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EDITORA SHU

apresenta

CIVILIZAÇÃO CHINESA

POR

MARCEL GRANET

Volume 2

Rio de Janeiro, 2002

NOTAS SOBRE A EDIÇÃO

Esta é uma reedição do livro Civilization Chinoise, publicado em 1928 pelo grande sinólogo francês
Marcel Granet. Apesar de ser um livro antigo, as interpretações que o autor faz sobre a História chinesa
continuam atuais, e, por causa disso, este manual ainda consta em qualquer bibliografia moderna sobre
sinologia.

Esta é uma tradução baseada na versão, em português, publicada pela editora Otto Pierre em 1979. As
notas do texto são apresentadas entre parênteses, e as datas, entre colcheias. Mantivemos o sistema de
transliteração de nomes chineses para o francês em respeito ao texto original. Este sistema, denominado
EFEO, atualmente está em desuso, mas o leitor não terá dificuldade em identificar os nomes de textos e
personagens históricos famosos. Assim, livros como o Shi Ji encontram-se escritos como Chou Ki; a
dinastia Zhou aparece, por exemplo, como Tcheou; mas, ao longo do livro, estas dificuldades
desaparecem, e a partir daí o que fazemos é nós deliciar com este texto erudito e profundo, que marcou
gerações diversas de historiadores.
Atenciosamente

Editora Shu

Rio de Janeiro, 2002

www.orientalismo.cjb.net

Lugares-Santos e cidades

Desde o passado mais longínquo que os

documentos nos permitem imaginar, os

habitantes da velha China viveram agru-

pados em aglomerações bastante pode-

rosas. É provável que a densidade dos

agrupamentos tivesse aumentado na

medida em que progrediu a preparação do solo, com

Os desflorestamentos, os arroteamentos, a drenagem.

Cataclismos locais (inundações, incursões, de nôma-

des) puderam, aqui e ali, retardar este progresso: não

temos nenhum meio de avaliar isto. De fato, a exis-

tência de comunidades rurais, formadas simplesmente

de dois grupos territoriais unidos, não nos deixa reve-


lar, senão com a ajuda da nomenclatura de parentesco

e dos traços que o dualismo deixou nos usos jurídicos

e religiosos. Deve-se presumir que, desde a aurora

dos tempos históricos, os agrupamentos territoriais

eram de uma natureza relativamente complexa: entra-

va em sua composição mais de dois grupos exógamos

e solidários. Nas próprias aldeias deviam encontrar-se,

como hoje, tanto pessoas trazendo o mesmo nome, ou,

pelo menos, não se casando entre si, quanto pessoas

pertencendo a famílias diferentes. De qualquer manei-

ra, os documentos sempre fazem aparecer, justaposta

à China das aldeias, uma China das cidades.

Cidadãos e aldeões opõem-se da maneira mais

evidente: uns são os rústicos, os outros são os no-

bres. Estes se vangloriam de viver "segundo os ritos",

os quais "não descem até as pessoas do povo" (395).

Os camponeses, por outro lado, recusam-se a interfe-

rir nos negócios públicos. "Os comedores de carne

que deliberem", dizem eles (396). Uns e outros não têm

as mesmas preocupações, nem a mesma alimentação.

Eles diferem a ponto de seguir sistemas opostos de

orientação: os nobres preferem a esquerda e os al-

deões, a direita (397). A aldeia tem, no máximo, um de-

cano. Os nobres são os vassalos de um homem que é

o Senhor da cidade. Eles levam, a seu lado, uma vida

ocupada inteiramente com as cerimônias da corte.

Reunidos em redor do Senhor, eles cantam seu des-

prezo pelo "povo dos campos, o povo dos rústicos -

vivendo, somente, para comer e beber...- Mas eles,

todos os nobres, eles, todos os vassalos - juntam-se


e fazem a Virtude do chefe" (398)!

Os camponeses passam por ser rendeiros. Os

cidadãos são conquistadores? Não há senhor sem ci-

dade e, de toda cidade, diz-se que ela foi fundada por

um senhor. É este o descendente de uma raça vito-

riosa que teria introduzido na China, de uma só vez, o

regime feudal e a organização urbana? Não há nenhu-

ma razão de ordem histórica que permita aceitar esta

hipótese ou recusá-la. A história não traz nenhum tes-

temunho em favor de uma invasão: mas, por que a

China teria sofrido menos invasões na antiguidade

desconhecida do que nos tempos históricos? Por outro

lado, a oposição entre nobres e camponeses é um fa-

to: mas com que direito se pode afirmar que os su-

postos invasores estavam organizados feudalmente?

A oposição pode resultar de uma evolução diferente

de costumes em dois meios distintos, mas da mesma

origem. É possível que os invasores tenham se intro-

duzido na China, mas pode-se explicar o aparecimento

das cheferias fazendo-se abstração de toda hipótese

de ordem propriamente histórica. O poder dos chefes

parece fundado em crenças que se esboçaram nos

meios camponeses.

O Chefe possui uma força idêntica àquela que

as comunidades atribuem a seus Lugares-Santos. Ele

exerce esse poder numa cidade considerada um Cen-

tro ancestral.
Nos Lugares-Santos, realizavam-se grandes fes-

tas que eram também feiras: ali se comunicava com o

solo natal; convidavam-se os antepassados a vir se

reencarnar. - A cidade nobre é santa; ela contém um

mercado, um altar do Solo, um templo dos Ancestrais.

A cidade do fundador de uma dinastia senhorial traz o

título de Tsong. Emprega-se, também, esta palavra pa-

ra designar os grupos de pessoas unidas pelo culto de

Um mesmo ancestral. Uma expressão como Tcheou-

tsong, pode ser entendida como: Centro ancestral dos

Tcheou. Mas a mesma palavra é encontrada na expres-

são Ho-tsong. Ora, esta vale, ao mesmo tempo, para

denominar o Houang.ho (o Ho: o rio por excelência)

e o deus do Houang-ho. Ela é usada, também, para de-

signar o grupo familiar encarregado do culto do rio

Amarelo, assim como a residência deste grupo. Esta

última é considerada uma Cidade, um Centro ances-

tral. Ela se confunde com o Lugar-Santo onde a força

divina do rio se manifesta (399).

A cidade senhorial é a herdeira do Lugar-Santo.

O chefe é o duplo de um poder sagrado que, impessoal

no início, merecia a veneração de uma comunidade.

Realizado depois sob o aspecto de um ancestral, ele

recebeu o culto de um grupo hierarquizado.

A santidade dos lugares de festa camponeses

passou inteiramente para o Chefe e para sua Cidade.

Ela se incorporou na pessoa senhorial, no templo an-

cestral, no altar do Solo, nas muralhas e nas portas da

cidade. Uma passagem que se encontra em Mei-ti é


significativa (400). Num sermão eloqüente, Mei-ti dá

provas decisivas do poder vingador que pertence às

divindade. Ele mostra os deuses punindo os culpados

sobre o altar do Solo, num templo ancestral, num pân-

tano, e, enfim, num lugar denominado Tsou, sem dú-

vida, menos conhecido ou menos definido. Ele excla-

ma, então: "E Tsou, para a região de Yen, é como o

altar do Solo e das colheitas para Ts'i, é como Sang-

lin (a Floresta das amoreiras) para Song, é como (o

pântano de) Yun-mong para Tch'ou: é lá que rapazes

e moças se juntam e vêm assistir às festas!" É evi-

dente a aproximação entre os cultos urbanos e as fes-

tas campestres. No caso de Sang-lin, é particularmen-

te instrutivo. Sang-lin figura no sermão de Mei-ti como

templo ancestral dos príncipes de Song. Ele figura, em

outro lugar, como deus do Solo e é também o nome

de uma porta de Song (401). É ainda o nome de um de-

miurgo e o de um Lugar-Santo, cujo gênio comanda a

chuva, a seca, a doença (402); devotando-se a este

Lugar-Santo, o fundador dos Yin, ancestrais dos prín-

cipes de Song, mereceu tomar o poder(403). Apenas

os príncipes de Song possuem o culto de Sang-lin. O

essencial deste culto é uma dança, a dança de Sang-

lin (404). Ora, como Mei-ti afirma, Sang-lin é o lugar das

festas da região de Song, onde rapazes e moças se

reuniam. Surge, então, uma continuidade entre as fes-

tas das comunidades camponesas e os cultos dos se-

nhores feudais.

Os cultos urbanos são o resultado do desmem-


bramento de um culto rural dirigido a forças santas

indistintas. A virtude do Lugar.Santo foi transferida (às

vezes, como se observou, com seu próprio nome) aos

altares onde se honram deuses diferentes. Fora de

sua cidade, os senhores rendem um culto a tal mon-

tanha ou a tal rio. No Monte ou no Rio encontra-se,

integralmente, a eficácia dos lugares consagrados às

reuniões camponesas. Eles são os reguladores da or-

dem natural, como da ordem humana. O Chefe também

o é, e tanto quanto eles. Ele não reina sobre a natureza

menos do que sobre seus seguidores. Seu poder é

colegiado ao dos lugares sagrados da sua região. Estes

são o princípio exteriorizado de seu poder. Este é ine-

ficaz se a Montanha ou o Rio mostram-se impotentes,

e Montes e Rios são impotentes se a Virtude própria

da Raça senhorial acha-se esgotada. "Um domínio de-

ve ter o apoio de seus Montes e de seus Rios. Quando

a Montanha desmorona ou o Rio seca, isto é um pres-

ságio de uma ruína (405)."

O poder do Chefe, o poder do Lugar-Santo têm

a mesma duração, a mesma amplidão, a mesma quali-

dade, a mesma natureza. Eles são indistintos a ponto

de o Herói feudal e de seu Lugar-Santo serem, cada

qual, o duplo do outro. É pelo efeito da Virtude de um

Fundador, tal como Yu, o Grande, que correm os Rios

augustos e que se elevaram os Montes veneráveis.

Por outro lado, enquanto que Chen-nong e Houang-ti

puderam adquirir, cada qual, junto a um rio o gênio

específico que os habilitou a reinar, foram "das Mon-


tanhas santas (que) desceram as forças sagradas que

fizeram nascer (os príncipes de Fou e de Chen)" (406).

Entre o Lugar-Santo e o Chefe existe um vínculo

de interdependência que pode surgir sob o aspecto

de uma relação de filiação. Quando assim se imagi-

nam as coisas, o Lugar-Santo de uma comunidade cam-

ponesa apresenta-se como o Centro ancestral de uma

dinastia feudal.

Poderes difusos e autoridade individual

Toda raça senhorial liga-se a um Fundador.

O nascimento deste último é devido, nor-

malmente, a um milagre.

Únicos qualificados para seu culto e

mestres de sua dança, os possuidores de

Sang-lin (a Floresta das Amoreiras) são

descendentes de uma mulher que concebeu por ter

engolido um ovo (tseu) de andorinha. Ela o conquistou

numa justa, no dia do equinócio da primavera (407). Al-

guns dizem que ela concebeu depois de haver cantado

num local denominado a Planície das Amoreiras (408),

Se o Herói que nasceu dela recebeu como nome de

família o nome de Tseu (ovo), foram as amoreiras cres-

cidas miraculosamente que anunciaram a seus descen-

dentes um renascimento ou um declínio da Virtude

própria de sua raça (409). Assim, o nome simbólico e o

emblema real ligam-se, os dois, a um mito análogo: o

de um nascimento obtido num Lugar.Santo, durante


uma festa das estações.

Nos meios camponeses, um simbolismo consti-

tuído por emoções fortes e confusas era a alma de

toda crença e de todo culto. As imagens aparecidas

na paisagem das festas eram tomadas como manifes-

tações, sinais, símbolos de uma força criadora reali-

zada no Lugar-Santo. Ora, o parentesco que implicava a

obrigação exogâmica repousava, unicamente, no vín-

culo simbólico do nome é na posse de uma essência

comum. Esta, sustentada pela comensalidade, era ex-

traída da alimentação tomada no território familiar.

Entre este último e o nome de família devia existir,

asseguram-nos, uma espécie de consonância. Estes

fatos permitem supor que a organização camponesa

era fundada num princípio análogo ao princípio totê-

mico. Totens, ou para dizer melhor, emblemas eram

escolhidos, segundo toda probabilidade, entre os ani-

mais e os vegetais que apareciam no Lugar-Santo na

época das festas. Certos motivos de canções antigas

só podem ser compreendidos se forem considerados

os temas de um sortilégio destinado a fazer multiplicar

uma espécie associada. "Gafanhotos alados - como

sois numerosos! - Possam vossos descendentes -

ter grandes virtudes(410)!" As justas, as danças, os

cantos procuravam obter, com a prosperidade de cada

grupo, a da espécie simbólica. As plantas e os ani-

mais, cujas sementes ou ovos eram consumidos, para

que fosse assimilada sua essência e que a eles se

comunicasse, aparentando-se, deviam ser, muitas ve-


zes, plantas e animais humildes. Foi de uma semente

de tanchagem que nasceu Yu, o Grande, primeiro rei

da China.

A história só se preocupa com as grandes fa-

mílias. Só conhecemos os emblemas dos príncipes.

Estes, geralmente, não são bichos vulgares, mas ani-

mais míticos. Sua natureza compósita revela um tra-

balho de imaginação semelhante ao da arte do brasão

e que teve seu ponto de partida na dança. Entre esses

animais heráldicos figura o Unicórnio, que evocavam

com o auxílio de versos muito semelhantes àqueles

dos "Gafanhotos"(411). O mais célebre dos animais

simbólicos é o Dragão. O Dragão, antes de ser um

símbolo da força soberana, foi o emblema da primeira

dinastia real, a dos Hia (ou, antes, um dos emblemas

que a tradição atribuía aos Hia (412). Um dos ancestrais

dos Hia transformou-se em dragão num Lugar-Santo.

Esta metamorfose aconteceu quando ó esquartejaram.

Ela é, portanto, conseqüência de um sacrifício. Dra-

gões apareceram quando houve uma renovação ou um

declínio da virtude genérica que autorizava os Hia a

reinar. Um ramo de sua família tinha o privilégio de

criar dragões e conhecia a arte de fazê-los prosperar.

Um rei Hia, para fazer seu reinado prosperar, alimen-

tava-se de dragões. Enfim, dois dragões-ancestrais pro-

porcionaram o nascimento dos descendentes dos Hia.

Fato notável: antes de desaparecerem, não deixando

senão uma espuma fecundante, eles tinham lutado um

contra o outro (413). As justas entre dragões, macho e


fêmea, assinalavam as chuvas e tinham por cenário

Os pântanos formados por dois rios que transborda.

ram (414). Dizia-se, também, neste caso, que os rios lu-

taram juntos e estas eram, sem dúvida, justas sexuais,

pois as divindades de dois rios que se unem passam

por ser de sexo diferente (415). Dois rios que se jun-

tam são, de resto, um símbolo da exogamia. Os con-

fluentes eram, com efeito, lugares consagrados às

justas amorosas. No tempo das enchentes, os rapazes

e as moças, atravessando a água, pensavam ajudar as

reencamações e chamar a chuva que fertiliza (416). Ora,

a travessia pela água por bandos que dançavam afron-

tando-se era praticada, acreditava-se, para imitar a

justa de dois dragões, macho e fêmea. Assim, eles

eram induzidos a se unir e a fazer cair as águas fecun-

dantes (417). Vê.se que antes de constituir um emblema

do príncipe, o dragão foi o tema das danças populares.

Os dragões foram, inicialmente, uma projeção no mun-

do mítico dos ritos e jogos das festas das estações.

Mas logo que se viu neles os patronos de uma raça de

Chefes, a única que sabe comê-los e fazê-los prospe-

rar, estes dragões, simples emanações do Lugar-Santo,

figuram como Ancestrais. Neles está toda a virtude do

Lugar-Santo, toda a virtude das festas. Esta se acha

também, difusa, na raça heróica. Ela só se encama ver-

dadeiramente no par de Grandes Ancestrais que ga-

rantem as reencarnações e que são, ao mesmo tempo,

dragões e homens.

O gênio misto da espécie pode se individualizar


ainda mais. Para as festas primaveris da região de

Tcheng, rapazes e moças reuniam-se num lugar onde

cresciam orquídeas perfumadas. Eles as colhiam e,

agitando-as sobre as águas, convidavam, gritando, as

almas dos ancestrais a vir se reencarnar. Pensavam

assim atrair uma alma-sopro (houen), que não se dife-

rencia do nome pessoal. Terminada a justa, a moça

recebia, em penhor, uma flor do rapaz ao qual se unia.

A orquídea do Lugar.Santo servia, pois, para propor-

cionar nascimentos a todas as pessoas de Tcheng. Ela

acabou tornando-se um emblema do príncipe. "O du-

que Wen de Tcheng tinha uma mulher de segunda ca-

tegoria, cujo nome era Yen Ki. Ela sonhou que um

mensageiro do Céu lhe dava uma orquídea (lan), di-

zendo-lhe: "Sou Po-yeou; sou teu ancestral. Faze disto

teu filho. Porque a orquídea tem um perfume de prín-

cipe (ou, também, porque a orquídea tem o perfume

da região), ele será reconhecido como príncipe (de

Tcheng) e será amado. Depois disto, o duque Wen

veio vê-la. Ele lhe deu uma orquídea e deitou-se com

ela. Excusando-se, ela disse: "Vossa serva não tem ta-

lento (= não tem prestígio), se por vosso favor eu

tiver um filho, não terão confiança em mim: ousarei

tomar como prova esta orquídea?" O duque respon-

deu: "Sim". Ela trouxe ao mundo (aquele que foi) o

duque Mou cujo nome pessoal foi Lan (orquídea)...

Quando caiu doente, o duque Mou disse: "Quando a

Orquídea morrer, eis que morrerei também, eu que vi-

vo por ela (ou, ainda, que nasci dela)". Quando se


cortou a orquídea, o duque morreu (686 a.C.)." Esta

lenda implica que nome pessoal, alma exterior ou pe-

nhor de vida, testemunho de paternidade, prestação

nupcial, princípio de maternidade, título de poder, pa-

trono ancestral e emblema são equivalentes indistin-

tos(418), A espécie emblemática acha-se associada a

um individuo e corresponde, nunca ao nome de família,

mas ao nome pessoal. O gênio do Lugar Santo, incor-

porado numa planta característica, é a propriedade do

Ancestral que se reencarna e só dá a vida àquele que

merece ser um Chefe. É somente quando o Lugar.

Santo, onde a planta é colhida, é representado como

um Ancestral que dá a planta, que o emblema, dei-

xando de ser de um grupo, aparece como um emblema

do príncipe. O Chefe, então, possui sozinho o gênio

do Lugar-Santo e considera este último um Centro

ancestral.

Um fato deve ser retido; o Ancestral substituí-

do no Lugar-Santo é um ancestral materno, Nos meios

camponeses, as mulheres foram as primeiras a adqui-

rir, com o título de mães, uma autoridade. No momento

em que foi elaborada a idéia de Terra-Mãe, a noção

de parentesco pareceu sobrepujar a de aparentamento-

aliança, da qual se destacava. Concebida como um

vínculo unindo uma criança à raça materna, o paren-

tesco pareceu repousar na filiação uterina e implicar

uma parte de relações individuais. Sem dúvida, é então

que o vínculo de dependência global, unindo indistin-

tamente uma comunidade inteira ao lugar sagrado de


suas festas, foi imaginado sob o aspecto de uma rela-

ção de filiação, ligando o Chefe, que absorve toda au-

toridade, a um ancestral materno investido de todo o

poder do Lugar-Santo.

Deuses e chefes masculinos

Os primeiros passos do poder indivi-

dual e da hierarquia datam da épo-

ca em que reinou, por algum tempo,

o direito matriarcal. O tema das

Grandes Avós, das Rainhas-Mães,

ocupa um lugar importante na mi-

tologia chinesa. Toda raça senhorial descende de um

Herói, mas é à Mãe do Herói que se dedica a venera-

ção maior. Nada, na cidade feudal, é mais sagrado do

que o templo da Avó da raça. Os mais belos dos hinos

dinásticos são cantados em sua honra(419).

Entretanto, a organização feudal repousa no re-

conhecimento do privilégio masculino. Parece-nos que

somente os príncipes, de pai para filho, comandam as

estações; somente eles são juizes e mantêm a con-

córdia entre os homens. Mas temas diferentes, júri-

dicos ou míticos, deixam entrever que os atributos

mais arcaicos da autoridade do príncipe, antes de per-

tencerem a um chefe masculino, foram detidos por

um casal de príncipes, onde a esposa não teve, inicial-

mente, o papel mais apagado.


De sua cidade e por simples proclamações men-

sais, o Chefe, senhor do calendário, determina esta

colaboração dos homens e da natureza, realizadas,

outrora, pelas núpcias equinocias dos Lugares-Santos.

Tal é a teoria ritual. Mas os Ritos afirmam, por outro

lado, que o maior negócio de Estado é o casamento

do príncipe (420). A ordem do mundo e da sociedade de-

pendem dele. O universo desregula-se quando a união

entreo rei e a rainha não é perfeita. Se um e outra

ultrapassarem seus direitos, a Lua ou o Sol se eclip-

sa. "O Filho do Céu dirige a ação do principio mas-

culino (Yang), sua mulher, a do principio feminino

(Yin)(421)." Sua harmonia é indispensável. Um rei não

é nada sem sua rainha, um senhor não é nada sem sua

dama. Os sacrifícios não são válidos se não forem ce-

lebrados por um casal de esposos. O principio de opo-

sição necessária dos sexos é reforçado pelo principio

que exige sua colaboração (422). Um chefe (no Estado

ou na família) não pode ficar sem mulher. Com efeito,

a vida sexual interessa à ordem universal. Ela deve ser

regulada minuciosamente. Quando a Lua ficar redonda

e estiver voltada para o Sol, o rei e a rainha devem se

unir(423). Ora, a lua cheia é um equivalente ritual do

equinócio. A união do chefe e de sua mulher não tem,

para o pensamento feudal, menos poder do que tive.

ram, em outro meio, as núpcias coletivas das festas

federais, que se celebravam nos meses do equinócio

do outono e da primavera. A autoridade do príncipe

substituiu a do Lugar.Santo. Ele cumpre sua tarefa ce-

lebrando, em tempos regulares, hierogamias fecundas.


Ele parece ser o único senhor. Com efeito, o pensa-

mento jurídico concede ainda à mulher um certo poder,

mas que propriamente não lhe pertence. A rainha, di-

zem, não possui senão um reflexo da autoridade mari-

tal. A Lua obtém sua luz do Sol, inicialmente, entre-

tanto, o poder foi detido por um casal de príncipes.

Uma fórmula mostra-o bem. O Chefe nunca diz que é

o pai do povo. Ele pretende ser "o pai e a mãe". Isto

é reconhecer que ele concentrou a autoridade que,

outrora indivisa, pertencia a um casal.

Sozinho e em sua cidade, o príncipe exerce o

poder de juiz e de pacificador dos conflitos. Os deba-

tes judiciários, aos quais preside, são combates de

imprecações que têm um aspecto de justa. Os torneios

judiciários realizavam-se, habitualmente, na cidade e

sobre o altar do Solo. Entretanto, os processos mais

graves deviam ser julgados (em Lou, pelo menos) nas

margens do rio onde, com o auxilio de justas dança-

das, celebravam-se também as festas primaveris (424).

Por outro lado, uma mesma palavra designa as queixas

processuais dos litigantes e a ladainha das justas

amorosas(425). Um Fundador, o Ancestral dos prín-

cipes de Yen, é célebre como justiceiro. Os debates,

aos quais presidia, eram disputas em versos, tendo

como adversários rapazes e moças. Suas sentenças

não eram nunca pronunciadas na cidade, sobre um

altar do Solo, mas ao pé de uma árvore. Esta, durante

longos séculos, foi venerada - tanto como o juiz. Era

provavelmente a árvore mais sagrada de um Lugar-


Santo. A sua sombra, o Grande Ancestral de Yen pre-

sidia às festas sexuais que traziam a paz e a boa

ordem. Este herói, na verdade, tinha um título signifi-

cativo, aquele de Grande Mediador(426). O mesmo

título era, nos tempos feudais, usado por um funcio-

nário encarregado de presidir "às reuniões nos cam-

pos" que a sabedoria do príncipe tolerava, dizem, no

segundo mês da primavera (equinócio). Ele presidia

também certas cerimônias nupciais. O mesmo título

é ainda atribuído a um herói, Kao-sin, que é um dos

primeiros soberanos chineses. Homens e mulheres

iam celebrar a festa de Kao-sin em pleno campo e,

precisamente, no dia do equinócio da primavera. Não

era, dizem, uma festa popular. Limitava-se a pedir

crianças para a casa reinante. Kao-sin merecia a con-

fiança que nele se depositava. Outrora, duas de suas

mulheres tinham dado à luz um Fundador de linhagem

real. É verdade que uma havia concebido pousando os

pés sobre a pegada de um gigante, a outra depois de

um banho, de uma justa e de ter comido um ovo, e

todas as duas no meio dos campos. Admitiu-se, mais

tarde, que o Céu era o verdadeiro pai destes Filhos do

Céu. Entretanto, como para as Mães da raça, cons-

truiu-se para Kao-sin um templo, que lhe fora dedicado

por ter sido o Mediador Supremo(427). O estudo des-

tes dados mostram que o príncipe, como o Lugar-Santo,

é o autor de uma concórdia fecunda. Ele a recria perio-

dicamente, unindo-se numa união santa a sua mulher.

Ele deve seu poder a um Herói Fundador. Este último

presidia, outrora, às núpcias coletivas das festas das


estações. Mas nunca presidia só. Perto de sua mulher,

a Grande Avó, ele tinha um papel subordinado.

Os homens passaram ao primeiro plano quan-

do souberam obter a aliança do Lugar-Santo por outros

processos além do das núpcias humanas.

As justas sexuais acabaram sendo substituídas

por danças onde só figuravam homens. Existiu, outro-

ra, uma dança do faisão. Como camponeses e cam-

ponesas, faisoas e faisões dançavam na primavera de

cada ano. Estas danças visavam à multiplicação da

espécie. Elas preludiavam os acasalamentos. Como

nas festas rurais, eram as fêmeas que, com seus can-

tos, chamavam os machos. Elas tinham a iniciativa.

Talvez mesmo, num momento determinado, a dança

dos faisões fosse uma dança feminina; as mulheres

de todas as épocas tomaram os adornos dos faisões;

algumas traziam também seu nome. Finalmente, foram

os machos que desempenharam o papel principal. Suas

danças, em lugar de prover a prosperidade da espécie,

tiveram, então, a finalidade de regular as manifesta-

ções do trovão. Este, que se esconde no inverno, deve

se fazer ouvir desde que começa a primavera. Mas é

preciso, inicialmente, que os faisões "cantem seu

canto e reproduzam o toque de um tambor com suas

asas". Eles criam, assim, o trovão. Como também são

seu emblema. O trovão é faisão. Somente, nos tempos

feudais, viu-se nele, não um par de faisões dançarinos,

mas um faisão macho. Foi assim que em Tch'en-ts'ang,

na região de Ts'in, adorava-se um faisão macho que


vinha pousar à noite ao pé de uma pedra sagrada.

Ouvia-se, então, o ribombar do trovão. A pedra que o

atraía era uma faisoa metamorfoseada. Fora, inicial-

mente, uma jovem que aparecera ao mesmo tempo

que um rapaz. Os dois viraram faisões. Enquanto que

O macho tornou-se deus, a fêmea, por outro lado, foi

Petrificada e dizia-se que somente aquele que se apo-

derasse do macho, conseguiria tornar-se rei (428).

Um mito análogo mostrará ainda melhor como

a autoridade masculina acabou por se impor. Nos tem-

pos em que o mundo tinha necessidade de um Herói

para acomoda-lo, um faisão dançarino apareceu em

Yu chan. Yu chan é um monte venerável onde se ia

procurar as plumas de faisão que eram usadas pelos

dançarinos. É também sobre esta montanha santa que,

por uma metamorfose que se seguiu a um sacrifício,

Kouen transformou-se em urso. Kouen é o pai de Yu,

o Grande. Quando o faisão dançarino mostrou-se em

Yu chan, Yu, filho de Kouen, foi produzido para a feli-

cidade do Universo. Ele fundou a realeza chinesa.

Trouxe a paz para a Terra e para as Águas. Estas eram

obras de um demiurgo. Só são realizadas dançando.

Yu, o Grande, na verdade, como o faisão de Yu chan,

era um dançarino. Ele inventou mesmo um passo céle-

bre. Ele dançou, portanto, para reduzir ao normal as

enchentes diluvianas. Ele dançou sapateando sobre as

pedras. Sabe-se que existia na China uma região onde

rapazes e moças sapateavam nas pedras durante as

festas, quando atravessavam a vau os rios aumenta-

dos pelas enchentes da primavera. Eles produziam,


com seu sapateado, uma espécie de movimento des-

contínuo, atraindo, assim, a chuva que o trovão acom-

panha e anuncia. E sabia-se, na época feudal, que,

para se obter chuvas bem regulares, bastava executar

a dança de Chang-yang. Ela também era dançada por

casais de jovens. Eles deviam agitar seus ombros

lcomo os faisões que provocavam o ribombar do tro-

vão, agitando suas asas. Deviam ainda se suster num

pé só, pois o Chang-yang é um pássaro divino que só

tem uma pata (o mesmo se dava com o faisão dança-

rino que apareceu em Yu chan). Yu, o Grande, quando

dançava seu passo, também saltitava, deixando arras-

tar uma perna para trás. Ele dançava, pois, saltitando,

quando pôs em ordem as Águas desreguladas. Não se

conta que, como faziam os dançarinos, ele usava então

penas catadas em Yu chan, o monte sagrado freqüen-

tado pelo Urso, seu pai. Dizem que Yu imitava o urso.

Os ursos escondem-se no inverno, como faz o tro-

vão. O trovão só pode tê-los como emblemas, tanto

como os faisões. Para abrir o canal de Houan-yuan, o

chefe de Estado executou uma dança do urso. Ele

tomou cuidado de dançá-la sozinho. Somente por tê-lo

visto fazer sua obra divina, perfurando as montanhas,

batendo os pés nas pedras, sua mulher foi transfor-

mada em pedra. Petrificada, ela precisou ainda se abrir,

pois Yu lhe reclamou o filho do qual estava grávida.

Conta-se, também, que Yu fendeu sua mulher com um

golpe de sabre (429).

A dança sexual das festas camponesas trans-


formou-se em dança masculina. O homem que dança

identifica-se ao Lugar-Santo, onde toma as insígnias

simbólicas, e que dá origem ao animal-emblema. Ele

possui, como Centro ancestral, o lugar sagrado fre-

qüentado, sob forma animal, pela alma de um antepas-

sado e onde se pode obter o nascimento de um filho.

Mas, para que o Chefe, dançando, identifique-se a seu

emblema, para que se realize uma união intima entre

ele e o Lugar-Santo, é preciso que algum sacrifício

venha completar a dança. A vítima é a esposa do dan-

çarino. O Chefe alia-se ao poder sagrado e se toma

seu representante, sacrificando-lhe sua mulher.

Uma hierogamia é necessária desde que se

queira constituir um poder santo. Este é dotado de

inteira eficácia com a condição de reunir as forças

antagônicas (yin e yang) que, no mundo humano e na-

tural, opõem-se e se alternam, mas que somente são

criadoras quando se unem. Quando os Chefes apoia-

ram seu domínio, não somente no Lugar-Santo, princí-

pio exteriorizado de seu poder, mas em talismãs di-

násticos, tambores, caldeirões e armas, a fabricação

de um palladium pareceu, ela também, exigir uma

hierogamia (430).

Era, por exemplo, uma obra santa, a fabricação

de objetos de metal. Fazia-se por meio de ligas, e uns

metais, como todas as coisas, eram machos e outros,

fêmeas. Por sua união, obtinha-se objetos prestigio-

sos, cuja força se estendia aos homens, como a todos

os seres. Eles continham em si um princípio de con-


córdia universal. Também a liga e a fusão dos metais

não podiam ser obtidas a não ser segundo os ritos do

casamento.

O fole era acionado por rapazes e moças vir-

gens, em igual número. Eles davam seu sopro (isto é,

sua alma) para que a fusão se realizasse. Obtida a

fusão, batizavam o metal, jogando água sobre ele,

todos de uma só vez. Onde se produzisse uma intu-

mescência, o metal era masculino. Era feminino onde

se escavasse um buraco. O fundidor sabia então onde

tomar e como combinar os elementos antagônicos cuja

união dá uma obra perfeita. O princípio da perfeição

estava na colaboração dos sexos que haviam dado

toda sua força vital. Para acionar o fole, eram precisos

pelo menos trezentas moças e trezentos rapazes. Tre-

zentos é um total supremo. As corporações sexuais -

ocorria a mesma coisa nas festas camponesas - en-

tregavam-se inteiramente à obra sagrada.

Mas a fusão e a liga dos metais também podiam

ser obtidas se só se dedicassem à obra o mestre fer-

reiro e sua mulher. Os dois tinham apenas que se

jogar na fornalha. A fundição fazia-se imediatamente.

O sacrifício do casal, quando é um casal de Chefes,

não tem menos vigor do que as núpcias coletivas.

Nem sempre era sacrificado o casal. O mestre

fundidor limitava-se a dar sua mulher à fornalha divina

que produzia a liga. Para que este procedimento eco-

nômico fosse suficiente, bastava admitir que a divin-


dade da fornalha era do mesmo sexo que o ferreiro.

A mulher, jogada a esta divindade masculina, era-lhe

dada como esposa. Seu sacrifício era concebido como

um casamento com o deus da fornalha. Dando-lhe sua

mulher, o ferreiro, por uma espécie de comunhão divi-

na, aliava-se a seu Senhor. Este rito de união conser-

vava todo o valor de uma hierogamia. O metal resul-

tante da fundição era sempre considerado bissexual.

Os deuses tomam uma aparência masculina à

medida em que se estabelece o privilégio masculino.

O que ocorreu na fornalha divina, ocorreu também nos

Lugares-Santos.

Sob os Han, para obter uma alternação justa das

estações, limitava-se a jogar na água, em tempo ade-

quado, dois gênios da seca, macho e fêmea: Keng fou

(o Lavrador) e Niu-pa; podia-se também sacrificar, em

efígie, um casal de lavradores(431). Outrora, os se-

nhores feudais deviam pagar com sua própria pessoa.

Eles só mereciam o poder se soubessem identificar-

se às forças antagônicas que distribuem a seca e a

chuva. Para realizar neles mesmos (e na natureza) um

perfeito equilíbrio de virtudes, era-lhes suficiente viver

em pleno campo, expondo-se, ao mesmo tempo, ao sol

e ao orvalho(432). Eles preferiam, entretanto, expor

feiticeiras. Eles as faziam dançar até o esgotamento.

Em caso necessário, se a seca fosse muito forte, eles

sacrificavam a feiticeira, queimando-a (433).

As feiticeiras têm uma virtude que as tornam

poderosas. Sua força vem do fato de elas serem maci-


lentas e ressecadas. Ora, precisamente, a história nos

apresenta também, como seres ressecados, dois Fun-

dadores de dinastias reais, T'ang, o Vitorioso, e Yu, o

Grande. Os dois inauguraram seu reinado, sacrificando-

se em benefício de seu povo: um para pôr fim à seca,

outro para deter uma inundação. Eles cortaram então

seus cabelos e suas unhas e as entregaram, em pe-

nhor, a uma divindade. Do mesmo modo, para obter a

fusão dos metais, os ferreiros, em lugar de se joga-

rem na fornalha, podiam simplesmente jogar suas

unhas e seus cabelos. Marido e mulher jogavam-nos

juntos. Possuindo os penhores dados pelas duas par-

tes do casal, a divindade tinha todo o casal e sua dupla

natureza, pois dar a parte é dar o todo. Yu e T'ang, o

Vitorioso, sacrificaram-se inteiramente. O deus, no

entanto, tomou apenas a metade. Eles só ficaram meio

ressecados. Vê-se porque Yu, o Grande, saltitava e

dançava seu passo arrastando uma perna: era hemi-

plégico. O Passo de Yu não é senão a metade de uma

dança sexual. O sacrifício de Yu não é senão a me-

tade de um sacrifício. O sacrifício completo teria sido

o de um casal - como fora o dos fundidores, enquan-

to a divindade da fornalha não foi concebida como

masculina. T'ang sacrificou-se na Floresta das Amo-

reiras (Sang-lin), onde rapazes e moças encontravam-

se para as justas. Yu, o Grande, sacrificou-se em Yang-

yu. Yang-yu é o lugar-Santo onde o Conde do Rio tem

sua capital (Ho-tsong), mas o Conde do Rio é casado

e mesmo o nome que tem (Ping-yi) foi, inicialmente,

o de sua mulher. Se Yu sacrificou-se sozinho, foi, tal-


vez, porque seu sacrifício data de um tempo em que

a deusa sobrepujava o deus. O deus prevaleceu. Ele

acabou por tomar da deusa até mesmo seu nome.

Então, os sacrifícios ao rio, sempre inspirados pela

idéia da hierogamia, tiveram as mulheres por víti-

mas (434).

O rio, na época feudal, era venerado principal-

mente em dois lugares: em Lin-tsin e em Ye. Em Ye,

na região de Wei, ele recebia um culto popular presi-

dido pelas feiticeiras e pelos invocadores. Cada ano

era escolhida uma bela jovem. Alimentada e paramen-

tada como uma noiva, colocavam-na num leito nupcial.

Este, posto para flutuar, era arrastado até um turbi.

lhão, onde submergia. A eleita ia assim "casar-se com

o Conde do Rio" (435). O culto de Lin-tsin foi também,

sem dúvida, um culto popular. Mas em 417 a.C., os

senhores de Ts'in (Chen-si) conquistaram a região.

Eles anexaram o Lugar-Santo. Uma de suas maiores

ambições era arrancar, de seus vizinhos de Chan-si,

a proteção do deus do rio. Eles deviam obter sua

aliança, menos para sua região do que para sua raça.

Cada ano, casavam uma princesa de seu sangue com

o Conde do Rio (436).

As danças sexuais e as núpcias coletivas pro-

porcionaram uma força augusta aos Lugares-Santos.

Esta força, depois, foi captada por uma raça de Chefes.

Sacrifício do casal, meio sacrifício do Fundador, sacri-

fício da esposa, sacrifício das virgens servem para


concluir uma aliança e consistem numa união. O Lugar-

Santo, mesmo quando se torna um Centro ancestral e

que sua divindade toma traços masculinos, conserva,

graças às hierogamias, seu poder complexo. Do mes-

mo modo, na época em que se estabelece o privilégio

masculino, o Chefe continua provido de um comando

duplo. Seu poder estende-se às forças antagônicas que

constituem o universo, Yin e Yang, Céu e Terra, Água

e Fogo, Chuva e Seca... Mas esta autoridade mista

só se concentrou nele mediante os mais terríveis

sacrifícios.

Rivalidades de confrarias

Parece que as primeiras autoridades mas-

culinas constituiram-se - ao curso das

cerimônias da estação do inverno - du-

rante reuniões de confrarias.

Durante a invernada, na casa comum, os

lavradores, à força de justas, de gestos,

de orgias, conquistaram a confiança nas virtudes viris.

Seu prestígio aumentava à medida em que se exten-

diam seus arroteamentos. Mas os Heróis Fundadores

não tiram sua glória unicamente do fato de terem pre-

parado o solo e vencido as matas com o fogo. De

outra maneira ainda, eles são os Senhores do Fogo.

Eles são oleiros ou ferreiros. Sabem, com o auxilio de

uniões santas e trágicas, fabricar utensílios divinos.

Nos caldeirões mágicos, fundidos por Yu, o Grande,


toda a virtude dinástica estava incorporada, exatamen-

te como podia estar, num Monte ou num Rio Sagrados.

Estes últimos desmoronam ou secam quando a Vir-

tude de uma raça vacila. Assim também, quando esta

Virtude se torna muito frágil, as caldeiras perdem seus

pesos. Por elas mesmas, vão carregar-se novamente

de prestígio junto a um novo senhor (437).

Yu, o Grande, primeiro rei da China, é um fer-

reiro. Houang-ti, primeiro Soberano, é também um fer-

reiro. Houang-ti é o deus do raio. Yu comandava o

trovão. Graças ao trovão, ele fez chegar à plenitude a

Virtude de sua raça. Outrora, numa justa dançada, ele

havia vencido divindades ou chefes (é a mesma coisa)

aparentados aos touros e que mugiam como os ven.

tos (438). Houang-ti, do mesmo modo, chegou ao poder

depois de ter "conduzido sua Virtude " numa justa onde

venceu Chen-nong. Chen-nong nos é apresentado pre-

sidindo às festas da forja (conta-se que sua filha mor-

reu queimada ou afogada). Mas ele é, antes de tudo,

o deus dos ventos abrasados, o deus dos fogos do

arroteamento. É o deus dos lavradores. Houang-ti lutou

contra Chen-nong; lutou também contra Tch'e-yeou.

Os historiadores confundem a narração dessas justas.

Para dizer a verdade, Tch'e-yeou e Chen-nong pouco

diferenciam. Todos os dois trazem o mesmo nome de

família. Todos os dois são homens com cabeça de

touro. Somente Tch'e-yeou não é um deus das lavou-

ras. Ele é o Senhor da Guerra, o inventor das armas.

Seus ossos são concreções metálicas. Ele tem uma


cabeça de cobre e uma testa de ferro: assim também,

é feito de cobre e termina em ferro um dos instru-

mentos de que se utilizavam os antigos fundidores.

Tch'e-yeou, que inventou a fundição dos metais, come

minérios. Ele é a forja, a forja divinizada - no entan-

to, é perfeita a semelhança entre ele e o deus das

lavouras. A aproximação destes fatos sugere uma hi-

pótese. Na massa dos lavradores, recrutaram-se con-

frarias de técnicos, detentores de saberes mágicos e

mestres do segredo das primeiras forças (439).

A existência de confrarias rivais faz supor um

meio em que a organização não é mais fundada na

simples bipartição. Ora, segundo as concepções chi-

nesas mais antigas que se conhecem, o Universo (o

Universo não se diferencia da sociedade) é formado

de setores, cujas Virtudes se opõem e se alternam.

Estas virtudes são realizadas sob o aspecto de Ventos.

Os Oito Ventos correspondem não somente a setores

do mundo humano e natural, mas também a poderes

mágicos. Todas as coisas acham-se repartidas no do-

minio dos Oito Ventos, mas estes presidem juntos à

música e à dança. A dança e a música têm por função

acomodar o mundo e subjugar a natureza em bene-

fício dos homens. Na maior parte dos dramas míticos,

onde se comemora a lenda da fundação de um poder,

vê-se figurar, sob os traços de Ancestrais dinásticos,

ou de Animais heráldicos, seres que comandam um

setor do mundo e que, em inúmeros casos, aparecem

sob o aspecto de Ventos. Tem-se, pois, o direito de


supor que a organização bipartida da sociedade foi

substituída, ou antes, sobreposta, por uma divisão em

grupos orientados, cada um preposto a um departa-

mento do Universo e todos trabalhando de acordo -

dançando, lutando, rivalizando-se em prestigio - para

a conservação de uma ordem única. Dessas rivalida-

des e dessas justas saiu uma ordenação nova da so-

ciedade, ordenação hierárquica e fundada no prestígio.

Eis, por exemplo, como Houang-ti conquistou o

poder. Ele só o obteve depois de haver vencido Tch'e-

yeou, o grande rebelde. Os dois defrontaram-se numa

luta onde cada um tinha dois acólitos. Tch'e-yeou tinha

pedido o Conde do Vento e o Senhor da Chuva. Por

Houang-ti, combatiam a Seca e o Dragão chuvoso

(Dragão Ying). O Dragão Ying reuniu as Águas. Tch'e-

yeou produziu a Chuva e o Nevoeiro. Partindo do rio

do Carneiro ele subiu até os Nove Pântanos e atacou

K'ong.sang. K'ong-sang é a Amoreira oca onde o Sol

se levanta e foi dali que partiu Houang-ti para alçar-se

ao lugar soberano (que é o do sol ao meio-dia). Tch'e-

yeou tinha sobre as fontes cabelos cruzados em forma

de lança. Ninguém ousava resistir-lhe, quando, com

sua cabeça cornuda, ele se atirava para frente. Mas,

soprando num chifre, Houang-ti fez ouvir o som do

dragão e saiu vencedor da justa. (A justa com chifres

é, mesmo nos tempos clássicos, um ordálio; o vencido

merece a morte.) O Dragão Ying cortou a cabeça de

Tch'e-yeou. (Nos tempos feudais, a cabeça cortada do

vencido era pregada numa bandeira.) Houang-ti apode-

rou-se da bandeira de seu rival. Sobre esta bandeira


estava a efígie de Tch'e-yeou. Desde então, Houang-ti

reinou em paz, pois esta efígie aterrorizava as Oito

Regiões (440).

Este mito, aparentemente, é a fabulação de um

drama representando uma luta de confrarias que se

rivalizavam com a ajuda de danças religiosas e de

passes mágicos. Conhece-se, na verdade, a dança de

Tch'e-yeou. Os dançarinos, que se defrontavam, por

dois ou por três, traziam sobre a cabeça chifres de

boi e lutavam com os cornos. Tch'e-yeou, aliás, não é

somente o nome de uma dança e o nome de uma

bandeira: é o nome de uma confraria. Tch'e-yeou não

era um: ele era 72 (8 x 9) ou 81 (9 x 9) irmãos. Ele

era o príncipe dos Nove Li e os oitenta e um irmãos

representavam as Nove Províncias míticas da China.

Ele tinha oito dedos, oito orelhas, e aterrorizava as

Oito Regiões. (Os Ventos são Oito. Tch'e-yeou é o

deus de um oriente e é um deus dos ventos.) Era,

pois, um setor do mundo, como um quinto dos dias

360 = 72, que eram figurados pelos 72 irmãos. Seten-

ta e dois é, de resto, o número característico das

confrarias (441).

Nas rivalidades de confrarias que resultaram

numa organização hierarquizada da sociedade, o papel

dominante pertenceu às confrarias que eram as donas

das artes do fogo. Seus emblemas, com efeito, torna-

ram-se emblemas reais. O dragão foi, sem dúvida, um

dos brasões da dinastia Hia. Ora, os caldeirões dinás-


ticos são guardados por dragões. Assim também, as

espadas reais são espadas-dragões: elas desaparecem

nos rios e resplandecem como relâmpagos ou então,

quando são usadas nas justas, fazem os dragões subir

ao céu entre os relâmpagos terríveis do trovão. Além

disso, uma personificação da forja chama-se o Dra-

gão-archote. - Este Dragão-archote, que traz ainda o

nome de Tambor e que nasceu do Monte do Sino, é

também um mocho. O mocho foi o emblema dos Yin,

segunda dinastia real. O mocho é o animal dos solsti-

cios, dos dias privilegiados, quando se fabricam as

espadas e os espelhos mágicos. Ele é, ao mesmo

tempo, gênio da forja e o pássaro do raio. Ele é tam.

bém o duplo simbólico de Houang-ti, grande fundidor,

deus do Trovão e primeiro Soberano (ao qual todas as

linhagens reais se ligam), pois Houang-ti (o Soberano

amarelo) nasceu de um relâmpago sobre um monte,

cujo animal sagrado era um mocho que se chamava

O Pássaro amarelo. O Pássaro amarelo figurava nos

estandartes reais (442). - Assim também, o Pássaro

vermelho brasonava a bandeira dos príncipes da ter-

ceira dinastia, a dos Tcheou. O Pássaro vermelho é um

corvo. Ele aparece aos Tcheou antes de um triunfo ou

quando vai nascer um santo em sua raça. Um ramo da

família Tcheou chama-se: os Corvos vermelhos. Como

o mocho, o corvo era um animal do Fogo, mas, corvo

com três patas, ele era antes o pássaro do Sol do que

o pássaro do Raio (443). - A autoridade soberana tem

por fundamento a posse de talismãs e de emblemas

herdados dos ferreiros míticos. Com a ajuda desses


emblemas e desses talismãs, os reis, senhores do Sol

e do Raio, podem reger a natureza. Todo o prestígio

que deram aos Senhores do Fogo as mais maravilho-

sas artes mágicas, está concentrado na pessoa do

soberano, Filho do Céu.

A concentração de poder que foi o resultado

das rivalidades de confrarias, colocando brasões con-

tra brasões, parece ter tido seu ponto de partida nas

justas que ocupavam as reuniões masculinas da esta-

ção morta. Durante as longas noites de inverno, cele-

bra-se, na verdade, uma festa real. Nessa ocasião, o

Chefe submete-se a uma grande prova. Ele mostra,

então, que é digno de comandar o Céu (444).

Para se tornar Filho do Céu, Yao, este Sobe-

rano que "aparecia como Sol ", teve que atirar flechas

contra o sol. Assim ele conseguiu subjugar seu duplo

celeste. Depois que conquistou o emblema do sol, ele

mereceu reinar(445). O tiro com o arco é uma ceri-

mônia inaugural em que se pode fazer brilhar a virtu-

de. Mas, um chefe indigno vê a prova voltar-se contra

ele. Em conseqüência de uma ação reflexa que pune

o mágico incapaz, as flechas desferidas contra o céu,

caem sob a forma de relâmpagos. O atirador perece

fulminado pois tentou despertar e captar as energias

do Fogo sem possuir as qualificações requeridas. Tal

foi o caso de Wou-yi, rei sem Virtude. Wou-yi atirou

contra o Céu ou, antes, contra um odre cheio de san-

gue que ele chamava de Céu. Feito com pele de boi,

tinha o formato de um mocho. O rei atirou depois de


ter obtido, no jogo de xadrez, o golpe do mocho, que

lhe permitia tentar sua sorte. Wou-yi pertencia à fa-

milia dos Yin, que possuía o emblema do mocho e

que trazia este nome:Odre. Mas, degenerado, ele não

tinha em si a virtude que permite merecer seu brasão

e ficar senhor de seu duplo mítico. Ele era totalmente

ao contrário de Houang-ti. Houang-ti (o Soberano ama-

relo) era capaz de se apoderar dos mochos (Pássaros

amarelos). Neles, um verdadeiro soberano deve poder

atirar, utilizando-se de flechas serpenteantes. Estas,

como os relâmpagos, conduzem o fogo,Houang-ti; que

se alimentava de mochos, sabia identificar-se perfei-

tamente com seu emblema. A força de sagrações,

toda a virtude dos fogos celestes incorporou-se nele.

Ele pôde, então, alçar-se ao Céu numa tempestade

apoteótica.

Houang-ti era Raio. Ele era também, sob a de-

nominação de Ti-hong, identificado com um Odre ce-

leste. O odre Ti-honq é pássaro, ao mesmo tempo que

saco de pele e tambor. Existe mesmo um mocho (seu

nome é aquele do tambor da noite) que é um saco e

sobre o qual o raio e as flechas saltam. E existe, en-

fim, um tambor que é um mocho: produzindo o vento

quando respira, vermelho e com os olhos fixos, ele

figura uma forja e seu fole. Também vermelho, como

um minério em fusão, e bem no alto do Monte do Céu,

rico em cobre, o Odre celeste tem nome: Caos (Houen-

touen). O Caos morre quando os Relâmpagos o atra-

vessam sete vezes. Mas esta morte não é senão um


segundo nascimento. É uma iniciação. Com efeito,

todo homem tem sete aberturas no rosto. Mas somen-

te um homem virtuoso (isto é, um homem bem nas-

cido) tem sete aberturas no coração. Houen-touen, o

Odre-Caos, quando era personificado, era represen-

tado como um perturbador estúpido. Ele não possuía

nenhuma abertura: ele não tinha "nem rosto, nem

olhos", isto quer dizer que lhe faltava a face, a res-

peitabilidade. Num drama mítico em que figura, ele

é, no fim, renovado por um suplício. Como Odre celes-

te, ele participa de uma dança e é mostrado, num outro

lugar, oferecendo um festim. Ele o oferece, precisa-

mente, aos Relâmpagos e se estes o atravessam sete

vezes, não é por maldade, nem para matá-lo: eles ten-

cionam agradecê-lo por sua boa acolhida.

O tema do tiro contra o Céu e o mito do Odre

que os Relâmpagos atravessam, conservam, aparen-

temente, a lembrança dos ritos de iniciação e das

provas pelas quais, manejando perigosamente o fogo,

adquiria-se a mestria numa confraria de ferreiros.

Estas mesmas provas eram impostas a um Rei, Filho

do Céu. Este deve saber acomodar e modelar o mundo

como um demiurgo. Ele deve, sobretudo, nos mo-

mentos convenientes, restaurar, em toda sua glória,

os Fogos celestes, e, ao mesmo tempo, apoderar-se

de suas virtudes (446).

Ora, pelo menos quando figura na lenda de

Cheou-sin, o mais funesto dos reis de perdição, o tiro

contra o Céu, representado por um Odre, aparece


ligado a uma festa hibernal que se chama a libação

da longa noite. Os Relâmpagos fazem sete aberturas

no Odre-Caos. Cheou-sin (célebre por ter querido veri-

ficar, estripando Pi-kan, seu tio, se o coração de um

sábio tinha sete aberturas) atirou num odre cheio de

sangue. Ele se preparou para este tiro matando ho-

mens e animais domésticos "das seis espécies". Os

seis primeiros dias do ano eram consagrados aos seis

animais domésticos. O sétimo era ao homem. Dizem

que Cheou-sin continuou sua libação durante sete dias

e sete noites. Um autor conta que Cheou-sin fazia

durar cento e vinte dias a libação da longa noite, mas

isto, diz ele, é um exagero. Admitamos que a proeza

tenha sido, simplesmente, decuplada. Os últimos doze

dias do ano constituíam um período religioso e, mes-

mo nos tempos clássicos, o ano se encerrava com

uma dança dos Doze Animais, os quais passavam por

representar os doze meses. Se a libação hibernal com.

preendeu sete ou oito dias, é evidente que ela teria

ocupado um período colocado entre dois anos suces-

sivos.

O ano religioso dos Chineses tem trezentos e

sessenta dias e doze meses lunares. Se estes meses

lunares foram, outrora, como parece, contados todos

com vinte e nove dias, restava, no fim do ano, um pe.

ríodo de doze dias que podia ser consagrado aos Doze

Animais. Se os meses lunares, alternadamente gran-

des e pequenos, duravam, uns trinta dias e outros

vinte e nove dias, restavam, para perfazer o ano, seis


dias que podiam ser dedicados aos seis animais do-

mésticos. O sétimo dia, o dia do homem, iniciava o

ano. Devia ser aquele do sacrifício supremo. Os fes-

tins canibalescos de Cheou-sin ficaram famosos, com

toda a justiça. De resto, o sangue que enchia o odre

figurando o Céu era, certamente, o do personagem

que, jogando xadrez antes do tiro, tinha efetuado o

jogo do Céu contra o Rei.

A libação das sete ou das doze noites (que tem

equivalentes no folclore europeu, como nos usos vé-

dicos) liga-se a velhos costumes dos camponeses chi-

neses. Eles também, durante as longas noites de

inverno, bebiam sem parar. Eles também tentavam,

então, a sorte no jogo de xadrez. Eles jogavam ainda

o jogo do gargalo, este jogo no qual se utilizam fle-

chas encurvadas, e chamadas de serpenteantes, como

as que o Rei atirava no Sol ou no Mocho. Tratava-se

de fazer entrar estas setas na abertura de uma jarra.

Precisamente, os Chineses representavam o Céu sob

o aspecto de uma jarra fendida, com os relâmpagos

escapando pela fenda. Como as jarras, os odres de

pele de boi, que têm a forma de um mocho e que figu-

ram o Céu quando cheios de sangue, serviam ainda

para conter o vinho. Os camponeses conservavam

também o vinho em jarras, e os nobres em sinos de

bronze. Uns e outros acompanhavam suas libações

tocando tambor sobre as jarras ou sobre os sinos.

Eles produziam, então, tão bem o barulho do trovão

que, dizem, as faisoas da noite punham-se logo a can-


tar. Assim se despertava a energia do Trovão, do Fogo,

do princípio masculino (Yang). O Trovão, no inverno,

não tem mais forças para se fazer ouvir; o Sol mal

consegue se mostrar. Os chineses acreditavam que o

Yang, o princípio masculino, ficava, durante a estação

fria, cercado e preso pelas forças opostas do Yin. Não

é essa a época em que, reduzidos à inação, os lavra-

dores retiram-se para a casa comum, no meio da aldeia

que pertence às mulheres? Durante este retiro, eles

concentram suas energias e podem, enfim, ajudar a

restauração das forças masculinas da natureza. Suas

festas hibernais terminavam, pois, numa orgia onde

homens e mulheres, formando grupos adversários,

combatiam e lutavam arrancando suas vestimentas.

Esta justa realizava-se de noite, com os archotes apa-

gados. Do mesmo modo, na festa real, homens e mu-

lheres perseguiam-se, todos nus. Cantando uma músi-

ca que tratava da morte do sol, executavam, então,

danças de roda. [O fim de um eclipse das forças sola-

res é simbolizado (sabe-se por outro lugar) pela dança

de um rapaz nu que gira sobre si mesmo.] No fim da

cerimônia, os archotes são acesos. A justa dançada,

onde se defrontam homens e mulheres (na festa real,

a orgia sexual parece acompanhar-se do assassínio da

rainha, a qual é, depois, comida comunitariamente, ha-

via proporcionado uma vitória e um rejuvenescimento

dos princípios masculinos do Fogo. Logo depois, assim

que a aurora se iluminava, elevavam-se no ar os archo-

tes. Fazia-se, também, aparecer um rapaz muito jovem,

cujo corpo era vermelho-sangue e que surgia nu. Este


menino representava o Sol recém-nascido. Chamavam-

no o deus do Céu. Nas lendas dos Reis de perdição,

a entrada do menino vermelho simboliza a chegada

de um Chefe novo, substituindo, no poder, o velho

Chefe que não soube renovar sua virtude abalada. Com

efeito, as comedorias e as libações hibernais serviam

para renovar as forças vitais dos velhos. As festas da

casa comum consistiam, principalmente, numa orgia

de bebida. Saboreava-se, então, o vinho novo, fabri-

cado no inverno e encerrado em odres, jarras ou sinos.

Esta orgia terminava com vivas e votos de vida sem

fim: dez mil anos! Ela acompanhava o jogo do gargalo

e era completada por justas de jactância. Tinha-se

acumulado os víveres em montes mais altos do que

uma colina! Nenhum rio teria podido fornecer tanta

bebida! Cheou-sin, quando celebra a festa hibernal,

levanta uma montanha de alimentos. Ele cava um

tanque que enche de vinho. Em tal lago de bebida,

pode-se, dizem, fazer girar um navio. Pode-se fazer

corrida de carros sobre o monte de comestíveis. Nes-

tes festins, todos os assistentes têm que beber até a

saciedade, tomando o vinho, chafurdando-se à manei-

ra dos bois. O rei que, por diferentes ordálios, tem

que manifestar sua capacidade, deve prova-la, sobre.

tudo, fartando-se como qualquer outro. Então, vestindo

uma couraça de pele de boi, ele pode atirar no Odre

de pele de boi. Ele pode, maravilhoso batismo que

equivale a um renascimento, fazer chover sobre si o

sangue do Céu: quando é bem sucedido em seu tiro

inaugural, os vassalos proclamam sua glória: " Ele ven-


ceu o Céu! Nenhum o sobrepuja em talento!" E os

vivas e votos: "Dez mil anos! Dez mil anos! " ressoam

em redor e repercutem ao longe - assim que o

Rei bebe.

A festa real da longa noite surge como um des-

dobramento das festas da casa comum. Ela é cheia

de ritos dramáticos, senão horríveis, pois assinala o

ponto culminante de uma liturgia hibernal em que,

com a ajuda de justas, de provas, de sacrifícios e de

sagrações, classificam.se os méritos e constrói-se a

hierarquia. Certas justas e certos ordálios são curio-

sos. Havia uma prova do balanço que servia para pesar

os talentos e uma prova do mastro de cocanha onde

as vítimas eram consumidas pelo fogo de uma foguei-

ra. Cheou-sin, soberano nefasto que forçava seus súdi-

tos a beber como bois (e como Nabucodonosor) mor-

reu numa fogueira (como Sardanapalo). Como bom

ferreiro, ele sabia estirar o ferro com suas mãos po-

tentes e (forte como Sansão) ele podia sustentar a

verga de uma porta e recolocar a coluna. Ele fundiu e

esculpiu altas colunas para a prova do balanço e para

a da ascensão. Ele construiu também uma torre que

(como a de Babel) pretendia chegar aos céus. Era no

alto de uma torre semelhante que devia ser suspenso

o odre cheio de sangue que representava o céu e no

qual (como Nemrod) Cheou-sin atirou. Já se viu que

o Odre celeste é um tambor. Ora, perto da China en-

contrava-se um povo que cada ano sacrificava um

homem chamando-o de "Senhor celeste". Na ocasião


destas festas, usava-se suspender um tambor no alto

de um poste de madeira levantado na terra (kien-mou).

Por outro lado, os Chineses conheciam uma árvore di-

vina que se chamava Kien-mou (a madeira levantada).

