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O Masoquismo Na Teoria de Freud PDF
O Masoquismo Na Teoria de Freud PDF
teoria de Freud
Renato R.P. de Carvalho
Rossely SM. Peres
Em seu caso clínico "O homem dos lobos", de 1914, Freud introduz o fantasma como
suporte do desejo na neurose. Apresenta como fantasma do paciente "meninos sendo
castigados e surrados; especialmente, levam pancadas no pênis"7. Comenta que o
sadismo se voltou contra ele próprio, transformando-se em masoquismo. Esta trans-
formação se deu pela atuação do sentimento de culpa ligado à masturbação epelo temor
da castração. Freud observa que as tendências masoquistas do menino surgem como
resultado da troca de objeto sexual, da babá pelo pai. Este passa de objeto de
identificação narcísica a objeto de uma corrente sexual passiva na fase sádico-anal. A
identificação deu origem a fins sádico-ativos em relação à babá, enquanto em relação
ao pai, como objeto, os propósitos eram masoquistas. A criança que provoca um castigo
procura "pacificar seu sentimento de culpa e satisfazer sua tendência sexual masoquis-
ta"8. Ao longo de todo o texto, Freud enfatiza a existência das duas correntes: sádica,
correlativa à identificação ao pai, e masoquista, tendo o pai como objeto.
Freud mostra também neste texto • relação estrita existente entre a neurose
obsessiva e o masoquismo. Há nesta neurose duas correntes: uma sexual masoquista,
dominante, e outra homossexual recalcada. O eu se empenha, histericamente, em
rejeitar ambas. Essa condição inicial transformou-se em neurose obsessiva do seguinte
modo: a corrente homossexual recalcada deu origem à fobia de lobos pela substituição
totêmica do pai e, a seguir, esta fase se interrompeu devido às novas relações com o
pai, surgindo uma fase de devoção religiosa. O menino identificou-se com Cristo, o
que foi facilitado devido à sua data de nascimento. Cristo era o substituto do pai, a
quem ele podia amar agora sem nenhuma culpa. A impulsão masoquista foi sublimada
na história da paixão de Cristo, que por ordem de seu divino pai se deixara maltratar
e sacrificar. A religião proporcionou satisfação e sublimação, desvio dos processos
sensuais para os espirituais.
Freud sublinha a divisão - spaltung - em três níveis diferentes: homossexual no
inconsciente, do canibalismo na neurose e uma atitude masoquista mais primitiva e
dominante. O homossexualismo inconsciente se manifestou na religiosidade (amor a
Cristo como substituto do pai); o canibalismo, na sua fobia de lobos (medo de ser
devorado); e o masoquismo, nos seus pedidos de castigo e, de forma sublimada, na
história da paixão de Cristo.
No artigo de 1915, "As pulsões e seus destinos", retomando o conceito de pulsão,
Freud atribui-lhe uma "exigência de trabalho" conseqüente de sua vinculação ao
somático.
Dos quatro destinos possíveis da pulsão, a transformação no contrário e a orientação
contra a própria pessoa são os que se relacionam com a questão do masoquismo. A
transformação coloca este último como par antitético do sadismo, onde o fim ativo
"atormentar" passa ao passivo "ser atormentado". O masoquismo é visto como o
sadismo dirigido ao próprio eu, onde há uma mudança de objeto, embora mantendo o
mesmo fim ativo. "O masoquista partilha o gozo da fúria que se abate sobre sua
pessoa"9.
A transformação do sadismo em masoquismo se dá em três tempos: sadismo como
exercício de violência contra outra pessoa, tomada como objeto; substituição do objeto
pelo eu do indivíduo e mudança de finalidade pulsional ativa para passiva; e, finalmen-
te, uma terceira pessoa é buscada como objeto para assumir o papel de sujeito, tendo
em vista a alteração que ocorreu na finalidade pulsional.
Freud volta a questionar-se: "não parece existir um masoquismo originário que não
se engendre do sadismo da maneira descrita"10. Reaparece neste texto a ligação do
termo masoquismo com o significante originário, já apontada nos "Três ensaios..."
Comparando a neurose obsessiva ao masoquismo, Freud assinala que aquela só
chega ao segundo tempo - o desejo de atormentar se converte em auto-tormento - e o
verbo passa da voz ativa para a voz reflexiva média. No masoquismo, experimentar
dor aponta como sensações dolorosas e desprazerosas se estendem à excitação sexual,
levando o sujeito a aceitar de bom grado "o desprazer da dor". Freud observa que só
depois de que o gozo masoquista da dor se instala é que, num segundo tempo, o gozo
sádico de causar dor vai poder surgir. Desta dor goza também o sujeito, através da
identificação com o objeto passivo. O sujeitoigoza não com a dor, mas com a excitação
sexual concomitante.
