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ISSN 1982 - 0283

EDUCAÇÃO
MUSICAL
ESCOLAR
Ano XXI Boletim 08 - Junho 2011
Sumário

Educação musical escolar

Apresentação da série ................................................................................................. 3


Rosa Helena Mendonça

Introdução: Educação musical escolar ..................................................................... 5


Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo

Texto 1: Educação musical e legislação educacional ................................................... 10


Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo

Texto 2: Diversidade musical e ensino de música .............................................................. 17


Luis Ricardo Silva Queiroz

Texto 3: Música nas escolas ....................................................................................... 24


Luciana Marta Del-Ben

Texto complementar: Formação do professor de música: demandas novas


e emergentes ............................................................................................................. 34
Cristiane Galdino
Educação musical escolar

APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia1

Sambar, cantar, dançar, tocar um instrumen- Pedimos, então, licença a Noel para trans-
to... Assim é que o Brasil e o povo brasileiro formar as escolas em lugares de aprender
são lembrados, pois nossos símbolos mais não só o samba, mas os diferentes gêneros
fortes, junto com o futebol, são justamente musicais que temos o privilégio de chamar
a música e o carnaval. Essas três manifesta- de brasileiros, sem deixar de considerar a
ções culturais ajudam a identificar o Brasil vasta produção musical da humanidade.
em qualquer lugar do mundo. Paradoxal-
3
mente, o espaço do esporte, da cultura e da É claro que a música marca presença desde
arte, nas escolas, ainda não está totalmente sempre nas escolas, se não nos currículos,
garantido, apesar de inúmeras iniciativas ao certamente no cotidiano de alunos e pro-
longo do tempo. fessores. No entanto, o acesso à formação
musical escolar enseja não só a fruição que
No caso do ensino da música nas escolas, esta expressão artística permite, mas uma
uma demanda uniu professores, pesquisado- ampliação das possibilidades existentes no
res e artistas que, juntos, propuseram uma campo da música para a formação dos es-
alteração à Lei de Diretrizes e Bases da Edu- tudantes.
cação Nacional. A série Educação musical
escolar, que a TV Escola apresenta, por meio A série, que conta com a consultoria de Sér-
do programa Salto para o Futuro, é uma ini- gio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC), co-
ciativa que se alinha aos objetivos da Lei n. loca em pauta temas como a educação mu-
11.769/08, que torna obrigatório o ensino da sical e a legislação educacional brasileira; a
música nas escolas, definindo o ano de 2011 diversidade musical e suas implicações para
como a data limite para a sua implantação. o ensino de música na escola; a música nas

1 Feitio de Oração (Noel Rosa).


escolas integrada ao currículo; e a formação Afinal, num país em que a vocação musical
de professores de educação musical. é reconhecidamente um ‘privilégio’, o cum-
primento da Lei n. 11.769/08 deve ‘soar como

Nos textos que compõem esta publicação e música’ aos ouvidos de educadores compro-

nas entrevistas e reportagens dos programas metidos com uma escola criativa e democrá-

televisivos, professores e professoras encon- tica.

trarão possibilidades de reflexão sobre a prá-


tica da educação musical nas escolas.
Rosa Helena Mendonça2

2 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).


Educação musical escolar

Introdução

Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo1

A proposta da série Educação musical escolar almente, também poderá indicar caminhos
é basicamente fomentar a discussão sobre a profissionais para aqueles que desejarem
música na escola brasileira. A Lei n. 11.769/08 assumir uma carreira no campo da música.
estabelece que a música é conteúdo curricu- Mas o objetivo principal da música na esco-
lar obrigatório, o que implica uma série de la é oportunizar a todos o contato com esta
adaptações por parte dos sistemas educacio- produção humana, que assume distintos
nais para que tal conteúdo seja devidamente significados e funções, que se apresenta de
incorporado ao conjunto de componentes já maneira extremamente diversificada a par-
presentes nos currículos escolares. Neste tir dos contextos onde é produzida.
5
sentido, a proposta desta série Educação mu-
sical escolar é também discutir e fundamen- Historicamente, a música já esteve presente
tar a questão da música na escola, além de na educação brasileira em vários momentos
contribuir para a implementação da referida com finalidades específicas. Uma brevíssi-
legislação nas escolas brasileiras. ma síntese poderia ser assim apresentada:

A obrigatoriedade da música como conteú- 1. As escolas mantidas pelos jesuítas no


do escolar representa a democratização do Brasil até o século XVIII inseriam a
acesso à educação musical. A partir da Lei prática da música no currículo, com
n. 11.769/08 todo o cidadão brasileiro que finalidade religiosa;
passa pela escola terá oportunidade de vi-
venciar experiências musicais como parte 2. No século XIX havia legislação especí-
da sua formação educacional. Este acesso fica sobre a música para a aprendiza-
à formação musical pretende ampliar a ex- gem do solfejo e do canto, incluindo a
periência educacional na escola e, eventu- questão da necessidade de preparação

1 Doutor em Educação Musical pelo Royal Melbourne Institute of Technology - RMIT University, Melbourne,
Austrália (2003). Atualmente é professor associado da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC nas áreas
de canto coral, regência e educação musical. Consultor da série.
de professores específicos para o en- completando o parágrafo 2º da Lei n.
sino de tal prática na escola (BRASIL, 9.394/96, onde o ensino de arte insere,
1854, 1890); obrigatoriamente, o ensino de música.

3. Na primeira metade do século XX o Can- Nesta brevíssima apresentação da músi-


to Orfeônico – organizado por Villa-Lo- ca na escola brasileira ao longo do tempo,
bos – tinha por objetivo o civismo, a evidencia-se a diversidade de funções que
disciplina e a educação artística, sen- tal atividade representou nos contextos es-
do que para o desenvolvimento desta colares. Em cada momento se concebeu
atividade foram produzidos materiais uma proposta para a música na escola, es-
específicos e foram formados profes- tabelecendo valores e conceitos que se com-
sores de música para a escola; pletam ou se contrapõem. Assim, conceitos
que ainda sobrevivem até hoje são, de certa
4. A partir da década de 1970, a Lei n. forma, resultado de práticas educacionais
5.692/71 trouxe a Educação Artística anteriores que consolidaram formas de
para o currículo escolar, estabelecen- pensar e agir sobre o currículo escolar. Por
do a prática da polivalência para as exemplo, não é por acaso que, em muitos
artes – um professor responsável por contextos, ainda se sustenta a ideia de que 6
todas as áreas artísticas, tendo, como música só pode ser aprendida por pessoas
uma de suas consequências, a superfi- com talentos especiais; também não é por
cialização de conteúdos artísticos na acaso que em muitas escolas se defende a
escola; tradição erudita como a forma mais ‘corre-
ta’ de se ensinar música; assim se configura
5. Com a LDB de 1996 (BRASIL, 1996) – o um quadro amplamente diverso em termos
ensino de arte é estabelecido como de conceitos e valores que são atribuídos à
componente curricular obrigatório, música na escola e na formação dos indiví-
sem a indicação de que áreas deve- duos, e parte destas questões será tratada
riam ser incorporadas neste ensino, nos programas desta série.
nem que tipo de profissional deveria
ser responsável pelo ensino das lin- Evidentemente, diversos aspectos contri-
guagens artísticas; buem para a presença ou ausência de certas
áreas do conhecimento no currículo escolar,
6. Em 2008, a Lei n. 11.769/08 (BRASIL, 2008) e hoje não é diferente. O fato de existir uma
trata da obrigatoriedade da música lei – a Lei n. 11.769/08 – que estabelece a mú-
como conteúdo curricular, alterando e sica como conteúdo curricular obrigatório
na escola brasileira representa um avanço que também será, de certa forma, ilustrado
no sentido de que todas as pessoas terão durante os programas da série. O que vale
acesso às experiências musicais durante sua a pena destacar é que a música já está na
formação escolar. Mas tais experiências es- escola, de forma curricular ou extracurri-
tarão amparadas em diversos entendimen- cular em vários contextos, e ao longo dos
tos sobre música, o que pode significar uma programas serão apresentadas alternativas
variedade imensa de abordagens, com obje- de implementação da música no currículo
tivos também diversos. Durante esta série, para aqueles contextos onde esta atividade
estaremos discutindo alguns destes pontos não está oficialmente inserida.
que podem ser considerados fundamentais
para a implementação da música no currícu- Alguns pontos merecerão destaque por sua
lo escolar de forma coerente e significativa. relevância. Um destes pontos refere-se ao
espaço da música no currículo, a sua inser-
É importante destacar que, apesar de a Lei n. ção na grade curricular vigente e as adapta-
11.769/08 ser recente, muitas escolas brasilei- ções necessárias. Outro ponto é a questão
ras já incluíam a música em seus currículos. do conteúdo a ser ensinado, oportunizando
Isto é possível, pois a Lei n. 9.394/96 garan- experiências musicais diversas no contexto
tiu autonomia aos sistemas educacionais na escolar. Há ainda a questão da formação do 7
organização de seus currículos, ou seja, há professor, que é pauta fundamental para que
conteúdos obrigatórios, mas a organização esta empreitada da inserção de mais mú-
de tais conteúdos depende de cada sistema sica na escola seja realizada com critério e
educacional. A música é uma das linguagens consistência. E os exemplos de experiências
artísticas que poderia ser inserida na escola já existentes com a música na escola serão
como parte da disciplina Arte, e esta foi a fundamentais para ilustrar a possibilidade
escolha de vários sistemas educacionais, o de tal implementação.

Educação musical escolar2

A série tem como proposta fomentar a discussão sobre a música nas escolas, com base na im-
plementação da Lei n. 11.769/08. Diferentes abordagens propostas para a educação musical, ao
longo do tempo, serão analisadas, bem como será enfocada a diversidade musical e possíveis
metodologias de ensino da música. Experiências musicais que já acontecem nas escolas bra-

2 Estes textos são complementares à série Educação musical escolar, com veiculação no programa Salto para
o Futuro/TV Escola de 27/06/2011 a 01/07/2011.
sileiras serão apresentadas como base para reflexão e subsídio para a inclusão da música nos
currículos.

Texto 1: Educação musical e legislação educacional

O primeiro texto da série discute a Lei n. 11.769/08, que alterou a Lei n. 9.394/96 no que se refere
à obrigatoriedade do ensino de arte na escola. De acordo com a Lei n. 11.769/08, a música é con-
teúdo curricular obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular Arte (BRASIL, 2008).
O texto apresenta as ações pontuais que antecederam e fortaleceram o movimento nacional
que culminou com a aprovação da citada lei. Discute, ainda, a questão da polivalência no ensi-
no das artes nas escolas, que contribuiu para a superficialização do ensino das disciplinas es-
pecíficas da área de Arte e para a diminuição de sua significação na formação dos estudantes.