Esta árvore ergue-se bem no centro do mundo e marca

o meio-dia, momento em que tudo o que é perfeita-

mente vertical não faz nenhuma sombra. A árvore

Kien-mou é um gnômon. É também um mastro de co-

canha. Por ela se eleva aos céus o Soberano, isto é,

o Sol. Ela também é reta como uma coluna mas, na sua

base e em seu cume existem nove raízes e nove

ramos: isto significa, suponho, que ela toca, no alto,

os Nove Céus, e, embaixo, as Nove Fontes. As Nove

Fontes são as Fontes subterrâneas, as Fontes Amare-

las, a morada dos mortos, o Grande Abismo. É no

Grande Abismo que é mergulhado quem se embebeda

numa libação da grande noite. Esta libação faz-se num

palácio subterrâneo. O Sol se eleva nos céus depois

que sai do Grande Abismo. O Yang, que o Yin aprisio-

na durante o inverno, fica encerrado nas Noves Fon-

tes. Antes de aparecer na manhã do ano como um

Sol que nasce vitorioso, o Chefe deve também se

submeter a um retiro. Ele é aprisionado num quarto

subterrâneo e profundo, como as Nove Fontes. Depois

disto, ele pode se elevar até os Nove Céus numa as-

censão triunfal. Destinadas à prova da ascensão, a

alta torre de Cheou-sin ou sua coluna esculpida mar-

cam o lugar no qual o Chefe pode executar sua apo-

teose. Elas marcam a linha reta que pretende ser o

centro do mundo.
O poder do Chefe nasceu das festas da casa

dos homens e das justas de confrarias. Este Chefe é

um fundador de cidades e um chefe de guerra. Tch'e-

yeou, o ferreiro que inventou as armas, é o chefe de

uma confraria dançante e é uma divindade da guerra.

Houang-ti, seu adversário afortunado, outro ferreiro,

é também um deus dos exércitos. Os dois, quando lu-

tam juntos, lutam três contra três. O número três está

na base da organização militar, como da organização

urbana, pois a cidade não se diferencia quase nada de

um acampamento. Ela é formada pela residência se-

nhorial, cercada, à direita e à esquerda, pelas casas

dos vassalos. O exército compreende, normalmente,

três legiões; a legião central é a do príncipe e é for-

mada por seus parentes. Apenas o exército real tem

seis legiões. Na cerimônia do tiro com o arco, que

é talvez o mais importante dos ritos feudais, o tiro

é iniciado por dois bandos de arqueiros que lutam

juntos, três contra três. Três, segundo as tradições

chinesas, é o antigo número dos dançarinos (que, a

seguir, formaram grupos de oito). O espírito de riva-

lidade que animava as confrarias masculinas e que,

durante a estação do inverno, opunha-as em justas

dançadas, deu origem ao progresso institucional, gra-

ças ao qual, da antiga organização dualista e segmen-

tária, surgiu, com a hierarquia, a organização tripar-

tida que caracteriza as cidades feudais (447).

As dinastias agnáticas
Quando as rivalidades entre confra-

rias ricas de segredos técnicos e

de novos prestígios dominam as

justas aldeãs, onde se defrontam

os sexos concorrentes, criam-se as

autoridades masculinas e, entre

elas, esboça-se uma hierarquia instável. Mas, o prin-

cípio de alternação que preside às justas das estações

não perde imediatamente sua força: e, com ela, o

dualismo mantém seus direitos - mesmo quando a

ordem social não se baseia mais na simples biparti-

ção, mesmo quando a sociedade tende a tomar a orga-

nização favorável à concentração dos poderes. Tam.

bém a autoridade conquistada pelos chefes masculi-

nos, dificilmente, chega a se tornar a propriedade de

uma linhagem de príncipes, transmitindo, de pai para

filho, o direito de reger, somente eles e durante toda

a vida, o conjunto de forças que constituem o mundo

dos homens e das coisas.

Os heróis míticos que a história apresenta

como primeiros soberanos da China reuniram o povo

e são poderosos por sua sabedoria. Chouen era la-

vrador, pescador, oleiro e, "no fim de um ano, no local

em que residia, formava-se uma aldeia, um burgo, no

final de dois anos, no fim de três anos, uma cida-

de" (448). Quaisquer que tenham sido sua sabedoria e

sua fama, nem Chouen, nem Yao, seu predecessor,

transmitiram sua autoridade a seus filhos. Eles nem


mesmo a conservaram até o fim de suas vidas. Che-

gou para os dois uma época em que foram forçados

a se apagar diante do prestígio ascendente de um

Sábio, cujo gênio se adaptava melhor aos novos dias.

Os Anais conservaram a lembrança de alguns prodí-

gios que convidavam um Chefe a se retirar e a ceder

o poder (yang) (449). O Chou king deixa entrever, va-

gamente, o aspecto dos discursos, quando se procura-

va conquistar o poder, fingindo cede-lo (jang)(450).

Segundo os historiadores que os fazem falar, os con-

correntes não pensavam senão em ostentar a mais

pura virtude cívica. Na realidade, os duelos de elo-

qüência atiçavam gênios opostos e feitos para se

alternar. Yao, o Soberano, sabia regular a marcha dos

Sóis. Ele teve que lutar contra Kong kong, que sabia

sublevar as Águas e que as conduziu ao ataque de

K'ong-sang, a Amoreira oca, mastro por onde subiam

os Sóis; ele demoliu também, com uma marrada, o

monte Pou-tcheou, que é o pilar do Céu, de modo que

todos os astros tiveram que se encaminhar para o

poente. Kong-kong, que disputou com Yao a posição

de Soberano, acabou morrendo afogado no fundo de

um abismo(451). Possuídos pelos gênios da Água e

do Fogo, penetrados de Yin ou de Yang, animados pelo

espírito da Terra ou pelo espírito do Céu, destros ou

sinistros, gordos ou altos, de ventre amplo ou de

costas fortes, mantendo, solidamente, na terra seus

vastos pés ou estendendo para o céu sua cabeça re-

donda, os candidatos obtêm o poder, unicamente,

quando sua essência responde às necessidades alter-


nadas da Natureza e que seu corpo pode servir de

medida.padrão para a ordem que, no momento, se

impõe (452). Pode-se presumir que houve um tempo

em que, representantes de grupos opostos ou de gê-

nios contrários, os Chefes alternavam o poder com

as estações. As lendas da tradição chinesa nos infor-

mam apenas sobre a época em que a autoridade per-

tencia a um par de chefes onde, um, o Soberano, era

superior ao outro, o Ministro. O Soberano possuía a

Virtude do Céu, o Ministro, a Virtude da Terra (453).

Eles colaboravam, cada um passando, por sua vez, ao

primeiro plano; governando, cada um, em lugares e

épocas apropriados a seu gênio. Eles também tinham

rivalidades. Assim como, na Natureza, em datas fixas,

o Yin e o Yang sucedem-se no trabalho, assim também

a Virtude da Terra era substituída, junto ao Ministro

que chegava a uma certa idade, pela Virtude do Céu

- pelo menos se saísse vitorioso de certas provas

tais como, por exemplo, a exposição na mata ou o

casamento com as filhas do Soberano(454). Ele sabia,

neste caso, obrigar este último a lhe ceder o poder

(iang), depois ele o expulsava de sua cidade. Quando

só havia em Yao uma Virtude envelhecida, Chouen,

seu Ministro e seu genro, procurando relega-lo, cele-

brou sua ascensão à posição de Soberano, oferecendo

um sacrifício ao Céu. Tan-tchou, o filho mais velho de

Yao, figurou, dizem - e, sem dúvida para servir de

vítima, pois se sabe, por outro lado, que Tan-tchou foi

banido ou condenado à morte -, neste sacrifício inau-

gural que se realizou nos arredores da capital (456).


Chouen, segundo uma outra tradição, inaugurou

seu poder escancarando as quatro portas cardeais de

sua cidade,quadrada. Nesta ocasião, ele baniu, para os

quatro pólos do mundo, quatro personagens infesta-

dos de uma virtude liquidada e maléfica. Estes quatro

monstros distribuem-se (pois a organização tripartida

da sociedade é sempre dominada pelo dualismo) em

dois grupos de três (dançava.se, antigamente, em

grupos de três). Um dos monstros banidos, com efeito,

tem por nome Três Miao (San-miao). Três Miao, que

era um ser alado, foi relegado ao Extremo Ocidente,

sobre a montanha da Pena, onde os pássaros vão, cada

ano, renovar sua plumagem. Neste monte que tem

três picos, residem três pássaros, ou então, um mocho

com cabeça única mas com corpo triplo. Três Miao

é, de resto, idêntico à caldeira Voraz, a qual é um tri-

pé (457). Opondo-se a Três Miao, uno e triplo, os outros

monstros formam um trio de cúmplices. O principal

personagem do grupo é Kouen, pai de Yu, o Grande.

Ele foi banido no Extremo Oriente, sobre a montanha

da Pena, onde apareciam os faisões dançarinos. Foi

ali, dizem, que ele se transformou em tartaruga de

três patas. Outros afirmam que ele foi transformado

em urso: seu filho, mais tarde, soube executar a dança

do urso. A tradição mais constante quer que Kouen

tenha sido esquartejado, por ordem de Chouen, o que

não o impediu de se tornar, sob forma animal, o Gênio

do Monte ou do Abismo da Pena (458). Assim Chouen

não pôde reinar senão depois de ter executado Kouen

e de ter subjugado Três Miao, este ser alado que pa-


rece ter sido o culpado de trazer a desordem para o

calendário. Mas quando, escudo e lança na mão,

Chouen executou a dança da pena, ele pôde, imedia-

tamente, renovar o Tempo(459). Nas cortes feudais,

era preciso, para inaugurar o ano novo, fazer dançar,

não o príncipe, mas um exorcista. Este figurante, usan-

do uma máscara de olhos quádruplos e cercado por

quatro acólitos chamados de "os loucos", dançava

escudo e lenço na mão, vestido com uma pele de urso.

Acabada a cerimônia, esquartejavam-se as vítimas nas

quatro portas cardeais da cidade quadrada(460). Na

época de Confúcio, os Chineses ainda pensavam que

para estabelecer o prestígio de um chefe, fazendo de-

saparecer uma ordem envelhecida do Tempo, era com-

veniente sacrificar um homem e jogar seus membros

nas quatro portas: a vítima era um dançarino, mas um

dançarino que substituía um chefe (461). Os ritos que

servem para expulsar o ano velho e instalar o ano

novo, têm o nome de jang. Jang quer dizer banir; a

mesma palavra significa também ceder, mas ceder

para ter. Não existe nenhum soberano chinês que, no

momento de tomar o poder, não tenha mostrado von-

tade de renunciar. O personagem,sobre o qual ele

parece então querer descarregar os deveres que in-

cumbem a um chefe, vai se suicidar, imediatamente,

quase sempre jogando-se num precipício, do qual ele

se torna o gênio(462). A instalação do ano novo e a

introdução de um novo chefe fazem-se com o auxilio

de ritos que não deviam se diferenciar no tempo em

que,para reger o mundo e as estações, Soberano e


Ministro compartilhavam as Virtudes do Céu e da

Terra. Ministro quer dizer: Três duques. A cerimônia

da elevação ao trono compreendia, aparentemente,

uma justa dançada (três diante de três), colocando-se,

face a face, dois chefes que eram cercados por seus

subalternos, os quais formavam um quadrado(463).

O chefe da dança vencida pagava sua derrota com sua

morte ou com sua expulsão da cidade, ou, então, seu

filho primogênito (tal foi a sorte de Tan.tchou) era sa-

crificado nos arrabaldes.

Kouen, que, esquartejado e transformado em

urso, tornou-se o gênio do Abismo da Pena, tinha re-

cebido de Chouen, inicialmente, o encargo de regular

as Águas. Ele se perdeu por uma ambição indevida.

Ele quis que seu Soberano lhe cedesse o poder. Pre-

tendia possuir a Virtude da Terra que habilita a ser

Ministro, depois assumir a posição de Soberano, se

fosse obtida, a seguir, a Virtude do Céu. De nada ser-

viu proclamar seus títulos num discurso, nem dançar,

em pleno campo, tolamente, como o exorcista com

pele de urso. Sua derrota mostra que ele não estava

qualificado para ser Ministro, nem para suceder. Kouen,

na verdade, que foi pai de um Soberano, era também

o filho mais velho de um Soberano (como Tan-

tcheou) (464). Ele pertencia a uma geração excluída do

poder. Devia ser sacrificado. Era a seu filho, Yu, o

Grande, que cabia o direito de ser Ministro e sucessor

de Chouen. As lendas chinesas - isto é um dado im-

portante - conservam, pois, a lembrança de uma


época em que o poder se transmitia de avô para neto,

saltando, na linha agnática, uma geração.

Este sistema é característico de um direito de

transição e marca o momento em que o princípio da

filiação pelas mulheres curva-se diante do princípio

inverso. Numa sociedade em que o parentesco é do

tipo classificatório e em que os casamentos, unindo

um par de famílias exógamas, fazem-se, necessária-

mente, entre primos nascidos de irmãos e irmãs (pri-

mos cruzados) - tal era a organização chinesa - o

avô agnático e o neto têm o mesmo nome, mesmo

nos tempos em que este se transmite em linha ute-

rina. Com efeito, o avô agnático (465) é, ao mesmo

tempo, um tio-avô materno: o neto herda dele, uma

vez que é seu sobrinho-neto uterino. Mas se o avô e

o neto agnáticos já pertencem ao mesmo grupo, o

pai e o filho pertencem a grupos opostos. Precisa-

mente, as tradições chinesas revelam uma oposição

inconstestável entre pais e filhos. Um pai e um filho

são dotados de gênios antitéticos e quando um é um

Santo digno de reger o império, o outro é um Monstro

que merece ser banido. Mas quando o filho é banido,

e enquanto se espera que o neto (no qual devem rea-

parecer todas as virtudes do avô) receba a herança,

quem, então, irá guardá-la? No sistema uterino, á

transmissão faz-se de tio materno a sobrinho uterino.

Ora (o casamento sendo feito entre primos nascidos

de irmãos e irmãs) o pai da mulher não pode deixar

de ser o irmão da mãe e todo homem tem por genro

o filho de sua irmã. (Com efeito(466), uma mesma


palavra designa o tio materno e o sogro (kieou); por

outro lado, um homem chama pelo mesmo nome

(cheng) seu sobrinho uterino e seu genro). Todo ho-

mem, pois, pelo direito uterino, tem por continuador

o filho de sua irmã, mas quando a herança vai de tio

materno a sobrinho uterino tudo se passa como se a

herança fosse transmitida de sogro para genro. Assim,

quando a filiação é estabelecida em linha feminina,

como o filho, que é de um grupo oposto ao pai, não

pode ser seu continuador, cabe ao genro este papel,

porque ele é um sobrinho, filho da irmã.

No sistema fundado na descendência masculi-

na (mas onde os casamentos continuavam a se fazer

entre primos nascidos de irmãos e irmãs), o genro é

também um sobrinho uterino, mas ele pertence a um

grupo diferente de seu sogro (do qual ele era, nó

outro sistema, o continuador, com a exclusão do fi-

lho). Enquanto que o filho, em conseqüência da sobre-

vivência de sentimentos herdados do regime uterino,

continua parecendo dotado de um gênio contrário

àquele de seu pai, enquanto não se decide ainda con-

siderá-lo um possível continuador e que se pretende

eliminá-lo, é a seu cunhado, o genro (outrora, plena-

mente, qualificado para receber a herança) que será

entregue em depósito, pois, sobrinho uterino daquele

cuja sucessão se abre, o genro é ainda o tio materno

daquele (o neto agnático) que finalmente receberá a

herança(467). Assim pois, quando o filho é banido,

é o genro que deve ser o sucessor. E, com efeito, na

sucessão chinesa dos tempos antigos que nos foi


narrada com detalhes, vê-se que Tan-tchou, o filho

mais velho, foi banido, e que Chouen, que sucedeu,

era o genro de Yao.

Como genro de Yao, Chouen estava qualificado,

não somente para sucede-lo, como também para ser,

inicialmente, seu Ministro. Na verdade, se, no regime

uterino, o sogro e o genro (tio materno e filho da irmã)

pertencem ao mesmo grupo, eles pertencem a grupos

opostos quando o nome passa a se transmitir pela li-

nha masculina. Ora, o Soberano e o Ministro (Virtude

do Céu, Virtude da Terra) devem possuir gênios opos-

tos. Eles formam um par de gênios rivais e solidários,

como são solidárias e rivais as famílias unidas por

uma tradição de aliança matrimonial. Assim o dualis-

mo da organização política e o dualismo da organi-

zação doméstica acham-se estreitamente ligados. Mas,

numa ou noutra organização, este dualismo está em

vias de desaparecer: o soberano absorve, pouco a

pouco, os poderes próprios ao ministro enquanto que

o filho, sacrificado, inicialmente, a um parente uteri-

no, consegue suplantar este último.

As tradições chinesas mostram que, na verda-

de, a concentração do poder nas mãos do chefe resulta

de um progresso paralelo ao desenvolvimento do di-

reito agnatício.

Na época de Yao e de Chouen (os dois Sobera-

nos citados no Chou king), o Ministro sucede e expul-

sa o filho. Tudo se passa - pois o ministro é um gen.


ro - como se dois grupos agnáticos (ligados em

cada geração por casamentos) devessem alternada.

mente ocupar o poder. Mas na história dos fundadores

da dinastia real, vê.se que o filho sucede e o ministro

é sacrificado. Uma mesma linhagem agnática perpe-

tua.se no poder, formando uma dinastia. Esta linhagem

possui a autoridade suprema. Ela não possui toda a

autoridade. O rei não pode reinar sem o concurso de

um ministro. Este, antes de tudo, não é escolhido no

grupo agnático que forneceu a linhagem real. É tirado

de um grupo contrário. O grupo familiar que dá ao

soberano sua esposa, dá também seu ministro. T'ang,

o Vitorioso, fundador da segunda dinastia real, obteve

da família de Sin, a princesa que foi sua mulher e,

vindo no cortejo desta, Yi Yin, que devia ser seu mi-

nistro. A sucessão fez-se em linha masculina, mas os

descendentes agnáticos de T'ang, o Vitorioso, tiveram

por ministros os filhos de Yi Yin, ministro e cunhado

de T'ang. Admitiu-se que a função do Três Duques (mi-

nistro) conferia o encargo de criar o herdeiro presun-

tivo. A quem este papel (considerando-se as regras

da antiga organização) seria mais conveniente do que

a um tio materno? Yi Yin exerceu, pois, a tutela do

sucessor de T'ang. É na família de sua mãe que se vai

buscar o tutor daquele que, por direito agnatício, deve

receber a sucessão. Dos dois grupos que, outrora, se

completavam e se alternavam no poder, um deles não

ocupa senão uma posição subordinada mas, apesar

disto, subsiste alguma coisa do princípio da alterna-

ção. O ministro (que se preparava, outrora, ao lado do


soberano, a tomar, por sua vez, a autoridade suprema)

não sucede mais. Entretanto, ele continua encarrega-

do da regência. No final desta, ele cede, como antiga-

mente, o poder ao representante da linha agnatícia.

Somente o filho toma o poder que lhe é cedido (jang)

e é o ministro (tal foi a sorte de Yi Yin) que é banido

(jang), sacrificado. Chefe dos parentes maternos, o

ministro caiu na categoria de arauto da dinastia agná-

tica (468).

Quando morreu o rei Wou, fundador dos Tcheou

(terceira dinastia real) houve (como com a morte de

T'ang) uma regência, e o regente, ainda desta vez,

teve que sofrer o desterro. Mas, embora o rei Wou

tivesse tido, como ministro principal (ministro da

Guerra) seu tio uterino, não foi este, nem seu filho,

que foi tutor do rei Tch'eng, filho e sucessor do rei

Wou. A regência (a história o afirma) foi confiada a

um tio agnático, o duque de Tcheou, irmão mais moço

de Wou. Restavam muitos traços da oposição que

existiu, inicialmente, entre os agnatos de duas gera-

ções sucessivas, para que se pudesse pensar que um

filho fosse capaz de suceder, imediatamente, a seu

pai. Por outro lado, na família como na cidade, as pri-

meiras honrarias eram confiadas aos anciãos. Cada

grupo tinha, como decano, o representante mais idoso

da geração mais velha. Mesmo quando o princípio

agnático foi adotado, a família chinesa permaneceu

uma família indivisível. Ela foi submetida a uma auto-

ridade (no sentido mais forte do termo), ela começou


a tomar a forma patriarcal somente quando se reco-

nheceu, enfim, o privilégio da primogenitura. Assim

como o filho teve que lutar contra as antigas prerro-

gativas do tio materno, o filho primogênito teve que

aniquilar os velhos direitos dos irmãos mais moços de

seu pai. Vê.se, assim, o tio paterno mais moço suce-

der ao tio materno no papel ingrato de Arauto dinás-

tico. A prática da regência, resíduo de uma antiga

obrigação de alternação entre dois poderes que se

completam, permite respeitar os velhos sentimentos

que faziam do pai e do filho dois rivais, tornando ne-

cessário um interregno. O rito da cessão (jang), pela

qual o poder é confiado à guarda de um terceiro, torna

possível a transmissão da autoridade (469).

Falta transpor um último passo, que é a supres-

são do interregno. Este é superado quando, sem a

interposição do tio materno nem do irmão mais moço

do pai, o filho sucede imediatamente a seu pai, por

direito de primogenitura. Um príncipe (em 489, bem

no fim do periodo Tch'ouen.ts'ieou), que deseja pas-

sar, diretamente, o poder a seu filho mais velho, co-

meça chamando junto a si, em seu leito de morte,

seus próprios irmãos mais moços. Seguindo a ordem

do nascimento, ele lhes cede (jang) o poder. Os mais

velhos recusam. O mais moço vê-se constrangido a

aceitar. Mas, se deve aceitar, deve também, assim

que o príncipe morre, investir do poder o filho do de-

funto(470). Não há mais interregno. Os direitos de

cada um dos irmãos mais moços foram reabsorvidos

(na aparência) em proveito do irmão menor. Este re-


conhecimento da menoridade aparece como uma fic-

ção jurídica utilizada para suprimir o principio da su-

cessão fraterna e para substituí-la pelo princípio da

sucessão em linha reta. O filho mais velho sucede

imediatamente, e quase que em pleno direito, graças

ao artifício da cessão (jang) que toma o aspecto de

uma disposição testamentária in extremis. Depois de

ter tido, outrora, o valor de um rito e de ter servido,

inicialmente, para realizar uma alternação real dos

poderes, e em seguida para permitir o interregno, pelo

qual sobrevive o princípio da alternação, a cessão,

feita no momento da morte, não é mais do que um

artifício processual destinado a assegurar a continui-

dade de uma linhagem agnàtica feita de primogênitos.

Quando guarda seu primeiro valor e sua força

plena, a prática da cessão decompõe-se em dois ges-

tos rituais. O soberano, quando se torna velho, retira-

se e, desde o início, ele cede o poder (jang) ao mi-

nistro que o assume. A abdicação do chefe abre para

ele um período de retiro, cuja duração teórica é de

trinta anos (pois a velhice começa aos setenta anos

e um sábio morre em seu centésimo ano). O sobera-

no, em seu retiro, prepara-se para a morte. Esta morte

abre aos sobreviventes um período de recolhimento

que é o luto e cuja duração teórica é de três anos.

No terceiro ano, o ministro cede o poder ao filho, que

não o assume, sendo eliminado. Quando, em conse-

qüência de uma inversão do mecanismo, é o ministro

que é eliminado, isto ocorre ainda no final do luto.


Yu, fundador da primeira linhagem real, tinha cedido

o poder a Yi, seu ministro. Quando Yu, o Grande, mor-

reu e o luto de três anos terminou, Yi, o ministro,

cedeu o poder a K'i, filho de Yu. K'i tomou o poder e

Yi precisou sair da capital. Uma tradição (rejeitada

como heterodoxa) diz que Yi, o ministro, foi morto por

K'i, filho de Yu. Quando morreu T'ang, fundador da se-

gunda dinastia, Yi Yin, seu ministro, começou por

banir T'ai.kia, que, pelo direito agnatício, devia suce-

der a T'ang. Yi Yin regeu o império durante três anos,

tempo regular do luto. Uma tradição (rejeitada como

heterodoxa) diz que T'ai-hia, voltando do exílio, matou

Yi Yin. É ainda no terceiro ano que se seguiu à morte

do rei Wou, fundador da dinastia Tcheou, que se deu

o banimento do duque de Tcheou, regente do império.

Assim, a regência dura o tempo do luto, terminando

de modo fatal para o ministro. Mas a morte do minis-

tro ou o fim do interregno são, normalmente, marca-

dos por tempestades maravilhosas que têm as carac-

terísticas de uma apoteose, e acontece que estas tem-

pestades se produzem no momento em que o regente

e o novo rei se encontram nos arrabaldes. Viu-se que

Tan-tchou, o filho sacrificado de Yao, representava o

Céu num sacrifício celebrado nos arrabaldes, por

Chouen, o ministro sucessor. Quando os filhos conse-

guiram suplantar os ministros, estes, por sua vez,

foram, sem dúvida, no fim do luto, sacrificados nos

arrabaldes (471).

O sacrifício que terminava o recolhimento do


luto (que, em teoria, dura três anos - sendo que os

três primeiros meses são os mais difíceis do recolhi-

mento) não devia se diferenciar, sensivelmente, do

sacrificio pelo qual se concluía o recolhimento hiber-

nal (que dura três meses). Eles serviam para suspen-

der as proibições impostas pela morte de um sobera-

no ou pela estação morta. A estação morta é o mo-

mento das justas, pelas quais grupos opostos rivali-

zam seu prestígio. O tempo do luto é, também, tomado

por uma longa justa na qual se opõem o ministro e o

filho, todos os dois disputando a virtude e procurando

sairem vitoriosos da prova. Assim lutaram Chouen e

Tan-tchou, Yi Yin e T'ai-kia e "os senhores, unânime-

mente, se entregaram" àquele que, ministro ou filho,

soube adquirir melhor o gênio do defunto.

Em todos os tempos, na China, o luto foi consi-

derado uma prova que habilita à sucessão. O filho não

era o único a suportar esta prova, mesmo na época

em que reinava o direito agnatício. Durante o período

feudal, cada família possuía um intendente, espécie de

ministro doméstico, alter-ego do chefe da família. Ele

se achava ligado, intimamente, a este último, por um

vínculo tão forte como o que une uma esposa a seu

senhor. As obrigações do intendente, no decurso do

luto, não eram menos pesadas do que as do filho. No

fim do luto, ele se incumbia de outras, ainda mais

árduas. Vê-se, muitas vezes, o intendente se enten-

der com a viúva para encontrar companheiros de tu-

mulo para o morto. É que os dois procuram descar-

regar seus próprios deveres em vítimas substitutas.


Na verdade, o mais íntimo dos vassalos deve, como a

esposa, seguir seu senhor na sepultura. O duque Mou

de Ts'in tinha três fiéis (Ministro diz-se Três Duques)

que se devotaram pessoalmente. Eles foram sacrifi-

cados por ocasião da morte do duque. O sacrifício

ocorreu quando o defunto tomou posse de sua última

morada (472).

O enterro definitivo marca o fim das observân-

cias mais severas do luto. O sacrifício que o acompa-

nha assegura a apoteose do morto que, enfim trans-

formado em Ancestral, sobe triunfalmente ao Céu,

escoltado por uma corte fiel. Este enterro definitivo

é precedido por um enterro provisório, cuja duração

teórica é de três meses. O enterro provisório é feito

na casa. O morto descarna-se entre seus parentes.

Estes, enquanto dura o período em que se dissipa a

impureza mortuária, devem participar, de todas as

maneiras, do estado do morto. Eles devem purgá-lo

de sua infecção, pois sua infecção é a deles. Para mui-

tos povos que praticaram o sistema de enterro duplo,

o primeiro dever é comer as carnes decompostas do

morto. Os antigos Chineses sabiam impor o dever de

consumir o cadáver àquele que, desejando suceder,

pretendia adquirir as virtudes do defunto. Quando mor-

reu Yi, o Grande Arqueiro, príncipe de Kiong, "fez-se

cozinhar sua carne, que foi dada a seus filhos para

que a comessem. Os filhos não puderam suportar a

idéia de comer (seu pai). Por isto foram mortos nas

portas de Kiong" (473).


Se T'ai-kia conseguiu adquirir as virtudes de

T'ang, seu pai, foi, sem dúvida, porque, menos tímido

do que os filhos do Arqueiro, tomou para si o encargo

de livrar os ossos do defunto da infecção mortuária.

Na verdade, ele não chegou a adquirir as virtudes pa-

ternas senão depois que Yi Yin, o ministro, baniu-o

durante o tempo de luto, para Tong, precisamente onde

T'ang foi enterrádo. Yi Yin, cedendo a T'ai.kia o dever

de purgar a impureza funérária, fê-lo suceder, e T'ai-

kia, por seu lado, quando T'ang passou para a cate-

goria de ancestral, cedendo a Yi Yin, que matou, a

honra de acompanhar fielmente seu senhor, fê-lo obter

a glória de ser o Arauto de uma dinastia que se fun-

dava. Outrora, como bom sobrinho uterino, o ministro

teria, sem dúvida, reclamado o encargo de purificar

os ossos do defunto e, para encerrar o luto, ele teria

sacrificado o filho nos arrabaldes.

A continuidade das linhagens reais foi assegu-

rada e o direito agnatício foi estabelecido quando o

filho, heroicamente, teve a coragem de se ligar a seu

pai. Houang-ti, nascido num monte do mocho, sabia

sustentar seu gênio emblemático comendo mochos.

Parece que é um costume dos mochos devorar sua

mãe. Nutrir-se das carnes da mãe (quando a filiação é

uterina) é limitar-se a confirmar em si mesmo as vir.

tudes de sua raça (474). O endocanibalismo que permite

a uma família conservar sua integridade substancial,

é um dever muito simples do respeito doméstico.

Quem o cumpre, presta-se a uma comunhão pura. A


pessoa torna-se sagrada sem procurar ultrapassar as

sagrações permitidas a seu gênio primeiro. Quando

não é endocanibalismo, o canibalismo torna-se, pelo

contrário, um ato de fé e um ato de orgulho. O herói

capaz de comer a carne de quem não é seu parente,

demonstra uma Virtude ambiciosa que não recua dian-

te das incorporações e dos excessos. Esta é a Virtude

de um Chefe. A história chinesa mostra-nos os filhos

do Arqueiro, raça de usurpadores, perecendo porque

não têm a coragem de beber o caldo feito com o cadá-

ver de seu pai. Ela nos mostra, também, dois grandes

sábios que, tendo coragem, fundaram duas dinastias

gloriosas. Desafiado por um rival, o rei Wen, fundador

dos Tcheou, bebeu o caldo de seu filho. O fundador

dos Han, Kao-tsou, também provou seu heroísmo

quando, em 203 a.C., dispôs-se, tranqüilamente, a be-

ber o caldo de seu pai (475). É significativo o fato de

estas particularidades históricas se encontrarem na

narração da fundação de duas dinastias. Elas fazem pa-

recer a prova do canibalismo como uma espécie de

rito preliminar de entronização. Quando o chefe bebe,

diante de seu rival, ninguém pode ignorar que ele pos-

sui em si, graças a uma anexação triunfal, a dupla vir-

tude do Céu e da Terra, outrora dividida entre príncipe

e ministro, entre pai e filho.

Os aumentos de prestígio

Somente ritos terríveis tiveram o poder


de aproximar o pai e o filho, outrora

membros de dois parentescos diferentes

e dotados de virtudes heterogêneas. A

enfeudação agnatícia tem qualquer coisa

de uma anexação triunfal. Mas alcançar

a vitória e leva-la até o fim só foi possível, inicialmen-

te, fora da família e da cidade. Foi nas regiões limi-

trofes que se criou o direito de guerra que permite os

aumentos substanciais de prestigio.

O Chefe é um guerreiro, um domador de ani-

mais, um civilizador de Bárbaros. Senhor do fogo, com

o qual se desbrava a mata e se forjam as armas, ele

pôde acomodar o mundo. Ele pôde domar os animais

ferozes, os demônios, os selvagens que cercam a

cidade, nas regiões incultas, além dos campos culti-

vados. Ele suportou a prova da exposição na mata,

seja em seu nascimento, como Heou-tsi, seja, como

Chouen, antes de tomar o poder. Ele sabe, como Yu,

o Grande, dançar os passos que tornam inofensivos

os Tch'e-mei, espíritos ferozes dos pântanos e dos

montes, ou a dança que, domesticando os Três Miao,

estes seres alados, faz com que eles abandonem a

barbaria e tragam seu tributo à capital. Ele conhece

o nome dos Monstros: este nome é a própria alma.

Quando o pronuncia, ele vê se aproximar, cativo, o

animal mais horrendo(476). O Chefe é um fornecedor

de caça, um conquistador de nomes, um caçador de

emblemas. A alma dos animais cativos tremula em

seus estandartes, ressoa em seus tambores. Ele vai

em seu pântano pegar o Crocodilo divino que toca


tambor em seu ventre e dá gargalhadas, ou, na mata,

K'ouei, boi e dragão, que faz o ruído do trovão: com

sua pele, com seus ossos, ele faz um tambor que

governa o raio (477). Ele vai aos brejos onde se arrasta

o Wei-t'o, vestido de roxo, como convém a um prín-

cipe, e sinuoso como uma bandeira que tremula: ele o

pega e o come, pois Wei-t'o tem em si uma virtude dos

príncipes e governa a Seca (478). O Chefe é um caçador

mas que caça com música, dançando, batendo o tam-

bor, brandindo, como uma bandeira, caudas de ani-

mais (479). Ele captura os animais, come sua carne, usa

sua pele, revestindo-se de sua natureza, assimilando

seu gênio. Ele dá a seus homens, para que eles os

usem, o nome ou a pele dos monstros vencidos. Ele

conquista os emblemas e os distribui. A natureza e os

homens lhe obedecem, graças a estes emblemas. Mas

ele só pode conquista-los nos territórios desertos,

terra de caçadas ou de guerras. Ali vivem os Bárbaros,

que são a caça do Chefe.

Entre os Chineses, realmente, a guerra foi,

outrora, proibida. Ela parecia impossível. Todos os Chi-

neses eram aliados (literalmente: kieou-cheng = so-

gros e genros) ou irmãos (hiong-ti). Se traziam nomes

diferentes, uniam-se pelo casamento e por vingança,

vivendo num estado de equilíbrio agitado que difere,

radicalmente, do estado de guerra. Preludiando vin-

ganças ou coroando-as, a união pelo casamento cor-

responde a uma trégua na qual as rivalidades talvez

se avivem mais do que diminuam. Concursos regidos


por violências e por desafios que terminam em comu-

nhões solenes, as vinganças favorecem o sentimento

geral de solidariedade tanto quanto a troca de reféns

ou de esposas. Por outro lado, entre parentes tudo é

comum. As trocas são impossíveis. A vingança seria

imoral, como o casamento. Não se poderia imaginar

a guerra. Um homem, impelido a semelhante loucura

pela ambição, aterroriza-se à primeira repreensão.

"Aniquilar um domínio do mesmo nome não é con-

forme os ritos(480)!" Um outro, advertido dos desíg-

nios'sinistros de um parente, não consegue acreditar:

"Usamos o mesmo nome! Não seria conveniente que

ele me atacasse (481)!" Contra uma família ou um do-

mínio "de sogros e genros", combate-se, certamente,

ou antes, luta-se, e não sem brutalidade, mas nunca

se tem em vista uma vitória definitiva ou uma anexa-

ção. O senhor de Tsin (583 a.C.) pretende exterminar

toda a família Tchao. Ele considera os Tchao vassalos

rebeldes, mas estes, na realidade, constituem uma fa-

mília rival, que tem seu lugar no Estado. Dizem-lhe:

"É possível interromper seus sacrifícios?" Ele recons-

titui, imediatamente, seu patrimônio familiar (482). Uma

família e suas terras formam um todo solidário. A

rigor, uma família pode comprometer (hia) uma parte

de seu domínio: ela não pode transmitir sua proprie-

dade (483). Não pode aliená-la. Não pode ser alienada.

Criminosa, ela é inteiramente criminosa e seu domí-

nio acompanha-a. Como parte de uma família divina

que se quer punir, a montanha é arrasada e pintada

de vermelho, tal um criminoso: mas semelhante cas-


tigo é um ato de autocrata (219 a.C.) e mereceu a re-

provação (484). Não houve e não podia haver, no sentido

estrito, um direito penal antes que o Estado estivesse

em mãos de uma autoridade verdadeiramente sobera-

na. Para poder punir, é preciso destruir inteiramente

e como destruir uma família? Não se pode deixar sem

senhores nem confiscar campos aos quais continuaria

a aderir um gênio doméstico que não teria sido assi-

milado. Nem o direito penal, nem o direito comercial,

nem o Estado podem fazer o menor progresso enquan-

to se hesita ainda em romper o equilíbrio venerável

que torna intangíveis as heranças e as famílias.

Fato significativo, os primeiros códigos passam

por ter sido promulgados na caça, isto, é, nas frontei-

ras onde viviam os Bárbaros. O direito penal, se ultra-

passa a simples justiça familiar ou o processo de

vingança, aparece como um direito militar, um direito

de guerra. Os códigos foram gravados em caldeiras

cujo metal era recolhido nas gargantas de montanhas,

como eram conquistados, nas fronteiras, os emblemas

com que se ornavam os caldeirões dinásticos. Assim

também, o tesouro público foi, inicialmente, um tesou-

ro de guerra. Ele continha "as penas, os pelos, os

dentes, os chifres" (485), que concediam seu vigor às

armas de guerra ou de dança (é a mesma coisa) e que

eram, inicialmente, os primeiros meios de pagar o

tributo; mas este tributo era o tributo dos Bárbaros

e não o dos vassalos. Assim também, enfim, o primei-

ro domínio público foi constituído pelas florestas e

brejos das fronteiras: produtos dos pântanos, produ-


tos florestais, sal, minérios, pedras preciosas, rique-

zas exóticas, tais são os primeiros recursos do Estado,

tais são as únicas matérias que entram numa circula.

ção ampla (486). Nem os grãos, nem os tecidos foram,

inicialmente, objetos de comércio ou objetos de tri-

buto. Eles serviam, somente, para prestações antité-

ticas. Eles eram matéria para justas. Prestavam-se a

trocas. Não podiam ser vendidos nem circular livre-

mente. Os produtos agrícolas ligavam-se aos campos

domésticos e participavam de sua insensibilidade. O

grupo familiar ou sexual que, fazendo brotar as semen-

tes e tecendo as fazendas, incorporava nelas, com seu

trabalho, qualquer coisa de sua alma, as consumia ou

as usava depois que um grupo aliado retirava seu

caráter sagrado. A este grupo, ele podia dar, mas

como se dá a si mesmo, ou antes, empresta-se, quan-

do se quer participar de uma comunhão ou se aproxi-

mar de outrem sem, todavia, deixar-se anexar. Por

outro lado, coisas e seres das províncias das frontei-

ras são matéria de saque, matéria de troféu, matéria

de anexações triunfais. Nada os impede de destruí-los.

Só possui inteiramente aquele que tem o direito de

destruir. Somente ele pode reconhecer em si o direito

de alienar.

Os Bárbaros São, por natureza, culpados do uni-

co crime que é um crime verdadeiro. Eles vivem fora

da ordem de civilização que faz irradiar a virtude do

príncipe. Também, no momento em que há chefes e

que eles punem o crime de rebelião, o culpado é puni-


do pelo banimento nas províncias incultas da fron-

teira. Expondo o banido no país dos Monstros, mor-

to ou vivo, expulsa-se sua alma do mundo humano,

Matar um homem é o mesmo que expulsar na barba-

ria, pois os Bárbaros têm a natureza de animais e não

de homens (487). Dois seres humanos, dois Chineses,

se são parentes, possuem uma identidade de gênios;

seus gênios são complementares, se são aliados: com

os Bárbaros não é possível nenhum parentesco, nenhu-

ma rivalidade sagrada. Difere-se deles pela alimenta-

ção, pela vestimenta. Com eles não se trocam grãos,

nem tecidos. Não se alia a eles pelo casamento ou

por vingança. Não sé comunica com eles como com

os comensais. Deixam-nos "viver com as raposas e

com os lobos", ou então, perseguem-nos: eles os

guerreiam (488). Os Bárbaros fornecem cativos e tro-

féus. Troféus e cativos trazem este acréscimo de

prestígio que é a glória. Um triunfo vem consagrá-la.

Quando seu exército conquista a glória, o che-

fe executa a dança triunfal. "Ele segura a flauta com

a mão esquerda. Segura o machado, com a direita. Ele

marcha entre cantos de vitória. Ele faz a oferenda dos

despojos do inimigo." Os despojos compreendem a

orelha esquerda cortada dos inimigos mortos e aque-

las que se cortou dos cativos arrastados para a pa.

rada. Cortar a orelha é um gesto liminar que abre

o combate. Abre também a pompa guerreira que o

comemora. O primeiro sangue que se tira das orelhas

com a faca de guizos chama a um banquete os deuses

que se tornaram solícitos (489). A dança triunfal termi-


mina com um festim de canibais onde se saciam os

homens e os deuses vencedores. Os Bárbaros não são

senão caça. Pode-se, consumindo-os, assimilar as vir-

tudes estrangeiras e realizar uma conquista.

É por um festim canibalesco que se obtém uma

enfeudação ou que se suprime uma fronteira. É sufi-

ciente que o direito de guerra penetre nas relações

entre famílias e cidades para que apareçam a ordem

feudal e a ordem agnática. Trata-se, então, como ini-

migos aqueles que, há pouco, eram tratados como

rivais. Em lugar de partir para a vingança, parte-se

para a conquista. Quando se teria somente o direito

de obter uma restituição de prestigio, procura-se um

triunfo total.

Em Ts'in e em Tsin (490), regiões vizinhas, rei-

nam famílias rivais. Elas trocam seus grãos e seus

filhos. Mas o duque Mou de Ts'in procura a hegemo-

nia. Ele aprisiona, num combate (644 a.C.), o duque

Houei, príncipe de Tsin. Ele o trata como cativo e o

conduz ao triunfo. Aloja-o na torre Ling, morada dos

prisioneiros destinados ao sacrifício. Ordena as pu-

rificações preparatórias. Mas a mulher do duque Mou

é irmã de Houei. Ela sobe, imediatamente, em outra

torre, a das mulheres condenadas. Ali se encerra e

seus filhos a seguem. Um mensageiro, vestido de luto,

vai levar ao marido a ameaça de um suicídio coletivo.

O vencedor vê-se constrangido a renunciar ao triunfo

que pretendia celebrar, não sobre um Bárbaro, mas so-

bre um aliado. Volta aos velhos costumes. Não se limi-


ta a restaurar, num banquete igualitário, a velha alian-

ça das regiões rivais. O vencido não é sacrificado nem

comido como um Bárbaro. É convidado a comer, com

o vencedor, sete bois, sete carneiros e sete porcos.

A ordem antiga é respeitada. Mas, mais ou menos na

mesma data (640 a.C.), o duque Siang de Song procura,

também, a hegemonia. Convoca uma assembléia nas

fronteiras do leste, sob o pretexto de reunir, debaixo

de sua autoridade, os Bárbaros orientais. Mas, para

alimentar seu prestígio, oferece um sacrifício cuja

vítima não é um Bárbaro, mas um senhor, um aliado.

E ele não ouve a reprimenda. Se se sacrifica um ho-

mem (isto é, um chinês), quem (entre os deuses e os

homens) quererá comê-lo (491)?"

Outrora, quando quis fundar uma dinastia e

"fazer chegar à plenjtude o prestígio dos Hia", Yu, o

Grande, convocou uma assembléia nas províncias das

fronteiras do sul (492). Ele também sacrificou um dos

senhores chamados à reunião. Este sacrifício está liga-

do a um concurso de danças. Parece coroar uma justa

dramática. Gênios bramindo como os ventos são venci-

dos por dragões que sobem ao Céu numa tempestade

de chuva e de trovão. Vento contra, trovão e dragões

contra touros, a justa de Yu, o Grande, que acabou em

apoteose, é uma dança triunfal, uma dança de ascensão

ao trono. Mas o vencido é qualificado de Bárbaro e a

história se abstém de contar que Yu o comeu: Yu é,

na verdade, um Herói de quem não se saberia falar

mal. O duque Siang de Song é, ao contrário, apresen-

tado como um ambicioso, enlouquecido pelo orgulho.


Não se hesita em contar o festim canibalesco que

celebrou. Este não é necessário se, impelindo a vitó-

ria até o triunfo, procura-se obter, com uma anexação,

um aumento real de prestígio? O único modo que se

tem de suprimir uma fronteira consiste em adqui-

rir as qualificações substanciais necessárias a um po-

der novo.

Quando a justa tende a semelhante fim, ela deixa

de ser um simples embate de rivalidades corteses. O

espírito de rivalidade exaspera-se e se transforma

num desejo de domínio. Em lugar de terminar com

um festim e com os casamentos que fazem surgir as

solidariedades profundas, restabelecendo o equilíbrio,

a justa triunfal acaba com uma incorporação. Os dois

chefes, que se defrontam, não se comunicam comen-

do juntos num banquete de iguais, mas o vencedor se

comunica, como dominador, com os vencidos. Ele os

enfeuda, assimilando, com a carne de seu rival der-

rotado, todas as virtudes próprias ao grupo subjugado.

Desde então, podem ser enchidos os fossos entre as

regiões e as famílias de essências diferentes. As pas-

sagens, as permutas tornam-se possíveis. Acabou-se

a época em que o equilíbrio era o ideal, mas em que a

oclusão era uma regra. Grupos e famílias, pelo con-

trário, interpenetram-se com uma violência tanto mais

impetuosa quanto eram fechados, originalmente. Um

espírito de guerra entrou na justa: uma vontade de

conquista preside às comunhões. Os comportamentos

comunitários visam obter, não mais uma solidariedade


simples e distante, mas uma enfeudação. Só se une a

outrem procurando supera-lo. Uma paixão pelo gasto,

pelo lance maior, pela destruição, um espírito de apos-

ta inspiram toda a vida social.

Os princípios da enfeudação.

Na época da concórdia camponesa e das

comunhões igualitárias, a solidarieda-

de das famílias associadas em comuni-

dades rurais era obtida por meio de

prestações que eram, ao mesmo tem-

po, alternadas e totais. As prestações

continuam totais, em princípio, enquanto a regra da

alternação domina a organização social. Quando

Chouen desposa as filhas de Yao e se torna ministro

com futura sucessão, Yao, ao mesmo tempo que suas

filhas, envia-lhe bois e carneiros, instrumentos de mú-

sica, o escudo e a lança que servirão para a guerra e

para a dança, o celeiro graças ao qual ele poderá fazer

liberalidades, todos seus vassalos, todos seus fi-

lhos (493). Chouen, que recebe toda a herança de Yao,

dará, por sua vez, a seu próprio ministro, toda sua he-

rança. Se ele restitui tudo, ele não dá mais do que re-

cebeu. A ordem feudal,é bem diferente.

A cada instante, cada bem deve ser entregue

ao Chefe. Nada é possuído senão depois de ter sido

cedido (jang). "Quando um homem do povo tem um


bem, ele o entrega ao chefe de família." "Quando um

dignitário tem um bem, ele o oferece a seu senhor."

"Quando um senhor tem um bem, ele o remete ao

Filho do Céu." "Quando o Filho do Céu tem um bem,

ele cede (jang) sua virtude (tô) ao Céu (494)." Uma

coisa só pode ser utilizada depois que a dádiva tira

seu caráter sagrado, e a dádiva torna-se proveitosa

quando é feita a um superior. Ela equivale, então, a

uma consagração. A medida que chega a um senhor

mais poderoso, a coisa se enriquece de um valor mais

alto, o Chefe não deve, em princípio, tomar tudo para

si. Ele deve saber "transmitir sua fortuna e distri-

buí-la do alto para baixo da escala dos seres, fazen-

do, assim, atingir seu desenvolvimento supremo, os

deuses, os homens e todas as coisas" (495). Os bens

tomam seu valor, sendo o objeto de doações. A cir-

culação das coisas produz os valores e os define, ao

mesmo tempo em que define e cria a hierarquia social.

A virtude (tô) das coisas resulta da consagração que

faz o Chefe cedendo-as (jang) ao Céu, força suprema.

A fortuna resulta do sacrifício, a abundância (jang)

da oblação sacrificial (jang)(496). Assim, toda dádiva

atrai um presente de valor mais alto (heou pao). Ao

sacrifício do fiel ou do vassalo corresponde a benefi-

ciência do deus ou a liberalidade do chefe. Os presen-

tes servem, em princípio, para assinalar o respeito e

para enriquecer de prestigio o donatário, depois para

fazer cair sobre o doador respeito e prestigio. Uma

emulação, feita simultaneamente de desinteresse e

de ambição, é o princípio comum da homenagem e do


tributo, do salário feudal e da nobreza.

Esta emulação generosa e ávida tem a força de

romper barreiras antigas. Pode-se entrar na família de

um Chefe, devotando-se a ele até o sacrifício total.

Tchao Kien.tseu conspira (496 a.C.); ele é muito forte

para que o castiguem; pedem-lhe somente para que

sacrifique seu homem mais devotado: este se oferece

por si mesmo à morte; depois de seu suicídio, ele

recebe as oferendas no templo da família Tchao (497).

Os vínculos de fidelidade dos vassalos (vínculos pes-

soais) sobrepujam os laços domésticos. Eles sobre-

pujam também os vínculos territoriais. Dois irmãos,

vassalos pessoais de Tch'ong-eul, futuro duque Wen

de Tsin, acompanham-no em sua fuga ao estrangeiro;

seu pai é um vassalo do príncipe que reina em Tsin;

ele recebe a ordem de fazer seus filhos voltarem; ele

se recusa: "Quando um filho é capaz de ter um cargo,

seu pai ensina-lhe a fidelidade; ele inscreve, então,

numa tabuleta, seu nome pessoal (que é idêntico a sua

alma e que confere poder sobre ele) e apresenta uma

oferenda em penhor. (O ritual da homenagem asseme-

lha-se ao ritual da dedicação. Fazendo a oferenda, dá-

se a si próprio inteiramente: não se poderia, desde

então, servir a um segundo senhor). Mostrar (uma

alma) dupla (o que fariam meus filhos voltando junto

a vós) é um crime (498)!" O princípio segundo o qual

se pertence inteiramente a um grupo único, mantém

sua força, mas o agrupamento que possui o indivíduo

não é mais do tipo familiar ou territorial: é um agru-


pamento feudal. O homem pertence, totalmente, a seu

senhor. Este o casa como quiser. Ele pode mesmo

não tomar conhecimento da regra exogâmica. Kouei

e K'ing-tche usam o mesmo nome; mas, aos dois, os

laços de família parecem insuficientes: Kouei torna-

se, então, vassalo de K'ing-tche (544 a.C.); K'ing-tche

dá.lhe sua filha em casamento (esta dádiva é como

uma contraprestação da homenagem); alguém diz en-

tão a Kouei: "Por que não vos recusais a esposar uma

parente?" Ele responde: "Quando se canta versos,

pode-se separar as estrofes? O que recebo agora, já

o tinha pedido (declarando-me vassalo) (499)." O regime

feudal acarreta uma circulação de coisas e de homens

de onde resultam classificações novas, sempre mó-

veis. Os indivíduos não estão mais ligados para sem-

pre à sua família ou à sua região. Por outro lado, os

agrupamentos, as famílias ou as regiões, não são mais

herméticos.

Os fossos que cercam um domínio podem, do-

ravante, ser removidos. O duque Houan de Ts'i traz

socorro a Yen (663 a.C.). O senhor de Yen, para mos-

trar seu reconhecimento, apressa-se em reconduzi-lo,

acompanhando-o mesmo bem longe. Ele penetra no

território de Ts'i. Era tratar o duque Houan como um

suserano, um Filho do Céu. Houan, precisamente, pro-

curava usurpar o prestígio real. Mas é abaixando que

se "aumenta a elevação", e cedendo seus bens que se

amplia a fortuna. Para marcar melhor a homenagem

recebida, Houan devia declina-la; mas para poder se


glorificar, devia pagá-la. "Ele separou por um fosso

e isolou o território atingido pelo príncipe de Yen, a

quem o ofereceu." Esta moderação, esta generosidade

aparente eram cálculos ambiciosos; ninguém se enga-

nava: os senhores, sabendo do ocorrido, puseram.se

todos a seguir Ts'i (500). A dádiva de uma terra com-

pensando uma homenagem é um dos princípios da

enfeudação. Ts'i parece incorporar a Yen um pedaço

de seu domínio; na verdade, ele enfeuda Yen a Ts'i.

Por outro lado, uma homenagem pode compensar uma

dádiva de terra. Tsin exerce a hegemonia. Song é seu

aliado; eles se unem e juntos suprimem um pequeno

domínio (562 a.C.). Tsin cede a terra a Song, mas não

sem segundas intenções. Ele estabelece em seu pró-

prio domínio um representante da família vencida, a

única que é qualificada para celebrar os cultos regio-

nais. Ele dá, pois, a posse, mas guarda os direitos

superiores. Song só possuirá o território concedido

quando for pedir a Tsin os serviços religiosos neces-

sários ao exercício de seus novos direitos. Entretanto,

a dàdiva obriga e é preciso pagá-la. O príncipe de Song

convida, pois, o príncipe de Tsin para um banquete.

Ele lhe propõe a execução da dança de Sang-lin, a dan-

ça de T'ang, o Vitorioso, fundador dos Yin. Esta dança

é uma espécie de brasão real, cuja posse não foi per-

dida pelos descendentes dos Yin. Com eles, apenas

os Tcheou podem fazer executar a dança dos Yin, que

derrotaram. Executar a dança de Sang-lin, em honra

de Tsin, equivale a tratá-lo como suserano. O prín-

cipe de Tsin só aceita pela metade a homenagem da


dança. Ele sente que Song lhe dá em demasia e que,

mostrando-lhe o emblema animado de uma raça real,

propõe.lhe uma comunhão tão temível quanto uma

prova. Empunhando a bandeira em que tremula o gênio

de Sang-lin, o chefe dos dançarinos aparece. O príncipe

de Tsin foge imediatamente. Contudo, ele cai doente.

Um vassalo engenhoso consegue afastar sua desgraça.

Sem isto, para conjura-la, Tsin teria sido obrigado a re-

clamar os serviços religiosos do príncipe de Song. Na

justa dé dádivas e de homenagens, Song venceu, pa-

recendo ceder (jang). Ele não hesitou em por em jogo

a própria essência de seu poder. Ele sacrificou tudo.

Tsin não podia sobrepujar este sacrifício. Se o tives-

se aceito inteiramente, vencido na aposta, ele teria

sido o devedor, e o enfeudado (501).

Instável e resultante de apostas sobre o desti-

no, a hierarquia feudal se estabeleceu por meio de

bravatas. Dádivas sagradas do solo, os grãos são pro-

duzidos para que os lavradores os consumam na hora

e não para serem estocados ou para saírem do territó-

rio (salvo no caso em que é necessário restabelecer,

entre grupos vizinhos, o equilíbrio rompido pela falta

de alimentos). Mas quando se funda a ordem feudal,

os grãos são trocados a titulo de tributo ou de salário;

são amontoados em celeiros e a própria palavra "ce-

leiro" significa "tesouro". As bebidas extraídas dos

grãos conferem, consumidas em comum, uma realida-

de substancial aos contratos de fidelidade. Mas, en-

quanto dois esposos (mesmo na época em que o ma-


rido é um senhor) bebem juntos nas duas metades de

uma mesma cabaça, as libações feudais, princípios de

comunhões enfeudantes, começam por este gesto de

desafio que é o oferecimento de uma taça. Antes do

combate, oferece.se uma taça ao inimigo. Que ele se

reconforte! Será enfrentado da mesma maneira(502)!

Depois da vitória, oferece-se uma taça ao vencido. Isto

é trata-lo como culpado, pois a derrota revelou, nele,

um criminoso que deve ser forçado a se purificar de

uma virtude má. Mas isto é ainda reabilita-lo, apagan-

do o passado, e também evitar uma vingança, propon-

do uma comunhão. É, enfim, assinalar seu próprio

triunfo (503). Nos torneios de tiro com o arco, os venci-

dos, segurando seus arcos afrouxados, recebem dos

vencedores uma taça de chifre. Eles bebem e expiam

sua derrota. Os vencedores expiam a seguir sua vitó-

ria: eles bebem por sua vez, mas na taça que serve

para as investiduras. Uma vez criada a hierarquia, a

solidariedade é confirmada: todos bebem em redor,

comunicando-se. Distribuir as taças, distribuir as hon-

ras, são ditos com a mesma expressão (504). Assim

também, receber grãos para comer equivale a receber

um feudo. Aquele que aceita alimentar-se de grãos,

dos quais outros tiram também sua vida, liga-se a seus

companheiros por um laço de solidariedade total. Ele

deveria recusar, se visse neles um gênio pernicioso,

cuja mácula adquiriria. "Não quero mais comer do que

eles comem! ", exclama Kie Tseu.tch'ouei: seus compa-

nheiros de vassalagem pareciam muito ávidos e, por-

tanto, desleais (505). Assim, as comunhões alimenta-


res chegam a ligar indivíduos de família e de virtudes

diferentes. Mas na dádiva de alimento, sente-se, como

na dádiva de bebida, a vontade de impor uma prova e

tentar uma anexação. Uma invasor apresenta-se: o

primeiro gesto que se esboça é o de lhe oferecer víve-

res. Não se quer procurar apazigua-lo. Procura-se, pelo

contrário, "trata-lo como vítima, que se engorda". O

exército de Tch'ou (536 a.C.) penetra no território de

Wou. O princípe de Wou envia seu próprio irmão para

levar a oferenda de víveres. A esta bravata correspon-

de outra bravata. Tch'ou dispõe-se, imediatamente, a

sacrificar o mensageiro: seu sangue servirá para untar

um tambor de guerra(506). A dádiva de alimento ou de

bebida tem o valor de um desafio que compromete a

sorte e liga os destinos. Ela quer preludiar uma

anexação.

O especulador que, mostrando moderação

(jang), é bastante ousado para ceder sempre, o que

dá mais, o que parece tudo empenhar no torneio de

apostas, somente este é capaz das anexações que per-

mitem fundar um poder. Em Ts'i, a família T'ien pre-

para.se para usurpar a autoridade do príncipe. Procura

subtrair seus vassalos à casa reinante e colocar a re-

gião inteira sob sua proteção. Ela pratica (de 538 a

485 a.C.) o sistema de duas medidas: dá e recebe empre-

gando medidas desiguais: dá 5 e não reclama senão

4. O povo também canta: "Quando uma velha tem pain-

ço - ela o leva a T'ien Tch'eng-tseu." Os príncipes de

Ts'i só possuíam um celeiro inútil onde deixavam apo-


drecer os grãos. O celeiro da família T'ien era, pelo

contrário, um verdadeiro tesouro. Os T'ien faziam libe-

ralidades aos indigentes. Aumentavam o número de

seus clientes e de seus hóspedes. A estes se ligavam

por dádivas e comunhões alimentares. Utilizavam tam-

bém a comunhão sexual como princípio de enfeudação.

T'ien Tch'ang tinha um harém com cem mulheres de

grande estatura. Ele permitia que seus hóspedes e

clientes ali penetrassem. Praticando assim a hospita-

lidade, ganhou setenta filhos. Tirou disto grande pro-

veito. Aqueles que se uniam às mulheres que eram

sua vassalas, ligavam-se a ele por seu intermédio, con-

traindo um laço de dependência. Eles não se tornavam

aliados, como são os genros; tornavam-se vassalos.

"As pessoas da região suspiravam depois da chegada

dos T'ien ao poder." "O povo celebrava, em seus can-

tos e em suas danças, as prodigalidades dos T'ien."

Estas passagens dos historiadores significam, sem dú-

vida, que os T'ien tinham sido bem sucedidos em comu-

nicar a glória de sua família. O tesouro de suas danças

e de seus cantos domésticos era, como seus tesouros

de grãos e de mulheres, não precisamente um tesouro

público, mas o tesouro de uma casa senhorial (507).

Um Chefe é aquele que, com desafios, brava-

tas, apostas, despesas, sacrifícios cruéis, justas guer-

reiras, comunhões enfeudantes, consegue romper as

velhas barreiras domésticas e territoriais, pois, de vi-

tória em vitória, constituiu um tesouro, tesouro de

emblemas, de grãos, de vassalos, de vassalas. Este

tesouro é sua fortuna e a de seu feudo. Nada tem va-


lor, nem peso (tchong), senão depois de ter sido consa-

grado a um personagem poderoso, senão depois de ter

feito parte de um tesouro que atraiu inúmeros presen-

tes. O senhor redistribui emblemas, mulheres e grãos.

Ele restitui, sob a forma de salário e de feudo, o que

recebeu a título de homenagem e de tributo. O tributo

dá o poder ao chefe. O salário dá nobreza ao vassalo.

Criou-se uma ordem nova, inteiramente baseada no

prestígio. Os agrupamentos humanos não são mais

herméticos. Homens e coisas circulam e, com isto,

tomam lugar numa hierarquia. Eles deixam de possuir

virtudes específicas que os isolam. Adquirem, em

compensação, um valor que os classifica. Na bandeira,

outrora, achava-se incorporado o gênio de um grupo;

o estandarte feudal assinala um grau de dignidade: o

que era um emblema doméstico tornou-se uma insígnia

honorífica. Em vez de ser dividida em agrupamentos

zelosos de sua independência, a sociedade compõe-se

de classes sobrepostas. Ela tem por finalidade menos

o equilíbrio das forças do que a concentração dos

poderes, ou, pelo menos, a hierarquia dos prestígios.

