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ÂNGELA DE CASTRO

GOMES é pesquisadora
do CPDOC da Fundação
Getúlio Vargas e
professora titular de
História do Brasil da
Universidade Federal
Fluminense.
ÂNGELA DE CASTRO GOMES

Autoritarismo
e corporativismo
no Brasil:
o legado de

Vargas
autoritarismo na história republicana do
país, fato que é acompanhado pelo caráter
complexo e ambíguo das duas experiên-
cias. Nos dois períodos, apesar de o Brasil
conhecer imensas restrições nos terrenos
da cidadania civil e política, experimentou
políticas públicas que o tornaram mais
moderno economicamente, e menos ex-
cludente socialmente, embora não menos
desigual. A despeito dessas convergênci-
as, a forma como a memória nacional rete-
ve essas duas experiências seguiu caminhos
muito distintos.
Em relação ao regime militar, o que foi
sendo consolidado, sobretudo a partir da
década de 1980, a da redemocratização, foi
uma memória política de condenação em
INTRODUÇÃO bloco, associada a uma radical separação

O
entre sociedade civil e Estado ditatorial e
ano de 2004, para a socie- militar. Assim, como vários estudos apon-
dade e para a intelectua- tam, construiu-se uma memória que apaga
lidade brasileira, foi um con- os apoios da sociedade civil ao regime (o
vite à reflexão histórica. Sob que ocorreu em especial no seu início) e
o conhecido e consagrado enfatiza as lutas e a resistência empreen-
pretexto de rememorar da- didas contra ele. Do mesmo modo, os
tas e acontecimentos, 2004 “êxitos” econômicos dessa ditadura fo-
abriu a possibilidade de se ram sendo “esquecidos”, fortalecendo-se
revisitar criticamente dois a imagem de um grande fracasso, isto é,
períodos marcantes da his- da violência, da incompetência e da cor-
tória política recente do rupção administrativa, além da falta de
Brasil. Em 31 de março, as- ética da ditadura militar. Já em relação à
sinalou-se a passagem de quarenta anos do chamada Era Vargas, mesmo consideran-
golpe civil e militar que derrubou o presi- do-se as variações dos balanços realizados
dente João Goulart e deu início a duas dé- ao longo do tempo, o processo de constru-
cadas de um regime autoritário de extrema ção de uma memória nacional acabou re-
violência, mas que também promoveu o tendo mais pontos positivos do que negati-
crescimento e a modernização do país du- vos, a despeito de os últimos também se-
rante o período do chamado “milagre eco- rem lembrados.
nômico”. Na mesma chave, em 24 de agos- As razões que permitem compreender
to, relembrou-se o cinqüentenário do suicí- processos de “enquadramento da memó-
dio do presidente Getúlio Vargas, um dos ria” (1) tão distintos são um estimulante
fatos mais traumáticos da história do Bra- ponto de partida para se pensar a própria
sil, tanto pelos desdobramentos de curto e Era Vargas, suas aproximações e distin-
médio prazo que desencadeou na década ções do regime militar do pós-1964, bem
de 1950, como, posteriormente, pela de- como os rumos do pensamento autoritário
manda de análises que retomassem a Era no Brasil, durante o século XX. Algumas
Vargas (1930-45 e 1950-54), também dessas razões são de fácil compreensão.
1 Estou trabalhando com esse marcada pelo autoritarismo político e pelo Getúlio Vargas foi, ao longo de quase vinte
conceito segundo proposta de
Michael Pollack, em: “Memó- desenvolvimento econômico. anos (embora não consecutivos), um chefe
ria e Identidade Social”, in Es- De imediato, o que tais eventos trazem de Estado ditatorial (1930-34 e 1937-45),
tudos Históricos, v. 5, n. 10,
1992, pp. 200-12. à tona para reflexão é a recorrência do mas também um presidente eleito: primei-

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ro, por uma Assembléia Nacional Consti- encontrando ampla recepção tanto junto às
tuinte (1934-37) e, depois, diretamente pelo elites, como nas camadas populares da po-
povo (1951-54). E foi exatamente nessa pulação. O significado histórico da palavra
última condição que ele cometeu suicídio, democracia, particularmente no caso da ex-
oferecendo ritualmente seu corpo físico e periência brasileira, esteve associado à di-
político ao país e ao povo, em defesa da mensão social e não política, o que permi-
soberania e da democracia. Lance político tiu a construção de um conceito aparente-
indubitavelmente arriscado e radical, que mente paradoxal: “democracia autoritária”.
obteve surpreendente sucesso imediato e O Estado brasileiro do pós-1930 pôde en-
que demarcou a figura de Vargas como a de tão se proclamar, franca e claramente, um
um mártir, a despeito de quaisquer defeitos Estado forte, centralizado e antiliberal, sem
ou culpas que seus adversários tenham perder a conotação de democrático, isto é,
querido ou ainda queiram lhe imputar. justo e protetivo. A segunda articula duas
Nesse sentido, nenhum presidente da Re- dimensões de qualificação desse novo Es-
pública, no Brasil, aproxima-se de Vargas, tado. Tratava-se, pela primeira vez no Bra-
no que se refere à duração de tempo em que sil, de edificar uma arquitetura de Estado
esteve no poder ou às condições dramáti- nacional moderno, que ampliava suas fun-
cas em que o abandonou. ções de intervencionismo econômico e so-
Porém, a memória positiva do nome e cial, ao mesmo tempo que montava uma
do tempo de Vargas não se deve apenas a burocracia tecnicamente qualificada e im-
fatores do porte dos nomeados acima. Há pessoal, segundo moldes weberianos. Po-
questões mais complexas, que remontam à rém, no mesmo movimento, esse Estado se
implementação de um sistemático e sofis- personalizava – na face de Getúlio Vargas
ticado esforço de propaganda, combinado –, a figura carismática encarregada de con-
a políticas públicas inovadoras, especial- duzir o processo de mudança e assumir as
mente nos campos social e cultural. Ou seja, novas tarefas que cabiam ao Executivo, ante
assinalar a duração e o impacto da figura de as crescentes críticas ao Legislativo. Nesse
Vargas na história contemporânea do Bra- sentido preciso, o Estado autoritário e de-
sil significa procurar compreender por que mocrático do pós-1930 é tanto uma “mo-
seu discurso e suas políticas, construídas dernização” das tradições do poder priva-
no marco do pensamento autoritário dos do e do personalismo caros à sociedade
anos 1920-40, encontraram condições tão brasileira, quanto uma afirmação do po-
favoráveis para se estabelecer e, sobretu- der do público, através de uma burocracia
do, para se transformar e perdurar na me- (impessoal e técnica) e de um modelo
mória nacional. São questões difíceis, que alternativo de representação política: o
exigem respostas que articulem as condi- corporativismo.
ções vigentes nos campos político e inte- Como se pode imaginar, a definição, a
lectual, nacional e internacionalmente, com montagem e a implementação desse mode-
as habilidades e possibilidades que se abri- lo de Estado, articulando em novas bases o
am às elites do Estado brasileiro àquela privado e o público no Brasil, foi tarefa que
época. Para tanto, este texto se propõe a envolveu diversos projetos e lutas entre
discutir algumas hipóteses que auxiliem em intelectuais e políticos durante um bom
tal reflexão. tempo. O que se fará aqui, a seguir, é acom-
A primeira diz respeito ao “lugar” que panhar, ainda que brevemente, algumas das
a democracia ocupou na prática e no dis- principais formulações de uma das verten-
curso políticos dos anos 1930. É importan- tes mais influentes da época – a do pensa-
te entender que, devido à montante inter- mento autoritário –, destacando a contri-
nacional do antiliberalismo, foi possível buição de três intelectuais particularmente
para o pensamento autoritário do período relevantes por suas reflexões e ações: Oli-
capturar a bandeira da democracia, preen- veira Vianna, Francisco Campos e Azeve-
chendo-a de sentidos inteiramente novos e do Amaral.