Texto 2: Diversidade musical e ensino de música

O segundo texto da série apresenta reflexões e perspectivas para o ensino de música, conside-
rando a diversidade musical como elemento social de grande valor para a educação. Destaca 8
que a diversidade na sala de aula abarca fatores econômicos, étnicos, religiosos, sexuais, artís-
ticos, entre tantos outros e que é a conjuntura desses elementos que constitui a vida dos indi-
víduos e que faz da escola um lugar plural e complexo. O autor do texto analisa, ainda, que a
diversidade musical se manifesta naturalmente na escola, já que distintas expressões musicais
adentram cotidianamente o universo escolar, vindas na bagagem cultural dos alunos, a partir
das experiências sociais que estabelecem em sua vida cotidiana.

Texto 3: Música nas escolas

O terceiro texto da série apresenta exemplos de práticas de ensino de música realizadas em


escolas de educação básica, desenvolvidas por alguns dos alunos do Curso de Licenciatura em
Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, durante seu estágio supervisionado,
orientado pela autora do texto. As práticas apresentadas aconteceram em diferentes semestres,
entre os anos de 2005 e 2009 e foram orientadas pelos mesmos princípios: as concepções de
ensino e de ensino de música e a forma de organizar esse ensino. A autora destaca, ainda, que
uma das estratégias que vem sendo discutida por diversos educadores para concretizar esses
ideais é a chamada pedagogia de projetos (que também pode ser nomeada como aprendizagem
baseada em projetos, projetos de ensino, projetos pedagógicos ou projetos de aprendizagem),

Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4: Outros olhares
sobre Educação musical escolar e do PGM 5: Educação musical escolar em debate.

9
texto 1

Educação musical e legislação educacional


Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo1
Resumo

Neste texto serão apresentados aspectos referentes à legislação educacional brasileira volta-
dos à educação musical. Um levantamento histórico pretende evidenciar diferentes aborda-
gens já apresentadas como propostas para a educação musical brasileira ao longo do tempo,
que serão brevemente analisadas no intuito de contribuir para a reflexão sobre o momento
atual e as propostas que poderão ser apresentadas em resposta à nova legislação – Lei n.
11.769/08.

A educação musical no Brasil ganhou desta- ram em diversos momentos da história da


que e muita discussão a partir de um grande educação brasileira para que a música fizes-
movimento deflagrado a partir de 2006 jun- se parte da formação dos estudantes. O fato
to ao Congresso Nacional, com o objetivo de termos hoje uma lei que torna a música
de aprimorar a legislação educacional em conteúdo obrigatório na escola brasileira é, 10
termos de ensino de música. Esse destaque portanto, o resultado de muitos esforços em

deveu-se a uma série de ações pontuais que diferentes tempos e lugares.

fortaleceram um movimento nacional que


O movimento pela música na escola ganhou
culminou com a aprovação da Lei n.11.769
espaço no Congresso Nacional a partir da
em 2008. Esta lei estabelece que a música
ação do GAP – Grupo de Articulação Parla-
é conteúdo curricular obrigatório, mas não
mentar Pró-Música, em conjunto com ou-
exclusivo, do componente curricular Arte
tras entidades, como a Associação Brasilei-
(BRASIL, 2008).
ra de Educação Musical, além da adesão de
músicos, profissionais da educação e simpa-
Mas é preciso compreender que o movimen-
tizantes à presença da música na educação
to pela música na escola nasceu muito antes escolar. Este movimento buscou o aprimora-
de 2006. Diversos profissionais da educação mento da legislação educacional brasileira,
e da educação musical, músicos, administra- para que a presença da música na formação
dores escolares e outros profissionais atua- escolar fosse garantida pela legislação.

1 Doutor em Educação Musical pelo Royal Melbourne Institute of Technology - RMIT University, Melbourne,
Austrália (2003). Atualmente é professor associado da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC nas áreas
de canto coral, regência e educação musical. Consultor da série.
A necessidade de aprimoramento da legis- nar todas as línguas pelo fato de todas elas
lação pode ser abordada a partir do resgate poderem ser localizadas numa grande área
de alguns elementos que contribuíram para chamada línguas estrangeiras.
que o ensino de artes na escola brasilei-
ra se tornasse superficial, pouco relevante A polivalência contribuiu para a superficia-
ou ausente do currículo escolar em muitos lização do ensino das artes e, consequente-
contextos educacionais. Numa retrospec- mente, para a diminuição de sua significação
tiva recente, com o objetivo de compreen- na formação dos estudantes. As artes assu-
der alguns dos elementos que contribuíram miram papéis de entretenimento, alegrando
para a desvalorização da arte no currículo, as festas das escolas, sendo consideradas,
podemos abordar questões do ensino da em muitos contextos, como atividade peri-
música a partir da Lei n. 5.692, de 1971, que férica no currículo escolar. Um professor de
estabeleceu a Educação Artística (BRASIL, Educação Artística, normalmente, não pos-
1971). Aquela legislação previa a formação suía formação adequada para desenvolver
em Educação Artística contemplando as trabalhos relevantes com todas as lingua-
áreas de Artes Cênicas, Artes Plásticas, De- gens artísticas, além de que o tempo de du-
senho Geométrico e Música. A ideia de di- ração das aulas de Arte não era compatível
versas áreas artísticas no currículo é muito – e ainda não é, em muitos contextos – com 11
positiva. No entanto, atrelada ao modelo uma formação adequada em termos artísti-
da Educação Artística, adotou-se a prática cos, seja em qualquer uma das linguagens
da polivalência para o ensino das artes, ou que se queira abordar. Por diversas razões,
seja, um único professor deveria ser respon- as artes plásticas tornaram-se predominan-
sável pelo ensino de todas as artes na esco- tes nos sistemas educacionais brasileiros e,
la. É compreensível que as artes possuem até hoje, para muitas pessoas, a aula de Arte
entre si diversas conexões e que pertencem é sinônimo de aula de artes plásticas.
a uma grande área do conhecimento. Mas,
ao mesmo tempo, cada uma das linguagens O resultado da polivalência tem sido discu-
artísticas possui particularidades que não tido por diversos autores, que evidenciam a
pertencem a outras artes. Se alguém estuda fragilidade deste modelo educacional para
pintura, ele não aprenderá ‘automaticamen- as artes. De um modo geral, estes auto-
te’ a encenar, dançar, ou cantar, assim como res afirmam que por mais que o professor
ao se estudar música não se aprende ‘auto- de arte inclua atividades diversas em suas
maticamente’ a desenhar ou encenar. Seria aulas, não é possível estar preparado para
como se pensássemos que um professor de atuar de forma consistente com todas as
língua estrangeira deveria ser capaz de ensi- linguagens artísticas na escola, a partir da
formação em um curso superior de quatro sugeriu mudança, diversos sistemas educa-
anos de duração, em média. Esta situação cionais mantiveram a prática polivalente
tem contribuído para que as atividades de- para o ensino das artes na escola.
senvolvidas, muitas vezes, sejam incon-
sistentes, desestimulando a discussão e o A mesma Lei n. 9.394/96 estabeleceu que os
entendimento sobre a importância da for- sistemas educacionais (municipais, esta-
mação em artes de forma qualificada. Hie- duais, federais) têm liberdade e autonomia
rarquicamente, as artes ocupam lugar de para estabelecer seus projetos políticos pe-
baixa relevância nos currículos escolares e dagógicos, respeitando a legislação vigente.
a qualidade das atividades, a falta de pro- A legislação inclui o ensino de arte, mas não
fundidade, a descontinuidade, o número indica que artes deveriam fazer parte desta
reduzido de horas semanais, e também o prática e, em muitos contextos brasileiros,
despreparo de professores têm contribuído ainda hoje se pratica a polivalência para o
para que esta situação da arte no currícu- ensino da arte, perpetuando um modelo que
lo permaneça inalterada, mesmo quando a não tem contribuído para a presença signifi-
legislação propicia que se faça um trabalho cativa da formação artística no currículo es-
mais consistente e relevante na formação colar. Exercendo sua autonomia e liberdade,
dos estudantes. diversos sistemas educacionais ainda requi- 12
sitam professores formados em Educação
Em 1996, a aprovação da Lei n. 9.394 – LDBEN Artística para atuarem de forma polivalente
(BRASIL,1996) modificou a denominação da nas escolas, ignorando, inclusive, que não
Educação Artística para ensino de arte, no existe mais a licenciatura em educação ar-
parágrafo 2º do artigo 26: “O ensino de arte tística nas universidades brasileiras. As Dire-
é componente curricular obrigatório nos di- trizes Curriculares Nacionais para cada uma
versos níveis da educação básica (...)”. Esta das linguagens artísticas (BRASIL, 2004a,
nova redação sugere uma mudança para o 2004b, 2004c, 2009) estabelecem que a for-
ensino das artes na escola, e a expectativa mação do professor é direcionada para uma
de muitos educadores das diversas lingua- linguagem artística, não havendo diretrizes
gens artísticas era que a polivalência esta- para a formação do professor polivalente,
ria encerrada com estes novos termos. No como nos tempos da Educação Artística.
entanto, em nenhum momento a legislação
educacional brasileira apresentou claramen- Diante desta situação de indefinição da le-
te a extinção da polivalência como uma das gislação sobre as áreas artísticas que deve-
práticas possíveis para o ensino de arte nas riam compor efetivamente a formação cur-
escolas, ou seja, mesmo quando a legislação ricular, cada sistema educacional estabelece
aquilo que deseja, muitas vezes motivado escolar, não podendo ser substituída ou supri-
apenas pelo hábito de ensinar as artes de mida da formação escolar.
forma polivalente, ou ainda motivado pela
questão econômica: um professor é mais A Lei n. 11.769/08 representa, em algum ní-
barato do que vários professores de várias vel, um avanço no texto legal. Ela alterou a
linguagens artísticas. Cabe destacar que os Lei n. 9.394/96, que traz a obrigatoriedade
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN do ensino de arte na escola. Sendo assim,
(BRASIL, 1997, 1998) apresentam um volu- a música deverá ser conteúdo indiscutível
me dedicado à Arte, contendo orientações no currículo, cumprindo aquilo que está
para Artes Visuais, Dança, Música e Teatro. estabelecido no artigo 26 da LDB de 1996.
No entanto os PCN não são documentos Note-se que a Lei n. 11.769/08 apresenta, em
obrigatórios, ou seja, são orientações gerais seu texto, a não exclusividade do ensino da
que podem ser ou não utilizadas pelos sis- música: a música é conteúdo obrigatório,
temas educacionais. mas não exclusivo, ou
Assim, mesmo com A Lei n. 11.769/08 indica seja, o currículo esco-
a ausência do termo lar deve estabelecer
claramente que a música
Educação Artística um espaço para a
deve fazer parte do
nos documentos le- música, sem prejuízo 13
currículo escolar, não das outras linguagens
gais a partir de 1996,
a prática da poliva-
podendo ser substituída artísticas. Em suma,
lência permaneceu ou suprimida da formação a formação em artes
em diversos sistemas escolar. ganha, com a Lei n.
educacionais. 11.769/08, um reforço
para os argumentos
A indefinição da legislação, a falta de clareza e que se podem construir para a ampliação da
a possibilidade de múltiplas interpretações do presença do ensino das artes – e da música –
texto legal foram consideradas como tópicos no currículo escolar.
da mais alta relevância para serem tratados de
forma efetiva para o aprimoramento da legis- No entanto, a Lei n. 9.394/96 ainda continua
lação brasileira para o ensino das artes. Assim, ativa, e isto significa que a obrigatoriedade
o movimento pela música na escola estabele- da música está estabelecida, mas os siste-
ceu uma pauta única que foi a alteração da mas educacionais continuam livres e autô-
legislação com relação ao ensino de música nomos para estabelecerem de que forma
na escola. A Lei n. 11.769/08 indica claramen- esta área será contemplada no currículo.
te que a música deve fazer parte do currículo Evidentemente o que se espera é um ensino
de música com qualidade, consistente, que poderão construir gradativamente o
faça sentido para a formação do cidadão que espaço da música no currículo, até
passa pela escola. E para que isto aconteça que haja licenciados em número sufi-
diversos desafios precisam ser vencidos: ciente para as escolas.