Cidade Senhorial

No decurso de período feudal, cuja du-

ração foi longa, as diferentes cheferias

conheceram sortes diversas. Algumas

permaneceram muito humildes, conser-

vando um aspecto totalmente rural. Em


certos domínios minúsculos, como, por

exemplo, o de Yu, em Chan-tong, o senhor (em 513) ia

pessoalmente presidir aos trabalhos dos campos (508).

Esta era (parece, pelo menos, ao se ler o Che king) a

principal das funções do chefe (509). A vida religiosa,

a vida pública reduziam-se a grandes festas rústicas.

Festejava-se Chen-nong, o Lavrador divino, deus dos

fogos de arroteamento e purificador das colheitas.

Festejavam-se, ainda, os espíritos que animam as qua-

tro estações, presidindo às quatro direções cardeais.

os do norte (inverno) e do sul (verão), como eram con-

siderados os mais importantes, recebiam um boi pre-

to (água) e um boi ruço (fogo). O dualismo reinava

tanto na sociedade como na mente. O chefe tinha dois

ajudantes, o inspetor dos campos e o guarda florestal.

Nos tempos míticos, Yu, o Grande, teve por compa-

nheiros K'i, o Senhor das colheitas (Heou-tsi: este tí-

tulo foi conservado, como título real, pelos Tcheou que

ligava sua genealogia a K'i), e Yi, o domador de feras,

grande guarda florestal, que fazia trabalhar sob suas

ordens quatro acólitos: Pinheiro, Tigre, Urso e Urso

rajado. Sabe-se que Yi, o Florestal, foi sacrificado

pelo filho de Yu, para pôr fim ao luto de seu pai (510).

Nas cortes senhoriais, o Grande Florestal, chefe das

caças do príncipe, estava encarregado de fazer voltar

e de fixar a alma superior (houen), a alma-sopro de

seu senhor defunto: esta alma, quando não era fixada

pelo culto, poderia ir incorporar-se num animal feroz

nas florestas. Caçador de Animais e de Bárbaros, o

Florestal possuía privilégios terríveis: encarregado de


executar, em caso de crime, os parentes do príncipe,

ele devia, em caso de infortúnio, assumir a desgraça

e as faltas(511). Diante deste predecessor longínquo

dos ministros da Justiça e da Guerra, o Intendente dos

campos exercia uma autoridade de aspecto mais pací-

fico, embora esta comprometesse, talvez gravemente,

sua responsabilidade. Ele parece desempenhar, no

princípio do luto, um papel semelhante àquele que ca-

be, na época de seu encerramento, ao Intendente das

florestas. Encarregado de colocar a bandeira do chefe

defunto sobre uma efígie grosseira recobrindo duas

penelas de arroz, ele tinha, sem dúvida, a missão de

presidir aos ritos que permitem ao cadáver decompor-

se e à alma inferior (p'o) operar sua volta entre as

forças santas de onde o solo tira sua fertilidade (512).

Em seus humildes servidores, o chefe rural descarre-

gava-se dos mais pesados deveres de expiação que

se impõem a um senhor.

No fim do período feudal, apareceram grandes

domínios. Seus chefes, que a história avilta para seu

descrédito, são apresentados como tiranos. Em sua

corte, sob a influência dos legisladores, a idéia de Es-

tado elabora-se vagamente, enquanto que se esboça um

sistema administrativo. Os pontentados, reinando num

grande território, procuram basear seus poderes em

novos prestígios. Mesmo quando aparentavam se preo-

cupar somente em cercar sua pessoa com uma glória

de apoteose, sente-se, em seu próprio orgulho, a idéia

de que o poder supremo é feito de expiações e de de-


dicações. Os ministros poderosos, que são seus favo-

ritos, conservam um ar de vítimas expiatórias que os

aproximam dos humildes intendentes de outrora.

Mas, se acreditarmos nos rituais e nas crôni-

cas, entre o tempo das cheferias rurais e a época das

tiranias (Reinos combatentes) existiu um longo pe-

ríodo durante o qual a China conheceu uma ordem

estável e regulamentada. É muito possível que a or-

dem feudal tenha sido singularmente instável. Há,

seguramente, muita utopia histórica nas compilações

de regulamentos que pretendem descrever os costu-

mes realmente praticados nos domínios feudais. En-

tretanto, ao lado das cheferias que conservaram um

caráter propriamente rural, e dos Estados poderosos

que os tiranos tentavam edificar, parece que domínios

de um tipo estritamente feudal ocuparam um lugar

importante. A hierarquia ali estava relativamente fi-

xada, os direitos hereditários eram reconhecidos. Os

cargos de embaixador, de justiceiro, de analista per-

maneciam no mesmo grupo de parentes. Entre os do-

mínios que, como as famílias de vassalos, procuram

sempre melhorar sua graduação, mantinha-se uma cer-

ta ordem protocolar (513). Nos costumes feudais não se

deve ver, como o fizeram os feudalistas, que, na época

dos Han, redigiram o Tcheou li, um sistema jurídico

fixo nascido de uma carta constitucional. Mas o ideal

que inspirou os feudalistas e guiou os cronistas em

suas tentativas de reconstituição histórica não é intei-

ramente uma invenção. Ele se formou nas cortes se-

nhoriais estabelecidas em pequenas aldeias que pare-


ciam assemelhar-se, às vezes, a burgos, às vezes, à

povoações. Ali se agrupavam, em redor de um senhor

hereditário, algumas famílias de vassalos que leva-

vam uma vida nobre. Seus chefes estavam na frente

de um grupo militarmente organizado e viviam do tra-

balho de um grupo subordinado de camponeses deno-

minados de plebeus ou vilãos. De seu modo de vida,

na corte ou no exército, e de sua disciplina doméstica

deriva a moral que mais tarde devia se impor ao con-

junto das classes dirigentes da nação. É a moral dos

homens honestos que foram, inicialmente, gentis-

homens (kiun-tseu) vivendo, na corte de um senhor,

uma vida dominada inteiramente pelo culto da honra

e da etiqueta.

A cidade

Alguns versos do Che king dão uma idéia

do que era a fundação de uma cidade.

O fundador, revestido de todas as suas

jóias, jades, pedras preciosas, e trazen-

do uma espada magnífica, procede, pri-

meiramente, a uma inspeção do país.

A fim de fixar a orientação, ele observa as sombras.

Examina as vertentes ensolaradas e sombrias, o yang

e o yin de região, para saber como se repartem os prin-

cípios que constituem o mundo. Toma conhecimento,

enfim, da direção das águas correntes. É ele que deve

reconhecer o valor religioso do local (o que se chama-


rá, mais tarde, de fong-chouei). Consulta, enfim, a tar-

taruga, para constatar se seus cálculos são bons (514).

Quando o local é escolhido, ó fundador dá or-

dem para construir. Ele espera, para isto, o momento

propicio: aquele em que a constelação Ting (Pégaso?)

culmina (durante a tarde?), isto é, no décimo mês do

ano.

Convém, com efeito, que a estação dos traba-

lhos rústicos esteja acabada. Somente então se pode

começar as construções. É preciso que elas esteja

terminadas no solstício de inverno. A ordem pela qual

se deve proceder é fixa. Começa-se levantando a

muralhas (miao). Toma-se o cuidado de plantar, a

mesmo tempo, as árvores (aveleiras, castanheiros).

cujos frutos ou cujas bagas serão oferecidos aos an-

cestrais, e aquelas (paulownias) que servem, ao mes-

mo tempo, para fazer os caixões mortuários e as cai-

xas sonoras (515). "Na antiguidade...quando se traçava

o plano da capital, não se deixava de escolher a eleva-

ção principal do reino para constituí-la em templo

ancestral, nem de escolher as árvores de folhagem

mais bela para tirar a madeira sagrada (516)." Depois

que estão terminados os muros, os altares, as planta-

ções que devem conferir à cidade sua santidade, edi-

fica-se o palácio e as casas.

A dignidade de um senhor e a de sua cidade

estão nas muralhas da cidade. Estas são feitas de

terra batida quando a cidade não contém um Templo


ancestral da linhagem do príncipe (tsong-miao): ela

não merece então o titulo de tsong: chamam-na de yi,

povoação. Uma verdadeira cidade possui muralhas de

alvenaria: pode então ser chamada de tou, capital (517).

As muralhas eram construídas graças às corvéias,

fornecidas pelos lavradores. Estes trabalhavam ao

som do tambor, em fila, sob as ordens de um nobre:

este último munia-se de um bastão a fim de excitar

os ânimos, a fim de, sobretudo, reprimir as palavras

de mau augúrio. Os operários trabalhavam cantando:

os descontentes podiam, com um verso mau, lançar

um sortilégio nas muralhas(518). Os trabalhadores le-

vavam a terra em cestos. Eles a amontoavam entre as

tábuas, que, sustentadas por estacas, colocadas de lado

e alinhadas, formavam uma longa caixa. Eles batiam

com cuidado a primeira camada, antes de assentar uma

segunda fileira de pedras (519). Se eles não trabalhas-

sem conscienciosamente, as chuvas, escavando bre-

chas nos muros, abririam a cidade às investidas (520).

O maior trabalho era a construção das portas. Cerca-

das de fossos, munidas de torres, guarnecidas de gra-

des pontiagudas, elas formavam uma verdadeira praça

de armas, uma espécie de fortificação de redentes,

que era o grande reduto da defesa. Eram elas que su-

portavam o ataque dos invasores. Eram confiadas a

um guarda que nunca devia abri-las antes que os

galos, cantando, anunciassem a aurora. A guarda era

confiada a um vassalo experimentado e consagrado a

sua função por uma espécie de marca: cortavam-lhe

os pés. Ele não devia, em caso algum, abandonar seu


posto. De resto, salvo para um inimigo determinado,

as portas eram protegidas por sua própria santidade.

Deviam sua consagração às cabeças dos derrotados,

que se tinha o cuidado de enterrar no local. Aquele

que, com uma cabeça cortada, trazia um acréscimo

de santidade a uma porta, merecia tomar-se seu guar-

dião: ele percebia, em seu proveito, os direitos de

Passagem(521). Sobre as torres das portas, expunha-

se, por bravata, a cabeça do traidor que houvesse de-

sejado ver o inimigo penetrar na cidade. Ainda por

bravata, expunha-se, sobre as muralhas, os cadáveres

capturados e se suspendiam, nas portas, os troféus,

as armas tomadas a um chefe rival e, também, sem

dúvida, as bandeiras conquistadas que, depois de um

combate em campo aberto, eram içadas, imediata-

mente, nas portas das tendas. Em compensação, uma

cidade sentia-se capturada desde que o inimigo tives-

se assentado, em seus muros, o estandarte de seu

chefe. A divindade da cidade acha-se nas portas e nas

muralhas (522).

os deuses da cidade receberam outras mora-

das: o altar do Solo, o Templo ancestral. O altar do

Solo (523) é constituído, como as muralhas mais humil-

des, por uma simples elevação de terra batida. Esta

elevação, que é quadrada (pois a terra é quadrada e,

em princípio, a cidade também o é) deve ser recober-

ta, os rituais assim o ordenam, com terra de uma só

cor; admite-se, com efeito, que todo feudo é possuído

por uma investidura; estase faz per glebam; o bene-


ficiário recebe terra de uma cor conforme o oriente

de seu feudo; dela deve se servir para levantar o altar

do Solo. Na verdade (viu-se por uma citação de Mei-

ti), a colina sagrada preexiste, recoberta de árvores,

à fundação da cidade, e mesmo, é em razão dela que

se escolhe o local. Os altares do Solo são assinala-

dos por uma árvore santa ou, pelo menos, por uma ta-

buleta de madeira. Esta tabuleta, tirada (em teoria)

de uma árvore cuja essência deve ser conforme o

oriente do feudo, é a parte central e a mais divina do

altar. O chefe leva-a em sua bagagem quando parte

para a guerra; é diante dela que sacrifica vencidos ou

culpados. Afirma-se que, em certas regiões, faziam-

na, não de madeira, mas de pedra. A tabuleta, árvore,

pedra, estela ou estaca, parece ter servido, primiti-

vamente, para a consagração de troféus, homens e

animais. Atavam-nos a um poste, a fim de oferecê-los

aos deuses da terra natal. Enquanto o altar do Solo

permaneceu tosco e de aspecto bárbaro, o Templo dos

ancestrais acabou por se tomar magnífico. No entan-

to, ele também não se diferenciava, no princípio, da

elevação arborizada que fora escolhida para ser o co-

ração da cidade. Mesmo quando se transformou num

edifício esplêndido, era na elevação cercada pelas

muralhas que se iam buscar as árvores destinadas a

escorá-lo e a cobri-lo. As paredes eram de taipa. Todo

luxo estava no madeiramento. "Subamos na montanha

King - bosque de pinheiros e de cedros! - ora va-

mos! cortemos e transportemos - esquadremos e

serremos certo! - os caibros de pinheiro são longos


- as altas colunas numerosas!" O arquiteto Hi Sseu

construiu, em Lou (entre 658 e 626), um templo que

ficou célebre, pois a força das colunas é o compri-

mento dos caibros tinham permitido dar proporções

amplas às salas, vastas e longas. Procuraram-se, para

os telhados, linhas elegantes "como um pássaro com

penas novas". Recurvaram-se os bordos do telhado

"como as asas de um faisão voando" (524). O revesti-

mento de madeira foi pintado cuidadosamente. Todo

este luxo, entretanto, não datava de muito tempo. Os

conservadores escandalizaram-se quando (em 669 a.C.)

se atreveu, em Lou, a esculpir os caibros e a pintar de

vermelho as colunas de um Templo ancestral. Este,

segundo as velhas regras, só deveria ter um telhado

de colmo(525). Deveria ser construído com leveza su-

ficiente para ser demolido sem pesar, assim que o

defunto deixasse de ter direitos a sacrifícios regula-

res. Mas os senhores, quando se tomaram chefes de

grandes Estados, quiseram possuir ancestrais eternos.

Eles não demoliam mais os templos dos antepassa-

dos que se extinguiam. Era preciso que o Céu, ele

mesmo, se encarregasse disto, pelo raio ou pelo fo-

go (528). Outrora, uma humilde construção de terra era

considerada suficiente para abrigar (com os ances-

trais que, sob a forma de serpentes, por exemplo,

vinham todos tomar parte nos lutos familiares (527) o

pequeno número de tabuletas necessárias para pro-

piciar os últimos mortos - os únicos qualificados

para receber oferendas pessoais. Como para os deu-

ses do Solo, na verdade, estas tabuletas de madeira


eram o centro das cerimônias do culto. Não havia

necessidade, para conter todas elas, de mais do que

um pequeno cofre de pedra que podia ser fechado e

carregado num saco se houvesse necessidade de se

expatriar (528). O chefe levava para a guerra, com a ta-

buleta do Solo, as tabuletas de seus antepassados.

Diante destas últimas, ele concedia as recompensas.

Mas as sanções positivas e negativas eram distribui-

das numa mesma cerimônia, a do triunfo. Os deuses

agrários e os ancestrais acabaram por compartilhar

atributos outrora indivisíveis. Eles nunca perderam a

ligação total. Nas cidades, construídas de acordo com

o plano dos rituais, devia haver, entre o altar do Solo

e o Templo ancestral, perto deste último e servindo-

lhe de anteparo, o altar de um deus do Solo, particu-

larmente terrível e respeitado. Era a ele que as danças

triunfais conduziam, troféu supremo, o Chefe venci-

do e destinado ao sacrifício. Ora, a vítima, embora

fosse sacrificada ao deus do Solo, devia ser consu-

mida pelos Ancestrais. Sem dúvida, o altar dos Ances-

trais e o altar. Do Solo eram, outrora, um mesmo altar.

A tabuleta do Solo que, mais tarde devia servir de

anteparo ao templo ancestral, talvez fosse, inicial.

mente, incluída na porta deste último(529). Pode ser

que ela não se diferenciasse, primitivamente, do poste

central desta porta. Ali se fazia a consagração dos

troféus. Talvez, mesmo, este poste santo tivesse sido,

inicialmente, o da porta das cidades - a madeira sa-

grada das portas (como a Floresta das Amoreiras,

para Song) não é menos santa do que a elevação arbo-


rizada englobada nos muros - numa época em que a

cidade se confundia com a morada do Chefe e em

que esta não era ainda mais do que um burgo.

A residência senhorial nos é apresentada (por

textos líricos) como uma moradia imensa e faustosa.

"Sucessor de antepassados e de antepassadas - meu

palácio tem cinco mil pés - janelas ao sul, ao poen-

te! Ali habito, ali moro - ali festejo e delibero (530)!"

E o poeta exalta o átrio de audiências, perfeitamente

nivelado, cercado por colunas muito altas, as salas

que são vastas e profundas ou então claras e ilumi-

nadas pelo sol, os telhados com linhas leves e, sobre-

tudo, as muralhas compactas que os ratos e os pás-

saros não poderão furar como as de uma choupana.

Afirma-se que, depois de 606, existiam palácios de

príncipes cujas paredes eram decoradas com pintu-

ras (531). Ouando, com muito contra-senso, transforma-

ram-se em fatos históricos as lendas do ciclo de

Cheou-sin, atribuiu-se a este rei de perdição um palá-

cio feérico, com salas ornamentadas com marfim e

Portas guarnecidas com jade. A imaginação de seme-

lhantes magnificências data, mais ou menos, do pe-

ríodo dos Reinos combatentes. Alguns grandes poten-

tados rivalizaram-se então em suntuosidade. Em 541

a.C., todo mundo censurou o duque de Lou, quando

este abandonou a velha morada de seus pais e cons-

truiu um palácio no gênero dos palácios de Tch'ou.

Viu-se, neste ato, uma espécie de negação da pátria,

uma verdadeira traição que uma morte nefasta devia

expiar: "Se o príncipe não morrer em Tch'ou, certa-


mente morrerá nesse palácio (532)." É possível que os

modos de construção não tenham sido os mesmos

em todos os lugares. Parece, entretanto, que em todas

as regiões, as residências dos príncipes eram, geral-

mente, moradias humildes, edificadas depressa e rapi-

damente demolidas. Em 502, por exemplo, um alto per-

sonagem fez construir para seu filho, ao lado de seu

próprio palácio, uma casa de terra batida(533). Para

fazer passar um enterro, não se hesitava em jogar

abaixo habitações inteiras (534). Uma velha regra ritual

(explicada pela constituição da família) exigia que os

filhos nunca tivessem a mesma morada de seus pais:

pais e filhos residiam (por gerações alternadas) à

direita ou à esquerda de uma construção que passava

por ter sido a casa do fundador de sua linhagem. A

mesma disposição valia para as capelas do Templo

ancestral, consagradas aos antepassados mais recen-

tes. Todas estas moradias efêmeras, cercadas de mu-

retas baixas e separadas por ruelas estreitas, com-

primiam-se em redor de uma espécie de torreão. Nas

épocas de revoltas e de vinganças (por exemplo, em

Tsin, em 549) fazem-nos ver assaltantes que pulavam

os muros baixos. Assim que sobem na porta do palá-

cio, podem fazer chover setas no quarto do príncipe;

mas uma torre fortificada serve de reduto aos defen-

sores. Em T'si sob o reinado de um príncipe céle-

bre por seu fausto, o ministro principal reside num

bairro inferior, onde se acha o mercado. Ele habita

"uma casa baixa, estreita, exposta à poeira". O prín-

cípe é o único a possuir "os terrenos bem iluminados,


elevados e secos". Construída num ponto elevado e

flanqueada por torres, a residência senhorial surge

como uma aldeia fortificada, dominando os arrabaldes

inferiores de um mercado (535).

O burgo do chefe, ampliando-se, acabou por se

tomar uma cidade. As muralhas das cidades cercam,

com o castelo do senhor, as residências das grandes

famílias de vassalos. Estas últimas possuem também

seu torreão cercado por muros com parapeitos(536).

As cidades, mesmo nos grandes Estados, não foram,

inicialmente, mais do que um amontoado de constru-

ções comprimidas umas contra as outras. Também a

primeira intenção do urbanismo nascente foi a de

evitar os perigos de incêndio. Em Song, que acabava

de ser queimada em parte, obrigaram-se (em 563) os

proprietários de grandes moradias a rebocar as mura-

lhas e decidiu-se demolir todas as pequenas habita-

ções (537). Era preciso obter um pouco de ar, pois os

depósitos senhoriais ou particulares, entrepostos de

arquivos, arsenais, cavalariças, templos, haréns acu-

mulavam-se em desordem. Do alto de sua torre, de

onde se introduzia nos pequenos pátios das casas vi-

zinhas, cada um podia avistar a mulher de um rival,

estabelecer relações com ela ou ainda tramar para lhe

roubar a bela cabeleira(538). Esta promiscuidade que

se explica como sobrevivência do comunismo domés-

tico, pôde durar enquanto os habitantes de uma cida-

de se consideraram membros de uma mesma família.

Em 634, os habitantes de Yang-fan, não querendo se


submeter a um senhor do qual não se sentiam paren-

tes, resolveram se expatriar em bloco (539). Entretanto,

a cidade, desde que mereça verdadeiramente este

nome, resulta de um sinecismo, de um tratado (meng)

que juram, sacrificando um boi vermelho, os chefes de

algumas famílias (sing) e o senhor ao qual se decla-

ram enfeudar. O senhor e seus descendentes têm o

encargo de presidir aos sacrifícios da cidade; os che-

fes de família fornecem as vítimas e recebem, em

troca, cargos hereditários (540). A cidade, desde então,

começa a se diferenciar do burgo. Ela é dividida em

bairros, cujos chefes colocam-se sob a autoridade do

chefe do distrito da esquerda ou do chefe do distrito

da direita(541). Estes últimos são também os chefes

das legiões da esquerda ou da direita. Sabe-se que a

legião central é a do príncipe. A organização da ci-

dade é tripartida como a do exército. A cidade tende

a imitar a disposição dos acampamentos (a qual, de

resto, confunde-se com a das culturas pois os cam-

pos são cultivados em quadrados). A cidade quadrada

é atravessada por avenidas retas que terminam em

portas cardeais. As cidades deste tipo apresentam-se

como estabelecimentos novos. Elas são edificadas

depois de um êxodo ou de uma conquista. Elas apare-

cem, ao contrário dos burgos, como cidades de planí-

cie. São construídas em terrenos mal preparados para

o habitat humano e onde a água aflora ainda à super-

fície(542). Elas devem, no conjunto, datar da era dos

primeiros grandes arroteamentos. Elas parecem ter

sido levantadas nas regiões conquistadas da natureza


e dos Bárbaros. No século Vll, os progressos da pre-

paração da terra ainda não se acompanhavam de um

aumento de população suficiente para que se pudesse

fornecer habitantes às cidades muradas, edificadas

em grande número, para conter a pressão dos Bárba-

ros. Agrícolas e militares, acampamentos permanen-

tes para servir de residência aos guerreiros e para

abrigar, em caso de necessidade, toda a população

dos lavradores, estas cidades-refúgios são cercadas

por muros duplos. Um é precisamente o muro da ci-

dade (kouo), o outro cerca os arredores, isto é, todas

as culturas, a região (kouo) inteira(543). Mas as cul-

turas penetram até a cidade, que deve se bastar em

caso de cerco. Aos burgos colocados em regiões altas,

estreitos, e de aspecto confuso, sucedem-se cidades

espaçosas e arejadas, cuja arquitetura pode ser reti-

línea e que são construídas em linha reta(544). Mas,

assim como havia um bairro mercantil junto às mura-

lhas de um burgo, levantam-se, também, subúrbios re-

servados aos comerciantes e aos artesãos nos cruza-

mentos dos caminhos que saem das portas da cidade

quadrada(545). A cidade, agrícola e militar, é também

um centro de trocas. Na constituição dessas novas ci-

dades, preside um sinecismo de um gênero particular.

Quando quer fundar uma cidade, depois de ter des-

bravado a mata, o senhor associa-se a um mercador.

Todos os dois juram (meng) um tratado de aliança

(sin), para si mesmos e para seus descendentes. Os

comerciantes não se revoltarão contra a autoridade

senhorial, mas o chefe não lhes comprará nada à for-


ça. "Se eles têm lucro vendendo objetos preciosos",

o senhor "não tomará conhecimento" (546). Desde en-

tão, face ao poder do príncipe, levanta-se o poder do

preboste dos mercadores. Artesãos e negociantes

exercem suas profissões por direito hereditário. O

preboste que está a sua frente, guarda, de pai para

filho, sua função, mas recebe a investidura do prín-

cipe (547). Ele tem o direito e o dever de participar das

embaixadas que o senhor envia às cortes vizinhas.

Mas, em tempo de guerra, comerciantes e artesãos

não são obrigados, como os lavradores, a tomar armas

sob a direção do senhor e, em certas ocasiões (por

exemplo, em Wei, em 502), os nobres devem negociar

com eles, para que se associem a seus empreendi-

mentos militares(548). As pessoas das corporações

acolhidas nos arrabaldes não são, como os campone-

ses que ficaram nos povoados, ligados por uma soli-

dariedade total aos guerreiros que habitam na cidade.

Abrigados atrás das muralhas sagradas da ci-

dade, o senhor e seus fiéis vivem nobremente. Na

cidade ideal (conforme o plano dos rituais), a residên-

cia senhorial levanta-se bem no centro. Quadrada co-

mo a cidade e cercada de muros, ela é, por si própria,

uma cidade. Suas muralhas devem ser muito altas, sua

porta, bela e majestosa. Ostenta, sobre o terreno pla-

no, bem espalhado, suas construções térreas coloca-

das em aterros altos. Seu plano foi feito em linha

reta. Cada edifício tem seu lugar determinado. Bem

no meio, a sala de audiências abre-se para uma aveni-

da que, passando entre o altar do Solo e o Templo


ancestral, dirige-se, em linha reta, para a porta do sul.

Por esta avenida chega o cortejo de vassalos, cuja

homenagem o príncipe recebe, voltado para o sul.

Como a residência do príncipe, as moradias das gran-

des famílias são, cada qual, uma cidade, uma cidade

agrupada em redor da grande sala, onde o chefe da

família recebe as homenagens dos parentes, voltado

para o sul. E, em todas as pequenas cidades muradas

que enchem a cidade, elevam-se ainda muralhas que

cercam a habitação de cada um dos chefes de um

pequeno grupo doméstico, pois cada filho de família,

assim que se casa, deve possuir, no fundo de seu

átrio fechado, uma sala de recepção. Este edifício é

sempre concebido no mesmo tipo. Por trás, há uma

parede com pequenas portas. Penetra-se, por elas, em

compartimentos longos e estreitos que são inteira-

mente fechados por paredes; são os compartimentos

da habitação. À direita e à esquerda, duas construções

laterais avançam até o átrio. Cercada pela parede do

fundo e pelas duas construções laterais, abrigada por

um grande telhado cuja viga central repousa em duas

colunas isoladas, a sala de recepções é inteiramente

aberta em direção do sul, e forma uma espécie de va-

randa elevada, cujo acesso é feito por duas escadarias

em ângulo que saem do átrio. A do leste é reservada

ao dono da casa, que, colocando-se um pouco atrás

nos degraus, recebe em sua moradia voltado para o

sul, como um príncipe. O chefe do menor dos grupos

domésticos tem em sua casa um altar dos Ancestrais

e um deus do Solo. A porta que conduz a seu átrio


de honra não é menos sagrada do que uma porta de

cidade. Ele é, em sua casa, um senhor e um chefe.

Mas, quando é recebido no átrio do chefe de família

ou no do senhor da cidade, ele deve conservar-se em-

baixo dos degraus, voltado para o norte, em postura

de vassalo. Na cidade grande, cada uma das moradias

particulares não é uma construção ligada a um cas-

telo ou uma casa unida a outras casas, mas sim uma

residência senhorial. E todas essas residências são

cidades completas em si mesmas. Contudo, todas

estão englobadas nos muros senhoriais. Do mesmo

modo, seus diversos possuidores são unidos pelo vín-

culo de sua dependência em relação ao senhor co-

mum, dono da cidade e de seus muros. Outrora, de-

pois que o Fundador acabou de construir as muralhas,

depois que distribuiu, à direita e à esquerda, as resi-

dências e levantou para si mesmo a sua grande sala,

ele convocava todos os chefes de família que estives-

sem ligados a ele por juramento e que "congregava

para obter a glória". Ele lhes preparava esteiras e

bancos. Oferecia-lhes, para uma comunhão inicial, um

grande banquete. "Ele tomou um porco para o sacri-

fício - despejou o vinho nas cabaças - ele os fez

comer e ele os fez beber: - Senhor de vassalos, Che-

fe da parentela! ", enquanto que eles todos, diante do

senhor, "conservavam-se corteses e graves"(549). A

vida da corte, a vida nobre estavam inauguradas.

O senhor
Segundo as teorias que os feudalistas,

mais tarde, elaboraram, o senhor é aque-

le que, tendo recebido a investidura do

rei, senhor único de todo o país chinês,

é encarregado de governar um feudo.

Ele o dirige por delegação do Filho do

Céu, fazendo observar os regulamentos por este pro-

mulgados. Em cada feudo, a dignidade senhorial per-

tence à família. Entretanto, com a morte do detentor

do poder, seu sucessor só reveste as insígnias de sua

dignidade depois de ter recebido a investidura do

rei (550). Suserano de todos os senhores da China, o

rei traz, em suas vestimentas, doze insígnias emble-

máticas. As três primeiras (sol, lua, constelação) são-

lhe estritamente reservadas. O direito de usar as

outras (ou antes, um certo número delas) é concedido

aos diferentes senhores investidos. O número de em-

blemas atribuídos a cada um deles varia de acordo

com a qualidade da investidura. Esta determina a po-

sição ocupada na hierarquia feudal. Os senhores for-

mam cinco classes (duques, marqueses, condes, vis-

cóndes, barões) pois a extensão de seus feudos varia

(segundo a teoria) em proporção a seu título. O do-

mínio do Filho do Céu mede mil li, tanto no compri-

mento como na largura. Cem li são a medida de um

domínio de duque ou de marquês, cinqüenta li, o de

um feudo de visconde ou de barão(551). Um domínio

menor é ainda um feudo, mas que não é dirigido dire-

tamente pelo rei (ao menos enquanto rei). Seu titular


é o vassalo do senhor de um domínio particular. Os

senhores e o rei distribuem não somente feudos-do-

mínios hereditários, mas ainda cargos ou feudos-

salários. Os titulares dos feudos-salários, divididos

em cinco classes, trazem o título de grandes oficiais

(t'ai-fou) ou de oficiais (che). Estes títulos tiveram,

inicialmente, como todos os títulos feudais, um sig-

nificado militar: todos implicam a idéia de comando.

Cada um deles acabou por corresponder a um grau

determinado, depois a um grau da hierarquia feudal.

A palavra oficial (che), designando a última ordem da

nobreza, tomou o sentido geral de nobre. A palavra

duque (como a palavra príncipe) é uma denominação

válida para todo senhor, pelo menos no interior de

seu domínio. Cada um é, em sua casa, o senhor. Os

feudalistas, entretanto, atribuem ao rei o direito de

promover ou de degradar os senhores. Segundo seus

méritos (552). Estes méritos são reconhecidos pela boa

administração dos altares do Solo e dos Ancestrais,

pela boa aplicação dos éditos reais relativos aos cos-

tumes, à música e ao vestuário. As nomeações e pro-

moções (pelo rei e pelos príncipes) deviam ser feitas

em Conselho e depois de uma deliberação com a

adesão dos vassalos. As punições (pelo menos as mais

graves: morte ou desterro) deviam ser proclamadas

em praça pública e ter a adesão do povo todo (553). A

teoria constitucional implica a idéia de que ninguém

detém a autoridade senão por uma investidura outor-

gada por um suserano e com o consentimento dos

vassalos e dos súditos. O rei-suserano recebe seu


poder, ao mesmo tempo, do Céu e do povo. Ele tem

a missão de manter uma ordem de civilização cujo

valor é avaliado pelas manifestações da Natureza e

pelos sentimentos dos homens. Ele exerce seu cargo

do alto, delegando aos diversos feudatários uma auto-

ridade de ordem inferior, mas da mesma natureza. Os

senhores, que ligados por sua genealogia à dinastia

reinante ou a uma dinastia mais antiga, só são quali-

ficados a governar seu feudo em virtude da investi-

dura recebida, outrora, por um ancestral e confirmada

em cada sucessão.

Na verdade, se os documentos analisados pare-

cem mostrar que, durante o período Tch'ouen-ts'ieou,

os senhores, ao ascender ao poder, pediam regular-

mente a investidura real, esta quando muito, tinha o

interesse de fixar seu lugar numa hierarquia muito

mais instável e especialmente menos ordenada do

que pretendem as tradições ortodoxas. Contrariamen-

te às afirmações de feudalistas inspirados por uma

concepção administrativa e uma idéia elevada e nova

do poder central, é certo que o fundamento da auto-

ridade senhorial acha-se além da investidura do so-

berano. A palavra (ming), que significa investidura e

mandato, é idêntica à palavra (ming), que tem por sig-

nificado destino e não difere da palavra (ming), que

significa nome(554). O nome exprime o ser e faz o

destino (555), a ponto de tal homem, nascido príncipe,

tomar-se cavalariço se lhe tiverem dado o nome de

"Palafreneiro" e que um outro chamado "Ele terá êxi-


to" não pode deixar de ter êxito. Além disto, uma

criança que, predestinada ao nome de Yu, traz na mão,

em seu nascimento, sinais onde se lê o caráter Yu,

deverá possuir, mesmo a despeito da vontade real, o

feudo de Yu (556). Os nomes de família, em ligação com

a terra, eram recebidos dos ancestrais; os nomes pes-

soais eram dados depois de uma inspeção da voz (a

voz é a alma e o nome), mas também após uma con-

sulta aos antepassados. A autoridade, como o nome,

vem dos ancestrais e todo ato particular de poder

deve ser precedido por uma consulta de sua vontade.

Um senhor não tem o direito de agir senão pelo man-

dato de seus antepassados. Com efeito, seu destino

e o de sua raça dependem estritamente da Virtude dos

fundadores desta última. Ela se confunde com uma

espécie de quinhão, com uma quantidade determinada

de poder, cujo valor é fixado por esta mesma Virtude.

Chouen, soberano perfeito e que viveu cem anos,

transmitiu, a seus descendentes, o poder de fazer sa-

crifícios senhoriais durante cem gerações: um inimi-

go que quis extinguir a raça de Chouen antes que fos-

se consumido seu quinhão de gerações de príncipes,

não pôde, de modo algum, ser bem sucedido (557). Ne-

nhuma força humana tem o poder de reduzir a duração

de um destino familiar. Enquanto a família conservar

uma provisão de virtude, ela não pode ser tirada da

região onde esta virtude está enraizada. O destino de

uma raça é, na verdade, ligado a uma terra determi-

nada, a uma capital, a um Lugar-Santo. Ele correspon-

de à posse de genelogias, de lendas, de danças, de


privilégios culturais, de talismãs e de jóias. Corres-

ponde, em resumo, a um lote de emblemas e de po-

deres significativos de um certo gênio específico -

enquanto que as insígnias conferidas pela investidura

de um suserano assinalam, simplesmente, uma digni-

dade e uma posição.

O suserano, quando dá a investidura (ming),

confirma um decreto (ming) do Céu: este, inicialmen-

te, "abriu o caminho". Traduz-se por caminho a pala-

vra tao. Esta palavra é uma das mais ricas da antiga

linguagem chinesa. Na língua particular dos velhos

filósofos taoístas, indica um certo poder de realização,

o qual, seja por ser confundido com o princípio eficaz

de todas as coisas (freqüentemente chamado: o tao),

seja porque anima uma individualidade distinta, não

deixa nunca de ser inteiro e idêntico a si mesmo (558).

Na linguagem comum, a palavra tao não tinha menos

força. Emprega-se, na maioria das vezes, em combina-

ção com a palavra tô. Tô e tao correspondem a noções

gêmeas que, no entanto, se opõem. Elas marcam os

dois aspectos de um poder eficaz, tao assinalando a

eficácia pura, concentrada, por assim dizer, e indeter-

minada, enquanto que tô evoca a mesma eficácia

quando ela é usada e se particulariza. A palavra tô

consigna, por exemplo, a espécie de gênio que se ad-

quire (ao mesmo tempo do que um nome), vivendo

numa região determinada: este gênio, precisamente,

habilita a govemar como senhor (559). Empregadas inde-

pendentemente ou combinadas, tao e tô exprimem as


idéias conjuntas de autoridade e de poder, de eficácia,

de força, de fortuna. A expressão tao-tô pode ser tra-

duzida pela palavra Virtude. A Virtude, o tao-tô conce-

bido como uma força de animação'de essência uni-

versal, mesmo quando reside num indivíduo, é a ca-

racterística do chefe a quem o Céu abre o caminho

(tao) e que ele investe (ming) de um gênio determi-

nado (tô), proporcionando-lhe o destino (ming) próprio

a um senhor. O senhor é, se posso dizer assim, o

animador único e universalmente poderoso da região

sobre a qual é destinado a reinar por seu gênio espe-

cífico. Ele governa a natureza e os homens, ou antes,

ele faz com que os homens e a natureza sejam como

são. Ele dá seu destino às pessoas e às coisas. Ele

lhes dá uma certa força de ser que é proporcional a

sua própria força. A fórmula deve ser entendida lite-

ralmente: tal senhor, tais súditos; tal príncipe, tal re-

gião. Os juncos, os crisântemos crescem espessos,

vigorosos quando o gênio do príncipe está em plena

força. Ele declina, extenuado? As pessoas da região

morrem prematuramente. O painço tem tudo de que

precisa para prosperar, os vassalos, homens e mulhe-

res, crescem, multiplicam, a tanchagem dá milhares

de sementes ou então as colheitas morrem no solo

esgotado, os homens recusam-se a casar, as terras

desmoronam, as fontes se detêm, as estrelas caem -

conforme a Virtude da raça senhorial é decadente ou

nova, poderosa ou nula (560). O tao-tô do chefe é o prin-

cípio de todo êxito. É a fortuna do feudo. A sorte das

coisas, os costumes humanos dependem dele, apenas


dele. Os teóricos ortodoxos (que são moralistas e que

só pensam nos homens) acreditam explicar esta ação

dominadora do príncipe pela imitação: o príncipe é

um modelo para toda a região, ele age, ensinando. De

fato, a eficácia do gênio do príncipe é de natureza reli-

giosa e mágica. Este gênio governa e regula todas as

coisas por uma ação imediata, uma ação de espírito

para espírito. Ele age por contágio. "O pensamento do

príncipe estende-se sem limites: - ele pensa nos

cavalos e estes ficam fortes!... - O pensamento do

príncipe é incansável: - ele pensa nos cavalos e

estes se arremessam impetuosamente! - O pensa-

mento do príncipe é inteiramente correto: - ele pen-

sa nos cavalos e estes seguem em frente (561)!" O

senhor tira seu poder de uma força mística nele con-

centrada, mas que anima, difusa, toda a sua região.

O gênio da região está inteiramente no senhor.

Este último, na verdade, sustenta sua autoridade e a

constrói misticamente, participando da vida de seu

domínio, da maneira mais íntima. Ele é, em seu feudo,

aquele que se beneficia de tudo e que tudo expia.

Gasta toda sua vida relacionando-se com o agrupa-

mento que pretende governar e que é um agrupa-

mento humano e natural. Devota-se à região, expiando

em todas as ocasiões. Ele expia as desonras, os êxi-

tos, os lutos, os desastres, as vitórias, os favores, os

rigores do tempo, a boa colheita ou o ano mau, os

menores infortúnios, as menores felicidades das coi-

sas e das pessoas. Neutraliza a parte perigosa de

todo acontecimento, libertando a parte feliz. Ele se


encarrega dos infortúnios de qualquer um e incor-

pora em si mesmo a fortuna por todos desejada. Incor-

re em todos os perigos. Assimila uma sorte total. Em

cada primavera, é o primeiro a abrir a terra; em cada

colheita experimenta os primeiros frutos. A degus-

tação senhorial, a lavragem do príncipe tiram, em pro-

veito de todos, o caráter sagrado da terra que voltou

a ser virgem, as primícias ainda proibidas, mas todo

o êxito das lavras retoma ao senhor, mas toda a subs-

tância das coisas está nos primeiros frutos que o se-

nhor consome. A cada vassalo que morre, quando "o

cadáver não é senão um objeto de horror" para todos,

o príncipe abraça o defunto em primeiro lugar, peito

a peito, mas, no fim do luto inaugurado por este teste-

munho de devotamento, se a família do morto ganhou

um ancestral, este foi aumentar a corte dos ances-

trais do príncipe, aumentando seu prestígio e o do seu

senhor. Os guerreiros fugiram; o exército está des-

feito: o chefe mortifica seu corpo, consterna seu co-

ração e come fel. Quando ele se alimenta de fel, a

coragem renasce em todos os soldados e o domínio

senhorial acaba por aumentar(562). O inimigo vencido

se humilha: deve-se temer a volta da fortuna. O êxito

será fugaz se, por outro lado, o vencedor não souber

se humilhar. O exército não fez menos, ganhando a

batalha, do que o príncipe, quando "ele se aflige, sus-

pira" e assegura a vitória de sua região, confessando

sua própria indignidade (563). Se, nos tempos de seca,

ele confessa seus erros, acusa-se de sua falta de

virtude, se chama para si mesmo a punição celeste,


depois que a provação é superada, depois que o Céu

se arrependeu pelo arrependimento do príncipe, o se-

nhor terá o direito de se considerar o único autor da

ordem natural. Quando, vestindo-se de luto, privando-

se de música, abstendo-se de comer, lamentando-se

três dias, ele expia o desmoronamento de uma colina,

o crime cometido por um parricida, a perda de um

território, o desastre de um incêndio, quando reivin-

dica só para si a mácula determinada por um crime

ou revelada por uma infelicidade e quando, enfim, ele

os apaga com privações e com lustrações, sua peni-

tência, que purifica, ao mesmo tempo, sua região e

seus súditos, reveste-o de uma pureza renovada, res-

plandecente e augusta(564). Sua santidade afirma-se

quando ele purga os maus e suspende as proibições.

Ele se consome em proveito de todos, mas o sacrifício

cotidiano que faz de si mesmo mantém a força santa

que recebeu de seus antepassados. Sua autoridade,

como a dele, tem por fundamento e por princípio a

expiação e o devotamento. Ela pretende mesmo en-

contrar sua origem histórica numa expiação ilustre:

a fundação do poder de um príncipe acompanha-se de

um sacrifício heróico e total, aquele do Grande Ances-

tral que, devotando-se de corpo e alma, aliou sua raça

a um Lugar-Santo.

Mas o senhor não se liga a sua região unica-

mente por uma vida de sacrifícios. Ele consegue en-

feudá-la graças a um sistema de sagrações positivas.

Ele atraiu as forças benfazejas. Ele as assimila, crian-


do-se assim a alma de um príncipe. Sua capital é um

centro que poderia ser o centro do mundo - o ideal

seria que ao meio-dia da metade do verão o gnômon

não fizesse sombra - mas que deve ser, pelo menos,

o centro dos climas. "Ali, o Céu e a Terra se unem;

ali, as quatro estações se juntam; ali, o vento e a

chuva se reúnem; ali o Yin e o Yang estão em har-

monia (565)." O senhor vive no centro da região, num

lugar de convergência e de união. Quando ele recebe,

voltado para o sul, o princípio luminoso (Yang) adorna-

do com todo seu esplendor. Ele pode também captar a

energia do Yang se tiver uma torre alta e nela subir.

Morando num quarto vasto e profundo, ele assimilará

a energia do Yin. Mas não é necessário um palácio

esplêndido: apenas expondo seu corpo, sucessiva-

mente, ao sol (yang) e ao orvalho (yin), o senhor pode

nutrir sua substância com as forças constitutivas do

universo. Assim que ele se nutre, sua região, por seu

intermédio, fica alimentada. Sua beneficência esten-

de-se sobre todas as coisas. Ela lubrifica tudo como

o orvalho quando se deposita nas plantas dos campos.

Mas, por ela também, tudo se aquece, pois ela age

ainda como uma irradiação doce, pela qual o excesso

de orvalho se dissipa (566). O príncipe, no começo da

primavera, tem o cuidado de suspender, quebrando e

recolhendo o gelo, "as barreiras opostas pelo frio in-

tenso" ao reinado dos princípios reanimadores. Ele

guarda o gelo numa geleira profunda, aberta com pre-

cauções infinitas. Ele impede assim que o frio se

evada durante o verão. Ele impede de ir chocar-se,


provocando o granizo que devasta, com as forças ad-

versas, pois é tempo de dominá-las. Mas, na mesma

ocasião, ele conserva o princípio do frio pois é pre-

ciso, um dia, que seu reinado retome. E ele pode ainda,

consumindo e distribuindo o gelo, moderar, para si e

pàra os seus, os excessos do calor. Ele obtém, então,

para sua região, para seus homens e, em primeiro

lugar, para si mesmo, uma dose equilibrada das forças

que mantêm a vida do mundo. Não pode mais haver,

desde então, "nem calor intempestivo no inverno,

nem frio destruidor no verão, nem vento glacial na

primavera, nem chuva desastrosa no outono...e nin-

guém morre prematuramente" (567). O senhor deve, em

primeiro lugar, zelar por sua saúde. Sua saúde é a da

região. Nada tem maior importância do que a maneira

pela qual se alimenta. "Que só o príncipe tenha a ali-

mentação preciosa(568)!" Um príncipe nutre-se de

essência. Suas refeições são preparadas de maneira

a incorporar nele, com coisas tomadas nas épocas

prescritas, o conjunto de qualidades específicas que

convenham a uma estação e que, também, signifiquem

um oriente. Ele adquire assim uma alma de Chefe:

uma virtude eficaz em todos os tempos e em todas as

direções. Ele faz aumentar os rebanhos do domínio,

faz prosperar os frutos da terra, quando tem o cuida-

do de comer, na primavera, carneiro (animal do leste)

e trigo; no verão, feijão e frango (sul)[ no outono, ca-

chorro (oeste) e sementes oleaginosas; no invemo,

painço e porco (norte) (569). Mas se é um chefe imper-

feito, se esquece a medida (tsie), se despreza a har-


monia (ho), se não sabe combinar em si mesmo "o

acre, o ácido, o salgado, o doce", se, sobretudo, com-

promete, aproximando inconsideradamente das mu-

lheres (que são yin) o vigor masculino (yang) que está

nele, tomar-se-á a vítima do kou - que é o preço de

todo excesso, o efeito nocivo das sagrações abusivas,

a infelicidade e a doença (mais poderosos sobre uma

alma maior), o malefício em sua força plena(570). E,

se é um senhor criminoso e indigno, não será nem ca-

paz de suportar as sagrações obrigatórias que confe-

rem vigor e virtude mas que, para ele, se transforma-

rão em veneno mortal. O príncipe King de Tsin que

quis, excedendo seu poder, suprimir totalmente uma

das famílias de seu domínio, ouviu dizer, por um adi-

vinho, que ele não poderia comer trigo novo. Quando

chegou a estação e ele o comeu, "seu ventre, ime-

diatamente, inchou; ele foi à privada, caiu e morreu".

Pelo contrário, um príncipe sábio "põe em paz seu

coração", consumindo o caldo em que se misturam

"a água, o fogo. o vinagre, a carne picada, o sal, as

ameixas, o peixe cru. O cozinheiro coloca (tudo isto)

em harmonia, determinando as proporções segundo os

sabores", acrescentando o que falta a certos alimen-

tos, moderando o que os outros têm demais. Graças

a estas precauções, o senhor evita os males que o

tomariam incapaz de "velar na guarda dos altares do

Solo e das Colheitas" (571).

O altar do Solo, simples quadrado de terra en-

globado na residência do príncipe, contém em si toda


a virtude (tao) da terra senhorial (572). Ele é idêntico à

pátria. A pátria não é mais nada quando se transforma

este altar em pocilga. Para sua defesa, todos os vas-

salos devem saber morrer e, em primeiro lugar, o

príncipe. Mas os vassalos só têm o dever de se fazer

matar pelo príncipe quando este, vivendo como um

verdadeiro senhor, identificou sua alma com a da pá-

tria. O altar do Solo é acompanhado por um altar das

Colheitas (573). Chefe de guerreiros e mestre dos la-

vradores, o senhor assegura a perenidade da pátria e

a subsistência dos habitantes já que, com todas as

forças de uma alma grande, completa, equilibrada, ele

faz a região obter uma feliz sucessão de colheitas. O

tempo fará seu trabalho em ordem, a terra dará frutos

em abundância, se o senhor, no centro da cidade,

souber participar do ritmo das estações e da produ-

ção agrícola. É por isto que um deus das Colheitas

urbano, e que pertence ao senhor, é suficiente para

fazer frutificar os campos (574).

O senhor, por seus trabalhos sagrados, enri-

quece seu domínio. Todo o domínio, por outro lado,

contribui para enriquecer a alma do senhor. Ele tira

dos campos e de seus produtos uma farta provisão de

virtudes. Tira outras, não menos abundantes, dos ter-

renos de caça, dos lugares de pesca, das fronteiras

longínquas, onde possui reservas de caça e parques

de criação de animais. Ele é um "comedor de carnes".

Enquanto que a alma dos camponeses, parcamente

nutrida por frutos e grãos, não tem a força de atraves-


sar a morte, voltando à matéria, confundida desde que

foi exalado o último suspiro, com a força do solo e

da germinação, a alma do senhor, "revigorada pelo

uso de um grande número de essências dos seres",

pode adquirir "uma robustez essencial" que lhe per-

mite franquear a morte e subsistir no estado de "ser

espiritual (chen ming)"(575). Um homem ou uma mu-

lher vulgares perdem toda existência individual quando

morrem no fim da vida. A morte, se ela sobrevém

quando ainda lhes resta uma provisão de exalação,

libera, juntamente com esta que se dissipa em pouco

tempo, uma alma cuja força insignificante pode, quan-

do muito, se dedicar a alguns caprichos prejudiciais.

Isto não ocorre com a alma senhorial. A bem dizer,

somente os senhores têm uma alma no verdadeiro

sentido da palavra. Esta alma nunca se gasta com a

velhice. Ela a enriquece. O senhor prepara-se para a

morte saciando-se com alimentos delicados e bebidas

que vivificam. Ele come "a rica fritura" e bebe o vinho

misturado com pimenta, que "sustem as forças dos

velhos de longas sobrancelhas". Durante sua vida, ele

assimilou muitas essências. Ele as assimilou na pro-

Porção da amplitude e da riqueza de seu domínio. Ele

aumentou a substância que seus antepassados lhe

legaram, já rica, pois eles mesmos eram senhores

alimentados com carnes e caças. Sua alma, quando

morre, longe de se dissipar, como uma alma vulgar,

evade-se do cadáver, cheia de força. Em lugar de se

dissolver, misturada com as forças indistintas do solo

criador, ela pode tomar posse do corpo destes ani-


mais que constituem uma caça nobre: urso ou java-

li (576). Ela se mostrará feroz se o senhor foi um ser

sem moderação e teve uma morte prematura, que

nesse caso mereceu. Mas se o chefe conduziu a vida

senhorial segundo as regras, se ele morre, no fim

de um longo destino, em sua região, em sua cidade,

em seu palácio, em seu quarto, segundo os ritos, sua

alma, que as expiações do luto enobrecem ainda e

purificam, possui, depois da morte, uma força augus-

ta e serena. Ela possui o vigor benéfico de um gênio

tutelar, sempre conservando uma personalidade du-

rável e santa. Ela é uma alma de ancestral.

Um culto ser-lhe-á prestado num templo colo-

cado perto dos altares do Solo e das Colheitas. Ceri-

mônias das estações farão com que ela participe da

vida da natureza, da vida da região. Ela é festejada na

primavera, quando o orvalho umedece a terra; no outo-

no, quando se forma a geada (577). Ela come quando a

caça é boa. Jejua quando a colheita falha. A alma an-

cestral subsiste e dura, nutrida pelos grãos recolhidos

no campo sagrado das colheitas senhoriais, pelas car-

nes provenientes dos parques que pertencem ao do-

minio e preparadas na cozinha do príncipe, pela caça

abatida nas fronteiras e dedicada, pelos caçadores, ao

altar do Solo. Mas, por mais rica de personalidade que

possa ser uma alma de chefe, chega um momento em

que esta personalidade se dissipa e se extingue. De-

pois de algumas gerações, a tabuleta à qual os ritos

apropriados prenderam esta alma, cessa de ter direito


a um santuário seu. Como as tabuletas dos antepas-

sados mais antigos, cuja memória já se apagou, ela

é relegada a um cofre de pedra que é guardado numa

sala consagrada ao antepassado mais velho. O ances-

tral que representava e cujo nome trazia, deixa de

ser alimentado como um senhor, como um gênio tu-

telar provido de uma individualidade forte e distinta.

Sua carreira está finda, seu papel de ancestral aca-

bado. O culto que lhe dedicaram fez com que ele esca-

passe, durante longos anos, do destino dos mortos

plebeus. Ele entra, enfim, na multidão das forças im-

pessoais e confusas que constituem a fortuna indi-

visa do feudo e da raça do príncipe. Como os poderes

anônimos do solo, ele só é nutrido por carnes cruas.

Ele voltou à massa das coisas santas que formam a

alma global da região, mas que o senhor representa

sob o aspecto de um Primeiro Ancestral e com os

traços míticos de um Herói Fundador. A este atribui

todos os méritos de um criador e de um demiurgo.

Que ele tenha preparado a terra, vencido as águas,

subjugado o fogo, expulsado os monstros, arroteado

a gleba, criado os cereais, domesticado os cavalos, o

Grande Antepassado demonstrou uma virtude (tô),

que sua raça herdou e que lhe valeu seus emblemas,

seu feudo, seu nome, seu destino - a história oficial

apresenta, por outro lado, este ancestral como um

vassalo merecedor que recebeu uma investidura de

um soberano.

Herdeiro de um antepassado heróico cuja gló-


ria, cantada nos hinos sagrados da família, chega até

ele, senhor dos altares do Solo (inúmeros fundadores

são qualificados de deuses do Solo ou de deuses das

Colheitas), possuidor de um templo onde cerimônias

das estações fazem reviver a personalidade vigorosa

de seus ancestrais imediatos, o senhor é investido

de uma santidade que impõe, a seus seguidores, como

a si próprio, uma etiqueta terrível.

A força augusta que anima o chefe é uma força

mística cuja tensão é extrema e que é singularmente

contagiosa. Ela age, habitualmente, por simples irra-

diação, mas é preciso, para isso, que ela se conserve

concentrada e pura. Ela deve, em ocasiões excepcio-

nais, ser empregada com pleno vigor e, por esta razão,

é conveniente que, no correr dos dias, ela não se des-

perdice. O senhor vive no meio de sua corte, isolado

e passivo. Os vassalos "formam uma barreira". Eles

protegem seu senhor de toda aproximação contami-

nante. Agem por conta do chefe, realçando um pres-

tígio que se conserva intacto. A corte trabalha para

proteger o senhor numa espécie de quarentena esplên-

dida, de onde irradia a glória.

O senhor é, em sentido estrito, o homem a

quem ninguém fala, nem mesmo na terceira pessoa.

Não se fala senão a "seus servidores", se bem que a

expressão "(aqueles que estão) embaixo dos degraus

do trono, e a quem ouso unicamente me dirigir)"

acabou, na China imperial, por significar "Vossa Ma-


jestade"(578). Não se fala com o senhor, fala-se em

sua presença e quando se lhe dá conselhos indireta- .

mente, é preciso dar-lhes "de uma maneira disfarça-

da" (579). O sopro de uma voz vil não deve nunca man-

char a pureza do príncipe; a santidade do chefe não

deve sofrer a injúria de uma reprimenda ou de um

conselho direto, embora sejam justos: pois vêm de

baixo. "Olhar fixando acima da cabeça é ser arrogan-

te; olhar abaixo da cintura é manifestar tristeza; olhar

de lado é mostrar maus sentimentos." Os olhos do vas-

salo não podem se fixar no príncipe " mais alto do que

embaixo do queixo", mas é preciso que sejam dirigi-

dos diretamente para ele (580). Cada um deve se deixar

penetrar diretamente pela virtude que ilumina os olhos

do chefe. Ninguém ousaria suportar seu esplendor.

Ninguém ousaria confundir seu olhar com este olhar

sagrado. A discrição mais correta é imposta aos ser-

vidores de um príncipe. Um oficial, diante de seu se-

nhor, deve "manter o corpo inclinado, as extremidades

da cintura voltadas para a terra, os pés parecendo

pisar as extremidades do vestuário. O queixo deve

ficar esticado como as gárgulas de um telhado, as

mãos devem ser mantidas juntas, tão baixo quanto

possível". O escriba que, em presença do príncipe

ousasse "sacudir a poeira de seus livros" ou simples-

mente "colocá-los em ordem", o adivinho que "segu-

rasse em sentido inverso os bastonetes de aquiléia"

ou que "deitasse de lado a concha da tartaruga", me-

reciam ser punidos(581). Onde o príncipe for viver,

tudo deve ser ordem e limpeza. Seus vassalos mais


íntimos (os grandes oficiais) não deixam nunca de

lavar as mãos cinco vezes ao dia. Antes de se apre-

sentarem a seu senhor, "eles se purificam com uma

abstinência severa; eles não entram nos apartamentos

das mulheres; eles lavam os cabelos e o corpo" (582).

Aquele que oferece ao senhor iguarias já preparadas,

toma cuidado de se munir "de plantas de sabor acre,

de uma vara de pescador, de um balaio de junco" (583):

as influências más que, em sua indignidade, ele não

pode deixar de trazer consigo, poderão assim ser des-

ligadas do alimento destinado a entrar na substância

santa do chefe.

Abrigado, por uma corte onde reina uma eti-

queta meticulosa, de todas as contaminações que po-

deriam vir a macular sua santidade, o príncipe subme-

te-se a uma etiqueta ainda mais minuciosa. Toda sua

corte o cerca e cada um dos seguidores deve, à menor

falha, chamá-lo à ordem. Os analistas acompanham-no

para anotar seus menores gestos, suas menores pa-

lavras. Ele vive sob a ameaça da História. Vindo de

um senhor, a mais fútil das ações é cheia de conse-

qüências incalculáveis. Um chefe não pode brincar

nem gracejar: o que ele faz está feito, o que ele diz

está dito (584). Ele deve ouvir unicamente a música re-

gular; deve-se manter rigorosamente reto; ele só pode

se sentar corretamente sobre uma esteira correta-

mente disposta; só deve comer refeições preparadas

segundo as regras; só pode andar com um passo me-

dido exatamente. A circunspeção é seu primeiro de-


ver. Enquanto um simples nobre dá passos de dois

pés e um grande oficial, passos de um pé, o compri-

mento dos passos de um senhor não deve exceder

meio pé(585). Enquanto que, em sua presença, os se-

guidores, animados pela grandeza do serviço do prín-

cipe, esforçam-se, apressam-se, parecem voar, "an-

dam com os cotovelos estendidos como asas de um

pássaro", o senhor, que seu prestígio condena a uma

inerte gravidade, deve permanecer imóvel, inativo e

quase mudo (586).

O chefe limita-se, em Conselho, a dizer "sim",

mas este "sim" do príncipe é um decreto que empe-

nha o destino, e se o príncipe, quando fala, só pode se

exprimir com a ajuda de fórmulas consagradas, a His-

tória mostra que a sorte dos Estados foi mudada por-

que em tal data, tal chefe escolheu, para se designar,

àquele dos pronomes pessoais permitidos a um se-

nhor que, na ocorrência, era conveniente ou não o

era(587). Song mereceu tomar-se próspera porque,

numa época de inundação, seu príncipe, respondendo

as condolências, teve a feliz idéia de empregar, para

se denominar, a expressão "pequeno órfão", antes da

fórmula "homem de pouca virtude"; mas (fato signi-

ficativo) não foi o príncipe por si mesmo que fez esta

escolha: ele obedeceu a um conselheiro.

A virtude prestigiosa e fugaz do chefe só per-

manece nele se a vida da corte e a etiqueta conser-

varem-na. Aprisionado pela corte, atado pela etiqueta,

o senhor só reina com a condição de ficar passivo, de


nunca comandar os detalhes, de nunca dirigir uma ad-

ministração. Ele só age pela eficácia de seu prestígio.

A atividade real é feita pelos vassalos. O poder do

príncipe é fundado na posse de uma Virtude de essên-

cia religiosa e mágica. É menos um poder de comando

do que um poder de animação. O senhor é o chefe de

uma hierarquia e não um chefe de Estado.

A vida pública

O Senhor preside à corte dos vassa-

los e os envia ao combate. As duas

grandes obrigações de um vassalo

são o conselho e o serviço. A mo-

ral nobre tomou, por efeito da vida

da corte, um caráter aprimorado.

Ela se formou na vida dos acampamentos. A ordem

militar acha-se na base da ordem civil.

l - Os nobres no exército

A predominância da ordem militar manifesta-se

por uma regra significativa. O recenseamento que de-

termina, detalhadamente, as posições e os tributos

das terras e dos homens é uma necessidade militar.