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go do século XIX, amplamente aceitas in-
O ATRASO DO BRASIL E O ternacionalmente.
É justamente esse referencial maior que
IMPERATIVO DO ESTADO FORTE E sofrerá fortes questionamentos após o tér-
mino da Primeira Guerra Mundial, permi-
CENTRALIZADO tindo uma melhor compreensão das novas
orientações que passarão a marcar o pensa-
Durante a Primeira República (1889- mento social brasileiro das décadas de 1920,
1930), foram muitos os políticos e os inte- 1930 e 1940. A partir do pós-guerra, gros-
lectuais que debateram os rumos do Brasil. so modo, entre uma grande maioria de in-
Todos, em geral, concordavam que era telectuais, a questão não era mais identifi-
necessário superar o atraso no qual o país car e apontar as condições adversas à vi-
vivia, impedindo-o de alcançar os patama- gência de um modelo de Estado liberal,
res de civilização, vislumbrados na Europa tendo em vista sua reforma, mas a de cons-
e nos Estados Unidos da América do Nor- tatar sua real impossibilidade e indeseja-
te. Contudo, desde a proclamação da Re- bilidade de adaptação ao Brasil. Para en-
pública, pode-se verificar que houve mui- tender tal transformação é interessante
tas disputas não só sobre quais seriam as observar que tal paradigma sofria críticas
verdadeiras causas desse atraso, como de uma nova orientação científica, traduzida
também sobre quais seriam as propostas quer pelos postulados de uma teoria elitista
para vencê-lo, o que obviamente significa- que desmascarava as ficções políticas libe-
va diferenciados projetos de Estado repu- rais, quer pelos enunciados keynesianos
blicano. Mas, apesar dos confrontos, tam- que defendiam um intervencionismo eco-
bém se pode dizer que, entre a década final nômico e social do Estado, até então inusi-
do século XIX e aproximadamente os anos tado. Embora permanecesse de pé o ideal
1920, um projeto de Brasil liberal, dese- de autoridade racional-legal e de economia
nhado pela Constituição de 1891 e pactua- urbano-industrial, como signo de uma so-
do pela fórmula da política dos governado- ciedade moderna, os instrumentos
res (de 1902), ganhou concretude. Nele, a operacionais, vale dizer, as instituições
modernidade política imaginada dava pre- políticas para construí-la e materializá-la,
cedência ao poder de um Estado, impesso- sofreram mudanças substanciais. De ma-
al e racional-legal, fundado numa arquite- neira geral, conforme os exemplos euro-
tura institucional com partidos e parlamen- peu e norte-americano demonstram, após a
to, no qual o indivíduo-cidadão participava crise de 1929, ocorreu um afastamento, mais
do poder e o limitava através do voto. ou menos radical, do paradigma clássico
As dificuldades para a consecução des- de Estado liberal.
se projeto foram rápida e fartamente pro- Nesse contexto, a idéia de igualdade
clamadas, sendo identificadas, segundo liberal, fundada na eqüidade política do
inúmeros diagnósticos, tanto na força do indivíduo-cidadão portador de opinião/
poder privado e na fraqueza do público, voto, foi contestada pela desigualdade na-
como na falta de educação e saúde do povo, tural dos seres humanos que, justamente
aliás por culpa das elites. Porém, durante por isso, não podiam ser tratados da mesma
as três primeiras décadas republicanas, tais maneira pelo Estado e pela lei. Esse cida-
diagnósticos não foram suficientes para dão liberal, definido como possível mas,
que o modelo de Estado liberal vigente no caso do Brasil, inexistente, era uma fic-
sofresse grandes abalos. Apesar de muito ção, como o eram os procedimentos a ele
criticado, ele conseguiu se manter, estan- associados: eleições, partidos políticos,
do ancorado no paradigma clássico de parlamentos, etc. Por outro lado, importa
moderna sociedade ocidental, e lançando assinalar que, com graus e formas varia-
suas raízes nas concepções políticas de fins das, tais formulações críticas acentuavam
do século XVIII, democratizadas ao lon- a importância da criação e/ou fortalecimen-

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to de certas instituições e práticas políticas Vianna. Ele escreve desde os anos 1910 até
estatais (novos órgãos e políticas públicas), 1951, quando morre. Sua obra é vasta e
como mecanismo de start para o estabele- logicamente diferenciada, mas guarda pon-
cimento de um modelo de modernidade tos muito recorrentes, aqui retomados como
eficiente. referenciais fundamentais, apesar da pas-
Portanto, se crescia o descompromisso sagem do tempo e das circunstâncias polí-
com procedimentos e valores liberais, rea- ticas mais imediatas. Trata-se de um inte-
lizava-se um enorme esforço para a formu- lectual que exerceu inequívoca influência
lação de uma outra arquitetura institucio- entre seus contemporâneos, que com ele
nal de Estado, cujo sentido transformador foram forçados a debater, quer com ele con-
era muito amplo, abarcando esferas da so- cordassem quer dele discordassem (3). Seus
ciedade até então intocadas pela presença textos acabariam também por se impor aos
pública. Assim, no Brasil, a maior inter- estudiosos do pensamento social brasilei-
venção do Estado em assuntos econômicos ro, apesar de, por algum tempo, ter sido
e sociais assumia o papel de elemento minimizado e tachado como um reacioná-
precípuo para a transposição do gap que rio. Tal identificação explica-se por seu en-
era identificado entre a vigência da lei e a gajamento no Estado do pós-1930 e por sua
idéia de justiça, que o Estado devia assegu- clara defesa de uma proposta autoritária,
rar, mas não assegurava. Dito nos termos mais especificamente ainda, de uma enge-
das análises do período, era necessário nharia política corporativa para sua im-
vencer o artificialismo político republica- plementação. Por isso, Oliveira Vianna in-
no, que postulava normas inaplicáveis à teressa de perto a este texto, que quer 2 É interessante ressaltar como o
período do entreguerras assi-
realidade brasileira e, em o fazendo, com- enfatizar como, no Brasil desse período, nala a emergência de um con-
junto variado, consistente e
bater o arbítrio expresso no caudilhismo e articulou-se um modelo de Estado que re- alternativo de propostas às
em seus derivados: o clientelismo e o criou as fronteiras entre o público e o pri- idéias e experimentos de libe-
ral-democracia. Autoritarismo
personalismo de nossa organização políti- vado em toda a sua ambigüidade. Um mo- e totalitarismo estão presentes
ca. Era preciso ultrapassar a dicotomia entre delo que deixou profundo legado para a no fascismo, no nazismo e em
corporativismos de diversos ti-
Brasil legal e Brasil real, sendo a centra- vida política do país. pos. No Brasil, o diálogo esta-
belecido pelos pensadores
lização do Estado o caminho para a nacio- Oliveira Vianna, com Populações Me- autoritários, muitos diretamen-
nalização e a modernização do poder pú- ridionais do Brasil, cuja primeira edição te vinculados ao Estado Novo
(1937-45), está sendo privile-
blico no Brasil. data de 1918, é um ponto de partida seguro giado neste texto. Contudo,
também existiram propostas
As interpretações da sociedade e da (4). O grande objetivo desse livro, que foi como o integralismo da Ação
política brasileiras construídas a partir dos de imediato saudado como fundamental, Integralista Brasileira (AIB) e o
comunismo, já presente no Par-
anos 1920 têm esse contexto político e in- era compreender as características origi- tido Comunista Brasileiro
telectual internacional como cenário. Vi- nais da sociedade brasileira, completamente (PCB), nos anos 1920, e na
Aliança Nacional Libertadora,
via-se sob o ataque ao liberalismo e, para desconhecidas e, por isso, causadoras do nos anos 1930.
intelectuais cujo desafio era construir um atraso em que o país vivia há séculos. Se 3 Dois bons exemplos de
interlocutores que dele discor-
mundo moderno a partir de constrangimen- tais características vinham sendo identifi- dam são Sérgio Buarque de
tos que o negavam, a força da crítica cadas no ruralismo, na mestiçagem e no Holanda e Gilberto Freyre.
Ambos, em seus respectivos
antiliberal podia ser explorada como um poder privado e pessoal dos caudilhos oli- textos, Raízes do Brasil (Rio de
Janeiro, José Olympio,1936)
estímulo à criatividade. A riqueza quanti- garcas, nunca um tão grande investimento e Casa-grande & Senzala (Rio
tativa e qualitativa dos autores e textos que em sua pesquisa histórico-sociológica es- de Janeiro, José Olympio,
1933), citam-no e a ele se con-
então aparecem no Brasil desautoriza qual- tivera tão legitimado e despertara tanta trapõem.
quer tentativa de acompanhamento mais atenção como no momento do pós Primei- 4 Oliveira Vianna, Populações
minucioso (2). ra Guerra Mundial. Como já foi assinala- Meridionais do Brasil: Popula-
ções Rurais do Centro-sul, Rio
A estratégia do artigo, como se disse, do, em face da crise internacional do para- de Janeiro, José Olympio,
1952. O sucesso do livro di-
será tomar alguns autores como guias, e em digma político liberal, não se tratava mais minuirá no correr dos anos
torno deles agregar outros nomes, todos de simplesmente apontar e vencer os obs- 1930, quando mais questio-
nado, sobretudo em sua visão
integrantes da montagem do que se tornou táculos que impediam a modernização no da questão racial. Mas o autor
conhecido como pensamento autoritário. âmbito dessa matriz. A saída era outra, pois não perde prestígio e não
deixa de marcar o campo inte-
Um desses autores é Francisco de Oliveira outro era o ponto de chegada almejado. lectual da época.

