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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL


CINEMA E AUDIOVISUAL

MAURÍCIO TRINDADE TAVARES

O TRÁGICO EM MATHC POINT


A filosofia no cinema de Woody Allen

Niterói, RJ
2019
MAURÍCIO TRINDADE TAVARES

O TRÁGICO EM MATCH POINT: A FILOSOFIA NO CINEMA DE WOODY ALLEN

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Licenciado em Cinema e Audiovisual.

Orientador:
Prof. Dr. Alexandre da Silva Costa.

Niterói, RJ
2019
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
T231t Tavares, Maurício Trindade
O trágico em Match Point : a filosofia no cinema de Woody
Allen / Maurício Trindade Tavares ; Alexandre da Silva Costa,
orientador. Niterói, 2019.
39 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Cinema e


Audiovisual (Licenciatura))-Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Arte e Comunicação Social,
Niterói, 2019.

1. Tragédia. 2. Cinema. 3. Filosofia. 4. Woody Allen. 5.


Produção intelectual. I. Costa, Alexandre da Silva,
orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Arte e Comunicação Social. III. Título.

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164


MAURÍCIO TRINDADE TAVARES

O TRÁGICO EM MATCH POINT: A FILOSOFIA NO CINEMA DE WOODY ALLEN

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Licenciado em Cinema e Audiovisual.

Aprovado em ____/____/_____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre da Silva Costa — UFF
Orientador

___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Cardenuto Filho — UFF

___________________________________________________________________________
Prof. Lic.do Lucas dos Reis Tiago Pereira — UFF

Niterói, RJ
2019
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Maria de Nazaré, minha maior apoiadora desde o início.


Aos meus irmãos, Marília e Thiago, pela torcida, mesmo à distância, pelo meu sucesso.
Ao professor Alexandre Costa, pela disposição, generosidade e paciente orientação.
Ao professor e coordenador João Luiz Leocadio, pela dedicação ao seu trabalho e por sempre
atender minhas solicitações.
Aos amigos de longe, das minhas estadias entre Pará, São Paulo e Rio de Janeiro.
Aos amigos que fiz em Niterói, no curso de Cinema e Audiovisual e na Moradia Estudantil,
nessa universidade com um ambiente tão plural, onde pude experimentar vivências que me
servirão para a vida toda.
E, finalmente, ao acaso, pela sorte até agora.
RESUMO

Este trabalho consiste em uma análise do filme Match Point, do cineasta Woody Allen, em sua
relação com a filosofia do trágico. O trabalho é dividido em duas partes: a primeira aborda a
poética da tragédia dentro da tradição aristotélica, sua influência na estrutura das narrativas e a
relação com a obra estudada; em seguida, é analisada a filosofia do trágico, marcadamente em
relação a pensadores como Nietzsche e Schopenhauer e a similaridade de ideias com as de
Woody Allen. Posteriormente é feita a análise detalhada da obra, tanto no aspecto poético como
ontológico, e como este filme apresenta as ideias do trágico em seu enredo. A conclusão resume
o significado da narrativa em comparação com o conjunto da obra de Allen e a exposição de
ideias que se inserem dentro do seu imaginário trágico sintetizado em Match Point.
Palavras-chave: Tragédia. Cinema. Filosofia. Woody Allen.
ABSTRACT

This work consists of an analysis of the film Match Point, by filmmaker Woody Allen, in its
relationship with the philosophy of the tragic. The work is divided into two parts: the first deals
with the poetics of tragedy within the Aristotelian tradition and the influence on the structure
of narratives and the relationship with the work studied; then, the philosophy of the tragic is
analyzed, markedly in relation to thinkers such as Nietzsche and Schopenhauer and the
similarity of ideas with Woody Allen. Subsequently, a detailed analysis of the work is made
both in the poetic and the ontological aspects and how this film presents the ideas of the tragic
in its plot. The conclusion summarizes the meaning of the narrative in comparison to the whole
of Allen’s work and the exposition of ideas that fall within his tragic imaginary synthetized in
Match Point.
Keywords: Tragedy. Cinema. Philosophy. Woody Allen.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………...... 8

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRÁGICO……………………………….......................... 11

2.1 A poética da tragédia…………………………………..............................................11

2.2 A filosofia do trágico................................................................................................. 13

2.2.1 Schopenhauer e a vontade............................................................................ 14

2.2.2 Nietzsche e a ilusão apolínea........................................................................ 15

3 ANÁLISE DE MATCH POINT..............................................................................................18

3.1 Prólogo.......................................................................................................................19

3.2 Chris Wilton e o alpinismo social...............................................................................20

3.4 Tédio, dor e desejo..................................................................................................... 23

3.5 Crime e culpa............................................................................................................ 25

3.6 Epílogo...................................................................................................................... 28

4 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................... 35

OBRAS CONSULTADAS...................................................................................................... 36

FILMOGRAFIA...................................................................................................................... 37
8

1 INTRODUÇÃO

O objeto de análise que era inicialmente proposto para esta pesquisa investigava a relação
de influência do escritor Fiódor Dostoiévski sobre o cinema de Woody Allen, especialmente
em relação ao romance Crime e Castigo e à referência direta a ele presente em vários filmes do
diretor, tais como Crimes e Pecados (Crimes and Misdemeanors, 1989), Match Point1 (2005),
O Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream, 2007) e O homem irracional (Irrational Man,
2015). Dostoiévski é um autor cujo nome também vem a ser citado em muitos outros filmes
de Allen como em Maridos e Esposas (Husbands and Wives, 1992), onde Abe (Allen) compara
escritores como Tolstói e Turguêniev a pratos de comida e, ao ser questionado sobre
Dostoiévski, responde: “Dostoiévski é uma refeição completa, com vitaminas e germe de trigo”.
Em Igual a tudo na vida (Anything Else, 2003), Connie (Erica Leerhsen) comenta com Jerry
(Janson Biggs): “Não é Dostoiévski o escritor mais maravilhoso, comovente, talentoso?” Em
sua primeira fase no cinema, Allen também fez referência à obra do escritor russo na comédia
A Última Noite de Bóris Grushenko (Love and Death, 1975).

Essa notória influência deu início aos estudos que investigavam a relação entre os dois
autores. O aprofundamento da pesquisa evidenciou, no entanto, um tema mais abrangente. Ao
analisar as referências de Allen em seus filmes, foi nítida a similaridade de ideias com outros
autores como Nietzsche, Albert Camus, Schopenhauer, Machado de Assis, etc. E uma temática
comum: um imaginário trágico. Como recorte principal de pesquisa foi escolhido o filme Match
Point, pelo fato de Allen sintetizar “como em nenhum outro filme, o imaginário trágico que
permeia sua produção cinematográfica”2, e por ser um marco importante para o próprio Allen,
como ele mesmo sentenciou: “Match point é provavelmente o melhor filme que eu fiz. Isso é
estritamente acidental, só aconteceu de dar certo”3, afirmação que corrobora a própria premissa
do filme que é a influência da sorte na determinação da vida.

Para compreender o motivo de Allen atribuir essa importância a este filme é preciso
analisar os passos que foram dados em sua carreira cinematográfica e o desejo pela realização

1
Foi adotada para este trabalho a escrita do filme com o título original, Match Point, por ser uma locução
substantiva em português, com a grafia em inglês, no âmbito de alguns esportes como o vôlei e o tênis. Tem o
significado de ponto decisivo, que encerra a partida. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/match-point>.
Acesso em: 17 jun. 2019.
2
ALMEIDA, Rogério de; BECCARI, Marcos. A filosofia de Match point: síntese do imaginário trágico de Woody
Allen. Separata de: Rumores, [S. l.: s. n.], v. 11, n. 22, p. 41-58, jul./dez. 2017, p. 47.
3
SCHEMBRI, J. Words from Woody. The Age. 3 Mar. 2006. Disponível em: <https://bit.ly/2RiMxDR>. Acesso
em: 17 jun. 2019. (Tradução nossa).
9

de um filme de drama que fizesse sucesso tanto quanto seus filmes de comédia. Com o êxito de
Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), vencedor de quatro prêmios Oscar, Allen
sentiu-se confiante para apostar em um filme em gênero dramático, como há muito tempo
planejava, pois sempre teve mais admiração por filmes dramáticos do que cômicos:

Quando a comédia aborda um problema, ela brinca com ele, mas não resolve.
O drama trabalha a questão de um modo emocionalmente mais satisfatório.
Não quero parecer brutal, mas existe algo de imaturo, de segunda linha, em
termos de satisfação, quando se compara a comédia com o drama.4

A aposta de Allen foi Interiores (Interiors, 1978), inspirado na peça As Três Irmãs (Tri
Sestri, 1900) de Anton Tchekhov e no filme Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972) de
Ingmar Bergman. A obra contava a história de três irmãs e seus conflitos após a separação dos
pais e o transtorno obsessivo da mãe. Sobre o resultado do filme, Allen declarou: “Quando fiz
Interiores, eu esperava, se o filme tivesse maior sucesso comercial, que eu pudesse ficar na
trilha dramática. Mas não foi nem remotamente um sucesso comercial”5. Em 1980, Allen
investiu novamente em um filme dramático: Memória (Stardust Memories), inspirado em 8 e
½ de Federico Fellini, o drama fala sobre Sandy Bates (Allen), cineasta de sucesso com filmes
de comédia que não suporta o fardo da celebridade e tenta ser reconhecido como um artista
mais sério, mas todos querem que ele faça “filmes engraçados”. Novamente, o sucesso foi
abaixo do esperado, ao contrário do seu filme anterior, a comédia romântica Manhattan (1979).
O público respondia bem aos seus filmes cômicos, rejeitando seus filmes dramáticos. Ao longo
de toda a sua carreira, Allen mostrou-se um cineasta eclético, realizando desde leves comédias
a grandes dramas, nunca escondendo a intenção de realizar um filme dramático que obtivesse
grande sucesso de público e crítica.

