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Guilherme Magalhães Vale de Souza Oliveira – no. Mat.

02000059
Filosofia Geral I – Profa. Yolanda Gloria – Filosofia Noturno – 1o semestre de 2010

Três breves notas sobre as práticas de si


no Ler e Escrever de Zarathustra –
trilhas para uma educação da alteridade em Nietzsche

I.
Numa filosofia que se pretendeu ativa, para um espírito-livre que tem uma meta sempre para
se criar, Nietzsche formulou no seu conceito de "grande saúde" as dinâmicas de uma ética para o
eterno retorno e a vontade de potência. Para Nietzsche, "o homem é um animal avaliador", "que
mede, que fixa preços, que imagina equivalências, que estabelece hierarquias, que privilegia tal ou
qual elemento em comparação com tal outro, atribuindo-lhe um peso superior, ou fazendo dele uma
medida"1. E logo, é um animal que ativamente seleciona as forças e que de seus "venenos extraiu
seus bálsamos". Esta Grande Saúde não é tanto um estado quanto um exercício, se poderíamos dizer
assim, uma askésis farmacopoética, um constante cuidado e ir além de si, onde as forças que
atravessam um corpo são usadas na sua ambivalência, reativa e ativa, de obediência e comando,
doença e cura, de criação e destruição, de forma a usá-las na suas amplitude e intensividade
máximas para a própria persistência, resistência. O corpo como o fármaco das forças, aquilo pelo
qual as forças diferenciam, ou as forças como poiésis de um corpo em movimento, um corpo
nômade, um corpo que deriva e delira nas transformações que sofre para a sua própria
sobrevivência.
A Grande Saúde: uma saúde que "não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é
preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar"2: pois se adquire já que é
preciso dar a si uma nova meta, deixar ser atravessado por outras forças – outros sofrimentos, outros
gostos, outras vontades –, pois assim se adquire uma saúde tal como um vigor, uma disposição a
mais para manter-se vivo; e é preciso abandonar também esta vontade, abandonar talvez esta
direção a qual o corpo tomou gosto e tornou-se permissivo com tal sofrimento, pois o corpo se
habitua e deixa-se conduzir facilmente por forças que reagem, que tendem a estagnar-se, a
sedimentar-se, criando hábitos duradouros, ideais fascistas, são como carrascos de um espírito
criador.
Assim, o exercício, a askésis (ascese) para a Grande Saúde é como uma "prática de si", onde
o si é como um exercício de reflexão e superação das medidas do pensamento para garantir uma
vontade seletiva em meio ao eterno retorno das forças, isto é, um corpo que seleciona as forças –
valores, pensamentos, sensações, afetos – que o compõe. É no uso de todas e quaisqueres forças,
para além do bem e mal, na afirmação mesmo das forças que nos atravessam, atravessam os corpos
e os formam e os transformam e os destroem é que restitui-se e intensifica-se incessantemente uma

1
PELBART, P. P. Travessias do niilismo. Aula transcrita de 18/11/2004, Rio de Janeiro.
2
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. "Assim falou Zarathustra", II. Trad. Paulo César de Souza. SP: Cia. Das Letras, 2003.
mútua composição que é a vida. A vontade de potência dos corpos segue o curso do eterno retorno
das forças.
Para Nietzsche, este exercício, que segundo ele, poderíamos considerá-lo psicológico-
filosófico, é como que criativo, criador de hábitos e modos de agir, de valores e de gestos, seleção
de gostos e revigorante das vontades e dos pensamentos: re-configurador da alma. Formação de um
domínio, "perspectivas produzidas no tempo antes que se universalizem"3. E é isto que o corpo-
alma mais quer, este é seu mais ardente desejo: "crear por encima de sí"4, disse Zarathustra – o
corpo usa as mil almas, as mil forças que o atravessa para adequar-se, para superar(-se) frente as
forças que também querem destruí-lo. É um combate perpétuo e criativo. Isto é, ele não cessa de
repetir e diferenciar-se. Para Nietzsche, parece que apostando nisso ele segue o curso sem-sentido e
intempestivo do caos criativo. Eis o eterno retorno.