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A proposta de Oliveira Vianna, e de O ruralismo e o escravismo de nossa
vários outros pensadores, partia de duas pre- formação, demonstrando bem a força dos
missas: a da impossibilidade de recriação, fatores geográficos e raciais, eram os res-
no país, e no curto prazo, das condições ponsáveis por um padrão de sociabilidade
que tornaram o liberalismo possível fora centrado na família e na autoridade pessoal
do Brasil; e a da total indesejabilidade de do grande proprietário que tudo absorvia.
alcançá-las em uma transição para a Os conceitos que esse autor elabora para a
modernidade. Isso porque a sociedade bra- compreensão do modelo de sociedade bra-
sileira tinha características específicas, e sileira são os de função simplificadora do
outro era o timing e o ideal de ação política grande domínio rural e espírito de clã. O
a ser implementado. Se tal ação não estava primeiro apontava para a independência e
ainda bem delineada, era inclusive porque auto-suficiência dos senhores de terra e
não se reconhecia mais a existência de escravos que simplificavam toda nossa es-
modelos universais a serem seguidos, o que trutura social, dificultando o desenvolvi-
exigia um esforço de compreensão das sin- mento de atividades comerciais e industri-
gularidades do país, capaz de orientar as ais e impedindo quaisquer outros associa-
novas diretrizes a serem traçadas. Nesses tivismos que escapassem à família. O se-
termos, o Brasil real não ficava desqua- gundo, ao mesmo tempo, protegia o ho-
lificado, pois era justamente com esse real mem rural da falta de outra autoridade efe-
que se poderia chegar a um projeto eficien- tiva, inclusive a do Estado português, e
te, uma vez que adequado à nossa singula- bloqueava o espírito corporativo que só
ridade. Esse novo encaminhamento foi uma podia afirmar-se no ambiente urbano.
das causas do sucesso de Populações, que Era a vida na grande família a base e a
encontrou um clima propício aos estudos origem do caudilhismo, personalizado e
sociológicos, percebidos como instrumen- pulverizado no território nacional. Um tipo
tos analíticos para uma intervenção políti- de autoridade que abarcava vínculos polí-
ca efetiva. ticos e sociais e que recorria à fidelidade e
Não é casual, portanto, que entre 1920 à afetividade, orientando-se por valores não
e 1940 tenham sido produzidos ensaios tão estritamente materiais e utilitários. Para
significativos para a compreensão do país, enfrentar a força do caudilhismo, que era
e que suas interpretações povoem ainda de sempre uma ameaça à desintegração
forma vigorosa nosso imaginário político. territorial e social do país, só um poder
Esse foi um tempo de descoberta e de va- centralizador forte – metropolitano ou na-
lorização do homem e da realidade nacio- cional –, que agisse como promotor da paz
nais, embora tenha dividido os intelectuais e da ampla proteção dos cidadãos. Por isso,
quanto à crença na possibilidade de se al- para Vianna, a realidade do caudilhismo
cançar, no país, a modernidade nos marcos acabara por inverter o sentido mais conhe-
da democracia liberal. Esse dilema vinha cido do poder central, que, de autoridade
de longe e lançava suas raízes no período absolutista e opressora das liberdades, tor-
colonial: em nossa tradição rural e nava-se o único meio de construção de um
escravista e na cultura ibérica de onde esta Estado moderno, isto é, orientado por pro-
havia nascido. Oliveira Vianna é o tradu- cedimentos racionais/burocráticos, mas
tor, por excelência, da interpretação que igualmente próximo e conhecedor da rea-
consagra o insolidarismo como marca da lidade nacional. Só este novo Estado pode-
sociedade brasileira. Segundo ele, nossas ria, ao mesmo tempo, neutralizar o caudi-
relações sociais haviam se desenvolvido lhismo dos localismos e personalismos e o
tendo como base o grande domínio rural, artificialismo político-jurídico que con-
fincado na imensidão do território tropical: frontava nossas tradições históricas.
“Nós somos o latifúndio. Ora o latifúndio Em Populações, portanto, duas idéias
isola o homem; o dissemina; o absorve; é ficam muito claras. Primeira: embora as
5 Idem, ibidem, vol. 1, p. 48. essencialmente antiurbano” (5). características de nossa formação sociopo-