No começo da década de 2000, alguns de seus filmes como Dirigindo no escuro


(Hollywood Ending, 2002), Igual a tudo na vida e Melinda e Melinda (Melinda and Melinda,
2004) “não passaram de 5 milhões de dólares”6. Até que em 2005 Allen conseguiu obter um
novo sucesso com Match Point e “para a crítica cinematográfica, a partir de Match Point houve

4
LAX, Eric. Conversas com Woody Allen: seus filmes, o cinema e a filmagem /Eric Lax. Tradução: José Rubens
Siqueira. 2. ed. São Paulo : Cosac Naify, 2010, p. 101-102.
5
Ibid., p. 446.
6
ANJOS, Ana Paula Bianconcini. Capital financeiro e empreendedorismo: considerações sobre o sujeito
contemporâneo em Match Point, de Woody Allen. 2010. 203 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p.12.
10

uma espécie de ressurgimento no interesse pela obra de Allen”7. A respeito da boa recepção a
essa obra, Allen declarou:

Todas as vezes que eu fiz um filme sério, jamais consegui um grande público,
de jeito nenhum. Match Point é uma conquista para mim, na medida em que
o filme pode ser sério, sem nenhuma piada, sem comédia, e conseguiu um
público de verdade [...]. Então me deu segurança para tentar fazer o que estou
fazendo agora, porque sinto que as pessoas podem realmente gostar.8

Embora não seja o primeiro filme de Allen a abordar questões ligadas à tragédia e nem o
primeiro filme a fazer referência ao romance Crime e Castigo, a escolha de Match Point se
justifica também pelo fato de ser um filme inteiramente de drama e a fazer uma autorreferência
como tragédia, como fica demonstrado em algumas passagens do filme. Allen declarou: “eu
esperava usar Match Point para colocar pelo menos um ou dois pontos do que constitui minha
filosofia pessoal, e sinto que consegui fazer isso”9.

Como método de estruturação, o desenvolvimento do trabalho foi dividido em dois


capítulos, com o primeiro, Considerações sobre o trágico, dedicado a esclarecer a diferença
entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico. A primeira seção analisa a tradição que se
insere dentro da descrição da tragédia por Aristóteles na Poética e a sua influência ao longo do
tempo no teatro, literatura e cinema. Em seguida é analisada a introdução do trágico pensado
em seus aspectos ontológicos, fase inaugurada pelos primeiros pensadores idealistas alemães,
até consolidar-se com autores como Schopenhauer e Nietzsche, com os quais Allen demonstra
ter muitas ideias em comum, como fica evidente em suas entrevistas transcritas no livro
Conversas com Woody Allen, onde Allen comenta sobre todos os seus filmes e fala sobre a sua
carreira ao jornalista Eric Lax, seu biógrafo oficial desde 1971.

O capítulo Análise de Match Point, dedicado à análise mais pormenorizada de Match


Point tanto em seus aspectos poéticos, como em seu significado trágico em termos ontológicos,
desvenda as referências que a obra traz como Crime e Castigo e Crimes e Pecados e a relação
que Match Point tem com outras obras lançadas posteriormente como O homem Irracional, que
também tratam de temas parecidos. Em seguida, é feita a conclusão da mensagem do filme em
comparação com o conjunto da obra de Allen, que, em diversos aspectos, também se insere
dentro de um imaginário trágico que é característico de sua filmografia.

7
Ibid., p. 12.
8
LAX., op. cit., p. 460
9
Ibid., p. 174.
11

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRÁGICO

A tragédia, como arte poética, tem seus preceitos descritos desde Aristóteles e sua
Poética, obra que inaugura a tradição de uma análise poética da tragédia como um estudo sobre
a técnica. A Poética exerceu tamanha influência que se pode dizer que “toda a história da
poética é a história de recepção a esta obra”10, destacando-se a sua influência no classicismo
francês e no século XVIII alemão. Aristóteles descreve os elementos da arte trágica, mas não a
ideia ou visão de mundo que será definida como trágica na Modernidade, até a fundação por
Schelling de uma filosofia do trágico que atravessa os períodos idealista e pós-idealista.

A filosofia de Kant, “ao colocar limites, foi sentida, na maioria das vezes, como aquilo
que deveria ser ultrapassado”11. Dessa forma, a tragédia foi pensada como solução para o
conceito da antinomia exposto na Crítica da razão pura e o conflito trágico foi pensado a partir
da teoria do sublime descrita na Crítica da faculdade do juízo, possibilitando a tragédia ser
pensada como a arte que apresenta uma ideia de contradição em forma de drama.

2.1 A poética da tragédia

A Poética de Aristóteles se divide em 26 capítulos e tem como objetos as espécies de


poiésis; de produção de uma obra; mímesis; as definições de tragédia e epopeia e a comparação
entre esses dois gêneros. Aristóteles classifica as obras de arte poéticas de acordo com seu
caráter mimético, cujas classificações são dadas quanto ao ritmo, linguagem e harmonia, com
uso conjunta ou separadamente desses elementos. Desse modo, a tragédia e a comédia se
utilizam dos três meios enquanto a epopeia faz uso apenas da linguagem. Para Aristóteles, o
enredo (mýthos) é a alma da tragédia, que é descrita como a imitação por atores de uma ação
de caráter elevado, é completa e de certa extensão, tem linguagem ornamentada pelo canto,
ritmo e harmonia. A tragédia suscita no espectador “compaixão e temor, provoca a purificação
dessas emoções”12.

10
SZONDI, Peter. Ensaio Sobre o Trágico. Tradução: Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004, p.
23.
11
ANDRADE, Pedro Duarte de. Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão.
2009. 277 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Departamento de Filosofia, Pontífica Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009, p. 48.
12
ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas: Ana Maria Valente. 3. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
2008, p. 48, 1449 b 26-27.
12

Na tragédia o temor é sentido pelo espectador com relação a que o acontecido ao


personagem possa acontecer com ele; a compaixão é sentida pelo espectador diante do
personagem que cai em infelicidade; “a compaixão tem por objeto quem não merece a desdita,
e o temor visa os que se assemelham a nós”13. Segundo Aristóteles, não é apenas o sofrimento
do outro que produz compaixão, mas sim o sofrimento imerecido do outro. A tragédia não deve
representar homens muito bons que passem da felicidade para a infelicidade ou homens muito
maus que passem da má para a boa fortuna, mas o homem cuja virtude ou justiça não se
distinguem muito e que, quando cai no infortúnio, é por ocasião de um erro (hamartía) e não
por que ele seja mau. Esse erro, a falta cometida por ignorância pelo personagem, faz com que
o enredo trágico desperte a compaixão do espectador.

A tragédia deve despertar essas emoções no espectador e tem como finalidade a


purificação dessas emoções, a catarse. Aristóteles diz que “o poeta deve suscitar, através da
imitação, o prazer inerente à compaixão e ao temor”14, portanto, o efeito catártico, a purificação
das emoções de temor e compaixão, tem por função substituir o sofrimento pelo prazer, “ou do
negativo em positivo, produzida pela catarse”15.

Os elementos descritos na Poética serviram de base para as produções literárias e teatrais


ao longo dos séculos, e também nos roteiros de cinema na atualidade. O filme Match Point, em
termos poéticos, também contém alguns elementos em conformidade com alguns preceitos
aristotélicos. Um exemplo é o erro que em Match Point, de modo contrário ao descrito na
Poética, não é cometido por ignorância pelo personagem, e sim fruto de uma ação deliberada:
um assassinato premeditado. No entanto, este erro consiste em um erro de julgamento, “um erro
decorrente do mal julgamento do seu conflito íntimo (e trágico) de desejos, pois ele não calculou
que seu infortúnio viria”16. E nesse caso, o infortúnio do personagem se dá em função de não
alcançar a satisfação pessoal em um casamento infeliz, ainda que tenha conquistado seus
objetivos financeiros.

Embora muitos autores de cinema omitam a influência de Aristóteles em suas obras, este
dado pode ser constatado através da noção de intertextualidade onde “todo o texto se constrói

13
Ibid., 1453 a 5-7.
14
Ibid., 1453 b 12-14.
15
MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico - de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2006.
p. 32.
16
AQUINO, Cintia Sacramento. Preceitos aristotélicos na narrativa o cinema - em análise o filme Match Point, de
Woody Allen. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, [S. l.: s. n], ano 7, nº 11. p. 239-253. Dez. 2015,
p. 244
13

como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”17.


Desse modo, pode-se comparar, por exemplo, com o livro Manual do Roteiro de Syd Field,
“cujas ideias são muito semelhantes às contidas na Poética”18.