Embora Freud coloque o sadismo como originário, é só num retorno pulsional a
partir do gozo masoquista que o sujeito poderá gozar na posição sádica. Esta é,
evidentemente, uma contradição que faz obstáculo no caminho da teorização e que o
levará a uma revisão em 1924. Esta contradição está bem explicitada no seguinte texto:
"O gozo da dor seria, assim, uma finalidade originalmente masoquista, mas que só
pôde tornar-se uma finalidade pulsional em alguém que era originalmente sádico"11.
Outra observação interessante se refere à satisfação do sentimento de culpa no
espancamento pelo pai motivada pelo masoquismo. O castigo apazigua a consciência
de culpa e satisfaz a tendência sexual masoquista.
O artigo de Freud "Batem em uma criança", de 1919, vincula estreitamente a
questão do masoquismo com o pai. Além de desenvolver as relações entre sentimento
de culpa e fantasma de espancamento pelo pai, como suporte do desejo, Freud faz uma
distinção entre a posição subjetiva de homem e de mulheres em relação ao fantasma
masoquista.
O fantasma de espancamento apresenta três fases, duas conscientes e uma, incons-
ciente, que é uma construção da análise.
O fantasma inconsciente das meninas, "estou sendo espancada pelo meu pai", tem
um caráter indiscutivelmente masoquista. É o resultado do sentimento de culpa da
menina pelo fantasma do período de amor incestuoso: "Ele (o meu pai) só ama a mim
e não à outra criança, pois está batendo nela". Esta transformação do fantasma em
masoquista não^e deve somente ao sentimento de culpa, mas também a um impulso
de amor. "O meu pai me ama", que tinha um sentido genital, converte-se em "o meu
pai está me batendo" através de um processo de regressão à organização pré-genital,
anal sádica, da vida sexual. Há, portanto, uma convergência do sentimento de culpa e
do amor sexual. O fantasma masoquista resultante é não só o castigo pela relação
genital proibida, mas também o substituto dessa relação. E é desta última fonte que
surge a excitação libidinal ligada ao fantasma.
Em textos anteriores ("Pulsões e destinos da pulsão" e "O homem dos lobos") Freud
havia afirmado que o castigo apazigua a consciência de culpa e satisfaz a tendência
sexual masoquista, sem explicar a origem desta última. Em "Batem em uma criança"
ele esclarece a questão, mostrando que o fantasma suporta o desejo como substituto
da relação edipiana interditada, propiciando a excitação libidinal associada ao castigo.
Pode-se portanto entendera paradoxal associação da dor com a excitação sexual. Esta,
segundo Freud, é a essência do masoquismo.
O fantasma masoquista do neurótico permanece no fundo, retirando uma parcela
da excitação sexual. Já na perversão, ele consome toda a vida sexual do sujeito. O
fantasma de espancamento e outras fixações perversas análogas "seriam apenas
precipitados do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer"12. Para Freud, a gênese
do masoquismo continua obscura e não parece ser manifestação de uma pulsão
primária. Volta a afirmar que o mais provável é que se origine "por uma reversão do
sadismo em direção à própria pessoa, ou seja, por regressão do objeto ao eu"13. Afirma,
no entanto, a existência de pulsões pafsivas, principalmente nas mulheres, mas a
passividade não é a totalidade do masoquismo; o desprazer também é uma caracterís-
tica sua e constitui um surpreendente acompanhamento para a satisfação de uma
pulsão.
A transformação do sadismo em masoquismo dar-se-ia pela influência "da cons-
ciência de culpa que participa do ato do recalque. Então o recalque se exterioriza aqui
em três classes de efeitos: torna inconsciente o resultado da organização genital, obriga
esta última a regredir ao estádio sádico anal e muda seu sadismo em masoquismo
passivo, em certo sentido, de novo, narcisista"14.
Não se pode fazer analogia entre masoquistas do sexo masculino e do sexo
feminino. Nos fantasmas masoquistas, os homens, invariavelmente, aparecem no papel
de mulher. A atitude masoquista sempre coincide com uma atitude feminina. A forma
original do fantasma em ambos os sexos é: "sou amado pelo meu pai". Nos meninos,
no entanto, é transformado no fantasma consciente: "estou sendo espancado pela minha
mãe". Não há uma relação paralela entre os fantasmas de homens e mulheres. O ponto
comum é a ligação incestuosa com o pai.