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lítica não fossem criticadas, pois se tratava ções, os partidos políticos e o poder
de entender suas origens para nelas buscar legislativo, todos sendo identificados com
orientação, elas certamente não eram situa- os interesses locais e particulares que só
das como alvissareiras para nos conduzir à lutavam por si e, logo, contra os interesses
modernidade. Eram tais características as nacionais/gerais.
responsáveis pela produção de uma multi- Resumindo, se a sociedade brasileira
plicidade de poderes, ameaçadora à unida- era, por formação histórica, insolidária e
de e harmonia do espaço público. Segunda: dominada pelo confronto entre o público e
desse fato advinha a necessidade de cria- o privado, a constituição de um Estado for-
ção de instrumentos capazes de estimular a te e centralizado, capaz de interlocução com
integração social; de produzir uma nação e a diversidade de poderes privados existen-
um povo, conforme nossa realidade histó- tes, emergia como uma autêntica prelimi-
rico-sociológica. Mas as elites políticas bra- nar para a constituição da nação. Nesse
sileiras estavam irremediavelmente distan- sentido, a avaliação da incapacidade polí-
tes desse propósito, submersas em tica da República, fundada em práticas li-
formalismos herdados ou copiados de berais, era fatal. Por isso, o que as obras de
modelos estrangeiros que, por inadequa- vários autores, durante as décadas de 1930
dos, eram ineficientes. Populações, contu- e 1940, situam como seu objeto de reflexão
do, realizou muito mais um diagnóstico do é essa questão e impasse. Ambos só seriam
problema de organização nacional do que superados pela criação de outros arranjos
investiu em comentários sobre a maneira institucionais capazes de construir um ver-
de enfrentá-lo. O que ficou de substancial dadeiro espaço público no Brasil. O arti-
do livro foi a defesa de um Estado forte e ficialismo político, para ser afastado, pre-
centralizado e com autoridade incontestá- cisava encontrar novas formas de represen-
vel sobre o país. tação que promovessem o encontro do Es-
Como se vê, os inícios dos anos 1920 tado com a sociedade, que reinventassem
são um momento de contundente crítica ao as relações entre o público e o privado,
reduzido grau de governabilidade do Esta- segundo imperativos que respeitassem nos-
do republicano de então. Esse, por sua fra- so passado fundador e que apontassem um
gilidade institucional, não havia consegui- futuro orientado pelos modernos parâ-
do um bom desempenho na tarefa de forçar metros mundiais.
os principais atores privados (as oligar-
quias) a cooperar, abandonando seus inte-
resses mais particulares e imediatos, em
nome de horizontes de mais longo prazo. A NOVA DEMOCRACIA AUTORITÁRIA:
Era essa fragilidade, expressa na insufici-
ente consolidação e funcionamento de suas PERSONALISMO
instituições políticas, que bloqueava a cons-
tituição de um verdadeiro espaço público, E CORPORATIVISMO
para o qual se pudesse canalizar os confli-
tos privados, incorporando novos atores, A elaboração e a implementação de um 6 É claro que se pode argumen-
através de arranjos garantidos por uma projeto que combatesse o artificialismo tar, hoje, com sólidas evidên-
cias históricas, que a Repúbli-
autoridade centralizadora incontestável (6). político e o atraso do Brasil envolveram ca Velha tinha, na época, tan-
tos problemas de governabili-
Daí as demandas, generalizadas e às vezes diversos políticos e intelectuais. Nesse as- dade e de incorporação de
pouco precisas, de ampliação do interven- pecto particular, dois intelectuais se desta- atores quanto as democracias
européias consideradas clás-
cionismo do Estado, que precisava assumir caram por suas formulações teóricas e pela sicas. Mas o que importa assi-
nalar é que, nos anos 1910-
contornos antiliberais, particularmente em aplicação dos modelos e princípios que 20-30, tais democracias foram
função da primeira experiência republica- defenderam: Francisco Campos e Azeve- vistas, primeiro, como mode-
los a ser seguidos, ainda que
na, considerada fracassada. Isso porque, di- do Amaral. De forma um pouco esque- não copiados, e a seguir, em-
retamente associados à Velha República, mática, pode-se dizer que o projeto de Es- bora não de forma generaliza-
da, como experiências a se-
como passa a ser chamada, estavam as elei- tado então implementado – o Estado Novo rem abandonadas.

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(1937-45) – articulava, não sem dificulda- delo de partidos e assembléias que traduzi-
des, duas dimensões fundamentais que só am interesses particulares e desagregadores.
podem ser separadas analiticamente. Contudo, a nova democracia não dispensa-
Em primeiro lugar, havia uma dimen- va formas de representação adequadas às
são organizacional, materializada na neces- novas funções dos governos modernos,
sidade de construção de uma nova arquite- voltados para o interesse nacional. Tais
tura institucional para o Estado republica- funções eram, acima de tudo, de natureza
no. Esse novo e moderno Estado precisava técnica, donde a importância da criação de
abandonar o velho princípio de separação órgãos representativos da vida econômica
de poderes, que vinha sendo criticado e do país, que podiam, como interlocutores
transformado pelo conceito germânico de válidos, exprimir a vontade geral/popular.
harmonia de poderes (7). Tal opção supe- Os novos mecanismos representativos,
rava a falsa dicotomia entre democracias portanto, teriam que ser órgãos técnicos e
(sempre entendidas como liberais) e dita- corporações que exprimissem as verdadei-
duras, na medida em que se abria a possi- ras vivências dos vários grupos sociais, ar-
bilidade de existir um Estado forte e demo- ticulando-os e consultando-os a partir de
crático, através da revitalização do sistema sua experiência direta no mundo do traba-
presidencialista de governo. E um dos pro- lho, isto é, de seus interesses profissionais.
cedimentos para que, no Brasil, se pudesse Por essa razão, em tal lógica, ao lado de
construir esse novo tipo de democracia era um Executivo forte e pessoal, o segundo
a conversão da autoridade do presidente grande instrumental político para a produ-
em autoridade suprema do Estado e em ção de novos arranjos institucionais era a
órgão de coordenação, direção e iniciati- montagem de um Estado corporativo que,
va da vida política (8). Um Executivo forte
e personalizado era o instrumento estraté-
gico para se produzir o encontro da lei com
a justiça; o estabelecimento de uma nova
democracia, não mais definida como polí-
tica, mas sim como social e nacional.
Em função da emergência dessa nova
forma de autoridade, encarnada na figura
pessoal do presidente/Executivo, era im-
possível e desnecessária a existência de par-
tidos políticos e parlamentos, todos lentos,
custosos, ineptos e, sobretudo, órgãos de
manifestação dos antagonismos sociais.
Algo incompatível com a democracia au-
7 Francisco Campos, O Estado toritária, que negava a idéia de uma socie-
Nacional: sua Estrutura, seu
Conteúdo Ideológico, Rio de dade fundada no dissenso, postulando a ten-
Janeiro, José Olympio, 1940.
dência à unidade em todos os aspectos,
8 Diversas citações estarão sen-
do retiradas de artigos da re-
fossem econômicos, políticos, sociais ou
vista Cultura Política, publicada morais. No dizer de Azevedo Amaral, um
de março de 1941 até 1945
pelo Departamento de Impren- dos grandes propagandistas desse Estado,
sa e Propaganda (DIP), onde “a democracia nova só comporta um único
escreviam muitos intelectuais do
período. No caso, o artigo é partido: o partido do Estado, que é também
de Paulo Augusto Figueiredo,
“O Estado Nacional como Ex- o partido da Nação” (9).
pressão das Necessidades Bra- A identificação entre Estado e nação,
sileiras”, in Cultura Política, n.
11, janeiro/1942, pp. 33-50. bem como a concentração da autoridade do
9 Azevedo Amaral, “Realismo Po- Estado na figura do presidente, eliminava a
lítico e Democracia”, in Cultura necessidade de corpos intermediários en-
Política, n.1, março/1941, p.
170. tre o povo e o governante, segundo o mo-