1. Os professores que atuarão na educa- 2. A revisão dos projetos políticos pe-


ção básica ensinando música preci- dagógicos das escolas é necessária
sam ser licenciados, e o número de para que a música seja contemplada,
licenciados em música atuando nas cumprindo a legislação vigente. Os
escolas de educação básica é peque- sistemas educacionais estabelecerão
no, como mostram algumas pesquisas de que forma a música fará parte do
no Brasil. Dados do INEP, do Censo Es- currículo, e exemplos em diversas par-
colar de 2008, tes do país podem
por exemplo, ser observados para
mostram que Projetos extracurriculares esta efetiva imple-
o Brasil possui com a música são sempre mentação. Há sis-
32.000 profes- bem-vindos na escola, mas temas educacionais
sores de Arte. que estabeleceram a 14
é preciso reconhecer que a
Não se sabe música em algumas
legislação trata da música
ao certo quan- séries da escola, al-
tos destes pro-
no currículo. ternando com ou-
fessores são tras linguagens ar-
habilitados tísticas; há sistemas
e trabalham com música na escola. que incluíram a disciplina música em
Mas, de qualquer forma, este número seus currículos.
é muito pequeno. Ainda levará algum
tempo para que todas as escolas bra- 3. Considerando que os anos iniciais da
sileiras possam contar com a presen- escolarização estão sob a responsabi-
ça de licenciados em música atuando lidade de professores pedagogos, que
em seus quadros docentes. Por esta atuam em todas as áreas do conhe-
razão, é preciso compreender a tran- cimento escolar, seria fundamental
sitoriedade deste período, assumindo que estes professores fossem também
a necessidade de mais profissionais li- preparados para contribuírem com o
cenciados em música na escola, mas processo de educação musical escolar.
entendendo que projetos temporários Não se trata de substituir o professor
especialista na área de música na es- Diversos sistemas educacionais incluíram a
cola, mas estimular experiências mu- música em seu currículo a partir daquela le-
sicais diversas na escola que possam gislação de 1996, de forma a contemplarem
ser compartilhadas entre professores a formação musical dos estudantes. Ao mes-
especialistas e pedagogos. mo tempo, diversos sistemas educacionais
preferiram manter a prática polivalente, em
4. Projetos extracurriculares com a música que a música esteve – e ainda está – pouco
são sempre bem-vindos na escola, mas presente no currículo escolar por diversas
é preciso reconhecer que a legislação razões.
trata da música no currículo. O obje-
tivo é garantir democraticamente o A Lei n. 11.769/08 traz mais elementos para

acesso à educação musical para todos. garantir a presença da música no currícu-

A importância de projetos escolares lo escolar. Depende de cada sistema educa-

que envolvem bandas, corais, grupos cional a implementação da música em seus

de rap, dentre outros, é inegável e am- currículos, assim como depende de cada sis-

plia a experiência escolar, e tais proje- tema a abordagem a ser empregada nesta

tos deveriam ser estimulados e desen- implementação. O que se pretendeu com

volvidos em vários contextos escolares. esta nova legislação foi a garantia de uma 15
Mas ao lado do projeto extracurricular, educação musical com qualidade, acessível

a proposta curricular da escola deve a todos os estudantes brasileiros. Evidente-

propiciar que todos os estudantes vi- mente, os educadores musicais desejam que

venciem experiências musicais de for- tal formação escolar seja feita com muita

ma consistente e significativa. qualidade, garantindo que a experiência mu-


sical no currículo será consistente e signifi-
Finalizando cativa.

A legislação para a educação brasileira atu- Por todos os elementos apresentados neste
al favorece a presença da música na escola texto, espera-se que se amplie o espaço de
como parte do currículo. Desde 1996, com atuação dos licenciados em música na esco-
a Lei n. 9.394/96, a música poderia ter sido la brasileira, seja através da abertura de con-
incluída no currículo escolar a partir da cursos que contemplem a área de música,
obrigatoriedade do ensino de arte. Sendo a seja pelo compromisso dos licenciados em
música uma das artes, tal área poderia fazer música com a educação básica brasileira.
parte do currículo desde a promulgação da Por isso, entendemos que estamos em pe-
LDB de 1996. ríodo transitório, onde projetos alternativos
poderão ser implementados para a constru- BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais
ção gradativa e consistente do espaço da (Introdução). Brasília: Ministério da Educa-
música no currículo escolar em todas as es- ção/ Secretaria de Educação Fundamental,
colas brasileiras. 1997.

A educação musical escolar é assunto que BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais

deveria ser assumido por toda a comunidade (5ª a 8ª). Brasília: Ministério da Educação/

escolar. A qualidade da educação como um Secretaria de Educação Fundamental, 1998.

todo depende fundamentalmente da qualida-


BRASIL. Resolução n. 2, de 8 de março de 2004.
de dos componentes curriculares, e a música
Aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais
é parte deste processo que pretende contri-
do Curso de Graduação em Música e dá outras
buir para um currículo amplo, que cumpra
providências. Brasília: CNE/CES, 2004a.
sua função de formar cidadãos cada vez mais
preparados para lidarem com as diversas BRASIL. Resolução n. 3, de 8 de março de 2004.
nuances da experiência humana. E o acesso Aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais
democrático à educação musical é parte inte- do Curso de Graduação em Dança e dá outras
grante neste processo de construção de uma providências. Brasília: CNE/CES, 2004b.
sociedade mais justa e mais humana. 16
BRASIL. Resolução n. 4, de 8 de março de 2004.
Aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais
Referências
do Curso de Graduação em Teatro e dá outras
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação providências. Brasília: CNE/CES, 2004c.
Nacional. Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971.
BRASIL. Lei n. 11.769, de 18 de agosto de 2008.
Brasília, 1971. Disponível em
Brasília: Diário Oficial da União, ano CXLV, n.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
159, de 19/08/2008, Seção 1, página 1.
leis/5692.htm

BRASIL. Resolução n. 1, de 16 de janeiro de 2009.


BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Aprova as Diretrizes Curriculares Nacionais do
Nacional, LDB: Lei 9.394/96. Brasília: Diá-
Curso de Graduação em Artes Visuais e dá ou-
rio Oficial da União, Ano CXXXIV, n. 248, de
tras providências. Brasília: CNE/CES, 2009.
23/12/1996, pp. 27.833-27.841.
texto 2

Diversidade musical e ensino de música


Luis Ricardo Silva Queiroz 1

Resumo

Neste texto, o objetivo é discutir a diversidade musical e possíveis metodologias de ensino de


música. Aproximações com o campo da etnomusicologia serão apresentadas como possibili-
dades de ampliação do entendimento e das concepções de música que poderiam fazer parte
do currículo escolar. Serão também discutidas questões didáticas para o ensino de música,
tratando da inclusão de experiências diversificadas com a música no contexto escolar.

Nas últimas décadas, temos aprofundado mo tempo a compreensão e o respeito


significativamente o debate acerca de ques- pelo diferente e pela diversidade são
tões emergentes na sociedade que, por dife- dimensões fundamentais do processo
rentes perspectivas, são fundamentais para educativo (BRAGA; SILVEIRA, 2007, gri- 17

as definições da educação. Assim, cada vez fos meus).


mais, têm sido reconhecidas a necessidade
e a importância de trazermos para o âmbi- Com efeito, a diversidade, em suas diferen-
to educacional temas que permeiam a vida tes facetas, tem sido foco de debates em dis-
humana e as relações sociais na atualidade. tintas áreas de conhecimento, evidenciando
Nesse universo, tem-se entendido que: as implicações do tema para a sociedade. O
que se percebe é que, no mundo atual, não
(...) a educação não pode separar-se, é possível pensar em definições, proposi-
nos debates, de questões como desen- ções e ações de cunho social, entre as quais
volvimento ecologicamente sustentável, a educação, sem considerar a diversidade
gênero e orientação sexual, direitos hu- como elemento intrínseco ao homem, que
manos, justiça e democracia, qualifica- tem impacto direto em suas relações com a
ção profissional e mundo do trabalho, natureza e com a cultura. Temos, portanto,
etnia, tolerância e paz mundial. Ao mes- caminhado na direção de uma política edu-

5 Doutor em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é professor adjunto do


Departamento de Educação Musical e do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da
Paraíba e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música da UFPB.
cacional e uma ação pedagógica orientadas elementos que constitui a vida dos indivíduos
pelos valores da diversidade e do direito à e que faz da escola um lugar plural e comple-
diferença (HENRIQUES, 2007). xo. Um lugar de confrontos e disputas, mas
também de diálogos e interações.
Com vistas a contribuir para este debate, Essa multiplicidade que constitui a escola na
mais especificamente no campo da educa- atualidade é retratada nas palavras de Cali-
ção musical, este trabalho apresenta refle- man, quando afirma que:
xões e perspectivas para o ensino de música,
considerando a diversidade musical como (...) agora quem frequenta a escola são
elemento social de grande valor para a edu- jovens de extrações sociais diversas,
cação, tanto no que se refere às especifici- cada um deles com uma história pesso-
dades dos conteúdos musicais quanto no al que para alguns é regular, mas para
que tange a dimen- outros é marcada por
sões educativas mais fracassos, desvanta-
Na sala de aula, se
abrangentes. gens, mal-estar e so-
manifestam muitos frimentos dos mais
aspectos relacionados diferentes tipos (CALI-
Diversidade 18
às diferenças, que estão MAN, 2006, p. 385).
na sala de
aula
imbricados em todas as
Cientes dessa reali-
áreas e nos conteúdos
Ao considerarmos a dade, os profissio-
trabalhados. nais que atuam em
diversidade na sala de
aula, é importante ter diferentes áreas do

em mente que não se conhecimento preci-

trata de considerar unicamente a diversidade sam considerar que as fronteiras entre disci-

musical, mesmo para o professor de música. plinas e conteúdos são diluídas na convivên-

Na sala de aula, se manifestam muitos aspec- cia social e na inter-relação que estabelecem

tos relacionados às diferenças, que estão im- no contexto cultural dos indivíduos. Precisa-

bricados em todas as áreas e nos conteúdos mos pensar que cada área tem suas especi-

trabalhados. Nesse sentido, a diversidade na ficidades no processo de formação escolar,

sala de aula, independente do componente mas que todas elas lidam com pessoas; pes-

curricular trabalhado, abarca fatores econô- soas de naturezas distintas, pensamentos e

micos, étnicos, religiosos, sexuais, artísticos, objetivos diversificados, vivências e acessos

entre tantos outros. É a conjuntura desses singulares etc.


