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O Discurso Publicitário: dialogismo e heterogeneidade 1

Dylia LYSARDO-DIAS2

Resumo : Considerando que toda comunicação verbal comporta a interação entre discursos
sobre o mundo, este trabalho tem por objetivo focalizar o dialogismo como um processo de
(re)elaboração de representações sociais. Através da análise de textos publicitários,
analisaremos as configurações dialógicas que se manifestam na superfície textual. Visando
a adesão cada vez maior da instância de recepção, o discurso publicitário promove e explora
o cruzamento de universos de referência: assim a publicidade ultrapassa o domínio
meramente comercial e atinge o domínio cultural ao evocar os imaginários sociais e
(re)construir identidades. Partindo de uma referência supostamente partilhada, ela mobiliza
representações amplamente difundidas no sentido de realizar seu projeto de comunicação.

Palavras-Chave: discurso publicitário; dialogismo; heterogeneidade; representações

Introdução

A mídia, pela sua própria natureza comunicacional, busca atingir uma audiência bem
extensa tanto no nível socio-econômico quanto no nível cultural. Por isso, ela deve tornar o
saber que veicula o mais acessível para que esse público seja de fato amplo. Nesse sentido,
ela vai evocar o que Charaudeau (62) chama de categorias de pensamento as mais comuns
ao conjunto da população, ou seja, esquemas simples de raciocínio e saberes amplamente
partilhados no sentido de favorecer a inteligibilidade do que produz e comunica.
Assim, ela retoma saberes supostamente comuns que estabelecem uma identificação
com os sujeitos receptores de forma a tornar a mensagem familiar e, assim, de mais fácil
assimilação. Esse saber, quando de fato de domínio público, compõe o tecido social como
informações que estabelecem um vínculo de pertença aos sujeitos e que lhes confere uma
identidade como grupo. O que está em jogo é a competência cultural dos indivíduos.
No caso específico do discurso publicitário, discurso marcadamente persuasivo,
essas referências socialmente partilhadas são utilizadas como “premissas comuns” que

1
Trabalho apresentado na MT 18 – Análise do Discurso e Estudos da Mídia
2
Professora Adjunta do Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal de Minas Gerais e
Pesquisadora do Núcleo de Análise do Discurso da Faculdade de Letras da UFMG. Endereço eletrônico:
dylia@ufsj.edu.br

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sustentam a interação argumentativa e favorecem a adesão do sujeito consumidor de
publicidade ao comportamento ou estilo de vida que lhe é apresentado. Tais referências
podem estar inscritas no texto de forma mais ou menos explícita, funcionando como
elemento em torno do qual se configura o dizer publicitário. Esse dizer encerra, pois, um
diálogo entre universos de referência e domínios do saber que estabelecem entre si uma
relação de complementariedade.

1 - Dialogismo e heterogeneidade

Opondo-se à concepção da linguagem como uma entidade abstrata, Mikhail Bakhtin


(1979) considera que a realidade da linguagem é o fato social da interação verbal. Por isso,
segundo ele, a linguagem é, por natureza, dialógica já que nela se cruzam as palavras dos
outros.
É em torno dessa idéia que ele vai desenvolver o princípio da dialogicidade da
linguagem no qual a enunciação é concebida como um fazer coletivo. Os enunciados
estariam repletos das palavras dos outros, que seriam absorvidas, elaboradas,
reestruturadas. Isso significa postular um diálogo constante entre os discursos de uma
sociedade, diálogo a ser compreendido não como uma forma específica de interação verbal,
mas como a interação constitutiva de toda e qualquer produção verbal.
Desse princípio dialógico decorre o conceito de polifonia proposto por Bakhtin ao
caracterizar o romance polifônico de Dostoiévski. Analisando diversas categorias de texto,
Bakhtin mostra como alguns apresentam várias posições sobre o mundo, e outros, ao
contrário, são marcados pela única voz do narrador “na boca de vários personagens”. Em
Problemas da Poética de Dostoiévski (1970), Bakhtin caracteriza a polifonia como a
multiplicidade de vozes e consciências independentes e distintas que representam pontos de
vista sobre o mundo. A polifonia representa o diálogo que se estabelece entre visões de
mundo diferentes.
Seguindo essa trilha aberta por Bakhtin, Julia Kristeva (1974) vai empregar o termo
intertextualidade para denominar o cruzamento que se estabelece entre textos na
constituição de qualquer obra. Para Kristeva, todo texto é construído como um mosaico de
citações, de forma a absorver e transformar outras produções a partir de uma relação