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ao mesmo tempo, separava os indivíduos – nado grupo social. Tinham que se transfor-
agrupando-os em diversas categorias pro- mar em instituições de direito público, atu-
fissionais por sindicatos – e reunia-os pela ando por delegação estatal e ganhando le-
hierarquia global e harmônica de uma or- gitimidade política, além de outros recur-
dem social corporativa. Projeto corporati- sos de poder. Entre eles e com destaque, os
vo e fortalecimento do sistema presidenci- financeiros, materializados no recolhimen-
al de governo eram as duas pedras de toque to compulsório de um tipo de imposto que
da nova democracia autoritária. Um autên- atingiria todos os trabalhadores, fossem
tico e sofisticado ideal de modernização da sindicalizados ou não: o imposto sindical.
política brasileira, que reinventaria as fron- Como decorrência, o modelo exigia o
teiras da dicotomia público e privado, pro- sindicato único e sujeito ao controle esta-
movendo combinatórias plenas de ambi- tal, uma vez reconhecido como o represen-
güidades, que alcançaram um amplo com- tante de toda uma categoria profissional, o
partilhamento junto à população, e deixa- que excedia seu corpo de associados. A
ram marcas profundas e duradouras na vida pluralidade e a liberdade sindicais torna-
política do país. vam-se inviáveis nessa proposta, que se
sustentava no monopólio da representação,
tão essencial quanto a tutela estatal. Era
exatamente a articulação dessas duas ca-
O PROJETO CORPORATIVO racterísticas – a unicidade e a tutela – que
institucionalizava o novo tipo de arranjo
E A ORGANIZAÇÃO DO POVO associativo, tornando o corporativismo
democrático, isto é, tornando-o um instru-
BRASILEIRO mento crucial da nova democracia social e
da organização do povo brasileiro (10).
Oliveira Vianna, em vários textos pro- Esse modelo propunha, sem dúvida,
duzidos ao longo dos anos 1930 e 1940, é muito mais uma publicização dos espaços
quem melhor explicita as características e privados de organização do que uma
o sentido dessa utopia corporativa de boa privatização do espaço público de tomada
sociedade. Para ele, a nova organização de decisões, embora não excluísse essa
corporativa era a melhor forma institucional contraface. Abarcando empregados, em-
de estabilizar a ordem político-social e pro- pregadores e profissionais liberais, sua
mover o desenvolvimento econômico do aplicação seria muito diferenciada, o que é
país, cujo paradigma era o mundo urbano- facilmente compreensível pela desigual
industrial. Esse corporativismo envolvia, posição desses atores no campo político da
assim, indissociavelmente uma teoria do época. No que se refere aos empregadores,
Estado e um modelo de organização sindi- o enquadramento a que estavam sujeitos
cal, como pontos de partida para a organi- não eliminou sua antiga estrutura asso-
zação da própria sociedade. ciativa, que subsistiu paralelamente. Mas
A base do modelo era a ampliação da houve perdas, na negociação das leis tra-
participação do povo, organizado em asso- balhistas e previdenciárias, por exemplo.
ciações profissionais, que respondiam ao Apesar disso, o corporativismo proporcio-
problema da incorporação de novos atores nou, inequivocamente, um largo espaço de
10 É devido a essa concepção
à esfera pública, o que era inviável segun- influência para os empregadores, quer nas que o imposto sindical devia
do as práticas liberais, parcamente institu- instituições consultivas (os Conselhos Téc- ser pago por todos os traba-
lhadores, quer fossem sindica-
cionalizadas e incompatíveis com a reali- nicos), quer nas autarquias administrativas lizados ou não. A unicidade
sindical e a cobrança do im-
dade nacional. Por essa razão, tais associa- (os Institutos). Já para os empregados, a posto complementavam-se com
ções precisavam ser estimuladas e reconhe- tutela e a unicidade se impuseram, o que o poder normativo da Justiça
do Trabalho, desenhando um
cidas legalmente pelo Estado, para exerce- não impediu o reconhecimento, pela pri- modelo de relações entre ca-
rem funções efetivas de canalização e meira vez na história do Brasil, de que fi- pital e trabalho que, em aspec-
tos fundamentais, existe até
vocalização dos interesses de um determi- nalmente tinham suas associações respei- hoje.

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tadas pelo patronato e seus direitos sociais aspectos como o da abertura do espaço pú-
garantidos por lei. blico à participação e o do caráter sempre
Mesmo com essas diferenças, é impor- assimétrico desses arranjos, onde o Estado
tante observar como estão sendo recriadas tem papel-chave (11). Tal reconhecimento
as relações entre o público e o privado sob pode ser extremamente útil à compreensão
o modelo corporativista estado-novista. de muitas das avaliações realizadas no pe-
Como a preliminar da nova democracia ríodo do Estado Novo, paticularmente en-
social negava o dissenso, o espaço público tre os empregados. Eles perceberam vanta-
era definido como área de canalização de gens na existência dos arranjos corpora-
interesses privados que se exprimiriam tivos, temendo inclusive sua eliminação,
organizadamente (via estrutura sindical), entendida como uma ameaça à manuten-
sob arbitragem estatal. Portanto, não se tra- ção dos direitos sociais adquiridos, ainda
tava de eliminar a diversidade de interesses que vissem, claramente, a distância que os
da realidade social, mas a premissa de suas separava dos empregadores e o enorme
contradições, pela afirmação do papel poder do Estado.
diretivo e arbitral do Estado. A dimensão Desigualdade e complementariedade se
pública identificada ao Estado e à ação de abrigavam nesse projeto corporativo, que
seus órgãos especializados guardava, as- instituía a organização do povo numa base
sim, as virtudes da política, finalmente social e econômica real, e portanto distan-
saneada e franqueada à participação do te das ficções liberais das eleições, dos
povo. Já a dimensão privada, embora con- partidos e das assembléias. Tais ficções im-
tinuasse tendo um potencial ameaçador, pediam, pois desvirtuavam, o contato dire-
quando devidamente orientada, possuía to e verdadeiro do povo com o poder públi-
papel estratégico ao permitir o conhecimen- co, finalmente possível com a montagem
to das reais necessidades e desejos da po- da hierarquia corporativa e com a concen-
pulação pelo governo. tração do poder do Estado na figura do pre-
Assim, o modelo corporativista propos- sidente. É essencial, por conseguinte, aten-
to pode ser entendido como bifronte – tar para como se articulavam esses pares e
estatista e privatista –, embora claramente para como se desenhava essa nova autori-
controlado (e não apenas presidido) pelo dade presidencial, já mencionada.
Estado que, autoritário, impunha a elimi-
nação da competição política entre os ato-
res que dele participavam. O alto grau de
subordinação ao Estado e o baixo grau de CORPORATIVISMO E
11 A noção de corporativismo reconhecimento do confronto entre os in-
bifronte é de Guilhermo
O’Donnell: “Anotações para teresses demarcam não só a proposta dos PRESIDENCIALISMO “IMPERIAL”
uma Teoria de Estado”, in Re- ideólogos autoritários, como igualmente a
vista de Cultura e Política, São
Paulo, Cedec/Paz e Terra, experiência histórica do período, mesmo As relações estabelecidas entre organi-
nov.-jan. e fev.-abr./1981, n.
3 e 4. Eu estou compartilhando
não havendo inteira coincidência entre zação corporativa e autoridade presidenci-
uma posição teórica, presente ambas. De qualquer forma, é fundamental al eram delicadas, pois combinavam ele-
na literatura nacional e interna-
cional, que situa o corpora- reter a complexidade do novo arranjo mentos contraditórios. Teoricamente, as
tivismo como uma forma de institucional, articulando o público e o pri- corporações eram concebidas como órgãos
representação de interesses em
que o Estado possui papel fun- vado em uma fórmula que procurava solu- com poder de representação, sendo capa-
damental, havendo sempre
assimetria e caráter bifronte nos cionar a tensão constitutiva das relações zes de traduzir o interesse nacional, por sua
arranjos institucionalizados. entre Estado e sociedade no Brasil; entre amplitude, realismo e presença em várias
Tais arranjos podem envolver
não só classes sociais, como capital e trabalho. instâncias governamentais. Contudo, essa
igualmente os chamados policy
takers (receptores de políticas
Para tanto, torna-se útil abandonar a estrutura corporativa só representava o in-
públicas), sendo sempre funda- simplificação de análises que entendem o teresse geral, na medida em que abarcava
mental observar o tipo de regi-
me político onde ocorrem e o corporativismo, em especial no Brasil, seus portadores, devidamente articulados
grau de liberdade/competi- como uma forma exclusiva de produção de e controlados pelo poder público. A forma
tividade entre os interesses or-
ganizados. controles sobre o privado, obscurecendo de expressão política do interesse nacio-