2.2 A filosofia do trágico

No âmbito da filosofia pós-kantiana, Schelling pensa na arte como forma de superar as


antinomias, “a grande novidade de sua reflexão sobre a arte é pensá-la como capaz de apresentar
o absoluto”19. Diferentemente de Kant, para quem a intuição intelectual capaz de captar a coisa
em si sem mediação é uma faculdade da qual o homem não dispõe, Schelling considera que a
intuição intelectual é capaz de apresentar o absoluto a partir da intuição intelectual estética.
Desse modo, o artista genial, através de sua intuição intelectual artística, é capaz de captar em
sua obra o absoluto infinito através do finito, já que a apreensão intuitiva do infinito só se
manifesta na arte. Assim, a filosofia se submete à arte em sua possibilidade de apresentar o
absoluto. Em suas Cartas sobre dogmatismo e criticismo, Schelling comenta Édipo Rei de
Sófocles e discorre sobre a aparente contradição presente na tragédia grega sobre a punição do
herói por um crime previsto pelo destino:

A tragédia grega honrava a liberdade humana, fazendo que seu herói lutasse
contra a potência superior do destino: para não passar além dos limites da arte,
tinha que fazê-lo sucumbir, mas, para reparar também essa humilhação
imposta pela arte à liberdade humana, tinha de fazê-lo expiar — mesmo que
através de um crime perpetuado pelo destino. [...] Era um grande pensamento
suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, para,
desse modo, pela própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade
e sucumbir fazendo ainda uma declaração de vontade livre.20

Trata-se de um conflito entre duas forças que leva à punição do herói que não sucumbe
sem luta, depois de decidir voluntariamente ser castigado por um crime inevitável. É uma
maneira que os gregos tiveram de provar a existência da liberdade pela perda da própria
liberdade. Para Schelling, no entanto, esse conflito não se dá na vida real, pois pressuporia uma
raça de Titãs, mas no campo da arte, em especial na tragédia, já que esta soluciona o conflito
entre liberdade e necessidade quando o herói sucumbe, “proclamando sua vontade livre, o que

17
KRISTEVA, Julia. Intodução à Semanálise. 2. ed. Tradução: Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 2005, p. 68.
18
AQUINO, op. cit. p. 241.
19
MACHADO, op. cit., p. 92.
20
SCHELLING, Friedrich Von. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. In: Escritos Filosóficos.
Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural. 1973. (Coleção Os Pensadores), p. 208.
14

é uma maneira de a tragédia grega honrar a liberdade”21. Assim o trágico ganha uma noção
ontológica e “Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer vão além de seus antecessores,
iniciando o desenvolvimento de um pensamento sobre o trágico que forma a tradição ou herança
teórica que chegará finalmente a Nietzsche, uma de suas mais sublimes expressões”22.

2.2.1 Schopenhauer e a vontade

Em sua principal obra, O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer


expõe as definições de representação e vontade. A representação é a manifestação, o fenômeno
da vontade e a vontade é a coisa em si. Uma das propriedades da vontade é ser una, indivisível,
existindo independentemente do tempo e do espaço. Há essencialmente uma unidade em todos
os entes, desde a matéria inorgânica até o mais individualizado que é o homem. No entanto, há
uma luta geral na vontade, um combate perpétuo da vontade consigo mesma. Essa disputa é
possível porque se dá no nível fenomenal, das vontades individuais, sob o princípio da
individuação. “Trata-se de uma única e mesma vontade que em todos vive e aparece, cujos
fenômenos, entretanto, combatem entre si e se entredevoram”23.

A vontade é um impulso cego, sem finalidade, indeterminado e livre. Os indivíduos têm


sua ação determinada pela vontade, portanto, a liberdade empírica é uma ilusão. A vontade
também não é um conhecimento. Este é uma manifestação daquela e, portanto, não pode guiá-
la. A respeito da definição da vontade em Schopenhauer, Woody Allen tem uma concepção de
mundo semelhante:

nós temos de aceitar que o universo é sem deus, e a vida é sem sentido, muitas
vezes uma experiência brutal e terrível, sem esperança […] na verdade estou
fazendo a pergunta: dado o pior, como podemos continuar, ou até mesmo por
que deveríamos escolher continuar? Claro, nós não escolhemos – a escolha
está impregnada em nós. O sangue escolhe viver.24

Para Schopenhauer não há felicidade duradoura enquanto estivermos submetidos ao


querer, à opressão da vontade. Um desejo satisfeito cede lugar a um novo desejo, nunca
satisfazendo a vontade, gerando o sofrimento. Dada a satisfação de um desejo, vem o tédio,
que é substituído por um novo desejo e assim por diante. A vida é essencialmente sofrimento

21
MACHADO, op. cit., p. 111.
22
Ibid., p. 48.
23
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e como representação. Tradução, apresentação, notas e
índice: Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p. 333.
24
LAX, op. cit., p. 172.
15

em função de um desejo que não admite felicidade duradoura. Podemos, no entanto, nos livrar
dessa situação através da contemplação artística pura, fazendo com que o mundo como vontade
desapareça e somente o mundo considerado como ideia permaneça.

Schopenhauer analisa a tragédia, em um primeiro aspecto, como o quadro geral da


natureza e existência humanas. Esse quadro é “a exposição do lado terrível da vida, a saber, o
inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a
queda inevitável do justo e do inocente”25. A tragédia também deve “apresentar a purificação
que esse sofrimento produz, exibindo a negação da vontade”26. O segundo aspecto da reflexão
sobre a tragédia diz respeito à apresentação do efeito trágico: a verdadeira finalidade da tragédia
para Schopenhauer é a resignação. Ao apresentar o conhecimento perfeito do mundo através da
catástrofe trágica, a tragédia conduz à renúncia, abdicação da vontade de viver, agindo como
um tranquilizante da vontade. Portanto, o objetivo da tragédia é provocar no espectador a
resignação pela apresentação dos sofrimentos humanos.

2.2.2 Nietzsche e a ilusão apolínea

Em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia, Nietzsche expõe os preceitos de sua


filosofia que é bastante influenciada por Schopenhauer, embora rejeite a teoria do efeito trágico
como resignação pela negação da vontade. “Os conceitos de Schopenhauer de ‘vontade’ e
‘representação’ podem ser vistos como os antepassados dos dois princípios artísticos
nietzschianos, o ‘dionisíaco’ e o ‘apolíneo’”27. A respeito de sua concepção estética de mundo,
Nietzsche diz que “a existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômenos
estéticos”28, daí a necessidade de esclarecer o míto trágico a partir do campo estético. A
interpretação que Nietzsche faz do trágico é proveniente da conciliação de dois princípios
artísticos que estavam permanentemente em conflito. As epopéias de Homero ressaltavam o
feito heróico, onde o herói encarava a dor, o sofrimento e a morte em nome da glória. Há, no
entanto, uma barreira intransponível entre os humanos e os deuses, já que estes são imortais,
enquanto o gênero humano “muda e passa como as folhas”29. Então Nietzsche encontra em

25
SCHOPENHAUER, loc. cit.
26
MACHADO, op. cit., p. 215.
27
SZONDI, op. cit., p. 67-68
28
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e pósfácil: J.
Guinsburg. 2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras. 1992, p. 141.
29
Ibid., p. 37.
16

Apolo o modelo que representa o princípio de individuação, o brilho e a aparência com a qual
o humano pode proteger-se contra a dor e o sofrimento através de uma ilusão artística.

Nietzsche não se define como apolíneo “porque vê nisso uma limitação ou uma
insuficiência, no sentido de que, abandonado a si mesmo, o saber apolíneo transforma-se em
saber racional”30. O segundo aspecto limitante da visão apolínea é não ser uma afirmação
integral da vida. Como uma proteção contra a dor e o sofrimento que não encara integralmente
a outra força artística da natureza que se impõe: o dionisíaco. O dionisíaco nietzschiano é o
culto das bacantes manifestado nos cortejos de mulheres que dançavam, cantavam e tocavam
tamborim em transe coletivo em honra de Dioniso. O culto de Dioniso significa, para
Nietzsche, a negação dos valores da cultura apolínea.

Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma


comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de,
dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamento. Assim
como agora os animais falam e a terra dá leite e mel, do interior do homem
também soa algo de sobrenatural: ele se sente como um deus, ele próprio
caminha agora tão extasiado e enlevado, como vira em sonho os deuses
caminharem.31

O culto dionisíaco, em vez de uma limitação e serenidade apolíneas, expõe um


comportamente entusiasmado, marcado pelo frenesi sexual e força cruel. Portando, se o
Nascimento da tragédia tem por base O mundo como vontade e como representação, os conceitos
schopenhaurianos de vontade e representação são transformados por Nietzsche em dionisíaco e
apolíneo, “o apolíneo pensado como individuação e o dionisíaco pensado como totalidade”32, o
uno originário. Há uma disputa e a posterior união desses dois impulsos deram origem à arte
trágica. Na oposição desses dois princípios, não é o horror dionisíaco que produz o sublime, mas
a imitação, a embriaguez em sua representação apolínea. Deste modo, a tragédia é arte na qual o
dionisíaco é apresentado sob a máscara apolínea a fim de tornar mais suportável o monstruoso
da natureza.

A finalidade da tragédia é, para Nietzsche, fazer o espectador aceitar o sofrimento com


alegria, como parte da vida, porque seu próprio aniquilamento não afeta a essência do mundo,
a vontade. Fundada na música através do coro, a tragédia dá o conhecimento do mundo e
proporciona a afirmação da vontade. Pela arte dionisíaca somos, por um momento, o ser

30
MACHADO, op. cit., p. 248.
31
NIETZSCHE, op. cit., p. 31.
32
MACHADO, op. cit. p. 254.
17

primordial, sentimos o desejo e o prazer de existir. A tragédia proporciona a consolação


metafísica porque convence o espectador de que, “sob o turbilhão dos fenômenos, a vida eterna
continua fluindo”33.

