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Zbigniew Brzezinski: o estrangeiro que reinventou os EUA

Sistemas complexos assim se estruturam porque têm inúmeros elementos que


formam a sua essência ou que sustentam seu funcionamento. Em outras palavras, um
sistema, entendido como um conjunto de valores e instituições que concomitantemente
norteiam e limitam nosso comportamento, é progressivamente complexo quando encontra
um balanço entre vários de seus itens constitutivos. Todos eles, centrais ao seu
funcionamento. Desta forma, há um equilíbrio entre o modo como produzimos e
distribuímos riqueza, o conjunto de leis, os valores éticos, a religiosidade, os códigos de
conduta interpessoal, as relações familiares, entre outros. Se um deles entra em colapso,
ou deixa de contemplar parte significativa das pessoas, outros tendem a ganhar destaque.
De modo que a sociedade consiga criar mecanismos para que aqueles que se afastaram
do seu centro, os marginais, possam o mais rápido possível, voltar a uma posição mais
próxima do núcleo daquele sistema. Ou para que aqueles que nunca foram contemplados
em quantidade e qualidade razoáveis por determinados itens constitutivos da sociedade,
passem a sê-lo.
Assim, se o elemento econômico falha ao não contemplar parte significativa da
população, outros, como os políticos, religiosos e éticos assumem maior relevância até
que os mecanismos daquela sociedade para (re)incluir ou (re)aproximar aqueles que
foram para a margem do sistema funcionem. Se, por exemplo, o elemento econômico
central for o consumo, em uma situação de queda acentuada de poder e autonomia de
consumo pela população, elementos políticos, como seguridade social, e éticos, como
solidariedade familiar, entram no jogo até que o poder de consumo volte a contemplar os
‘marginais’, lançando-os em direção ao centro.
É claro que tal equilíbrio depende da qualidade dos elementos. Uma longa queda
do poder de consumo, tanto no tempo quanto na quantidade de pessoas afetadas, pode
provocar uma crise e um questionamento tão eloquente em relação às próprias bases do
sistema, que os outros elementos não conseguem suportar tamanha pressão. Neste caso,
o sistema pode cair. Também é claro que este movimento de contração e expansão do
sistema depende da agilidade que seus elementos constitutivos centrais têm para se
recuperar em momentos de crise aguda. A fluidez de uma sociedade baseada no consumo
é, presumivelmente, maior do que outra amparada no acesso dos indivíduos à terra.
Os dois processos – o equilíbrio entre os elementos centrais do sistema e a
velocidade que cada um deles tem em se recuperar e/ou expandir – combinados, acabam
por virar o termômetro que indica o quanto este sistema está preparado para sobreviver
em momentos de crise aguda e o quanto está em risco de cair. Pensemos por exemplo, no
sistema internacional do pós-guerra e, portanto, da segunda metade do século XX. Criado
a partir da ideia de que um equilíbrio entre as nações era o único caminho para que não
voltássemos à situação beligerante que marcara a primeira metade do século XX, tal
sistema era constantemente desafiado pela sub-ordem que ele mesmo tentava domesticar,
ou seja a Guerra Fria. Assim, os elementos centrais, como a busca pelo consenso, a
autonomia e o equilíbrio entre as diversas nações, eram constantemente ameaçados pelas
disputas que envolviam o conflito entre EUA e a ex-URSS. Era como se o idealismo da
ordem internacional fosse limitado pelo realismo característico da Guerra Fria. Quanto
maior fosse o apelo para que os países se posicionassem a partir do recorte da Guerra
Fria, mais ameaçados ficavam os elementos centrais do sistema internacional
representado pelos organismos como a ONU. Assim, cabia ao sistema internacional não
só preservar, mas também dar agilidade para que seus elementos centrais não ficassem
cada vez mais estranhos aos países. A tentação de se afastar dos princípios universalistas
do sistema e se engajar em um dos lados ideológicos da Guerra Fria era imensa. Foi neste
contexto que surgiu nos EUA uma geração de intelectuais que seria parcialmente
responsável pela permanência do país nesta ambígua trajetória do pós-guerra.