No fantasma consciente da terceira fase, a menina mantém a figura do pai como
aquele que bate, mas troca o sexo da criança que apanha. Já o menino troca o sexo do
agressor, que passa a ser a mãe, é mantém o sexo da pessoa que está apanhando.
No caso do menino a situação é, em todas as fases, masoquista, e mantém maior
afinidade com o fantasma original, com seu significado genital. "O menino se livra do
seu homossexualismo recalcando e remodelando o fantasma inconsciente; o curioso
acerca de seu posterior fantasma consciente é que este tem como conteúdo uma atitude
feminina sem uma escolha homossexual de objeto"15.
A menina também escapa das exigências da vida amorosa: "Faz a fantasia de que
é homem, sem se tornar ativa à maneira masculina, e agora somente assiste como
espectadora ao ato que tema o lugar de um ato sexual"16.
O supereu tem sua gênese era impressões auditivas, herança que lhe vem de ser
originário do eu, embora sua energia lhe venha do isso. A força dessa voz interior marca
o rigor do indivíduo consigo mesmo. Voz, uma das formas do objeto a, ligada à
constituição do sujeito no lugar do Outro; daí o seu vínculo estreito e primário com o
supereu.
Da identificação do sujeito com um outro, anteriormente objeto erótico, fica o
sentimento de culpa que permanece como único resto da relação erótica abandonada,
difícil de ser percebido, conforme assinala Freud.
Nesse contexto, Freud conceitua a reação terapêutica negativa como a resistência
de certos doentes à cura em virtude de um sentimento "inconsciente de culpa". A
doença seria o castigo merecido e a cura, um perigo e uma perda de satisfação. No
quadro da melancolia, quadro extremo, é onde Freud explicita o quanto é encarniçada
a luta do supereu contra o eu, que freqüentemente sucumbe diante deste tirano ou
refugia-se na mania.
Pelo nó da relação entre supereu e eu, Freud chega à noção de masoquismo moral,
em 1924, derivando desta grande parte das referências ao masoquismo em sua
elaboração posterior.
O masoquismo moral acentua a necessidade de sofrimento. Na relação eu-supereu
impõe-se uma satisfação pelo castigo e dor. Aí enquadra-se a relação terapêutica
negativa, onde o sofrimento advindo da neurose, servindo à finalidade masoquista, se
coloca como obstáculo ao processo de cura. No entanto, uma eventual desgraça ou
sofrimento podem levar à desaparição de uma neurose rebelde, por deslocamento
libidinal. Tem-se a confirmação de que o que importa é a manutenção de uma certa
quantidade de sofrimento.
O paciente recusa-se a fazer a ligação entre seu sofrimento e um sentimento de
culpa. A dor seria o grande beneficio do sintoma, pois satisfaria sua necessidade de
castigo. É um paciente, pode-se dizer, doente de culpa.
Freud acentua o caráter inconsciente do masoquismo. Há um eu que demanda
castigo. Essa demanda remete à relação com o pai poderoso, base do fantasma de
espancamento e da relação sexual passiva com ele. É o que Freud aponta como o
"sentido oculto" do masoquismo moral - a ressexualização da moralidade leva à
regressão, da moral ao complexo de Édipo, "que não beneficia nem o indivíduo nem
amoral"20.
Paralelamente, a instância moral se instala no supereu e se manifesta como um
sadismo ao qual o eu se submete. Paradoxalmente, o masoquismo moral pode enfra-
quecer o sentido morai, e levar o indivíduo a infrações e delitos que visam tanto a
punição da consciência moral sádica quanto a do destino como representante do pai,
podendo até ocasionar danos à sua existência real.
Em um segundo tempo, o sadismo pode voltar-se contra a própria pessoa se ela não
consegue direcionar para fora grande parte de seus componentes pulsionais destrutivos.
É o que se chama masoquismo secundário. O retorno dessa pulsão de destruição
intensifica o sadismo do supereu em relação ao eu. Há, então, uma complementaridade
entre o sadismo do supereu e o masoquismo do eu, da qual resulta um sentimento de
culpabilidade e a exacerbação da consciência moral, tanto mais exigente quanto maior
for a renúncia à agressividade. Observa-se aí como as duas instâncias, tomadas pelo
gozo, oferecem um obstáculo ao analista na direção da cura. A situação comporta um
paradoxo: a manutenção do gozo sustenta o vínculo transferenciai, enquanto qualquer
intervenção no sentido de corta r o gozo pode desencadear a reação terapêutica negativa.
É a perda do gozo que é evitada pelo sujeito.