Woody Allen também demonstra uma compatibilidade de ideias com Nietzsche no que
se refere a ideia de uma “ilusão apolínea” para conseguirmos levar a vida adiante apesar do
horror da existência. Algumas personagens como Jasmine (Cate Blanchett), de Blue Jasmine
(2013) e Ginny (Kate Winslet), de Roda Gigante (Wonder Wheel, 2017), são mulheres que
vivem a ilusão de uma vida diferente daquela que possuem através de um relacionamento
romântico, mas que acabam desiludindo-se com a realidade. Allen não esconde sua afeição
pela leitura de autores trágicos como Nietzsche: “são os mais dramáticos e envolvidos com
questões da vida e morte, e falam dela de um jeito muito dramático”34.

33
NIETZSCHE, op. cit., p. 108.
34
LAX, op. cit., p. 126.
18

3 ANÁLISE DE MATCH POINT

Lançado em 2005, Match Point foi filmado na Inglaterra e conta a história de Chris
Wilton (Jonathan Rhys-Meyers), ex-tenista profissional que consegue emprego como professor
de tênis em um famoso clube de Londres, onde entra em contato com a influente família Hewett,
casando-se com Chloe (Emily Mortimer). Graças ao sogro, Chris consegue um emprego como
executivo e passa a dispor de um salário melhor. Chris se envolve em um caso extraconjugal
com Nola Rice (Scarlett Johansson), ex-noiva de seu cunhado Tom (Matthew Goode). Quando
Nola fica grávida, Chris a pressiona para que ela realize um aborto, ela se recusa e insiste para
que Chris abandone a esposa, o que ele diz que vai fazer. A gravidez indesejada de Nola
contrasta com a incapacidade de Chloe de engravidar.

O principal dilema enfrentado por Chris é abrir mão de sua confortável situação financeira
em troca de viver um grande amor, porém com uma vida mais dura. Sua solução consiste em
assassinar Nola. Para que não haja suspeitas, concebe um plano de assalto seguido de morte
que inclui a vizinha de Nola, uma senhora idosa, que é morta instantes antes de Nola. Os
policiais acreditam, em um primeiro momento, na hipótese de roubo relacionado a drogas, mas
encontram um diário comprometedor de Nola e a suspeita recai sobre Chris. No entanto, as
coisas se voltam a seu favor quando um traficante morto foi encontrado com a aliança da
senhora, fato que comprovaria a inocência de Chris.

A aliança da vizinha possui um notório valor simbólico. Quando Chris se livra dos
pertences da vítima de forma apressada, jogando-os no rio Tâmisa, a aliança bate na grade e cai
fora da água. Trata-se de uma analogia à bola de tênis batendo no topo na rede que é anunciada
no prólogo do filme. A aliança torna-se a prova que absolve Chris ao invés de condená-lo,
conforme a imagem da bola de tênis parecia indicar, graças ao traficante que, por acaso, achou-
a e tomou-a para si. Por fim, o protagonista é mostrado agraciado pela sorte, ao lado dos sogros,
cunhado, esposa e filho recém-nascido, com todos celebrando o nascimento de um novo
membro da família.

Com referências a Crime e Castigo de Dostoiévski, assim como ao filme Crimes e


Pecados, Match Point é um dos filmes em que Woody Allen aborda questões trágicas,
discussões existenciais acerca da conduta moral individual, onde Allen apresenta sua concepção
de mundo, um objeto de análise que se inscreve dentro da tragédia em filosofia.
19

3.1 Prólogo

Diferentemente do tradicional jazz tocado na maioria das aberturas de seus filmes, Allen
opta por exibir os créditos de Match Point com a ária Uma furtiva lágrima, na voz do cantor
Caruso, da ópera Elixir do Amor, que conta a história do jovem camponês Nemorino,
apaixonado pela bela e rica Adina35. As óperas são utilizadas em vários momentos-chave, como
música diegética ou extra-diegética, essa escolha “funciona como um comentário sobre a
ação”36 e também é possível comparar com a função que alguns autores atribuem ao coro na
tragédia grega que “através de suas opiniões e intervenções, procura estabelecer padrões
atitudinais, morais, religiosos e sociais”37. Esse recurso é empregado de forma mais explícita
por Allen em Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1996). As óperas também transmitem o
gosto pela arte erudita característico das classes altas europeias. Após o término dos créditos,
ainda com o fundo musical da ária, uma bola de tênis é jogada de um lado para o outro de uma
quadra, em câmera lenta, até bater no topo da rede e a imagem congelar, enquanto se ouve a
voz over de Chris Wilton:

O homem que disse “Eu prefiro ter sorte do que ser bom” sabia muito sobre a
vida. As pessoas têm medo de encarar como grande parte dela depende da
sorte. É assustador pensar que tantas coisas estão fora de controle. Existem
momentos em um jogo em que a bola toca a rede e, por um segundo, ela pode
ir para o outro lado ou voltar para o seu. Com um pouco de sorte, ela vai para
o outro lado, e você ganha. Ou talvez não, e você perde. (ALLEN, 2005)

A menção à sorte prenuncia a predominância do acaso e do pouco controle quanto aos


fatores sob os quais a vida é regida, pensamento este que anuncia o sentido do trágico que será
apresentado nesta obra. Neste ponto, é apresentada uma visão metafórica, comparando o jogo
à vida, “a rede é a dificuldade a ultrapassar, a bola é situação a resolver, uma situação difícil
em que se tem que ultrapassar alguma dificuldade (rede), situação onde se ganha se se avançar
(passar a rede) e onde se perde se a situação (bola) não avançar e ficar caída no nosso lado”38.
Desse modo, perder o jogo significa “perder na vida” e ganhar o jogo significa “ganhar na vida”.
Assim como a ópera, a menção ao jogo será utilizada em vários momentos do filme, como uma
alusão à vida, onde se pode ganhar ou perder e a sorte torna-se um fator determinante.

35
ANJOS, op. cit., p. 24.
36
Ibid., p. 24.
37
SCHEIDT, Déborah. A “muralha viva” da tragédia grega: o coro e as suas sutilezas. Separata de: NUPEM,
Campo Mourão: [S. n.], v. 2, n. 3, p. 49-57, ago./dez. 2010, p. 54.
38
TEIXEIRA, José. Metaftonímia, cognição e cinema: O caso de Match Point de Woody Allen. In: Macedo, Ana
Gabriela et alii. Estética, Cultura Material e Diálogos Intersemióticos – XIII COLÓQUIO DE OUTONO,
Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, p. 165-184, 2012, p. 173.
20

3.2 Chris Wilton e o alpinismo social

Ao apresentar-se ao entrevistador no complexo poliesportivo, Chris recebe a avaliação


positiva em função de seu currículo. O entrevistador adverte que se trata de um clube exclusivo,
Chris aceita o desafio. Esta primeira sequência após o prólogo indica o começo de uma ascensão
do protagonista ao prestar serviço para a elite britânica. Após conseguir o emprego, Chris aluga
um apartamento. O diálogo com o corretor de imóveis indica que com o seu salário Chris não
pode pagar por algo melhor. Após a exibição da rotina como instrutor de tênis, Chris é mostrado
lendo o romance Crime e Castigo de Dostoiévski, que em seguida é trocado pela coletânea de
ensaios Cambridge Companion to Dostoievski, o que pode revelar o interesse maior de Chris
pelos comentários à obra deste autor do que a obra original, o que se revelará uma estratégia de
montagem bem empregada. As sequências entre a monotonia do trabalho, a locação do
apartamento e a leitura da obra de Dostoiévski prenunciará como Chris garantirá sua ascensão
social.

Ao ser apresentado ao seu aluno Tom Hewett, Chris é definido como um bom analista
das falhas dos alunos. Aqui novamente é utilizado o recurso metafórico relacionado ao jogo,
onde Chris é descrito como um bom jogador. Ao fim da partida, Chris toma um drink com
Tom fora da quadra de tênis. Quando a conta chega, sua insistência em pagar demonstra um
orgulho em não causar má impressão em alguém de classe mais alta. Ao mencionar seu gosto
por ópera, Chris é convidado por Tom para assistir La traviata no teatro Royal Opera House.
O gosto por ópera, bem como a leitura de autores clássicos como Dostoiévski, é o que
aproximará Chris da família Hewett, membros das sociedades altas britânicas que cultivam
hábitos considerados refinados.

Após assistir à ópera e receber olhares curiosos de Chloe, Chris recebe o convite de Tom
para uma festa na casa de campo de seus pais. Na casa de campo, ao terminar uma partida de
tênis com Chris, Tom o chama de irlandês, marcando sua origem social. Chloe e Chris
conversam após jogarem, e ela questiona se ele gosta de dar aulas, ao que ele responde que
morreria se tivesse que fazer aquilo para sempre, “gostaria de fazer algo da minha vida, sabe?
Algo especial. Queria dar uma contribuição.” A postura de Chris demonstra o “arrivismo do
protagonista”39, ou seja, Chris é um alpinista social, alguém ambicioso que se determinou a
triunfar a qualquer custo, mesmo em prejuízo de terceiros. Dessa forma, em comparação com
a metáfora do jogo como representação da vida, ganhar o jogo, no caso de Chris, é alcançar o

39
ANJOS, op. cit., p. 147.
21

sucesso financeiro e uma vida confortável; perder o jogo significa continuar a ser um simples
instrutor de tênis, apenas um funcionário a serviço da elite britânica.