Precisamente por isto ela parece uma obra temível e

quase sinistra. Compromete os destinos do país. So-

montes e as colinas, as terras baixas ou salgadas, as

fronteiras inundadas, os escoadouros de água. Ele divi-


de os terrenos planos compreendidos entre os diques,

posse. A responsabilidade de um ato tão temerário

deve normalmente ser entregue a um homem que de-

votou sua vida à guerra. O Ministro da Guerra ("isto

convém")(588) é encarregado de regular as contribui-

ções, de contar as couraças e as armas. Com este

fim, ele registra o número dos terrenos aráveis, as

florestas de montanha, os pântanos e os lagos, os

montes e as colinas, as terras baixas ou salgadas, as

fronteiras inundadas, os escoadouros de água. Ele divi-

de os terrenos planos compreendidos entre os diques,

faz a partilha dos pastos e das terras cultiváveis. Ele

determina, então, as contribuições a serem forneci-

das. Fixa o número de carros e de cavalos, assim como

o de guerreiros transportados por carros, dos solda.

dos de infantaria que os escoltam, das couraças e dos

escudos. As operações do cadastro e do recensea-

mento confundem-se. O dever militar estende-se sobre

as terras como sobre os homens. Recai sobre os ho-

mens na proporção de suas terras e em razão da na-

tureza e do valor destas. Os lavradores só fornecem

peões ao exército. Os vassalos, detentores de um do-

mínio compreendendo caças e pastagens, devem equi-

par um número regular de carros de guerras. Este

número dá a medida de seu feudo e de sua dignidade.

Fazer o recenseamento do povo é entregar o

país à guerra. Este ato de bravata que pretende forçar

o destino deve ser contrabalançado por um gesto de

moderação. O censo acompanha-se de medidas libe-

rais e expiatórias. A mais característica é uma anistia.


"Depois de ter feito o grande recenseamento, libera-

ram-se os devedores, fizeram-se generosidades aos

viúvos e aos indigentes, anistiaram-se os culpados:

nada mais falta ao exército (589)". O exército compõe-

se, por um lado, de pessoas a quem se perdoa uma

pena com a condição de que se dediquem às obras

mortíferas, e, por outro lado, de vassalos que são

guerreiros natos e ligados ao chefe por uma fideli-

dade total. Quando se reúne o exército, abrem-se os

arsenais e distribuem-se as armas. Estas, em teoria,

pertencem ao senhor que as conserva, cuidadosamen-

te guardadas, não por uma simples precaução: as ar-

mas exalam uma virtude nociva (590). Ninguém se mune

sem se preparar antes, para este contato perigoso;

com um período de abstinência (591). O jejum realiza-se

no Templo ancestral e provoca tal emoção que se acre,

dita entrar em comunicação com os antepassados. Os

pressentimentos da vigília das armas parecem com-

prometer a sorte da campanha. Aquele que sente en-

tão seu coração agitado sabe estar destinado à morte.

Uma unção sangrenta reveste as armas com uma nova.

força. O chefe faz um sacrifício. O exército equipado

reúne-se na colina do Solo. Ele propicia os deuses dos

caminhos e parte.

Os peões vão pouco armados. Eles trabalham

nos aterros e como servos. "Vão sem esperança de

voltar", marchando e acampando, cheios de terror,

na beira dos bosques. Todo seu tempo é gasto no cui-

dado dos cavalos que alimentam, assim como a si


próprios, com serralha. Eles param, enlouquecidos,

regozijando-se de não estarem ainda mortos, fatiga-

dos sob o peso das bagagens, empurrando-se, gemen-

do com uma voz sem alma, amordaçados assim que

formam as fileiras(592). Os nobres partem em seus

carros de guerra, tranqüilos, tocando alaúde. Seus car-

ros curtos e estreitos, são formados por uma caixa

aberta na parte de trás e assentada sobre duas ro-

das (593). Na frente há um timão recurvado, ao qual são

atados dois cavalos separados, de um lado e do outro,

por duas correias costais. Os quatro cavalos do carro

são munidos de freios, nos quais são fixadas duas si-

netas. A estes freios ligam-se as rédeas: as rédeas

internas dos cavalos laterais são presas por trás, em

duas argolas colocadas à direita e à esquerda da tábua

que forma a parte dianteira do carro; um condutor

segura na mão as outras seis rédeas. Este se coloca

no centro do carro (594). Ao seu lado, fazendo contra-

peso, estão, à esquerda (lugar de honra), um arqueiro,

e à direita, um lanceiro. Os cavalos usam couraças

muitas vezes revestidas de peles de animais ferozes.

Os três homens da equipagem vestem uma roupa de

couro feita de uma ou de várias peles de boi (ou de

rinoceronte?). As couraças são envernizadas. Na fren-

te do carro, protegendo cada um dos guerreiros, são

colocados três escudos de madeira leve. O arqueiro

dispõe de dois arcos conservados no mesmo carcaz,

afrouxados e ligados (para que não se deformem) a

uma armação de bambu. Ao alcance do lanceiro estão

colocadas várias armas com longos cabos, termina-


das por ganchos ou por tridentes de metal. Elas ser-

vem para transpassar e, sobretudo, para enganchar e

desmontar os guerreiros dos carros inimigos, que são

mortos no chão ou então aprisionados. A caminho, os

soldados repousam, sentando-se numa esteira dupla

ou sobre uma pele de tigre colocada na caixa dos

carros. Nestes, tremulam estandartes. As couraças

dos guerreiros são recobertas de cordões ou de se-

da (595). Seu verniz brilha. Os arqueiros têm dedeiras

de marfim. As extremidade dos arcos também é de

marfim. Arcos, carcazes, braçais, joelheiras são pin-

tadas de cores vivas. Os escudos são decorados com

pinturas. No peitoral dos cavalos pendem enfeites cin-

zelados. Os carros avançam com majestade, conduzi-

dos por cocheiros hábeis, segurando suas rédeas bem

juntas, esforçando-se para fazer avançar de frente

seus quatros animais, cujos ornamentos e sinetas de-

vem soar ao mesmo tempo. O exército prossegue seu

caminho, sempre orientado, numa ordem imutável e

dominadora, como se, progredindo, olhasse para o

sul, como faz um chefe. Na frente é levada a bandeira

do Pássaro vermelho (sul); atrás, a do Guerreiro som.

brio (tartaruga e serpente - norte); na ala direita

(oeste), a do Tigre branco; na ala esquerda (leste),

a do Dragão azulado(596). A direita dos carros, os

peões são encarregados de tomar conta dos timões;

os que marcham à esquerda arrancam as ervas ao

longo do caminho (597). As ordens são dadas por meio

das bandeiras. Abrindo a marcha do exército, deve

haver um sinal de grama (a grama serve de liteira


para as vítimas) - como deve haver diante de um cor-

tejo fúnebre ou para preceder um chefe que se de-

vota à morte.

O exército acampa, como marcha, orientado. O

acampamento é uma cidade quadrada, onde se esca-

vam poços, onde se elevam casas, que têm suas por-

tas cardeais e que guarda, em suas muralhas, as tabu-

letas dos Ancestrais e dos gênios do Solo. No centro,

está a legião formada pelos parentes do príncipe: ela

é enquadrada pelas legiões da esquerda e da direi-

ta(598). Os acampamentos temporários são cercados

por simples sebes, mas quando um exército quer dei-

xar um monumento de sua glória e tomar posse da

região, edifica um acampamento cercado, uma praça

forte (599). Se diversos exércitos acampam juntos, cada

um toma cuidado de se colocar no oriente que con-

vém à sua região natal (600). Tudo se passa, quando o

exército acampa, como se a cidade senhorial tivesse,

toda ela, se deslocado com todas as forças santas da

região natal. Diante dele, levanta-se a cidade inimiga,

o acampamento adversário.

Em cada acampamento, começa uma espécie de

recolhimento para preparar a batalha. Procura-se for-

çar a paciência do inimigo, reconhecer se ele está dis-

posto a fazer um grande esforço, adivinhar se trouxe

grandes provisões de grãos e de legumes secos en-

sacados, ver, enfim, se está disposto a alcançar uma

vitória ou, simplesmente, fazer uma exibição de sua


força. Por vezes, os exércitos preparam-se para a ba-

talha sem que nem um nem outro avance para o com-

bate. Cada um espera o dia favorável que seus adivi-

nhos devem indicar. Trocam mensagens para fixar a

hora do encontro. A voz mais ou menos firme do envia-

do informa sobre o espírito de decisão do adversá-

rio (601). Em cada acampamento, que o outro observa,

as assembléias guerreiras sucedem-se: paradas reli-

giosas e militares onde se exalta a esperança de

vencer (602).

"No exército de Tsin (que olham de seu acam-

pamento, do alto de uma torre, o príncipe de Tch'ou

e um de seus oficiais) os homens correm à direita

e à esquerda. Que fazem? - Eles convocam os ofi-

ciais. - Eles se reúnem no meio do acampamento

(em redor do chefe). - Eles vão deliberar. - Armam

uma tenda. - Eles vão consultar a tartaruga diante das

tabuletas dos príncipes defuntos de Tsin. - Tiram a

tenda. - O príncipe de Tsin vai dar suas ordens. -

Ouvem-se grandes gritos...Levanta-se uma nuvem de

poeira... - Tapam-se os poços... Destroem-se as

casas... Formam-se fileiras. - Depois que sobem em

seus carros, os arqueiros à esquerda, os lanceiros à

direita, todos pegam suas armas e descem. - Vão

escutar o discurso (de seu chefe). - Vão combater?

Não se pode saber... Eles voltam para seus carros,

à direita e à esquerda e depois tornam ainda a descer.

- Eles vão rezar pelo êxito do combate."

Esta prece (tao) acompanha um gesto e um


juramento trágicos, pelos quais o chefe consagra, de-

finitivamente, o exército à batalha. Ele oferece aos

ancestrais pedras de valor: tal é o penhor imposto

àquele que, pedindo uma proteção, deve, em contra-

partida, ofertar os mais preciosos de seus bens e pôr

em jogo seu corpo e sua vida. O chefe começa por

justificar sua expedição. Ela só tem por fim punir os

perturbadores e os culpados. "Preparado para o com-

bate, eu empunho a lança! Ouso vos advertir! (Que)

nossos nervos não sejam destruído! (Que) nossos os.

sos não sejam despedaçados! (Que) nossas faces

escapem dos ferimentos! (É) para cumprir uma grande

obra! É para não vos desonrar, a vós, nossos adver-

sários! Uma longa vida (ming: destino), não é isto que

vos peço! Os jades de meu cinto, eu não ouso

manter!"

Depois que ouviram o chefe e prestaram seu

juramento, os guerreiros encontram-se, enfim, votados

a uma morte terrível, os mais corajosos disputando a

primeira glória. Eles vão desafiar o inimigo, que já

consideram um culpado, o inimigo cuja derrota deve

comprovar seus erros. A batalha serve para sondar

o Destino. Os primeiros embates são presságios efi-

cazes. Desde o começo, procura-se dominar, pois a

sorte já está lançada. Sabe-se, de início, qual será o

resultado da batalha e se esta será uma justa cortês

destinada a classificar os prestígios ou então um ordá-

lio de morte, terminando com um triunfo absoluto,

com uma derrota sem apelação.


Se o adversário for considerado, não um rival,

mas sim um verdadeiro inimigo, se se quiser declará-

lo fora da lei chinesa e puni-lo como a um Bárbaro,

se se pretender suprimir uma dinastia proscrita e no-

civa, um domínio decadente ou selvagem, envia-se,

para travar o combate, homens corajosos destinados

à morte (603) - tal é o papel reservado aos anistiados,

conduzidos, em teoria, pelo ministro da Guerra. Em

contato com o adversário, eles deverão cortar suas

gargantas, soltando um grande grito. Uma alma furiosa

exala deste suicídio coletivo. Ela se liga, como um

malefício, ao inimigo. O duelo será terrível, sem ser

necessariamente um duelo de morte, se, para incitar

o adversário, enviar-se, em sua direção, um carro,

cujo lanceiro "penetra nos entrincheiramentos, mata

um homem, corta sua orelha esquerda e volta" (604).

(No começo de um sacrifício, para tornar os deuses

solícitos e lhes consagrar a vítima, tira-se da orelha,

com uma faca de guizos, o primeiro sangue). Desde

o primeiro golpe, o inimigo é designado para ser a

vítima expiatória da batalha. Entretanto, não é destina-

do irremediavelmente a um sacrifício total. Os deuses

admitem a substituição de vítimas. O vencedor pode

consentir no resgate do vencido. Mas há ainda, para

incitar o combate, procedimentos mais humanos. Eles

revelam, não uma vontade de conquista ou, pelo me-

nos, de enfeudação, mas uma simples preocupação de

prestígio e de glória. Que os adversários se aproxi-

mem, acampando um perto do outro, ou que um deles


venha assentar seu acampamento diante dos muros

da cidade rival, os dois exércitos estão, cada um, em

sua cidade, com entrincheiramentos tão sagrados

como os da cidade natal. Para infligir ao adversário

o primeiro golpe, o mais decisivo, o mais sensível,

é suficiente que um carro vá, a toda velocidade, com

o estandarte abaixado, "tocar nos entrincheiramentos

inimigos". Ou, então, alguém vai queimar as árvores

dos bosquezinhos sagrados, que cercam a cidade

rival (605). Menos grave, mas de uma insolência tam-

bém eficaz, é o gesto do guerreiro que, expondo-se

friamente, conta com seu chicote, as tábuas que for-

mam a porta (606). Desde que se sentiu desafiado, des-

de que se viu menosprezar seus muros, está acabado:

o adversário resigna-se a suportar os destinos do

combate.

Iniciada por bravatas em que, com uma resolu-

ção mais ou menos brutal, afirma-se a força do espí-

rito, a batalha, sítio ou luta em campo aberto, não é

mais do que uma defrontação de forças morais. Almas

inconstantes de vilões, os peões não têm nenhum

peso no embate dos destinos, enquanto que as nobres

guarnições dos carros se chocam, flâmula contra flâ-

mula e honra contra honra.

Os vassalos dos dois exércitos não se desco-

nhecem. Quase todos foram encarregados de missões

em regiões rivais. Ali foram recebidos como hóspe-

des. Assim que reconhecem suas respectivas flâmu-


las, trocam cortesias arrogantes. Enviam ao adversá-

rio, na falta de uma refeição "para as pessoas de sua

comitiva", um pote de vinho que lhes pedem para

beber, a fim de que se reconfortem. Este vinho é de-

gustado cerimoniosamente, enquanto se rememora os

embates de gentileza no tempo de paz (607). Os adver-

sários saúdam-se, não de joelhos (Pois estão arma-

dos), mas se inclinando três vezes. Descem de seu

carro, tiram seus capacetes assim que percebem um

grande chefe inimigo(608). Eles nunca ousam atacar

um senhor, pois "quem o tocar de leve, merece um

castigo". Não se atrevem a combater senão entre

iguais.

Eles devem combater delicadamente. Uma guar-

nição que está para tomar uma outra, deixará que ela

escape, se um dos guerreiros inimigos tiver o bom

gosto de pagar, imediatamente, um resgate em forma

de homenagens. Um arqueiro de Tch'ou, em má posi-

ção, vê seu carro detido por um cervo. É sobre este

cervo que ele atira sua última flecha. Seu lanceiro

desce logo do carro, toma o cervo morto e o oferece

aos guerreiros de Tsin: "Como não é mais a estação

de caça, o tempo de oferecer animais selvagens ainda

não chegou. Entretanto, permito-me apresentar este

aqui para que seja comido pelas pessoas de vosso sé-

quito." O inimigo, parando seu ataque, exclama: "Eis

à esquerda, um arqueiro de valor, e, à direita, um lan-

ceiro de bela linguagem: são gentis-homens (609)!"

Os presentes de armas são trocados como os


de alimentos ou de bebida (610). O prestígio é conquis-

tado por meio de gestos generosos, bem mais do que

pela persistência ou pelo saber militar. Os guerreiros

que, nos exercícios preparatórios, conseguiram pe-

netrar com suas flechas sete couraças de uma só

vez e que se vangloriam, escutam seu chefe dizer:

"Vós infligireis uma grande desonra ao país! Ama-

nhã, lançando flechas, matareis vítimas com vossa ha-

bilidade! " Mesmo quando a vitória demonstrou a san-

tidade da causa e quando só se preocupa com os fugi-

tivos, isto é, com os culpados, um nobre guerreiro não

pode matar mais do que três homens. Ainda, quando

ele arremessa suas flechas, atira-as fechando os

olhos: elas atingirão o inimigo se a sorte assim o

desejar.

Em pleno combate, a prudência deve sempre

ceder à cortesia. Dois carros vão se defrontar. Um vol-

ta-se para outro lado. O chefe inimigo grita imediata-

mente o nome do chefe do carro que parece evitar a

luta. Desafiado, este volta ao combate, procurando

atirar. Ele se vê reduzido - pois o outro, já pronto,

arremessa sua flecha - a invocar a virtude prestigio-

sa dos ancestrais para que ela o afaste da desgraça.

Mas quando o outro quer atirar pela segunda vez,

ele grita: "Se vós não me deixais trocar (minhas fle-

chas com as vossas), isto será inconveniente!" Obe-

decendo, por sua vez, às leis da honra, o adversário,

retirando sua flecha já colocada no arco, espera, imó-

vel, o golpe mortal (611).


Poupar o inimigo é nobre. Expor-se arrogante-

mente é belo. A façanha suprema é devotar-se ao Che-

fe. Se o carro deste último atola ou fica cercado, o

vassalo fiel procurará, imediatamente, substituir o senhor.

Ele tomará seu lugar no carro que ostenta sem-

pre a flâmula do comando(612). Um guerreiro nobre,

mesmo para escapar das perseguições, não consente

em abaixar seu estandarte (613). Enquanto o estandar-

te tremula, é preciso andar ou marchar em frente até

os entrincheiramentos inimigos. Não se foge, suprema

vergonha, com a bandeira desfraldada, pois só se vai

à batalha para honrar seu brasão. Arriscar-se a ser

zombaria de um inimigo que pode gritar seu nome ou

arriscar-se a ser poupado altivamente por ele, eis as

piores desgraças. É preciso, para as afastar, astúcia

e coragem. Numa batalha entre Tsin e Tch'ou (596), um

carro de Tsin, atolado, não pode mais avançar. A situa-

ção é desesperadora. O inimigo diverte-se dando con-

selhos. "Um guerreiro de Tch'ou diz ao condutor para

levantar a barra transversal (onde as armas estavam

presas). (Levantada a barra), o carro pôde (enfim) sair

do buraco. O condutor, virando a cabeça, diz (para

pagar os conselhos insultantes e o favor desonroso

que acabara de receber): "Nós não estamos, como os

de vosso grande país, acostumados à (arte de) fugir!"

O grande jogo, na batalha, é desprezar o ini-

migo. Despreza-se, também, seus companheiros - so-

correndo-os ao mesmo tempo: "Tchao Tchan deu seus

dois melhores cavalos a seu irmão mais velho e a seu


tio para ajudá-los a fugir. Ele voltou com seus outros

cavalos. Encontrou o inimigo e não pôde escapar.

Abandonando seu carro, foi a pé pela floresta. Fong

(outro guerreiro do mesmo exército) passou (perto

dele) em seu carro com seus dois filhos. Ele lhes

disse que não virassem a cabeça para trás(olhar, vi-

rando a cabeça, Tchao Tchan fugindo a pé, seria humi-

lhá-lo). Entretanto, eles se voltaram e disseram (cha-

mando o fugitivo por seu nome): "O velho Tchao está

ali atrás!" Tchao, tomado pela cólera, ordenou-lhes

que descessem (do carro de seu pai) e, mostrando-

lhes uma árvore, disse: "Cadáveres estendidos, per-

manecereis neste local! (Eles tiveram que descer e)

seu pai (imediatamente) apresentou a Tchao Tchan a

corda (para ajudá-lo a subir em seu próprio carro), a

fim de o salvar. No dia seguinte, os cadáveres de seus

filhos marcavam o lugar indicado. Aprisionados todos

os dois, (o inimigo) os havia (matado e) amarrado à

arvore (614)."

O combate é uma mistura confusa de bravatas,

de generosidades, de homenagens, de insultos, de de-

votamentos, de imprecações, de bênçãos, de malefí-

cios. Bem menos do que um choque de armas, é um

torneio de valores morais, é um encontro de honras,

que se medem. Procura-se qualificar, desqualificando

os outros, não somente os adversários mas também,

do mesmo modo, aqueles da mesma facção. A batalha

é o grande momento em que os guerreiros provam,

cada um, sua nobreza, demonstrando a todos, também,


a nobreza de seu príncipe, de sua causa, de sua região.

Muitas vezes agressivo e sempre marcado pela ambi-

ção de se avantajar, o espírito de solidariedade que

anima um corpo de vassalos manifesta-se na prova da

batalha, como nas provas que preparam para o com-

bate. Um vassalo perde sua posição se se deixar ven-

cer por um companheiro nas justas pacíficas da lu-

ta (615). Um ministro da Guerra não merece mais seu

cargo, se deixar, por brincadeira, passar uma corda

no pescoço, como um cativo(616). Aquele que, não

ousando matar um prisioneiro amarrado, deixa cair sua

lança, nunca será lanceiro. Ele será substituído, à di-

reita do carro, pelo homem leal que, sem se deixar

apavorar pelo grande grito que solta a vítima, cortar-

lhe friamente a orelha esquerda. Este não tem medo

de atrair sobre si mesmo os retornos vingativos de

uma alma amiga: ele se ligou, até a morte, a seus

companheiros de guarnição.

A solidariedade das guarnições é a própria

essência da honra, a tal ponto que, para desqualificar

para sempre um chefe de carro, basta matar seu co-

cheiro(618). Esta solidariedade, que faz a força dos

exércitos, é constituída de elementos comunitários,

mas recobre um sentimento minudente do ponto de

honra. Tchang-ko e Fou-li, grandes oficiais de Tsin, são

encarregados de ir provocar o inimigo; falta-lhes um

cocheiro que conheça bem a região e o caminho; eles

o pedem a Tcheng, pequeno domínio associado a Tsin

numa guerra contra Tch'ou. A tartaruga consultada de-


signa Che-kiuan, grande oficial de Tcheng. As posições

dos três guerreiros são iguais; o prestígio de sua re-

gião não o é. Che-kiuan, advertido do perigo em que

ficaria deixando-se maltratar e ser tratado como infe-

rior, resolve manter sua honra e a de sua região. Ele

demonstrará a falsidade do provérbio: "Uma pequena

colina não tem cipreste nem pinheiro." A guarnição

parte. "Enquanto estavam em sua tenda, Tchang-ko e

Fou-li deixavam Che-kiuan sentar-se do lado de fora

(não admitindo comunicação pelo habitat). Eles só lhe

davam de comer depois que comiam (comunhão en-

feudante)... Quando se defrontaram com o inimigo,

Che-kiuan, sem adverti-los, apressou a marcha dos

cavalos. Os dois (outros que, desequipados, tocavam

tranqüilamente o alaúde, apressaram-se a) tirar seus

capacetes de seus envoltórios e a colocá-los em suas

cabeças. Entrando nos entrincheiramentos inimigos,

eles desceram do carro; cada um se apoderou de um

homem, jogando-o no chão e prendendo-o nos braços

para levá-lo cativo. (Mas Che-kiuan já) havia saído dos

entricheiramentos, sem esperá-los. Eles saíram por

sua vez, tiraram seus arcos do estojo e desfecharam

as flechas. Quando passou o perigo, eles se sentaram

novamente e tocaram o alaúde (desejando, antes de

tudo, mostrar uma tranqüilidade perfeita). (Depois dis-

to) disseram a Che-kiuan: "Senhor (eles o interpelam

pelo título que lhe era devido, pois sua família era de

origem principesca, e Che-kiuan acabara, por sua con-

duta, de eliminar a distância que queriam estabelecer

entre eles), fazemos parte da mesma guarnição: so-


mos irmãos. Por que, por duas vezes, agistes sem nos

consultar?" Che-kiuan respondeu (como seu prestígio

fora restaurado, ele só tinha que afetar modéstia):

"Antes, não pensei senão em penetrar no campo ini-

migo e depois tive medo (não tenho a pretensão de

vos igualar em bravura: esta fórmula desarma a có-

lera)". Os dois puseram-se a rir, dizendo: "Vossa Se-

nhoria é bem perspicaz (619)!" Vê-se que nas provas

impostas pelo ponto de honra, a lealdade toma, muitas

vezes, um ar de traição.

A fraternidade de armas tem qualquer coisa de

equívoca, pois o resultado da batalha é (tanto quanto

a vitória ou a derrota da região), uma exaltação ou um

rebaixamento dos prestígios pessoais. Por outro lado,

não se experimenta menos sentimentos amigáveis do

que rancor em relação ao inimigo ocasional que se

combate, sobretudo, para se classificar em seu pró-

prio acampamento.

Salvo nos casos extraordinários em que a guer-

ra é uma guerra de morte, a finalidade da batalha não

é, de modo algum, a destruição do adversário. Ele deve

ser um combate cortês. O duque Siang de Song espe-

ra, para uma batalha campal, que o exército de Tch'ou

atravesse um rio(620). Dizem-lhe: "Eles são numero-

sos; nós somos poucos; antes que eles acabem a tra-

vessia, vamos atacá-los!" O duque não seguiu este

conselho. Terminada a travessia, como Tch'ou ainda

não se dispusera ao combate, dizem ao duque: " É pre-


ciso atacá-los!" Ele responde: "Esperemos que eles

estejam prontos para a batalha!" Ele atacou, por fim,

foi derrotado e ferido. Diz então: "Um chefe digno

deste nome (kiun-tseu, príncipe, gentil-homem, homem

honesto) não (procura) vencer um adversário no infor-

túnio. Ele não toca o tambor quando as fileiras não

estão formadas." Embora respondessem ao duque que

somente o êxito era meritório, a História perdoou-lhe

inúmeras faltas graves porque, nesta circunstância,

ele só pensou em salvar a honra.

Não há vitória quando a honra do chefe não sai

engrandecida da batalha. Ela aumenta menos quando

se procura o êxito (e sobretudo, quando se quer levá-

lo ao extremo) do que quando se mostra moderação.

Ts'in e Tsin estão frente à frente(614). Os dois exér-

citos se formam e não combatem. De noite, um men-

sageiro de Ts'in vem advertir Tsin para que se prepa-

re: "Nos dois exércitos não faltam guerreiros! Ama-

nhã cedo, eu vos convido, encontremo-nos!" Mas os

de Tsin notam que o mensageiro nunca olha fixo e

que sua voz não está segura: Ts'in é derrotado ante-

cipadamente. "O exército de Ts'in nos teme! Ele fu-

girá! Vamos atacá-lo no rio! Certamente nós o ven-

ceremos!" No entanto, o exército de Tsin não se for-

ma para o combate e o adversário pode retirar-se tran-

qüilamente. Foi suficiente que alguém dissesse: "Não

recolher os mortos e feridos, é desumano! Não espe-

rar o momento conveniente, cercar o inimigo numa

passagem perigosa, é infame (621)!"


E eis como deve falar um vencedor a quem se

propõe ostentar sua glória construindo um acampa-

mento no local de sua vitória, levantando, sobre os

corpos dos inimigos mortos, um monumento de ter-

ra (622): "Por minha causa, duas regiões expuseram ao

sol os ossos de seus guerreiros! É crueldade!...(Sem

dúvida) nos tempos antigos, quando os Reis resplan-

decentes de Virtude combatiam homens que não ti-

nham respeito algum (para com a ordem celeste) e

quando eles tomavam (aqueles que, semelhantes a)

baleias (devoravam os fracos, estes reis podiam), então,

levantar um outeiro triunfal (fong) a fim de expor

(para sempre) os corpos (dos culpados: os do mau

chefe e de seus seguidores, maus por contágio). Mas,

no presente! não há culpados (= não tenho categoria

para conduzir uma guerra mortal)! Não existem vas-

salos que não tenham mostrado, até o fim, sua fide-

lidade! Eles morreram, ligando seu destino (ming:

vida, destino, ordem, investidura) ao de seu príncipe!

Por que levantar um monumento triunfal?"

Enquanto os vassalos defrontam-se em confu-

são, é o chefe que assume, sozinho, as responsabili-

dades do combate e de suas conseqüências. É só o

chefe que conduz a batalha. A vitória é conquistada,

exclusivamente, devido a sua virtude. Ele deve trans-

mitir a força de sua alma a todos os combatentes. De-

ve se consumir inteiramente. K'i-k'o comanda a legião

central de Tsin; Houan é seu lanceiro, Tchang-heou é


seu cocheiro. No início do combate(588) (623), "K'i-k'o

foi ferido por uma flecha; o sangue escorreu até seus

sapatos: ele não cessou de fazer soar seu tambor.

(Mas, enfim) ele disse: 'Sinto dor!' (Os chefes em

armas devem respeitar a etiqueta. Seus vassalos fiéis

estão encarregados de lhe recordar seu dever).

Tchang-heou diz-lhe: 'Desde o princípio da batalha,

duas flechas atingiram-me, uma na mão, outra no co-

tovelo. Eu as arranquei para conduzir o carro. A roda

da esquerda tornou-se púrpura. Ousei dizer que me

sentia mal? Senhor sede paciente.' Houan diz a

K'i-k'o: 'Desde o começo da batalha, desde que houve

perigo, desci do carro e fiz avançar os cavalos. Senhor,

vós vos preocupastes (somente) comigo? E, no entan-

to, Senhor, vós tendes dor!'Tchang-heou replicou: 'Os

olhos, os ouvidos do exército estão presos em nossa

bandeira, em nosso tambor. Todos lhes obedecem, pa-

ra avançar, para recuar. Enquanto houver um homem

para conduzir nosso carro, que aqui está, é possível

concluir a obra! Por que tendes dor, conduzireis a

grande obra de nosso senhor a um desastre? Aquele

que reveste a couraça e toma as armas deve ir firme-

mente até a morte. Vós sofreis, mas não mortalmente.

Senhor, superai o sofrimento!' Tchang-heou, então,

fazendo passar as rédeas para sua mão esquerda, pe-

gou a baqueta e tocou o tambor." Mas Tchang-heou

não estava qualificado para agir como chefe: seus ca-

valos desenfrearam e a batalha foi perdida. Um chefe

é digno de sua posição quando pode, após o combate,

exclamar: "Fui derrubado sobre o estojo de meu arco!


Vomitei meu sangue! No entanto, o som de meu tam-

bor não esmoreceu! Hoje, fui um chefe! " E porque ele

foi, verdadeiramente, um chefe, seu lanceiro pôde,

sem nenhuma dificuldade, afastar os inimigos, en-

quanto que seu cocheiro, com as rédeas tão gastas

que ao menor esforço de tração elas deveriam ter-se

rompido, pôde conduzir, no meio da confusão, seu

carro com toda a carga.

A voz, a respiração, a alma, o ardor do chefe

comunicam-se a seus companheiros de carro e a todo

exército, mas animam, primeiramente, seu tambor e

seu estandarte. A bandeira é toda a pátria. Se a ban-

deira for destruída, o domínio está perdido. A bandei-

ra é o próprio príncipe. Quem tocar no porta-bandeira

é culpado de lesa-majestade e o senhor, em pessoa,

está em todos os lugares em que sua flâmula é leva-

da (624). Mas é preciso ocasiões excepcionais para que

um príncipe exponha, simultaneamente, sua pessoa e

seu estandarte. Geralmente, ele confia a bandeira,

passando o comando. Entretanto, são raros aqueles

que querem aceitar a perigosa honra de um imperium

total. Um general prudente suprime pelo menos seus

galões do estandarte do príncipe.

Todos os vassalos, em princípio, são votados à

morte depois que, por ocasião da partida do exército,

uma unção sangrenta deu alma às bandeiras e aos tam-

bores. Mas o general a quem são confiados os tambo-

res e as bandeiras de comando é positivamente vota-


do à morte, se, aceitando o imperium, ele se tornar

o representante do senhor. Quando recebe o tambor e

a bandeira, tendo em mãos o machado, depois de uma

consulta à tartaruga e de uma abstinência severa, o

chefe de guerra deve proceder a uma tomada de há-

bito que o afasta do mundo dos vivos. Ele veste então

um hábito fúnebre e só poderá sair da cidade por uma

brecha feita na porta do norte: é também por uma

brecha que os mortos devem sair do Templo ancestral

no momento do enterro (625). O general deve cortar as

unhas de seus pés e de suas mãos, como se faz, quan-

do alguém quer se entregar inteiramente a uma força

santa. Desde então, "votado à morte", "ele não deve

mais olhar para trás". Preso por um vínculo de fideli-

dade absoluta, não podendo mais "ter um coração du-

plo", ele se torna a alma da obra de mortandade que

inaugura sua tomada de hábito. Esta se parece com a

tomada de hábito dos exorcistas encarregados de

expulsar, por conta do senhor, as forças nocivas. Os

exorcistas, vestindo suas roupas consagradas, juram

não voltar senão depois de ter "combatido até o fim".

O chefe de guerra, no decurso da campanha, renova,

às vezes, seu devotamento. Tchong-hang Hien-tseu,

general de Tsin(554), jogou pedras preciosas no rio

e pronunciou este juramento: "Não me permitirei

reatravessar o rio!" Hien-tseu não foi mais do que

meio vencedor e, no entanto, reatravessou o rio.

Ele caiu doente, pois. Seus olhos se abaularam. Ele

pediu um sucessor, depois morreu. Morto, ele conti-

nuou, com a boca escancarada, a olhar com seus olhos


abaulados. Alguém disse: "Será que é porque não

terminou sua obra?" Seu companheiro, posando as

mãos sobre o cadáver (gesto comunitário), exclamou

então: "Senhor, haveis acabado! mas, se eu não pros-

seguir vossa obra, sede testemunha, ó rio! " O cadáver

consentiu então em cerrar os olhos e sua boca, enfim,

pôde ser fechada. A oração fúnebre de Hien-tseu foi:

"Era um homem (626)! "

Os gentis-homens, geralmente, preferem as

meias vitórias ou as derrotas moderadas. Com um

príncipe ambicioso, eles podem, neste caso, contar

com terríveis ameaças: mesmo comendo-os, o senhor

não se sentiria saciado(627). Todos os vassalos fiéis

sabem citar o adágio: "Vencedor: Ministro da Guer-

ra! - Vencido: cozido numa caldeira!" Eles sabem,

também, que seu senhor, se eles se deixarem derro-

tar um pouco, ou mesmo se prender, perdoará depres-

sa e pagará seu resgate, muito feliz por não os ver

passar para o serviço de um outro. Continua-se neces-

sário quando não se tem a imprudência de terminar

seu trabalho de uma só vez. O bom general sabia fu-

gir, alijado de seu correame. Isto lhe custaria, no má-

ximo, um triunfo às avessas e o aborrecimento de re-

tornar à cidade ridicularizado por meio de canções

bem-humoradas: "Arregala teus olhos! - Dilata teu

ventre! - Joga tua couraça e volta! - Ò bela barba!

ó bela barba! - Jogada tua couraça, eis que voltas! "

- "Os bois ainda têm pele! - e os rinocerontes abun-

dam! - Joguei minha couraça, e agora?" - "Sobra


pele, é verdade - mas onde encontrar o verniz ver-

melho(628)?" Depois de uma grande vitória, ao con-

trário, o chefe voltava à cidade entre os cantos orgu-

lhosos da pompa triunfal: " Nós subimos (elas são nos-

sas) em suas montanhas! - Eles não ficam (elas são

nossas) em suas colinas! - Nossas são as colinas!

nossos são os montes! - Eles não beberão mais

(elas são nossas) em suas fontes! - Nossas são as

fontes, nossos são os lagos (629)! " Na primeira fila de

dançarinos triunfantes, o general vencedor, neste dia

de glória, marchava ainda com o machado na mão.

O difícil era entregar o machado e não perder

a vida com o imperium. Tseu-wei (540) comanda por

conta de Tch'ou. Seu senhor permite-lhe, enquanto

durar seu cargo, vestir roupagens de príncipe e se

fazer guardar, como um senhor, por dois lanceiros.

Para impor a todos os países rivais a hegemonia de

Tch'ou este aparato não era supérfluo. Mas, diz um

diplomata estrangeiro: "Tseu-wei as obteve, por em-

préstimo, por algum tempo. Ele não as deixará mais."

E todos os chefes das outras regiões apressaram em

reconhecer sua superioridade, felizes em exaltar sua

fortuna, pois planejavam condená-lo a uma desgraça

terrível. Tseu-wei, com efeito, conservou seus dois lan-

ceiros. Ele suprimiu o príncipe, assassinou seus filhos

e tomou o poder para si: mas, depois de ter celebrado

triunfos excessivos, morreu na desgraça (630).

Uma alternativa impõe-se ao chefe de guerra

que procura muito êxito para suas armas: é preciso

que ele usurpe, senão morrerá. A desgraça segue o


triunfo se a rebelião não a impedir. Um general leal

e sábio evita as responsabilidades da vitória e divide

as da derrota: "Em lugar de assumirdes sozinho a

falta, vós a fareis dividir com vossos seis chefes de

legião: não será melhor assim (631)?" Tal é a fórmula

da moral e do espírito militar. Estes se formaram (e

em nada variaram) durante essas justas intermináveis

que constituíram os tempos feudais. Oficiais e chefes

detestam a guerra brutal e as vitórias descorteses,

para as quais é preciso empenhar o destino em apos-

tas muito decisivas. Eles preferem as belas alterna-

ções de paradas guerreiras e de tréguas armadas que

permitem que os prestígios se fundam e que os talen-

tos se paguem.

A batalha feudal (enquanto se desenrola com

Nobreza) é um ordálio suscetível de apelação. Sagrado

pelo êxito, o vencedor mantém em suas mãos, por um

momento, o destino do vencido. Este último, reco-

nhecendo-se culpado, pede então misericórdia, mas

com uma humildade provocante. Sua súplica, se for

perfeitamente humilde, sua confissão, se for comple-

ta, o reconhecimento de sua incapacidade, se for bri-

lhante, bastam, na justificativa de sua falta, para res-

tabelecer o equilíbrio dos destinos, pois, entregan-

do-se inteiramente ao senhor do momento, ele lhe pro-

põe, para o futuro, um desafio muito forte, uma aposta

na qual o parceiro tem todo interesse em diminuir o

que está em jogo. O vencedor toma cuidado de não

exigir senão uma compensação moderada. Ele mesmo


apressa-se em reparar o vencido, em reabilitar o

culpado.

Song é sitiada [593] por Tch'ou. Ela não espera

mais socorro. O inimigo toma disposições para acam-

par até a queda da praça. O melhor que se pode espe-

rar é uma rendição, ou, no máximo, um tratado jurado

(vergonha odiosa) sobre os próprios muros da cidade.

Saqueando o passado, destruindo o futuro, os sitia-

dos queimam os ossos de seus mortos e comem suas

crianças. Eles mandam dizer isto ao sitiador. Esta con-

fissão horrível de incapacidade não encoraja este últi-

mo: ela o apavora. O exército de Tch'ou recua trinta

estádios. Conclui-se uma paz honrosa (632). Depois de

dezessete dias de cerco [596], os habitantes de

Tcheng ficam sabendo, pela tartaruga, que seu único

recurso é abandonar sua cidade, depois de terem se

lamentado no Templo ancestral. O exército inimigo

retira-se vencido por este rito fúnebre. Os sitiados,

recuperando a esperança, recolocam a cidade na de-

fesa: o inimigo, desafiado, cerca-a de novo. Pouco de-

pois, consegue entrar. Tudo parece perdido. "O prín-

cipe de Tchen, com o busto nu (rito de luto), e puxando

um carneiro pela corda (na cerimônia do triunfo, quan-

do não se sacrificava o vencido, substituíam-no por

um carneiro) foi diante (do vencedor). Ele diz: "Não

tenho mais o Céu (a meu favor)! Não tive o dom de

vos servir (como vassalo), senhor! Eu vos fiz, senhor,

ter trabalho e cólera! Esta cólera atinge meu pobre

país! É minha culpa! Ousarei não aceitar vosso de-


creto (ming)? Se quiserdes enviar, a nós, vossos cati-

vos, para a beira do (Yang-tseu) Kiang e do mar (bani-

mento nas fronteiras incultas), obedeceremos a este

decreto! Se quiserdes nos distribuir como presa aos

feudatários, se quiserdes que (homens e mulheres)

sejamos (todos)reduzidos ao estado de domésticos

(servidão penal) obedeceremos a esse decreto! Mas,

se vos dignardes lembrar de velhos laços de amizade,

se desejardes uma parte da felicidade que podem con-

ceder nossos ancestrais reais e principescos [esta

felicidade (fou) será adquirida pelo consumo das car-

nes de sacrifício que ele poderá sempre enviar como

presente (tche-fou) se os sacrifícios aos Ancestrais

não forem interrompidos pela destruição do domínio],

se não destruirdes (reduzindo-os a pocilgas) nossos

altares do Solo e das Colheitas, se me transformardes

(comunicando-me, enfim, vossa Virtude) a ponto de

(eu ter o dom) de vos servir como vassalo, na mesma

categoria destes Bárbaros (onde soubestes fazer) nove

distritos (de vosso país), isto será (de vossa parte)

beneficência! Não é isto que ouso esperar! (Mas)

ouso abrir-vos meu coração! Senhor, vós decidireis!"

O príncipe de Tch'ou, vencido por esta confissão irre-

sistível ("Um senhor que sabe se humilhar é certa-

mente capaz de obter de seu povo um fidelidade to-

tal"), fez seu exército recuar trinta estádios e conce-

deu uma paz honrosa(633). Vitorioso, o exército de

Tcheng entra em Tch'en [547]. O Ministro da Guerra

leva imediatamente aos generais vencedores a baixe-

la sagrada dos Ancestrais. O Senhor de Tch'en usa


um turbante de luto e leva, em seus braços, a tabuleta

sagrada de seu deus do Solo. A gente de Tch'en, com

todas as posições misturadas, mas dividida em dois

grupos, homens e mulheres à parte, esperam, atados

antecipadamente como cativos. Os generais inimigos

apresentam-se. Um deles tomou o cuidado de se munir

de um laço; não era para prender os cativos, mas para

responder humilhação com humilhação. Ele saúda

ajoelhado e apresenta uma taça ao príncipe vencido:

é afirmar que sua vitória não terá uma conseqüência

diferente daquela dos arqueiros nas justas rituais do

tiro com o arco - estes torneios serviam para clãs-

sificar os méritos, mas preludiam regozijos comuni-

tários. Um outro general avança por sua vez. Ele se

limita a enumerar os cativos, reduzindo a tomada de

posse a um gesto simbólico e o triunfo a uma simples

afirmação de prestígio. Imediatamente, a gente de

Tch'en retoma suas atribuições e suas posições; o

deus do Solo, purificado pelos cuidados do invocador,

torna a ser o centro da pátria restaurada e reabili-

tada, enquanto o exército de Tcheng se retira - re-

vestido desta glória que é conferida pela moderação,

glória pura que não se envenena com o temor de uma

mudança da sorte. Seus generais não esgotaram de

uma só vez seu quinhão de felicidade. Sua proteção,

seu renome durarão por longos tempos, dizem-nos (634).

O triunfo completa a vitória. Ele a autentifica.

O vencedor marca um tento. Ele junta a seu ativo, além

da glória de ter absolvido, todos os despojos pelos


quais os vencidos pagaram sua derrota e sua absolvi-

ção. Estes despojos, cativos aprisionados durante a

batalha, reféns ou territórios anexados como garantia

do tratado, mulheres entregues para renovar aliança,

jóias ofertadas como dádivas para restaurar a amizade

têm um valor como troféus e um preço como presa

de guerra. Os vencedores, no momento da volta triun-

fal, dividem-nos proporcionalmente ao mérito adquiri-

do por cada um deles nas justas guerreiras.

Esta partilha torna-se ocasião de um torneio no

qual as rivalidades mostram-se com tanta evidência

quanto no campo de batalha. Quando um príncipe, para

glorificar suas armas, cria uma Ordem dos Corajosos

e que, apontando dois de seus guerreiros, diz: "Estes

são meus heróis (literalmente: meus machos, ou mais

precisamente, meus galos)! " um vassalo que se julga

privado injustamente desta honra, exclamará: "Se

esses dois fossem animais selvagens, eu comeria sua

carne! Eu me deitaria sobre sua pele (635)! " É a Virtude

do senhor que fez e ganhou a guerra; é o senhor que

recolhe os troféus; mas ele deve, imediatamente, di-

vidir a glória, e a distribuição que faz, empenha, terri-

velmente, sua responsabilidade. O vassalo cujo qui-

nhão de honra e de ganho não o satisfaz, não tem,

contra seu senhor, senão uma arma e um recurso,

mas muito poderosos: ele pode amaldiçoar. Ele pode

mesmo, suicidando-se, ligar ao senhor triunfante uma

alma credora. Kie-tseu Tch'ouei, que o duque Wen de

Tsin esqueceu de recompensar, não faz nenhuma re-

clamação, mas utiliza a força dos cantos: " Um dragão


(o senhor) quer subir ao Céu! - Ele tem cinco ser.

pentes (cinco vassalos devotados) por sustentáculo.

- O dragão subiu às nuvens! - Somente quatro ser-

pentes encontram asilo! - A outra, sozinha e descon-

tente, nunca mais foi vista!" Depois disto, ele se re-

fugia num monte arborizado de onde o fogo não o

faz sair. Ele morre queimado, abraçando uma árvore.

Para expiar esta morte funesta que ameaçava ligar-se,

como uma mácula, a seu destino, o duque Wen foi

obrigado a dar a Kie-tseu Tch'ouei um feudo póstumo:

a montanha, onde ele morrera, foi-lhe consagrada, tan-

to para pagar seu devotamento passado, como para

desviar os malefícios futuros (636). Um vassalo que de.

seja ser pago, mas que pretende desfrutar efetivamen-

te da recompensa obtida, limitar-se-á a sugerir a seu

senhor que, se não recebeu seu favor, é porque sem

dúvida, merece uma punição (637). Pelo efeito das mal-

dições coercitivas, como pelo das ameaças disfarça-

das que são os pedidos de castigo, o senhor é obriga-

do a não conservar os benefícios da vitória, a não ser

uma glória pura e toda nua, sem vantagens materiais.

Ele consagra os troféus a seus antepassados, mas os

reparte entre os vassalos. Se ele tem uma virtude

bastante grosseira para querer efetivar seus sucessos

por anexações de território, ele procura sua perda,

pois as terras conquistadas irão aumentar os feudos

de seus vassalos. Estes, quando são ricos, são tenta-

dos a se rebelar. O príncipe feudal tem tanto ou mais

interesse do que seus seguidores em poupar os ven-

cidos. Um triunfo levado até o fim o arruinaria.


Para o senhor, o principal ou o único benefício

de uma campanha acha-se no fato de ele poder experi-

mentar seus vassalos. O triunfo dá-lhe ocasião de

punir aqueles cujo "coração é duplo" (638). Ele poupa,

menos facilmente do que aos vencidos, os chefes e

os guerreiros cuja fidelidade é equívoca. Pune aqueles

que perderam sua bandeira, os prisioneiros postos em

liberdade pelo inimigo (que também pode reabilitar

ou entregar à jurisdição de seus chefes de família),

os covardes que não souberam dar sua vida ao mesmo

tempo do que seus companheiros de equipagem e,

sobretudo, os homens de grande coragem, levados à

indisciplina - pelo menos, se eles receberam feri-

mentos que parecem colocá-los fora do serviço e dei-

xá-los sem defesa. A guerra "faz desaparecer os

homens turbulentos". Infeliz daquele que quiser supri-

mi-la! Ela tem, na verdade, um valor purificador, gra-

ças às execuções do triunfo (639).

Os grandes potentados que criaram na China

unidades provinciais é espécies de pequenas nações,

fizeram da guerra uma indústria. Chega-se ao fim do

período feudal. O príncipe guarda só para si os bene-

fícios materiais da guerra. Anexa os territórios a seu

próprio domínio. Anexa também as populações. Desde

então, o exército não tem mais nada do grupo feudal

que vai, com grande pompa e com um espírito religio-

so, empenhar-se num torneio. Os senhores do período

dos Reinos combatentes conduzem seus homens para

as fronteiras bárbaras, que eles tentam tomar. Diri-


gem, contra as tribos que vivem fora da lei chinesa,

guerras de conquista para as quais não têm mais valor

as velhas regras de batalha. Eles empreendem guerras

coloniais, guerras de civilização: eles fazem a verda-

deira guerra, inexpiável e rude. Incorporam os venci-

dos a seus exércitos, adotam suas táticas. A massa

de seus guerreiros não é mais constituída de cavalhei-

ros, mas de aventureiros, de assassinos assalariados,

de colonos. Seu exército, no qual se combate não mais

pela glória de fazer prisioneiros e pelo único benefício

dos resgates, mas para matar e para pilhar, parece um

exército nacional, quando marcha contra o exército de

um outro potentado, também criador de uma unidade

provincial. Na China primitiva, as lutas entre príncipes

pareciam ser conflitos de civilização, ocidente contra

oriente, sul contra norte. Entre os Reinos combatentes,

as campanhas são verdadeiras guerras, onde se cho.

cam, de maneira sanguinária, as inimizades de provín-

cias, de culturas, de raças, de técnicas.

Quando [540] quis conquistar as regiões dos

Jong das Montanhas, que combatiam a pé, Tsin aban-

donou o sistema de carros e organizou, para uma nova

tática, companhias de soldados de infantaria. Houve,

então, um guerreiro que preferiu a morte à desonra

de se deixar desmontar(640). Com este gentil-homem,

estavam abaladas a antiga ordem das batalhas feudais,

a própria nobreza e o próprio sistema feudal. Foi ainda

pior quando o senhor de Tchao [307], adotando, para

combatê-los, as táticas dos guerreiros da estepe, criou

um corpo de arqueiros a cavalo. Teve que lutar contra


uma resistência encarniçada de seus vassalos e de

seus parentes (641). Fato significativo, foi por uma sé-

rie de reformas feitas ao mesmo tempo que Ts'in (o

qual devia fundar o lmpério) criou um exército de sol-

dados de infantaria e de cavaleiros com equipamento

leve, modificou o sistema de posse das terras e, ces-

sando de distribuir feudos, estabeleceu uma hierarquia

militar fundada nos serviços prestados. Desta hierar-

quia, devia surgir uma nova nobreza(642). Começa,

então, o reinado dos técnicos, dos engenheiros mi-

litares ou dos professores de tática. Nesta época,

inventaram-se as máquinas de guerra (o sábio Mei-ti

deve uma boa parte de sua glória às invenções que

lhe são atribuídas). Aperfeiçoa-se a arte dos cercos,

onde se empregam a água, as catapultas, as torres

móveis. Imaginam-se inúmeras artimanhas de guerra,

e emboscadas (643). A guerra procura a destruição do

inimigo. Ts'in não convida os prisioneiros a pagar um

resgate que os reabilite: ele os executa. Matanças

imensas alimentam seu prestígio. A batalha não é

mais um torneio que enobrece. Somente conta o êxito.

Este surge como o resultado de uma arte mágica e

não como a consagração de um mérito religioso. O

maravilhoso substitui o épico nas narrativas milita-

res. O tom heróico é substituído pelo tom romanesco.

Uma moral do poder tende a encobrir a velha moral

da honra e da moderação.

Outrora, a guerra conferia a honra, mas, para

ser guerreiro, era preciso já ser honrado. Apenas um


homem adulto, na força de sua idade, tinha o direito

de pegar em armas. Aquele que, mesmo muito jovem,

fosse admitido numa batalha, tornava-se, por isto,

maior. Por outro lado, as crianças, os velhos, as mu-

lheres, todos aqueles que estavam maculados por

um luto, todos aqueles que, doentes, tinham um con-

tato impuro achavam-se excluídos do jogo de armas

e de suas conseqüências. Ninguém teria ousado ma-

tar um pestífero, levar ao cativeiro um velho, expor

a um contágio feminino esses troféus viris que são

as orelhas cortadas dos inimigos (644). Todo aquele que

não se podia ligar à vingança, também não poderia

sofrer ou se aproveitar dos torneios militares. Provas

preparatórias do tiro com o arco tinham o cuidado de

afastar os oficiais graduados de um domínio destruí.

do, os chefes de um exército derrotado, as pessoas

que, por adoção, tinham passado para uma família

estrangeira (645). O combate tinha o valor de uma pro-

va de pureza, limitada aos nobres e aos puros.

Pelo contrário, as guerras ambiciosas de civili-

zação não poupam ninguém: "Todos aqueles que têm

ou que conservam a força são nossos inimigos, sejam

eles velhos... Por que se abster de ferir novamente

aqueles cujo ferimento não é mortal (646)?" A guerra,

que visa à conquista, à anexação, não admite as velhas

leis dos encontros feudais: ela é tarefa útil, obra de

plebeu; ela repudia a arte do valor religioso, mas com

rendimento moderado, dos nobres soldados de outro-

ra (647). Entretanto, os velhos princípios da época dos

torneios acham-se enraizados na alma chinesa: eles


ali formam uma camada profunda que não desaparece

quando desaparece a nobreza feudal. Salvo quando se

encontra diante de Bárbaros estranhos à lei chinesa,

o chinês inspira-se num sentimento de honra em que

entram, numa confusão característica, um gosto pela

aposta e um espírito de moderação, ambos de quali-

dade singular. A todo instante, provoca-se á sorte,

com o cuidado, não obstante, de não exceder seu des-

tino. Porém, assim que é excedido, um desencadea-

mento furioso sucede a moderação. Sem transição, o

senso de honra, dos valores protocolares, do equilíbrio

com movimentos lentos, dá lugar, nesses casos extre-

mos, a um apetite de poder imediato, desordenado e

sem freio. Aquele que sai da regra condena-se a si

mesmo e age como um condenado que já perdeu tudo.

II - Os nobres na corte

Os princípios da moral militar inspiram os no-

bres, mesmo em sua vida civil. Entretanto, sob a in-

fluência da vida na corte, estes princípios tomam uma

nova aparência. Uma bela passagem [ela também mos-

tra (se assim posso dizer) o lado romântico numa

vida na qual tendia a dominar, cada vez mais, o gosto

do protocolo] deixa bem evidente a afinidade e a opo-

sição das virtudes civis e militares. Um personagem

de Tcheng [540] tinha uma irmã que era muito bonita.

Um nobre de sangue principesco pediu-a como noiva.

(Os ritos dos esponsais são ritos diplomáticos: lida-se,

com uma cortesia sábia, com a dignidade das duas fa-


mílias que vão se aliar.) Um outro nobre de sangue

principesco fez a família da jovem aceitar, à força, o

pato-do-mato que constitui a primeira prestação dos

esponsais. (O contrato de casamento é, por direito,

bilateral: entretanto os presentes, expressão de uma

vontade unilateral, servem para ligar os contratos.) O

irmão, amedrontado por ter que decidir entre dois ri-

vais poderosos, consulta o ministro de Tcheng. Tseu-

tch'ang. Tseu-tch'ang é um sábio. Aconselha deixar

a moça fazer sua escolha. (A prometida, por direito,

não pode dar sua opinião; não deve ver nem conhecer

seu futuro noivo; mas nos usos camponeses, os espon-

sais se ligam no decurso de um torneio de cantos e

danças de amor.) Os dois pretendentes aceitam este

regulamento: Um, depois de ter vestido roupas magní-

ficas, vem, cheio de cortesia, expor, pomposamente,

seus presentes no pátio. Por sua vez, o outro chega;

ele veste sua roupa de batalha; atira flechas em todas

as direções, sobe em seu carro e parte: "É um ho-

mem!" Como é justo, a moça escolheu o militar. Na

entanto, falando do civil, vencido neste torneio amoro-

so, ela diz: "Ele é belo, certamente (648)! "

Convém que os que cercam o senhor sejam

belos. Nas reuniões da corte, "um traje belíssimo

abre o caminho (tao) e permite ir longe ", pois: a roupa

faz o nobre. O bem trajar é o primeiro dever do vas-

salo. Ele se veste para o príncipe.

Bem entendido, ele não pode ficar nu como um

selvagem ou semivestido como um condenado. Estes

não se aproximam de um chefe e não têm alma. Uma


alma já poderosa mora no corpo de um nobre. Ele a

abandonaria, mostrando-se despido. O nobre só se

desnudará em ocasiões extremas, para receber uma

punição ou para se dedicar inteiramente a uma força

santa(6499). Uma mulher que (a menos que ela seja

feiticeira) esconde em seu corpo encantos perniciosos

ou debilitantes (niu tô = uma virtude feminina) nunca

se mostrará nua(650). Diante de seu senhor, cuja

alma soberana não quer enfraquecer nem contaminar,

o vassalo deverá, normalmente, vertir-se de uma ma-

neira tão hermética quanto uma mulher. " Mesmo para

fazer um esforço, ele conservará os braços cobertos;

mesmo em pleno calor, ele manterá abaixada sua ves-

timenta inferior." Sua túnica deve ser "suficientemen-

te curta para não se arrastar na poeira, bastante lon-

ga para que não se veja nenhuma parte de seu cor-

po" (651).

Mas não é suficiente estar vestido quando se

vai à corte: para ser recebido é preciso saber se tra-

jar. Tseng-tseu e Tseu-kong, discípulos de Confúcio,

apresentam-se numa casa onde um príncipe está em

visita. O porteiro lhes diz: "O príncipe está aqui: não

podeis entrar! " Os dois personagens, na verdade, não

tinham tido tempo, ao descer da carruagem, de pôr

em ordem suas vestimentas. Foram, depressa, ata-

viar-se num canto da cavalariça. O porteiro, logo de-

pois, eclipsando-se diante deles, diz-lhes: "Estais

anunciados! " e assim que eles se adiantaram, os per-

sonagens mais distintos vieram a seu encontro. O pró-


prio príncipe (seu traje lhe fazia honra) concedeu-lhes

a graça de descer um dos degraus da escada, a fim de

expressar sua estima (652).

A elegância é obrigatória: ela consiste em usar

a roupa que corresponde à posição que se ocupa, que

convém à estação, que é apropriada às circunstâncias,

que está de acordo com a dignidade daqueles a quem

se visita. O traje, além disso, deve formar um con-

junto harmonioso em que todos os detalhes estão em

secreta correspondência. "Um oficial que tem direito

a um emblema único usa joelheiras vermelhas e uma

presilha preta." "O cinto só tem duas polegadas de

largura, mas parece ter quatro, pois ele é enrolado

duas vezes em volta do corpo." "É de seda preparada,

simplesmente debruado nas bordas e só têm guarni-

ções nas extremidades." "É atado por meio de fivelas

nas quais se enfia uma fita de seda (653)." "Os guardas

do príncipe trazem, quando estão à direita, uma túnica

guarnecida de peles de tigre e, quando estão à esquer-

da, uma túnica enfeitada com peles de lobo." "So-

bre uma (primeira) túnica guarnecida de raposa azul

e cujas mangas são ornadas de leopardo, veste-se

uma (segunda) túnica que deve ser de seda enegreci-

da. Sobre uma túnica guarnecida de peles de corço

recém-nascido e cujas mangas são ornadas de peliças

azuladas de cachorro selvagem, usa-se uma túnica

verde-amarelada. Sobre uma túnica forrada de cordei-

ro preto, com mangas guarnecidas de leopardo, usa.se

uma túnica preta e, enfim, sobre uma túnica de raposa


amarela, uma túnica amarela." Pelo contrário, "sobre

uma túnica (vulgarmente) guarnecida de peles de

cachorro ou de carneiro, é proibido usar uma segunda

túnica... (porque) esta se destina a fazer sobressair

a beleza do traje". Nas visitas de condolências, é pre-

ciso juntar uma terceira túnica para evitar uma ele-

gância perfeita. Mas, em presença do senhor, apare-

ce-se sempre com a segunda túnica, a mais bela -

salvo quando se tem uma concha de tartaruga: sua

santidade (como o caráter sagrado das pessoas de lu-

to) exige uma terceira túnica (654).

"A túnica de um oficial deve ser de uma das

cinco cores fundamentais; sua vestimenta interna (es-

pécie de tanga) de uma das cores intermediárias cor-

respondentes." Usa-se barretes diferentes em tempo

de luto, de abstinência, de desgraça, quando se trata

de negócios, quando se repousa. Há um barrete espe-

cial que serve para conferir a maioridade, pois o bar-

rete é a parte mais nobre do traje: não se tira nunca

o barrete na presença de um chefe, não se morre sem

um barrete bem colocado, e o capítulo do barrete abre

o mais sagrado.dos livros rituais, o Yi li(655). Só se

penetra na corte com uma combinação de roupas, de

cor e de proporções corretas. Deve-se, além disso,

ter em mãos uma tabuleta, que, para um oficial, é de

bambu enfeitado com marfim, e, para um oficial gra-

duado, de bambu ornado com barbilhões de peixe. É

preciso, enfim, guarnecer seu cinto com pedras pre-

ciosas. "As que estão do lado direito devem dar a

quarta e a terceira nota da escala; as do lado esquer-


do devem dar a primeira e a quinta nota." "Em presen-

ça do senhor, ninguém (nem mesmo o herdeiro desig-

nado) deixa pender livremente e retinir as pedras pre-

ciosas de seu cinto." Só se deve ouvir o tilintar do

berloque do príncipe. Mas quando o nobre está em

seu carro, ele escuta uma harmonia de campainhas e

quando anda - com rapidez e gestos sempre mode-

rados - "escuta o som das pedras penduradas em

seu cinto: então, nem o erro, nem a má-fé podem

entrar em sua alma" (656). O nobre deve ser corajoso e

puro. No combate, deve mostrar-se bom (chen-jen ou

então leang jen); na corte deve se esforçar para ser

belo (mei jen), pois beleza (mei) e pureza (kie = bem

arrumado, de boa qualidadeJ confundem-se e, além

disto, a bravura não se diferencia de uma boa apre-

sentação (657).