Considerando as diversidades que se mani- Como expressão cultural, a música pode ser
festam na escola, me atenho a discutir, a se- considerada veículo universal de comunica-
guir, aspectos relacionados a uma delas, a ção, pois não se tem registro de qualquer
diversidade musical, que não se separa das grupo humano que não realize experiências
demais, mas que tem implicações específi- musicais como meio de contato, apreen-
cas à prática educacional escolar. são, expressão e representação de aspectos
simbólicos culturais. Todavia, o fato de ser
utilizada universalmente não faz da prática
A música como fenômeno
musical uma “linguagem universal”, tendo
social em vista que cada cultura tem formas par-
ticulares de elaborar, transmitir e compre-
A música constitui uma rica e diversificada ender a sua própria música, (des)organizan-
expressão do homem, sendo resultado de vi- do, idiossincraticamente, os elementos que
vências, crenças e valores que permeiam a a constituem (QUEI-
sua vida na sociedade. ROZ, 2004, p. 101).
Como prática social, a A música constitui uma rica
música agrega, em sua e diversificada expressão do Dessa forma, a mú-
constituição, aspectos homem, sendo resultado de sica como cultura
19
que transcendem suas
vivências, crenças e valores cria mundos diver-
dimensões estruturais sificados, mundos
que permeiam a sua vida
estéticas, caracteri- musicais que se es-
zando-se, sobretudo,
na sociedade.
tabelecem não como
como um complexo universos e territó-
sistema cultural que rios diferenciados pelas linhas geográficas,
congrega aspectos estabelecidos e compar- mas como mundos distintos dentro de um
tilhados pelos seus praticantes, individual e/ mesmo território, de uma mesma sociedade
ou coletivamente. De tal maneira, a forte e e/ou até dentro de um mesmo grupo. Com-
determinante relação com a cultura estabe- partilhando do pensamento de Finnegan, en-
lece para a música, dentro de cada contexto tendo que os mundos musicais são “distintos
social, um importante espaço com carac- não apenas por seus estilos diferentes, mas
terísticas simbólicas, usos e funções que a também por outras convenções sociais: as
particularizam, de acordo com as especifici- pessoas que tomam parte deles, seus valores,
dades do universo que a rodeia (MERRIAM, suas compreensões e práticas compartilha-
1964; BLACKING, 1973; NETTL, 1992; QUEI- das, modos de produção e distribuição, e a
ROZ, 2005). organização social de suas atividades musi-
cais” (FINNEGAN, 1989, p. 31). micos, estruturas melódicas etc.

A segunda vertente do trabalho com a di-


A diversidade de músicas da
versidade está relacionada à inserção, na
escola e a diversidade de
prática escolar, de músicas de diferentes
músicas para a escola
contextos culturais, visando à ampliação e/

A diversidade musical se manifesta natural- ou transformação do universo musical dos

mente na escola, já que distintas expressões alunos, a partir da descoberta e da incorpo-

musicais adentram cotidianamente o uni- ração de estéticas e experiências musicais

verso escolar, vindas na bagagem cultural variadas. Trata-se de planejar e estruturar

dos alunos, a partir das experiências sociais uma diversidade de músicas para a escola.

que estabelecem em sua vida cotidiana. As- Nessa categoria podem ser incluídas mú-

sim, de forma individual ou coletiva, seja sicas locais, que não têm veiculação midi-

ouvindo rádio, assistindo televisão, nave- ática e que, muitas vezes, são desconheci-

gando pela internet, brincando com amigos das pelos estudantes; músicas singulares

etc. o fato é que a música está no nosso dia de outras cidades, estados, regiões, países

a dia e, de forma mais ou menos conscien- etc. O objetivo não é, simplesmente, levar
para a escola um amontoado de expressões 20
te, todos estabelecem algum tipo de relação
como essa expressão cultural. musicais desvinculadas de suas realidades
sociais, mas sim, possibilitar que os alunos

Para o professor, há pelo menos duas ver- reconheçam vários “sotaques”, para que,

tentes centrais para lidar com a diversidade assim, possam reconhecer melhor, inclusi-

musical: a primeira está relacionada ao uni- ve, o seu próprio “sotaque” e, a partir daí, a

verso musical trazido pelos alunos, o que ca- seu critério, (re)significá-lo, ampliá-lo e/ou

racteriza a diversidade de músicas da esco- transformá-lo.

la. Assim, músicas que os alunos ouvem em


Todavia, é preciso ter em mente que, em
casa, que compartilham em suas relações
ambas as vertentes, considerar a diversida-
sociais, que assimilam a partir da veiculação
de significa reconhecer as várias músicas
midiática, entre outras, devem ter lugar ga-
como legítimas, havia vista que não é possí-
rantido na prática docente. Essas músicas,
vel afirmar, segundo determinados critérios
além de terem significados culturais para os
estéticos, que uma música é melhor que
estudantes, possibilitam diversos trabalhos
outra. Em hipótese alguma, deve-se traba-
relacionados à linguagem musical, exploran-
lhar a diversidade para se chegar à homo-
do aspectos como: sonoridades e timbre dos
geneidade, como ainda sinalizam algumas
instrumentos, formas de cantar, padrões rít-
propostas na área de educação musical. As- Nacionais (BRASIL, 1997; 1998); pesquisar e
sim, seria como, por exemplo, trabalharmos descobrir diversificados aspectos musicais
maracatu, congadas, bumba-meu-boi, cava- de distintas culturas (instrumentos, ritmos,
lhadas, fandango, rock, samba, entre outras melodias, estéticas vocais etc.); conhecer e
práticas da cultura popular para, a partir daí, vivenciar a diversidade do patrimônio cul-
chegar à música de Mozart, Beethoven, Bach tural imaterial do mundo, caracterizado
etc., como se um tipo de música fosse me- pela música de diferentes etnias, entre ou-
lhor e/ou superior ao outro. O que precisa- tros (QUEIROZ; MARINHO, 2009).
mos e que essas diversas músicas dialoguem
na sala de aula e, dessa forma, convivam de- Todavia, um trabalho dessa natureza exige
mocraticamente, trabalhando as diferenças do professor habilidades para lidar com as
e os seus distintos valores e significados que diferenças e para estabelecer diálogos entre
permeiam cada ex- diferentes universos
pressão musical. musicais, pois todo
Em hipótese alguma,
trabalho, independen-
deve-se trabalhar a
te do tipo de música
Perspectivas diversidade para se chegar que contemple, deve
práticas para à homogeneidade, como propiciar uma expe- 21
o ensino de
ainda sinalizam algumas riência significativa e
música diante
propostas na área de reveladora de desco-
da diversidade bertas musicais. Ao
educação musical.
lidar com várias ma-
No que se refere es-
nifestações culturais,
pecificamente ao
não se pode cair, simploriamente, na repro-
trabalho de educação musical, lidar com
dução de músicas “exóticas”, desprovidas de
diferentes expressões culturais permite
valor simbólico para os alunos.
contemplar uma série de objetivos funda-
mentais para o ensino de música nas esco-
Assim, ao contemplar a diversidade musical
las, como: desenvolver práticas integradas
da sala de aula, e para a sala de aula, é possí-
com os temas transversais, contemplando
vel planejar, elaborar e realizar atividades de
a “pluralidade cultural” de múltiplos con-
interpretação, apreciação e criação musical
textos sociais; compreender diferentes ex-
trabalhando elementos como:
pressões culturais (do bairro, da cidade,
do estado, da região, do país e do mundo),
• Pesquisa de aspectos organológicos: vi-
conforme enfatizado na proposta para a
sando a descobertas de instrumentos mu-
área de música dos Parâmetros Curriculares
sicais de várias culturas musicais, suas fundamentalmente, é necessário reconhe-
sonoridades, formas de execução etc. cer as suas vivências, os seus anseios e as
suas (inter)relações com a música.
• Exploração e descoberta de elementos re-
lacionados à estética vocal: trabalhando Assim, é possível pensar num ensino da mú-
múltiplas formas de colocação da voz, sica democrático e inclusivo, que respeite a
timbres utilizados, efeitos vocais, alturas, diferença, não para utilizá-la como base para
técnicas de canto coletivo e individuais, a formação de iguais, mas principalmente
entre outros aspectos. para, por meio dela, construir saberes con-
textualizados com o universo particular de
• Desenvolvimento rítmico: conhecendo
cada indivíduo e de cada grupo social.
e explorando singularidades do ritmo de
manifestações musicais diversas. O reconhecimento à diversidade nos fez per-
ceber que não existe uma única música e/
• Compreensão e práticas de estruturas so-
ou sistema musical e que, portanto, não po-
noras em geral: alturas, melodia, harmô-
demos ter uma educação musical restritiva
nica etc.
e unilateral. Essa perspectiva nos conduz a
Essas são apenas algumas possibilidades, novos direcionamentos pedagógicos e nos
22
entre as inúmeras possíveis, que o um tra- leva a caminhos abrangentes, reconhecen-
balho que lide com a variedade de músicas do a variedade de músicas e suas diversas
do mundo pode possibilitar no contexto es- possibilidades educacionais. Em face dos ru-
colar. O fato é que, se realizado com objeti- mos das músicas do mundo na atualidade,
vos e propostas consistentes, um trabalho nos vemos diante do desafio de estabelecer
inter-relacionado à diversidade musical po- direcionamentos coerentes para o ensino
derá ser rico de descobertas estéticas, téc- de música na escola. Ensino este que preci-
nicas, perceptivas e culturais no âmbito da sa ser abrangente e diversificado, contem-
música e, portanto, da sociedade. plando, principalmente, propostas e ações
educativas contextualizadas com contextos
Entendo que para concretizar ações educa- escolares das múltiplas realidades sociocul-
tivas abrangentes, que contemplem a músi- turais do país.
ca em suas distintas facetas, é preciso mais
que a inclusão de repertórios e de ativida-
Referências
des relacionadas à diversidade musical. É
importante ter em mente que, em qualquer
BLACKING, John. How musical is man? Lon-
processo educativo-musical, é preciso ex-
don: University of Washington Press, 1973.
pandir os conhecimentos do alunado, mas,
BRASIL. Ministério da Educação e do Des- MERRIAM, Alan P. The anthropology of mu-
porto. Secretaria de Educação Fundamental. sic. Evanston: Northwester University Press,
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1997. v. 6: Arte.
NETTL, Bruno. Ethnomusicology and the te-
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QUEIROZ, Luis Ricardo S. Educação musical
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lia: Secretaria de Educação Continuada, Al- ______. A música como fenômeno socio-
fabetização e Diversidade (Secad); Organiza- cultural: perspectivas para uma educação
ção das Nações Unidas para a Educação, a musical abrangente. In: MARINHO, Vanil-
Ciência e a Cultura (UNESCO), 2007. do Mousinho; QUEIROZ, Luis Ricardo Silva 23
(org.). Contexturas: o ensino das artes em di-
HENRIQUES, Ricardo. Apresentação. In:
ferentes espaços. João Pessoa: Editora Uni-
BRAGA, Maria Lúcia de Santana; SILVEIRA,
versitária da UFPB, 2005. p. 49-66.
Maria Helena Vargas da (orgs.). O Programa
Diversidade na Universidade e a construção de
QUEIROZ, Luis Ricardo S.; MARINHO, Vanildo
uma política educacional anti-racista. Brasí-
Mousinho. Práticas para o ensino de música
lia: Secretaria de Educação Continuada, Al-
nas escolas de educação básica. Música na
fabetização e Diversidade (Secad); Organiza-
educação básica, Porto Alegre, n. 1, p. 60-75,
ção das Nações Unidas para a Educação, a
2009.
Ciência e a Cultura (UNESCO), 2007.
texto 3