Ao conversar com Chloe, Chris diz que vai se trocar, pois não quer que os outros
convidados vejam um tenista suado. Ao contemplar a casa de campo onde os demais
convidados já chegaram, Chris parece se impressionar com a grande biblioteca da família,
novamente ao som de ópera, o ambiente luxuoso é apresentado. A postura de Chris, escondendo
suas origens, imitando o hábito dos mais ricos, procura demonstrar a sua estratégia como
jogador, metaforizando a vida como um jogo, como ficará novamente simbolizado através da
apresentação da personagem Nola Rice, quando Chris a vê pela primeira vez, depois de jogarem
pingue-pongue, ele dá sua investida:

CHRIS: Então, me diga, o que uma jovem e bonita jogadora americana de


pingue-pongue está fazendo no meio da classe alta britânica?
NOLA: Ninguém nunca te disse que você joga agressivamente?
CHRIS: Ninguém nunca te disse que você tem lábios muito sensuais?
NOLA: Extremamente agressivo.
CHRIS: Eu sou naturalmente competitivo. Você não gosta?
NOLA: Terei que pensar nisso por um tempo. (ALLEN, 2005)

Tom os encontra e apresenta Nola como sua noiva; quando ela sai, os dois a comtemplam,
Chris a deseja, mas Tom é o que detêm o objeto do desejo. As cenas seguintes mostram os
constantes passeios de Chris e Chloe e seu consequente envolvimento amoroso. Eleanor
(Penelope Wilton) e Alec (Brian Cox) demonstram maior simpatia por Chris do que por Nola
como futuro membro da família. Em conversa com seu pai, Chloe pede-lhe que inclua Chris
em uma das empresas da família. Aqui é demonstrada a influência muito mais significativa da
escolha dos que comandam do que da competência profissional. Durante o jantar em que os
casais se encontram, fica mais evidente a identificação social entre Nola e Chris diante dos
irmãos Hewett. Nola diz que vai pedir o mesmo que Tom e Chloe rejeita a opção por frango
assado feita por Chris e, por fim, Tom determina o que Chris irá comer. Tanto Nola quanto
Chris estabelecem o papel de alpinistas sociais ao se associarem aos Hewett tendo em vista uma
melhor condição de vida. Após realizarem o pedido, os casais discutem sobre o papel da sorte:

CHLOE: Eu não acredito na sorte, só no esforço.


CHRIS: Claro, esforço é essencial, mas eu acho que todo mundo teme admitir
a importância da sorte. Parece que os cientistas estão confirmando que toda a
existência está aqui por acaso, sem propósito, sem projeto.
CHLOE: Bem, eu não ligo. Eu amo cada minuto dela.
CHRIS: E eu a invejo por isso.
22

TOM: O que o vigário costumava dizer? “Desespero é o caminho da menor


resistência”. Algo estranho, não?
CHRIS: Acredito que a fé é o caminho da menor resistência.
TOM: Nossa! Meu Deus!
CHLOE: Podemos mudar de assunto, por favor? Nola falava de atuação, que
é muito mais interessante. (ALLEN, 2005)

Anteriormente a este diálogo, Chloe havia confirmado a oferta de emprego para Chris por
influência dela, apesar de dizer que acredita somente no esforço, a postura de favorecimento de
alguém próximo contraria o discurso do esforço pessoal que pressuporia um modelo de
ascensão exclusivamente meritocrático. O discurso da sorte condiz mais com o pensamento de
Chris, que neste caso teve a sorte de encontrar uma família abastada. O jogo, a metáfora
constante no filme, é perder ou ganhar e até o momento Chris parece estar ganhando. Após o
começo no novo trabalho, Chris presenteia Chloe com um CD de ópera que ele considera muito
valioso por expressar o sentimento trágico:

CHRIS: É muito raro. Tem algumas árias lindas. E a voz dele expressa tudo
o que é trágico na vida.
CHLOE: A vida te parece trágica?
CHRIS: E a você?
CHLOE: Eu a adoro. Vamos ficar em casa, jantar e ouvir a tragédia. (ALLEN,
2005)

A passagem expressa bem a visão de mundo conforme o ponto de vista de Chloe,


representante de uma classe alta britânica, acerca da conceituação de tragédia: algo a ser evitado
e, quando muito, somente apreciado em produtos artísticos como forma de entretenimento. Esta
postura está de acordo com análise de Adorno e Horkheimer em sua Dialética do
Esclarecimento:

A fusão atual da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como


depravação da cultura, mas igualmente como espiritualização forçada da
diversão. Ela está já presente no fato de que só temos acesso a ela em suas
reproduções, como cinematografia ou emissão radiofônica. [...] A indústria
cultural transforma-a numa mentira patente. A única impressão que ela ainda
produz é a de uma lengalenga que as pessoas toleram nos best-sellers
religiosos, nos filmes psicológicos e nos women´s serials, como um
ingrediente ao mesmo tempo penoso e agradável, para que possam dominar
com maior segurança na vida real seus próprios impulsos humanos. Neste
sentido, a diversão realiza a purificação das paixões que Aristóteles já atribuía
à tragédia e agora Mortimer Adler ao filme.40

40
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução: Guido Antônio de
Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985, p. 115.
23

3.3 Tédio, dor e desejo

Após estabelecer um relacionamento sério com Chloe e começar a trabalhar na empresa


do sogro, Chris poderia finalmente se ver contente por estar conquistando sua estabilidade junto
à família Hewett, no entanto, ao mesmo tempo em que se dá sua escalada social, o desejo por
Nola aumenta, enquanto o interesse por Chloe não acontece da mesma maneira. Após Nola não
ter ido bem em um teste como atriz, Chris a acompanha para um drink. Nola adverte a Chris
que a única falta que ele pode cometer é flertar com ela. Esta advertência, contudo, não é
atendida e o amor se consuma entre os dois na casa de campo dos Hewett, após Nola ser
agredida por Eleanor a respeito do insucesso em sua carreira como atriz. Mesmo com o desejo
por Nola, Chris casa-se com Chloe e passam a viver juntos, mas a rotina e falta de entrosamento
entre o casal, evidenciada na cena em que Chloe relata notícias do jornal ao marido enquanto
ele limita-se a concordar com ela, mostra o tédio do protagonista em sua vida conjugal. A
relação entre o desejo e o tédio de Chris pode ser explicada na descrição de Schopenhauer em
O Mundo como vontade e como representação:

Portanto, entre querer e alcançar, flui sem cessar toda vida humana. O desejo,
por sua própria natureza, é dor; já a satisfação logo provoca saciedade: o fim
fora apenas aparente: a posse elimina a excitação, porém o desejo, a
necessidade aparece em nova figura; quando não, segue-se o langor, o vazio,
o tédio, contra os quais a luta é tão atormentadora quanto contra a
necessidade.41

Mesmo com a situação financeira bem encaminhada, algo que sempre perseguiu, Chris
não sente o desejo por Clhoe da mesma forma que sente por Nola com quem mantém um caso
depois que ela rompe o relacionamento com o seu cunhado Tom. Ela começa a pressionar Chris
para que ele deixe Chloe e revela que está grávida, ele começa a rejeitar a esposa e a
negligenciar seu trabalho, onde diz se sentir claustrofóbico. O encontro com o amigo tenista
explicita bem o seu dilema ao dizer que gosta do padrão de vida que conseguiu junto à Chloe,
mas que também não vê nenhum futuro ao lado de Nola. Neste ponto da narrativa a situação
do personagem se assemelha à Judah Rosenthal (Martin Landau) no filme Crimes e Pecados,
onde Dolores Paley (Angelica Huston), amante de Judah, pressiona-o para que ele revele o caso
dos dois e abandone sua esposa, ameaçando ainda revelar seus delitos financeiros. Judah
esclarece a situação ao irmão Jack (Jerry Orbach) e este o aconselha a tomar uma decisão
radical:

41
SCHOPENHAUER, op. cit., p. 404.
24

JUDAH: Esta mulher vai destruir tudo o que construí.


JACK: Isto é o que estou dizendo, se essa mulher não quer ser razoável, dê o
próximo passo.
JUDAH: O quê? Ameaças? Violência? Do que está falando?
JACK: De se livrar dela. Conheço muita gente. O dinheiro fará o resto.
JUDAH: Isso não merece nem comentário. É um absurdo! (ALLEN, 1989)

Em Crimes e Pecados, Judah Resenthal ainda demonstra reservas morais ao pensar no


assassinato da amante, algo que está relacionado à sua “fagulha de religião” 42, como fica
demonstrado na cena em que ele recorda de sua infância onde sua família discute sobre a
existência de Deus. Já em Match Point, Chris considera a religiosidade do seu pai, que era
pastor, um “fanatismo desprovido de sentido”. Quando Chris decide-se por assassinar Nola,
comprando ingressos para um musical para reforçar seu álibi e furtando a arma do sogro, ele
volta a apresentar um entusiasmo em seu trabalho. Ao fechar negócio com uma empresa
japonesa, o executivo Rod Carver (Simon Kunz) elogia o seu trabalho: “Achei que você
mostrou algumas ideias interessantes para desenvolver a empresa deles.” Chris afirma: “Estou
animado com esse empreendimento de risco.” Ao sair do escritório com a bolsa de guardar
raquetes onde está guardada a arma, Rod elogia a boa aparência e vigor do jovem executivo:
“Vai jogar tênis mais tarde? Energia incrível. Adoro isso. Sinto inveja”.

O entusiasmo de Chris pode ser comparado ao que é apresentado no filme O homem


irracional, onde o professor de filosofia Abe Lucas (Joaquim Phoenix) vive em crise
existencial, depressivo e faz uso abusivo de bebidas alcoólicas. Ao ouvir o relato de uma mulher
sobre a possível perda da guarda de seus filhos pela decisão de um juiz antiético, Abe toma uma
decisão: assassinar o juiz. Ele planeja o crime que considera perfeito por não estar diretamente
envolvido, e, portanto, acredita que as suspeitas nunca recairão sobre ele. Após sua aluna, Jill
Pollard (Emma Stone), com quem tem um caso, descobrir a verdade, Abe ainda justifica-se:

JILL POLLARD: Isso é loucura, Abe!