É nobre aquele que se apresenta nobremente.

Quando se veste um traje "feito de doze faixas, como

o ano é feito de doze meses" - cujas " mangas redon-

das, imitando o círculo", convidam "aos movimentos

graciosos" - cuja "gola, talhada em ângulo" e "a cos-

tura dorsal reta, como um cordel", lembram "a retidão

e a correção" - enfim, cuja "borda inferior, horizon-

tal como o travessão de uma balança em equilíbrio,

põe seus sentimentos em repouso e o coração em

paz"(658), é possível guardar o porte nobre (yi) que

faz com que "um homem seja verdadeiramente um

homem". Bem vestido, não se arrisca a ser compara-

do a um rato que só tem sua pele, a um animal com


movimentos desordenados e loucos (659). Tem-se uma

alma que o traje modela corretamente, solidamente,

que pode subsistir. Não se ouve dizer: "Um homem

que não está bem posto! - é possível que não esteja

morto?" Ao contrário, de um gentil-homem perfeito,

que traz pedrarias na orelha e cujo barrete, guarnecido

de pérolas, "brilha como as constelações", dir-se-á

que é "para sempre inesquecível ".'Não se compreen-

de que suas maneiras não sejam "graves, majestosas,

imponentes, distintas" (660). "Quando o vestuário é co-

mo deve ser, a postura do corpo pode ser correta

(tcheng), o ar do semblante doce e calmo, conforme

as regras, as fórmulas e as disposições (661)." Somente

então se pode ser considerado um vassalo por seu

príncipe, um filho por seu pai e, por todos, um adulto.

A cerimônia da maioridade é uma tomada de hábito

que sagra um gentil-homem e o dedica aos deveres

elegantes. Quando se está vestido nobremente, po-

de-se tomar parte nessas justas de boas maneiras,

físicas ou verbais, que constituem a vida na corte.

A grande prova de nobreza (pois os nobres são,

antes de tudo, guerreiros) é o torneio do tiro com o

arco; ele não conserva nada da brutalidade de uma

prova de habilidade ou de bravura (no sentido vulgar

destas palavras): é uma cerimônia musical dirigida

como um ballet, em que se deve ser hábil nas belas

saudações e elegante em seus trajes. Todos os mo-

vimentos devem ser feitos em cadência e a flecha que

destoar não pode nunca tocar o alvo (ou, pelo menos,

não é válida) (622). "Os arqueiros, avançando, recuan-


do, virando e voltando, devem atingir o centro (tchong)

das regras rituais. No interior, uma atitude correta

(tcheng) da alma, no exterior, uma atitude correta

(tche) do corpo, eis o que é necessário para se mane-

jar arcos e flechas, firmemente, cuidadosamente.

Arcos e flechas manejados firmemente, cuidadosa-

mente, eis o que permite dizer que se tocou no centro

(tchong) do alvo. E é assim que se faz conhecer a vir-

tude (tô)", não somente a virtude do vassalo que atira,

mas também a virtude de seu senhor - pois só

ele pode conduzir as flechas ao alvo: o suserano dimi-

nuía também os feudos dos senhores, cujos vassalos,

nobres desqualificados, demonstraram a lealdade in-

certa de seu amo, não sabendo atingir, corretamente,

o centro dos alvos (663). Mas de um príncipe que sem-

pre atira com o arco sem que "nenhuma flecha se

desvie" [oh! Como é digno de renome! - seus belos

olhos têm um brilho puro! - e como seu modo de tra-

jar (yi) é correto!"] dir-se-á, imediatamente, que ele

pode reinar; ele é belo, ele é puro: "Ele pode afastar

as calamidades! " (Sabe-se que os chefes antigos ex-

pulsavam as máculas com flechadas). Na corte do senhor

virtuoso, os vassalos atiram cada vez melhor e todos

com a mais perfeita cortesia: "Os sinos, os tambores

estão prontos! - o grande alvo está colocado! -

Arcos entesados e flechas preparadas! - Os arquei-

ros enfileiram-se dois a dois! -'Eu te proponho

(hien: termo que vale para os presentes depositados

em oferendas e para os desafios dirigidos a um rival)

provar tua arte!' - 'Vou prová-la - e tu beberás


à minha oração (k'i, oração dirigida a uma força santa,

humildemente, mas para constrangê-la a atender favo-

ravelmente o suplicante) (664)!'" O requinte é tal que a

taça (imposta ao vencido em vista de uma penitência e

de uma reconciliação) é-lhe apresentada como uma ho-

menagem. O gentil-homem "quando se esforça para

atingir o alvo", deve fingir procurar a vitória só por

humildade, para "declinar da taça" e passar a honra

(honra e taça são expressas com a mesma pala-

vra) (665). Passa-se generosamente a outro o reconforto

(Yang) honroso que é esta taça salutar com uma be-

bida (feita para restaurar as forças declinantes, mas)

reservada aos velhos a quem se deve respeitar. O

duelo com o arco, que se faz na corte entre pessoas

honradas, poupa, da maneira mais delicada, as susce-

tibilidades. lsto compreende um número infinito de ge-

nuflexões. É uma prova de boa apresentação e de disci-

plina mundana. Todo traço de brutalidade selvagem é

cuidadosamente dissimulado. Há um homem atrás de

cada alvo, mas ele não está lá para receber as flecha-

das; é simplesmente encarregado de gritar "toque!",

com uma voz harmoniosa e ajustada à nota dada pelos

músicos. É um analista que marca os pontos e há

um diretor do tiro. Ele calcula as flechas de cada par

de arqueiros e faz respeitar a boa ordem, encarrega-se

de chamar os faltosos ao dever, com o auxílio de uma

varinha. São assim consolidadas as regras da honra

que, depois de terem penetrado em todos, irão reger

a vida cotidiana(666). Se dois arqueiros rivais deci-

dem encontrar-se numa planície, eles atirarão um con-


tra o outro, como que regidos por uma música, os

dois ao mesmo tempo. Como os dois têm boa pontaria,

suas flechas devem se chocar no meio do percurso -

sem causar mal a ninguém (pelo menos se eles têm o

mesmo número de flechas). Pode acontecer que um

deles, muito inflamado pela vitória, esconda uma fle-

cha suplementar. O outro reterá o golpe delituoso com

uma varinha. Depois disto, "os dois, chorando (de com-

paixão, um pelo outro), depõem seus arcos, farão ge-

nuflexões no local, um diante do outro, convidando-se

(a viver, doravante, como vivem) um pai e um filho" e

se ligando para sempre por uma troca de sangue (tira-

do de seus braços) (667). Os torneios regulares do tiro

com o arco servem para purgar o espírito de vingança.

Com grande quantidade de gestos leais, um velho fun-

do de violência e traição se dilui e se ameniza: dissi-

mula-se a ponto de parecer apagado. Cada um se apre-

senta com uma aparência nobre. Esta roupagem de

lealdade (tchong) é representada com

o sinal coração e uma imagem mostrando a flecha

no centro do alvo) é a alma oficial do nobre, do ser

civilizado (wen: distinto), do homem verdadeiramente

homem (jen), o qual ao encontro de selvagens, sabe

compor sua dignidade. "As regras do cerimonial (li)

ensinam-nos, umas a moderar nossos sentimentos,

outras a fazer esforço para excitá-los. Dar livre curso

aos sentimentos, deixá-los (sem mais) seguir sua incli-

nação, é o caminho (virtude: tao) dos Bárbaros. O ca-

minho imposto pelo cerimonial é bem outro. O ceri-

monial fixa os graus e os limites (à expressão dos


sentimentos e, por conseqüência, aos próprios senti-

mentos) (668)." Do modo de se apresentar, do sentido

desta apresentação, surgem o controle, o domínio de

si mesmo. A vida da corte, com suas obrigações de

etiqueta e a ameaça perpétua de vinganças, é uma

escola de disciplina moral. Regulados minuciosamente

pelo protocolo, os gestos servem para inibir os impul-

sos. "Os ritos previnem a desordem, como os diques

evitam as inundações(669)." Os vassalos, em vez de

terem um coração tumultuoso, aprendem a ter uma

alma ordenada. Provam a qualidade de sua alma e de

seu destino nessas justas de gestos elegantes, que

são as cerimônias. Se dois senhores, apresentando

sua tabuleta, seguram-na, um muito alto e o outro mui-

to baixo, se eles se mantêm, um muito reto e o outro

muito inclinado, pode-se logo dizer que vão morrer

ou perder sua posição, pois "os gestos rituais (li)

são a substância corporal (ti: o corpo, o fundamento,

a base material) de (aquilo que faz) viver ou morrer,

conservar ou perder seu feudo. Julga-se o futuro se.

gundo a maneira de andar à direita e à esquerda, de

virar, de avançar, de recuar, de se inclinar ou de se

endireitar"(670). Os embates de cortesias permitem

definir e classificar os destinos: também as justas

de gestos rituais podem ter, com um valor de prova,

o aspecto de um concurso de adivinhações representa.

das por gestos. Quando se consulta a tartaruga para

reconhecer, entre os filhos, aquele que merece suce-

der ao pai que acaba de morrer, pode ser que ela tenha

a astúcia jocosa de responder: "Que eles lavem os


cabelos e o corpo, que coloquem em seu cinto as pe-

dras preciosas, e teremos um sinal!" Cinco dos

irmãos, imediatamente, banham-se e se preparam, mas

o sexto sabe que estes são gestos proibidos por oca-

sião do luto; ele tem o cuidado de continuar sujo e

sem ornamentos; a este pertence a herança (sem que

a divindade tivesse necessidade de dar um sinal su-

plementar) (671): se ele descobriu a armadilha da tarta-

ruga, foi porque ele se achava impregnado do senso

das conveniências. Ele possui, isto é claro, as virtudes

que se pedem a um filho. Sabendo o valor dos ritos,

ele pode provar que nasceu um gentil-homem.

A virtude da alma afirma-se na mímica cortesã,

embora ela fosse adquirida, antigamente, nas danças

sagradas. Cantava-se, dançando, e a força dos ritos só

se completava se a voz acompanhasse os gestos. A

voz é a própria alma, e isto porque a alma é modelada

pelos cantos, mais ainda do que a apresentação do

corpo. O cerimonial, para aperfeiçoar o homem hones-

to, faz menos do que a música. Vida militar ou vida da

corte, ballets guerreiros ou ballets mundanos, bem

mais do que uma escola de boa apresentação, são uma

escola de entonação. Entretanto, se a expressão inju-

riosa e a prece animam a gesticulação do combatente,

esta última (tecnicamente) parece desempenhar o pa-

pel essencial. Antes de tudo guerreiros, os nobres

provavam seu valor quando davam ao príncipe o servi-

ço: também as primeiras artes liberais são o tiro com

o arco e a direção dos carros. Todavia, a ciência da


bela linguagem acabou por se tomar a primeira das

artes nobres e o conselho por adquirir mais mérito do

que o serviço. A vida da corte decorre em cerimônias

e em discursos, mas, mais do que qualquer outra jus-

ta, os torneios oratórios ali surgem ricos de eficácia:

são, também, torneios cantados. Em 545, o senhor de

Tcheng recebeu, para jantar, Tchao Mong, poderoso

personagem da região de Tsin, cujas boas graças

Tcheng desejava obter (672). O duque de Tcheng estava

cercado pelos principais nobres de sua corte. Tchao

Mong pediu-lhes que cantassem "a fim de completar

o favor que recebia (do príncipe de Tcheng: pois os

cantos constituem uma homenagem) e, também, para

que lhe demonstrassem seus sentimentos". Todos,

com efeito, desnudaram sua alma, não inventando ver-

sos, mas escolhendo para cantar alguns versos do

Che king, adaptados às circunstâncias da reunião por

uma intenção secreta e pela entonação do cantor.

Tchao Mong respondia cada canção com um breve

comentário, indicando a interpretação que, pessoal-

mente, pretendia dar a essas homenagens prestadas

em versos. Tseu-tchan, o principal personagem de

Tcheng, foi o primeiro a pagar seu tributo. Ele cantou:

"O gafanhoto dos prados canta - e o dos outeiros

salta! - Enquanto eu não vir meu senhor - meu

coração inquieto, oh! como se agita! - Mas assim que

eu o vir - assim que a ele me unir - meu coração

então, terá paz! " (É uma canção de amor, mas entendi:

Tcheng quer se unir a Tsin, obedecendo ao primeiro

apelo desta rica região que administrais, senhor, vós


cujo prestígio perturba meu coração.) E Tchao Mong

em resposta: "Verdadeiramente perfeito! Mas trata-se

de um chefe (digno de administrar) um Estado, e, por

minha parte, por certo, não tenho nada que possa (fa-

zer-me) igualar a ele" (= aceito o elogio de minha re-

gião; eu o declino no que me concerne). Po-yeou (é

um nobre poderoso, bem aparentado, turbulento) can-

tou: As codornizes vão aos casais - e as pegas vão

aos pares - De um homem sem bondade (leang) -

irei fazer meu irmão? - As pegas vão aos pares -

e as codornizes aos casais... - De um homem sem

bondade farei meu senhor?" [É ainda uma canção

de amor. Po-yeou sugere (sentido indireto aparente,

interpretação diplomática) que é conveniente um acor-

do: entendei, se quiserdes (é tudo o que digo oficial-

mente): "Acho que uma aliança entre Tsin e Tcheng

(tal como é atualmente governado) será boa!" Mas

(sentido indireto encoberto), entendei (se aceitardes

a idéia de vos ligar secretamente a mim): "Tcheng é

governado por pessoas sem virtude cujo poder não re-

conheço." E Tchao Mong replicou (ele não confia no

êxito das intrigas de Po-yeou): "Tudo o que diz res-

peito às funções sexuais não deve nunca (ser ouvido),

transposto o limiar (dos apartamentos particulares)

e principalmente quando se estiver em campo aberto!

Eis coisas que ninguém pode escutar! (= eu não

escuto, pois não quero que suponham que compreendi,

mesmo pela metade, vossos subentendidos)." Foi a

vez de Tseu-si: "Os gloriosos trabalhos de Sie - o

duque de Chao os dirige! - Os terríveis chefes do


exército - o duque de Chao os inspira! " (Canto mili-

tar elogiando o chefe de uma expedição: Tchao Mong

cometerá a imprudência de tomar o elogio para si?) Ele

replica: "Na realidade trata-se de um príncipe [é a um

príncipe que se deve atribuir os méritos elogiados na

canção; do mesmo modo, a glória dos êxitos atuais

de Tsin (onde não sou mais do que um ministro) deve

ser levada ao ativo do príncipe de Tsin], mas eu, o

que pude?" (= Vós não me dominareis, fazendo-se

comprometer minha lealdade). A seguir, cantou Tseu-

tch'ang (que se tomaria o principal conselheiro de

Tcheng; Tseu-tch'ang mantém boas relações com Tseu-

tchan; ele se conserva à parte e retoma um tema ex-

posto por este, mas, se assim posso dizer, num tom

mais baixo): "As amoreiras do vale, que vigor! - sua

folhagem, que esplendor! - Assim que vejo meu se-

nhor - qual não é minha alegria! - Aquele que amo

em meu coração - está muito longe para com ele

sonhar! - Aquele que estimo do fundo do coração -

como poderei esquecê-lo" [= Não tenho merecimen-

tos para vos exprimir minha felicidade por uma alian-

ça mantida por vosso intermédio, mas posso vos asse-

gurar que sois um verdadeiro gentil-homem (kiun tseu:

senhor), cuja lembrança guardarei]. Tchao Mong, que

acabou de mostrar claramente sua lealdade, não re-

nuncia sua atitude prudente, mas não deixa de aceitar

as homenagens sem correr risco. Ele responde a Tseu-

tch'ang: "Eu me permito aceitar para mim (não, cer-

tamente, versos nos quais é empregada a expressão

kiun tseu, mas) a última estrofe (onde me assegurais


de vossa amizade pessoal)." Yin-touan cantou então:

"O grilo está na sala e o ano chega a seu fim! - Nós,

pois, por que não temos festas? - Os dias e os meses

fogem. - Portanto guardemos as medidas - e pen-

semos em nossa situação! - Amemos a alegria sem

loucura! - Um homem corajoso é circunspeto! E

Tchao Mong: "Perfeito, verdadeiramente! Trata-se de

um homem que conservará seu domínio: para mim, é

o que espero [também serei (em todas as circunstân-

cias) moderado e circunspeto]!" E, por fim, Kong-

souen Touan cantou: "Os verdelhões da amoreira agi-

tam-se! - sua plumagem, tem tanto brilho! - Estes

gentis-homens são amáveis - eles receberão os dons

do Céu!" Esta era uma canção de mesa e digna de

encerrar o serão. Tchao Mong replicou: "Nem turbu-

lentos, nem arrogantes! Os dons do Céu poderiam de-

saparecer?... " A justa acabara: os assistentes com-

taram os pontos. Os méritos estavam classificados,

podiam-se vaticinar os destinos: " Po-yeou será execu-

tado de maneira infamante. Os cantos traduzem os

sentimentos da alma. - Seu sentimento (levou-o) a

falar mal de seu príncipe... As famílias dos outros

seis (cantores - os quais mostraram uma alma leal)

conservar-se-ão (florescentes) durante muitas gera-

ções. A de Tseu-tchan (que cantou como um ministro

sábio) desaparecerá por último. Ele estava na mais

alta posição e soube se rebaixar. A família de Yin-

touan (Tchao Mong, depois do canto de Yin-touan, co-

mo depois do de Tseu-tchan, disse: "Perfeito") só de-

saparecerá antes (da de Tseu-tchan) porque ele exaltou


a moderação na alegria." Os vassalos, cantando, hon-

raram seu príncipe e seu hóspede, mas, ao mesmo

tempo em que se rivalizavam em inteligência com o

representante de um domínio vizinho, rivalizavam-se

entre si, velhacos ou leais, ávidos ou circunspetos, e

uma vez encerrado o torneio cantado em versos de

subentendidos diplomáticos, cada um deles, tendo

mostrado sua alma, fixou sua sorte e a dos seus. A

fidelidade se prova, a nobreza se adquire nas justas

oratórias. Um capítulo do Chou king (um dos mais de-

ploravelmente modemizados, mas onde foram anexa-

dos fragmentos de cantos) não nos mostra Yu, o Gran-

de (futuro soberano), levando vantagem sobre Kao-yao

(futuro ministro), depois de um embate de eloqüência,

numa das discussões presididas por Chouen (673)?

A palavra compromete o destino. Somente

aquele que sabe falar é nobre e pode servir seu prín-

cipe, tanto no conselho senhorial quanto nas cortes

rivais ou nas entrevistas dos senhores. "Não sejas

superficial falando! - Não vás dizer: 'Ah! que impor-

ta!' Ninguém, a não ser tu mesmo, contém tua língua

- nenhuma palavra deve te escapar! - Toda palavra

leva a uma réplica - e toda virtude, a seu pagamen-

to(674)!" Dizer, é fazer e é, mesmo, ter feito, pois

aquele que fala "sem que se possa replicar"(675) é,

seguramente, inocente, mas é culpado se não tem o

talento de dizer bem, nem um advogado que saiba

falar. O príncipe de Wei [631] é acusado de fratricídio,

incriminação bastante surpreendente, devido aos habi-


tos feudais: mas os'senhores de Tsin (que tem seus

olhos voltados para Wei) tomam ares de hegemons e

pretendem fazer reinar a justiça em nome do suse-

rano. Tsin apodera-se do acusado e o julga. Ele não o

faz comparecer pessoalmente: a lealdade, a desleal-

dade dos vassalos são suficientes para provar a pure-

za ou a maldade de seu senhor. Um súdito fiel, acom-

panhado de um advogado (fou) e de um defensor (t'a-

che) toma o lugar do senhor, como acusado (tsouo),

Como este trio não consegue fazer triunfar a causo

do príncipe de Wei, este é logo aprisionado como cul-

pado, mas antes (honorários justos), condenam-se à

morte seus defensores: dois são executados imedia-

tamente, o advogado beneficia-se de uma diminuição

de pena, pois ele devia, em apelação, defender sua

causa diante do suserano (676). É justo que os vassalos

paguem pelos atos do senhor e que o amo pague pelas

palavras de seus fiéis. O grupo feudal é um todo soli-

dário. Os atos do chefe maculam a honra dos vassalos,

suas virtudes conferem-lhes uma alma eloqüente, suas

faltas depojam-nos de toda autoridade verbal. Os fiéis

são os porta-vozes do senhor e o representam. Cada

um deles é chamado a desempenhar, com todos seus

perigos, o papel de arauto ou, antes, aquele no qual

se reflete melhor a virtude do chefe, é qualificado

para ser o arauto do domínio. Ts'i venceu Lou e o des-

pojou de alguns domínios; os dois príncipes[499] (677)

encontram-se para jurar uma nova amizade, mas Ts'i

deseja reduzir Lou a uma espécie de vassalagem.

Levanta-se o acampamento dos príncipes no campo;


ergue-se uma elevação de terra onde se sobe por três

degraus: ali será jurado o tratado. Ts'i (que é o mais

poderoso e o vencedor) deve jurar primeiro: a reda-

ção do juramento é dele. Se esta não satisfizer o povo

de Lou, eles deverão, imediatamente, improvisar uma

contra-cláusula. É preciso que eles conservem todo seu

sangue-frio e que seu príncipe seja auxiliado por um

arauto de uma lealdade imperturbável. O príncipe de

Lou faz-se assistir por Confúcio. O príncipe de Ts'i

ieva consigo um personagem famoso, Yen tseu, que

é hábil em discorrer, mas é bem mais astuto do que

leal: com efeito, Yen tseu é célebre por seus artifícios

e por seus estratagemas. (Ele conseguiu livrar o prín-

cipe de Ts'i, ao mesmo tempo, de três assassinos as-

salariados que poderiam se tomar turbulentos, e isto

simplesmente, propondo dar um pêssego aos mais va-

lentes dentre eles. Não havia senão duas frutas para

dar como prêmio. Bem entendido, teve-se o cuidado

de convidar para falar antes aqueles cujas façanhas

tinham menos brilho, e, em seguida, deixou-se que

pegassem os pêssegos. O mais valente suicidou-se

assim que se sentiu frustrado da honra do torneio.

Como ponto de honra, os dois outros o imitaram).

Cada um dos príncipes tem o assistente que merece-

O duque de Ts'i vive em meio a muitos excessos. Ele

ama o fausto: sua corte é repleta de músicos, de dan-

çarinos, de bufões. Yen tseu, seu favorito, que é hábil

em inventar gracejos trágicos, é um anão. Este pigmeu

despreza os ritos: ele ignora a arte de subir digna-


mente os degraus de uma escada e de andar com os

cotovelos estendidos, correndo a serviço do senhor.

É partidário das políticas positivas e não das formas

religiosas. Lou tem somente uma corte humilde, mas

é a região das tradições rituais. Também é um sábio,

um gigante, o apóstolo da sinceridade, o próprio Con-

fúcio que assiste o príncipe de Lou. Os dois príncipes

sobem o montículo de terra do tratado e se sentam

face a face, isolados e sem armas: forças nuas. Ao

longe estão os vassalos, ao pé dos degraus, os assis-

tentes. Outrora, num encontro semelhante, e numa

época em que Ts'i ainda queria impor a Lou um tra-

tado desastroso, houve, no acampamento de Lou, um

guerreiro que, subindo todos os degraus do monti-

culo, foi ameaçar o duque de Ts'i com um punhal, ex-

torquindo-lhe um juramento inesperado. Ts'i tinha, en-

tão, um príncipe e, por conseguinte, um ministro que

eram sábios; eles executaram com uma lealdade es-

crupulosa o juramento imposto pela força: isto trouxe

sorte para Ts'i. Mas os tempos mudaram, a vitória

está ainda do lado de Ts'i; entretanto, a lealdade e o

conselheiro leal estão ao lado de Lou. É, pois, Ts'i

quem, procurando confirmar pela violência uma vitó-

ria que a sabedoria não mereceu, tentará intimidar o

príncipe de Lou, isolado no local. Um oficial sugere

chamar os dançarinos: "Sim", diz o príncipe de Ts'i.

Logo avança uma massa de estandartes, de lanças e

de alabardas, num tumulto de tambores e de gritos.

Mas nada perturba a alma leal de Confúcio. "Com um

passo rápido, ele sobe os (primeiros) degraus do mon-


tículo, mas não o último, e levanta suas mangas no

ar." A etiqueta não permite a um vassalo fiel gestos

mais violentos. Mas, quando possui senso de digni-

dade, o vassalo possui a arte da palavra. No segundo

degrau, Confúcio falou. Yen tseu nada teve para re-

plicar. Graças ao talento de seu arauto, Lou superou

Ts'i; uma contra-cláusula foi inserida no tratado, para

prometer a entrega dos domínios arrebatados; e (como

toda justa entre prestígios de príncipes implica um

castigo aos vencidos - que são culpados) Confúcio,

para marcar o triunfo do direito, fez proceder a uma

execução. A tradição hagiográfica pretende que ele

fez esquartejar os bufões e os anões: não era a melhor

maneira de tomar evidente a derrota de um príncipe

desleal e inimigo dos ritos, cujo ministro não podia

ser senão um anão e um bufão? A alma do príncipe

fala pela voz do arauto e é ela que, nos torneios ora-

tórios que são as entrevistas dos chefes, conquista,

para o domínio, glória ou vergonha. O conselheiro elo-

qüente, numa época em que a batalha só consegue

meias vitórias, é, bem mais do que o general, o gran-

de conquistador do prestígio e o verdadeiro auxiliar

do senhor.

Mais ainda do que na guerra, a solidariedade

do grupo feudal se estabelece nas reuniões da corte.

É em conselho que os vassalos entregam-se ao prín-

cipe. Eles recebem do príncipe sua sabedoria, que

restituem sob a forma de advertências. Um domínio

é perdido se uma mesma virtude não animar todos


os vassalos, todos os conselheiros. "Parecer de acor-

do e se desacreditar -ah! eis aí o maior mal!"

"Encher de palavras a corte de audiências"(678) de

nada serve, se os corações não estiverem unânimes:

pelo contrário, é preciso que cada um "saiba" assu-

mir a responsabilidade (kieou: o efeito nocivo ou

feliz) dos conselhos que deu ou que outros preconi-

zaram, mas aos quais o senhor, em nome de todos,

aderiu dizendo "sim". Quando um conselho é adotado,

todos os conselheiros são obrigados a executá-lo, a

menos que tenham tido o cuidado de se eximir de

sua responsabilidade. Mas, repudiar uma decisão que,

Por princípio, não pode deixar de ser unânime, é sub-

trair-se do grupo feudal, é banir-se a si mesmo, é

maldizer-se, arriscando-se a maldizer seus pares e o

senhor. A admoestação (kien) - o conselho contrário

- é um ato inconcebível num domínio provido de um

bom destino. É um dever, um dever funesto, no con-

selho de um domínio que declina. O vassalo que plei-

teia uma causa contra os outros, condena-se a expiar

o efeito nocivo das decisões que repudia. A opinião

semelhante de três conselheiros constitui a unanimi-

dade do conselho. Um protesto, três vezes repetidos,

atinge a decisão com uma espécie de oposição sus-

pensiva; ela desliga provisoriamente a sorte, mas

comprometendo o destino do oponente. Este deve se

retirar, renunciar a seu cargo, expatriar-se: deve ex-

piar aquilo que atribui aos outros como uma falta.

Submeter-se seria "ficar apenas para odiar" e para

lançar sobre o ato decidido uma má sorte (679). O opo-


nente deve, salvo casos extremos, evitar maldizer os

outros e excomungar-se a si próprio. Quando o vassa-

lo, cujo conselho foi rejeitado, deixa o país, ele rompe

com sua pátria e com seus antepassados: ele não

pode levar a baixela de que se servia para seus cultos

patrimoniais. Perde seus deuses. "Assim que passou

a fronteira, aplaina a terra e levanta um montículo.

Volta seu rosto para sua região e se lamenta. Veste

uma túnica, uma roupa interna, um barrete bem orna-

mentado, de cor branca e sem bordas de cor (traje de

luto). Calça sapatos de couro cru, o encosto de seu

carro é coberto por uma pele de cão branco, os cava-

los de seu carro não têm mais seus pêlos cortados.

Ele deixa de aparar suas unhas, sua barba e seus

cabelos. Quando toma sua refeição, abstém-se de fa-

zer qualquer libação (ele é eliminado da comunhão

dos deuses). Abstém-se de dizer que não é culpado

(abstém-se também de se dizer culpado: somente um

chefe tem alma e autoridade suficientes para poder

se confessar formalmente culpado). Suas mulheres

(Pelo menos a mulher principal) não são mais admi-

tidas perto dele (sua vida sexual e suas relações da

vida em comum são interrompidas). Somente de-

pois de três meses é que ele retoma suas vestes

comuns(680)." O vassalo expatriado usa o luto pela

pátria perdida, mas é também seu próprio luto que

ele veste. Rompe os vínculos antigos e acaba com a

personalidade que, até então, foi a sua. Quando, no

fim de três meses, retira as insígnias do luto, deixou

de ser o homem de tal senhor e de tal região. Para


cessar de ser um oponente, ele deve morrer em sua

pátria. Todo tempo em que traz as vestimentas de

luto e em que se submete à abstinência, ele ameaça

seu senhor com um gesto de suicídio. Esta ameaça

tem uma força terrível e basta, mesmo dirigida a um

estrangeiro, para coagir a vontade. Um vassalo de

Tch'ou conseguiu obter para seu senhor vencido a

ajuda dos exércitos de Ts'in, lamentando-se durante

sete dias, apoiado contra uma parede do palácio do

príncipe, sem que o som de sua voz parasse e sem

que nem uma colherada de bebida entrasse em sua

boca (681). Quando se expatria e jejua, o Vassalo opo-

nente procura constranger seu senhor a fazê-lo repu-

diar os projetos aos quais não quer se associar. Pode,

em casos urgentes, empregar um procedimento mais

brutal. O príncipe de Tsin, convencido por sua mulher,

filha de Ts'in, libera generais de Ts'in que ele havia

vencido e aprisionado. Um vassalo apresenta-se, re-

preende o príncipe, depois "cospe no chão, sem se

voltar" (682). Lança, assim, a mais real das maldições

sobre a decisão do príncipe; uma alternativa terrível

impõe-se desde então ao senhor: é preciso que ele

renuncie à decisão maldita (o que fez o príncipe de

Tsin), ou bem, que condene à morte seu vassalo, in-

correndo, assim, em todas as responsabilidades de

uma execução que este havia provocado deliberada-

mente. Mas sem atrair o castigo, um vassalo fiel pode

libertar seu senhor da má sorte acarretada por uma

decisão inoportuna: é suficiente, para isto, que o opo-

nente exclame, mostrando com um gesto os conse-


lheiros da outra facção: "São estes que o quise-

ram (683)!" Se o senhor segue o conselho deles, mas

com a prudência de esboçar um gesto de restrição,

em caso de fracasso, o ato nefasto pode ser eliminado,

suprimindo-se os conselheiros perniciosos. Transfe-

re-se para estes a calamidade (684). Sem dúvida, é mais

digno da parte do senhor que ele reivindique para si

toda a responsabilidade e que diga: "Meus generais

e meus ministros não são mais do que meus braços

e minhas pernas", mas, se a teoria quer que o domínio

tenha uma alma, a do chefe, e se, em princípio, o

conselho deve ser unânime, na prática, a principal uti-

lidade da reunião da corte é determinar um respon-

sável para cada conselho: assim, as palavras pro-

nunciadas não empenham mais a sorte, de maneira

irremediável, num único sentido. Os arrependimentos

tomam-se possíveis, e já se acham designadas as

vítimas das expiações que se podem impor. No con-

selho, como na batalha, procura-se diluir as respon-

sabilidades, pois se hesita em se comprometer irre-

vogavelmente. Precisamente porque a palavra empenha

o destino e desnuda a alma, cada conselheiro prepa-

ra-se, não para falar sem dizer nada, mas, pelo menos,

para se exprimir somente com o auxílio de fórmulas

proverbiais. Estas impõem respeito por seu caráter

tradicional, mas se a tradição as consagrou, elas não

têm, por outro lado, mais do que um valor neutro e

são, sobretudo, suscetíveis de interpretações varia-

das. O ideal é que o conselho proceda como numa

justa de provérbios e que a decisão tenha o aspecto


de um enigma. O duque Hien de Tsin(659) delibera

para saber se confiará o comando do exército a seu

filho mais velho. Este é o herdeiro designado. Ele tem

sua facção na corte. Uma outra facção acha-se reuni-

da em redor de uma favorita do duque Hien que tem,

pelo filho mais velho, um ódio de madrasta. Esta

facção propõe nomear o jovem príncipe general; é o

melhor meio de perdê-lo. Se ele cometer o crime de

ser vencido, é culpado. Será culpado, já o é, se, ven-

cedor, ele se expuser à suspeita de querer empregar

contra seu pai o prestígio que a vitória confere. Os

amigos do jovem príncipe procuram fazê-lo escapar

desta prova. O duque de Tsin toma sua decisão: ele

dá a seu filho mais velho o comando das tropas, mas

quando lhe confere a vestimenta de general, nota-se

que o jovem príncipe irá vestir um traje com duas

partes e um semicírculo de metal. Cinco conselheiros

excelentes esforçam-se então para entender o sentido

do enigma apresentado por este traje. O resultado da

interpretação de uns é que o príncipe deve ir fran-

camente à frente, mas outros concluem que ele de-

verá evitar a batalha. A sutileza das discussões que

foram então mantidas dá idéia dos talentos oratórios

que eram exigidos de um conselheiro (685). É bastante

curioso constatar que a intriga travada sob a cober-

tura destas deliberações pomposas no Conselho de

Estado era conduzida, em segredo, por um bufão, que

era uma espécie de conselheiro íntimo. Os bobos, os

cantores, os bufões (686) desempenharam, nas cortes

feudais, um papel que se ampliou à medida que os


senhores, transformados em potentados, revestiam-se

de uma majestade mais exigente: eles só aceitavam

conselhos secretos e disfarçados. A arte da apologia,

cuja tradição era detida pelos bufões, permitia-lhes

dar a suas advertências, uma aparência verdadeira.

mente indireta. E, de resto, eles não falavam em nome

de um grupo feudal e suas conversas não tinham o

peso terrível que tem a palavra de um vassalo preso

ao dever brutal da sinceridade. Na corte como na

guerra, os especialistas tenderam a suplantar os no-

bres. Homens vis, mas instruídos na técnica dos can-

tos e preparados para inventar contos, substituíram,

no favor dos chefes, os vassalos cuja nobreza os tor-

nava hábeis para falar e cuja alma sincera se revelava

no emprego exclusivo dos versos-provérbios e das

formas rituais onde estava consignada a sabedoria

dos antepassados.

Ninguém pode trajar-se bem, portar-se bem e

falar bem, não se é sábio, não se é nobre, a não ser

que se possua, em si mesmo, qualquer coisa da alma

do senhor. O gentil-homem é aquele que come bas-

tante e sabe comer. É aquele que come os restos do

chefe e deve se saciar, pois só um senhor tem bas-

tante alma para poder simular desprezo pelo alimento

e se contentar com a virtude das oferendas. Aqueles

que se gabavam de pertencer a uma raça que, há

longas gerações, possuía um feudo e desfrutava um

salário nobre, gostavam de repetir este adágio antigo:

"Sseu eul pour hieou." Na verdade, esta fórmula, ou.


trora, significou: "De um morto não deixeis apodrecer

as carnes!", mas, enquanto as pessoas de sentimen-

tos distintos viam nela um conselho honesto: " (Deixai

sábios conselhos que) mesmo depois da morte, não

se corrompam!", os grandes preferiam compreender:

"(Numa raça nobre) a própria morte não traz cor-

rupção (a família continuando viva e forte)" e, sem

dúvida nenhuma, eles teriam desejado que isto fosse

exato, e que se pudesse dizer: "Depois de sua morte

(o corpo de um grande) não está sujeito à decompo-

sição(687)" - tanto é verdade que as mesmas idéias

que levam a inventar ritos que evitam ao morto os

horrores de uma lenta decomposição, podem também

fazer desejar uma conservação indefinida do cadáver

e (depois de lentas transposições) transformar-se, en-

fim, em simples preceitos de moral. Os nobres do

período feudal eram belos e puros de alma e de corpo,

porque sua alimentação era pura e rica, porque co-

miam devidamente iguarias bem preparadas e porque

as comiam ao lado do príncipe. Inúmeros alimentos

eram proibidos (688): tripas de lobos, rins de cão, miolo

de leitão recém-nascido, intestinos de peixe, coran-

chim de ganso doméstico, estômago de veado, moela

de abetarda, fígado de frango. Misturavam aos picados,

cebolas, na primavera, e, no outono, mostarda. Ao

caldo de codorniz ou de galinha e à carne de perdiz,

juntavam sempre-noivas; acrescentavam ervas odorí-

feras, mas nunca sempre-noivas, às galinhas e aos

faisões (quando os assavam), assim como às bremas

e às percas que cozinhavam no vapor. Quando comiam


boi em fatias, temperavam-no com gengibre. A carne

do alce, do veado, do javali e do gamo era servida,

cortada em fatias batidas e secas, ou crua, mas, neste

caso, era cortada em fatias muito finas. Como igua-

rias delicadas, eles tinham a carne do escargot, pi-

cada e conservada no vinagre, os mingaus de arroz

misturados com caldo de faisão, mingau de arroz

glutinoso moído grosso, misturado com caldo de lebre

e cão, os peixes recheados com sempre-noivas e com

ovas de peixe conservadas no sal. Além de bebidas

fermentadas, bebia-se água avinagrada e suco de amei-

xas. Raspava-se a pele dos pêssegos para tomá-la

esverdeada e brilhante como fel (o fel é a sede da

coragem). Nos festins, os mais distintos apresenta-

vam tartarugas grelhadas, brotos de bambu e de junco,

carpas picadas: estas iguarias convinham particular.

mente para tratar um militar a quem se oferecia, por

acréscimo, um pedaço de sal em forma de tigre (689).

As iguarias deviam ser servidas e consumidas numa

ordem fixa. Os pratos de carne, por exemplo, eram

dispostos em cinco fileiras: terminava-se pela caça

que precedia o peixe. Os utensílios da mesa eram

colocados de acordo com regras estritas. O peixe co-

zido era apresentado com a cauda virada em direção

ao conviva, mas de maneira que, no verão, as costas

estivessem à direita e, no inverno, o ventre. Na mesa

do príncipe, o bico das ânforas era virado em direção

ao príncipe e, em outra mesa, era virado em direção

ao principal convidado. Pegavam-se todos os molhos

e bebidas compostas de diversas substâncias com a


mão direita e se colocavam à esquerda. Era proibido

comer o painço de outra maneira a não ser com uma

colher, beber os caldos sem mastigar as ervas, beber

a salmoura como se estivesse pouco salgada, lançar

(com as varetas) o arroz ao ar para esfriá-lo, ou en-

rolá-lo em bolinhas para engoli-lo mais rapidamente.

Não se pegavam pedaços como fossem uma presa e

não se jogavam os ossos aos cães(690). Quando se

comia melão, partia-se este em dois e o cobria com

um guardanapo, se fosse para um príncipe; tomava-se

também o cuidado de parti-lo, mas não se colocava o

guardanapo, se fosse para um oficial graduado. Para

um simples nobre, limitava-se a cortar a parte infe-

rior. Quanto às pessoas do povo, elas cortavam o

melão com os dentes(691). Era necessário evitar as

mãos suadas, fazer barulho ou caretas com a boca.

Rasgavam-se as carnes cozidas com os dentes e, com

os dedos, as carnes secas. Não se punham nos pratos

os pedaços de peixe que se retiravam da boca(692).

Não se molhava a boca antes que o dono da casa

tivesse tocado em todos os pratos; devia-se começar

a comer antes dele e não parar enquanto ele não tives-

se terminado; na mesa de um chefe (era preciso to-

mar cuidado) devia-se evitar o ar glutão e prestar

atenção de se sentar sobre a esteira, mantendo-se um

pouco para trás (693). Mas, quando o anfitrião limpava

os cantos da boca com seus dedos, todos terminavam

a refeição bebendo, e depois que se ofereciam para

tirar a mesa, agradeciam, dizendo: "Estamos cheios!"

Entretanto não era conveniente que eles se retiras-


sem "dançando e pulando". Ameaçava-se com o "car-

neiro sem chifre" aqueles que suportavam mal a be-

bida: um vigia e um censor chamavam-nos à circun-

peção. "Nossos convidados, quando estão bêbados

- um grita e o outro vocifera! - Derrubando nossos

vasos, nossos potes - eles dançam, os corpos cam-

baleando(694)!" Se nenhum convidado "não se pode

Permitir de não se (dizer) saciado", por outro lado,

devem parecer saborear somente as iguarias. As car-

nes, nas refeições que os chefes oferecem, são cor-

tadas e não partidas em pedaços miúdos. Não se

aceita, senão com precaução, com uma mistura de

respeito e desconfiança, de altivez e humildade, a

dádiva do alimento que enobrece mas que subjuga e

enfeuda. No caso do vassalo de nascimento, o respeito

domina e ele não se dispensa de comer fartamente

a refeição que o senhor lhe oferece; mas ele deve

comê-la observando um perfeito decoro. "Se o prín-

cipe vos der seus restos para comer, comei-os em

seu próprio prato (pelo menos se este puder ser lava-

do depois de terdes comido)" pois o vínculo desta

comunhão será mais estreito do que se dividirdes

alimento e baixela. "Se o príncipe vos der uma fruta

com caroço, conservai o caroço em vosso seio": é

uma marca do favor. Se o príncipe vos der víveres,

comei-os, mas, sobretudo, guardai-os para vossos pais:

vós os reconfortareis, vós enriquecereis sua vida e

vós transferireis para uma geração mais velha vos.

sos títulos de nobreza (695).


O senhor nutre o vassalo. Este último possui

a nobreza que recebe do alimento e é fiel na medida

exata em que o nutrem. Um traidor fomenta uma

rebelião. Paga aos cozinheiros do palácio e aos lacaios.

Em lugar de preparar, cada dia, para os oficiais gra-

duados, os frangos aos quais eles têm direito, os

cozinheiros fazem patos e os lacaios, acentuando o

ultraje, tiram os patos e só servem o molho, isto é

suficiente para que se produza uma vingança e para

que explodam furores selvagens: "Gostaria de fazer

um leito com suas peles (696)! " O príncipe recebeu, de

um senhor amigo, um presente magnífico: uma gran-

de tartaruga marinha. Um vassalo, que se dirige à

corte, sente seu dedo indicador (o dedo com o qual

se come) agitar-se. "Quando isto me aconteceu, diz

ele, sempre comi uma iguaria maravilhosa." Mas o

príncipe, advertido do fato e aborrecido porque o vas-

salo tinha certeza, antecipadamente, de que iria par-

ticipar do festim, não o convida para comer. O vassalo,

descontente, mergulha seu dedo na caldeira, chupa-o

e sai. O príncipe pensa, imediatamente, em matar o

vassalo e o vassalo em matar o príncipe. Entre eles,

a comunhão foi rompida (697). Quando viu que seu se-

nhor preferia, a seus conselhos, os cantos perniciosos

das musicistas enviadas por um inimigo astuto da

região de Lou, Confúcio, a princípio, não se deses-

perou; ele quis esperar a época de um grande sacri-

fício, dizendo: "Se o príncipe enviar aos oficiais gra-

duados a carne do sacrifício, poderei ficar." Chegada

a ocasião, Confúcio não recebeu nada para nutrir sua


fidelidade; ele partiu então, como um excomungado,

condenando-se a "errar, sem fim, para cá e para

lá" (698). O que constitui o vínculo da vassalagem é a

comensalidade cotidiana com o senhor, mas o que,

propriamente confere, com a nobreza, um lugar na

hierarquia, é a participação nos sacrifícios senhoriais,

sacrifícios ao solo e, sobretudo, sacrifícios aos an-

tepassados do príncipe. Belos hinos cantam a glória

do senhor, cuja virtude feliz faz prosperar os campos:

ele pode oferecer sacrifícios suntuosos em que, figu-

rados por um representante escolhido na família, os

ancestrais vêm comer e tomar parte das colheitas:

depois eles festejam o príncipe e seus vassalos:

"Cuidai do fogo com respeito - levantai suportes que

sejam grandes: - fazei assar! fazei grelhar! - E

vós, princesa de aspecto grave - preparai vasos

numerosos! - Eis anfitriões e convidados - taças

que se oferecem ou que circulam! - Ritos e gestos

Perfeitos. - Ritos e discursos corretos! - O santo

figurando Espíritos - vai me pagar com grande feli-

cidade: - dez mil anos, em recompensa! - Eu me

dei inteiramente: - no rito, em nada faltei! - O

invocador diz seu oráculo, - pagamento do descen-

dente piedoso: -'Suave era a oferenda pia! - Os

Espíritos beberam e comeram! - Eles te auguram

toda felicidade - segundo teus votos, segundo as

regras! - Foste grave, foste ativo - foste cuidadoso,

foste correto. - Recebe, pois, para sempre, seus

dons - por miríades e cem mil.' - Acabados os ritos

e os gestos - sinos e tambores soai o fim! - Des-


cendente piedoso, eu me sento; - o invocador diz

seu oráculo: -'Os Espíritos beberam até se fartar!'

- O representante dos antepassados - sai ao som

dos tambores, dos sinos! - Parti, figurante dos Espí-

ritos! - E vós, servidores, e vós, princesa - tirai a

mesa depressa e sem demora! - Com meus tios,

meus primos - todos, juntos, festejaremos! - Os

músicos entram e tocam! - É para confirmar a feli-

cidade! - Eis ali as provisões, - nada desagrada e

tudo é pompa! - Repletos de vinho, saciados de igua-

rias - grandes, pequenos, dizem prosternados: 'Os

Espíritos beberam e comeram - dando ao senhor

longa vida! - Generosamente, até o dia alto, - fos-

tes pródigos, em tudo! - Filhos, filhos, netos, -

descendência contínua, seguir-vos-ão(699)!" Os vas-

salos contribuem para os sacrifícios do senhor. As

oferendas que remetem ao príncipe, este as entrega

a seus antepassados: esta consagração suprema en-

riquece com uma santidade augusta os víveres e as

bebidas do sacrifício. Comungando depois do senhor,

com os ancestrais do príncipe, os vassalos alimentam.

se, segundo sua classe, em santidade e nobreza. "De-

pois da oferenda, comiam.se os restos... (Em pri-

meiro lugar) o representante dos antepassados come

os restos (do sacrifício). Depois que (ele se sacia e)

se levanta, o senhor e seus ministros, quatro pessoas

(no total), comem seus restos. Depois que o príncipe

(saciado) levanta-se, os oficiais graduados, em núme-

ro de seis, comem (por sua vez) os restos: os vassa-

los comem as sobras do senhor. Depois que (saciados)


os oficiais graduados se levantam, os oficiais (simples

nobres), em número de oito, (comem por sua vez) os

restos: os menos nobres comem os restos dos mais

nobres (kouei). Quando os oficiais se levantam (sa-

ciados), eles levam os pratos para colocá-los embaixo

dos degraus da sala: todos os servidores se aproxi-

mam dos restos da refeição: os humildes [hia (baixo):

os que devem ficar embaixo dos degraus] comem os

restos dos superiores [chang (alto): aqueles que são

admitidos na sala das recepções]. O princípio que

regula a consumação dos restos é de fazer aumentar,

cada vez, o número de pessoas admitidas para con-

sumi-los: assim se marcam os graus de nobreza: eis

um símbolo da difusão das liberalidades do príncipe."

"Os mais nobres (aqueles que não comem muito, mas

do melhor) recebem as (carnes aderentes aos) ossos

mais nobres (os ombros, dizem, no tempo da dinastia

Tcheou); os menos nobres (aqueles que podem comer

muito, mas pior) recebem as (carnes aderentes aos)

ossos menos nobres(700)." Os vassalos pagam o tri-

buto em razão da dignidade de seu feudo; o senhor

redistribui-lhes as oferendas enriquecidas pela con-

sagração aos Espíritos; eles os cumula de substância

santa, mas retribui, cada um deles, nas proporções e

na ordem protocolares. Cada um obtém, para sua

classe, com um pedaço de carne de qualidade melhor

ou pior, um quinhão estritamente determinado de for-

ça sagrada e de nobreza. Mas, variável em qualidade

como em quantidade, esta força sagrada permanece

idêntica, para todos, em sua essência. Todos formam


um corpo de nobres: são os indivíduos do alto, aque-

les que são admitidos para comer, depois do chefe,

mas sobre o estrado do chefe, a comida da qual se

alimenta a alma dos senhores falecidos. Como o chefe,

eles têm uma alma que não irá, logo depois da morte,

perder-se no fundo da terra: ela habitará, bem alto,

nas regiões celestes onde os chefes defuntos ainda

têm sua corte e onde sobe, como fumaça, a gordura

queimada das vítimas. E, durante sua vida, eles terão,

em suas famílias, a santidade de um chefe, todo o

prestígio que permite comandar um grupo humano,

toda a virtude que pode fazer frutificar um domínio e

que dá o direito de ser um possuidor de terra. Quando

procede à primeira lavra, o chefe traça, para si, um

pequeno número de sulcos: logo toda a terra acha-se

fecundada e todas as primícias são alcançadas pelo

santo que retirou o caráter sagrado do solo(701). En-

tretanto, todos animados pela força sagrada que está

concentrada em seu senhor, e que, neles, está difusa,

mais numerosos no trabalho e cavando, cada um,

maior número de sulcos na medida em que são menos

ricos de nobreza e de virtude eficaz, os vassalos, na

ordem de sua dignidade, lavram depois de seu senhor:

eles adquirem, a seguir, um direito eminente (mas

subordinado ao direito do príncipe) sobre os campos

onde os camponeses só terão, rústicos como são,

que trabalhar - trabalho de vilões, que não confere

mais do que direitos vis.

Cada nobre é um chefe com virtude diluída.


Uma mesma alma habita no senhor e nos gentis-ho-

mens que constituem sua corte. Também o vínculo de

vassalagem implica uma adesão total de vontades.

Ele não difere do laço de parentesco, tal como existe,

na mesma época, entre pai e filho. O vassalo veste

luto pelo senhor com o mesmo rigor que veste luto

por seu próprio pai. O grupo feudal é uma espécie de

família, da mesma forma (como veremos) que a fa-

mília é uma espécie do grupo feudal. Como o agrupa-

mento doméstico, o agrupamento feudal é uma unidade

comunitária. Os membros do grupo são possuídos

pelo mesmo gênio, todos participando dele, mas de

maneira desigual, pois o grupo é hierarquizado. O

irmão que procura suplantar seu irmão, o vassalo que

quer destronar seu senhor (estas práticas eram coti-

dianas) não se colocam fora da lei do grupo: eles

esperam simplesmente por sua ordem. Não rompem

uma comunhão, não são culpados de um crime contra

a pessoa ou a família, mas unicamente de lesa-majes-

tade, e isto somente quando não têm êxito, pois o

sucesso faria brilhar neles uma majestade superior

àquela de sua vítima e esta seria o verdadeiro culpa-

do. Também, enquanto o esforço de um grupo homo-

gêneo pode tender unicamente a manter e a reforçar

uma união comunitária, o esforço do agrupamento feu-

dal se exercerá, com mais evidência, para manter a

ordem hierárquica que o grupo possui: é por isto que

as cerimônias que restauram periodicamente a co-

munhão dos vassalos são reguladas de modo a mar-

car, por dosagens protocolares, a parte de prestígio


que deve caber a cada um deles. Todo simbolismo

social tem por objetivo reforçar o senso de disciplina.

A disciplina é o ideal, porque a resistência à subor-

dinação é o fato. Ninguém pensa poder viver fora de

uma clientela, mas desde que faz parte desta clien-

tela, cada um possui em si uma parte desta virtude

contagiante que faz a majestade de um chefe reco-

nhecido. O chefe não tem outra ocupação além de con-

centrar em si o prestígio. Para que ele permaneça

majestoso, é preciso que seja um príncipe ocioso.

Mas desde que se impõe uma ação, só um vassalo

pode executá-la, e ele não pode agir a não ser com

o auxílio de uma delegação da virtude do príncipe.

Ora, se ele comprometer, por um revés, a santidade

do senhor, ou, tendo obtido grande êxito, santificar-se

mais do que o desejável, ele atenta sempre contra a

dignidade do senhor. Arauto ou general, o vassalo

(pois nada distingue o devotamento absoluto da am-

bição facciosa) condena-se a expiar, se decidir, ver-

dadeiramente, agir. Para se mostrar um servidor leal

de maneira evidente, é preciso que seja, não comple-

tamente, talvez, um ministro ocioso, mas muito estri-

tamente, um ministro que não age senão na fórmula

e para a fórmula. A sinceridade (tch'eng), que é o

primeiro dever do vassalo, define-se por uma conduta

de conformidade absoluta às leis da etiqueta. Quem

quiser se manter fiel, deve mostrar claramente que

não age, não pensa e nem sente a não ser segundo

as regras protocolares. Tudo na vida pública não é

mais do que ostentação e ostentação regrada. E assim


até o momento em que os técnicos superam a velha

nobreza no favor dos príncipes. Mas, quando o con-

selho privado, ou, ainda pior, a corte dos legisladores

substitui a corte dos vassalos, seus torneios e seus

discursos, os dias da nobreza feudal terminam. É ver-

dade que o homem honesto vai substituir o gentil-

homem; este último estava apto a fazer todos os

serviços: o outro se vangloriará de tudo saber. - Du-

rante longos séculos em que reinou, a disciplina feudal

fez com que os Chineses adquirissem preciosas vir-

tudes. Reconheceram os méritos do formalismo, dos

gestos regulados, das fórmulas feitas. Compreende-

ram o valor moral do conformismo. Propuseram-se,

como dever essencial, a prática da mais completa e

da mais autêntica lealdade; tiveram a sabedoria de

defini-la por uma adesão formal a um conjunto de

convenções consagradas, de hierarquias estabeleci-

das, de boas tradições. Fizeram da sinceridade e da

honra os princípios fundamentais de sua conduta e

de seu pensamento. Codificaram estritamente a prá-

tica destas virtudes e decidindo devotar sua vida ao

culto da etiqueta, conseguiram evitar as perturbações

acarretadas por uma busca anárquica do justo e do

verdadeiro.

A vida privada
O respeito filial, em toda a antigui-

dade, se quisermos acreditar nos

Chineses, constituiu, entre eles, o

fundamento da moral doméstica e

mesmo da moral cívica. O respeito

devido à autoridade paterna é con-

siderado o maior dos deveres, o primeiro dever do

qual emanam todas as obrigações sociais. Se o prín-

cipe merece ser obedecido, é porque o povo reco-

nhece nele um pai. A autoridade de um governo, seja

ele qual for, parece ser sempre de essência patriar-

cal, pois os deveres para com o Estado são represen-

tados como uma extensão dos deveres familiares. O

súdito fiel é fruto do filho respeitoso. Quando o pai

ensinou o respeito (hiao) a seu filho, ele aprendeu a

lealdade (tchong). O pai é, pois, o primeiro magistra-

do e, mesmo, segundo a teoria clássica, ele não retira

esta magistratura de uma delegação: ela lhe pertence

em virtude de um direito fundado na natureza.

Estas concepções correspondem a sentimen-

tos tão consolidados hoje que os Chineses podem se

sentir justificados declarando-os inatos. Mas estes

sentimentos têm uma história. Eles foram inculcados

à nação graças ao esforço de propaganda de uma es-

cola de ritualistas e de mestres de cerimônias. Estes

tiraram os princípios da moral nacional, aplicando-se

em analisar os usos em vigor na nobreza feudal. Deste

trabalho de análise resultam dois rituais: o Yi li e o

Li ki, que servem para ilustrar inúmeras coletâneas


de particularidades históricas. Estas coletâneas apre-

sentam-se como narrativas da história, enquanto que

os rituais são colocados sob o patrocínio distante de

Confúcio. Entretanto, sua redação definitiva data da

época dos Han, mas desde então, tomam uma espécie

de valor canônico. São lidos para que neles se en-

contre o código dos bons costumes; ninguém ousaria

imaginar que estes costumes não foram os dos antigos.

Em compensação, desde que se leva em conta

os dados históricos, percebe-se que, longe de nascer

de uma simples codificação de sentimentos naturais,

as regras do respeito filial derivam de antigos ritos

pelos quais se obtinha, primitivamente, a filiação

agnática. Foi somente ao término de uma longa evo-

lução que o pai e o filho se consideraram parentes.

O primeiro vínculo que os uniu foi um vínculo de en-

feudação, vínculo jurídico e não natural, e, além disto,

vínculo de natureza extrafamiliar. O filho não consi-

derou seu pai um parente senão depois de tê-lo re-

conhecido seu senhor.

É conveniente, pois, inverter o postulado his-

tórico que constitui a base das teorias chinesas. A

moral cívica não é uma projeção da moral doméstica;

pelo contrário, é o direito da cidade feudal que im-

pregna a vida doméstica. Quando, sob a influência

dos rituais, o princípio agnático comandou, sozinho,

a organização familiar, o respeito do filho pelo pai,

aspecto particular da lealdade em relação a um se-

nhor, pareceu, estendido a todas as relações fami-


liares, ser a base do próprio vínculo de parentesco.

Daí um traço característico da vida privada dos Chi-

neses, tão importante que devemos insistir longamen-

te sobre ele. Como a ordem doméstica parece repou-

sar inteiramente na autoridade paterna, a idéia do

respeito tem primazia absoluta, nas relações da famí-

lia, sobre a idéia da afeição. Regulada pelo modelo

das reuniões da corte, a vida doméstica prescreve

toda familiaridade. Reina a etiqueta e não a fami-

liaridade.

l - A família nobre

Além do interesse histórico que apresenta, em

razão de sua influência sobre o desenvolvimento dos

costumes chineses, a organização da família nobre na

China feudal é de grande interesse sociológico. Esta

família é de um tipo bastante raro e muito curioso,

pois é um tipo de transição. Ela ocupa, na verdade,

um lugar intermediário entre a família agnática indi-

visa e a família propriamente patriarcal (702).

Maior do que a família patriarcal, ela não com-

preende, no entanto, o conjunto de agnatos. Não é

indivisa. Além de um certo número de graus, o paren-

tesco se atenua. Certas obrigações não ultrapassam

um círculo determinado de parentes. Outras se acham

limitadas a um círculo menos amplo ainda. Mas o

menor dos círculos compreende sempre os colaterais


e não apenas um pai com seus descendentes. Não

basta que um pai morra para que todos seus filhos

adquiram o poder paterno. Apenas o primogênito pode

ser investido, imediatamente, de uma autoridade.

Assim a família, que não é indivisa, também não é

patriarcal no sentido estrito do termo. A autoridade

paterna é reconhecida, mas é limitada e subordinada

a outras autoridades. Os direitos do tio mais velho

entram em competição com os do pai. Os deveres

dos filhos diferem conforme são mais velhos ou mais

moços. A autoridade, enfim, não é exercida, em todos

os domínios ao mesmo tempo, por uma pessoa única.

O conjunto de parentes acha-se dividido em grupos

distintos, com funções diferentes, mas cujos chefes

são enfeudados, uns aos outros. Agrupamento amplia-

do de agnatos distribuídos em clientelas hierarquiza-

das, a família nobre'forma um corpo articulado, uma

unidade complexa na qual não se levanta, entretanto,

nenhuma autoridade que disponha de um poder ver-

dadeiramente monárquico.

1.° - A organização doméstica

A comunidade de nome (t'ong sing) é o ele-

mento essencial do parentesco; a de culto (t'ong

tsong) é o princípio da organização doméstica (703).

Todos os que trazem o mesmo nome são pa-

rentes e, ligados a deveres definidos, formam uma

família (sing). Por outro lado, os parentes acham-se

distribuídos num certo número de grupos culturais

(tsong). Os tsong são mais ou menos vastos. Eles


nunca compreendem mais do que parentes ligados

por laços definidos a um ancestral comum, aquele

cujo culto é celebrado pelo grupo. Assim, enquanto

que o parentesco não repousa em relações de proxi-

midade natural, é em consideração aos laços indivi-

duais que são constituídas as comunidades religiosas,

cuja reunião forma a grande família.

Na família camponesa, que é uma família indi-

visa, o nome é o sinal do parentesco; sinal carregado

de realidade, símbolo rico de sentimentos, ele implica

uma virtude (tô) e caracteriza uma espécie (lei). Na

família nobre (e é uma razão para se achar que ela

deriva, por evolução, da família indivisa), o parentes.

co define-se também pela identidade de nome (sing).