II.
O "pensamento do eterno retorno" possui uma dupla perspectiva e função na obra
nietzscheana, assim como Gilles Deleuze5 destaca: por um lado, como doutrina cosmológica e
física; por outro, como pensamento ético e seletivo. Neste último, o qual nos interessa para pensar
as "práticas de si" em Nietzsche, Deleuze formula a síntese prática deste pensamento: "O que tu
quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorno". Esta formulação demonstra
como o filósofo alemão pensa uma ética com respeito as forças, os impulsos, as vontades. As forças
estão em movimento perpétuo, num constante retorno a se diferenciar e fazem dos corpos seu
cultivo diferenciante. Os corpos precisam das forças para se manter, mas são constantemente
atacados por elas, sofrem pressão, são deformados.
Para Nietzsche, só vontades que queiram afirmar as forças, não retê-las, nem obstruí-las,
fazem um corpo se manter vivo, ativo, criando-se. Uma vontade que vai além da "vida", que se
idealiza ao idolatrá-la ou odiá-la, e assim, quer mais vontade. Quer poder. Uma ética que está
preocupada não mais com "oposições" e "dualismos" das forças, com o bem e o mal que elas podem
causar, já que o bem e o mal é sempre relativo as configurações que toma o corpo sob a influência
das forças. É uma existência ativa e intensiva do corpo exercer estas forças, de conduzi-las e
potencializá-las6.
No aforismo 341 da Gaia Ciência, "O maior dos pesos", como num relato de um terrível
pesadelo ou devaneio, Nietzsche escreve sobre a possibilidade de um demônio lhe contar que "esta
vida, como você a esta vivendo e já viveu, você terá de viver incontáveis vezes; nada haverá de
novo nela (...)". A preocupação com o eterno retorno se demonstra, então, a necessidade de uma
3
PELBART. Travessias do niilismo.
4
NIETZSCHE, F. Así habló Zarathustra. Trad. Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2009.
5
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes. RJ: Editora Rio, 1976.
6
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta. "Pensamento nômade". Trad. Milton Nascimento. SP: Iluminúras, 2006. Numa
passagem deste texto, Deleuze postula que o caráter revolucionário de Nietzsche está no seu método de pensamento, de
configurar as forças: "é o método nietzscheano que faz do texto de Nietzsche, não mais alguma coisa a respeito da qual
seria preciso perguntar 'é fascista, é burguês, é revolucionário em si?' – mas uma campo de exterioridade em que se
defrontam forças fascistas, burguesas e revolucionárias."
afirmação total desta vontade que cria, desta vontade que triunfa sobre outras e aplica sua direção,
sua forma. São essas vontades e o eterno retorno criador destas vontades que Nietzsche quer
cultivar através de sua filsofia. Uma filosofia que não mais se culparia e se ressentiria, não mais
encontrando nos erros do passado obstáculos para o futuro, mas encontraria neles o inesperado que
instiga a mudança; não mais procuraria conceitos absolutos nem verdade inquestionáveis, mas
procuraria elaborar e reconfigurar os pensamentos e as metas de um corpo conforme a
potencialização deste corpo, conforme sua necessidade de ir superando seu próprio padecimento.
Assim Nietzsche não rejeita as teorias filosóficas pela sua falsidade ou as vangloria pela sua
demonstração lógica; ao contrário, vê nelas testemunhos de esforços, de estratégias para a
sobrevivência, valorações que implicam num tipo de vida, como configurações de pensamento,
medidas de ação, práticas políticas para exercer a vontade de criar. E é no estudo delas e no modo
como se apropria delas e as transforma para dar novas medidas a si próprio, libertando um pouco e
ainda mais o espírito, é que segue-se num cuidado e num ir além de si.
Todavia, neste exercício de criação, a própria criação é uma retomada de tudo, um constante
selecionar as forças atemporais e intempestivas. É interessante notar como Nietzsche acha
insuportável hábitos duradouros e prefere os hábitos breves como forma de refinar o gosto, de trazer
à tona impulsos fortes e dominantes para logo desaparecerem, trazendo um alívio e satisfação
mútuas, estendendo uma abertura para novos desejos que se avizinham. Mas nada poderia ser mais
insuportável para o filósofo do que uma "vida sem hábito algum, uma vida que solicitasse
continuamente a improvisação". A vida, apesar de se se manter e nutir com as mudanças, precisa
passar por estágios de aprofundamento, de experimentação, de superficialização de suas forças. Ela
precisa se alimentar dos sabores e saberes que os hábitos nos permitem ensejar, descobrir, se
aproximar. É nos hábitos que encontramos a espécie de experimentação do sujeito, que desdobra-se
e reconfigura-se a partir deste novo gosto, nova vontade adquirida pelo hábito. Assim, uma vida
criadora não é irresponsável e não é a esmo, mas num passo firme, como um viajante que é
acolhido, realiza trocas, agradece e vai embora.