ABE LUCAS: Eu peço que esqueça as hipóteses corriqueiras e confie em sua
experiência de vida a fim de ver o mundo como realmente é. Temos que
romper com nossa aceitação rotineira do mesmo. No segundo em que eu
decidi fazer esta ação, meu mundo mudou. Você percebeu, subitamente
encontrei razão para viver, podia fazer amor, experimentar sentimentos por
você, porque fazer isso por esta mulher deu significado à minha vida.
(ALLEN, 2015)

Após a morte do juiz por envenenamento com cianeto, Abe experimenta uma sensação
de entusiasmo, disposição e vontade de viver como não havia antes, como se tivesse conseguido

42
LAX, op. cit., p. 369.
25

um propósito para a sua existência ao cometer o assassinato e promover a justiça para alguém.
Em Match Point, Chris também experimenta um entusiasmo, ainda que momentâneo, quando
está prestes a executar seu plano de assassinato. Trata-se, em ambos os casos, de um sentimento
contrário à culpa que é sentida por Raskólnikov em Crime e Castigo, um aspecto que demonstra
uma postura diferente de Woody Allen em relação à Dostoiévski quanto à redenção pela
expiação do pecado que é característico da “hiperreligiosidade”43 de Dostoiévski, contrário ao
demonstrado por Woody Allen.

3.4 Crime e culpa

Depois de ter combinado com a amante o horário em que deveriam se encontrar, Chris
põe em prática o seu plano, saindo do escritório e se dirigindo ao prédio de Nola. Sob a música
extra-diegética da ópera Otelo de Verdi, Chris sobe as escadas e se dirige ao apartamento da
Sra. Eastby, batendo desesperadamente na porta. Ele a convence a deixá-lo entrar mencionando
o encontro passado: “a Nola perguntou alguma coisa sobre os problemas que você estava tendo
com ratos e você mencionou algo sobre manteiga de amendoim”, em seguida ele diz que irá
checar o sinal de tevê enquanto a Sra. Eastby se retira para tomar seu remédio. Toda a sequência
se dá de maneira corriqueira, sem que se levante suspeitas sobre Chris em sua posição de alto
executivo. Após atirar na Sra. Eastby, Chris começa a recolher objetos da casa assim como a
aliança da vítima para simular um assalto. Quando Nola chega no horário combinado, Chris
esconde-se ao lado do elevador e a surpreende, atirando.

Os assassinatos se assemelham aos cometidos por Raskólnikov em Crime e Castigo, onde


o protagonista entra na casa da velha usurária com o pretexto de mostrar-lhe uma cigarreira de
prata como objeto de penhor, após ela ter descoberto a enganação, corre em direção a
Raskólnikov, quando ele pega seu machado e “mal se dando conta de si, e quase sem fazer
força, quase maquinalmente, baixou-o de costas na cabeça dela”44. Após assassiná-la o
estudante recolhe os pertences da senhora como o cordão, a bolsa de camurça, um anelzinho e
inicia o saque à residência:

Lançou-se a revirar tudo. De fato, no meio da traparia haviam sido colocados


objetos de ouro — provavelmente tudo penhores resgatados e não resgatados
—, pulseiras, correntes, brincos, alfinetes etc. Alguns estavam em estojos,
outros simplesmente embrulhados em papel de jornal, mas em folhas duplas,

43
PARANHOS, Flávio. Cinema & Filosofia. [S. l.]: Flávio R. L. Paranhos, 2013, l. 344. (E-book).
44
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 79.
26

com cuidado e zelo, e amarrados em círculo por cadarços. Sem qualquer


demora, ele passou a encher os bolsos da calça e do sobretudo, sem examinar
nem abrir os embrulhos e estojos; mas não teve tempo de pegar muita coisa...45

Da mesma forma que Raskólnikov, Chris é inexperiente, usa uma arma rústica para
cometer o assassinato, recolhe os pertences da vítima e quase é flagrado pelos vizinhos. No
entanto, a diferença se dá pelo fato de que o estudante russo comete o segundo assassinato
somente porque Lisavieta, a irmã da usurária, surpreendeu o assassino. Em Macht Pont, a sra.
Eastby é morta e tem seus pertences roubados para despistar o assassinato de Nola.

Após o assassinato, Chris encontra-se com Chloe para assistirem a um espetáculo musical
e assim reforçar seu álibi, enquanto a polícia ignora uma testemunha negra e o inspetor parece
confirmar a hipótese de roubo relacionado a drogas. No dia seguinte, ao tomarem café da
manhã, Chloe lê a notícia da morte de Nola. Chris pede para ver a notícia confirmando a versão
de assassinato relacionado às drogas naquela região. Eleanor liga para Chloe para comentar a
notícia: “Eu nunca me dei bem com ela, mas isso é simplesmente trágico. É trágico.” A ênfase
dada à palavra “trágico” reforça a metáfora da tragédia que o filme pretende ser, algo que aos
olhos de uma família abastada significa apenas um fato calamitoso relacionado ao cotidiano do
subúrbio de Londres, ao passo que o acontecimento prenuncia a ausência de justiça que se dará.
Ao retornarem à casa de campo, Chloe diz que dará uma boa notícia, Chris está guardando a
arma que foi usada no crime, de forma tranquila, contrastando com o devaneio de Raskólnikov:

Súbito lembrou-se de que a carteira e os objetos que havia tirado do bauzinho


da velha ainda continuavam todos espalhados pelos seus bolsos! Até então não
lhe ocorrera tirá-los e escondê-los! Não se lembrara deles nem agora enquanto
revistava a roupa! O que está acontecendo?46

Quando Chloe anuncia a gravidez e todos comemoram, Chris ausenta-se para atender o
telefone, é o detetive Banner, que garante a discrição do interrogatório ao executivo. Ao se
dirigir à polícia, Chris joga os pertences da sra. Eastby no rio Tâmisa, ao notar que ainda há a
aliança da vítima em seu bolso, ele apressa-se a jogá-la e vira-se de costas. Nesse momento, em
câmera lenta, a aliança é mostrada sendo arremessada até bater a grade de proteção e cair fora
da água. Trata-se de uma rima visual que faz uma analogia ao prólogo que dizia a respeito da
bola de tênis: “Com um pouco de sorte, ela vai para o outro lado, e você ganha. Ou talvez não,
e você perde.” O espectador conclui a partir daí que o protagonista será pego.

45
Ibid., p.93.
46
Ibid., p.103-104.
27

Na delegacia, ao ser interrogado sobre a última vez que viu Nola, Chris mente, porém, ao
ser confrontado com as anotações no diário dela, ele admite que teve um relacionamento com
Nola, no entanto, usando de sua posição social e o nome da família Hewett, pede discrição por
parte dos policiais. O inspetor Dowd parece convencido de que Chris é inocente, preferindo
acreditar na versão de um crime ligado a drogas. Já o detetive Banner ainda mantém suspeita
em relação a Chris. Quando está de volta à casa, Chirs dorme em cima de uma escrivaninha
sobre os papéis do trabalho, ele acorda ouvindo barulhos e se dirige à cozinha quando o
fantasma de Nola aparece. Chris justifica-se: “Não foi fácil, mas quando chegou a hora, eu
puxei o gatilho. Você nunca sabe quem são os seus vizinhos até que haja uma crise. Você
aprende a empurrar a culpa para debaixo do tapete e continua. Você precisa, caso contrário ela
te soterra.” Neste ponto, o fantasma de Sra Eastby aparece:

SRA. EASTBY: E quanto a mim, a vizinha ao lado? Eu não tinha nenhuma


relação com esse caso terrível. Não há problema algum em eu ter que morrer
como uma espectadora inocente?
CHRIS: Os inocentes têm algumas vezes que morrer para abrir o caminho para
um grandioso plano. Você foi um dano colateral.
SRA. EASTBY: Assim como foi o seu próprio filho!
CHRIS: Sófocles disse: “Nunca ter nascido pode ser a melhor dádiva de
todas.” (ALLEN, 2005)

A passagem expressa o sentimento de Chris em relação a matar um inocente: é apenas


um efeito colateral. Neste sentido, pode ser comparado ao pensamento com que Raskólnikov
usa para justificar o assassinato da velha usurária, ao reduzir o valor de uma vida humana ao
compará-la com uma barata que deveria se esmagada. Ao se referir ao filho não nascido, Chris
menciona Sófocles na tragédia Édipo em Colono, na voz do coro:

Melhor seria não haver nascido;


como segunda escolha bom seria
voltar logo depois de ver a luz
à mesma região de onde se veio.47

Esta afirmação transmite a ausência de valor e sentido na existência. Algo que também é
apresentado no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, “o livro de
cabeceira de Woody Allen”48, onde é dito algo parecido: “Não tive filhos, não transmiti a

47
SÓFOCLES. Édipo em colono. In: Trologia Tebana, vol. I. Tradução e apresentação: Mário da Gama Kury. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1990, p. 170.
48
ALMEIDA, op. cit., p. 50.
28

nenhuma criatura o legado da nossa miséria”49. Ainda na cena do sonho do protagonista, Nola
adverte: “Se prepare para pagar o preço, Chris. Você foi desajeitado, deixou muitas pistas, quase
implorando para que alguém descobrisse”, ao que Chris responde “seria bem apropriado se eu
fosse pego e punido. Pelo menos seria um pequeno sinal de justiça, uma pequena medida de
possibilidade de sentido”. A ausência de sentido a que Chris se refere é o que o alicerça a tomar
suas decisões, pois acredita que não há nenhuma intervenção divina que possa puni-lo, de modo
que a punição, se viesse, poderia funcionar como redenção do personagem. O espectador,
lembrando-se da aliança que caíra no chão, pode esperar que essa punição acontecerá e assim
se dará o desfecho “adequado” à gravidade do delito.