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intertextual. Assim, a circulação do saber inerente à constituição textual promove uma
articulação entre universos de referência os mais variados.
A intertextualidade pressupõe a presença de um “texto-fonte” que será retomado
como uma referência (supostamente) partilhada pelas instâncias de produção e de recepção.
Esse cruzamento intertextual pode configurar-se em diferentes níveis: desde aquele mais
pontuado na superfície do discurso até uma referência implícita a algum gênero ou
produção cultural3.
Para contemplar esses níveis, Ingedore Koch (1991) propõe o conceito de
“intertextualidade em sentido amplo” e “intertextualidade em sentido estrito” (que
correspondem, respectivamente, aos conceitos de heterogeneidade constitutiva e
heterogeneidade marcada4 ). No primeiro caso, Koch se refere à condição de existência do
próprio discurso, também denominada interdiscursividade; no segundo caso, a
intertextualidade representa a relação de uma produção verbal com outra (s) previamente
existente (s).
A reelaboração dos dizeres que está na origem da constituição do dizer é responsável
pela heterogeneidade dos discursos que, conforme Authier-Revuz (1984), ao se revelar de
forma explícita na materialidade textual seria denominada de heterogeneidade mostrada.
Ela, diferentemente da heterogeneidade constitutiva, seria a indicação na superfície do texto
da presença de outros discursoS, de outras vozes que não a do locutor. No conjunto das
formas de heterogeneidade mostrada, Authier-Revuz diferencia as formas marcadas
(discurso direto, citação aspas,itálicos) das formas não marcadas (ironia, pastiche, discurso
indireto livre,metáforas etc)
Assim, o movimento dialógico de incorporação de discursos outros e de discursos
dos outros seria manifesto e estaria marcado no fio enunciativo. Sua análise indicaria não
apenas a presença de vozes sociais, como também a a maneira como elas se configuram
textualmente.

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Deve-se ressaltar que o reconhecimento da referência, em qualquer um dos seus níveis, depende do seu conhecimento
prévio.
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Authier-Revuz (1982 e 1984) introduz a noção de heterogeneidade, distinguindo a heterogeneidade constitutiva
(aquela que não aparece marcado lingüisticamente no fio do discurso) da heterogeneidade aparente (a presença de
outros discursos ou de outras vozes indicadas na superfície do texto).No conjunto das formas de heterogeneidade
aparente, ou mostrada, Authier-Revuz diferencia as formas marcadas (discurso direto, citação, aspas, uso de itálicos)
das formas não marcadas (ironia, pastiche, discurso indireto livre, metáforas etc).

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2- A comunicação publicitária : da informação à sedução

A publicidade, como todo ato de linguagem, é voltada para influenciar o outro.


Definida como ato de vulgarizar, de tornar público um fato ou idéia, a publicidade nasceu
sob o signo da informação porque ela se articulava em torno de relatar as vantagens do
produto para incentivar seu consumo. Porém, a “simples” informação sobre o produto foi
cedendo lugar a uma estratégia mais apurada voltada para o inconsciente das pessoas: o
produto passa a ser apresentado não somente pela sua função utilitária, mas pelo seu
potencial de satisfazer desejos e necessidades relacionadas ao universo social e psicológico
do ser humano.
Nesse sentido, a enunciação publicitária se organiza em torno de interesses de ordem
econômica: a empresa comercial/anunciante e a agência publicitária, instância de produção
da mensagem, buscam atingir e convencer consumidor da publicidade a se tornar
consumidor do produto. Tudo gira em torno de captar a atenção e influenciar instância de
recepção. Logo, a instância de produção, condicionada pelo espaço cultural e histórico no
qual se encontra inscrita coloca em cena uma dada configuração textual de forma a incitar
os sujeitos destinatários, interpelando-os como indivíduo que possui um desejo e uma
necessidade. Por isso, Soulages (1996) considera que o sujeito enunciador da mensagem
publicitária se coloca como benfeitor, pois estaria oferecendo ao destinatário algo de que
necessita.
Dessa maneira, o contrato publicitário constrói identidades e atribui um papel social
às instâncias de produção e de recepção. Conforme Lysardo-Dias e Gomes,

verifica-se a construção de uma dupla armadilha: uma troca de solidariedade


comercial entre publicitário e anunciante, na qual, este lida com as necessidades
econômicas da empresa (lucros, aceitação do produto, venda) e o primeiro, com as
necessidades básicas e íntimas do consumidor. Assim, se o consumidor comprar o produto,
ele estará construindo a identidade de um parceiro aliado e cúmplice do espaço contratual
do mercado de bens de consumo (2005).

Dessa maneira, a publicidade adquiriu uma dimensão simbólica por ultrapassar o


nível funcional: conferindo ao produto uma significação no plano social (a aquisição do

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produto/serviço anunciado é relacionada à satisfação dos desejos e aspirações individuais),
ele passa a ocupar um lugar específico nas representações coletivas.
Em termos de finalidade comunicativa (Charaudeau, 1997), seu objetivo é o mesmo:
promover a aquisição de um produto, bem ou serviço. Porém, seus dispositivos buscam
associar o produto a certos valores que permeiam o imaginário de sucesso social e
satisfação pessoal de uma determinada comunidade. Para tanto, a publicidade lança mão de
estratégias voltadas para a mobilização e articulação dos mais variados discursos que, por
sua vez, são representativos de estilos de vida e de uma determinada visão de mundo.
Esse cruzamento de códigos lingüísticos e sociais faz da publicidade um espaço
privilegiado de jogos intertextuais nos quais os diferentes tipos de textos evocados revelam
os universos de referência supostamente de maior impacto ou prestígio junto ao grande
público.