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nal, traduzida pelos sindicatos corporativos, do, mas o transcendendo, que aconselhava
surgia através do Estado, personificado na “forjar um instrumento intelectual, ou an-
figura do presidente. tes, uma imagem dotada de grande carga
A autoridade máxima e a síntese do emocional” (13), capaz de ser reconhecida
poder público moderno eram, nesse mode- pelas massas e de gerar idéias e sentimen-
lo, uma pessoa: o presidente. Ou seja, pelos tos neutralizadores de tão grande ameaça.
acasos da sorte, tal formulação acabava por Essa imagem, para o autor, que cita Sorel,
combinar as mais lídimas tradições da so- era um mito. Um mito sobre o qual se fun-
ciedade brasileira – fundada no poder per- daria o processo de integração da nação e
sonalizado do patriarca rural –, com os mais que incorporaria suas características mais
vigorosos imperativos da política antiliberal arcaicas/originais. Não tinha sentido, se-
da época. Tradição e modernidade se fun- guindo suas palavras, indagar do mito seu
diam harmoniosamente no empreendimen- valor de verdade. Seu valor era prático, e
to que consagrava, a um só tempo, o refor- estava em seu poder mobilizador, que de-
ço do sistema presidencial e a construção pendia tanto dos elementos irracionais que
mítica da figura de seu representante como incorporava, quanto das relações que esta-
uma encarnação do Estado e da nação. Por belecia com as experiências imediatas das
isso, organizacional e simbolicamente, a massas a que se destinava.
função presidencial demandava investi- O mito da nação cumprira esse papel no
mentos cuidadosos. século XIX, mas encontrava-se em declí-
As razões que explicam esse novo tipo nio ante à montante do mito solar da per-
de engenharia estatal podem ser facilmen- sonalidade. Vale a citação:
te compreensíveis pelos argumentos críti-
cos que, desde fins dos anos 1910, vinham “As massas encontram no mito da persona-
sendo esgrimidos contra o liberalismo. As lidade, que é constituído de elementos de
funções dos governos modernos eram, aci- sua experiência imediata, um poder de ex-
ma de tudo, funções de especialização téc- pressão simbólica maior do que nos mitos
nica que dispensavam a morosidade, inefi- em cuja composição entram elementos
ciência e corrupção dos procedimentos elei- abstratos ou obtidos mediante um processo
torais, exigindo rapidez e eficiência, pre- mais ou menos intelectual de inferências
sentes nas decisões executivas, cientifica- ou ilações. Daí a antinomia, de aparência
mente assessoradas e voltadas para o inte- irracional, de ser o regime de massas o cli-
resse nacional. Mas a essas razões se arti- ma ideal da personalidade, a política das
culavam outras, ainda mais importantes. massas a mais pessoal das políticas, e não
Elas invocavam a existência de uma mo- ser possível nenhuma participação ativa das
derna sociedade, dominada por mudanças massas na política da qual não resulte a
aceleradas, que produziam grave desorien- aparição de César” (14).
tação entre os governados.
Francisco Campos e Azevedo Amaral A observação-chave a ser efetuada é a
(12) trazem, nesse aspecto, contribuições de como o poder do Estado moderno – o
particularmente significativas, sendo acom- poder em uma sociedade de massas urba-
panhados por inúmeros outros intelectuais no-industrial – está sendo definido, não ape-
do período. Campos é pedagógico ao diag- 12 De Francisco Campos, O Esta-
nas como forte e concentrado, mas como do Nacional: sua Estrutura, seu
nosticar a crise que ameaçava a sociedade pessoal. Além disso, como tal persona- Conteúdo Ideológico, op. cit.;
de A. Amaral, além de artigos
de massas, confrontada com tensões nu- lização, conotada como virtuosa pelos teó- de Cultura Política, os livros O
merosas e profundas (bem mais complexas ricos da vertente autoritária, precisava ga- Estado Autoritário e a Realida-
de Nacional (Rio de Janeiro,
do que a da luta de duas classes de Marx), nhar a força de um mito, identificado nos José Olympio, 1938) e Getúlio
Vargas, Estadista (Rio de Janei-
e distante da possibilidade de participar de atributos do homem que ocupasse a função ro, Irmãos Pongetti, 1941).
decisões políticas que exigiam, crescen- presidencial. 13 Francisco Campos, op. cit.,
temente, formação especializada. Era essa No caso do Brasil, ele tinha um nome. p. 8.
situação, envolvendo o aparelho de Esta- Vargas é, não naturalmente, a primeira 14 Idem, ibidem, pp. 15-6.

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grande figura da República. Primeira, por Campos. Esse conceito procura ressaltar
não ter antecedentes que rivalizem com ele um modelo de exercício da presidência, que
em prestígio; e primeira, por se constituir excederia o fato de se reconhecer que, em
em mito, em modelo exemplar do que deve qualquer sistema presidencialista, há uma
ser e fazer a autoridade presidencial, isto é, certa mística e personalização da função.
a autoridade política máxima do país. Du- Segundo tal modelo, no Brasil, e tam-
15 Não quero dizer, de forma al- rante a “República Velha” – assim a consa- bém em outros países latino-americanos, a
guma, que tal ausência se de- graram os ideólogos autoritários –, não sur- figura pessoal do presidente torna-se o cen-
vesse aos critérios de exclusão
eleitoral vigentes (por idade, gira uma mística presidencial. Certamente, tro de fixação e simbolização de todo o
sexo e escolaridade), já que
eles eram compartilhados inter-
não devido ao poço de incompetência a que poder da República, advogando e receben-
nacionalmente. As democra- ela foi lançada por esses ideólogos, mas do maior legitimidade popular que os dois
cias européias clássicas eram,
na época, também regimes em devido ao fato de a presidência ser exercida outros poderes, e mesmo investindo contra
que havia limites à participa- muito mais abertamente como uma delega- eles. É como se a doutrina de separação de
ção pelo voto, à competição
política, e em que tinham curso ção de poder das principais oligarquias do poderes ainda permanecesse sob as críticas
fraudes eleitorais e corrupção
de políticos. A Primeira Repú- que como uma encarnação da soberania do compartilhadas nos anos 1930-40, especi-
blica não foi especialmente povo (15). A figura do chefe de Estado, como almente daquelas voltadas para o Legis-
mais instável e ineficiente que
outras experiências institucio- materialização do poder público apoiado lativo e compreensíveis pelas condições
nais suas contemporâneas. O
lugar histórico, contudo, que lhe
“diretamente” pelo povo, vai ser afirmada políticas do contexto internacional. O Exe-
foi atribuído por inúmeros inte- apenas no pós-1930. E, vale remarcar, vai cutivo personalizado apresenta-se, nesses
lectuais críticos ou céticos em
face do liberalismo, no Brasil, ser afirmada como uma negação da cidada- termos, com o poder e mesmo o dever de
e a visão idealizada do nia política expressa pelas eleições. absorver as funções de proposição legis-
paradigma anglo-saxão confe-
riram, e em boa parte ainda A figura de Vargas, portanto, pode ser lativa – uma contraface do bias antipar-
conferem a ela, essa incômo-
da situação. útil para se pensar algumas características tidário e antiparlamentar então gerado –,
16 Estou seguindo as considera- de nosso sistema presidencial e do modelo e com a obrigação política dos que, porque
ções e debates de vários cien- de liderança/autoridade máxima, reconhe- concentram recursos os mais variados, dis-
tistas políticos, entre os quais
ressalto: G. O’Donnell, op. cit.; cido pelo imaginário político do país, des- tribuí-los generosamente. Aí estão as bases
Bolivar Lamounier, “O Modelo
Institucional dos Anos 30 e a
de então. Por esse motivo, um dos grandes de um contrato político não-liberal, funda-
Presente Crise Brasileira”, in teóricos do que os cientistas sociais poste- do em trocas generalizadas e na lógica da
Estudos Avançados, vol. 6, n.
14, São Paulo, 1992, pp. 39- riormente passaram a chamar de presiden- outorga, da política como doação (e não
57; Wanderley Guilherme San- cialismo imperial ou de sistema presiden- como direito).
tos , Razões da Desordem, Rio
de Janeiro, Rocco, 1993. cial plebiscitário é, sem dúvida, Francisco Trata-se de um capital político imenso,
mas instável e perigoso, como todos os
analistas do presidencialismo brasileiro
reconhecem (16). O presidencialismo
plebiscitário, mesmo não possuindo
mais os instrumentos autoritários nasci-
dos nos tempos getulistas, e que só gra-
dualmente lhe foram sendo retirados,
permanece autorizando o presidente a,
uma vez eleito, governar o país da ma-
neira como julgar conveniente e suas
alianças políticas permitirem. Uma si-
tuação que não colabora muito para a es-
tabilidade de um regime democrático, acen-
tuando um viés antiinstitucionalizante e
reforçador de personalismos.
Por esse motivo, figuras carismáticas
estariam sempre no horizonte do imaginá-
rio político brasileiro, habitando, preferen-
cialmente, os executivos federal e estaduais.
E seu modelo referencial básico continua