3.6 Epílogo

O detetive Banner acorda durante a noite, diz já saber como Chris matou Nola e a Sra.
Eastby. Ao descrever para o inspetor Dowd sua versão de como ocorreram os assassinatos, que
corresponde exatamente ao que aconteceu, Dowd diz não querer trazer más notícias, mas que
houve um tiroteio na madrugada e que um traficante havia sido achado com a aliança na vítima.
O detetive Banner ainda não parece convencido:

INSPETOR DOWD: Eu sei, eu sei, o seu caso parecia bom, vários motivos.
Mas, o motivo dele era bem forte também. Heroína. Um viciado com uma
longa história de condenações. Morto por um dos seus, sem dúvida. Vamos
lá, eu pago o seu café da manhã, você pode me traumatizar com o resto dos
seus sonhos.
DETETIVE BANNER: Não, espere. E se o Wilton as matou, se livrou das
joias e este homem as encontrou?
INSPETOR DOWD: Eu não sei, veremos o que o seu sonho desta noite te diz.
Tenho certeza de que o júri terá interesse. Vamos. (ALLEN, 2005)

O detetive Banner se dá por vencido, dessa forma o caso se encerra a favor de Chris.
Contrariando a expectativa do espectador, não há uma punição para o crime cometido, graças a
um acontecimento fortuito: a aliança, algo que poderia ter incriminado Chris, é justamente o
fator que determina a sorte do protagonista, graças a um traficante que a encontrou e morreu
em seguida, levando a culpa pelo crime. Deste modo, Woody Allen apresenta uma concepção
de mundo realista, desprovida de ilusões e menos moralizante se comparada ao epílogo de
Crime e Castigo, um desfecho semelhante ao realizado em Crimes e Pecados, um

49
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. In: Obra Completa. vol. I, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, p. 174.
29

acontecimento que “deve ser visto, portanto, não como um tratado normativo de filosofia moral
(como Crime e Castigo acaba sendo), mas, sim, descritivo. Woody Allen não está dizendo ‘faça
assim’. Está dizendo ‘é assim’. E do ‘é’ não deriva necessariamente o ‘deve ser’”50.

Quando o filho de Chis e Chloe finalmente nasce a família comemora, trazendo


champanhe para brindar seu nascimento. Alec deseja bons votos ao neto: “A Terrence Eliot
Wilton, com pais Clhoe e Chris, esta criança será grande em qualquer coisa que escolher”. Ao
que Tom rebate: “Não ligo que ele seja grande, espero que ele tenha sorte”. Tal afirmação
reforça a mensagem transmitida no prólogo, sobre a crença de Chris na superioridade da sorte
em relação à bondade, crença que agora é compartilhada por Tom. Chloe diz que espera que o
próximo filho seja menina, portanto, a pressão sobre Chris por gerar descendentes continuará.
Enquanto todos brindam o novo membro da família, Chris olha pensativamente pela janela.
Diferentemente de Judah Rosenthal em Crimes e Pecados, Chris não aparenta uma leveza e
alívio em relação ao êxito do crime. Sobre o que estaria pensando o protagonista, Allen oferece
uma indicação:

Acho que ele não está exatamente adorando a situação em que se encontra.
Está casado com uma mulher por quem não é apaixonado. É um genro que
gosta de vida fácil, para a qual se casou, mas se sente claustrofóbico
trabalhando no escritório. A esposa dele já anda dizendo que quer mais um
filho. Ele não pensa no crime. Conseguiu o que queria e pagou o preço por
isso. É uma vergonha que ele queira isso. Posso ver, mais adiante, que não vai
ficar contente nesse casamento, e talvez venha a ter uma base financeira tão
boa que acabe por abandoná-la. 51

O desfecho pode indicar um comentário de Woody Allen a respeito da relação de


independência entre a felicidade e a impunidade ou ausência de sentido da existência, de modo
que mesmo não existindo nenhuma consequência diretamente ligada a uma má conduta, não
significa que agir de tal modo garantirá a satisfação pessoal, dependendo principalmente da
disposição individual, do modo de encarar essa ausência de sentido da existência. Independente
da sua satisfação, Chris acertou o ponto decisivo (match point) e venceu o jogo.

50
PARANHOS, op. cit., l. 326.
51
LAX, op. cit., p. 174.
30

4 CONCLUSÃO

Este trabalho procurou investigar os aspectos trágicos em Match Point e como essa obra
sintetiza a visão de mundo trágica de Woody Allen. Sua obra pode ser compreendida tanto por
uma análise de traços marcantes de sua biografia como a depressão desde a infância 52, a
influência dos filmes de cineastas como Bob Hope e Ingmar Bergman e pela literatura russa,
especialmente Dostoiévski. Em sua vasta filmografia que já conta com mais de cinquenta
filmes, Woody Allen possui uma obra diversificada, enquadrada em gêneros variados, porém,
em todos eles o diretor deixa registrado o seu estilo. A presença de um elemento fantástico em
suas obras retrata uma forma de escape dessa realidade que é trazida à tona em alguns de seus
filmes trágicos. Allen é, no entanto, mais conhecido como um diretor de comédias como suas
maiores obras:

Muita gente ainda acha que meus melhores filmes ficam pela época de Noivo
Neurótico, noiva nervosa e Manhattan, mas mesmo que esses filmes ocupem
um lugar caloroso em seu coração — o que me deixa muito satisfeito — estão
errados. Filmes como Maridos e esposas, A rosa púrpura do Cairo, Tiros na
Broadway, Zelig e até mesmo Um misterioso assassino em Manhattan e
Poucas e boas são muito superiores.53

Pode-se compreender o fascínio de Allen por uma espécie de escape, assim como o
próprio cinema se mostrou em sua infância, da mesma forma que a mágica, um elemento que
está presente em alguns de seus filmes como Magia ao Luar (Magic in the moonlight, 2014),
Quase um sequestro (Don´t drink the water, 1994), Scoop – O grande furo (Scoop, 2006),
Neblina e Sombras (Shadows and fog, 1991). Existe a presença de situações inverossímeis em
suas obras, acontecimentos fantásticos que compõem o estilo do autor, como se o absurdo da
existência se mesclasse com o fascínio da ilusão de vivê-la.

No filme A Rosa Púrpura do cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985), Cecília (Mia
Farrrow), uma garçonete dos tempos da Grande Depressão, que vive em constantes brigas com
seu marido alcoólatra e violento, encontra refúgio no cinema assistindo a sessões seguidas de
seus filmes preferidos. Ao assistir pela quinta vez “A Rosa Púrpura do Cairo” o protagonista
Tom Baxter (Jeff Daniels) magicamente sai da tela e vai ao seu encontro no mundo real após
observá-la tantas vezes ir ao cinema para prestigiá-lo; os dois acabam se apaixonado, porém a

52
COLOMBANI, Florence. Masters of Cinema – Woody Allen. Paris: Cahiers du Cinéma Sarl. 2010, p. 8.
53
LAX., op. cit., 418.
31

saída de Tom provoca o caos para o estúdio e para a carreira de Gil (também Daniels), ator que
faz o papel de Tom. Gil vai à cidade e também seduz Cecília prometendo levá-la para
Hollywood; quando ela aceita, forçando Tom a voltar para a tela, Gil a abandona. Desfazendo-
se de sua ilusão, Cecília é obrigada a voltar a encarar a sua dura realidade.

No filme Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, 2012), Gil (Owen Wilson) é um


escritor americano que vai a Paris com a noiva Inez (Rachel McAdams) e a família dela. Em
um de seus passeios noturnos pela cidade ele descobre de forma surpreendente que à meia-noite
pode ser transportado para a Paris da década de 1920, época e lugar que considera os melhores
de todos os tempos. Em suas idas ao passado, Gil encontra-se com várias personalidades que
frequentavam a cidade naquela época como Salvador Dalí, F. Scott Fitzgerald, Gertrude Estein,
Hernest Hemingway, entre outros, até que tenta acabar com seu relacionamento com Inez, pois
se apaixonou por Adriana (Marion Cotillard), uma bela moça do passado, e é forçado a
confrontar a ilusão de que uma época diferente, a “era de ouro” francesa, é melhor do que a
atualidade. Por fim, encara a realidade e aceita viver o presente. Tanto Cecília em A Rosa
Púrpura do Cairo como Gil em Meia-noite em Paris vivem momentaneamente uma ilusão,
uma fuga da realidade, mas no final são obrigados a encarar os fatos. Conforme diz Allen:
“Infelizmente, nós temos de escolher a realidade, mas no fim ela nos esmaga e decepciona”54.

Filmes como Crimes e Pecados e Match Point falam sobre “a falta de sentido da vida e o
horror da existência”55 e as coisas tais como são, e não exatamente como deveriam ser. Dessa
forma é que esses filmes foram acusados, erroneamente, de serem cínicos 56 na época de seus
lançamentos, pois mostram personagens que não são punidos pelos crimes que cometeram, e,
ao contrário, acabam seguindo suas vidas normalmente, dando-se bem no final das contas. Essas
obras encaram a realidade das coisas como são, independentemente de qualquer coisa ou ação
que o indivíduo tome. Assim como não há recompensa para os bons, também não há qualquer
punição para os maus, a não ser a justiça terrena, governada por seres humanos passíveis de
falhas.