III.
O eterno retorno é, então, um retorno do mesmo ou do idêntico, mas de uma identidade com
a própria característica das forças, a ver, sempre diferentes, sempre inconstantes, mas
intensivamente incistentes, não cessam de voltar e de diferir. A identidade em Nietzsche esta
constantemente atrelada a uma alteridade radical. A identidade a qual se procura investir é aquela
"inexpresable y sin nombre es aquello que constituye el tormento y la dulzura de mi alma, y que es
incluso el hambre de mis entrañas"7. Uma identidade que é uma alteridade que deforma, que
desindentifica constantemente para que o corpo vá além, procure novamente novas forças com as
quais possa continuar. Assim, essa identidade-alteridade procurará ser espírito-livre.
Mas qual seria, na prática, o exercício para um espírito-livre? E de que maneira o espírito é

7
NIETZSCHE. AhZ. "De las alegrías y de las pasiones".
também o corpo, e o corpo é uma confluência de almas, de forças, que formam um espectro, um
simulacro de si, tal como um espírito?
É assim que Nietzsche inicia identificando o sangue com o espírito, ao dizer que escrevendo
com sangue verás que dele é feito o espírito. Sangue e espírito, linguagem e corpo. É nessas
ambivalências que circulam as práticas de si – exatamente como um exercício ético-poético, fazedor
de seu modo de viver.
Escrever com sangue é escrever com forças: é escrever com riscos, com perigos, com
excrementos, nervos, com vísceras, com fluídos. É escrever com palavras assim como com fluxos,
onde há de se fazer um enorme e curto esforço de expressá-los, tal como um gesto, um ato. É este o
tpo de escrita ético de Nietzsche, isto é, é esse seu jeito de cultivar os hábitos breves e ter impulsos
imperiosos. Mas é este também sua escrita poética, aforística, sentencial, fragmentária. Assim como
um Zarathustra, filósofo deste calibre, quer assumir e afirmar seus atos sem que nada o faça querer
voltar atrás, assim também é com seus escritos, os quais ele quer que aprenda-se por memória, pelo
espírito. Ele quer provocar mudanças radicais quando precisar. Tão somente ler é acreditar na sua
superioridade pela erudição, sendo que esta é exatamente o processo reativo das forças, voltando-se
contra si próprias, num processo decadente.
Mas Zarathustra quer inscrever-se nas alturas, quer "volver pensable todo lo que existe" 8.
Quer poder pensar o impossível, escrever o impensável. São nestas regiões onde as idéias e o ar são
"rápidos e puros" e o perigro é eminente que o espírito se enche de uma "alegre malícia" 9. Neste ar,
os pensamentos ganham velocidade e periculosidade, conseguem, ao superar o gelo das alturas,
adentrar a esgtranhas visões e criar para si outras ilusões, agora "duendes" que afugentam os
fantasmas, "os ideais ressentidos", fracassos sedimentados que cobram uma dívida. São os duendes
que nos fazem rir dos fantasmas, pois num ar puro e rarefeito, a claridade é outra, são as novas
ilusões, são valores superiores, pois superaram propriamente o sofrimento causado pelas vontades
dos antigos. Não se ressente, não pesam os valores que possuiu uma vez e desiludiu-se com,
descartando-os. Neste ponto, opera-se uma transvaloração dos valores: Zarathustra se vê livre do
"mais pesado dos pesos", ele não teme escolher o que deseja novamente diferente e ri do negrume e
do carregamento, dos arrependimentos e das culpas que é essa nuvem que assola os homens –
nuvem tempestuosa da história, dos valores, da moral, uma virtualidade condenada, enclausurada.
Agora ele ri, "de todas las tragedias, de las del teatro y de las de la vida" como sintoma de uma
ousada leveza para com a vida, que não é uma falta de seriedade, mas uma despreocupação, uma
ironia, uma violência para com ela: "así nos quiere la sabiduría" – alcança a gravidade pela qual é
impelido a, como guerreiros que sabem lutar por, elaboram e dominam modos de viver, levando-os
a uma excelência singular e inominável, mas não se apegando definitivamente a nada. Seu único
comprometimento é superar-se. Quando não mais precisar dos velhos hábitos e modos, quando