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sendo a figura de Getúlio Vargas: amado e exprimindo suas aspirações e sendo ouvi-
odiado; endeusado e vilipendiado; guardião das pelas elites políticas.
das virtudes públicas e privadas da políti- A relação direta entre o governo/presi-
ca; encarnação dos vícios públicos e priva- dente e o povo tinha, nesses termos, a dupla
dos da política. De qualquer forma, um feição da representação de interesses e da
político que traduziu uma fórmula de rela- representação simbólica, e Vargas trans-
cionamento entre Estado e sociedade, um formava-se no terminal adequado para
tipo de pacto que, conduzindo o país à ambas. O projeto permitia, enfim, a inser-
modernidade econômico-social, afinava-se ção do povo no cenário político, sob con-
com as tradições de nossa mentalidade trole ao mesmo tempo científico e pessoal
patriarcalista. do Estado/presidente. Cresciam, pari passu
Nesse ponto específico, convém voltar a e harmoniosamente, tanto a face racional-
explorar um pouco mais a imagem projeta- legal desse Estado, traduzida quantitativa
da de Vargas no Estado Novo. Uma imagem e qualitativamente em sua burocracia es-
consolidada, em muitos aspectos, em seu pecializada e nos procedimentos que
segundo governo (1950-54), e recriada, su- impessoalizavam/saneavam as práticas
cessivamente, após sua trágica morte. políticas correntes (os conselhos técnicos,
as autarquias, os concursos públicos), como
sua face tradicional, expressa na autorida-
de pessoal de um líder paternal que se vol-
AUTORITARISMO E MITO DO tava direta e afetivamente para seu povo.
Como política não é um jogo de soma
HERÓI POLÍTICO zero, público e privado, moderno e tradicio-
nal podiam se combinar de forma vigorosa
Durante o Estado Novo, o autoritarismo e efetiva. Por conseguinte, no novo modelo
facilitou a divulgação e consolidação de de Estado, a tradição do poder pessoal,
mensagens oficiais, tanto pela via da pro- orientada por diretivas racionais e também
paganda como pela da censura. Porém tal irracionais (crenças, emoções), era tão
sucesso não dependeu apenas da sofistica- necessária quanto moderna (científica, es-
da campanha ideológica então promovida, pecializada). Tal possibilidade resolvia um
que recorreu a imagens e idéias com largo impasse crítico, colocado tanto pelos diag-
trânsito entre a população, servindo-se dos
mais modernos meios de comunicação de
massa. Seu impacto e duração devem-se à
articulação estabelecida com um amplo e
diversificado conjunto de políticas públi-
cas, com destaque para as sociais, entre as
quais aquelas desenvolvidas pelos novos
ministérios da Educação e Saúde e do
Trabalho, Indústria e Comércio. Grandes
hospitais, escolas secundárias e profissio-
nais, pensões e aposentadorias, carteira de
trabalho e estabilidade de emprego, além
de uma Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) atestavam o vínculo entre a pessoa
do presidente e, como se dizia na lingua-
gem da época, as experiências imediatas
das massas. Estas, finalmente organizadas
segundo arranjos institucionais efetivos,
haviam sido retiradas do plano inferior em
que se encontravam na democracia liberal,

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nósticos sociológicos sobre a natureza da virtu dos que o antecederam, mas por falta
formação nacional brasileira, como pelas de fortuna, já que o ambiente liberal impe-
complexas questões filosóficas do século dia a realização do estadista (17). Por outro
XX: aquele entre racionalismo e irracio- lado, Getúlio, como era chamado informal-
nalismo, objetividade e subjetividade, le- mente, possuía a sabedoria do homem bra-
galidade e realidade, governo e povo, elites sileiro, seus traços psicológicos, sua sensi-
e massas. Um falso dilema, pois não era bilidade. Por isso, era capaz de tão bem
necessário desistir da razão para se comun- representar a nação, ao mesmo tempo or-
gar com a vida social. Entre a frieza e o ganizada hierarquicamente e atravessada
impessoalismo radicais dos procedimen- por sua personalidade. Ou seja, um tipo de
tos legais burocráticos – o absolutismo da sociedade, como as análises histórico-so-
razão – e os excessos personalistas da ciológicas demonstravam, que, não se pau-
ambição e do desejo – o despotismo da tando pelos princípios individualistas,
emoção –, situava-se a política do Estado racionalistas e materialistas, também não
Novo. A obra de governo do presidente seguia um modelo hierárquico tradicional,
Vargas, com destaque a social-trabalhista, onde as distâncias verticais encontravam-
era apresentada como testemunho desse se congeladas, impedindo comunicação e
equilíbrio perfeito. integração sociais.
Como Francisco Campos e Azevedo Elites e massas finalmente reunidas
Amaral insistem numerosas vezes em seus numa comunicação direta e afetiva, sem
textos, os tempos de crise eram os do mito intermediários. Desse fato advinha a capa-
da personalidade. Eram os tempos dos gran- cidade incomparável de Getúlio de se co-
des estadistas. Por fortuna e por virtude municar com todo o povo, que via nele o
Getúlio Vargas seria um deles, pois havia chefe-guia e o amigo-pai, que vibrava no
outros, bem visíveis, no cenário internacio- mesmo compasso de sua família. É bom
nal. A construção de sua figura e de toda a ressaltar que uma das imagens mais fre-
sua obra governamental, pois tudo o que se qüentes a que os discursos estado-novistas
fizera, desde 1930, resultara de sua inter- recorriam para caracterizar o processo de
venção pessoal na direção do Estado, era construção do Estado Nacional era o da
fruto de um conjunto de atributos excepcio- formação de uma grande família. Nela, as
nais. Vargas era um gênio, capaz de, por lideranças sindicais eram como irmãos
sua inteligência superior, entender e resol- mais velhos e o presidente – o pai dos po-
ver os complexos problemas da nacionali- bres –, o pai de um povo nobre e trabalha-
dade em clima de ordem e tranqüilidade. dor, a quem ele se dirigia com uma interpe-
Aliás, bem conforme à índole e à sabedo- lação que se tornaria famosa: “Trabalha-
ria particulares do povo brasileiro, final- dores do Brasil!” (18).
mente valorizado e conduzido ao centro Nesse contexto, a imagem de Vargas
do cenário político, do qual estivera afas- pode ser interpretada como um dos símbo-
tado pelas ficções liberais. O presidente los do laço político – do contrato –, que
era, a um só tempo, povo e patriciado, estava sendo firmado entre Estado e povo/
17 Azevedo Amaral, Getúlio
sintetizando as qualidades intelectuais de nação. Tal contrato guardava a idéia do
Vargas: Estadista, op. cit. nossos maiores – até então desviadas de encontro entre lei e justiça, entre força e
18 Estou me utilizando fartamente, um rumo adequado à nacionalidade –, e a temperança, com freqüência separadas na
para tais considerações, dos
artigos de Cultura Política e de sensibilidade e intuição privilegiadas do história do povo brasileiro, mas presentes
uma série de discursos pronun- homem brasileiro. no governo de uma pessoa intelectual e
ciados pelo ministro do Traba-
lho, Indústria e Comércio, Ale- O presidente Vargas, como era geral- moralmente excepcional, como o novo
xandre Marcondes Filho, no
programa radiofônico A Hora
mente nomeado em situações formais, pos- chefe da nação. A relação política, própria
do Brasil, entre 1942 e 1945. suía as qualidades de nossos maiores, em- ao pacto que então se estabelecia, funcio-
Veja-se, especialmente, o cap.
VI de: Ângela de Castro Go- bora fosse, de fato, o primeiro estadista de nava como um sistema de prestação total,
mes, A Invenção do Traba- nossa história. Não tanto, como Azevedo como um tipo de troca generalizada, que
lhismo, Rio de Janeiro, Relume-
Dumará, 1994. Amaral procurava explicar, por falta de não distinguia entre o interesse e a obriga-