Música nas escolas


Luciana Marta Del-Ben1

Resumo

Neste texto serão discutidas e apresentadas propostas de experiências musicais que já acon-
tecem em escolas brasileiras. Tais experiências podem estar no currículo ou como atividade
extraclasse, dependendo do contexto. Em ambos os casos, as propostas educacionais com
música oferecem o acesso a experiências que contribuem para a formação dos estudantes, e
tais contribuições serão também aqui tratadas.

Este texto tem como objetivo apresentar aula. Cada licenciando desenvolve seu proje-
exemplos de práticas de ensino de música to individualmente, em uma escola ou outro
realizadas em escolas de educação básica. espaço educativo. As práticas apresentadas
Trata-se de práticas desenvolvidas por al- neste texto aconteceram em diferentes se-
24
guns dos alunos do Curso de Licenciatura mestres, entre os anos de 2005 e 2009. No
em Música da Universidade Federal do Rio entanto, foram orientadas pelos mesmos
Grande do Sul, durante seu estágio super- princípios, dentre os quais destaco as con-
visionado, e por mim orientadas. O estágio cepções de ensino e de ensino de música e a
supervisionado, em que tiveram origem as forma de organizar o ensino com que vimos
práticas de ensino a serem apresentadas, trabalhando.
compreende um conjunto de atividades para
a atuação do professor, envolvendo desde a Para Basabe e Colls (2010), educadoras ar-
aproximação e interação com o contexto gentinas, “ensinar é uma ação orientada a
educativo até o planejamento, a execução e outros e realizada com o outro” (p. 144), o
a avaliação das atividades docentes em mú- que envolve um processo de comunicação
sica em contextos específicos. São realiza- e, também, dedicação, zelo, cuidado em
dos encontros semanais, em grupo, quando relação ao aluno, “uma preocupação pela
são discutidos coletivamente os projetos de pessoa do aluno e pelo que ele pode chegar
ensino, bem como os planos e relatórios de a ser” (p. 146). “O ensino envolve, pois, um

1 Doutora em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professora associada da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS.
encontro humano. Porque ensinar é, em de- nadas finalidades, sejam aquelas definidas
finitivo, participar no processo de formação pelo próprio professor, sejam aquelas defi-
de outra pessoa, tarefa que só pode ser feita nidas pela escola, pelos governos ou demais
em um sentido pleno com esse outro” (p. âmbitos da sociedade.
146).
Há várias formas de organizar o ensino de
Nesse encontro, cabe ao professor “desem- música nas escolas. Uma delas é aquela que
penhar um papel de mediador entre os es- parte de uma listagem prévia de conteúdos.
tudantes e determinados saberes” (Basabe; São definidos os elementos que constituem
Colls, 2010, p. 147). A tarefa do professor a música (como timbre, melodia, inten-
“consiste em ajudar [os alunos] a introduzir- sidade, por exemplo) e, a partir deles, são
se numa comunidade de conhecimento e de propostas atividades diversas, com seus res-
capacidades, em proporcionar-lhes algo que pectivos objetivos. Outro caminho é definir
outros já possuem” objetivos de apren-
(Stenhouse, 1987, dizagem e, a partir
Ensinar música é mediar as
apud Basabe; Colls, deles, os conteúdos
2010, p. 147). Nos
relações das pessoas com a serem ensinados.
processos de ensino, a música, visando facilitar O professor pode 25
portanto, o aspecto e promover aprendizagens estabelecer, por
central é a pessoa, e musicais. exemplo, que os
não o objeto em si; a alunos deverão ser
relação com o saber, capazes de execu-
e não o saber; e a relação sempre depende tar padrões rítmicos e melódicos simples
do sujeito (ver D’Amore, 2005). e cantar em grupo canções diversas. Com
base nesses objetivos, planeja e desenvolve
Ensinar música é mediar as relações das um conjunto de atividades, que ajudarão os
pessoas com a música, visando facilitar e alunos a atingir esses padrões.
promover aprendizagens musicais. Essa
mediação é “marcada tanto pelas caracte- Outra forma de organizar o ensino de músi-
rísticas do conhecimento a transmitir como ca é definir atividades ou eixos que deverão
pelas características de seus destinatários” nortear as ações do professor e dos alunos.
(Basabe; Colls, 2010, p. 126). Em contextos Essa forma pode ser identificada nos Parâ-
formais, como a escola, ela deve ser feita de metros Curriculares Nacionais para o Ensi-
modo organizado, a partir de certas inten- no Fundamental, elaborados pelo Ministério
ções, com o propósito de alcançar determi- da Educação, em 1997, que estabelecem três
eixos norteadores das práticas de ensino e sentativos das culturas infantil e juve-
aprendizagem: a produção, a fruição e a re- nil, tão negligenciadas pela escola. Para
flexão. São esses eixos que norteiam a de- Miguel Arroyo (1994), a proposta é que
finição dos conteúdos do ensino das artes. este currículo seja construído a partir
da definição coletiva de temas – chama-
Não há nada de errado com os conteúdos, dos pelo autor de ‘temas transversais’
objetivos ou eixos propostos. O que parece – que representem as questões e os pro-
problemático é que, nos casos acima, o ensi- blemas colocados pela atualidade para
no é pensado e organizado somente a partir os homens, mulheres e crianças de nosso
da música como área ou disciplina. O foco tempo (Xavier, 2000, p. 5).
está no objeto, e não na pessoa ou nas pes-
soas a quem se destina o ensino. Nesses ca-
Essa citação deixa claro que a proposta não
sos, a mediação entre aluno e música (que
é abandonar as disciplinas curriculares –
caracteriza o papel do professor) é organi-
isto é, os saberes sistematizados, acumula-
zada tomando como eixo apenas um desses
dos pela humanidade, que são exemplifica-
elementos – a música. A relação entre aluno
dos nos conteúdos e atividades que vimos
e música – objeto central do ensino – não é
nos exemplos anteriores, específicos da área
explicitada.
de música. Também não se defende que os 26

objetivos sejam banidos da escolarização.


De modo geral, a crítica a essas formas de
Trata-se, isto sim, de buscar abordagens que
organizar o ensino não são recentes, embora,
permitam aproximar a escola e a vida, em
nos últimos anos, possam ser mais frequen-
tes e contundentes. Num texto publicado em que se ensine e se aprenda “pelas experiên-

2000, a educadora Maria Luisa Xavier obser- cias proporcionadas, pelos problemas cria-

vava: dos, pela ação desencadeada” (Xavier, 2000,


p. 11-12).

As discussões atuais acerca da organi-


zação do ensino vêm propondo que o Uma das estratégias que vem sendo discu-

planejamento seja desenvolvido atra- tida por diversos educadores para concreti-

vés de temáticas significativas que se- zar esses ideais é a chamada pedagogia de

jam objeto de desejo de conhecimento projetos (que também pode ser nomeada

de professoras, estagiárias e ou alunos como aprendizagem baseada em projetos,

e alunas. Temáticas capazes de abarcar projetos de ensino, projetos pedagógicos ou

as disciplinas curriculares – ressignifi- projetos de aprendizagem), perspectiva de-

cando-as – e capazes de dar conta dos senvolvida por diversos autores, entre eles,

chamados ‘saberes não escolares’ repre- Ovide Decroly, John Dewey, Willian Kilpa-
trick, Lawrence Stenhouse, Jerome Bruner, Esse acompanhamento é fundamental
Fernando Hernández, Jurjo Torres Santomé, porque um dos alertas que alguns que já
Josette Jolibert e Miguel Arroyo. Como expli- implementaram a Pedagogia de Projetos
ca Burnier (2001), fazem é para o risco de aligeiramento do
ensino, com redução ou superficialidade
A ideia central da Pedagogia de Projetos das informações acessadas pelos alunos
é articular os saberes escolares com os ou com foco principal no desenvolvimen-
saberes sociais de maneira que, ao estu- to de competências (saber fazer) sem a
dar, o aluno não sinta que aprende algo necessária fundamentação científica
abstrato ou fragmentado. O aluno que (…). (Burnier, 2001).
compreende o valor do que está apren-
dendo desenvolve uma postura indispen- Jolibert (1994, apud Xavier, 2000, p. 22) iden-
sável: a necessidade de aprendizagem. tifica três tipos de projetos:
Assim, o professor planeja as atividades
• projetos referentes à vida cotidiana – or-
educativas a partir de propostas de de-
ganização da sala de aula, divisão do tem-
senvolvimento de projetos com caráter
po, organização do espaço, elaboração
de ações ou realizações com objetivos
das normas de convivência, seleção de 27
concretos e reais (…).
atividades, divisão de responsabilidades...