Dois grupos familiares nobres são aparentados se

usam o mesmo nome, e isto, mesmo quando não se

conhece nenhum ancestral comum. O nome não de-

pende em nada dos laços do sangue: nenhum tipo de

afastamento, nenhuma complicação de alianças, fa-

zem o nome perder a força que tem de criar o paren-

tesco. Quando um nome de família chinês é dado a

um agrupamento bárbaro, todos os Bárbaros do grupo

usam este nome (704). O nome possui o indivíduo mais

do que o indivíduo o possui. Ele é inalienável. A mu-

lher casada deixa de depender inteiramente do chefe

de sua família e seus deveres de respeito filial acham-

se, pelo casamento, se não suprimidos, pelo menos

atenuados, embora ela conserve seu nome. O órfão

que acompanha sua mãe junto a um segundo marido,

contrai, em relação a este último, vínculos de depen-


dência que lhe impõem o respeito de um filho. Uma

coabitação prolongada pode torná-lo o continuador do

culto de seu padrasto. No entanto, ele não pode adqui-

rar seu nome(705). Esta regra demonstra bem que os

princípios do parentesco e os que fundamentam a

organização doméstica da nobreza pertencem a dois

domínios diferentes. Um fato atesta o primado do pa-

rentesco: em condições normais, só pode ser adotado

como sucessor aquele que, antecipadamente, usar o

nome do adotante (706).

A comunidade de nome (t'ong sing) implica um

certo número de deveres característicos: entre pa-

rentes não pode haver casamentos nem vinganças.

As justas de vingança, como as justas sexuais, são os

meios pelos quais se medem e se aliam, aproximam-

se e se opõem, aqueles que não são unidos pela iden-

tidade de nome e de natureza. Esta identidade, pelo

contrário, obriga a tomar parte nas mesmas lutas e

nas mesmas alianças. Todos os parentes devem au-

xiliar o vingador principal de um parente assassi-

nado (707). Quando se conclui uma aliança matrimonial,

todos os grupos do mesmo nome dela participam:

companheiras seguem a noiva para junto de seu ma-

rido, enviadas por dois grupos diferentes. Três grupos

fornecem, então, a prestação nupcial. Três é um total

e a prestação tripla atesta que o parentesco inteiro

dela participa. Fato significativo, a prestação de com-

panheiras deve ser espontânea: é tanto um direito

como um dever (708). Os vínculos do parentesco impli-


cam a igualdade e a indivisibilidade.

São muito diferentes os vínculos que resultam

da dependência a uma comunidade de culto (t'ong

tsong). Estes são suscetíveis de graus e implicam uma

hierarquia. Os membros de uma família particular

(chou sing) usam um nome (cognome: che) que lhes

pertence: em teoria, os parentes que não descendem

de um mesmo trisavô podem se distinguir, adotando

um nome secundário (che). Esses nomes não são no.

mes de família. Os nomes de família (sing) constituem

um obstáculo ao casamento, mesmo quando não há

nenhuma comunidade de ascendência aparente. Aque-

les que usam um mesmo cognome (che) podem se

unir pelo casamento, se são de sing diferentes, mas,

neste caso, não podem participar destes ágapes fami-

liares aos quais tomam parte pessoas de um mesmo

sing e nos quais as posições são fixadas de acordo

com a idade (literalmente: de acordo com os den-

tes)(709). Estas comunhões igualitárias são significa-

tivas do parentesco, que é de natureza indivisa e

fundado na idéia de consubstancialidade. As pessoas

com um mesmo cognome estão " ligadas pelo alimen-

to", mas de um modo diferente. Pertencendo a uma

mesma organização de culto, elas se reúnem para

tomar parte nos banquetes do culto dos Ancestrais:

estes banquetes, que têm uma função comunitária,

não se parecem com os ágapes igualitários. Cada uma

traz sua cota-parte, mas, em lugar de reuni-la à massa,

entrega-a ao chefe do culto. Cada uma recebe seu lote


de comida, mas as partes, fixadas, como as contribui-

ções, por regras protocolares, são feitas pelo chefe

e, distribuídas por ele, são recebidas como uma dá-

diva: há uma comunhão, mas comunhão hierarquizada.

Uma família particular (chou sing) é dividida

em grupos de culto de posição desigual. Embaixo es-

tão os grupos formados por irmãos que, reunidos com

seus descendentes em redor do mais velho, prestam

um culto ao pai defunto. Essas comunidades fraternas,

que formam a menor unidade doméstica, já têm uma

organização hierarquizada: elas reconhecem o privi-

légio de primogenitura. Um filho que não é o principal

herdeiro de seu pai não pode lhe fazer oferendas: ele

toma parte, simplesmente, nas oferendas feitas pelo

primogênito(710). Uma comunidade superior, dirigida

pelo tio mais velho, reúne os descendentes de um

mesmo avô: as comunidades fraternas são ali englo-

badas, cada uma com a posição determinada pela de

seu chefe. Acima está o grupo formado por todos os

descendentes de um mesmo bisavô, mais alto, aquele

que celebra o culto de um trisavô comum. Essas qua-

tro espécies de grupos de culto podem se reunir a

grupos análogos para celebrar o culto de um antepas-

sado mais longínquo, o antepassado mais antigo co-

nhecido por todos os grupos que usam o mesmo

cognome e que não se separaram para formar uma

família particular (chou sing). O chefe desse grande

grupo (ta tsong) é o chefe do grupo mais alto da linha-

gem direta. Esta organização doméstica, que faz con-

traste com uma concepção de parentesco fundamen-


tada na indivisibilidade, relaciona-se estreitamente

com o culto dos Ancestrais. Este é um privilégio dos

nobres, que são os únicos a ter direito de possuir um

templo ancestral. Ora, a ordenação do templo conser-

va a marca de uma organização indivisa antiga sobre

a qual parece ter-se sobreposto a organização em

clientelas hierarquizadas. Indicaram-se acima inume-

ras razões justificando a idéia de que o princípio ute-

rino, superando, inicialmente, o princípio agnático,

tomou força assim que uma noção jurídica da filiação

tomou alguma importância na organização indivisa.

Vale a pena citar aqui um adágio dos rituais chineses:

"Os animais conhecem sua mãe e não seu pai. Os

camponeses dizem: 'pai e mãe, por que distinguir?'

Mas os nobres das cidades sabem honrar seu pai de-

funto(711)." Se as mulheres, mães da aldeia na qual

seus maridos não eram mais do que cônjuges anexa.

dos, foram, inicialmente, as mães das crianças da

aldeia, explica-se porque o termo exprimindo a afei-

ção dos filhos por suas mães (tsin) serviu para desig-

nar ambos os pais e caracterizou os sentimentos im-

plicados pelos laços de parentesco, mas que, em com-

pensação, não pode ser empregado para designar os

sentimentos inspirados pelo pai. O pai não pode ser

tsin, próximo; ele é tsouen, respeitável, e este último

termo (exprimindo exatamente o que são, na China,

as relações de pai para filho) evoca a idéia de res-

peito que exige a distância, respeito que vai do infe-

rior ao superior (tsouen) (712). Mas, fato significativo,

embora o avô mereça, mais ainda do que o pai, ser


honrado como um superior, ele é considerado tsin,

que é um próximo, um parente, e, na verdade, são

permitidas familiaridades com o avô que, da parte do

pai, seriam julgadas inconvenientes. Esta situação pri-

vilegiada explica-se pelo fato de que antes de ser

contado na linha agnática, o avô, viu-se mais acima,

ocupou, inicialmente, como tio materno da mãe, um

lugar entre os parentes uterinos. Ocorre o mesmo

com o trisavô, enquanto que o bisavô (como o pai),

só pôde passar por um parente quando, por sua vez,

o princípio agnático superou o princípio uterino. Ora,

precisamente, a idéia de que os membros de duas

gerações agnáticas consecutivas são distantes, en-

quanto que são próximos os representantes de gera-

ções alternadas, explica, e explica sozinha, a ordena-

ção do templo ancestral reservado aos agnatos e a

suas mulheres. Esta ordenação (chamada ordem tchao-

mou) exige que as tabuletas do pai e do filho, do

bisavô e do bisneto sejam colocadas em duas linhas

opostas, enquanto que figuram, numa mesma linha,

as tabuletas do neto e do avô. Assim também, quando

se reúnem para celebrar o culto, os vivos devem se

colocar em dois grupos fronteiros, com os membros

de duas gerações consecutivas defrontando-se, en-

quanto que os membros de gerações alternadas se

misturam num mesmo grupo(713). Enfim, quando um

menino se encontra qualificado para presidir a uma

cerimônia religiosa e que, muito pequeno, deve ser

carregado, um membro da geração do pai da criança

não pode desempenhar esta função. A criança deve


ser carregada por um representante da geração de

seu avô e é a partir desta regra, distanciada de seu

sentido ritual e tomada num sentido moral, que se

justificam as familiaridades permitidas entre avós e

netos, proibidas entre pais e filhos (714).

Da organização em grupos de culto nasceu uma

representação nova da idéia de parentesco. Este,

quando a família era indivisa, confundia-se com a idéia

de consubstancialidade. Mas, entre os nobres, qualifi-

cados para celebrar um culto ancestral, as refeições

feitas no templo dos Ancestrais são mais freqüentes

e têm mais prestígio do que os ágapes onde se reú-

nem todos os que usam o mesmo nome. O parentesco

criado pela comensalidade sacrificial parece mais for-

te entre aqueles que se reúnem com mais freqüência

para se banquetear. E, na verdade, entre os nobres,

assim como há (além do grande tsong) quatro grupos

de culto, há quatro classes de luto que servem para

medir o parentesco colateral. O parentesco é mais

fraco (e as observâncias do luto menos pesadas)

quando os colaterais, fazendo parte de um grupo de

culto mais vasto, encontram-se, com menos freqüên-

cia, nas comunhões do templo ancestral. Os vínculos

de parentesco, embora resultem ainda da dependên-

cia a um grupo, parecem derivar da proximidade, pois

variam em função desta. Mas as comunhões sacrifi-

ciais do Templo ancestral distinguem-se, por uma

outra característica, dos banquetes igualitários da fa-

mília indivisa. O chefe de cada grupo de culto desem-


penha, como celebrante, um papel importante. É por

seu intermédio que os membros do grupo comunicam-

se com os ancestrais e se comunicam entre si. O

sacrifício que precede a comunhão parece servir para

concentrar no chefe do culto uma virtude que depois

ele faz circular entre os fiéis. Esta virtude não se dis-

tingue da essência familiar, mas, no chefe, centro do

culto no qual ela se exalta, parece tomar um caráter

augusto e qualquer coisa de sublime. Quando passa

do chefe aos fiéis, ela transmite mais do que um sim-

ples princípio de consubstancialidade; a felicidade

lfou) que ele distribui com as carnes do sacrifício, é

dada aos beneficiários como uma parte de prestígio,

um quinhão de autoridade e de força. Ninguém ima-

gina que a virtude da qual se sente acrescido, possa

proceder senão de si mesmo, brotando nele como em

cada um dos seus: ele a considera o ressurgimento

de uma fonte de autoridade que só o oficiante do

culto pode fazer jorrar. É este último que parece ser

o autor do princípio de parentesco que une, entre si,

os membros de um grupo familiar. Os vínculos de

família, se eles continuam a fazer supor, entre paren-

tes, uma essência imanente, implicam, de uma ma-

neira mais sensível, a idéia de um princípio de pres-

tígio cuja transcendência se pressupõe e ao qual se

atribui uma ação criadora. Reconhece-se, pois, no che-

fe do culto, uma espécie de posição eminente que

requer um luto de qualidade superior (luto de primei-

ra classe). Ascendentes e primogênitos, destacados

do resto da parentela, surgem como os criadores do


parentesco. Representações mais graduadas e suces-

sivas de análise, as idéias conjuntas de poder domés-

ticos e de filiação superam o sentimento mais obscu-

ro das identidades substanciais.

Entretanto, enquanto dura a ordem feudal, as

noções de poder doméstico e de filiação não chegam

a se combinar o suficiente para que surja a idéia de

poder paterno. O direito de presidir um grupo de culto

constitui uma espécie de autoridade sacrificial que,

delegada pelo senhor quando ele confere a nobreza,

é herdada, assim como a autoridade senhorial, sem

partilha e por meio de primogenitura. Um filho mais

moço não pode possuir tal autoridade, pelo menos

enquanto vivo. Se todo o pai, mesmo não sendo primo-

gênito, tem direito a que todos seus filhos usem por

ele o luto mais alto, é porque a morte fará dele um

ancestral cujo culto será celebrado por uma comuni-

dade fraterna. Mas um filho mais moço que vê morrer

antes dele seu filho primogênito não tem o direito de

pranteá-lo com as honras conferidas, quando se é che-

fe de culto, a um sucessor eventual. Um filho mais

moço não pode, na verdade, distinguir, em detrimento

de seus sobrinhos, nenhum de seus filhos, mesmo o

primogênito. Estas regras mostram que a hierarquia

que caracteriza a família nobre tem por princípio o

estabelecimento do culto dos Ancestrais e não uma

autoridade natural resultando do fato da paternidade.

Mostram também o poder de resistência da velha or-

ganização indivisa. Embora os grupos de culto tenham


um chefe, embora a parentela pareça resultar da su-

jeição comum a este chefe, o princípio da indivisibili-

dade conserva sua força. É assim que na comunidade

fraterna (grupo t'ong ts'ai) todos os recursos (ts'ai)

são, em princípio, comuns (t'ong). Se há superabun-

dância na casa de um irmão mais moço, o excesso

deve ser remetido ao primogênito. Este, em compen-

sação, deve prover às necessidades dos mais moços

se os recursos forem insuficientes(715). Assim tam-

bém, o dever e o direito de tutela pertencem, indivisa-

mente, ao grupo de primos: ninguém pode se encar-

regar da tutela de um estrangeiro enquanto ainda tiver

sobrinhos (716). A autoridade do chefe do culto acha-se

limitada pelos direitos preeminentes da comunidade:

se o chefe de um tsong não tiver filhos, ele pode e

deve adotar um sucessor, mas, obrigado a adotar, ele

não possui a liberdade de adoção. A escolha do su-

cessor, longe de ser deixada a sua discrição, é-lhe

ditada por regras imperativas(717). Ele deve tomá-lo

no grupo de culto mais próximo.

Como o direito feudal público, o direito domés-

tico dos tempos feudais é um direito de transição,

mal fixado e móvel. As regras de sucessão são ins-

táveis, mesmo nas famílias senhoriais. O princípio do

morgado é, muitas vezes, contestado. Nem sempre

domina o princípio da sucessão fraterna. Freqüente-

mente, a escolha do herdeiro é determinada por uma

intervenção de parentes ou de vassalos: estes ba-

seiam sua preferência em regras concorrentes(718).


Pode acontecer, por exemplo, que a herança não cai na

ao filho, representante do ramo mais velho, senão de-

pois de ter sido conservada por toda a série de irmãos

mais moços do pai ou pelo menor destes últimos (719).

Pode acontecer ainda que, entre os filhos, o herdeiro

não seja qualificado para usar o título de primogênito:

a escolha dirige-se para aquele cuja mãe possui mais

prestígio. A cada passo, encontra-se, nas crônicas, a

menção de fatos implicando a vitalidade dos direitos

pertencentes às comunidades indivisas e, mesmo, a

vitalidade das regras inspiradas pelo velho princípio

uterino. A organização familiar descrita pelos rituais

surge antes como um ideal do direito do que como

uma realidade de fato. As instituições patriarcais en-

contraram, na ordem feudal, um meio favorável. Elas

não se realizaram completamente, mas o suficiente,

no entanto, para que o pensamento jurídico, operando

sobre as regras próprias da organização do culto, te-

nha sabido tirar delas os princípios do direito domés-

tico que devia se impor depois do desaparecimento

da nobreza feudal, se não à nação inteira, pelo menos

a todas as classes altas da sociedade. Mas, desde o

Período feudal, parece definitivamente consolidada a

idéia de que o parentesco, resultando da comunidade

de culto, implica um vínculo de dependência em rela-

ção ao chefe do culto. Esta idéia é o princípio do

Poder que coube ao pai de família.

2.° - A autoridade paterna


A autoridade do pai de família deriva, não de

um direito de comando que recebe de sua paternida-

de, mas do fato de que o filho, e mais exatamente o

filho mais velho, considera-o um futuro ancestral. Des-

tinado a presidir ao culto paterno, detendo assim um

poder sobre seus irmãos mais moços, o filho trabalha,

durante a vida de seu pai, para alimentar neste a san-

tidade que o qualificará para seguir uma carreira an-

cestral. Ele o faz viver nobremente. Ele o trata como

chefe. Ele lhe traz as homenagens que conferem a

qualidade de senhor. Prepara-se, se assim posso dizer,

para ser seu sacerdote, sendo, primeiramente, seu

fiel. A vida do filho (do primogênito, pois, na verdade,

o pai só tem um filho - que tem irmãos) consome-

se inteiramente num longo esforço para se filiar a seu

pai. Estabelecer esta filiação é mais difícil em razão

das sobrevivências do direito uterino pois pai e filhos

são dotados de gênios diferentes(720). A intimidade

entre eles é coisa impossível: suas tabuletas nunca

se reunirão; peIo contrário, elas estarão sempre opos-

tas no templo ancestral. Mas é precisamente esta

ausência de parentesco que permite ao filho enfeu-

dar-se e ao pai arrogar-se uma força senhorial. Para

definir a autoridade do pai, os Chineses dizem, como

dizem do senhor, que ele é tsouen, respeitável; que

ele deve ser severo, distante (yen); que ele é "o

Céu"; que ele comanda o filho como o yang comanda

o yin. O filho fica junto do pai como o vassalo junto

do senhor e - nada mostra melhor as origens feudais

do poder paterno - todos os ritos pelos quais o filho


se aproxima do pai, todos os ritos que criam a filia-

ção agnática não se distinguem daqueles pelos quais

se faz ato de vassalagem.

O fato da paternidade, em si mesmo, não gera

nenhum vínculo. Um homem pode tratar como filho a

criança nascida de sua mulher, mesmo quando ele

não a gerou ou quando, por exemplo, ele obteve seu

nascimento depois de ter aberto seu harém a seus

protegidos (721). Em compensação, o fato de ser o filho

da esposa não implica nunca o direito de ser consi-

derado filho pelo marido. Há, originariamente, tanta

distância entre o filho e o pai quanto a gravidez, longe

de aproximar os cônjuges, afasta-os. O marido e a mu-

lher se separam assim que o embrião se forma per-

feitamente (tch'eng), três meses antes do parto: eles

vivem apartados até o momento (três meses depois

do nascimento) em que a criança é apresentada a seu

pai (722). Esta cerimônia capital do terceiro mês é pre-

cedida por inúmeros ritos de aproximação. O pai parti-

cipa dos sofrimentos da mãe e, se é proibido de ir

vê-la, pede notícias suas, com mais freqüência à me-

dida que ela se acha mais perto do prazo. Nos últi-

mos dias, ele se submete a um jejum. Ele não pode

assistir ao parto, mas é representado, junto à partu-

riente, por vassalos, pelo mestre de música e pelo

cozinheiro-chefe, encarregados de vigiar a mãe sub-

metida, por seus alimentos, por sua apresentação e

pelas melodias que manda interpretar, a inúmeras

proibições(723). Esses vassalos observam os primei-


ros gestos do recém-nascido e, em particular, o mes-

tre de música determina, com uma espécie de diapa-

são, o tom em que a criança solta seus primeiros

gritos(724). Esta inspeção da voz é uma coisa impor-

tante. Com os vassalos do pai, toda a família está à

espreita. Tseu-wen de Tcheng (604 a.C.) tem um filho

cuja voz se parece com a de um lobo. O irmão mais

velho de Tseu-wen exige, então, que se mate esta

criança (725). Somente um espírito forte não faria matar

uma criança desgraçadamente nascida no primeiro ou

no quinto mês do ano, mês do solstício, ou, mais las-

timavelmente ainda, no dia 5 do quinto mês, dia que

é consagrado ao mocho e no qual o princípio yang

atinge seu apogeu. Um filho nascido na época dos

dias maiores deve crescer estranhamente; destina-se,

quando sua altura atingir o tamanho de uma porta, a

matar seu pai, pois ele participa da natureza parricida

dos mochos que, como se sabe, são canibais (726). As

crianças nefastas eram expostas no mato: às vezes,

eram recolhidas e amamentadas por um animal sel-

vagem, tão patente que era a virtude animal que a

inspeção dos primeiros dias revelara(727). As mães

eram as primeiras a reclamar a exposição dos recém-

nascidos marcados com um sinal funesto; o pai, algu-

mas vezes, tinha muita dificuldade em vencer sua

vontade. Sem dúvida, era exclusivamente da mãe que

dependia, outrora, a exposição da criança. Esta cor-

respondia antes a um ordálio do que a uma condena-

ção à morte. O recém-nascido, abandonado no chão,

forçava, às vezes, gritando bastante ("Que o ouçam


ao longe! que o ouçam bem! - Seus gritos enchem

o caminho(728)!", a simpatia das pessoas, depois da

dos animais. A mãe, então, recolhia a criança e lhe

dava um nome: tal foi a sorte de Heou-tsi, ancestral

dos reis Tcheou. Mesmo no caso de um nascimento

normal, a criança devia passar seus três primeiros

dias sem alimento nenhum, em contato com o solo,

pois "o espírito vital e a respiração de uma criança

são sem força(729)" e apenas em contato com a

Terra-mãe que a vida pode se confirmar nela. Para as

meninas (que nunca saíram completamente da depen-

dência da mãe) a exposição sobre o solo parece ser

uma prova suficiente. Os meninos, primeiro rito de

aproximação, primeira habilitação sucessorial, devem

ainda ser expostos no leito paterno (730). Eles são, nes-

ta ocasião, levantados da terra por um vassalo do pai

e por ordem deste(731). Este procedimento deve ser

relacionado com regras de etiqueta que se impõem

quando alguém, fazendo-lhe uma dádiva, coloca-se sob

a recomendação de uma pessoa estrangeira. A dádi-

va não é transmitida de mão para mão; ela é colocada

na terra, depois levantada. É digno de nota o fato de

que, no caso em que, por um rito análogo, a esposa

propõe ao marido entregar-lhe o filho, não seja o pai

quem o pegue diretamente. Ele deve empregar um

intermediário: entre o pai e o recém-nascido, como

entre o marido e a parturiente, os contatos comuni-

tários são difíceis de se retomar ou de se estabelecer.

Assim que o filho é levantado do solo, o vassalo en-

carregado desta função atira flechas em todas as dire-


ções. Trata-se de dispersar ao longe as máculas do

nascimento, pois este rito parece ter relação com o

banho purificador que se dá na criança(732). Trata-se

também de estabelecer uma conexão entre o recém.

nascido e a terra paterna que lhe fornecerá os grãos

nutritivos: depois que as flechas forem desferidas, a

criança pode, enfim, receber alimento(733). Este tiro

só é dado para os meninos: as flechas são um em-

blema de virilidade. Nota-se o aspecto belicoso desta

cerimônia. Este traço é tanto mais notável quanto o

terceiro dia do nascimento, no qual se deve atirar as

flechas, parece ter sido, antigamente, o dia em que

se dava o nome, transferido mais tarde para o terceiro

mês(734). Ora, o pai só recebe efetivamente o filho

que lhe é oferecido no momento em que dá um nome

a este filho. Sabe-se, por outro lado, que um homem

pode adquirir um nome para seu filho se matar um

inimigo, enterrando depois sua cabeça cortada sob

uma porta(735). O nome da vítima passava, então, ao

recém-nascido: conferindo a este último, com o nome

de um vencido, uma alma que, conquistada por ele,

lhe pertencia, o pai o recebia como filho e, desde en-

tão, os direitos paternos sobre a criança assim obtida

superavam os direitos maternos. Segundo a teoria chi-

nesa, as crianças, quando são postas no mundo pela

mãe, só têm uma alma inferior, a alma p'o, a alma do

sangue: pois estão nuas, não têm pêlos e são verme-

lhas (a palavra vermelho caracteriza, ao mesmo tem-

po, os recém-nascidos e os seres sem pêlos). Diz-se

ainda, quando se quer precisar a maneira como as


crianças estão ligadas a seu pai e a sua mãe, que elas

estão unidas a esta pelo ventre e ao outro por seus

pêlos(736), e se considera que, fisiologicamente, os

pêlos participam da natureza da exalação (k'i). Alma

superior (houen), que é uma alma-exalação, só apa-

rece depois da alma inferior. Ela se manifesta, inicial-

mente, pelo grito do recém-nascido, o qual prova sua

vitalidade, saudando a vida com gemidos sonoros: por

isto lhe davam um nome, inicialmente, no terceiro dia.

Mas a criança não se acha, verdadeiramente, em es-

tado de possuir uma alma superior, senão quando é

capaz de rir. É o pai quem lhe ensina a rir e logo lhe

dá esse nome pessoal (ming) que os ritos chineses

mostram ser idêntico à alma superior, ao destino e à

própria vida. No terceiro mês (737), a criança, até então

mantida no isolamento, é enfim apresentada ao pai

que a saúda com um sorriso. Esta cerimônia solene

coincide com o primeiro arranjo dos cabelos da crian-

ça e com a recuperação da mãe, purificada, por três

meses de abstinência, das máculas sangrentas do

parto(738). O pai e mãe preparam-se com abluções e

devem vestir roupas novas. Eles ficam face a face, a

mãe levando a criança nos braços. Não se falam. Uma

aia serve de intermediária, dizendo: "A mãe da crian-

ça, fulana de tal, permite-se hoje apresentá-la a seu

pai." O marido, dizendo: "Tende cuidado", toma a mão

direita de seu filho e, rindo como criança, dá-lhe um

nome. A esposa toma então a palavra para aquiescer

às ordens do marido. Ela pode, desde então, retomar

com ele, suas relações conjugais. Mas, antes, ela re-


cebe dele uma refeição idêntica à refeição de casa-

mento, como se eles estivessem separados por um

divórcio. Assim se desenrola a entrega da criança.

Nota-se que o pai e o filho ligaram-se pela palma da

mão: esta, rito característico do contrato de compa-

nheirismo militar e do contrato matrimonial (em que

pode se completar por um rito de aliança sangrenta,

sendo o sangue tomado do braço), é usada para apro-

ximar estranhos. O parentesco entre pai e filho não

é um parentesco no sentido primeiro da palavra: per-

tence, antes, ao tipo do parentesco artificial (739).

Ligado ao pai de maneira como um amigo o é

a um amigo, o filho deve passar toda a sua infância

longe da influência paterna. Na cerimônia do terceiro

mês, simples cerimônia de aproximação, tudo se pas-

sa como se o pai, convidado pela mãe a receber o

filho, adiava esta entrega, tomando o compromisso de

aceitá-la. Terminada a cerimônia, a criança é levada

ao gineceu, sem que se estabeleça nenhuma intimi-

dade entre ela e seu pai. Este, no entanto, deve man-

dar que a criança lhe seja apresentada de dez em dez

dias, para renovar o gesto da palma da mão, tão difícil

é criar entre eles o parentesco artificial que deve

ligá-los por fim. O pai limita-se a tocar na cabeça da-

queles de seus filhos que forem filhos secundários;

é apenas com o filho primogênito, único filho no sen-

tido estrito do termo, que ele se liga, tocando a mão

direita(740). Até o sétimo ano, os meninos não saem

do gineceu. Eles vivem a vida das mulheres, embora

já aprendam os modos masculinos e a dizer "sim"


com um tom decidido (741). Aos dez anos, eles devem

deixar a casa natal e permanecer, dia e noite, junto

com um mestre que lhes ensina a arte dos ritos de

polidez e das palavras de sinceridade. Em teoria, eles

devem ficar na escola até os vinte anos, adestrando-

se na dança, no tiro com o arco e na direção de um

carro. Uma tradição quer que, desde os tempos feu-

dais, os jovens nobres reúnam-se junto do príncipe,

numa espécie de escola de pajens. As crônicas pare-

cem, pelo contrário, mostrar que a adolescência de-

corre junto aos parentes maternos. Não há dúvida

alguma que o costume do fosterage não tenha sido

regra geral. Um autor, explicando que o pai não pode

cuidar da educação de seu filho apresenta uma razão

curiosa e, sem dúvida, profunda (742). Pai e filho não po-

dem pendurar suas roupas no mesmo suporte, como

também não o podem, em virtude das proibições se-

xuais, duas pessoas de sexo diferente. Pai e filho tam.

bém não podem conversar sobre assuntos de sexo. A

educação só pode ser feita longe do pai, num meio em

que não seja inconveniente evocar tais questões. Se

lembrarmos que o costume de casar os filhos na famí-

lia de sua mãe é um dos usos fundamentais da vida do-

méstica, compreenderemos facilmente por que a tare-

fa de educar os jovens pertencia a seus tios maternos.

Seus sobrinhos iam viver com eles como hóspedes,

ou talvez como reféns e ali se submetiam a uma es-

pécie de prova pré-nupcial, antes de poderem levar

suas primas, que, por sua vez, se tornavam hóspedes

e reféns na casa paterna. Um outro traço caracterís-


tico dos costumes chineses (pode ser considerado

uma sobrevivência da família indivisa) atesta a riva-

lidade sexual implicada, entre outras rivalidades, pela

relação de pai e filho: é freqüente o pai procurar rou-

bar a noiva do filho e, quando consegue, o filho fica,

geralmente, desapossado da sucessão paterna (743). A

educação numa escola de pajens não é, sem dúvida,

mais do que um desenvolvimento do fosterage: o se-

nhor apropria-se de reféns (e talvez, pode-se supor,

dos diversos serviços sexuais) que originariamente,

toda a família associada a um outro agrupamento fa-

miliar por uma tradição de casamentos tinha o direito

de exigir deste agrupamento aliado. De resto, é do

costume do fosterage que se deve partir para explicar

os ritos da maioridade(744). Estes ritos, conhecidos

sob o nome de tomada do barrete viril, terminam a

adolescência. O candidato recebe os trajes que distin-

guem os homens adultos e se acha iniciado na vida

Pública. Esta cerimônia completa os efeitos dos ritos

do terceiro mês depois do nascimento: o jovem nela

recebe um nome de homem feito, um nome de maior

ltseu), que é um nome público, enquanto que o ming,

o nome pessoal dado no terceiro mês, serve de deno-

minação particular e secreta. O filho declarado maior

encontra-se qualificado para prestar a seu pai as ho-

menagens que se devem a um senhor. Ele se apresen-

ta a seus parentes agnáticos. Despede-se de sua mãe,

de um modo significativo. Sua entrevista faz-se de um

lado para outro de uma porta entreaberta: o maior sai

da dependência de sua mãe, ficando excluído do gine-


ceu. Mas, fato notável, o rito de maioridade, que viri-

liza e faz entrar decididamente no grupo agnático, não

é mais do que um rito destacado de uma cerimônia

mais complexa. Para as meninas o rito corresponden-

te, a tomada do alfinete de cabeça, permaneceu ligado

aos esponsais(745). Ora, nos costumes camponeses,

iniciações e esponsais faziam-se, para os dois sexos,

ao mesmo tempo, durante essas festas primaveris nas

quais as libações desempenhavam um papel impor-

tante. A entrega de uma taça de bebida é um dos

ritos mais importantes da cerimônia da maioridade

praticada pelos nobres; mas, entre eles ainda, o filho

só pode cumprir os ritos do casamento depois de ter

recebido uma taça de bebida. A iniciação dos campo-

neses ocorria no Lugar-Santo local, durante uma festa

coletiva. A dos nobres realizava-se na casa paterna;

eis uma prova da dignidade e da independência novas

que a ordem feudal fez com que as instituições pro-

priamente domésticas adquirissem. No entanto, se,

durante a cerimônia de maioridade, o pai (ou o chefe

do tsong) ocupa o lugar de honra, ele não desempe-

nha nenhum papel ativo. Todos os gestos rituais são

realizados pela iniciativa de um personagem qualifi-

cado de hóspede e que não deve fazer parte da família

paterna. Tem-se direito de supor que, em princípio, o

convidado pertencia à família em que o grupo agná-

tico do candidato devia se casar, à família de onde

tinha vindo sua mãe e de onde devia vir sua noiva.

Por ocasião da iniciação, tudo se passa como se o

filho, saindo do grupo materno que, depois de tê-lo


criado, entrega-o, vinha se anexar ao grupo agnático -

levando a seu pai a promessa de lhe trazer uma nora.

Uma vez maior, o rapaz deve praticar os inú-

meros deveres de respeito que o filiarão a seu pai.

Embora, entre os nobres, em conseqüência, sem dú-

vida, das obrigações militares, o casamento só se

deva realizar aos trinta anos, enquanto que a maiori-

dade é concedida aos vinte anos, somente um filho

casado pode se comportar como um filho respeitoso.

Para governar o Estado, é preciso um senhor e uma

dama. Seu prestígio é mantido pelas homenagens de

uma corte de vassalos e de uma corte de vassalas.

Assim também, existe na família uma judicatura du-

pla: a do dono e a da dona de casa, casal investido

de uma autoridade senhorial, exigindo o serviço con-

jugado de casais enfeudados. Um chefe de família

deve ter uma esposa, pois está encarregado de um

templo ancestral onde se acham reunidas as tabule-

tas das esposas e dos maridos; deve também, ficando

viúvo de todas as suas mulheres, casar-se de novo,

se tiver menos que setenta anos, ou, depois desta

idade, retirar-se, transmitindo o cargo de chefe de

culto(746). Para exercer a função de chefe, é preciso

ter uma mulher; é preciso também ter uma para pra-

ticar o respeito filial: este, permitindo aproximar os

chefes da família, acaba por fazer adquirir sua virtude.

O filho primogênito, primeiro vassalo do pai, e sua

mulher, primeira vassala da mãe, dirigem, como um

casal ministerial, esta corte de vassalas e de vassalos

que formam os filhos e as noras(747). Seus deveres


são aqueles que os fiéis têm na corte: são eles, a

homenagem, o conselho e o serviço. Na família, como

na corte senhorial, a homenagem, renovada todos os

dias, consiste na saudação matinal e na saudação

vespertina. Da obrigação da homenagem derivam as

regras da apresentação e da limpeza: filhos e noras

lavam-se e se enfeitam para honrar os pais. Ao cantar

do galo, os filhos e as noras lavam as mãos e a boca;

elas penteiam a cabeleira, enrolam-na numa tira de

tecido, e os homens escovam cuidadosamente os ca-

belos que ficam livres nas têmporas, prendendo, soli-

damente, sobre sua cabeça, seus barretes com cor-

dões pendurados. Eles ajustam depois suas vestimen-

tas e guarnecem seu cinto com os objetos miúdos de

que se servem para as necessidades cotidianas: pa-

nos para limpar os objetos e enxugar as mãos, faca,

pedra de amolar, buris, etc. As mulheres não se es-

quecem de colocar também uma almofadinha de per-

fume. Atam cuidadosamente os cordões de seus sa-

patos. Seu traje belo é, em si, uma homenagem. Dian-

te dos pais, impõe-se a gravidade: evita-se arrotar,

espirrar, tossir, bocejar, assoar-se e cuspir. Toda ex-

pectoração poderia macular a santidade paterna. Dei-

xar perceber o lado interno das vestimentas seria um

atentado. Para testemunhar ao pai que ele é tratado

como um chefe, deve-se sempre, em sua presença,

ficar de pé, olhando para frente, com o corpo bem

aprumado sobre as duas pernas, sem nunca ousar se

apoiar sobre nenhum objeto, nem ficar inclinado ou

sobre um pé só. É assim que, com a voz humilde e


doce que convém a um fiel, que se vai, de manhã e de

noite, prestar homenagem. Depois disto, esperam-se

as ordens. Não se pode deixar de cumpri-las, mas

pode-se dar opinião. O filho, como o vassalo, deve dar

o conselho com toda a sinceridade e não hesitar em

dirigir admoestações; apenas, ele deve conservar seu

tom cheio de doçura, o rosto amável e o ar modesto,

o que quer que aconteça. Se os pais obstinam-se em

sua decisão, os filhos devem redobrar a doçura, para

obter seu favor; depois poderão renovar suas adver-

tências. Mesmo apanhando até sair sangue, não con-

cebem nem indignação nem ressentimento, e obede-

cem sempre, não hesitando, por exemplo, quando se

trata de sua própria família, em favorecer aquelas

entre suas mulheres que agrada mais ao pai, mesmo

em detrimento daquela que acham agradável (748). A

obediência impõe-se nas coisas pequenas como nas

grandes, pois o serviço do filho consiste, sobretudo,

em prestar pequenos serviços: é por meio destes que

se mostra respeito. Os filhos pedem permissão para

remendar as vestimentas dos pais quando percebem

um buraco. Pedem permissão para lavar com cinza

dissolvida na água as manchas do barrete, do cinto,

da túnica e da vestimenta interna. De cinco em cinco

dias, eles fazem esquentar a água e convidam os pais

Para tomar um banho; de três em três dias, preparam

a água para que os pais lavem o rosto e se, no inter-

valo destas abluções regulares, os pais sujam o rosto,

eles vão logo pegar, para esta ablução suplementar,

a água que serviu para a lavagem do arroz. Eles lavam


os pés dos pais e enxugam com grande rapidez, para

que ninguém veja o muco ou os escarros dos senho-

res da casa (749). Mas, se um chefe de culto deve ser

limpo, um futuro ancestral deve ser bem alimentado.

O Primeiro dever do respeito filial é zelar pelos ali-

mentos que enriquecem a substância dos pais. Um

bom filho, disse Tseng tseu, "providencia para que

nada falte no quarto de dormir dos pais (é, sobretudo,

quando se está velho e friorento que não se pode

dormir sozinho) e lhe fornece o alimento e a bebida

com uma afeição sincera"(750). Ele lhes prepara as

iguarias que, devidamente temperadas, convêm às di-

versas estações e às diferentes etapas da vida. Quan-

to mais idosos forem os pais, mais delicados devem

ser os alimentos que lhes são oferecidos: aos setenta

anos, tem-se constantemente necessidade de alimen-

tos delicados e, aos oitenta anos, de gulodices. Todo

filho toma cuidado para mandar preparar os oito ali-

mentos de qualidade e, principalmente, a rica fritura

e o vinho aromatizado que sustêm a força dos anciãos

e lhes dão mucilagem(751). Uma boa cozinha não é

suficiente: é preciso ainda saber servir as refeições

e zelar por sua ordem. Não há refeições de família

mas sim, em cada casa, refeições de corte, pretextos

para comunhões hierarquizadas. O filho mais velho e

sua mulher (a nora mais velha) assistem, de manhã

e de noite, às refeições dos pais, mas simplesmente

para encorajá-los a comer bem. Os restos, em com-

pensação, são para eles (como são, para os vassalos,

os restos do senhor), com exceção, entretanto, das


iguarias doces, moles e suculentas que devem reser-

var para seus próprios filhos (752). Estes últimos têm,

também, necessidade de alimentos delicados; além

disto, como se viu, existe uma proximidade particular

entre avós e netos. Vassalos mais distantes, os filhos

e as noras secundárias consomem, para terminar, os

restos dos mais velhos. Assim se estabelece, na vida

de todos os dias, a hierarquia substancial que é a ba-

se de toda a ordem doméstica desse modo definida.

As obrigações filiais são particularmente pesa-

das quando o pai sofre a prova da morte. Ele deve se

preparar para esta prova desde seu septuagésimo ano.

Setenta anos é a idade do afastamento e (de tal ma-

neira são fortes os vínculos da organização civil e da

organização feudal) o nobre, quando deixa a corte se-

nhorial, deve também abandonar a direção de seu

grupo doméstico. Libertado dos esforços que conso-

mem, das observâncias penosas do luto, como de suas

obrigações maritais, bebendo e comendo melhor, o

pai segue, imediatamente, com a ajuda de seu filho,

o regime que lhe permite tornar-se um ancestral ve-

nerado. É importante, para sua glória, como para a

dos seus, que ele morra o mais tarde possível, aos

cem anos, se ele o merecer (753). Para penetrar na car-

reira ancestral, trinta anos de estágio constituem o

ideal. Entretanto, esforçando-se para participar, de to-

das as maneiras, da vida paterna(754), feliz quando o

pai passa bem, triste quando ele vai mal, alimentando-

se quando o pai tem apetite, mas jejuando quando ele

está doente e tomando com ele o remédio, o filho


cuida para que nada, em caso de morte, faça falta e,

sobretudo, para que tenha um belo caixão; pois, "se

mais vale cair prontamente em decomposição depois

da morte, do que esbanjar dinheiro" mandando fazer

um ataúde de luxo para si mesmo, nenhum caixão,

quando se trata do pai, será bastante luxuoso(755).

Sobretudo, o dever do filho é velar atentamente para

que o pai possa ter uma boa morte. Seria nefasto, na

verdade, que ele morresse inesperadamente e fora de

casa: ele não deve se deixar surpreender pela morte

a não ser em conformidade com os ritos e no quarto

reservado ao dono da casa. Seria inconveniente que

a esteira sobre a qual ele passa seus últimos momen-

tos não correspondesse exatamente a seu grau de

nobreza(756). Seria uma infelicidade deixar-se sur-

preender e não ter tempo de tirar o moribundo de seu

leito e colocá-lo no chão, onde ele deve exalar seu

último suspiro, assim como, recém-nascido, ele lan-

çou seus primeiros gritos na terra. É preciso que o

algodão esteja preparado, ele servirá para recolher a

exalação expirante. É preciso, sobretudo, que toda a

parentela tenha sido chamada e que esteja preparada

para o grito que saúda a partida da alma. Chefe do

coro familiar, o filho mais velho assume a responsa-

bilidade dos ritos pelos quais, assegurando-se de que

a morte é efetiva, ela se torna definitiva. Ele procede

ao chamado da alma-exalação (houen), o que se faz

agitando-se do alto do telhado as vestimentas do de-

funto e gritando seu nome pessoal. Se esta alma não

vier prender-se nessas vestimentas familiares, se,


quando se jogar estas últimas no corpo, a vida não rea-

parecer mais, o filho enche de arroz misturado com

caurim ou com jade a boca do morto, mantida aberta,

até então, por meio de uma colher de chifre (757). É tam-

bém ao chefe responsável pelo luto que cabe a função

de obter que o defunto consinta em fechar os olhos:

às vezes, ele não o consente senão depois de ter im-

posto o juramento de obedecer a suas vontades su-

premas. Enfim o cadáver, lavado, é recolocado no leito

mortuário; acumulam vestimentas sobre ele, depois

de ter-se colocado, parece, um pedaço de jade em to-

das as aberturas do corpo. Nenhuma outra alma po-

derá penetrar, para fazer dele um vampiro, neste cor-

po obturado hermeticamente e, por outro lado, o jade,

graças às virtudes que lhe são próprias, impedirá,

assim como as vestimentas amontoadas, uma putre-

fação muito rápida. Pois o grande problema é a de-

composição, que não deve ser muito lenta nem muito

rápida: é preciso que ela se produza de acordo com

as regras do protocolo. O corpo, enterrado ligeira-

mente, deve ser conservado na casa durante vários

meses, três, para os nobres comuns, mais tempo se

o defunto possuía, com um grau mais alto na hierar-

quia, uma substância nutrida mais ricamente. É pecar

por presunção retardar muito tempo ou pretender im-

pedir a decomposição das carnes, mas seria o pior

crime se os convidados, vindos para trazer seu tributo

de condolências, pudessem ver os vermes, saindo do

cadáver mal cuidado, passar a porta, roubando do solo

doméstico uma substância que devia voltar a ele (758).


Enquanto que as ossadas permanecem infectadas e

que não se pode ir ao cemitério familiar reuni-las aos

ossos dos ancestrais, os parentes, ajudando o morto

a dar um passo temível, livram-se, eles mesmos, de

uma mácula, cujo contágio os atinge. Dela se livram

urrando e sapateando, mas não, como os selvagens,

com gritos e gestos desordenados, ou, por um sim-

ples efeito da dor, "como uma criança que lamenta

um objeto perdido"(759). Os parentes urram e sapa-

teiam em ordem e por ordem, cada vez que chega a

hora ritual de exprimir a tristeza familiar, e a um sinal

dado pelo chefe do coro. Todos "põem, então, seus

membros em movimento", todos fazem barulho "a fim

de acalmar o sofrimento e diminuir a angústia" (760).

Eles pulam e gritam um número de vezes determinado

e num ritmo significativo de sua proximidade com o

defunto - os homens apenas descobrindo o braço

direito e saltando sem hesitação - as mulheres sem

se descobrirem e sem que a ponta de seus pés deixe

a terra, mas batendo no peito - o filho dando vagi-

dos como os recém-nascidos, sem que nunca pare o

som de sua voz, enquanto que os parentes mais dis-

tantes que, depois de três modulações, deixam o som

se prolongar e morrer, só são autorizados a adotar

um tom choroso(761). Mas, ao mesmo tempo em que

servem para classificar as dores e para exprimir a

hierarquia dos parentescos, os saltos e os urros, se

purgam a aflição familiar, são ainda úteis ao defunto

e devem ser tanto mais numerosos quanto era nobre


a substância deste último. O número de saltos é idên-

tico ao número de meses que deve durar o enterro

provisório na casa(762). É que, sapateando e urrando

em coro, os parentes produzem um barulho semelhan-

te ao ribombo do trovão subterrâneo: quando produ-

zem esta espécie de estrondo contínuo, eles amedron-

tam e espantam os monstros maléficos que estão

preparados, sob a terra, para vir devorar o cadáver.

Assim, os parentes ajudam ativamente o defunto a

sair vitorioso da prova que lhe é imposta como um

purgatório. Mas eles devem, ainda, participar do es-

tado do morto de outras maneiras. É graças a esta

participação total que o filho respeitoso, fazendo com

que o pai adquira a dignidade ancestral que lhe valerá

um culto, ganha para si mesmo a qualidade de chefe

de culto e de chefe de família. Enquanto o morto não

puder se reunir aos ancestrais, enquanto durar o pe-

ríodo ativo do luto (que se chama de tempo dos cho-

ros contínuos), o defunto continua o dono da casa

onde se encontra o seu cadáver. A parentela, durante

este interregno, reúne-se toda, mas fora da casa; cada

filho mora numa cabana isolada que se levanta num

lugar fechado e retirado. Para o filho principal, levan-

ta-se uma espécie de alpendre que deve ficar encos-

tado no muro de vedação da morada familiar(763).

Como o morto fica, desde os primeiros dias de luto,

colocado no caixão e não enterrado profundamente, a

choupana, feita de ramagens, não deve ser caiada: as

fendas não serão tampadas com terra argilosa senão

depois do enterro definitivo, quando o cadáver estiver


profundamente enterrado na terra. Nesta cabana, o

filho deve se deitar primeiramente sobre a palha (pa-

rece que muito antigamente o morto era enterrado

na palha), com a cabeça apoiada num pedaço de terra,

" afligindo-se porque seu pai está na terra" (764). Assim

como a morte exclui o defunto da comunhão dos vi-

vos, o luto exclui dela o filho respeitoso. Ele vive em

quarentena tendo tanto menos direito de falar quanto

mais considerável for a sucessão a recolher (qualifi-

ca-se para ser rei não abrindo a boca durante os três

anos de luto paterno)(765). O filho só come forçado,

nos primeiros dias, um punhado de arroz. É preciso

ainda que a intervenção de famílias estranhas obri-

guem-no a tomar algum alimento e que este seja ofe-

recido como um presente (766). Não há cozinha possível

na casa do morto enquanto este morto não puder ser

alimentado como ancestral. O filho respeitoso deve

jejuar e se emaciar, conservando, apenas, a força de

realizar as cerimônias. Mas, se ele deve recolher uma

grande herança de vassalos (os quais desde então

podem ajudá-lo), ele é forçado a se enfraquecer a pon-

to de não mais poder se mexer, como um cadáver,

sem o auxílio de outrem (767). Para se tornar chefe de

um grupo familiar, é preciso merecer ser chefe de

culto. Para isto, é preciso, inicialmente, como chefe

do luto, que ele suporte as duras observâncias que,

purgando a infecção fúnebre, tiram o morto de sua

situaçào crítica e os parentes de sua quarentena. Um

filho que não presidiu ao luto de seu pai não se sente

qualificado para sucedê-lo (768).


No fim do enterro provisório e do tempo dos

choros contínuos, o filho principal, chefe do luto, con-

duz o. cortejo que vai reunir às ossadas dos ances-

trais, os ossos do morto. Um rito que realiza então

é o ponto de partida do culto novo do qual vai ser

encarregado. Quando os despojos são entregues à

terra, o filho respeitoso, desnudando o ombro e lan-

çando gritos, roda três vezes a fossa, indo da esquer-

da para a direita. Ele encerra assim e fecha definitiva.

mente no túmulo os últimos restos perecíveis, mas

separa o que constituía a parte mais alta da persona-

lidade do defunto. Exclamando: "A carne e os ossos

voltam de novo à terra: é o Destino! Mas o houen e

a exalação, não há lugar em que não possam ir!",

ele retoma o caminho da morada familiar seguido pela

alma superior que, desde então, vai se fixar numa

tabuleta, centro de culto(769). Enquanto os despojos

mortuários não haviam deixado a casa, conservara-se

uma espécie de tabuleta provisória. Simples vara de

madeira, esta tabuleta é como que a ossatura de uma

efígie grosseira que recobre panelas de arroz e que

traz preso em cima o estandarte do defunto. Assim

que termina o período de maior impureza, é uma tabu-

leta de madeira bem simples que vai servir de apoio

para a alma espiritualizada do defunto: ela é suficien-

te para representá-lo, pois seu nome acha-se escrito

nela. Esta tabuleta não se torna imediatamente o cen-

tro de um culto. Antes de adquirir a personalidade an-

cestral, o morto tem um estágio a cumprir: ele o cum-


pre sob a proteção, não de seu pai, mas de seu avô.

O estagiário, recém-chegado no grupo ancestral, re-

cebe, no princípio, o alimento sacrifical por intermé-

dio de um membro mais antigo dessa seção (seção

tchao ou seção mou) do grupo agnático, à qual ele

tem o direito de se agregar(770). Ele deve esperar o

fim do luto (início do terceiro ano) para receber um

culto pessoal e possuir, no Templo ancestral, uma

morada que seja sua. A instalação da nova tabuleta

numa sala particular tem por efeito relegar para um

cofre de pedra, misturada com as dos antepassados

distantes, a tabuleta do trisavô ou do avô, pois cada

família só tem direito a um certo número de antepas-

sados diferenciados, pelo culto, da massa ancestral.

As tabuletas que podem ser conservadas, sem ser

depositadas na massa, dão a medida, por seu número,

do grau de nobreza da família. O morto conserva per-

sonalidade apenas enquanto sua tabuleta receber sa-

crifícios individuais: quando esta tabuleta é colocada

no cofre de pedra, o nome do morto pode ser reto-

mado pelos parentes(771). Vê-se que a nobreza não

resulta da posse de uma longa lista de antepassados,

mas que, pelo contrário, a sobrevivência ancestral é

função da nobreza. Percebe-se, também, a razão pela

qual os Ancestrais se interessam pela sorte de seus

descendentes: os sacrifícios alimentam-nos durante

uma longa série de anos, quando seus herdeiros ime-

diatos vivem mais tempo. O culto ancestral é uma

troca de bons procedimentos entre essas duas por-

ções da parentela formadas, por um lado, pelos vivos


e, por outro, pelos antepassados cuja alma sobrevive.

Esta troca faz-se de grupo para grupo, mas por inter.

médio dos chefes de grupo. Enquanto que o chefe de

família oferece, em nome de seus irmãos ou de seus

primos, o alimento sacrificial, este é recebido pelo

pai ou antepassado defuntos, que deve fazer aprovei-

tar os tios ou tios-avós defuntos: no templo, na ver-

dade, as tabuletas dos filhos secundários ficam asso-

ciadas à do filho principal. Aquele que, durante sua

vida, ocupa um lugar subordinado no grupo familiar

permanece, em sua carreira ancestral, um simples

segundo(772). Apenas as promoções dos mais moços

na ordem nobiliária podem vir complicar o protocolo

dos sacrifícios. Se um irmão mais moço adquirir uma

posição mais elevada do que a de seu irmão mais

velho, ele conquista o direito de alimentar melhor

seus parentes e de imolar para eles, por exemplo,

duas vítimas em lugar de uma só, mas deve ser sem-

pre o mais velho quem preside ao sacrifício.

Quando se dirigiu o luto do chefe de família,

depois de tê-lo servido, durante sua vida, como filho

principal, recebe-se dele, como chefe de seu culto,

uma autoridade que se estende aos que lhe foram

subordinados como àqueles que, por seu intermédio,

tê-lo-iam sido. Esta autoridade confirma-se por oca-

sião dos sacrifícios. Toda a família comunica-se, en-

tão, com os ancestrais, mas apenas o chefe de culto

preside a esta comunhão. É ele quem oficia. Sua fun-

ção de oficiante impõe-lhe deveres dos quais ele re-


tira um princípio de superioridade. Antes de tudo,

impõe-se o dever de ser puro, que se resume na obri-

gação de viver nobremente e de saber os ritos. Aju-

dado, como se viu, pelos serviços dos próprios filhos,

é preciso que ele se aplique em permanecer correto

em sua apresentação e sincero em seus propósitos.

Em sua esfera de ação, mas tão perfeitamente quanto

um homem de Estado, ele deve conhecer a técnica

e a linguagem rituais. Faltaria à sinceridade integral

exigida pelo culto se não soubesse, em conformidade

com as estações, oferecer ao Ancestral, na época ne-

cessária, o agrião, os nenúfares, os ovos de formiga

e de cigarra. Ele se desqualificaria se, apresentando

alho-porro, um peixe ou uma lebre, ele pronunciasse

"alho-porro", "peixe" ou "lebre" e não "raiz abun-

dante", "oferenda dura", "clarividente" (773). Não bas-

ta se preparar para escolher a oferenda e a palavra

correspondente, é preciso ainda colocar-se em estado

de graça (774). Antes de fazer o sacrifício, o filho pie-

doso submete-se, durante dez dias, a um isolamento

que se torna mais severo nos últimos três dias. Ele

abandona suas mulheres e se abstém da música. Evi-

ta qualquer movimento desordenado dos pés e das

mãos. Detém o curso de seus impulsos e de seus de-

sejos, afasta as reflexões pessoais e as distrações.

Concentra todo seu pensamento no ser augusto que

vai se comunicar com ele. Consegue, enfim, entrar

em comunicação com a alma divinizada do antepassa-

do; sua alma purificada ilumina-se logo e todo seu

ser se reveste de uma santidade que o sacramento


sacrifical vai confirmar. Sua mulher que, como ele,

preparou-se para o sacrifício, vem assisti-lo: ela é

qualificada para celebrar o culto de uma antepassada

que, como ela, foi anexada à família como nora. Ao

chamado deste casal puro, chegam as almas ances-

trais, despertadas pelo ruído que fazem os guizos da

faca sacrifical, atraídas pelo odor do primeiro sangue

que se tira da vítima, perto da orelha. Para assegurar

sua presença, oferecem-lhes a possibilidade de uma

reencarnação momentânea. Durante toda a cerimônia,

na verdade, o Ancestral é chamado para tomar posse,

com sua alma, de uma pessoa encarregada de repre-

sentá-lo. Este costume arcaico foi criticado pelos ri-

tualistas. Quando os sacrifícios se dirigiam, ao mes-

mo tempo, a vários ancestrais, cada um representado,

achava-se, na verdade, que a cerimônia tomava um ar

desagradável de piquenique (775). Mas o uso devia, por

uma razão mais forte ainda, inspirar a hostilidade das

pessoas que queriam ver na autoridade paterna uma

instituição de direito natural. Em virtude das regras

da ordem tchao mou que comandavam a organização

do culto, era preciso que o representante pertencesse

à seção da parentela da qual o ancestral fazia parte.

Ele devia, normalmente, ser tomado na geração dos

netos deste último e, em geral, era seu neto. Esta

regra, que a história da família chinesa explica per-

feitamente, esclarece o sentido do culto dos ances-

trais. Uma das finalidades principais das cerimônias

era, precisamente, obter a reencarnação do antepas-

sado na pessoa do neto. As regras do luto, além disso,


guardaram a lembrança deste modo de transmissão

dos sacra: um avô usa, pelo neto que teria sido seu

sucessor, um luto particularmente pesado. Mas numa

família que podia parecer fundada na filiação agnática,

e numa classe, como a dos nobres, em que o culto

do pai defunto parecia ser o culto essencial, o uso

implicava uma conseqüência que não podia deixar de

parecer revoltante. Quando o chefe do culto fazia sa-

crifícios a seu pai, era um de seus filhos que repre-

sentava o Ancestral (776). O pai assumia uma postura

humilhada diante de seu filho. Ele não podia falar-lhe,

como aos deuses, a não ser por intermédio de um in-

vocador. Quando terminava o sacrifício, o filho comia

primeiro, por conta do antepassado. Só depois é que

o pai saboreava as carnes santificadas por esta pri-

meira degustação: por seu intermédio, ele recebia a

felicidade familiar (fou) incorporada nas oferendas.

Esta inversão de ordem hierárquica fazia-se no mo-

mento em que o chefe de culto, distribuidor do ali-

mento sagrado, estabelecia sua autoridade doméstica.

Com exceção desta comunhão privilegiada do neto,

que parecia aberrante e que é significativa, todas as

comunhões dos parentes respeitavam a hierarquia fa-

miliar. Elas tinham um caráter de comunhões enfeu-

dantes, como aquelas que, no culto feudal, ligavam o

vassalo ao senhor.

A autoridade do chefe de culto vem do senhor.

Este, com determinado grau de nobreza, confere-lhe

o direito de fazer sacrifícios a certo número de ante-


passados. O senhor que dá os antepassados, pode

também retirar o direito de possuir um templo ances-

tral. Quem não tiver mais antepassados, não é mais

chefe de família. Delegação da autoridade senhorial,

o poder doméstico é de essência senhorial. Ele se

exerce sobre os irmãos e sobre os primos. Para os

próprios ritualistas, o respeito em relação ao primo-

gênito (ti) não é uma obrigação menos essencial do

que o respeito para com o pai (hiao), mas, segundo

eles, o respeito fraterno não é mais do que uma con-

seqüência dos deveres impostos pelo respeito filial.

Isto é inverter a ordem dos fatos. Desde a organiza-

ção indivisa, o primogênito exercia um certo poder,

pois, como decano, representava todos seus irmãos.

Reagindo sobre a organização doméstica, a ordem feu-

dal transformou esse poder simples de representação

numa autoridade de ordem senhorial. Esta se esten-

deu, não sem dificuldades, aos membros da geração

inferior. Limitada em relação aos irmãos e aos primos

pelas sobrevivências da organização indivisa, a auto-

ridade doméstica é restringida, mais ainda, em face

dos filhos, pelas sobrevivências do direito uterino e

de uma organização antiga, na qual a idéia de geração

tinha mais importância do que a de filiação. Longos

ritos de aproximação, habilitando-o a se tornar seu

sucessor no culto, fazem do filho o vassalo do pai.

Mas um vínculo continua a dominar o estabelecido

artificialmente entre pai e filho, a saber, o vínculo

unindo neto e avô. O pai deve respeitar no filho

o representante de seu próprio pai. O poder dos


meios rituais empregados para aproximar os repre-

sentantes de duas gerações agnáticas consecutivas

traduzem sua independência e sua oposição primiti-

vas. Pai e filho formam, inicialmente, um grupo de

poderes rivais. Desta rivalidade fundamental subsis-

tem traços significativos, em particular, nos costumes

matrimoniais. Veremos - e nisto está, em parte, o

princípio do poder materno - que os filhos se apóiam,

face a seu pai, na família de sua mãe. Esta família

fornece-lhes suas esposas, como forneceu as do pai.

