRU) no
cálculo orçamentário. Por esse mecanismo, subtrai-se 20% das receitas
tributárias (sobre as quais as receitas vinculadas são definidas). Assim, em
2005, R$ 31 bilhões foram subtraídos da base de cálculo, o que significou
retirar R$ 5,6 bilhões do orçamento da educação.
Ao mesmo tempo em que pretende reduzir, ainda mais, os recursos
para desenvolvimento e manutenção das instituições federais de ensino
superior, o governo as estimula a captarem recursos no mercado capitalis-
ta com vistas a minimizarem a crise institucional que vivenciam (Santos,
1996). A intenção é atrelar a educação à lógica do capital, na medida em
que a universidade pública, ao buscar recursos no setor privado, ficará
atrelada aos interesses empresariais, à inovação tecnológica e ao comércio
exterior, entre outros.
Desse modo, a educação de direito público e dever do Estado será
transformada em uma atraente mercadoria a ser negociada no mercado
capitalista de serviços, nacional e internacional. Ora, sem a garantia de
financiamento público para o sustento integral, as IES públicas seguirão
a lógica da gestão empresarial, perdendo a frágil autonomia que ainda

6
O PL nº 7.200/2006, tramita no Congresso Nacional em regime de prioridade, recebeu 368 emendas parlamentares e, foi
apensado ao PL 4.212/04, do deputado Átila Lira que, por antigüidade, tornou-se o projeto principal e será analisado em
conjunto com dois outros projetos.

346
Reforma da educação superior brasileira – de Fernando Henrique Cardoso a Luiz Inácio Lula da Silva:
políticas de expansão, diversificação e privatização da educação superior brasileira

possuem, na medida em que a agenda da universidade será definida a


partir dos interesses privados.
É importante salientar, ainda, que esse projeto do governo federal
mantém a excessiva fragmentação da educação superior brasileira. Pela
proposta, as IES poderão ser organizadas em universidades, universidades
tecnológicas, faculdades, centros universitários e centros tecnológicos.
Embora essa subdivisão da educação superior seja um pouco menor do
que a atual, as emendas ao PL resgatam e até aumentam ainda mais a
fragmentação desse nível de ensino.
Em síntese, podemos afirmar que a reforma em curso para a educa-
ção superior brasileira, dificultará ainda mais o acesso da maioria da po-
pulação ao ensino superior público e de qualidade que é um direito de
todos e deve ser garantido pelo Estado brasileiro. A formação de profissi-
onais de alta qualidade é uma necessidade urgente para o desenvolvimen-
to da sociedade brasileira com redução da exclusão social.

Referências bibliográficas

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Esta obra foi impressa em Brasília,
em abril de 2008.
Capa impressa em papel Reciclato 230g
e miolo em papel Reciclato 90g.
Texto composto em Rotis Semi Serif corpo 10.

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