Os conteúdos (…) seriam trabalhados


• projetos de empreendimento – organiza-
não mais a partir de uma organização
ção do pátio da escola, da biblioteca da
prévia, sequenciada e controlada pelo
sala de aula e/ou da escola, criação de
professor, mas iriam sendo pesquisados
animais, organização de uma exposição
e incorporados à medida que fossem
de pintura...
demandados pela realização dos proje-
tos. Isso exige do professor um acom- • projetos de aprendizagem – oficinas de li-
panhamento cuidadoso dos projetos teratura, de ortografia, de teatro, de desa-
dos alunos, de forma a prover os co- fios matemáticos....
nhecimentos necessários relativos tan-
to aos conteúdos disciplinares (saber), A autora sugere três etapas para sua imple-
aos saberes e competências relativos à mentação: a) problematização: que corres-
vida social e à subjetividade (saber ser) ponde à escolha do tema ou do problema a
quanto ao domínio de métodos e técni- ser investigado, que deve ser assumido por
cas diversos, relativos (…) às competên- todos os participantes (professor e alunos);
cias de aprendizagem autônoma (…). b) desenvolvimento: “é o momento onde se
criam as estratégias para buscar as respos- A rádio-novela passou a ser uma das atrações
tas às questões e hipóteses levantadas na do Programa de Rádio, que também incluiu
problematização” (Xavier, 2000, p. 23); é “o um diálogo entre professora e uma aluna,
planejamento do caminho a ser percorrido, simulando uma ouvinte pedindo músicas,
definindo-se as fontes a serem investiga- as quais foram escolhidas e executadas por
das, os recursos necessários, o cronograma todo o grupo; um “show de calouros”, em
do trabalho e, se for o caso, a atividade de que duas alunas executaram canções tam-
culminância do projeto” (Burnier, 2001); e bém escolhidas por elas; e um “Concurso Jo-
c) síntese: é o momento de organização dos vens Solistas”, com gravações de alunos ex-
dados, avaliação (por parte do professor e plorando individualmente o teclado levado
dos alunos), divulgação dos resultados (para pela professora. Receosa de que, pela pouca
pais, colegas, escola etc.) sob diferentes for- experiência formal com música, os alunos
mas: relato oral, mural, mostra, jornal, pai- não conseguissem compor em pouco tempo
nel, apresentação etc. uma vinheta para a rádio, a professora pe-
diu que os alunos escolhessem uma canção
Apresento, a seguir, três projetos planejados conhecida que identificasse a Rádio, a ser
e executados de acordo com os princípios cantada por todo o grupo. Também sugeriu
acima mencionados. A apresentação, pela outra canção a ser executada na abertura 28
dimensão deste texto, é resumida, procu- da rádio-novela. As crianças escolheram o
rando destacar as atividades realizadas bem nome da novela e a professora regente da
como a articulação entre as mesmas. turma sugeriu o nome da emissora de rádio
que transmitiria a rádio-novela.
O primeiro projeto de ensino foi desenvolvido
por Carolina Wiethölter com uma turma de A professora elaborou uma espécie de texto-
cerca de 25 alunos, de 5 a 6 anos de idade, roteiro, como se ela fosse a radialista, que
em uma escola de Educação Infantil. O proje- foi lido durante toda a programação, nesta
to foi construído a partir da ideia de elaborar sequência: vinheta da Rádio; conversa com
um “Programa de rádio”, caracterizando-se, o ouvinte; execução das canções pedidas
portanto, como um projeto de empreendi- pelo ouvinte pelo grupo; “show de calouros”
mento. Foi desenvolvido ao longo de quatro com duas cantoras; rádio-novela, definida
aulas. Essa ideia surgiu a partir de uma ati- pela professora como “o momento mais es-
vidade em que os alunos eram solicitados a perado de nossos ouvintes”, e introduzida
explorar e produzir diferentes sons corporais por uma canção de abertura; “a finalíssima
para a sonorização de uma rádio-novela, cuja do Concurso Jovens Solistas”, com cinco
história foi criada pela professora. alunos-candidatos tocando teclado; e, para
encerrar a programação, a vinheta da Rádio. vas solicitavam que as crianças imitassem
Ao final de quatro aulas, a programação foi sons de instrumentos, animais ou objetos;
ensaiada, gravada em áudio e apreciada pe- forca musical, utilizando nomes de instru-
los alunos. O tema possibilitou que as crian- mentos; e bingo de timbres, em que as car-
ças cantassem, explorassem e executassem telas deveriam ser preenchidas a partir da
sons corporais e apreciassem a própria pro- identificação de gravações de instrumentos.
dução. Além disso, foram elas que escolhe-
ram o repertório a ser trabalhado nas aulas. Dentre as atividades desenvolvidas pela pro-
fessora, estavam aquelas de exploração da
O segundo projeto, intitulado “Que som é voz, em que as crianças foram convidadas
esse?”, foi desenvolvido por Elaine Martha a identificar o timbre de voz de cada pes-
Daenecke com uma turma dos anos iniciais soa e a buscar diferentes maneiras de usar a
do Ensino Fundamental, numa classe com própria voz, por exemplo, imitando sons de
cerca de 25 alunos, a maioria com 7 anos animais, de objetos e ações diversas ou mu-
de idade, e teve a duração de 13 aulas. Mais dando a altura e a intensidade da sua voz.
uma vez, o tema escolhido pela professora
surgiu da observação do grande interesse As atividades de apreciação, visando a iden-
das crianças pelos instrumentos presentes tificar o timbre dos instrumentos, utilizaram 29

nas músicas ouvidas. repertório com formações instrumentais


variadas e de diferentes tradições, incluindo
O projeto caracterizou-se como um proje- as chamadas música folclórica, popular e de
to de aprendizagem e teve como atividades concerto (ou erudita). Audições compara-
centrais a apreciação musical e atividades das de diferentes arranjos para uma mesma
de percepção e exploração de timbres, tanto música auxiliaram os alunos a ampliar seu
de instrumentos musicais quanto de sons repertório de timbres, além de discutir algu-
vocais, corporais e de objetos diversos. Es- mas estratégias de composição. Os alunos
sas atividades foram integradas a outras de também puderam apreciar música ao vivo,
execução, principalmente de canções, para assistindo à professora tocar diferentes flau-
que as crianças exercitassem a voz (seu tas doces e, também, o grupo instrumental
próprio instrumento), e de composição em da escola. Desenhar os instrumentos que as
grande grupo e pequenos grupos. Também crianças viam e ouviam e criar partituras
foram planejados alguns jogos e brincadei- com grafia não convencional para suas pro-
ras: trilha musical, um jogo de tabuleiro duções foram outras estratégias adotadas
com fichas com provas musicais, um dado e pela professora.
peças para caracterizar cada criança; as pro-
Os alunos também puderam conhecer as atividade de composição em pequenos gru-
diferentes famílias de instrumentos de or- pos, em que os alunos foram solicitados a
questra, com o auxílio do livro A orquestra compor uma música, utilizando instrumen-
tintim por tintim (Hentschke et al., 2005) e tos de percussão, com duas partes distintas
assistiram ao vídeo de “Pedro e o Lobo”, peça caracterizadas por diferentes intensidades,
composta por Sergei Prokofiev. A partir da fa- que deveriam ser escolhidas pelos grupos.
miliarização dos alunos com uma orquestra
sinfônica, a professora também realizou uma Ao final do projeto, a professora entregou a
atividade de composição em grande grupo. cada aluno, e também à direção da escola,
Organizando os instrumentos de percussão
um CD com gravações de músicas apreciadas
por naipes, convidou os alunos a formarem
ou executadas durante as aulas, incluindo
uma orquestra de percussão. Nas orienta-
produções dos alunos. Também lhes foi en-
ções para o desenvolvimento da composição,
tregue uma pasta com diferentes materiais
a professora solicitou que cada naipe tivesse
das aulas, como letras de canções, partitu-
um destaque em alguma parte da música, in-
ras, além de desenhos, registros e partituras
tercalando solos com tutti, isto é, o grande
feitos pelos alunos. As capas do CD foram
grupo. A organização das ideias musicais dos
confeccionadas pelos próprios alunos.
alunos (ou a sequência de apresentação des-
30
sas ideias) foi definida por um regente: pri-
Por fim, o projeto “Músicas de propaganda
meiramente, a professora, que apresentou os
de televisão” caracterizou-se como um pro-
sinais a serem utilizados para entrada, corte,
solo e tutti, e, depois, os próprios alunos. jeto referente à vida cotidiana. Foi desen-
volvido por Juliana Rigon Pedrini, em uma

Para explorar a intensidade da voz durante a escola privada de Ensino Fundamental, com

execução de algumas canções, a professora uma turma de 5ª série (atual 6º ano), com 19
confeccionou cartões coloridos com indi- alunos, ao longo de 11 aulas. O tema foi es-
cações de dinâmica, utilizando os símbolos colhido pela professora a partir do interesse
convencionais (pp = pianíssimo ou muito su- dos alunos por uma música de um comer-
ave; p = piano ou suave; mf = meio forte; e f = cial de televisão.
forte). A empolgação dos alunos em cantar
forte levou a professora a trabalhar os cuida- O projeto foi iniciado com a execução da
dos com a voz e a maneira mais adequada de canção em grande grupo, com acompa-
procurar emitir os sons. nhamento ao violão feito pela professora.
Logo em seguida, a professora pediu que
Os cartões de intensidade também foram os alunos, em pequenos grupos, tentassem
utilizados como ponto de partida para uma tirar uma parte da música de ouvido, utili-
zando a flauta doce. Para auxiliar os alunos, músicas ouvidas, oportunidade para gerar
a professora indicou as notas das melodias uma discussão sobre as funções da música
de algumas sílabas das palavras da canção. na vida das pessoas.
A partitura da melodia foi posteriormente
trabalhada com os alunos, destacando figu- A apreciação musical serviu de base para a
ras e padrões rítmicos. A professora também atividade seguinte, em que a professora le-
criou um arranjo para a canção. A canção foi vou músicas instrumentais pouco conheci-
executada pelos alunos em várias aulas no das pelos alunos para que, em grupos, eles
decorrer da realização do projeto, intercala- criassem um comercial para um produto,
da a outras atividades. Em uma dessas aulas, que “combinasse” com a música ouvida.
alunos e professora discutiram e experimen- Cada grupo apresentou seu comercial para
taram como pode- os demais colegas,
riam mudar o caráter e o grande grupo
O tema do projeto auxilia
expressivo da canção, discutiu a adequa-
a definir um fio condutor
modificando inten- ção de cada música
sidade, andamento
para nossas aulas, pois em relação aos co-
e instrumentos, por permite estabelecer merciais criados.
exemplo. ligações entre as várias 31

atividades a serem O encerramento e/


Os alunos também ou culminância do
desenvolvidas.
foram solicitados a projeto, em que os
fazer um levanta- alunos puderam
mento de suas propa- mobilizar aquilo
gandas preferidas, veiculadas na TV, em que que aprenderam nas atividades anteriores,
a música estivesse presente. Foi a oportuni- consistiu em escolher um produto e criar
dade para discutir as diferenças entre jingle um comercial com trilha sonora, atividade
e trilha sonora. Outra tarefa solicitada aos que foi realizada em pequenos grupos. As
alunos foi escolher músicas que lhes fossem produções foram apresentadas e discutidas
pouco familiares ou consideradas estranhas coletivamente. Por fim, os alunos avaliaram
a eles. As gravações dessas músicas foram o projeto individualmente.
apreciadas em aula, quando os alunos dis-
cutiram características como instrumenta- Acredito que esses projetos, realizados com
ção, andamento e caráter expressivo. Eles grupos distintos e em contextos também dis-
também foram convidados a imaginar co- tintos, exemplificam possibilidades de fazer
merciais relacionados às características das música com os alunos na escola e de propi-
ciar-lhes aprendizagens musicais significati- as fundamentam e que ajudam a organizá-
vas, porque construídas a partir de suas pró- las, para que, a partir delas, seja possível re-
prias experiências, procurando acolher suas fletir sobre outras formas de ensinar música
vivências cotidianas e seus saberes prévios. nas escolas.