Mas pai e filho só têm direito, normalmente, a se

casar numa geração da família aliada, naquela que

(em virtude das equivalências estabelecidas por toda

a série de precedentes matrimoniais) parece corres-

ponder à sua. Ora, na nobreza, e particularmente nas

classes mais altas - aquelas nas quais o princípio

de hierarquia já se estabeleceu com mais firmeza -

um homem não se limita a esposar um grupo de

irmãs. Ele toma com elas uma de suas sobrinhas e

esta deve ser a filha de seu irmão mais velho, isto é,

precisamente, aquela das jovens da geração seguinte

que devia ser destinada ao filho principal que nascerá

do casamento assim concluído. Assim, o pai liga-se

de antemão (e pela melhor união possível) com a ge-

ração da família materna na qual o filho deve encon-

trar esposa e auxílio. Freqüentemente mesmo, quando

o filho está na idade de concluir aliança e que lhe é

concedido um lote de esposas, pode acontecer que

o pai o roube. Neste caso, geralmente, este filho é

sacrificado pelo pai e este toma por herdeiro o me-


nino nascido da mulher que, esposa predestinada ao

filho do qual ela se torna madrasta, deveria ter dado

a seu marido de fato, não filhos, mas netos. Por outro

lado, pode acontecer que, morto o pai, um dos filhos

do primeiro leito, substituindo o primogênito sacrifi-

cado, despose a madrasta que se tornou viúva. O du-

que Siuan de Wei (718-700), por exemplo, havia se

casado com Yi Kiang, uma das esposas de seu pai

Inão se sabe se esta madrasta lhe fora destinada, pri-

meiramente, como esposa). Ele teve um filho, cha-

mado Ki, para quem se foi procurar uma esposa na

família Kiang, da qual procedia sua mãe. O duque

Siuan, abandonando a esposa da qual se tinha apro-

priado na sucessão paterna, tomou a noiva destinada

a seu filho Ki. Depois, a fim de transmitir a herança

ao filho nascido daquela que deveria ter sido sua nora,

ela mandou matar Ki, o filho que tinha tido de Yi

Kiang, sua madrasta e sua primeira mulher. A antiga

noiva de Ki, tornando-se sua madrasta sob o nome de

Siuan Kiang, provocou o assassínio desse filho primo-

gênito. Mas, com a morte do duque de Siuan, se o

filho mais velho da madrasta tomou, inicialmente, o

poder em detrimento dos irmãos-sucessores do filho

do primeiro leito, ele evitou a morte exilando-se e,

depois de disputas sangrentas nas quais a família

materna (Kiang) desempenhou o papel principal, Siuan

Kiang, sob a pressão dos membros desta mesma famí-

lia, teve que se unir a um dos irmãos mais moços de

seu antigo noivo. Este irmão de Ki, chamado Tchao-po,

não teve tempo de tomar o poder, mas a herança


coube a um filho que (substituindo seu irmão primo-

gênito, despojado e sacrificado) gerou em Siuan

Kiang, sua madrasta (777). Estas complicações suces-

soriais (nas quais, ao lado do tema do incesto com a

madrasta ou a nora, intervém o tema do levir e da

sucessão dos filhos mais moços, junto ao do sacrifí-

cio do primogênito) testemunham a dificuldade que a

filiação agnática encontrou para se estabelecer como

uso regular. A importância do papel das mulheres e

de seus parentes permanece dominante. É a propósito

de mulheres que pai e filhos se opõem, mas é tam-

bém por meio das mulheres que chegam a se ligar:

para se aproximar, estes representantes de duas ge-

rações antagônicas procuram, se assim posso dizer,

reunir estas numa espécie de geração intermediária

- a criança nascida de uma mulher que, a título de

esposa, passa de uma geração a outra, participando

dos direitos opostos desses agrupamentos rivais. A

origem do poder paterno acha-se nessas relações sin-

gulares entre pai e filho, nascidas de um tipo de rela.

cionamento que devia parecer monstruoso: proibido,

inicialmente, pela heterogeneidade de natureza pró-

pria aos representantes de duas gerações agnáticas

consecutivas, foi vetado, mais tarde, pelo sentimento

que passava por ser o fundamento do parentesco; a

saber: o respeito do filho pelo pai. Vê-se que este

respeito, longe de ser característico das relações pro-

priamente familiares, origina-se de uma ordem de re-

lações de vingança, como se aproximam as relações

do tipo feudal. De um lado, enfeudado ao pai como


este o é ao avô, mas, por outro lado, sucessor do

avô que foi o senhor do pai, o filho primogênito é

submetido a uma autoridade que, feita de excessos,

é, em princípio, desmedida, e que, por isto, permane-

ce vacilante. Uma historieta o demonstra (778). Um dos

filhos mais moços do honorável Tchou, acusado de

um crime, é ameaçado de morte; o pai, desejando sal-

vá-lo e certo de o conseguir, enviando um belo pre-

sente ao juiz, pensa em confiar esta missão delicada

a seu filho mais hábil, que não é o mais velho. O pri-

mogênito protesta: "Quando, numa família, há um

filho primogênito, chamam-no de diretor da família.

Agora que um irmão mais moço cometeu um crime,

se Vossa Excelência não me enviar, mandando meu

irmão mais moço, eu me matarei." Embora achasse

que a missão seria mal desempenhada, a mãe apoiou

a reclamação do filho primogênito e o pai teve que

se submeter. Notemos a ameaça de suicídio, caracte-

rística das relações de vassalo para senhor e sempre

incluída, embora latente, nesse procedimento de re-

provação que é a advertência, dever essencial do filho

como do vassalo. Observemos, sobretudo, o fato, sen-

sível nesta história, de que os direitos do primogênito

sobre os mais moços superam os direitos do pai so-

bre os filhos. Os primeiros originam-se de um desen-

volvimento regular do direito indiviso sob a ordem

feudal. Os segundos, nascidos do mesmo ímpeto, re-

volucionaram a organização indivisa. Eles não reinam

sem obstáculos depois da época feudal.


Senhor de um filho primogênito que, para her-

dar a nobreza paterna e se tornar chefe do culto an-

cestral, aceita enfeudar-se, enfeudando com ele todo

o grupo de seus irmãos mais moços, o pai dispõe,

sobre seus filhos, e, principalmente, sobre o mais

velho, de uma autoridade do tipo militar. Como o se-

nhor, ele confere a nobreza, mas com a condição de

dispor da vida. Como o vassalo, o filho não é senhor

de seu corpo. Deve despender sua energia inteira

para alimentar a honra paterna. Ligado pela homena-

gem lígia, não tem direito de se unir, por si mesmo,

como quem quer que seja. Não pode ter amigos. Isto

seria prometer a outrem devotar-se até a morte. Ora,

ele não possui nada seu e, sobretudo, não é dono de

sua vida (779). A primeira regra do respeito filial é que

o filho não deve fazer nada, subir numa fortificação,

andar sobre o gelo fino, aproximar-se de um precipí-

cio, que possa provocar a suspeita de que está pon-

do em perigo a integridade de um corpo cujo único

senhor é o pai. É neste dever fundamental que os

teóricos irão procurar o fundamento da moral cívi-

ca: todo homem deve ter uma boa conduta, evitar os

castigos que, enfraquecendo o corpo, tirariam de seu

pai uma parte de seus bens e de sua honra. O filho

respeitoso só se expõe ao perigo, mas com prudência,

se seu pai o levar para a guerra ou lhe mandar seguir

seu próprio senhor. Viu-se então, que o soldado com-

bate primeiramente por seu pai e pela honra de seu

pai. Esta diminui se o filho transgredir os ritos de

bravura'. O prisioneiro, se sair de seu cativeiro, deve


obter, depois da graça do senhor, o perdão do pai:

este poderia condená-lo à morte no templo ances-

tral (780). A expulsão da família é uma sanção que era

tomada contra aqueles que, nos exercícios de tiro

com o arco, mostram-se indóceis ou negligentes (781).

Estes dois exemplos, os únicos atestados antigamen-

te a respeito da jurisdição paterna, indicam que ela

teve, inicialmente, um caráter militar: já se disse que,

na família como na cidade, a ordem feudal e a ordem

agnática correspondem ao aparecimento desta primei-

ra forma de direito penal que foi o direito do tempo

de guerra. O filho substitui seu pai no exército como

o substitui diante dos tribunais criminais; este traço

duplo dos costumes é observado em todo o curso da

história chinesa: mostra que, essencialmente, o filho

é, no sentido feudal da palavra, o homem de seu pai.

É também, em caso de vingança, seu vingador. Seu

luto só termina com a morte do assassino. Inicialmen-

te, o filho não depõe nunca suas armas, nem mesmo

num lugar de paz, mercado ou palácio do príncipe, e,

todas as noites, dorme numa esteira de luto, com a

cabeça no escudo (782). Não basta defender ou restau-

rar a honra paterna. É preciso aumentá-la. O filho en-

trega ao pai todas as recompensas que obtém, sobre-

tudo se se tratar desta recompensa substancial que

é uma dádiva de alimentos. Mas a melhor recompensa

é aquela que, passando pelo filho merecedor, vai dire-

tamente ao pai: tal é o princípio observado constan-

temente na China para os enobrecimentos. Todas

estas regras são contrapartidas notáveis da regra


imperiosa que proíbe todas as espécies de familiari-

dades, todas as espécies de intimidades ternas ao pai

como ao filho. Suas relações não pertencem ao domí-

nio da afeição, mas ao domínio da etiqueta e da honra.

Seria mais exato dizer que as relações entre pai e

filho são relações de honra para honra. Ora, como

veremos, este tipo de relacionamento que se estendeu

primeiramente às relações entre irmãos, acabou por

dominar, em seu conjunto, a vida privada.

II - A vida em família e o papel das mulheres

Num momento indeterminado da história chi-

nesa, os costumes quase que foram matriarcais. As

mulheres transmitiam seu nome aos filhos. Os ma-

ridos não eram mais do que cônjuges anexados ao

grupo de esposas. Na nobreza feudal, desenvolveu-se

uma moral oposta. O casamento parecia colocar a

mulher sob a sujeição do marido. Por outro lado, a

mãe possui um poder que, se conserva alguns de seus

caracteres antigos, toma, cada vez mais, os atributos

próprios ao poder paterno.

1.° - A vida em família

As jovens nobres são educadas para irem viver,

como noras, numa família estranha. Desde sua infân-

cia, elas aprendem, com a modéstia que evitará que

seus parentes entrem em vinganças cruéis, as artes


que lhes permitirão trabalhar para o prestígio de sua

família, pois, enquanto se vê no nascimento de um

menino um princípio de honra, uma filha surge como

um princípio de influência. As meninas são colocadas

no chão, por ocasião de seu nascimento, como seus

irmãos (783). Em vez de lhes darem um cetro de jade,

entregam-lhe a vareta de uma lançadeira. A primeira

vestimenta que usam é uma roupa apropriada para a

noite e não para as cerimônias públicas. Para assina-

lar sua vinda ao mundo, suspende-se na porta, em

lugar de um arco com flechas, uma espécie de pano

ou de guardanapo. As jovens não são feitas para a

vida pública e para a guerra, mas para os trabalhos

e os serviços do gineceu. Elas serão esposas e tece-

lã6. Uma menina de aspecto nefasto, por exemplo, se

ela é avermelhada e peluda, deve ser abandonada em

pleno campo(784). Quando se augura o bem para a

menina, ela é levantada da terra, cuja humildade absor-

veu, mas não é exposta sobre o leito paterno, para

evitar qualquer propensão ao orgulho. Além disto, o

pai não ordena nenhuma cerimônia. Se há alguma,

como parece, conta apenas com a presença das mu-

lheres e os rituais não se dignam citá-las. Não se

fala também se o pai se fazia apresentar à menina:

entre ela e ele parece que não se fazia nenhum rito

de aproximação. O nome, particularmente secreto, é,

sem dúvida, dado pela mãe. Uma filha não tem que

ser incorporada no grupo agnático. Enquanto ela viver

ali, dependerá apenas da mãe. Assim que começa a

falar, é orientada para um destino de submissão,


aprendendo a dizer "sim " no tom humilde que convém

às mulheres(785). A partir dos sete anos, é separada

de seus irmãos. Sete anos, a idade em que nascem os

dentes novos, é o momento de uma espécie de pri-

meira formação: houve, outrora, uma menina que foi

capaz de conceber desde seu sétimo ano. Desde en-

tão começam a funcionar as proibições sexuais: a

menina não pode se sentar na mesma esteira do que

seus irmãos nem comer com eles. Estas proibições, a

Partir do décimo ano, impõem uma reclusão completa

que coincide com o aprendizado do trabalho, da língua,

da boa apresentação e da virtude própria às mulhe-

res. Este aprendizado faz-se sob a direção de uma

aia. Os autores não são precisos a este respeito.

Sabe-se somente que a menina aprende a obedecer

com ar doce, a gramar o cânhamo, a dobar os casu-

los, a fiar o fio, a tecer as fazendas, a trançar os cor-

dões, a confeccionar as vestimentas. Ela é iniciada

também na arte de preparar e de arrumar as refeições

de cerimônia oferecidas aos ancestrais(786). A idade

da nubilidade é fixada aos quinze anos, embora, se-

gundo a teoria, a vida feminina seja regulada pelo

número sete e as meninas devam chegar à puberdade

aos quatorze anos. Ao contrário dos meninos, a me-

nina, assim que fica núbil, é declarada maior e recebe

um nome novo durante uma cerimônia em que deve

modificar seu penteado, pois ganha então um alfinete

de cabeça (787). Não há informação nenhuma sobre esta

festa. É muito possível que ela inaugurasse um perío-

do de reclusão particularmente severo, pois se admite


que devia coincidir com os esponsais. Ora, a noiva

nobre deve viver inteiramente confinada: nenhum ho-

mem, salvo por motivos muito graves, pode vê-la (788).

Para assinalar este estado de noiva, ela usa uma espé-

cie de cordão no pescoço. Certos temas de con-

cepções miraculosas fazem pensar que a moça que

se tornou núbil devia, durante seu período de clau-

sura pré-nupcial, ser mantida entre o céu e a terra,

fechada, por exemplo, numa torre alta e perfeitamente

protegida dos raios do sol (789). As moças de grande

nobreza viviam reclusas, durante três meses, no tem-

plo ancestral ou antes, parece, pelo menos nas famí-

lias de príncipes, no templo da Grande Antepassada,

lugar de grande recolhimento(790). As jovens recolhi-

das são qualificadas de "jovens puras" e evidente-

mente, elas praticam a castidade. Estas expressões e

outras análogas encontram-se nas canções de encon-

tro(791). Por outro lado, as lendas das Grandes Ante-

passadas relembram os temas das iniciações cam-

ponesas da primavera, enquanto que seu templo é

algumas vezes chamado o do Grande Mediador, o qual,

asseguram-nos, presidia a estas festas. Estas indica-

ções sugerem que o recolhimento pré-nupcial das vir-

gens nobres não excluía, à primeira vista, os ritos de

pré-união em uso entre os camponeses. Viu-se que os

jovens eram freqüentemente enviados para as famílias

de suas mães onde deviam se casar e onde eram

recebidos como hóspedes. Ora, era costume oferecer

a um convidado uma jovem da família: esperava-se

que, "permanecendo junto dele como criada, ela pren-


desse seu coração" (792). Esta espécie de casamento

com o hóspede ou o refém, tem sempre um caráter

instável e se apresenta como um casamento de expe-

riência(793). Houve uma época em que, quando se

isolavam sob a direção de uma aia experimentada e

da mãe de família, as jovens aprendiam a conquistar

o coração desses noivos predestinados e preferidos

por sua mãe, que eram seus jovens primos. Mas, sob

os ritualistas, o confinamento pré-nupcial tomou um

significado mais rigoroso e o tabu das noivas foi

entendido de maneira bem diferente. "Um rapaz e uma

jovem, enquanto não há a intervenção de um media-

dor, não podem saber o nome um do outro. Enquanto

os presentes nupciais não forem entregues, eles não

Podem ter nenhuma relação, nem se aproximar(794)."

A regra, segundo os rituais, é que o rapaz não veja o

rosto de sua noiva senão depois da pompa nupcial.

Esta regra de pudor pode dar ocasião a aventuras en-

cantadoras. Um príncipe de Tch'ou, vencido [505], que

fugia com seu gineceu, foi parar no meio de um pân-

tano e, nessa travessia difícil, Tchong Kien, um vas-

salo fiel, quis carregar nas costas a filha de seu

senhor. O príncipe acabou saindo do lodaçal e, vol-

tando à sua capital, encontrou um marido para a filha.

Mas esta, com toda a humildade conveniente, decla-

rou : "Comporta-se como uma jovem quando os homens

estão afastados. . . Tchong Kien carregou-me nas cos-

tas!" Não há como saber falar: o pai casou-a com o

homem do pântano (795).


O casamento de uma jovem nobre é um assun-

to quase que diplomático. Serve para manter uma

aliança antiga ou conseguir uma aliança nova, pois,

na instabilidade do mundo feudal, as famílias, rejei-

tando cada vez mais freqüentemente "as velhas rela-

ções", procuram "a fortuna (li)" por meio de um outro

sistema de alianças (796). Para entrar em relação é ne-

cessário recorrer aos bons ofícios de um mediador.

O mediador, encarregado outrora de presidir às lustra-

ções pré-nupciais, torna-se uma espécie de embaixa-

dor. Este intermediário serviçal fica sendo, depois,

um verdadeiro casamenteiro, encarregado de fornecer

cônjuges e de formar os casais. Na época feudal, sua

intervenção parece necessária, porque a regra antiga

(e sempre respeitada, em teoria, senão de fato) (797)

que o casamento não é permitido senão entre famí-

lias tradicionalmente unidas por uma obrigação de

casamentos entre si, sobreviveu sob um outro as-

pecto, a saber, a idéia de que o casamento não é um

contrato livre: uma jovem pedida não pode ser re-

cusada sem que os seus se exponham a uma vingan-

ça (798). Esta infelicidade pode ser evitada para as duas

famílias quando, antes de um pedido em regra, elas

entram em acordo por meio de um mediador. Os ritos

oficiais só entram em ação depois que o acordo foi

concluído. O mediador cede então o lugar a um em-

baixador qualificado que o chefe da família do pre-

tendente envia à família da jovem (799). Este procede

aos ritos dos esponsais nos quais nem o rapaz nem

seu pai devem aparecer. Em cada um desses ritos,


ele troca com o chefe da família da jovem um certo

número de fórmulas sacramentais. No primeiro ato,

por exemplo, quando ele apresenta o pedido, recebe

esta resposta: "A filha de Fulano é estúpida. Não foi

Possível educá-la bem. Monsenhor, vós me dais uma

ordem. (Eu) Fulano não terei a audácia de recusar (800)."

Estas palavras convencionais de modéstia têm por

finalidade declinar de antemão toda responsabilidade,

se a união não der certo. Elas testemunham ainda o

antigo caráter obrigatório que tinha a prestação de

uma esposa. Uma segunda embaixada é necessária

Para perguntar o nome pessoal da noiva, que é pre-

ciso conhecer-se a fim de poder tirar a sorte (801), uma

terceira para vir contar o resultado da sorte, uma quar-

ta para trazer os presentes rituais, uma pele dupla de

veado e peças de seda (os esponsais tomam então um

caráter definitivo), uma quinta para marcar o dia da

Pompa nupcial. Tanto trabalho protocolar não é de-

mais, pois é preciso lidar com a honra das partes con-

tratantes e dissimular esse caráter de contrato impos-

to, próprio do contrato matrimonial. Este permanece

Particularmente evidente nos casamentos senhoriais,

nos quais a prestação de esposas tem, muitas vezes,

o valor de uma composição terminando, provisoria-

mente, a vingança. O duque P'ing de Tsin, depois de

ter lutado contra a região de Ts'i, havia desposado

uma jovem de Ts'i, Chao Kiang, e quase o casamen-

to provocou novamente a vingança, pois Chao Kiang

não fora acompanhada a Tsin com tantas honras quan-

to as que haviam sido apresentadas para o pedido.


Pouco depois do casamento, ela morreu (802). Ts'i (nin-

guém duvidou de que seu príncipe fosse deixar de

cumprir este dever) estava obrigado a renovar a pres-

tação deficiente. Ele mesmo se ofereceu. "Restam-

me ainda jovens nascidas de meu pai e de sua es-

posa principal... Elas não têm nada além do co-

mum... Se vos dignardes escolher entre elas do que

guarnecer vosso gineceu, minha esperança revive-

rá (803)." Encontra-se ainda empregada como resposta

a um pedido de casamento, uma fórmula mais com-

pleta: "Minha esposa deu-me tantas filhas; minhas

mulheres secundárias tantas. . . restam-me tantas tias

paternas e irmãs (804)." Estas fórmulas tomam todo o

seu significado quando são comparadas às censuras

severas que Houan de Ts'i mereceu por ter-se recusa-

do constantemente a casar suas irmãs e suas tias (805).

A história insinua que esse Hegemon mantinha com

elas relações incestuosas. O incesto entre irmão e

irmã é, de resto, um crime freqüentemente imputado

aos príncipes de Ts'i (mas não unicamente a eles).

Porém, se essas relações (começadas ou não antes do

Casamento) continuavam depois deste, elas não o im-

pediam (806). Houan de Ts'i é especialmente acusado

de infâmia porque, em seu orgulho de Hegemon, quis

privar as famílias rivais da garantia conferida pela

posse desta espécie de refém que é uma mulher des-

posada. Há aí um curioso princípio de endogamia, mas

o fato, se ele parece particular às famílias de poten-

tados, mostra o valor desta regra exogâmica. As jo-

vens devem ser casadas fora da família porque as


famílias rivais têm direitos sobre elas. Se, normal-

mente, elas são educadas para ser esposas, é porque

preferem entregá-las como reféns, elas e não os filhos;

ou, mais exatamente, talvez porque, outrora, os filhos,

no fim do fosterage, não eram recuperados senão

contra uma compensação, proporcionando a entrega

de suas irmãs a título de esposas. Os rapazes, na

família nobre, valem como depositários da honra do-

méstica, mas uma jovem é, antes de tudo, um valor

de substituição.

As jovens são, também, um princípio de pres-

tígio. Quando, com o auxílio dos ritos dos esponsais,

uma família faz valer o direito que tem de exigir de

uma outra família a entrega de uma esposa, esta sen-

te-se honrada em pagar generosamente. O esplendor

da pompa nupcial é uma contribuição para a glória do

genro, mas uma contribuição vantajosa. Isto se per-

cebe só com o tom dos hinos de casamento: "O prín-

cipe de Han toma por mulher - a filha do rei da Fen!

- a filha do senhor de Kouei! - O príncipe de Han

vem até ela! - ele vem à aldeia de Kouei! - Cem

carros avançam com grande ruído! - Suas oito cam-

painhas fazem grande barulho! - Já se viu alguma

coisa mais esplendorosa? - As irmãs mais moças

acompanham - avançam como nuvens! - O príncipe

de Han as contempla! - seu esplendor enche o pa-

lácio (807)!" Há poucas informações sobre o dote que

levava a noiva, mas o essencial deste dote era, segu-

ramente, a escolta composta de rapazes e, sobretudo


de moças, que a acompanhavam como uma corte. As

vezes, como se viu, os senhores escolhiam seus con-

selheiros entre os rapazes que seguiam a esposa (808);

um hino nupcial acaba de nos mostrar: as moças os

fascinavam. Medindo a nobreza do pretendente, o

número de damas de companhia é determinado por

protocolo. Em certos casos, é aumentado para fazer

honra ao marido, mas é acrescido também para fazer

honta à noiva."Para uma mulher, o grande número de

damas de companhia constitui a magnificência" que

"confere o prestígio"...Este número, _entretanto, não

deve esgotar, numa geração, as disponibilidades ma-

trimoniais de um grupo familiar. De cada um dos gru-

pos familiares que contribuem para perfazer a presta-

ção, não deve vir mais do que duas irmãs, pois três

é um total. Esta regra serve para justificar o costume

que confere às duas irmãs a companhia de uma de

suas sobrinhas. Sabe-se que a sobrinha é fornecida

a fim de ligar de antemão o marido à geração ascen-

dente de família aliada. Na verdade, se esta não hesita

em dar suas filhas com magnificência, é porque, re-

cebendo por um único casamento um lote abundante

de esposas, o genro encontra-se definitivamente liga-

do à família de sua mulher. Um senhor que recebe

nove mulheres de uma vez não tem o direito de con-

trair segundas núpcias. A poliginia implica a monoga-

mia, mesmo para um simples nobre que não receber

mais do que duas esposas: de sua parte, um segundo

casamento, possível de direito e freqüente de fato

(mas a instabilidade feudal permite também aos se-


nhores violar a regra monogâmica), é sempre con-

denado pela opinião. Privado de suas mulheres por

mortes repetidas, o genro tem direito de tê-las substi-

tuídas e não há então, para dizer a verdade, um segun-

do casamento; as mulheres que a família aliada

apressa-se a mandar substituem simplesmente as do

primeiro lote que não duraram o suficiente. A mono-

gamia poligínica tem por função circunscrever o fu-

turo matrimonial do marido: a família da mulher obte-

ve, para toda a vida, sua fidelidade, depois que a

aliança se concluiu. Ela adquiriu, ao mesmo tempo,

certos direitos sobre as crianças a nascer dele; todos

receberão uma influência única e forte, pois durante

toda a sua carreira de esposa e de mãe, toda mulher

procura permanecer uma boa filha junto aos seus (809).

Quando a noiva é entregue ao marido, não há

tradição verdadeira e transferência completa de auto-

ridade. O marido não substitui inteiramente os direi-

tos do chefe da família natal. A mulher passa da obe-

diência (tsong) deste chefe para a obediência do

marido. Sem dúvida, a autoridade do marido (chamado:

senhor) tende, como a autoridade paterna, a tomar um

caráter senhorial. Entretanto, é preciso entender por

obediência (tsong), sobretudo, a idéia de que a mu-

lher, atingida por uma espécie de menoridade, só tem

lugar na sociedade como filha ou como esposa. Viúva,

ela é colocada sob a obediência (tsong) do filho, o que

não quer dizer que este possua sobre ela o menor

poder de comando. Ele é simplesmente, depois do

Pai e do marido, uma espécie de tutor responsável.


A transferência da tutela ao marido não suprime, de

maneira alguma, os direitos do pai, nem mesmo sua

responsabilidade, sobre uma filha casada: os ritualis-

tas, é verdade, declaram que há aí um caso de usur-

pação dos direitos e dos deveres matrimoniais(810).

Por outro lado, a transferência da tutela não tem nada

de definitivo: a filha volta para a tutela dos seus, às

vezes, em caso de viuvez, e sempre, em caso de re-

púdio. Uma disposição significativa do direito proíbe

o repúdio de toda mulher que não tenha mais parentes

para assumir a tutela (811). A devolução da mulher faz-

se com as fórmulas da pompa nupcial. Um cortejo

acompanha a mulher repudiada., Fórmulas de modés-

tia ritual são trocadas entre o mensageiro do marido

e o chefe da família natal. Elas têm por fim evitar

que a ruptura do casamento desencadeie uma vin-

gança(812). Também, as fórmulas consagradas que

devem empregar o pai e a mãe da jovem, quando o

noivo vem buscá-la, não implicam nem o abandono

nem a transferência da autoridade: são conselhos im-

perativos dados à jovem para que, em suas novas

funções de esposa e de nora, ela não faça nada que

venha comprometer a responsabilidade de sua família

natal. Dada para compensar ou prevenir a vingança,

a esposa pertence às duas famílias contratantes, como

um penhor sobre o qual as duas partes têm direitos

antitéticos. A situação que a esposa ocupa é a de

uma Sabina, mas é claro que os interesses de seu pai

continuam mais importantes do que os de seu marido.

Vêem-se filhas advertir seu pai de uma cilada prepa-


rada pelo marido(813). Algumas consultam sua mãe:

"O pai ou o marido, qual é o mais próximo e qual

deve ser o mais querido?" - "Qualquer um pode ser

marido e só se tem um pai!", responde a mãe, que

não hesita a respeito do dever a escolher; mas a es-

posa já havia escutado seu coração de filha, pois ela

o confessa, se conseguiu obter a informação que, sal-

vando seu pai custará a vida de seu marido, é porque

ela tomou o cuidado de seduzir este último e de "di-

verti-lo"(814). No serviço do marido, a esposa deve

pensar em servir seus parentes. Também, depois des-

ta pacificação que é o casamento, mulher e marido

vivem em estado de paz armada, cada um procurando,

com seus caprichos, ganhar prestígio em benefício

dos seus e às custas do outro. Capricho delicado: é

preciso saber não triunfar demais. Ts'ai Ki e seu ma-

rido fazem um passeio de barco e, segundo um velho

rito, divertem-se em fazer inclinar o barco. A esposa

é ousada; o marido deixa transparecer seu medo. Ele

devolve aos seus esta mulher muito audaciosa. Estes

se aborrecem, casam sua filha de novo, desencadean-

do a vingança entre os antigos aliados (815).

Desde a pompa nupcial (é o começo que im-

porta), tudo é regulado para que ninguém possa domi-

nar demais o parceiro. O noivo deve vir em pessoa

procurar sua noiva. Preparam-lhe (sobrevivência pro-

váve) das épocas em que o pretendente devia antes

servir seu sogro uma moradia provisória perto da

casa da noiva. Recebido como hóspede, ele depõe


aos pés do sogro um pato-do-mato e lhe presta uma

homenagem saudando-o duas vezes de joelho, com

a testa tocando o chão. Esta saudação não lhe é pres-

tada e o sogro não o acompanha de volta, mas, sem

dizer nada, a noiva o segue, guiada por uma aia (816).

Desde então qualificado como genro, o esposo não

mostra, em relação à noiva, menos humildade do que

em relação ao sogro. Ele traz o carro nupcial, depois

convida a noiva para subir no carro. Mas a aia, ime-

diatamente (pois a noiva não fala), declina esta home-

nagem. O genro põe o carro em movimento. Depois

de três voltas da roda, ele pára e, substituído por um

vassalo, sobe em outro carro. Se, inicialmente, desem-

penhou a função de cocheiro, é ele agora quem, to-

mando a dianteira, indica o caminho. Recebe, como

a um hóspede, a noiva no umbral de sua casa, incli-

nando-se para fazê-la entrar. Antes de tomarem juntos

a refeição comunitária, todos os dois se purificam,

ajudados por seus companheiros, lavando as mãos (817).

Quando Tch'ong-eul de Tsin recebeu de seu hóspede,

o duque de Ts'in, um lote de cinco mulheres (em vez

de três) - presente muito grande e que o comprome-

tia muito - ele constatou, também, que uma dessas

mulheres havia servido temporariamente como espo-

sa de um de seus parentes que fora refém em Ts'in.

Foi ela quem, segurando o jarro como dama de com-

panhia, ajudou Tch'ong-eul a fazer a purificação limi-

nar. Aproveitando-se disto para dominar a situação,

Tch'ong-eul, ao fazer sinal para que ela se retirasse,

procurou aspergi-la com a mão molhada. Mas ela,


"encolerizando-se: 'Ts'in e Tsin acham-se na mesma

posição! Por que me humilhar?'Tch'ong-eul, fazendo

cair (do ombro) sua vestimenta (de cerimônia), assu-

miu, diante dela, a postura de um cativo." Vitoriosa

nesse primeiro duelo conjugal que, levado muito longe

poderia ter desencadeado uma vingança, ela foi logo

tratada como esposa principal, embora figurasse no

lote de mulheres como dama de companhia. Mais tar-

de, já viúva, ela mostrou sua importância, quando, por

ocasião de lutas sangrentas entre Ts'in e Tsin, ela

soube fazer voltar a seu pai os três chefes valorosos

que Tsin havia capturado (818).

A esposa introduzida no lar conserva uma alma

estrangeira, mas, separada do marido pelos interes-

ses divergentes de suas famílias, ela é ainda distan-

ciada pela força das proibições sexuais que o sacra-

mento do casamento atenua sem chegar a suprimir.

Série de justas dissimuladas entre parceiros inflama-

dos por sentimentos de honra familiar e de honra

sexual, a vida do casal não tem intimidade. Ela é inau-

gurada por uma refeição comunitária, que os esposos

comem lado a lado e não face a face e em que tudo

é ordenado para fazer com que eles constituam, da-

quela ocasião em diante, as metades de um mesmo

corpo - mas metades separadas. Cada um sentado

sobre sua esteira, eles comem as mesmas iguarias

sem pegá-las do mesmo prato. Fazem, à parte, as liba-

ções aos espíritos e cada um saboreia o par de pul-

mões que lhes servem e as duas costelas tiradas de


um lado e de outro do lombo de um porco, que lhes

são destinadas. Eles recebem seu prato de painço,

seus sete peixes e, depois que saboreiam, cada um

três vezes, estas iguarias, bebem, também três vezes

- pela última vez (rito supremo) em duas taças feitas

com as metades de uma mesma cabaça. Bebendo e

comendo, eles se saúdam cerimoniosamente. Podem,

então, ir se despir, cada um em sua sala, e, reunidos

durante a noite, cada um terá sua esteira(819). Os

rapazes e as damas de companhia ficam velando perto

do quarto nupcial. Acendem-se archotes. Os archotes

queimam, também, durante três dias, na casa da noiva.

Parece que o casamento só se consumava no terceiro

dia: os eruditos afirmam que os oficiais graduados

(a gravidade da união sexual aumenta com a nobreza)

esperavam o terceiro mês(820). Esta união exige, na

verdade, grandes precauções. A mulher deve usar um

véu durante a pompa nupcial. Nenhum rito dos espon-

sais ou do casamento faz-se em plena luz, mas nas

horas crepusculares: os primeiros ritos, de manhã

(quando o Yang vence o Yin), a pompa nupcial no

crepúsculo, de tarde (quando o princípio masculino

é vencido pelo princípio feminino). A palavra houen

(crepúsculo) significa também casar. A mesma pala-

vra designa ainda os parentes da mulher. Esses diver-

sos significados da palavra sugerem a idéia de que

antigamente o casamento era consumado na casa da

noiva. Se a esposa de um simples nobre se apresen-

tava a seus sogros, que a tratavam como nora (fou)

desde o terceiro dia, a apresentação aos ancestrais


do marido (pelo menos entre os oficiais graduados,

que esperavam, dizem, o terceiro mês para consumar

o casamento) só se realizavam no terceiro mês. Aliás,

é somente depois deste estágio de três meses que a

mulher tem direito de usar o título de nora (fou), que

serve para designar a mulher casada. Se morrer antes

disto, ela não tem direito a que se use, na família do

marido, o luto reservado às esposas. É no terceiro

mês que, segundo o rito clássico, a escolta da noiva

volta para a casa de seus pais, e é também no terceiro

mês que o genro deve fazer aos sogros uma visita

que tem todas as características de uma cerimônia de

despedida (821). Os três meses e os três dias são, na

organização agnática, um período de estágio indis-

pensável para agregar a esposa à família do marido.

Eles correspondem, talvez, a um período de experiên-

cia que, outrora, devia decorrer antes que a esposa

pudesse deixar a casa natal com seu marido. Num

caso ou no outro, esse tempo de experiência justifi-

ca-se pelas dificuldades de assimilação conjugal. An-

tigamente, a nova esposa (nos usos modernos ela só

começa a cozinhar no terceiro dia) não devia trabalhar

antes do terceiro mês(822). Assim também, o marido

nobre, afastado devido a seu casamento, não podia

comparecer na corte durante um ano(823). O período

de experiência, que inicia a vida conjugal e durante o

qual os esposos, como que atingidos pela impureza,

vivem em quarentena, mais difícil no começo, não

terminava, sem dúvida, antes do terceiro ano, pois

generalizou-se a idéia de que o repúdio só era coisa


grave depois de três anos de vida em comum(824).

Para um marido, na verdade, três anos não é muito

tempo para chegar a seduzir ou a conquistar sua mu-

lher. Algumas historietas deixam entrever as dificul-

dades deste longo período inicial. Uma mulher (arre-

batada, é verdade, por seu marido) só consentiu em

falar com ele depois de ter tido dois filhos (825). Uma

outra, casada muito regularmente (mas, dizem que ela

era bela e que o marido não o era), também perma-

neceu obstinadamente muda (826). O marido mal rece-

bido conseguiu, mostrando perícia na caça, enfim, uma

primeira palavra e um primeiro sorriso: eles estavam

no terceiro ano de sua vida conjugal. Esta vida não

toma um caráter mais íntimo nem mesmo depois que

a mulher foi conquistada.

Os sentimentos de honra sexual ou doméstica

se atenuam, talvez, mas a etiqueta mantém seus di-

reitos. Por respeito mútuo, o marido e a mulher nunca

se chamam por seus nomes (827). Não entregam nada

de mão em mão, e quando um pega o objeto que o

outro colocou diante dele, toma cuidado, evitando

todo contato, mesmo indireto, de não o segurar por

onde o cônjuge já o tocou (828). Quando a mulher apre-

senta ao marido uma taça para beber, o marido bebe,

como é normal, mas de uma outra taça. Também não

deve haver contato nenhum entre seus objetos pes-

soais. O casamento não dá permissão aos cônjuges

para pendurarem suas vestimentas no mesmo suporte

ou para guardá-las na mesma cesta. Eles não têm di-


reito a uma mesma toalha ou a um mesmo pente. O

maior escândalo de todos é se o marido e a mulher

tomarem banho juntos (829). A pompa de suas relações

aumenta quando devem se unir (pois suas relações

sexuais não são livres e sim severamente reguladas).

O dever conjugal impõe-se ao marido, em relação a

cada uma de suas mulheres, segundo um protocolo

determinado que os ritualistas indicam detalhadamen-

te (830). Eles fornecem também informações minuciosas

sobre a toilette obrigatória, em determinado caso,

para tal mulher, levando em consideração o grau de

nobreza do marido e sua própria posição dentro do

gineceu. A mulher secundária de um oficial gradua-

do(831), por exemplo, deve, antes de ir encontrar-se

com seu senhor, purificar-se pelo jejum, lavar a boca,

vestir roupas recém-lavadas, arrumar seus cabelos de

uma certa maneira, atar em seu cinto uma almofadi-

nha com perfume e, sobretudo, amarrar solidamente

os cordões de seus sapatos. A freqüência das rela-

ções sexuais é função da nobreza do marido e da

esposa, mas, em determinado dia, o marido deve-se

a tal ou tal de suas mulheres, e o principal dever da

primeira esposa consiste em assegurar o respeito à

ordem protocolar que governa a vida do gineceu (832).

É uma falta que pode acarretar muitas conseqüências

(para a sociedade, como para a natureza) abandonar

uma de suas mulheres, como também é uma falta

deixar sem marido uma das jovens da família. Mas,

como a fisiologia chinesa ensinava que o afluxo dos

humores sexuais cessa nos homens aos setenta anos


e nas mulheres aos cinqüenta, o marido é liberado de

suas obrigações conjugais em relação àquelas de suas

mulheres que atingiram esta idade, e, para ele, toda

a obrigação cessa aos setenta anos(833). Terminam,

então, as proibições sexuais. Um marido de setenta

anos, uma mulher de cinqüenta anos, não precisam

mais se isolar. Eles podem guardar suas roupas no

mesmo lugar, sem nenhuma separação. A intimidade

só se estabelece na vida conjugal no momento em

que, desaparecendo as diferenciações sexuais, os es-

posos entram num período de recolhimento e come-

çam a se preparar, conjuntamente, para a morte.

Quando seus corpos estiverem reunidos no mesmo

túmulo e suas tabuletas na mesma sala, eles forma-

rão, unidos estreitamente, um casal de ancestrais. É

então, e apenas então, que a esposa será definitiva-

mente integrada no grupo familiar, no qual seu casa-

mento lhe fez assumir a posição de nora, depois de

mãe de família.

2.° - A mãe de família

Quando uma jovem, colocada na frente de um

grupo de noivas, desempenha, nos ritos nupciais, o

papel de protagonista feminina, ela ocupa no gineceu

do marido o lugar de primeira esposa. Uma primeira


esposa, cujo marido é filho principal, tem, na geração

da qual este faz parte, a posição de esposa principal.

Viu-se que o filho principal, quando preside às ceri-

mônias do respeito doméstico e dirige todos os seus

irmãos, deve fazer-se acompanhar por sua mulher:

esta dirige todas as suas cunhadas. A nora principal,

cumprindo os deveres do respeito, prepara-se para

exercer o papel de mãe de família que deve caber-lhe

jssim que seu marido assumir a autoridade de chefe

de família. Um adágio chinês exprime os fatos dizen-

do, simplesmente, que a esposa (a primeira esposa)

recebe na família do marido, apenas pelo casamento,

uma série de regras correspondentes às regras do ma-

rido. Esta fórmula é exata, a rigor, na medida em que

se acha realizado o ideal dos costumes elaborado nos

meios nobres. Desde a época em que a mulher, con-

siderada como uma dependente do marido, reconhece

nele um senhor, a autoridade da dona-de-casa parece

ser uma delegação da autoridade do chefe de família.

Esta autoridade toma, então, um caráter senhorial.

Mais tarde, todas as relações de gineceu modificaram-

se. Elas eram, inicialmente, dominadas pelo fato de

que a judicatura da primeira esposa sobre suas damas

de companhia e a da esposa principal sobre suas

cunhadas, exercia-se em virtude de um direito próprio

e não por delegação.

A judicatura que pertence à primeira esposa

deriva dos direitos que ela possui sobre as damas de

companhia anteriormente ao casamento. Ela é uma


primogênita. As damas de companhia, que são irmãs

mais moças (ou sobrinhas), tiveram, desde a infância,

que respeitar sua autoridade. Esta autoridade, estabe-

lecida de longa data, é o fundamento da disciplina do

gineceu que tem, desde então, o valor de uma ordem

estatutária. É precisamente deste valor que os ritua-

listas justificam, a título de instituição sábia, a poli-

ginia sororal: entre irmãs habituadas desde a infância

a obedecer ou a governar, não poderia haver divergên-

cias. "Os conflitos sexuais e o ciúme" (834) eram evi-

tados pelo simples fato de que as irmãs (que recebe-

ram a mesma educação e representam os interesses

de uma única família) formam um todo solidário e

constituem, juridicamente falando, uma personalidade

coletiva. Basta um casamento para casá-las todas jun-

tas. A viuvez só é efetiva depois do desaparecimento

do grupo inteiro. Sem que haja sucessão (não há su-

cessão possível dentro da mesma geração), a irmã

mais moça toma o lugar da mais velha, a título de

substituta, e tudo se passa como se não tivesse havi-

do morte, enquanto sobreviver uma representante do

grupo. Também um marido que perde somente sua

primeira esposa é rejeitado se quiser concluir uma

nova união: esta seria um caso de bigamia enquanto

subsistir uma irmã mais moça (835). Por outro lado, o

repúdio atua automaticamente sobre o grupo inteiro

de esposas. Uma historieta, que ilustra o princípio,

mostra, ao mesmo tempo, a solidariedade existente

entre a regra de monogamia e a instituição poligínica.

Ela mostra também como os sentimentos contavam


pouco na vida doméstica. Um personagem de Wei

[485 a.c.], a fim de concluir uma aliança vantajosa, repu-

diou sua mulher, embora a irmã mais moça, e dama

de companhia desta, lhe fosse agradável. Casado no-

vamente por política, mas fiel a seu sentimento, ele

conseguiu trazer para junto de si, construindo para

ela uma nova casa, a irmã mais moça saída do gine-

ceu com a primeira esposa: "Foi (então) como se ele

tivesse duas esposas", e o pai da nova mulher, que

havia provocado o divórcio para casar sua filha, reto-

mou esta imediatamente: de resto, a bigamia acaba

mal(836). A instituição poligínica muda de aspecto

quando, sob a influência do direito agnático que pro-

cura ligar as gerações sucessivas, cessa de ser estri-

tamente sororal. A solidariedade no lote de esposas

é menos estreita quando esse lote compreende uma

sobrinha. Entre a sobrinha, filha de um irmão mais

velho e a irmã mais moça (se não entre a sobrinha

e a primogênita) levanta-se uma questão de precedên-

cia que os ritualistas hesitam em regulamentar. Suas

discussões deixam transparecer a concorrência do

princípio de indivisibilidade (que domina nas famílias

plebéias e favorece a sucessão fraterna) e do prin-

cípio hierárquico (que domina na nobreza, favorecendo,

com a primogenitura, a ordem patriarcal de suces-

são)(837). Na verdade, mesmo quando o disfarçam,

incorporando a sobrinha no lote das primeiras noivas,

há um casamento duplo. Assim também, embora em

teoria haja um casamento único no caso dos senhores

feudais que desposam, de uma vez, três lotes de mu-


lheres, com o mesmo nome, é verdade, mas proce-

dentes de grupos familiares distintos, a homogenei-

dade do gineceu acha-se rompida de fato, pois cada

um dos três grupos pretende fazer dominar sua in-

fluência. As rivalidades complicam-se desde que, con-

trariando a regra, lotes de esposas de nomes diferen-

tes introduzem-se na pompa nupcial, ou, pior ainda,

quando o marido, aumentando seu harém para multi-

plicar suas alianças, contrata vários casamentos su-

cessivos. Essas infrações aos costumes multiplicam-

se, em razão da imbricação crescente dos sistemas

de aliança, nas classes altas da sociedade feudal

onde, precisamente, tende a predominar uma ordem

hierárquica constituída em benefício dos homens. A

classificação das esposas no interior do gineceu de-

pende da boa vontade do marido, seduzido pelas mais

hábeis - e então se desencadeiam as disputas de

ciúme que se exprimem por- sortilégios ameaçadores,

exemplificados no Che king(838) - ou conquistado

pelas mais poderosas - e então tudo pode terminar

em vinganças cruéis, nas quais não são poupadas as

esposas que, no harém, representam uma aliança re-

jeitada. Vêem-se, então, maridos que ordenam a suas

mulheres que se vinguem de uma primeira esposa tida

como responsável por uma traição atribuída a seu ir-

mão(839). Outros pretendem, por um simples decreto

de autoridade marital, degradar, em benefício de uma

favorita, a esposa que recebe o título de primeira.

Um mestre de cerimônias, consultado num caso se-

melhante, respondeu relembrando o velho princípio:


a primeira esposa é aquela que é fornecida como tal

pela família com a qual a família do marido acha-se

ligada por uma tradição antiga de casamentos. Ele

não conseguiu mudar a decisão do marido. Para man-

ter alguma estabilidade na vida dos gineceus, foi pre-

ciso admitir um outro princípio: o título de primeira

esposa é definitivamente adquirido pela mulher que

o marido autorizou a desempenhar o papel principal

na cerimônia do casamento inicial. A primeira esposa

acha-se, assim, protegida (e, com ela, seus filhos -

é neles, principalmente, que se pensa) contra o arbí-

trio do marido; apenas a judicatura feminina parece

derivar, então, não mais dos direitos próprios à pri-

mogenitura, mas de uma qualificação recebida pela

investidura da autoridade marital.(840)

Assim também, o poder da esposa principal,

reconhecido pelo grupo das cunhadas, parece emanar,

unicamente, de uma participação do poder do filho

Principal, seu marido. Esta autoridade, entretanto, era,

originariamente, de natureza independente. Na verda-

de, o casamento poligínico, em uso na nobreza, deriva

de um casamento de grupo, unindo, por um contrato

de aliança único, um lote de irmãos a um lote de

irmãs, de modo a formar uma espécie de casal indivi-

so, onde cada cônjuge, além dos direitos principais

que lhe eram reconhecidos sobre um dos cônjuges

do outro sexo, possuía direitos secundários sobre

todos os cônjuges deste sexo. As proibições que, na

nobreza, separam cunhados e cunhadas, proibições


de todo o contato, mesmo oral, e, sobretudo, a proi-

bição de usar o luto uns pelos outros, são mais graves

quando se trata do irmão mais moço e da cunhada

mais velha (841). É preciso, pois, ver nessas proibições

que visam a isolar os cunhados e as cunhadas, uma

conseqüência inversa dos direitos que originariamen-

te os aproximavam. Representante do grupo inteiro

de irmãos, o primogênito anexou-se ao grupo inteiro

de irmãs. As mais'moças, sobre as quais ele não tinha,

de início, mais do que direitos secundários, tornam-se

suas segundas esposas; a mais velha, primeira espo-

sa, conserva esse título, mas os mais moços con-

servam os direitos secundários que tinham sobre esta

última sob a forma de direitos eventuais (direitos de

levirato, logo abolidos). Desta hipótese, que se impõe,

resulta que os direitos da esposa principal sobre suas

cunhadas, esposas dos irmãos mais moços, derivam

dos direitos antigos que a noiva primogênita possuía

sobre suas irmãs mais moças. Além disto, estes direi-

tos primitivos da primogênita achavam-se estendidos,

por efeito do casamento coletivo, aos cunhados, ma-

ridos das irmãs mais moças. O poder de controle que

a esposa principal possui sobre a vida em comum de

todos os irmãos do marido resulta, inicialmente, do

direito de judicatura que lhe pertence como irmã mais

velha e que lhe confere o papel de protagonista femi-

nina no casamento coletivo. A cerimônia do casamen-

to nobre só se explica pela sobrevivência dessa situa-

ção primitiva(842). O marido deve ter pajens como a

esposa tem damas de companhia; mas, se estas, em


princípio, são irmãs mais moças, os irmãos mais

moços do marido são afastados e substituídos por

simples figurantes. Como o casamento serviu origina-

riamente para unir dois grupos de cônjuges, e não

dois esposos, esses últimos só podem se aproximar

com o auxílio conjugado de pajens e de damas de

companhia. Estes lhes "abrem o caminho" por uma

"ação cruzada", que é significativa. Um companheiro

do marido entrega à noiva o jarro necessário para as

primeiras abluções purificadoras; uma das damas de

companhia presta o mesmo serviço ao marido. Este,

quando se despe depois da refeição comunitária, deve

entregar suas vestimentas a uma dama de compa-

nhia; a esposa (regra mais digna de nota ainda) entre-

ga as suas a um dos companheiros. O banquete das

núpcias poligínicas não pode ser uma refeição iguali-

tária .na qual todos os cônjuges comungam juntos.

Entretanto, os pajens e as damas de companhia co-

mungam igualmente, como os esposos principais, mas

depois deles; os restos do marido cabem às damas

de companhia e os da esposa, aos pajens. Este con-

junto de ritos só tem sentido se as damas de compa-

nhia e os pajens estiverem ligados por um vínculo

análogo ao vínculo conjugal, que eles ajudam a formar

entre os protagonistas de cada grupo. Deve-se, pois,

supor, como as damas de companhia eram irmãs mais

moças, que os rapazes eram, originariamente, irmãos

mais moços. Descobre-se, então, a origem dos pode-

res da esposa principal: eles não diferiam, em prin-

cípio, dos poderes próprios à primeira esposa. Ligada


ao irmão mais velho, a quem ela concedia direitos a

suas próprias irmãs mais moças, direitos confirmados

por uma comunhão enfeudante, ela adquiria direitos

sobre os irmãos mais moços do marido; ligados a ela

por sua união com suas irmãs, eles reconheciam esta

enfeudação, aceitando, também, participar da comu-

nhão como subordinados. Mas, quando a autoridade

dos primogênitos, modelando-se na autoridade pater-

na, tomou um caráter senhorial, quando, em benefício

do primogênito, o levirato (uma vez consolidados os

direitos do ramo mais velho) foi proibido, a cunhada

mais velha, em vez de se aproximar dos mais moços,

seus cunhados, por um vínculo comunitário, separou-

se deles por proibições. Ela não teve outros direitos

além daqueles que lhe cabiam por uma delegação do

poder próprio a seu marido. Aqui ainda, a autoridade

marital usurpou a judicatura feminina. Os irmãos mais

moços não se ligaram mais à mulher que ocupava,

em sua geração, a posição de esposa principal, por

uma comunhão enfeudante, implicando direitos con-

jugais secundários, mas porque, comungando, a título

de súditos, nas cerimônias do respeito doméstico, eles

tendiam a ser colocados, diante do primogênito e,

portanto, diante de sua esposa, numa situação aná-

loga à dos filhos. Um adágio chinês (invocado, preci-

samente, para justificar a impossibilidade de todo luto

entre cunhados e cunhadas) demonstra a novidade

desta situação que parece, ainda, paradoxal. Entre

agnatos e esposas o luto não é possível, se eles não

podem se chamar de marido ou de mulher, a não ser


no caso em que, pertencendo a gerações diferentes,

eles podem se chamar de pai, mãe, noras ou filhos

( = sobrinhos). Se houvesse luto entre agnatos e espo-

sas de uma mesma geração, tudo se passaria como

"se se chamasse de nora (mulher de um filho) a mu-

lher de um irmão mais moço, (mas então) não se-

ria preciso chamar de mãe a mulher do primogêni-

to?"(843). Esta fórmula mostra a importância jurídica

das denominações (ming) que significam os vínculos

domésticos. Na vida comum, a cunhada mais velha,

juridicamente indenominável (porque não se quer ain-

da, chamando-a de mãe, investi-la de uma autoridade

de mãe de família, que se estenderia aos irmãos do

marido, e também porque não se pode lhe dar um

nome que implique uma relação de esposa a esposo)

é simplesmente chamada por um título de honra

(sao = seou: a velha, termo que não evoca nenhum

vínculo jurídico). Fato inverso e tanto mais significa-

tivo: a esposa principal continua a chamar de irmãs

mais moças (= cunhadas mais moças) as esposas

dos irmãos mais moços do marido(844). Embora, fre-

qüentemente, estas procedam, de fato (e, de direito,

elas podem sempre proceder) de uma família distinta

daquela da esposa do primogênito, elas têm, neces-

sariamente, em face desta última, a categoria de irmãs

mais moças e a posição de irmãs substitutas (como,

em face dos pais de uma esposa defunta, a esposa

do segundo casamento, mesmo vindo de uma outra

família, tem a posição de filha substituta) (845). Assim

acha-se mantido, mas apenas no interior do gineceu,


o princípio da judicatura feminina - com a conse-

qüência, entretanto, de que, em cada casal secundá-

rio, a mulher é submetida a duas autoridades concor-

rentes: a do marido, chefe em seu próprio lar, mas

subordinado ao primogênito; a da esposa principal,

que é sempre considerada revestida dos direitos pró-

prios às primogênitas, embora se procure ver nela

uma coadjutora (com futura sucessão) da sogra, como

se vê, no primogênito, um coadjutor do pai de família.

O pai de família só tem um filho, o filho princi-

pal - o qual tem irmãos. Assim também, a mãe de

família só. tem uma nora, a primeira esposa do filho

principal - a qual tem (cunhadas) mais moças. Ape-

nas a esposa principal (mas cercada de suas damas

de companhia) é recebida pelos sogros e apresentada

aos Ancestrais, depois de terminados os diversos es-

tágios da experiência matrimonial. O marido não fi-

gura na cerimônia em que a mulher, depois de ter

dado de comer a seus sogros, recebe seus restos;

mas os pajens têm ali seu lugar. A esposa come em

primeiro lugar os restos da sogra; ela recusa consu-

mir os do sogro: ela não pode comunicar-se com este

que, de fato, procura, muitas vezes, exercer direitos

maritais (ou pré-maritais) sobre a esposa destinada a

seu filho. Entretanto, por uma disposição cruzada, que

também é regra aqui, como nos ritos propriamente

nupciais, os restos do sogro são comidos pelas damas

de companhia, irmãs mais moças da esposa. E tam-

bém, se o filho, ausente, não é chamado para comer

os restos de sua mãe, a parte que lhe deixa a esposa


pertence aos pajens deste filho, simples comparsas,

mas comparsas que substituem os irmãos mais mo-

ços. Ora, viu-se que, se o pai, muitas vezes, procura

arrebatar a noiva reservada a seu filho, o filho, fre-

qüentemente, apropria-se da viúva deixada pelo pai

(que, neste caso, contrai um segundo casamento). Se

a comunhão das damas de companhia com o sogro,

indício de antigos direitos matrimoniais, refere-se ao

segundo dos dois ciclos de relações conjugais pro-

curadas por cada indivíduo para se ligar a duas gera-

ções sucessivas, deve-se pensar que a comunhão dos

pajens com a mãe do marido é um traço do primeiro

ciclo dessas relações, as do filho e da madrasta, para

as quais o irmão mais moço podia ser chamado para

substituir o mais velho. Qualquer que seja o valor

dessas sobrevivências rituais, desde que as cerimô-

nias inspiradas pelo princípio de indivisibilidade fo-

ram ordenadas para fazer valer a ordem patriarcal, o

filho não podia mais estar presente, nem a nora co-

municar-se com o sogro a não ser por intermediários

ou comparsas. É mesmo surpreendente que a ordena-

ção dos ritos não se tenha invertido totalmente de

modo a fazer comunicar, como é regra no Templo

ancestral, o filho, assim como seus pajens, com o

pai, e as damas de companhia, como a noiva, com a

sogra. Na verdade, no espírito novo da cerimônia, a

única coisa que importa é criar um vínculo de depen-

dência entre a sogra e aquela que, enfeudando-se a

ela pela comunhão, qualifica-se para usar o título de

nora principal. Terminados os ritos comunitários, en-


quanto que os sogros deixavam a sala de cerimônias

Passando pelos degraus do oeste, que são os dos

convidados, a nora descia, pelo contrário, pelos de-

graus orientais, reservados; geralmente, ao dono da

casa; os rituais dizem que, por esses ritos, ela recebia

os aposentos (che) onde devia habitar(846).

Acolhida assim pelos pais, e depois de ter apre-

sentado aos Ancestrais um primeiro sacrifício, antes

do qual não podia haver, achavam, nem verdadeiras

relações conjugais, nem a possibilidade "de criar fi-

lhos" (847), a mulher adquiria a capacidade de ser mãe,

isto é, de ter um filho, praticando os ritos de respeito,

pois, na ordem patriarcal, a mãe recebe seu poder de

sua qualidade de nora respeitosa, como o pai recebe

o seu, de sua qualidade de filho respeitoso. Também,

como num grupo familiar uma única esposa é qualifi-

cada de nora principal, como não pode haver mais de

uma mãe (mãe de filho principal), a mulher habilitada a

dar a seus sogros um neto sucessor - todos os outros

filhos (netos secundários) formam, aos próprios olhos

das mulheres que chamaríamos de suas mães, um gru-

po indistinto de sobrinhos. Por outro lado, entre todos

os filhos nascidos de um mesmo avô, o primogênito

da nora principal é o único a possuir verdadeiramente

uma mãe. Os primogênitos das noras secundárias tor-

nar-se-ão chefes do culto destas últimas; mas como,

durante sua vida, elas não puderam presidir aos ritos

de respeito, seus futuros chefes de culto não podiam

então tratá-las como mães de família ou, antes, só o

podiam na intimidade (sseu). Este meio privilégio, con-


seqüência da organização do culto, é um progresso no

sentido de um reconhecimento dos vínculos indivi-

duais de parentesco entre mães e filhos: também é es-

tritamente limitado aos primogênitos favorecidos pelo

princípio da sucessão única. Os irmãos mais moços,

por outro lado, se têm mais deveres em relação à pri-

meira esposa de seu pai do que em relação a qualquer

outra mulher da geração das mães, não possuem uma

mãe que seja deles. Filho de esposa principal ou de

primeira esposa, o filho mais moço desaparece diante

do primogênito e só pode ser filho secundário. Filho

de mulher secundária, ele não pode considerá-la mais

do que uma tia E Para a primeira esposa não é mais do

que um filho secundário, embora deva tratá-la de mãe,

pelo menos na intimidade.

Este último caso esclarece tanto o significado

das relações originais entre mãe e filho, como sua

evolução sob a influência dos costumes feudais. Os

direitos maternos são direitos que, possuídos a título

indiviso por um grupo de irmãs formando um lote de

co-esposas, foram, inicialmente, exercidos pela mais

velha dessas irmãs a títulos de mãe-decana, antes de

lhe terem sido atribuídos a título de esposa, ou, me-

lhor, de nora principal. O poder materno, baseado

originariamente nos direitos de natureza coletiva mas

diretos (não diga naturais), parece ter-se derivado de

um direito de mando recebido dos sogros e do

marido. Ele se exerceu então, secundariamente, sobre

uma coletividade de crianças e, a título principal,


sobre um filho sucessor. Assim, no momento em que

assume um caráter de vínculo individual, a materni-

dade torna-se radicalmente distinta de todo vínculo de

sangue. Não somente não é necessário pôr uma crian-

ça no mundo pala se ter um filho (basta ser primeira

esposa e que uma segunda esposa dê à luz), mas

ainda (sem contar que não se é mãe de seu filho

quando não se é Primeira esposa), quando se dá à luz

um filho e que Se é primeira esposa, pode-se deixar

de ser a mãe desse filho: basta que o marido a repudie

- por exemplo, sob a ordem dos sogros. Basta que

ele a degrade, designando-se uma outra esposa prin-

cipal. Esta última ficará sendo a mãe e é em seu

benefício que o filho deverá demonstrar respeito: é

verdade que, geralmente, o filho,de uma mãe degra-

dada era morto, ou então, também degradado e entra-

va, por isto, para o grupo indiviso dos filhos secundá-

rios. Os ritualistas procuram se opor a esses excessos

de autoridade marital ou paterna, prejudiciais à boa

ordem das sucessões. Em compensação, a ruptura

dos vínculos entre a criança e a mãe repudiada parece

ser natural. Atribui-se ao neto de Confúcio, também

grande filósofo, esta frase rigorosa: "Aquela que era

minha mulher era também a mãe de meu filho. Dei-

xando (pelo repúdio) de ser minha mulher, ela deixou

de ser a mãe de meu filho (848)." Não se pode exprimir

melhor os fatos: todos os vínculos de parentesco

parecem depender do vínculo de pai a filho, concebi-

do de acordo com os vínculos entre senhor e homem

lígio, se bem que o parentesco com a mãe não resul-


te mais do que de um decreto revogável do pai. Tam-

bém se vê o pai de família repartir seus filhos por

decreto (ming) entre suas diversas mulheres secun-

dárias (pelo menos quando essas crianças perderam

sua mãe natural e quando a mãe por decreto não tem

filhos seusj (849). O filho concedido deve tratar como

sua mãe esta mãe imposta; assim também, o filho do

primeiro leito não deve fazer diferença entre sua ma-

drasta e sua primeira mãe (850). A onipotência marital

e paterna não é suficiente para explicar tal indiferença

em relação ao que chamaríamos de vínculos da natu-

reza. Esses vínculos já não tinham mais do que uma

importância muito secundária na época em que o po-

der materno resultava de um direito direto pertencente

à judicatura feminina. Os costumes, sobre esse assun-

to, conservam sobrevivências significativas. Para jus-

tificar a poliginia sororal, afirma-se que ela tem por

razão impedir, com o ciúme feminino, o ciúme mater-

no: quando uma das mulheres de um lote poligínico

tem um filho, as outras se alegram e é assim que se

pode "multiplicar os descendentes"(851). Quando a

instituição é respeitada, a primeira esposa vê seu

prestígio aumentar, pois, mantendo a ordem do gine-

ceu e favorecendo as aproximações do marido e das

mulheres secundárias, consegue, graças a estas últi-

mas, ser mãe de inúmeros filhos: foi assim que a

mulher do rei Wen teve cem filhos e uma glória imor-

tal (852). Quando, por desvio de uso, o gineceu se abre

à mulheres vindas de famílias diferentes, o ciúme

materno junta-se ao ciúme conjugal, mas este ciúme,


como o próprio sentimento materno, é de ordem cole-

tiva e não tem sua origem num sentimento de afeição

pessoal. A mãe que luta e se expõe por seu filho, não

o faz por amor: ela trabalha pelo prestígio do grupo

de esposas que dirige, age no interesse da família

natal que fez dela a principal de suas delegadas junto

ao marido. Ela pode, em seu ardor materno, desinte-

ressando-se do dever que a natureza parece, a nossos

olhos, impor a uma mãe, confiar seu filho a uma mu-

lher melhor colocada na corte. Um príncipe de Ts'i

[553], casado em Lou (nome Ki) não teve filhos de sua

mulher principal. Enviaram-lhe uma sobrinha desta, que

teve um filho: fornecida pelo grupo da mulher princi-

pal, esta criança ocupou a posição de filho principal.