Curiosamente, uma geração que internamente também vivenciou situação parecida em ao
menos três elementos centrais da sociedade norte-americana.
Entre os anos de 1950 e 70 alguns intelectuais de origem europeia se destacaram
nos EUA em meio às definições iniciais e os desdobramentos da Guerra Fria. Os nomes
mais destacados entre eles foram o judeu alemão Henry Kissinger, o filho de russos Walt
Withman Rostow e o polonês de nome quase impronunciável Zbigniew Brzezinski. Este
último é o biografado no excelente livro de Justin Väisse (Zbigniew Brzezinski. The
American Grand Strategist. Harvard University Press, 2018), recém publicado e sem
tradução no Brasil. Brzezinski, ou Zbig como o chamavam numa tentativa de facilitar a
sua identificação, foi, em sua longa carreira intelectual e como homem público, professor
de Harvard, por onde obteve seu título de PHD em Ciência Política. Como intelectual,
professor e pesquisador, escreveu inúmeros artigos acadêmicos e ao menos dez livros que
formam sua principal contribuição nesta área. Nenhum deles traduzido no Brasil. Foi
também fundador, em 1973, junto com o expresidente dos EUA Jimmy Carter e o
banqueiro David Rockefeller, da Comissão Trilateral, organização voltada à construção
de padrões de colaboração entre EUA, Japão e Europa Ocidental em meios às turbulências
que marcavam o período. Além disso, foi conselheiro em política externa da presidência
de Lyndon Johnson (1963- 1969) e o mais próximo formulador da política externa do
governo de Jimmy Carter entre 1977 e 1981, período que exerceu o cargo de Conselheiro
de Segurança Nacional.
O que aproxima Zbig de seus pares mais conhecidos, Kissinger e Rostow, é o fato
de serem todos estrangeiros (Rostow era nascido nos EUA, mas filho de russos que
fugiram em meio à perseguição que sofriam por sua ascendência judaica) em um país e,
principalmente, uma área de atuação ainda reservada às famílias tradicionais norte-
americanas e ao establishment. Neste caso, ao contrário de Kissinger, que trocou seu
nome de Heinz para o mais palatável aos ouvidos norte-americanos Henry, Zbig se
recusou a trocar seu nome e manteve seu indisfarçável sotaque até o fim da vida sem
nenhuma questão de escondê-lo. Esta insistência em transparecer sua origem polonesa
nos EUA foi motivo de muita desconfiança entre membros da imprensa – com a qual
manteve forte interlocução – e mesmo do serviço público. Este “entrangeirismo” do
democrata Zbig talvez explique, ao menos em parte, sua relativa dificuldade em lidar com
parcelas da sociedade norte-americana e, por isso, seu maior ostracismo não só nos EUA,
se comparado ao republicano Kissinger, mas também entre nós brasileiros. De qualquer
modo, ele de maneira mais aguda que os outros dois, representou um alargamento e uma
readaptação de um modelo que até então impedia, ou dificultava muito, a entrada de
membros de famílias não tradicionais nas áreas relacionadas às definições da política
externa do país. Sua ascensão revela traços importantes do contexto. A ambiguidade
entre, de um lado, uma ordem pretensamente universal – em parte herdeira de uma
tendência mais idealista que vinha do democrata Woodrow Wilson, mas também
pressionada pelos estragos feitos pela Segunda Grande Guerra – e de outro, a cunha
imposta pela Guerra Fria, tornou caduca a divisão tradicional da política externa do país.