O tema possibilita que as várias atividades a


serem realizadas em sala de aula tenham re-
Referências
lação entre si. Assim, evitamos que as aulas
BASABE, Laura; COLS, Estela. La enseñanza.
de música se transformem em uma sequên-
In: CAMILlONI, Alicia. (Comp.). El saber di-
cia de atividades desconectadas e sem um
dáctico. Buenos Aires: Paidós, 2010. p. 125-
sentido de direção em termos de aprendiza-
161.
gens. Isso ocorre, geralmente, quando faze-
mos o planejamento para cada aula individu-
BURNIER, Suzana. Pedagogia das competên-
almente. Ao contrário, quando partimos de
cias: conteúdos e métodos. Boletim Técni-
um tema, garantimos a continuidade entre
co do SENAC, Rio de Janeiro, v. 27, n.3, set./
as várias atividades. O tema do projeto auxi-
dez., 2001. Disponível em: <http://www.se-
lia a definir um fio condutor para nossas au-
nac.br/BTS/273/boltec273e.htm> Acesso em:
las, pois permite estabelecer ligações entre 32
20 set. 2010
as várias atividades a serem desenvolvidas.
Uma mesma música pode ser trabalhada de D’AMORE, Bruno. Epistemologia e didática
diversas formas (apreciando e depois execu- da matemática. São Paulo: Editora Escritu-
tando-a, por exemplo) e uma atividade pode ras, 2005.
dar origem a novas atividades. O fio condu-
tor auxilia o aluno a perceber o porquê das HENTSCHKE, Liane et al. A orquestra tin-

diversas atividades que acontecem na sala tim por tintim. São Paulo: Editora Moderna,

de aula e para onde ele está caminhando. 2005. (Acompanha CD-Áudio.)

Além disso, um mesmo conteúdo, conceito


XAVIER, Maria Luisa M. Introduzindo a ques-
ou habilidade pode ser trabalhado por meio
tão do planejamento: globalização, inter-
de diferentes atividades.
disciplinaridade e integração curricular. In:
XAVIER, Maria Luisa M.; DALLA ZEN, Maria
Concluindo, o propósito deste texto não foi
Isabel (org.). Planejamento em destaque:
apresentar um modelo a ser seguido por ou-
análises menos convencionais. Porto Alegre:
tros professores, mas partilhar experiências
Mediação: 2000. p. 5-26.
reais de ensino, incluindo os princípios que
Bibliografia complementar PONSO, Caroline Cao. Música em diálogo:
ações interdisciplinares na educação infan-
MÚSICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA. Revista pu- til. Porto Alegre: Sulina, 2008.
blicada pela Associação Brasileira de Educa-
ção Musical (Abem) com o objetivo de discu- SOUZA, Jusamara; FIALHO, Vânia Malagutti;
tir e divulgar diferentes propostas de ensino ARALDI, Juciane. Hip hop: da rua para a es-
de música para todos os níveis da educação cola. Porto Alegre: Sulina, 2005.
básica. As revistas podem ser adquiridas no
site da Abem (www.abemeducacaomusical. - HENTSCHKE, Liane et al. Em sintonia com a
org.br ). música. São Paulo: Moderna, 2006. (Acompa-
nha CD-Áudio.)
COLEÇÃO MÚSICAS. Com o propósito de con-
tribuir para a formação de professores e para O livro apresenta um repertório bastante
a melhoria do ensino de música, os livros da variado, convidando o leitor a explorar so-
Coleção apresentam ideias e propostas prá- noridades e sentidos diversos, por meio de
ticas que podem ser desenvolvidas em di- descrições e análises das músicas gravadas
versos espaços educativos, como escolas de no CD que acompanha o livro. A publicação
educação básica, escolas de música e proje- pode ser adquirida no site da Editora Moder-
33
tos sociais. As publicações podem ser adqui- na (http://www.moderna.com.br).
ridas no site da Editora Sulina (http://www.
editorasulina.com.br).

KRIEGER, Elisabeth. Descobrindo a música:


idéias para a sala de aula. Porto Alegre: Su-
lina, 2005.
texto COMPLEMENTAR

Formação do professor de música:


demandas novas e emergentes
Cristiane Galdino1

Resumo

Para ser professor da educação básica é preciso possuir um diploma de curso superior de licen-
ciatura. Neste texto serão discutidas questões referentes aos profissionais que atuam com o
ensino de música na escola e os processos de formação nos cursos de licenciatura em música.
Serão analisados aspectos curriculares e a formação do professor de música, discutindo impas-
ses e desafios a serem vencidos para que se amplie significativamente o número de professores
de música atuantes na educação básica brasileira.

Ao ser aprovada, em 2008, a Lei n. 11.769, tica social, vivenciada por profissionais sem
34
que trata sobre a obrigatoriedade do ensino formação acadêmica em música, que esta-
da música na edu- riam impossibilita-
cação básica, teve o dos de ministrar tal
Art. 2º vetado, o que
Quem é o profissional que conteúdo e também
causou, e ainda cau- deve ensinar música na porque não há exi-
sa, polêmica entre escola e quem o habilita gência semelhante
os seus leitores. O a estar em sala de aula? para qualquer área
texto original desig- O que deve integrar a sua do currículo escolar.
nava que o ensino
formação?
de música deveria Tendo como pano
ser ministrado por de fundo esse cená-
professores com rio, desejo refletir
formação específica na área, que foi vetado sobre a formação do professor de música a
sob a justificativa de ser a música uma prá- partir de duas questões: Quem é o profis-

1 Doutora em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é Professora adjunto da
Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora do Curso de Licenciatura em Música.
sional que deve ensinar música na escola e O grande problema, entretanto, na tentati-
quem o habilita a estar em sala de aula? O va de responder a essa questão, tem sido a
que deve integrar a sua formação? presença /ausência do licenciado em Músi-
ca nas escolas da educação básica. Em pes-
quisa realizada por Maura Penna, em João
Professor de música: que
Pessoa – PB, foram encontrados, “dentre os
profissional vai à escola?
186 professores entrevistados responsáveis
pelas aulas de Arte nas 5ª e 8ª séries do en-
Para responder a essa pergunta, iremos nos
sino fundamental, apenas 9 com habilitação
focar no ambiente que está aí delimitado: a
em música: 4,8% do total” (PENNA, 2002, p.
escola. A legislação educacional brasileira
10). Essa situação se repete em outras regi-
aponta o curso de licenciatura plena como
ões do país, mesmo em municípios onde o
exigência para a formação dos docentes que
ensino de música ocorre de forma sistemá-
atuarão na educação básica (BRASIL, 1996) e,
tica, como é o caso do Rio de Janeiro – RJ.
como forma de valorização desses profissio- Conforme depoimento da direção da Direto-
nais, apresenta o “ingresso exclusivamente ria de Educação Fundamental, da Secretaria
por concurso público de provas e títulos” Municipal de Educação, a música não está
(BRASIL, 1996, p. 48). Seguindo essas indica- em “todas as turmas e séries, na grade cur- 35
ções, a resposta se torna óbvia: ensina música ricular, porque não temos professores em
na escola o licenciado concursado. número suficiente” (SANTOS, 2005, p. 50,
grifo da autora). Na Região Sul, encontra-
mos um quadro semelhante. Ao escrever so-
No entanto, essa é a resposta correta para
bre o ensino de música nas escolas estadu-
o contexto de atuação do profissional res-
ais de educação básica de Porto Alegre – RS,
ponsável por ministrar a disciplina Arte ou
Del-Ben afirma que
qualquer disciplina, na matriz curricular. Se
pensarmos em outras situações, as respos-
(...) 86,2% do total de professores que
tas poderão ser variadas e incluir os profis-
atuam com música nas escolas possuem
sionais que são mencionados no texto do
formação em nível superior, mas so-
veto acima mencionado. Dessa forma, em
mente 60,34% deles possuem formação
projetos desenvolvidos no ambiente escolar,
específica para atuar na área de artes
como é o caso da Escola Aberta, é possível (todos licenciados em educação artísti-
encontrar músicos profissionais e amado- ca) e apenas 13,79% dos docentes infor-
res, além de outros profissionais, atuando, maram serem licenciados em educação
muitas vezes de forma voluntária, junto às artística com habilitação em música
comunidades. (DEL-BEN, 2006, p. 115).
Quais as razões, então, para que os profis- mados de Educação Artística, característicos
sionais habilitados não sejam encontrados do período de vigência da Lei n. 5.692/71, são
nas escolas? Dentre as possíveis indicações substituídos pelas licenciaturas em Artes Vi-
está a exigência de formação polivalente suais, Dança, Música e Teatro. É a partir des-
nos editais de concurso para a disciplina se contexto que proponho pensarmos sobre
Arte, ainda em vigor, como ocorreu em Bra- o que deve integrar a formação do professor
sília. Grossi (2007, p. 41), ao relatar o fato, de música.
comenta que “os conteúdos apresentados
sob a denominação genérica de ‘Arte’ e
Formação do professor de
‘produções artísticas’, não especifica[vam]
música: o que é necessário?
qual arte (música, artes visuais ou cênicas)
e consequentemente a que conhecimento A formação inicial do professor de música,
específico faz-se referência e exigência para como dito anteriormente, ocorrerá em um
a prova”. curso de licenciatura
plena. Por ser um dos
A polivalência, A formação específica em cursos de graduação
herança da Lei n. cada linguagem artística é em música, a licen-
36
5.692/71, na prá- assegurada pelas Diretrizes ciatura necessita con-
tica, “nunca foi
Curriculares de cada um siderar as Diretrizes
efetivada e a qua- Curriculares Nacio-
dos cursos ligados à área
se totalidade dos nais do Curso de Gra-
professores de
artística.
duação em Música
educação artística (BRASIL, 2004) na for-
nas escolas públi- mulação de seu proje-
cas vem desenvolvendo trabalhos somente to pedagógico. Nas Diretrizes, a formação é
na área de artes visuais” (GROSSI, 2007, p. prevista a partir de três “tópicos de estudo”:
41). Talvez, por isso, a disciplina Arte pas- os conteúdos básicos, os conteúdos espe-
sou, “pouco a pouco, a ser sinônimo de ar- cíficos e os conteúdos teórico-práticos. Os
tes plásticas ou visuais. E isso persiste até os conteúdos básicos são “relacionados com
dias de hoje” (PENNA, 2004, p. 22). a Cultura e as Artes, envolvendo também
as Ciências Humanas e Sociais, com ênfase
A formação específica em cada linguagem em Antropologia e Psicopedagogia” (BRASIL,
artística é assegurada pelas Diretrizes Cur- 2004, p. 2), enquanto os conteúdos especí-
riculares de cada um dos cursos ligados à ficos são caracterizados como aqueles que
área artística. Os cursos anteriormente cha- “particularizam e dão consistência à área de
Música, abrangendo os relacionados com o VI – o uso de tecnologias da informação e
Conhecimento Instrumental, Composicio- da comunicação e de metodologias,
nal, Estético e de Regência” (BRASIL, 2004, p. estratégias e materiais de apoio ino-
2). Por sua vez, os conteúdos teórico-práti- vadores;
cos são aqueles que permitem “a integração
VII – o desenvolvimento de hábitos de co-
teoria/prática relacionada com o exercício
laboração e de trabalho em equipe
da arte musical e do desempenho profissio-
(BRASIL, 2002, p. 1).
nal, incluindo também Estágio Curricular
Supervisionado, Prática de Ensino, Iniciação Os dois documentos se complementam,
Científica e utilização de novas Tecnologias” mas não podemos pensar a formação do
(BRASIL, 2004, p. 2). professor de música apenas a partir deles.
Outros documentos, tão importantes quan-
Essas Diretrizes apontam, também, em seu
to os já citados, nos trazem novas catego-
Artigo 12, para a necessidade de os cursos de
rias a serem pensadas nessa formação, tais
licenciatura plena “observar[em] as normas
como a educação inclusiva e a educação
específicas relacionadas com essa modali-
antirracista. Embora possam ser considera-
dade de oferta” (BRASIL, 2004, p. 3), dispo-
dos como parte dos conteúdos básicos ou
níveis nas Diretrizes Curriculares Nacionais 37
até dos teórico-práticos, esses componen-
para a Formação de Professores da Educa-
tes precisam ser caracterizados também no
ção Básica. Destaco, nesse documento, al-
âmbito dos conteúdos específicos, uma vez
guns aspectos que se tornam essenciais nos
que eles integram as relações das pessoas
cursos de formação desse profissional:
com as músicas (KRAEMER, 2000), na pers-
pectiva do ensino e da aprendizagem.
I – o ensino visando à aprendizagem do alu-
no;
No que diz respeito à Lei n. 10.639/03, que