3- Configurações dialógicas

As três mensagens publicitárias a seguir são representativas de algumas das formas


de diálogo entre diferentes textos, que, por sua vez, remetem a universos de experiência e
domínios culturais diferenciados.
A publicidade impressa (1) apresenta o seguinte texto:

“Moro num país


tropical de manhã,
equatorial na
hora do almoço,
temperado à tarde
e polar à noite.
(publicidade da Aspirina)

O texto de referência desse slogan é a música “País tropical” (Jorge Benjor) que
enaltece as belezas e as qualidades do Brasil. O slogan retoma o início da música, logo uma
expressão mais facilmente identificável devido a maior probabilidade de ter sido
memorizada pelo público uma vez que a canção fez grande sucesso. Assim como a música

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descrevia nosso país, o slogan vai descrever o clima instável que o caracteriza, clima que
pode causar a gripe. Ao verso inicial da música, foram acrescentadas outras expressões
dispostas graficamente em verso, como se fosse uma canção também. O universo
publicitário estabelece um diálogo com o universo musical, supostamente conhecido e
capaz de evocar algo familiar aos leitores da publicidade impressa. A variação climática é
tratada de forma poética, o acaba por amenizar seus impactos negativos.
A publicidade impressa (2) traz o seguinte texto:

“ Pela estrada afora eu


não vou bem sozinha.”
(Itaú Seguros)

Esse slogan recorreu à Literatura, mais especificamente a estória de Chapeuzinho


Vermelho. O verso inicial da música que a personagem-título canta ao ir para a casa da
vovó ganha nova versão com a inclusão do “não”, versão que muda o rumo da estória.
Chapeuzinho vermelho correu risco de vida não só por desobedecer as orientações da mãe,
como também por estar sozinha, o que facilitou a ação do lobo mau. A versão proposta pelo
anunciante (Itaú Seguros) é estar junto do consumidor, logo lhe oferecer proteção. Se no
conto de fadas a personagem-título correu riscos e colocou sua vida em perigo, no “mundo
real” isso pode ser evitado se o produto proposto, o seguro, fo r consumido. Quem se
beneficia com a aquisição da mercadoria é o destinatário, como se não houvesse uma
empresa ávida por lucro, até pr questão de sobrevivência. É interessante notar que esse
universo infantil mobilizado faz apelo à segurança que se deve oferecer às crianças quando
estas andam de carro.
Finalmente, a publicidade impressa (3) apresenta o texto:

“As aparências enganam. Mas aí vêm os sapatos e contam toda a verdade”. (slogan
da publicidade de Nugget )

Esse texto cita o enunciado proverbial “As aparências enganam”; enunciadoque é


reconhecidamente um déjà - dit, uma idéia “pret-à-insérer” que faz parte do patrimônio
cultural de uma comunidade e que revela a visão de mundo e os valores partilhados dos

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membros dessa comunidade. Do ponto de vista formal, trata-se de um enunciado que tem
uma estrutura sintática regular e um ritmo marcado que favorecem sua memorização e
captam a atenção do leitor. Nesse caso, a publicidade estabelece um diálogo com o conjunto
de saberes que faz parte do próprio tecido social. Os provérbios são tidos como a sabedoria
das nações, a “voz do povo” que revela um conhecimento imemorial, aquelas “verdades
coletivas”.
Sempre dependendo do conhecimento partilhado entre os interlocutores, os
enunciados proverbiais representam o exemplo mais clássico de heterogeneidade na
publicidade, sendo que sua forma cristalizada favorece a identificação no slogan. É a
articulação entre o interesse privado da empresa anunciante e o conhecimento socialmente
partilhado por um grupo social. O enunciado de forma fixa (provérbio, dito popular,
máxima etc.) em qualquer texto tem seu reconhecimento facilitado por essa estrutura já
conhecida, mesmo que ele seja objeto de um trabalho paródico. Sua presença pode ser
detectada pela similaridade e paralelismo que mantém com a “versão original”.

Considerações finais

A publicidade, buscando o diálogo com grandes públicos, vai cada vez mais buscar
referências coletivamente partilhadas para modular seu próprio dizer de forma a se
aproximar do seu público-alvo e atingir sua finalidade. É dessa forma que o dialogismo
proposto por Bakhtin se manifesta nos meios de comunicação de massa, articulando
discursos e cruzando vozes sociais que ecoam das mais diversas fontes e domínios do saber.
O cruzamento de universos faz com que a publicidade adquira uma dimensão
simbólica, pois ela trabalha os imaginários de uma dada sociedade conferindo-lhes uma
significação e atualizando seus sentidos. Por isso, a publicidade é um suporte das
representações sociais.
O jogo intertextual que a publicidade promove com frases e expressões codificadas
criam efeitos de sentido os mais diversos através da (re)elaboração de uma visão de mundo.
Esse jogo constitui tanto uma estratégia de argumentação como uma forma de captação e de
sedução do público consumidor de publicidade.

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Referências Bibliográficas

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KRISTEVA,Júlia. La Révolution du Langage . Poétique.Paris:Seuil, 1974.

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