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ção moral. Dessa forma, a política não era formação. Vargas, como a pessoa maior a
definida como negócio de mercado, onde encarnar o Estado/nação, traduzia essa
tudo tem um preço e, no limite, não há dimensão e possibilidade político-cultural.
valores ou ética (19). No Brasil, a política Sua personalidade e autoridade paternal
era outra e seu laço pressupunha e/ou de- permitiam a manutençao das hierarquias,
senvolvia vínculos abrangentes, persona- sem prejuízo da proximidade com a lide-
lizados e duradouros, que incluíam as idéi- rança. Ele era distinto por sua superiorida-
as de retribuição e sacrifício, impensáveis de, mas justamente por ela estava próximo,
em pactos sociais instrumentais como os junto do povo. A face pública da autorida-
do modelo liberal. de ganhava dimensão familiar, havendo
O Brasil, colocando-se a questão em identidade/intimidade com o poder (22).
termos de uma tipologia clássica de socie- Vargas torna-se, mesmo durante o Es-
dades individualistas e holistas, não preen- tado Novo (e mais ainda em seu segundo
chia exatamente nenhum desses pólos. De governo), uma figura muito freqüente em
um lado, porque em nossa sociedade, ra- caricaturas que exploram suas habilidades
zões culturais de fundo moral, nascidas da de fazer política: para o bem e para o mal.
mentalidade ibérica de nossas classes agrá- Ele é personagem de peças de teatro de
rias, e razões políticas, expressas na orga- revista, de literatura de cordel e de
nização corporativa inaugurada pelo Esta- marchinhas de carnaval, sendo objeto de
do Novo e mantidas pela Constituinte de histórias e piadas, que demarcam e combi-
1946, afastavam-nos da lógica individua- nam amor e ódio. Como era povo e
lista do cálculo e do lucro material. Como patriciado podia e era representado com
Oliveira Vianna ressaltava, até o fim da extrema ambigüidade, tanto porque reunia
década de 1940, no Brasil, “tanto não só os esses dois pólos, quanto porque reunia as
valores espirituais contam, como o dinhei- ambigüidades características de cada um
ro não é tudo”, e é isto que nos resguarda da deles. Vargas era matreiro, desconfiado e
“violência e cupidez” que caracterizam tan- moleque; honesto e desonesto; carinhoso e
tas outras experiências modernas das quais violento; ditador e até democrata!
felizmente nos afastávamos (20). Por outro É claro que a censura no Estado Novo
lado, porque o argumento antiliberal contra exercia olimpicamente seu poder, punindo
19 Venho trabalhando, livremen-
o indivíduo, expresso no poder absoluto da maiores pretensões críticas. Mas também é te, com esses conceitos da an-
necessidade coletiva e da nação como um claro que havia tolerância, orientada pelo tropologia de M. Mauss, es-
pecialmente presentes no: “En-
supersujeito totalizador, também não era desejo de popularização de sua imagem e saio sobre a Dádiva: Forma e
Razão da Troca nas Socieda-
aceito. E não era, por motivos que se articu- da aproximação de seu perfil com o que des Arcaicas”, in Sociologia e
lavam ao primeiro termo, apontando para estava sendo postulado como próprio do Antropologia, São Paulo, EPU,
1974, vol. II.
um projeto de sociedade fundada numa co- ser brasileiro. Se o grande objetivo do Es-
20 Ângela de Castro Gomes, “A
munidade de valores culturais e espirituais, tado era a humanização da sociedade, a Ética Católica e o Espírito de
que conseguia abarcar diversidades indivi- humanização da pessoa do presidente, seu Pré-capitalismo”, in Ciência
Hoje, v. 9, no 52, 1989, p.
duais e regionais sem destruí-las. O papel do símbolo maior, era vital. Ele devia ser po- 28.
Estado e de sua liderança maior era, certa- deroso e respeitado de forma bem brasilei- 21 Esse conteúdo humano da so-
ciedade brasileira aparece ex-
mente, o de respeitar esse conteúdo humano ra. Ele devia se misturar ao povo, rompen- presso por diversos conceitos
da sociedade brasileira (21). do e mantendo, a um só tempo, as distân- em vários autores. Eles guar-
dam especificidades, mas há
Se o indivíduo não imperava, também cias hierárquicas. Ele devia ser o modelo uma equivalência estrutural que
não se tratava de fazer o elogio do Estado de chefe de Estado, paradigma exemplar permite sua aproximação. Os
destaques, no caso, são a cor-
totalizador, tão em voga na década de 1930. de um sistema presidencialista fortalecido, dialidade de Sérgio Buarque
de Holanda e a mentalidade
O objetivo era construir uma coletividade simbólica e organizacionalmente. Como tal, pré-capitalista de Oliveira
nacional em que o indivíduo perdesse seus sua presença, em especial após sua trágica Vianna.

atributos egoístas e maximizadores, sem morte, acabou por se impor como um mito: 22 A noção antropológica de in-
timidade hierárquica pode ser
perder suas possibilidades de expressão como um referencial para o imaginário útil para se pensar o aspecto
como pessoa humana, aliás, seguindo uma político nacional, que se atualiza e se res- que está sendo destacado, re-
forçando a idéia de “proximi-
diretriz católica sempre presente em nossa significa com o passar do tempo. dade de sentidos”.

REVISTA USP, São Paulo, n.65, p. 105-119, março/maio 2005 119

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