II – o acolhimento e o trato da diversidade; tornou obrigatório o ensino de História e


Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educa-
III – o exercício de atividades de enriqueci-
ção Básica, instituída como Diretrizes Curri-
mento cultural;
culares Nacionais para a Educação das Rela-

IV – o aprimoramento em práticas investi- ções Étnico-Raciais, em 2004, os cursos de

gativas; formação de professores precisam refletir


sobre
V – a elaboração e a execução de projetos de
desenvolvimento dos conteúdos curri- (...) a necessidade de se insistir e investir
culares; para que os professores, além de sólida
formação na área específica de atua- softwares para comunicação alternativa”
ção, recebam formação que os capaci- (BRASIL, 2008, p. 1).
te não só a compreender a importância
das questões relacionadas à diversidade Além desses encaminhamentos, algumas
étnico-racial, mas a lidar positivamente proposições se tornaram lei a fim de que o
com elas e sobretudo criar estratégias professor pudesse participar de forma efeti-
pedagógicas que possam auxiliar a ree- va desse contexto, entre elas, a inclusão da
ducá-las (BRASIL, 2004, p. 15). LIBRAS como “disciplina curricular obriga-
tória nos cursos de formação de professo-
Nesse sentido, trabalhar com essas questões res para o exercício do magistério, em nível
é mais do que incluir conteúdos assépticos médio e superior” (BRASIL, 2005), desde 22
sobre música africana ou sobre a matriz de dezembro de 2005. Considero que outras
africana na formação da música brasileira, ações devam ser implementadas. Mesmo
significa trazer para a cena discussões relati- que não estejam no âmbito das políticas pú-
vas ao racismo institucionalizado em nosso blicas, elas podem ocorrer como decisões in-
país, com todas as tensões que isso possa dividuais do profissional em formação. Cito,
provocar. como exemplo, incluir, em seu percurso
formativo, o estudo da Musicografia Braille,
38

Outro componente imprescindível na for- atualmente acessível por meio do software


mação do professor de música é a educação Musibraille, de distribuição gratuita. Essa in-
inclusiva, considerada como atendimento dicação se justifica não só porque no senso
educacional especializado dirigido “aos alu- comum, o deficiente visual é “considerado
nos com deficiência, transtornos globais do como uma pessoa naturalmente apta para
desenvolvimento e altas habilidades ou su- a música (ou com dons musicais extraordi-
perdotação, matriculados na rede pública nários)” (BONILHA; CARRASCO, 2007, p. 2),
de ensino regular” (BRASIL, 2008, p. 1). Para mas pela quase completa inexistência de
que haja uma ampliação desse atendimen- deficiente visual nos cursos de música. Essa
to nas escolas, e isso inclui também as au- situação sugere que ele ainda é visto “como
las de Arte, o Ministério da Educação (MEC) um músico incapaz de ler ou de compreen-
promete dar apoio técnico e especializado, der uma partitura, bem como de frequentar
incluindo “a produção e distribuição de re- uma escola de música regular” (BONILHA;
cursos educacionais para a acessibilidade”, CARRASCO, 2007, p. 2).
entre eles, “livros didáticos e paradidáticos
em braile, áudio e Língua Brasileira de Sinais Esses aspectos acima mencionados atendem
– LIBRAS, laptops com sintetizador de voz, a uma concepção de formação de nível su-
perior vista “como um processo contínuo, caminho para a educação musical inclusiva.
autônomo e permanente” (BRASIL, 2003, p. In: Encontro Nacional da Associação Nacio-
5). Nesse contexto, a formação básica se so- nal de Pesquisa e Pós-graduação em Música,
lidifica e a formação profissional se funda- 17, 2007, São Paulo. Anais... São Paulo: 2007,
menta “na competência teórico-prática, de p. 1-6.
acordo com o perfil de um formando adap-
tável às novas e emergentes demandas” BRASIL. Lei nº. 9.394 de 20 de dezembro de 1996.
(BRASIL, 2003, p. 5). Estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional. Disponível em: <http://bd.camara.
gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/
Conclusão ldb_5ed.pdf?sequence=1>.

Ao responder às questões que nortearam Acesso em: 18 abr. 2011.

este texto, procurei constituir o percurso de


BRASIL. Resolução CNE/CP nº. 1/2002. Dire-
formação do professor de música atendendo
trizes Curriculares para a Formação de Profes-
ao que está previsto em lei, que seria o míni-
sores da Educação Básica, em nível superior,
mo exigido para o exercício de sua profissão.
curso de licenciatura, de graduação plena. Bra-
No entanto, penso que se ela ficasse restri-
sília, 2002. Disponível em: <http://www.mec. 39
ta a esses aspectos, faltaria a sensibilidade
gov.br>. Acesso em: 18 abr. 2011.
necessária para ir um pouco mais adiante,
identificando temas e situações, como as
BRASIL. Parecer CNE/CES nº 67/2003. Refe-
que agora se apresentam com a aprovação
rencial para as Diretrizes Curriculares Nacio-
da Lei n. 11.769 e a da Lei n. 10.639. Os desdo-
nais – DCN dos Cursos de Graduação. Brasília,
bramentos da obrigatoriedade do ensino de
2003. Disponível em: <http://www.mec.gov.
música e da lei antirracista, entre outras, ao
br>. Acesso em: 21 ago. 2009.
mesmo tempo em que necessitarão integrar
a formação inicial e continuada de professo-
BRASIL. Resolução CNE/CES nº 2/2004. Dire-
res de música, poderão tornar o seu campo
trizes Curriculares Nacionais dos Cursos de
de atuação tradicional – a escola – em “de-
Graduação em Música. Brasília, 2004. Dispo-
manda nova e emergente”.
nível em: <http://www.mec.gov.br>. Acesso
em: 18 abr. 2011.
Referências
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para
BONILHA, Fabiana F. G.; CARRASCO, Clau-
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
diney R. Ensino da musicografia Braille: um
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília: MEC/SEPPIR, jul. 2004. ÇÃO EM MÚSICA, 16., 2006, Brasília. Anais...
Brasília: 2006, p. 1-6. 1 CD-ROM.
BRASIL. Decreto nº. 5.626/2005. Decreto-lei de
Libras. Brasília, 2005. Disponível em: <http:// GROSSI, Cristina. A educação musical na

www.planalto.gov.br/ccivil/_Ato2004- perspectiva de um concurso público para

2006/2005/Decreto/D5626.htm>. Acesso em: professor da disciplina de Arte. Revista da

02 ago. 2009. ABEM, Porto Alegre, v. 16, p. 39-47, mar.


2007.

BRASIL. Decreto nº. 6.571/2008. Dispõe sobre


PENNA, Maura. Professores de Música nas
o atendimento educacional especializado,
escolas públicas de ensino fundamental e
regulamenta o parágrafo único do art. 60 da
médio: uma ausência significativa. Revis-
Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e
ta da ABEM, Porto Alegre, v. 7, p. 7-19, set.
acrescenta dispositivo ao Decreto nº 6.253,
2002.
de 13 de novembro de 2007. Brasília, 2005.
Disponível em: <http://www.planalto.gov. ______. A dupla dimensão da política educa-
br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/ cional e a música na escola: I - analisando a
D6571.htm>. Acesso em: 18 abr. 2011. legislação e termos normativos. Revista da
40
ABEM, v. 10, p. 19-28, mar. 2004.
DEL BEN, Luciana et al. Políticas educa-
cionais e seus impactos nas concepções e SANTOS, Regina Márcia Simão. Música, a re-
práticas educativo-musicais na educação alidade nas escolas e políticas de formação.
básica. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO Revista da ABEM, v. 12, p. 49-56, mar. 2005.
NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUA-
Presidência da República

Ministério da Educação

TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO

Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira

Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Mello de Sousa

Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça

Acompanhamento Pedagógico
Luís Paulo Cruz Borges

Coordenação de Utilização e Avaliação


Mônica Mufarrej
Fernanda Braga
41
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins

Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte

Consultor especialmente convidado


Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo

E-mail: salto@mec.gov.br
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Junho 2011

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