Ou seja, a adoção de uma política amparada na visão dos republicanos, mais realista,
servia à Guerra Fria mais do que à ordem universalista. Enquanto, por outro lado, a
política externa amparada na visão dos democratas, mais idealista, servia
preferencialmente à ordem universalista e não à Guerra Fria. A adoção de uma
‘empurrava’ a outra para a margem. Os ‘marginais’, de que lado estivessem, tinham
razoáveis motivos para pressionar o modelo adotado, colocando em risco a própria
sobrevivência do sistema. Por isso, era importante encontrar, tanto nas propostas
tradicionais dos republicanos, quanto nas dos democratas, elementos que pudessem
redefinir a política externa do país de modo a adaptá-la à duplicidade que o contexto
apresentava e que a tradicional formulação de política externa norte-americana pouco
estava acostumada e preparada para enfrentar. Assim, a ascensão de novos atores,
estrangeiros, no debate sobre os rumos e desafios da política externa norte-americana foi
ao mesmo tempo fruto do contexto, do esgotamento das perspectivas anteriores e da
reinvenção de um modelo que vinha sendo pressionado e corria riscos de explodir.
O segundo item é a intersecção entre a perspectiva pessoal ou a vivência dos
formuladores da política externa e suas propostas de atuação. No caso de Brzezinski, sua
origem polonesa e sua história familiar, marcadas pela resistência ao avanço do poder
soviético e do socialismo, moldaram de modo complementar sua conhecida repulsa ao
socialismo e, portanto, sua posição radical no contexto da Guerra Fria. Ao mesmo tempo,
sua condição pessoal e sua carreira acadêmica e intelectual fizeram com que, não só se
aprofundasse em seus estudos sobre a União Soviética, mas também entendesse que a
única solução para impedir seu avanço era a defesa do universalismo. Esta perspectiva,
tomada pela amálgama entre sua vida pessoal e familiar e pelos seus estudos acadêmicos,
possibilitava a Zbig que entendesse tanto as contradições que imperavam na formulação
das linhas de atuação da política externa norte-americana como também as contradições
que existiam na própria estruturação e expansão da URSS. Foi precisamente esta
combinação que deu a ele a possibilidade de apostar que a “velha” abordagem da política
externa norte-americana, presa aos membros de famílias tradicionais e representantes do
establishment, só seria renovada se incluísse entre seus formuladores “estrangeiros” que
entendessem também, tanto intelectual quanto pessoalmente, as contradições e
fragilidade da URSS. Este era o preço que deveria ser pago pela sociedade norte-
americana pela duplicidade que ela mesma não sabia lidar; ou seja, a manutenção e
expansão da ordem universalista em meio a um conflito com a URSS e com o socialismo.
O terceiro item é resultado dos dois anteriores. O novo contexto promoveu uma
revisão da política externa de modo a possibilitar que novos atores passassem a não só
refletir sobre a política externa do país, mas, sobretudo, a participar de sua execução. O
três, Rostow, Kissinger e Brzezinski, saíram de suas consagradas posições acadêmicas
para assumir cargos políticos que lhes deram ativa participação nas decisões e
implantações de política externa. No caso de Zbig, sua atuação ficou lembrada pela
proximidade que mantinha com o presidente Carter. Este, inclusive, declarava ser um
atento ouvinte e aprendiz de Zbig, entre outras confissões sobre como eram íntimos no
cotidiano e interior da Casa Branca. Em linhas gerais, Brzezinski entendia que a
dualidade, que enxergava no contexto dos anos 70, entre a posição favorável à certa
diminuição dos conflitos com a URSS e o avanço da potência socialista, pressionava os
EUA a reavaliarem a tendência de apaziguar suas relações com Moscou. Neste sentido, o
antagonismo eventual entre Zbig e o Secretário de Estado, Cyrus Vance, estressava a
própria dificuldade do governo Carter em apresentar uma solução aos desafios da segunda
metade dos anos 70.