Por procedei da pulsão de morte, por corresponder à parte da pulsão de destruição
não projetada no mundo exterior, por integrar um componente erótico, o masoquismo
moral apresenta o enigma da destruição do indivíduo por si mesmo poder ser uma
satisfação libidinal.
A partir do "Problema econômico do masoquismo", grande parte da teorização de
Freud sobre a questão gira em torno dos conceitos de supereu, sentimento de culpa,
necessidade de punição, articulados à reação terapêutica negativa e ao benefício do
sintoma. Numa outra dimensão, a articulação é feita com o caráter radical da pulsão
de morte.
Em 1925, em "Inibição, sintonia e angústia", Freud observa em algumas neuroses
obsessivas a ausência de sentimentos de culpa. Estes são evitados por uma série de
rituais, restrições e penitências que satisfazem aos impulsos masoquistas.
Assinala, também a existência de uma conexão entre a angustia e uma pulsão
masoquista de destruição que o eu recusa-se a satisfazer. Advém, então, o que Freud
classifica como reação angustiosa excessiva, inadequada e paralisadora, tal como as
fobias de altura, cçpi sua significação feminina secreta. Esta significação feminina,
atribuída às janelas, torres, abismos, aproximaria tais fobias do masoquismo.
No "Mal-estar na cultura", de 1929, Freud se surpreende por não ter valorizado
suficientemente o caráter ubiquo da agressividade, da destrutividade não erótica, e de
não ter-lhes dado o lugar que merecem na interpretação da vida.
Tanto maior o rigor do indivíduo contra si, tanto mais exigente torna-se o supereu.
Passa a exercer uma agressão sempre maior, não mediada, uma vez que a lei tomou-se
perversa, insensata^mo a lei do gozo.
Essa destruição, que Freud encontra no âmago do ser é retomada por Lacan no
seminário sobre a Ética. Ele anuncia que, no final da pesquisa sobre a ética da
psicanálise, se evidenciará que a derradeira questão será colocada pelo caráter funda-
mental do masoquismo na economia pulsional.
Coloca a questão não só em relação a um determinado sujeito, mas também em
relação à civilização e ao seu mal-estar. A civilização se defrontará com o progresso
da ciência que busca algo cujo alcance lhe escapa e que está ligado ao discurso das
letras, da matemática que, como observa Lacan, é um discurso que não esquece nada.
Resta saber se o discurso da física, gerado pelo poder significante, resultará na
integração ou desintegração da Natureza.
A perplexidade de Freud acentua o valor do gozo como amálgama sem o qual só
resta a pulsão de morte, imperceptível em sua mudez.
Em seu "Esboço de psicanálise", de 1938, Freud questiona a possibilidade de
impulsos puramente destrutivos causarem prazer. "Uma satisfação da pulsão de morte
que permaneceu no eu não parece produzir sensações de prazer, embora o masoquismo
seja uma fusão que é inteiramente análoga ao sadismo"21.
Pode-se pensar que a questão do masoquismo, enquanto fundante, está sempre num
além, e que pela entrada na dimensão significante faz-se a marcação do sujeito, mas
implica uma perda, perda esta que perdura no ser, como uma dor, dor de ser, dor de
viver.
Em "Análise terminável e interminável", de 1937, Freud coloca a pulsão de morte,
ou seja, o masoquismo como o grande obstáculo do processo analítico. Ele escreve:
"provisoriamente nos inclinamos diante do hiperpoder das forças contra as quais
vemos naufragar nossos esforços. Mesmo exercer uma influência psíquica somente
sobre o masoquismo constitui uma dura prova ao nosso poder"22.
Em 1933, nas "Novas conferências introdutórias", Freud já havia escrito que tanto
o sadismo quanto o masoquismo, mas especialmente este último, permaneciam como
6. Referências
1. FREUD, S. La interpretación de los suefios, Obras Completas, vol. V, Amorrortu editores,
Buenos Aires, 1986, p. 378.
2. Ib., p. 472.
3. FREUD, S. Três ensayofde teoria sexual, Obras Completas, vol. VII, Amorrortu editores,
Buenos Aires, 1986, p. 137, n.15.
4. Ib., p. 145.
5. Ib., p. 144.
6. LACAN, J. O seminário livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Zahar
editores, Rio de Janeiro, 1979, p. 173.
7. FREUD, S. De Ia historia de una neurosis infantil, Obras Completas, vol. XVII, Amorrortu
editores, Buenos Aires, 1986, p. 25.
8. Ib., p. 27.
9. FREUD, S. Pulsiones y destinos depulsión, Obras Completas, vol. XIV, Amorrortu editores,
Buenos Aires, 1986, p. 122.
10. Ib.,p. 123.
11. Ib., p. 124.
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