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Chico Buarque
As incertezas estão em tudo no mundo, por que não nos versos da canção:
“Ou estas rimas/Não escrevi/Nem ninguém nunca amou”, questiona-se Chico
Buarque, a partir dos célebres versos finais do Soneto CXVI de Shakespeare,
ao final de Tua cantiga, que abre o novo disco, chamado Caravanas por
nascer talvez para abrigar nove canções que, se não fosse ele, o disco,
estariam por aí desprotegidas no deserto. Ou melhor, na floresta das redes
contemporâneas por onde canções costumam se perder nos dias de hoje.
“Ou doido sou eu que escuto vozes/Não há gente tão insana/Nem caravana do
Arará”, duvida Chico de sua própria observação poética ao final de As
caravanas, canção que encerra e inspira o nome do disco, delirando ao ver as
caravanas de refugiados árabes rumo às praias do Mediterrâneo nos ônibus
talvez não muito menos inseguros que levam “suburbanos tipo muçulmanos
do Jacarezinho/A caminho do Jardim de Alá”. Ou seja, da favela do
Jacarezinho, no subúrbio do Rio, à divisa das praias de Ipanema e Leblon com
seu nome que homenageia o deus muçulmano e seu “mar turquesa à la
Istambul”, azul como a vida nova na Europa ou o dia de lazer em Ipanema
(“que cenário de cinema, que poema à beira-mar”, como o próprio Chico
definiu numa antiga canção...). E o compositor ainda ouve em tais caravanas
“essa zoeira dentro da prisão/Crioulos empilhados no porão/De caravelas no
alto mar”. Ou apenas delira: os meninos da favela do Arará, no subúrbio
carioca de Benfica não muito longe do Jacarezinho, não resolveram aproveitar
o domingo de sol na praia, seus antepassados nem chegaram no navio
negreiro e não há manifestações anti-muçulmanas nos domingos de
Copacabana, nem muros para evitá-los na Europa.
A primeira do CD, Tua cantiga, é uma canção de amor, como tantas que Chico
já fez (e isso é uma hipérbole). As caravanas é uma canção épica como outras
tantas do autor de Construção e de semelhante voltagem poética e musical.
Entre uma e outra há passeios de Chico pelos velhos gêneros que tanto o
(nos) encantam, blues, samba sincopado, samba canção, bolero (em
espanhol) ou mesmo simples e indefiníveis canções. Todas meio urgentes e
ainda eternas.
Tua cantiga é, antes de tudo, uma declaração de amor eterno, que persistirá
aconteça o que acontecer. E é toda construída sobre “falsas” rimas, ou rimas
aliterantes, que se dão pelo som, como suspiro-ligeiro, nome-perfume, lenço-
alcanço, filhos-joelhos, até rimas mais distantes na canção, como “plumas”,
que vai rimar lá em baixo com a própria palavra “rimas”. Mesmo a palavra
“cantiga” é desconstruída em aliterações e rimas, num daqueles versos para
entrar na História: “Quando eu não estiver mais aqui/Lembra-te, minha
nega/Desta cantiga/Que fiz pra ti”. Notem a falsa rima “nega-cantiga” e a
sílaba “ti” transmutando-se em pronomes.
Mas se Shakespeare pode suscitar uma referência talvez erudita demais para
uma simples cantiga, Chico estende seu universo de referências a histórias
infantis, “Se o teu vigia se alvoroçar/E estrada afora te conduzir...”, numa
alusão aos versos que Braguinha criou para a canção-tema de Chapeuzinho
Vermelho, da Disney.
Na canção que encerra e inspira o título do disco isso é levado ainda mais
longe: “Ou doido sou eu que escuto vozes/Não há gente tão insana/Nem
caravana do Arará”, pergunta-se o compositor ao fim da canção (e do disco),
duvidando de suas próprias rimas e referências. As caravanas é, antes de
tudo, uma crônica carioca atualíssima, inspirada num fato cada vez mais
corriqueiro no verão: o conflito provocado pela polícia e alguns garotos
valentões da Zona Sul quando da chegada dos ônibus como os da linha 474
que trazem os garotos das favelas e dos subúrbios para as praias da Zona Sul.
Sempre suspeitos de roubos e arrastões, os garotos são parados pela polícia e
intimidados por valentões, o que gera a confusão.
Mais uma vez, para chegar a tema tão atual Chico vai recorrer a referências
inatuais. A melodia, do próprio Chico e conduzida harmônica e ritmicamente
por seu violão, parte de Caravan, um tema clássico do jazz, de Duke Ellington,
uma espécie de beguine, ritmo caribenho (algo como uma rumba mais lenta
ou um bolero mais ligeiro) que esteve muito em voga na música americana
dos anos 30. O beguine estilizado da primeira parte vai evoluindo para uma
espécie de funk (estamos no Rio de Janeiro em dia de calor) e o arranjo
grandioso de orquestra do maestro e produtor musical do disco Luiz Claudio
Ramos divide espaço com o beatbox executado por Mike, músico do Dream
Team do Passinho.
No meio de tanta loucura, com gente se xingando nas mesmas redes sociais
onde as canções se perdem, Jogo de bola é no fundo um apelo à
razoabilidade necessária para o convívio da pelada, onde se deve
fundamentalmente saber perder. E observar a passagem do tempo, a chegada
da nova geração, o envelhecimento e perceber nisso a graça da vida. Ou,
como revela seu verso final, bela definição de futebol, mas que serve para a
vida: “É ver o próprio tempo num relance/E sorrir por dentro”.
Se o neto compositor entrou no disco, a neta cantora também teria que ter
sua faixa. Mas a moça, de 18 anos, teve que conquistar seu espaço. Clara
Buarque, também filha de Helena e Carlinhos Brown e que faz parte do
jovem e sofisticado grupo vocal Subversos, convidou o avô para gravar com
ela alguma música para o seu Face. Chico fez melhor, gravou Dueto com Clara
e outros netos para o documentário sobre ele dirigido por Miguel Faria Jr. em
2015, Chico, artista brasileiro. A canção encantadora, puxada para o jazz, uma
obra-prima de Chico, trata de uma daquelas paixões arrebatadoras,
adolescentes, que é exibida em todos os lugares, escrita em todos os meios,
ajudada por todas as religiões e que mesmo assim é maior que tudo isso.
Chico aproveitou a regravação apropriadamente juvenil para atualizar a letra,
incorporando as novas mídias sociais (onde o amor se escreve hoje em dia,
afinal) ao romance arrebatado que descreve na canção. É irresistível perceber
a risada de Clara diante de um avô atrapalhado tentando encaixar
“Instagram”, “Telegram”, “Tinder” e “Youtube” numa canção do tempo do
Pravda, das bulas e dos dogmas.