Após a crise vivida pelo país entre o fim dos anos 60 e meados da década seguinte,
a própria opinião pública norte-americana, assim como boa parte do establishment
político, entendia que chegara a hora de reagir ao que avaliavam ser um avanço e, em
certa medida, “traição” soviética. Isso porque, após a fracassada posição no Vietnã, a
ascensão da contracultura, a crise econômica, política e moral de Nixon e a crise do
petróleo, os EUA estiveram tão enfraquecidos que a saída então formulada foi voltada à
aceitação de certo equilíbrio com a potência adversária. Contudo, alguns entendiam, entre
eles Zbig, que esta posição de equilíbrio vinha sendo aproveitada pelos soviéticos. A
descoberta tardia da presença, acima do que era conhecido, de soviéticos em Cuba e o
apoio destes ao movimento nacionalista de libertação de Angola, assim como a invasão
soviética no Afeganistão e a Revolução Islâmica no Irã, confirmavam para muitos que
era o tempo de reação norte-americana ao avanço soviético. Isso em meio às tentativas de
acerto dos acordos de limitação do arsenal bélico. (o primeiro e o segundo SALT – Strategic
Arms Limitation Talks – de 1973 e 1979, respectivamente). Esta posição mais agressiva,
defendida e divulgada pelo mais midiático Brzezinski, entrava em choque com aquela, mais
próxima de certa tradição democrata, defendida por Vance.
Esta dualidade representada pelos dois mais importantes formuladores da política
externa norte-americana durante o governo de Carter foi uma das fraquezas que ajudaram
a derrotar o democrata em sua tentativa de reeleição. A vitória do republicano Ronald
Reagan à presidência em 1980 e, principalmente, a adoção pelos republicanos de
propostas elaboradas por Zbig, comprovaram que, mais do que qualquer coisa, o
imigrante polonês foi um dos responsáveis pelo surgimento de novas maneiras de
entender e praticar a política externa norte-americana. Para além das anteriores divisões
entre Idealismo e Realismo, Universalismo e Nacionalismo, ou entre soft e hard power.
Zbigniew Brzezinski, ao combinar e não excluir mutuamente, a categorização de ‘tipos’
de politica externa com o apurado olhar sobre o movimento da História, ajudou na criação
de um novo modo de entender a política externa que, fundamentalmente, era voltada para
a preservação dos valores de seu país por adoção. Em termos mais gerais, entendeu que
o modelo anterior, amparado na hermética e centralizada elite tradicional norte-americana
e executado pelo establishment, não mais respondia aos desafios que a História lhes
impunha. Não porque visava destruir os valores que aquela elite da qual não fazia parte
defendia e/ou representava, mas exatamente porque percebia que tais valores – que
possibilitaram que sua família pudesse se instalar e prosperar na América – não seriam
preservados se não houvesse uma nova combinação na política externa.
A ironia é que este modo sofisticado de entender o sistema, seus pilares e as
ameaças que porventura sofre, parece ter sido sepultado com Zbig na ocasião de seu
falecimento em 2017. O mesmo conselheiro que, no fim da vida, indicou ao democrata
Barack Obama que certa hesitação que enxergava na atuação do presidente poderia lhe
custar o avanço dos republicanos, saberia o que dizer em meio à ascensão de novos
posicionamentos relativos à política externa de seus dois países, Polônia e EUA. Ambos
representados por governos e lideranças que nem de longe capturam a sofisticação do
pensamento de Brzezinski. A quase banal associação que fazem, Andrzej Duda e Donald
Trump, entre a sustentação de seus valores e interesses e a adoção de uma política externa
mais nacionalista – e menos universalista – coloca em xeque a ordem pensada por Zbig
e, em boa parte, responsável pela vitória dos EUA na Guerra Fria.
A leitura e o entendimento do sofisticado pensamento do “estrangeiro, acadêmico
e outsider” Brzezinski, assim como a compreensão de sua atuação na elaboração e
execução da política externa norte-americana, pode nos dar parâmetros para entender a
complexa situação que hoje envolve a tentativa de sobrevivência da União Europeia, o
reposicionamento dos EUA e a ascensão da China. E, no limite, do próprio mundo como
o conhecemos desde 1989.

Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.


https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/zbigniew-brzezinski-o-
estrangeiro-que-reinventou-os-eua/

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