A ausência de qualquer sentido em uma ação de boa vontade ou da punição pela má


conduta não significa necessariamente que se torna nula qualquer tentativa de uma norma ou
código ético que faça com que os indivíduos convivam, mas que a única recompensa para uma
boa ação reside na conformidade consigo mesmo, ou seja, a boa atitude com o próximo tem

54
Ibid., p. 42.
55
Ibid., p. 402.
56
Ibid., p. 152; 460.
32

valor em si mesmo, o ato de ajudar os demais tem como finalidade o próprio ato de ajudar, sem
ganhar nada em troca, a não ser o bom convívio. Do mesmo modo, o ato reprovável para com
os demais tem sua oposição na própria consciência do indivíduo, de modo que são os providos
de maior consciência que mais possuem o sentimento de culpa. Já os menos conscientes
permanecem egoístas e suas ações só podem ser interrompidas quando descobertas pela justiça,
pelo julgamento dos demais. Em todos os casos, é a disposição dos próprios indivíduos diante
das regras sociais que estabelecem os limites de suas ações, seja por influência da educação,
religião, ou qualquer outro meio onde o indivíduo encontre respostas para a conduta da vida em
sociedade.

Há também os exemplos que mostram personagens que também compartilham de uma


visão de mundo trágica e que acabam por não obter êxito em seus planos, trata-se de um
exemplo pelo lado negativo, onde, mesmo não existindo recompensa pelas boas ações, a má
conduta também não garantirá essas recompensas. O sonho de Cassandra conta a história dos
irmãos Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrel) que realizam o sonho de comprar um iate
que batizam de Sonho de Cassandra. Ian tenta impressionar a bela atriz Angela Stark (Hayley
Atwell), fingindo ter um padrão de vida do qual não dispõe. Terry tem vícios com jogos de azar
e álcool. Ambos veem uma oportunidade de melhorar sua condição ao receberem a visita de
seu tio Howard (Tom Wilkinson), um milionário que concorda em ajudá-los, mas em troca
pede-lhes um favor: matar alguém que testemunhará contra seus delitos financeiros. Após
cometerem o crime, a reação de cada um dos irmãos opõe uma visão de mundo diferente em
relação ao modo de encarar a realidade, uma conduta moral distinta que os separa. Enquanto
Ian se assemelha mais a Chris de Match Point, com gosto por um estilo de vida luxuoso,
configurado também como um arrivista, Terry demonstra uma consciência menos egocêntrica,
mais preocupada com a consequência em si mesma de suas ações, como o fato de que matar
alguém já denota o mal em si mesmo. Ao brigar com o irmão, Ian é morto acidentalmente por
Terry, que se suicida em seguida.

Em O Homem irracional o professor Abe Lucas acaba vítima da própria armadilha que
havia preparado para Jill Pollard ao tropeçar e cair no fosso do elevador. Neste caso, o acaso
fez com que Abe Lucas não se desse bem, e não exatamente como resultado de uma punição
para o crime cometido. O fato de que tanto em O Sonho de Cassandra como em O Homem
Irracional os protagonistas acabem morrendo no final não poderia ser interpretado como um
final moralizante dentro dos preceitos aristotélicos para a tragédia, onde no fim os maus serão
punidos e os bons recompensados, mas sim como o acaso, a eventualidade agindo
33

independentemente da conduta moral de cada um. Da mesma forma que os protagonistas de


tais filmes não têm seus planos realizados e acabam pagando o preço por isso, a sorte poderia
estar a seu favor e suas vidas seguiriam normalmente, pois tanto Abe quanto Ian estavam
resolutos quanto à continuidade da sua vida antes de encontrar a morte. Em ambos os casos, o
que se mostra é apenas uma disposição de tais personagens em encarar a realidade e lidar com
a ausência de sentido da existência, e, por fim, o acaso acaba não lhes sendo favorável.

Cabe reiterar que tal ausência de sentido não significa a nulidade das boas ações para com
os demais, nem tampouco uma postura pessimista que se caracteriza como a desilusão diante
de uma existência desprovida de sentido, mas sim a relação de independência entre as atitudes
ou valores e a fortuna ou felicidade, sobretudo quando esta última é tida como recompensa das
boas ações ou bom comportamento. A única recompensa em uma boa atitude residiria no fato
de que esta seria um bem em si mesmo, da mesma forma que um ato criminoso, quando não
descoberto, só poderia ter uma reprovação no próprio sentimento de culpa.

A postura trágica de Woody Allen permite compará-lo a filósofos como Nietzsche, pelo
fato de não apenas constatar a falta de sentido da existência, pela inexistência de Deus, mas
pelo fato também de aprovar esta ausência de sentido, de aceitar o lado dionisíaco da vida pela
aceitação integral da existência. Como forma de escape, há também a ilusão apolínea que
equivale, no caso de Allen, a fazer seu cinema como refúgio dessa mesma realidade
esmagadora, conforme ele declarou: “Escapei para uma vida no cinema do outro lado da
câmera, mais do que para o lado da plateia. [...] É irônico eu fazer filmes escapistas, mas não é
o público que escapa — sou eu”57.

No filme Magia Ao Luar, Stanley (Colin Firth) é um mágico de teatro que tem talento
para identificar charlatães e é contratado para desvendar a suposta farsa de Sophie (Emma
Stone), uma jovem simpática que afirma ser médium. As falsas evidências o fazem acreditar
momentaneamente em algo sobrenatural, tornando-o mais afável e considerando a vida mais
leve, mas por fim seu ceticismo vence e ele se convence de que ela é uma farsante. Depois de
desmascará-la, Stanley percebe que se apaixonou por ela e pensa em deixar sua noiva Olívia,
com quem mantém um relacionamento cerebral por considerá-la tão sofisticada e culta quanto
ele. Em um diálogo com sua tia Vanessa (Eileen Atkins), ela o adverte sobre o porquê da sua
“lógica tola” em não ver sentido em trocar Sophie por Olívia, afirmando “que o mundo pode
ter um propósito ou não, mas não é totalmente desprovido de um tipo de mágica”. Dessa forma,

57
Ibid., p. 468.
34

Stanley escolhe por se render ao amor por Sophie, concluindo que isso seria uma espécie de
“mágica” que nos mantém vivos, conforme os dizeres de Sophie ao se referir a Nietzsche:
“Comecei a ler o livro do filósofo alemão que você me deu. Não entendi muita coisa, mas dizia
que precisamos de ilusões para viver”.

Ao comentar sobre como conseguiu durar tanto tempo na indústria cinematográfica com
uma produção sempre constante, Allen relembra seu aprendizado com livros de mágica quando
era menino, afirmando: “consegui produzir uma brilhante ilusão que já dura cinquenta anos, e
que compreende uma porção de filmes”58. Assim, pode-se compreender pelos seus filmes a
intenção de mostrar a necessidade de uma ilusão artística como forma de continuar vivendo,
mesmo que exista o lado mais assombroso, como é mostrado em Match Point. No final é o
amor e a ilusão através da arte que nos fazem suportar todo o horror da existência, de forma
alegre e resistente, através do escape que configura o seu próprio cinema.

58
Ibid., p. 420.
35

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INTERIORES. (Interiors). Direção: Woody Allen. Produtor: Jack Rollins e Charles H. Joffe.
Atores: Diane Keaton, Geraldine Page, Kristin Griffith, Mary Beth Hurt, E.G. Marshall,
Maureen Stapleton et al. Roteirista: Woody Allen. Jack Rollins & Charles H. Joffe Productions,
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MAGIA ao Luar. (Magic in The Moonlight). Direção: Woody Allen. Produtora: Letty Aronson
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Woody Allen. Dippermouth; Cinéfrance 1888, 2014. 97 min, Son., Color., 35mm/D-cinema.

MANHATTAN. (Manhattan). Direção: Woody Allen. Produtor: Jack Rollins e Charles H


Joffe. Atores: Keaton Diane, Woody Allen, Michael Murphy, Mariel Hemingway, Meryl
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MEIA-NOITE em Paris. (Midnight in Paris). Diretor: Woody Allen. Produtor: Letty Aroson,
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O HOMEM Irracional. (Irrational Man). Diretor: Woody Allen. Produtor: Letty Aronson,
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35mm/D-cinema.

O SONHO de Cassandra. (Cassandra's Dream). Diretor: Woody Allen. Produtores: Letty


Aronson, Stephen Tenenbaum e Gareth Wiley. Atores: Ewan McGregor, Colin Farrell, Hayley
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Productions, 2007. 108 min, Son., Color., 35mm.

PONTO Final - Match Point. (Match Point). Diretor: Woody Allen. Produtor: Letty Aronson
Gareth Wiley e Lucy Darwin. Atores: Scarlett Johansson, Jonathan Rhys Meyers, Matthew
Goode, Emily Mortimer, Brian Cox, Penelope Wilton et al. Roteirista: Woody Allen. BBC
Films; Thema Production; Jada Productions; Kudu Films, 2005. 124 min, Son., Color., 35mm.

RODA gigante. (Wonder Wheel). Diretor: Woody Allen. Produtores: Letty Aronson, Erika
Aronson e Edward Walson. Atores: Kate Winslet, Justin Timberlake, Juno Temple, Tony
Sirico et al. Roteirista: Woody Allen. Amazon Studios, Perdido Productions, Gravier
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