8
NIETZSCHE. AhZ. "De la superación de si mesmo".
9
"Una alegre maldad". A partir de agora, quando não informado o contrário, as citações são do "Del leer y el
escribir", que colocarei na tradução espanhola e, quando conveniente para não perder o sentido da frase, traduzirei
alguns fragmentos ou palavras para o português.
estes falharem e ele precisar mudar, nada pesará ao abandoná-los 10. O método de Zarathustra, contra
o fanatismo e atravessando sempre o foço do niilismo, não deixa de acreditar na possibilidade de
um devir melhor – apenas por ser diferente, diria Deleuze11.
Para Zarathustra reclamar da vida não é digno de quem a ama. Por mais que soframos, isto
não é desculpa para não saber amá-la. Pois a amamos a vida não porque estamos habituados a viver,
mas a amar. Amar, aqui, é como uma configuração afirmativa e criadora, que quer ir além de si,
alterar-se por, pois "siempre hay algo de demencia en el amor. Pero siempre hay también algo de
razón en la demencia". O amor tem esta potência "louca", de ir além de uma ordenação lógica, da
moral, das ações, dos acontecimentos. Amor pode ser também essa vontade de superar-se e
dilacerar-se, destituir-se de sua própria forma, uma vontade que se eleva à força e rompe com o
corpo, alteração radical, vontade de morte: "Amar y hundirse en su ocaso: estas cosas van juntas
desde la eternidad. Voluntad de amor: esto es aceptar de buen grado incluso la muerte. ¡Esto es lo
que yo os digo, cobardes!"12. Mas a loucura, este desgoverno volitivo tem suas razões de ser. É esta
loucura que propicia o próprio movimento do eterno retorno. E assim, é um corpo-espírito que está
livre – de seu próprio fardo e segue sua própria sombra, esconde-se e revela-se nas suas próprias
voracidades13. Uma configuração de "almitas ligeras, locas, encantadoras, volubles" que fazem o
corpo-espírito correr, voar, e fazem Zarathustra chorar e cantar. E logo afirma: "yo no creería más
que en un Díos que supiese bailar". Um deus – uma meta, um ideal, uma ilusão, um além –, um
mais que necessariamente haveria de dançar e alterar-se conforme a música do confrontamento
entre fluxos. Nada mais profano que uma educação de si que está além da formação para algo.

10
É possível encontrar uma instigante relação prática entre a obra de Nietzsche e a do escritor Carlos Castañeda, nas
suas configurações até mesmo socráticas-fabulatórias-aforísticas, bem como nas configurações éticas e conceituais
dos pensamentos-ensinamentos de cada autor. A ver, neste ponto sobre uma ética que transvalora e afirma,
Castañeda escreve em Uma estranha realidade: "Eu tinha deixado de pensar na dureza da minha vida antes de
começar a ver." Sem me alongar muito neste ponto, o "trabalho de ver", no livro de Castañeda, consistia em
aprender a realidade de uma maneira amoral, como que de uma certa maneira destreinando o olhar para perceber e
ver outras as forças agindo e com isso, tendo poder de ser interferido e interferir nelas. Em outra passagem, Dom
Juan, o mestre de Castañeda, lhe diz: "um homem desprendido, que sabe que não tem possibilidade de evitar sua
morte, só tem uma coisa em que se apoiar: o poder de suas decisões (...) sua opção é sua responsabilidade, e uma
vez feita, não há mais tempo para remorsos ou recriminações. Suas decisões são finais, simplesmente porque sua
morte não lhe permite tempo para se agarrar a nada."
11
Aqui, cabe outra menção à obra de Castañeda, em Uma estranha realidade, onde pode-se entender este exercício
para a grande saúde no conceito de "loucura controlada" – "É possível insistir, insistir realmente, mesmo sabendo
que o que se está fazendo é inútil – disse ele, sorrindo. – Mas primeiro temos de saber que nossos atos são inúteis, e,
no entanto, temos de proceder como se não soubéssemos [já que é a única coisa que temos]. É esta a loucura
controlada de um feiticeiro [aprendiz das práticas xamãnicas]".
12
NIETZSCHE. AhZ. "Del inmaculado conocimiento".
13
A morte do "espírito do pesadelo", da "pesadez".

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