Mas o príncipe tinha também um grupo de mulheres

vindas de Song e representando os interesses da

família Tseu. Entre as mulheres de nome Ki e de nome

Tseu desencadeou-se uma luta feroz. A primogênita

dos Tseu teve um filho, enquanto que a mais moça

conseguiu agradar o príncipe. A mãe natural não hesi-

tou em confiar seu filho à mulher que ocupava uma

posição mais favorável na corte: esta, por sua vez,

não hesitou em fazer o possível para que este filho

de uma outra mãe, mas de seu grupo, fosse preferido

ao filho do grupo rival. Menos prudente do que sua

mãe natural, ela acabou por ser condenada à morte

e o grupo rival, no ardor da vitória, fez expor seu

corpo na praça pública, contrariando as regras do

pudor e do direito. A criança foi morta, mas a mãe

não foi envolvida(853). Vê-se que, no fundo, a mater-


nidade continua de essência coletiva, mas que um

filho não é, para suas mães, ou mesmo para sua mãe,

nada mais do que um princípio de prestígio.

Essa característica dos costumes explica um

dos fatos que mais contribuíram para manter a judi-

catura feminina. Princípio de influência, a criança, me-

nina ou menino, é destinada a alcançar uma aliança

para a família de seu pai. Ora, parece que as mães

(e os parentes maternos) sempre desempenharam um

papel decisivo na educação e no casamento dos fi-

lhos. As mães sempre se esforçaram para que seus

filhos se casassem em suas próprias famílias. Sem

dúvida, elas conseguiram conservar este uso antigo

favorável ao poder feminino, porque, mesmo na épo-

ca em que os pais enfeudavam seus filhos, as filhas,

criadas no gineceu, ficavam sob a dependência de

sua mãe. Ora, normalmente, um rapaz só adquire um

lote de esposas contra uma compensação e quando

ele tem irmãs para dar aos irmãos de sua prometida.

Dirigindo o casamento de suas filhas, as mães diri-

giam também o casamento de seus filhos e a escolha

de suas noras. Elas procuravam introduzir junto de

seus filhos, as filhas de seus irmãos que já as chama-

vam de tias (kou = sogras) (854). Este costume, seve-

ramente defendido, demonstra o poder da sogra sobre

a nora. Vê-se, por outro lado, que, como noras e

sogras formavam uma espécie de dinastia feminina

ligada aos mesmos interesses estrangeiros, a massa

das esposas constituía, em cada família, um grupo

compacto, bem preparado para defender os direitos


tradicionais da judicatura feminina. Face ao grupo das

esposas, os agnatos, divididos pela rivalidade que

opunha duas gerações sucessivas, tinham um único

meio para se fazer valer: romper a homogeneidade do

grupo feminino. Era isto que procuravam quando, vio-

lando a regra do casamento único, faziam entrar no

gineceu lotes sucessivos de esposas vindas de diver-

sas famílias. O êxito desta tática masculina não pôde

ser decisivo. Contra o pai, o filho pode, às vezes, se

apoiar na mãe e nos parentes maternos; contra a

mãe, quando o pai não está presente, o filho só pode

encontrar apoios prejudiciais, pois ele só tem prestí-

gio quando o prestígio materno permanece intacto (855).

Dominada, durante a vida do esposo, pela autoridade

marital, a autoridade materna torna-se total, ilimitada,

incondicionada, quando a esposa tem possibilidades

de sobreviver e de assumir a posição de viúva. A in-

dependência da família agnática e o direito patriarcal

não poderiam estabelecer-se plenamente se o costume

do sacrifício das primeiras esposas tivesse triun-

fado. Mas, precisamente, vêem-se viúvas esforçan-

do-se para desviar sobre outra pessoa as responsabili-

dades do luto, e são, geralmente, as segundas esposas

que servem de vítimas substitutas(856). Em várias

ocasiões de sua história, os Chineses tentarão evitar

Para a ordem agnática, esta crise provocada pela

Passagem do poder doméstico para as mãos de uma

viúva; por exemplo, procurando sacrificar a mãe ante-

cipadamente, quando o filho assume a posição de her-

deiro(857). Mas, na época feudal, os maridos eram


obrigados a usar de artifícios para extorquir de suas

esposas, poderes rivais, o juramento de segui-los no

túmulo. Acontecia mesmo que, não contente de ter

sobrevivido e de ter governado, a viúva alardeava a

pretensão de ter um túmulo independente e de se

fazer acompanhar por seu amante favorito(858). Os

excessos das viúvas constituem um grande tema para

as crônicas chinesas. Comparado a um outro tema,

igualmente importante, o das exações e dos roubos

das favoritas, entrevê-se qual foi, mesmo na ordem

feudal tão favorável aos homens, o fundamento está-

vel da judicatura feminina (859). Enriquecida pelos pre-

sentes feitos pelo marido às mulheres que, senhora

do gineceu, ela deixa aproximarem-se dele, uma pri-

meira esposa, se ela subsiste e sabe dirigir suas

damas de companhia, acaba por adquirir um poder

financeiro que contrabalança o poder de comando do

marido. Este último se estabelece sobre a posse de

terras e de palácios conservados no Templo ances-

tral. Embora estejamos mal informados sobre o as-

pecto econômico da organização familiar, parece que

as mulheres detinham, sob a forma de adornos, jades,

pérolas, jóias, uma fortuna tão importante quanto a

outra, porém mais móvel e melhor adaptada a um em-

prego vantajoso durante as lutas de influência. Quan-

do, em Ts'i, a casa principesca foi ameaçada por uma

família vassala cuja riqueza aumentava, a intervenção

de uma viúva pôde restabelecer a ordem das fortu-

nas (860). As viúvas dirigem o gineceu do filho, depois

de terem dirigido o do marido. Elas fornecem as fa-


voritas [recrutadas, às vezes, pelos cuidados de suas

próprias damas de companhia(861), tão grande é a

solidariedade dos grupos femininos]. Infeliz do filho

se elas lhe opõem um favorito! Pao, irmão do duque

Tchao de Song [610], era bem feito e tinha uma boa

tez. Além disto, era cheio de bons sentimentos do-

mésticos. Sua avó, tendo-o notado, quis tê-lo como

amante. Conta-se que ele se negou, em todo o caso

com muita habilidade, pois a viúva resolveu mandar

matar, em seu proveito, seu outro neto, o duque

Tchao, menos agradável e que "se portava mal". O

duque Tchao tinha uma facção à qual distribuiu todas

as suas riquezas, mas sem êxito: a viúva havia aju-

dado seu favorito a "fazer liberalidades" (862).

A mãe de família trata seu marido de "senhor";

ela deve ser submissa e hábil nos trabalhos das mu-

lheres; mas é a "dama" do gineceu. Ela é igual ao

marido, colocando-se na mesma categoria nas recep-

ções da Corte ou nas cerimônias do Templo ances-

tral (863). Seu poder depende do prestígio de seus pa-

rentes e da autoridade que ela pode adquirir sobre o

marido e sobre os filhos quando organiza sabiamente

sua vida sexual. Serva no tempo em que era nora, ela

é, depois que a morte a libertou de seu marido, uma

rainha-mãe à qual nenhum poder na família pode se

opor. Mas uma mulher não adquire e não aumenta seu

poder a não ser passando sua vida confinada no gine-

ceu. Esta reclusão surge como o próprio princípio da

judicatura feminina. Os aposentos das mulheres de-

vem ficar tão distantes quanto possível da rua. É pre-


ciso que a porta esteja "cuidadosamente fechada".

Um porteiro, um chefe dos eunucos mantém a guarda.

As mulheres não podem sair; os homens não podem

entrar(864), pelo menos com roupas de homens: pois

os namorados, às vezes, se disfarçam para serem

recebidos. Era, de resto, no gineceu que se tratavam,

habilmente, as intrigas e as conjurações (865). Ali tam-

bém, às vezes, formavam-se amizades entre os ho-

mens, por exemplo, quando chegavam a ter a mesma

amante: como o príncipe de Tch'en [599] e seus dois

ministros - tão unidos pela afeição que cada um de-

les se comprazia em usar, quando se encontravam

longe de sua amada, uma das vestimentas de sua

amiga em comum (866). Estes passatempos de devas-

sos (eles acabaram mal) mostram o valor que con-

quistavam, porque eram mantidas rigorosamente fe-

chadas, as mulheres e tudo o que lhes dizia respeito.

Uma esposa que cuidava de seu prestígio só saía

coberta com um véu e acompanhada por uma aia. Ela

caminhava pelo lado esquerdo para que nenhum ho-

mem (o lado direito era reservado aos homens) pu-

desse tocá-la. De noite, tomava o cuidado de usar uma

luz(867). Mesmo velha, se a casa pegasse fogo, ela

esperava a ordem da governante, que devia dirigir

seus passos, para sair(868). Enquanto guardasse o de-

coro, tudo lhe era permitido. A princesa de Nan-tseu,

que os camponeses tratavam de porca porque dormia

com seu irmão (o marido, "para lhe dar prazer", cha-

mara este irmão para sua corte) (869), desejou receber

a visita de Confúcio. O sábio não hesitou e não teve


razão para se descontentar. Nan-tseu, na verdade, aco-

lheu-o "escondida atrás de tapeçarias". Assim que

transpôs a porta, ele se prosternou, voltado para o

norte, como deve um súdito. Nan-tseu, atrás das cor-

tinas, respondeu, segundo os ritos, saudando duas ve-

zes, pois pôde-se ouvir duas vezes o som do jade de

seus braceletes e de seus pingentes. Também, apenas

algumas pessoas malévolas acusaram o filósofo de

ter visitado uma mulher de má vida. Ele mesmo nunca

admitiu ter errado. É verdade que, dirigindo-se a ele,

Nan-tseu designou-se por um pronome pessoal que

convém quando uma princesa fala a um senhor enfeu-

dado (870). A virtude da mulher é feita de modéstia e

de boa apresentação. Daí vem seu império. O retrato

mais prestigioso que nos deixaram de uma dama da

alta nobreza é o Tchouang Kiang. Ele é formado de

temas que, se não informavam sobre o tipo físico dos

Chineses antigos, mostram, pelo menos, que desde a

antiguidade não mudaram, nem as metáforas dos poe-

tas, nem o gênero de emoção que a beleza desperta.

Quando Tchouang Kiang aparece com seus dedos de-

licados como rebentos novos, sua pele branca como

pintura, seu pescoço fino como verme, seus dentes

semelhantes às sementes de abóbora, sua testa larga

como a das cigarras, suas sobrancelhas parecidas

com as antenas dos bichos-da-seda, o poeta manda

que todos se retirem bem depressa e que não can-

sem, com sua presença, o feliz senhor desta bela

mulher de talhe imponente(871). Uma outra dama,

Siuan Kiang, não merecia menos admiração e respeito


quando surgia, ela que não precisava de uma peruca,

usando um rico penteado ornado com cabelos posti-

ços. Sua testa parecia larga e branca sob os belos

alfinetes de marfim, e pedras preciosas pendiam de

suas orelhas. Em sua suntuosa roupa de cerimônia,

ela avançava com a majestade de um rio e (embora

pudesse ser acusada de maus costumes) todos, domi-

nados por um sentimento de veneração religiosa dian-

te desta mulher ricamente ornamentada, exclamavam:

"Oh! não é o Céu! não é o Soberano (872)! "

A sociedade no início da era imperial

A fundação do império corresponde uma

transformação da sociedade - muito

importante, mas mal conhecida. Eu de-

via me restringir a indicar os principais

pontos de partida deste movimento.

Nada pode ter maior interesse do que

a nova idéia que se faz então do Soberano: nela se

combinam elementos de origem e de fortuna diferen-

tes. Por outro lado, uma reclassificação da sociedade,

que parece delineada há muito tempo, mas que então

se acelera, acompanha-se de uma reforma dos costu-

mes à qual não são estranhos nem a propaganda de

certos moralistas, nem a ação do governo.

O Imperador
O primeiro imperador, Ts'in Che Hou-

ang-ti, pertencia a uma grande casa

senhorial, a dos Ts'in. Por outro

lado, Kao-tsou, que restabeleceu,

em proveito dos Han, a unidade im-

perial que perigava desde a morte

de seu fundador, era um homem do povo. No domínio

de Ts'in, com os regulamentos [359] atribuídos a Wei-

yang, o legislador do duque de Hiao, apareceu uma no-

va concepção do príncipe e de seus direitos. Ts'in Che

Houang-ti, como o duque, foi qualificado de tirano.

Censuram-no por ter governado à custa de punições,

isto é, abusando dos processos de lesa-majestade.

Com efeito, na base da nova ordem que queria esta-

belecer, estava a idéia da Majestade própria à pés-

soa imperial. - Os Han apresentavam-se como res-

tauradores da ordem antiga. Eles pretendiam pôr fim

à época da tirania. Nova dinastia que reencontra as

velhas fontes do direito, queriam que se vissem ne-

les os continuadores das três dinastias reais e os

sucessores verdadeiros dos Tcheou. Fundamentam

seu poder no prestígio próprio aos Filhos do Céu. Mas,

se fingem conservar, para o chefe de Estado, a apa-

rência de um simples suserano, usam o título impe-

rial, criado por Che Houang-ti. Como este, sustenta-

vam, com o auxílio de práticas mais ou menos novas,

a Majestade do imperador. Entretanto, pretendendo

aparecer como restauradores e não como renovado-

res, eles se esforçam para incorporar à noção de


Filhos do Céu, os elementos constitutivos do conceito

de Majestade. Queriam se aproveitar de uma dupla

herança e não desprezavam os princípios de autori-

dade imaginados na era dos tiranos. Ajudados pelo

sábio esforço dos letrados, que, sob seu reinado e

em seu benefício, reconstituíram a antiguidade da

China, chegam a fazer aceitar a nova concepção de

Majestade imperial, apresentando-a como um atributo

antigo dos Filhos do Céu, sábios autores da civilização

nacional.

l - O suserano, Filho do Céu

Os melhores sábios chineses reconhecem no

Tcheou li (Ritual dos Tcheou) - e em algumas produ-

ções do mesmo tipo - a obra de administradores

utopistas trabalhando a serviço dos Han (873). Deixando

aos eruditos seguros de sua crítica o cuidado de res-

tabelecer, mesmo nos detalhes, a Constituição dos

Tcheou (e até a dos Yin), tentarei somente destacar a

idéia que, sob os Han, podia fazer-se de um Filho do

Céu. Se, por acaso, os reis Tcheou (numa época inde-

terminada) foram soberanos tais como os Han os re.

presentavam, é ainda muito cedo para tratar disto.

Estes reis, com efeito, não desempenharam nenhum

papel político desde a época em que se inicia a histó-

ria chinesa (período tch'ouen ts'ieou). São conside-


rados, às vezes, sob o aspecto de grandes mestres

de uma espécie de religião nacional. Emprestar-lhes,

à primeira vista, esta função principal, é, justamente,

deixar.se cercear pelos falsários respeitosos que re-

construíram a história dinástica da antiguidade. Uma

análise crítica pode, quando muito, destacar alguns

antecedentes da noção tradicional de Filho do Céu,

tal como se fixou sob os Han.

Em nenhum momento, as crônicas da época

mostram.nos um rei Tcheou exercendo uma autorida-

de religiosa que lhe seja própria. O rei, como todo

senhor, possui Ancestrais e deuses do Solo. Como

eles, honra, como o fundador de sua raça, um Herói

que se tornou ilustre preparando a terra. O antepas-

sado dos Tcheou traz o título de Heou-tsi (Príncipe

Painço), Senhor das colheitas. Seus descendentes, re-

vestidos do mesmo título, continuam sua obra. Cada

ano, tiram da terra seu caráter sagrado por meio de

uma primeira lavragem; cada ano, presidem à festa

das colheitas. Os chefes dos domínios menores têm

os mesmos deveres. - As crônicas, por outro lado,

deixam entrever certos traços de uma autoridade mo-

ral que parece mais peculiar ao suserano. O Filho

do Céu aparece como o chefe de guerra da Confede-

ração chinesa. Comanda (em princípio) as expedições

que são verdadeiras guerras dirigidas contra os Bár-

baros. Para dizer a verdade, todo senhor é um caçador

de Bárbaros, mas ele não opera senão nas fronteiras

de seu domínio. Somente o Filho do Céu conduz a


guerra ou a preside, quando opõe a Confederação chi-

nesa a uma confederação de Bárbaros. Anteriormente

às crônicas datadas, três reis Tcheou talvez tivessem

desempenhado um papel histórico. Ora, a tradição

lírica ou épica apresenta estes Filhos do Céu, os reis

Tchao, Mou e Siuan, como os chefes de grandes ex-

pedições contra os Bárbaros em fronteiras longín-

quas (874). Na época tch'ouen ts'ieou, são unicamente

os senhores que comandam estes levantes da confe-

deração. A tradição ritual diz que eles sempre agiram

por conta do rei. Quando venciam, o suserano triun.

fava(875). O mais ilustre destes chefes investidos do

imperium pelo comando da guerra contra os Bárbaros,

é Houan de Ts'i, o primeiro dos Hegemons; ele rece-

beu a glória por ter repelido uma investida violenta

dos Ti. Nota-se que o termo que, depois dos Hege.

mons, serviu para designar os tiranos é idêntico ao

título que era conferido pela investidura, concedendo

o imperium militar (876). - Chefe de guerra da Confe-

deração, o rei é poupado das vinganças feudais. Tam-

bém sua cidade é um lugar de grande paz. Um senhor

que parte para uma batalha contra um rival, não pode

passar armado diante das muralhas da capital. Não é

suficiente que seus guerreiros tirem seus capacetes

e desçam de seus carros: é preciso que suas coura.

ças e todas as suas armas, ocultas em suas capas,

fiquem invisíveis (877). O suserano, na verdade, preside

à paz chinesa. Ele parece julgar os recursos dos pro-

cessos feudais(878). Em teoria, pelo menos, ele pré-

side aos tratados (meng) que aplacam as vinganças;


o presidente efetivo, simples senhor, pode substituí-lo

como Hegemon: quer dizer que, para presidir, é pré-

ciso possuir uma delegação do imperium do suse-

rano (879).

É de sua função de chefe de guerra que o suse-

rano parece ter uma qualificação religiosa peculiar.

Esta que (por efeito da ampliação devida ao trabalho

de reconstituição histórica) parece ter sido a fonte

de um prestígio de ordem superior, passou a ser o

atributo próprio do Filho do Céu. Este último, quer

celebre o triunfo, quer presida às pazes feudais, é o

mestre de um sacrifício de extraordinário esplendor.

Os Ancestrais e o Solo são associados ao triunfo,

mas o Céu também o é e mais do que qualquer outra

divindade (agrária ou ancestral), pois o Céu é o deus

dos juramentos. Ele é o deus dos tratados, o deus das

reuniões interfeudais: é a única divindade comum e

nacional. É também o único deus ao qual se atribuem

traços humanos. Pode-se presumir que ele deve esta

natureza antropomórfica aos sacrifícios que, como

deus justiceiro, alimentam-no de carne humana(880).

Viu.se que, segundo a tradição, as primeiras leis pe-

nais foram promulgadas ao curso das expedições de

caça que não se diferenciam das incursões contra os

Bárbaros(881). Assim também, os casos mais signifi-

cativos de sacrifícios humanos, cuja lembrança se

conservou, ligam-se a paradas militares realizadas nos

limites bárbaros (882). Por outro lado, as lendas relati-

vas às primeiras formas do culto do Céu, mostram.nos


os soberanos míticos sacrificando, na estação pres.

crita, sobre as montanhas dos quatro pontos car.

deais (883). Ora, precisamente um dos poemas que me-

lhor informam sobre o prestígio do soberano - mos-

trando-o em seu papel de pacificador, quando atraía

sobre si a proteção das divindades dos Grandes Rios

e dos Grandes Montes (Yo, os montes cardeais) -

explica também (e de maneira característica) o título

de Filho do Céu. "Na época prescrita, dirijo-me aos

principadós! - O Augusto Céu, eis que ele me trata

como filho! " A tradição afirma que o poema se refere

às paradas das quatro grandes caçadas das estações,

9raças às quais, "circulando pelo império", o Rei, "ao

mesmo tempo, cultiva e difunde sua Virtude" (884). As

crônicas datadas não se referem a nenhum rei Tcheou

viajando pelo império e sacrificando nos Lugares.

Altos. Contam, em compensação, que o primeiro dos

Hegemons, Houan de Ts'i (Chang.tong), depois de ter

obtido vitórias por conta do Filho do Céu, quis cele-

brar, em seu próprio benefício, um sacrifício sobre o

T'ai chan (Chan-tong), montanha cardeal do leste (885).

Por outro lado, os senhores de Ts'in (os quais consti-

tuíram, pouco a pouco, um conjunto de Lugares-Altos

sagrados onde faziam sacrifícios às divindades regio-

nais do Céu) atribuíam o título de Hegemon a um de

seus ancestrais, o duque Mou: este pretendia sacri-

ficar ao Céu um vencido que, inicialmente, alojaria,

Para o tempo das purificações prévias, na torre Ling,

a torre das Influências felizes (886). Na capital real (e

'á somente, segundo os rituais) devia haver uma torre


Ling, da qual não se fala nunca sem relaciona-la com

um templo chamado Ming t'ang. Se a torre Ling é ci-

tada por ocasião dos triunfos e das oferendas de cati-

vos, ela também é o lugar onde se observam as mani-

festações da vontade celeste. Paralelamente, o Ming

t'ang (onde a tradição diz que os Tcheou consagraram,

por um sacrifício triunfal, a derrota dos Tin) é, por

sua vez, o lugar das reuniões interfeudais presididas

pelo Filho do Céu e o local que lhe convém para pro-

mulgar as ordens mensais (Yue ling) que valem para

o reino todo (887). Estas ordens têm por fim conciliar

as ocupações dos homens e os hábitos da natureza,

regidos pelo Céu. O Céu ordena as estações, como

o Filho do Céu no momento em que promulga as

ordens mensais. Ele deve, para isso, penetrar na Casa

do Calendário que é quadrada (como a Terra) e dis-

posta de acordo com os pontos cardeais, mas que

deve ser coberta com um telhado de colmo circular

(como o Céu). A presença do Filho do Céu no Ming

t'ang é comparada, pela tradição, à movimentação dos

soberanos míticos no império. Todas as duas devem

realizar-se de sorte que o rei promulgue, colocado a

leste, a época e as ordens da primavera; ao sul, a

época e as ordens do verão, etc. Assim se acha esta-

belecida (em virtude da crença chinesa que postula

uma aderência exata dos Espaços e das Épocas) a

ordem gêmea dos Orientes e das Estações (888). O Fi-

lho do Céu estende ao império inteiro sua Virtude

reguladora, porque, na Casa do Calendário, ele rege,

em nome do Céu, o curso do Tempo - depois de ter,


nas paradas das estações das caçadas, presidido ao

sacrifício que os senhores confederados ofereciam à

divindade, penhor de boa ordem e de paz nacional.

Mestre único do calendário e animador de toda

a terra chinesa, assim surge, na tradição dos Han, o

Filho do Céu. Não se pode ter certeza de que este

tenha sido seu papel desde a alta antiguidade. Na

época tch'ouen ts'ieou, em todo caso, os diversos do-

mínios não empregavam um sistema único de calen-

dário. As datas das crônicas são indicadas segundo o

calendário real, graças à intervenção devotada dos

historiadores da era imperial. Desta maneira, eles tira-

ram uma boa parte do valor dos dados da cronologia

antiga(889). Em compensação, fornecem-nos o teste-

munho da importância extrema, mas tardia, que tomou

a função de Filho do Céu, a idéia de que ele é o único

a reger, para todos, a China inteira e o Tempo. Ne-

nhum documento permite concluir que o suserano vi-

vesse sob o telhado de colmo do Ming t'ang, submeti-

do, ele entre os senhores, a observâncias particulares.

Aparentemente, ele devia, como todo chefe, subme-

ter-se, em tempos regulares, a uma vida de exposição

nas matas ou de confinamento num retiro sombrio.

Chegava, assim, a associar intimamente sua pessoa

com a vida da natureza. Mas as expiações que reali-

zava, das quais tirava uma virtude animadora, não

diferem, em nada, daqueles que se impunham ao

senhor da mais humilde cheferia: é significativo que

os devotamentos de Yu e de T'ang, fundadores das

duas primeiras dinastias reais da tradição chinesa,


tenham sido de natureza idêntica aos dos simples se-

nhores do período histórico (890). No entanto, só o su-

serano tem direito à qualificação de Homem Único:

é que só ele estabelece parentesco com o Céu, to.

mando a carga da expiação mais rigorosa e mais glo-

riosa, a que é exigida por uma vitória obtida pelas for-

ças unidas da Confederação. Ele conduz a dança triun-

fal do sacrifício ao Céu e é o primeiro a comungar

com uma divindade venerada por todos os senhores

federados. Aparentado intimamente a ela, ele pode

dizer-se seu filho, no sentido próprio do termo. A tra-

dição histórica coloca na origem de uma dinastia de

Filhos do Céu, um Herói nascido das obras celes.

tes(891). Embora entre os ancestrais de casas senho-

riais somente um seja expressamente qualificado de

Mediador, parece que iodos os chefes feudais tinham

a missão de presidir às festas primaveris da fecundi-

dade. Entretanto, segundo os autores de rituais, so-

mente as esposas da família suserana tinham o direito

de festejar, na primavera, o Mediador supremo, este

único marido das Grandes Antepassadas que, pela gra-

ça do Céu, deram nascimento aos diversos fundado-

res das dinastias reais(892). O tema mítico ou ritual

da união das Rainhas-mães com uma divindade ce-

leste inspira belos hinos dinásticos: eles ajudaram

muito, sem dúvida, a ornar a casa soberana com uma

nobreza eminente. Este tema lembra, expressamente,

a força das mães e o dualismo que é a base do chefe,

pai e mãe do povo. A rainha tem por emblema a Lua,

na qual os sábios não querem reconhecer senão um


simples espelho, mas que é, por excelência, o reser-

vatório de toda fecundidade terrestre. O próprio

Tcheou-li admite que a rainha é a única que é capaz

de conservar a vida nas sementes. Face ao rei que

possui o emblema do Sol, e que é Filho do Céu, a

rainha conserva uma parte do respeito que mereceu

no tempo em que se lhe concedia a soma das ener-

gias próprias à Mãe-Terra.

Os imperadores Han apresentaram-se aos Chi-

neses como Filhos do Céu perfeitos. Acreditavam na

idéia de que Kao-tsou, seu fundador, fora concebido

de maneira miraculosa por sua mãe (893). No decurso

deste ano de 113, durante o qual pensou inaugurar

uma era nova, o imperador Wou fez (com vestimentas

amarelas) um sacrifício à Soberana Terra, qualificada

de "mãe opulenta", marcando expressamente a inten-

ção de que este sacrifício fosse igual ao sacrifícío.

ao Céu soberano(894). O imperador Tch'eng (31 a.C.)

fez levantar nos arrabaldes ao norte da capital o altar

da Terra, antes edificado em Fen-ying (Chan-si): sa-

crificava-se ao Céu nos arrabaldes ao sul. Desde uma

época indeterminada, mas certamente anterior ao

século VII de nossa era, a Terra era representada por

uma estátua de mulher(895). É possível que esta con-

cepção antropomórfica da divindade do solo chinês

seja antiga, como é seguramente antiga a represen,

tação antropomórfica do Céu. Nos velhos textos de

orações ou de juramentos, a Soberana Terra já se

opõe ao Augusto Céu (896). Estes textos pertencem a


obras remodeladas sob os Han. Provam, pelo menos,

que estes aceitaram o princípio de um dualismo reli-

gioso. É difícil acreditar (como querem os eruditos

chineses e, depois, os ocidentais) que eles tenham

inventado tudo. O imperador Wou, apresentado como

o criador do culto da Terra Soberana, é,um dos mo-

narcas chineses que mais sentiram os perigos que

o dualismo político, apoiado no dualismo religioso,

oferecia ao Estado, concedendo muito prestígio às

imperatrizes e muita autoridade às viúvas reais. É ra-

zoável admitir que, se ele inovou fazendo sacrifícios

â Terra, a inovação consistiu no fato de que o impe-

rador presidiu, em pessoa e publicamente, a um sa-

crifício no qual a imperatriz (talvez no segredo do gi-

neceu) deveria ter oficiado. A tática das imperatrizes

ambiciosas, tais como a imperatriz Wou Tso-t'ien dos

T'ang [684-704], foi reclamar, de início, o privilégio

de presidir aos sacrifícios à Terra antes de se apossar

do direito de sacrificar ao Céu(898). A interpretação

mais provável do sacrifício à Terra, inaugurado pelo

imperador Wou, é de que ele foi feito na intenção de

beneficiar somente o Filho do Céu com o prestígio

religioso que pertencia, sem dúvida, às rainhas na

qualidade de oficiantes de um culto feminino da Terra,

cuja importância foi disfarçada pelos rituais.

Esta interpretação concilia-se perfeitamente

com aquela que convém dar aos sacrifícios fong e

chan, inaugurados pelo mesmo imperador Wou. A his-

tória destes sacrifícios parece ser bem mais com-


plexa do que se diz comumente. Também é impossível

crer numa inovação completa a esse respeito. Os da-

dos tradicionais, utilizados pelos Han para conferir a

esta cerimônia o valor de um ato religioso supremo,

deixam entrever que eles se referem a ritos antigos

relacionados com as festas de triunfo. Nos anteceden-

tes míticos do sacrifício fong, trata-se, ao mesmo

tempo, de assinalar uma tomada de posse e de expiar

as conseqüências de uma vitória. Ora, o sacrifício

fong do imperador Wou foi feito sobre o T'ai chan,

monte cardeal do leste, no momento exato em que

este soberano queria firmar o império dos Han sobre

todas as províncias orientais da China. O primeiro

imperador, que foi também o primeiro conquistador

da China oriental, tinha feito a ascensão do T'ai

chan [219], mas os historiadores dos Han dizem-nos (e

suas narrativas assinalam algum obstáculo) que Che

Houang-ti não chegou a sacrificar (899). Um sacrifício

falho volta-se contra o oficiante presunçoso: a morte

prematura [210] do primeiro imperador ocorreu durante

uma nova inspeção dos territórios orientais. O impe-

rador Wou conseguiu, depois de muito hesitar, fazer

o sacrifício fong sobre o T'ai chan [110], mas, pouco

antes (em 119), seu general preferido, Ho K'iu-p'ing,

depois de ter capturado oitenta chefes bárbaros para

tomar, triunfalmente, posse de sua região, celebrou

sobre as montanhas de Lang-kiu.siu e de Hou-yen, os

sacrifícios fong e chan (900). Ho K'iu-p'ing era sobrinho

da imperatriz Wei, cujo irmão comandava as forças

chinesas, e que era a mãe do herdeiro designado pelo


imperador Wou. Pois, precisamente, o único persona-

gem admitido para acompanhar o imperador Wou em

sua ascensão ao T'ai chan, em 110, foi o próprio filho

de Ho K'iu-p'ing. Este, (que o soberano fez subir em

seu carro e que amava tanto quanto havia amado o

pai) morreu misteriosamente em conseqüência do sa-

crifício: as expressões dos historiadores mostram

claramente que ele foi a vítima(901). Estes fatos são

tanto mais significativos já que (apesar do desagrado

no qual incorreram mais tarde a imperatriz Wei e seu

filho) o principal dos regentes designados pelo impe-

rador Wou para proteger seu novo herdeiro, foi Ho

Kouang, irmão de Ho K'iu-p'ing. Ora, a neta de Ho

Kouang, casada com o imperador Tchao, possuiu, de-

pois da morte deste sucessor do imperador Wou [74 a. c.],

toda a autoridade de uma viúva real: ela a exerceu

em proveito da família Ho, da qual um dos membros

havia assegurado o triunfo dos Han sobre os Bárba-

ros, enquanto que o outro havia sido vitimado na

vitória.

Se as implicações políticas do sacrifício fong

revelam a persistência do dualismo na organização

do Estado e da família, este dualismo encontra.se

também no aspecto religioso da cerimônia. Trata-se

de uma cerimônia dupla, onde o sacrifício ao Céu

(fong) feito no alto de um pico pelo imperador em

pessoa (mas acompanhado de um segundo) é prece-

dida pelo sacrifício chan. A palavra chan é, segundo

a tradição chinesa, equivalente à palavra jang (= ex-


pulsar e ceder), cujo valor antigo já foi explicado:

este último termo designa o ato pelo qual o soberano

antes de assumir, para si somente, o poder, começa

por cede-lo a um arauto dinástico - escolhido, pare-

ce, no grupo da mulher e, às vezes, tutor do filho su-

cessor, mas, algumas vezes também sacrificado(902).

O sacrifício chan, anterior ao sacrifício fong, é um

sacrifício à Terra. Ele se faz sobre uma colina baixa,

no meio de uma lagoa cercando um montículo. Sabe-

mos, pelas cerimônias feitas em Fen-yin, em honra

da Soberana Terra, que o local escolhido tinha a forma

de um traseiro humano. A colina em forma da ponta

do osso sacro (chouei) é qualificada de jang (que a

escrita, como a pronúncia, aproxima de jang, sacrifi-

car, ceder, mas) que evoca um dos jogos inaugurais

do ano, assim como uma terra destorroada (903). Pelo

contrário, a palavra fong dá a idéia de um montículo

de seixos amontoados e de uma alta pedra erguida

em sinal de vitória (904). Celebrando seu grande sacri-

fício, o imperador Wou fez uma prece destinada a

assegurar sua imortalidade, ou pelo menos, a exaltar,

em sua pessoa, a Majestade própria de um imperador:

mas, por outro lado, o simbolismo das cerimônias

fong e chan é bastante claro para mostrar que, apro-

priando-se do benefício destes ritos conjugados, o im-

perador procurava também completar, pela anexação

das virtudes que se ganham oficiando em honra da

Terra, o prestígio próprio de um Filho do Céu. Aqui

também a imperatriz Wou Tso-t'ien dos T'ang cumpriu

exatamente a tradição religiosa, quando a utilizou, in-


vertendo os papéis, com grande escândalo dos letra-

dos, e chegou a presidir, sozinha, à dupla cerimô-

nia [695], ocupando o lugar de um imperador. Inicial-

mente, ela conseguira [666] incumbir-se apenas do sa-

crifício chan que executou, pondo-se à frente de todo

o harém, enquanto seu marido se limitava a realizar o

rito fong (905).

Viu.se, anteriormente, que toda a história da

celebração do sacrifício fong pelo imperador Wou dos

Han está ligada à da preparação de um calendário

que convinha à nova dinastia. Foi em 113 (ano do

sacrifício à Terra Soberana) que o imperador tomou

realmente posse do império em nome dos Han, na

qualidade de Filho do Céu. Neste ano, com efeito, ele

deu um feudo a um descendente dos Tcheou, a fim de

que, no interior deste território, pudessem continuar

as tradições religiosas da dinastia então derrubada

(se ale não favoreceu as dinastias prescritas há mais

tempo foi porque nada restava delas) (906). Neste ano

ainda, "o Filho do Céu, pela primeira vez, fez a inspe-

ção" do império, começando pelo leste e pelo T'ai

chan: um recenseamento dos Lugares-Santos parece

ter acompanhado esta inspeção, todas as duas equi-

valendo a uma verdadeira tomada de posse. No fim

deste ano, como o solstício do inverno caía na manhã

do primeiro dia, pensou-se em instituir a nova era e

fazer recomeçar a seqüência do tempo (907). Mas o sa-

crifício fong teve que ser retardado até 110 por causa

da guerra empreendida contra o Nan-yue (sudeste).


Foi realizado depois de uma nova jornada de inspe-

ção e, quando a cerimônia terminou, o imperador

transferiu.se para um Ming t'ang (Casa do Calendá-

rio), ou antes, para o local presumido de um velho

Ming t'ang. Mas uma Casa do Calendário foi construí-

da e inaugurada em 106, na ocasião da segunda ceri-

mônia fong, celebrada pelo imperador Wou (908). No

dia kia tseu (primeiro dia do ciclo sexagenário) que

coincidia com o primeiro dia do décimo primeiro mês

e no qual caía o solstício do inverno, o imperador sa-

crificou no Ming t'ang e se pronunciou a fórmula: "O

período está terminado! Ele recomeça!" Também

"aqueles que calcularam o calendário, fizeram desta

data (25 de novembro de 105) a sua origem" (909). De

fato, não foi senão no quinto mês (solstício do verão)

do ano 104 que o calendário foi mudado. Desde então,

foram escolhidos a cor amarela e o número cinco,

emblemas dinásticos. Esta reforma do calendário im-

plicava uma reforma total no sistema de medidas e,

particularmente, dos tubos sonoros que determinavam

a escala de música. "As divisões do ano foram (então)

corrigidas: a nota yu tornou-se de novo pura;...os

princípios Yin e Yang separaram.se e se uniram de

maneira regular(910)." É muito possível que todo o

trabalho de reforma monetária, que foi a grande rea-

lização do reinado, esteja em conexão com esta refor-

ma dinástica das medidas. Em todo caso, foi em 110,

ano do primeiro sacrifício fong, que passou a vigorar

o sistema de regulamentação dos preços preconizado

por Sang Hong.yang: o que devia, segundo seu autor,


assegurar o equilíbrio econômico do império dos

Han (911). Todos estes fatos fazem considerar que a

autoridade do Filho do Céu deriva de uma qualificação

religiosa obtida pela consagração da vitória da dinas-

tia. É significativo que esta tenha sido celebrada no

leste e depois de uma guerra afortunada contra os

Bárbaros do leste. O prestígio do Filho do Céu tem

por princípio um triunfo que condiciona e que realiza

a unidade da China, concebida como uma unidade de

civilização.

"Sob o Céu", isto é, no mundo chinês, único

beneficiário da expiação triunfal que consagra a vitó-

ria pelo Céu, o Filho do Céu assume a posição de

"Homem Único". Beneficiar-se de tudo e expiar por

todos, tal era a função desempenhada por um senhor,

num território limitado. É claro que um prestígio que

se nutre de expiações feitas por conta de outrem,

corresponde a um poder mantido por delegação e não

a uma autoridade autônoma e propriamente sobera-

na. Este poder, por outro lado, em virtude de sua pró-

pria natureza, acarreta, para o soberano, como para

o feudatário, uma vida regulada pela etiqueta e pela

tradição. O chefe, então, só pode agir delegando sua

autoridade e distribuindo uma parte de seu prestígio.

Ele só reina com a condição de não governar. É parti-

cularmente perigoso para ele agir militarmente e, nes-

te caso, deve investir seu general de um imperium

completo, cujo exercício não é fácil de ser limitado

apenas às fronteiras bárbaras. A tradição pretendia


que os reis Tcheou haviam tido sua autoridade eclip-

sada pela dos hegemons. Os imperadores deviam te-

mer que o poder de seus generais viesse, ao menos,

contrabalançar o seu. A história da dinastia Han mos-

tra, na verdade, o poder dos marechais crescendo

sem parar. O marechal é comumente (o pai ou) o

irmão da imperatriz. Esta serve de refém ao impera-

dor, seu marido, mas, este morto, ela conserva seus

privilégios e o marechal, tutor do soberano, ainda

menor, e da dinastia, assume, então, todos os poderes

de um mordomo-mor do palácio. A dinastia só se man-

tém com o sacrifício periódico dos grandes chefes

militares aos quais o imperador deve conferir o impe-

rium. Contra estes chefes militares, a dinastia deve

se apoiar numa clientela. O imperador Han, como um

simples suserano, deve distribuir os feudos e consi-

derar seus próprios parentes como protetores, como

"vassalos barreiras". O império é o espólio de uma

clientela familiar, e é apenas por meio de artifícios e

astúcia que se pode introduzir uma administração de

Estado. O imperador, que afeta ser um simples Filho

do Céu e que proclama que "o princípio de todas as

culpas tem sua origem nele mesmo", acha-se reduzido

à inação. Tal foi o caso do imperador Wen dos primei-

ros Han (180-157), que deveu a sua modéstia ritual à

glória com que os letrados o cumularam. Mas sob seu

reinado, o feudalismo reconstituiu-se e os Bárbaros tor-

naram.se ameaçadores. Seu sucessor quase que per-

deu o poder. Foi então que o grande homem da

dinastia, o imperador Wou, retomando parte da tradi-


ção de Ts'in Che Houang-ti, começou a acrescentar,

ao prestígio do Filho do Céu, todos os princípios de

força com os quais, no fim da era dos tiranos, o pri-

meiro imperador havia alimentado sua Majestade.

ll - O soberano autocrata

Por volta do fim do período feudal (Reinos com-

batentes), formaram-se domínios poderosos, anima-

dos de um novo espírito. Seus chefes são guerreiros

indiferentes à glória conferida pela preocupação com

a etiqueta e com a moderação, mas ávidos de con-

quistas, de poderes efetivos, de riquezas reais. Tiram

seus tesouros das minas e das salinas, dos pântanos

e dos bosques, das fronteiras que tomam dos Barba-

ros e dos terrenos incultos que sabem cultivar. Enco-

rajam os comerciantes, fazem circular as riquezas.

Têm celeiros e tesouros. Acumulam os abastecimen-

tos destinados aos exércitos, os metais e as jóias que

servem para estreitar as relações. É a época das sun-

tuosidades que se afrontam, das ambições desmedi-

das e das anexações. Viu-se, então, que se esboça a

noção de um poder de ordem superior que pertence

ao príncipe como chefe de Estado. Mas, ao contrário

dos legisladores que desprezam, todos os letrados,

que escrevem a história, consideram o crescimento do

Estado como usurpações. Os grandes potentados,

aviltados em seu orgulho cego, são descritos com os

traços que a tradição começa a atribuir aos antigos


reis de perdição. Nas capitais suntuosas dos Reinos,

os vassalos se perdem na multidão de aventureiros

vindos de longe, feiticeiros, médicos, astrólogos, filó-

sofos, espadachins, dialéticos, histriões, juristas, cada

qual se tornando o favorito do dia, com sua receita

do poder. A vida da corte parece uma rixa perpétua

onde as corporações e as clientelas se chocam selva.

gemente. O senhor toma ar de tirano. Mais do que

nunca, ele é um criador da hierarquia, mas de uma

hierarquia móvel, a ponto de nada parecer adquirido

a título hereditário e da autoridade do chefe parecer

ligada a sua pessoa mais do que a sua linhagem. O

prestígio por ele procurado não parece emanar da

observância das proibições costumeiras ou da obten-

ção regular dos sacramentos tradicionais. A estes

príncipes magníficos, as graças mágicas parecem con-

vir melhor do que as graças religiosas. Eles despre-

zavam o saber mesquinho legado pelos antepassados

e conservado por seus mestres-de-cerimônias, que

são os vassalos hereditários. Acolhem desconhecidos,

depositários de novas ciências, que lhes prometem

êxitos ilimitados. Confiam, sucessivamente, sua sorte

a um destes técnicos de saber mágico. Fazem-nos

seus auxiliares, oferecendo-lhes a metade de sua for-

tuna, responsabilizando-os, depois, pela calamidade de

um revés ou pelo perigo que jaz no fundo de um êxito

grande demais. Enquanto os favoritos são bem suce-

didos, não o sendo, porém, em excesso, podem tra-

balhar para a glória de seu senhor. Seu banimento

ou sua morte compensarão os reveses e purificarão


os êxitos. O esplendor de sua ascensão e o de sua

queda concorrem para conferir novo brilho à glória

do potentado e para revestir sua pessoa de majestade.

Se parece verdadeiro que o último período dos

tempos feudais foi marcado por competições furiosas

em que, lutando com riquezas acrescidas e magias

novas, alguns príncipes conquistaram a posição de

potentados e o nome de tiranos, os fatos também

mostram que, no início da época feudal, o prestígio

necessário ao chefe era adquirido nos torneios onde

entravam em jogo técnicas e valores que não eram

unicamente de natureza tradicional, embora todos fos-

sem de ordem mística. Os princípios de majestade

procurados pelos tiranos e, depois deles, pelos impe.

radores, não são, o que quer que diga a tradição chi-

nesa, novidades imaginadas numa era de decadência

e anarquia. De fato, para criar como para destruir a

ordem feudal, foram necessários esforços da mesma

ordem. As fontes da majestade estão próximas das

fontes do prestígio. Elas não foram descobertas pos-

teriormente. Para a crítica ortodoxa, o prestígio do

Filho do Céu nasce da observância da etiqueta confu-

ciana, identificada à sabedoria dos tempos felizes em

que se iniciou a civilização; a glória procurada pelos

potentados deriva, pelo contrário, das ambições ilusó-

rias nascidas das especulações decadentes dos taoís-

tas. Estas afirmações não estão desprovidas de ver-

dade, mas com a condição de se eliminar tudo aquilo

que constitui um julgamento de valor e tudo o que

julga antecipadamente uma ordem histórica. As prá-


ticas e as teorias de onde os soberanos tiraram os

elementos constitutivos da majestade imperial, não

são superstições recentes e só puderam ser conside-

radas especificamente taoístas depois da constituição

de uma escola ortodoxa. Che Houang-ti é tido como um

inimigo dos letrados, mas é impossível estender o

mesmo julgamento ao imperador Wou, que foi um

eclético e que patrocinou o sincretismo religioso.

Kao-tsou, em todo caso, herói nacional e herói popu-

lar, não procura, de maneira alguma, ser um Filho do

Céu segundo a definição ortodoxa. Se este aventurei-

ro feliz chegou a aparecer como imperador, foi porque

soube utilizar uma corrente mística, que era uma cor-

rente popular e uma corrente profunda. Uma indica-

ção sugestiva é fornecida pelo fato de que ele estava

marcado com setenta e dois pontos negros na coxa

esquerda: setenta e dois é o número característico

das confrarias (912). Fato mais notável ainda, a história

reconhece que Kao-tsou deveu a melhor parte de seu

êxito a seu conselheiro íntimo, Tchang Leang (913)

(este seria depois considerado um dos primeiros pa-

tronos das seitas taoístas) (914). Depois de ter dirigido

a política de Kao-tsou e a da imperatriz Lu, apoiando.

se, na ocasião, na autoridade dos anciãos divinos (915),

Tchang Leang soube escapar da desgraça devida aos

favoritos bem sucedidos demais. Retirou-se a tempo

e dedicou seus dias a se preparar na arte da longa

vida. Sseu-ma Ts'ien afirma que ele pertencia à escola

ascética do imortal Tch'e-song-tseu (916). Tchang Leang

sabia, segundo Kao-tsou, "combinar os planos no fun-


do de uma tenda e alcançar a vitória a mil li de dis-

tância" (917). Tal é, na verdade, o princípio e o sinal da

majestade e de'toda autoridade. O imperador chega

a ser um soberano autocrata, quando (como asceta)

vive num afastamento glorioso - exaltando o vigor

de vida que está nele, de maneira a adquirir a imorta-

lidade que pertence aos gênios e que é a marca de

um poder ilimitado - e exercendo esse poder, sem

nunca o delegar, por um simples efeito de influência,

que informa os atos de todos os homens e do univer-

so inteiro.

Inicialmente, Che Houang-ti adotara, para se

designar, um termo (tchen) especificando, dizem os

comentários, que ele agia sem ser visto e sem fazer

ouvir o som de sua voz(918). Mais tarde, em virtude

dos conselhos do mestre Lou, um mágico que empre-

gava para atrair os gênios, decidiu viver num lugar

ignorado de todos os seus súditos, para que nada

impuro viesse mancha-lo(919). Movimentava-se num

palácio que, representação mais adequada do mundo

do que o próprio Ming t'ang, continha, sem dúvida,

tanto quartos quantos são os dias do ano. Aqueles

que divulgavam seu refúgio eram punidos com a mor-

te: punidos com a morte aqueles que se supunha que

tinham divulgado suas palavras. Num raio de duzentos

li em redor de seu palácio, todos os caminhos eram

cercados por muros e cobertos. O soberano, deixando

de discutir os assuntos, tomava as decisões sozinho,

em seu palácio murado. Desde então, tendo feito o


necessário para entrar em comunicação direta com

estes "Homens verdadeiros", que são os Gênios, de.

signou.se, não mais pela palavra tchen, mas pela ex-

pressão "Homem verdadeiro"(920). Assim também,

Eul-che Houang-ti, seu filho, para evitar que o pertur-

bassem com "discursos maus" e para não "mostrar

suas imperfeições", resolveu ficar confinado em seus

aposentos privados. Não saía nunca (921). Seu pai não

hesitava em fazer inspeções, mas incógnito, quando

percorria, de noite, sua capital (922), ou numa carrua-

gem fechada, quando viajava pelo império - tão bem

que pôde morrer sem que ninguém de seu cortejo

desse conta do fato (923).

Protegido, por seu isolamento, dos contatos

que maculam, como de todo desperdício de energia,

o soberano autocrata é, se assim posso dizer, como

que uma concretização do Universo que envolve, no

grande seio do Universo, uma série de Universos en-

caixados: estes vão se concentrando à medida em que

se aproximam do dominador universal. Seu palácio é

um microcosmo, onde a arte dos arquitetos, represen-

tando, em reduções magníficas, a Via Láctea e a ponte

triunfal que a atravessa, colocaram ao alcance do se-

nhor do mundo a energia celeste da qual deve ser

impregnado (924). O carro imperial, o vestuário impe-

rial são eles, também, feitos da essência do mundo.

A caixa quadrada do carro é a própria Terra, seu dos-

sel circular equivale ao Céu, as maiores constelações

são apresentadas nos emblemas das bandeiras e, gra-


ças à escolha de insígnias (sol, lua, constelações,

raio, etc) que aparecem em suas roupas, o Homem

único encontra-se em contato direto com as forças

favoráveis mais eficazes.

O imperador Wou não se submeteu ao confina-

mento com a vontade disciplinada dos soberanos

Ts'in, mas despendia muito para fazer de seu palácio

uma concentração esplêndida do Universo (925). Todos

os animais do ar, da água e da terra comprimiam-se

em seus viveiros e em seus parques. Nenhuma espé-

cie faltava em seu jardim botânico; as ondas de seus

lagos quebravam-se nas terras longínquas onde se em-

contravam as ilhas misteriosas dos imortais; coloca-

dos em altas colunas, os gênios de bronze recolhiam

para ele o orvalho puro, ali onde a poeira do mundo

não pode alcançar. Ele mesmo podia, ao longo de um

duplo caminho em espiral, subir ao ápice de uma tor-

re, o olhar perdendo-se na imensidão em redor do

Céu, de onde se dominava o Universo inteiro. O pres-

tígio de suas armas permitia-lhe obter o Cavalo ce-

leste de espuma escarlate(926); atraídos por seu em-

canto, tinha vindo um bando de seis gansos verme-

lhos (927). Tudo permitia esperar a chegada próxima do

Dragão, que transportaria o imperador, em pleno Céu,

além de K'ouen-louen (928). Pouco importava que os tri-

pés sagrados dos Filhos do Céu desaparecidos não

pudessem ter sido retirados do rio, onde se tinham

tornado invisíveis; manifestando a glória do impera-

dor Wou, um tripé mágico havia saído para ele das


profundezas da terra, enquanto que, no céu, uma nu-

vem amarela formava um dossel (929). Como Houang-ti,

o Soberano amarelo que, depois de ter "achado as

hastes da aquiléia mágica do tripé precioso", atraiu

um Dragão com barba pendente, sobre o qual, com

suas mulheres e seus filhos (setenta pessoas), foi

arrebatado aos céus, o imperador estava preparado

para a apoteose, concebendo-a mesmo com o ascetis-

mo que convém a um autocrata: "Ah! se eu pudesse

verdadeiramente me tornar semelhante a Houang-ti,

deixar minhas mulheres e meus filhos será, a meus

olhos, mais fácil do que deixar meus sapatos(930)!"

Nenhuma renúncia é difícil a quem deseja o

poder puro. O imperador consumia seus tesouros para

que o mágico Chao-wong, a quem ele tratava, não

como um súdito, mas como um hóspede, pudesse

construir carros onde estavam incorporadas as ema-

nações vitoriosas que afastam os gênios maus e ter-

raços onde se podia habitar no meio de todas as for-

ças divinas, figuradas em pinturas, assim como a Terra

e o Céu (931). Ele se absteve de beber e de comer, vi-

veu em purificações para poder se apresentar, como

hóspede, no palácio da Longevidade. Ali, a feiticeira

da Princesa dos Espíritos atraía os deuses cuja vinda

provocava um vento que apavora e cujas palavras

eram registradas para constituir a compilação das

"Leis escritas" (932). Ao mago Louan-ta, que era eunu-

co, casou sua filha mais velha, provida de um dote

de dez mil libras de ouro; enviou-lhe, por um mensa-

geiro vestido de plumas, um selo de jade que o mago,


também vestido de plumas, recebeu com a postura

de um senhor, em pé sobre uma liteira de ervas puri-

ficadoras. Este selo trazia o título de "Senhor da Via

Celeste", pois o imperador esperava que o eunuco o

introduzisse junto aos deuses do Céu(933). Che

Houang-ti tinha enviado ao mar Oriental, como tributo

aos imortais, centenas de casais de moças e de rapa-

zes virgens; assim também, o imperador Wou, que

também se esforçou, "mirando ao longe" para alcan-

çar as ilhas Bem-aventuradas e as Montanhas San-

tas (934), fazia dançar no alto de um terraço "comuni-

cando com o Céu ", pares de adolescentes que deviam

seduzir os deuses, enquanto que archotes, erguidos

no ar, figuravam uma chuva de estrelas(935). Graças.

a estas obras ele pôde fazer aparecer cometas magní-

ficos e estrelas com o tamanho de abóboras (936). Seus

invocadores, quando ele sacrificava a T'ai yi (a Uni-

dade suprema), podiam proclamar: "A estrela da Vir-

tude esparge ao longe seu brilho!... A estrela da

Longevidade... ilumina-nos com sua claridade pro-

funda(937)!" E, com efeito, em 109 [enquanto que o

primeiro imperador nunca tinha obtido este agárico

ramificado (a planta tche) do qual se pode tirar a

Droga maravilhosa (938) e que ele mesmo havia feito

procurar, até então inutilmente, por dez mil má.

gicos] (939) no recinto mesmo do palácio do imperador

Wou, e, exatamente, na sala onde ele se entregava

a suas purificações - enquanto que na torre de nove

andares que comunica com o Céu, uma claridade apa-

recia - este agárico, concretização de todo poder


imortal, produziu-se espontaneamente e em sua per.

feição plena pois tinha, exatamente, nove hastes (940).

Mas, como é preciso pagar a felicidade, o imperador,

logo que progrediu na estrada dos Gênios, sacrificou,

devido sua arte, seus professores de imortalidade,

entregando, sucessivamente, à morte Chao-wong, que

outrora havia nomeado marechal da Sábia Perfeição,

e Louan-ta, seu genro, antes promovido a marechal

das Cinco Vantagens (941).

A sorte do mago favorito difere da sorte do

mais íntimo vassalo, unicamente porque os prazos

marcados para seu bom êxito não dependem de datas

rituais, mas da boa disposição do Senhor. Somente,

antes de se tomar o emissário sobre o qual se voltam

todos os riscos da desgraça, um artífice da imortali-

dade sabe fazer derivar sobre a pessoa imperial favo-

res muito mais esplêndidos e bem mais íntimos do

que aqueles que um chefe pode adquirir presidindo,

na frente de seus vassalos, ao culto tradicional. Grã-

ças às fórmulas de seus magos, o imperador toma

o aspecto de um gênio, isto é, realiza em si mesmo

o máximo de tudo o que é possível a um ser humano.

Ele se torna o Homem grande, o ta jen, aquele cuja

vida é uma apoteose em todos os instantes (942). Sua

substância, purificada pelo treino da longa vida, eteri-

fica-se a ponto de lhe ser permitido, usando de todos

os recursos da levitação, movimentar-se, não mais

sobre os caminhos do homem e as estradas dos Lu.

gares.Santos, mas no mundo real dos Gênios: ali ele


empreende longas caminhadas (yuan yeou), convocan-

do, para junto de si, o conde do Vento, o senhor da

Chuva, o senhor do Trovão, o deus do Rio, todos os

ascetas beatificados com os quais ele se entretém,

nas próprias fontes da vida, nesse Rio que é a Via

Láctea, freqüentando, com a Si-wang.mou (Ogra da

Morte, Patrona da imortalidade), todas as Fadas sem

mácula (yu niu) e batendo, quando lhe agrada, na por-

ta do Soberano do Alto.'Seria indiscreto perguntar-se

se os imperadores, como os ascetas, chegaram a ex-

perimentar a embriaguez dos folguedos mágicos de

outra maneira, além de tê-los ouvido cantar pelos

poetas encarregados das baladas oficiais ou de tê-los

visto representar nessas apoteoses da ópera, em que

figuravam inúmeros prestidigitadores e bailarinas. O

essencial é notar que, alimentado por sonhos místicos

e enaltecido pela arte, o poder atribuído ao imperador

autocrata é idêntico à força que o asceta visa obter.

Che Houang-ti queria ser semelhante aos Homens

Verdadeiros, que "entram na água sem se molhar, no

fogo sem se queimar e que se elevam sobre as nu-

vens e sobre os vapores"(943). Tal é com efeito, o

programa inicial, tais são as primeiras provas de po-

derio que propõe a ascese taoísta, herdeira do antigo

xamanismo. O grande objetivo é "tornar-se eterno co-

mo o Céu e a Terra"(944). É adquirido desde que o

asceta sinta que identificou sua vontade à ordem do

Universo. O asceta possui, então, um poder total, in-

condicionado, que não tem outro princípio além de

sua própria vontade e que lhe permitiria, por exem-


plo, se ele quisesse, intervir na ordem das esta-

ções (945). Mas o soberano, como o asceta, só é dono

do Universo se se tornar dono de si mesmo. Não pode

ter caprichos se quiser permanecer uma força pura.

Reina, pois, sem intervenção arbitrária: gover-

na sem ingerência administrativa, deixando fazer -

o que não quer dizer que ele não governe. Governa,

pelo contrário, tudo e no menor detalhe, mas sem

nunca usar seu poder num ato particular. Enquanto

sua vontade estiver de acordo com a ordem universal,

as ações do conjunto dos seres, pelo efeito imediato

de um ascendente irresistível, conciliam-se por elas

mesmas, como as fantasias de um sonho, aos meno-

res movimentos de seu desejo profundo. Não se faz

obedecer por intermédio de subalternos ou por regu-

lamentos. É suficiente que seja um Homem grande,

um Homem verdadeiro: o poder que nele está con-

centrado, em estado puro, determina, como por uma

corrente sutil de indução, uma convergência unânime

dos desejos e das ações. A vontade imperial suben-

tende o império inteiro e o império e o mundo não

existem senão para contar a glória do Autocrata.

III - A doutrina constitucional

Na qualidade de Filho do Céu, o imperador é

revestido de um Prestígio que, no momento em que

deve exercer o poder, comporta um elemento de fra-


queza. O culto tradicional faz aparecer nele um dele-

gado humano do Céu, mas em todas as cerimônias

em que deve restaurar este Prestígio, deve, também,

em comunhão com seus fiéis, dividi-los entre eles.

Suserano colocado à frente de uma hierarquia, ele

tem a possibilidade de fazer irradiar sua autoridade,

mas com a condição perigosa de delegar o próprio

princípio de seu poder, pois todo imperium, mesmo

delegado, continua absoluto. Pode haver, então, uma

hierarquia (mais ou menos móvel), mas não uma ad-

ministração, nem um Estado. Por outro lado, o Auto-

crata surge, verdadeiramente, como Soberano, pois

pela força da magia e da mística, ele se acha identi-

ficado, ou antes, substitui o Soberano Celeste, a pon-

to de este não ser mais do que uma projeção, no

mundo ideal, do senhor real do Universo. A autori-

dade de que o Soberano está revestido, se ela não

está sujeita à menor diminuição, torna-se, em com-

pensação, intransmissível, pois é, ao mesmo tempo,

inteiramente pessoal e de ordem total. Nada une mais

o imperador a seus súditos, nem a seu domínio. Tudo

é pó diante de sua Majestade. Mas se, doravante, ne-

nhum feudatário pode conservar uma autoridade sus-

cetível de se opor a sua, todo chefe afortunado de

uma seita mística pode tornar-se seu igual. Acima do

lmpério, há o Autocrata. Não há lugar para uma admi-

nistração de Estado. Não há Estado.

Na época das tiranias, os legisladores, utilizan-

do a noção da Majestade, mas interpretando mal a dou-


trina mística, tentaram instaurar uma certa idéia de

Estado. Nas atribuições do suserano, chefe de guerra

e chefe de paz, estava incluído um vago poder de

julgar. Por outro lado, em terras novas conquistadas

dos Bárbaros e da natureza, terras que escapavam

aos costumes feudais e formavam um domínio priva-

dos, os tiranos, impondo seus regulamentos, toma-

vam a aparência de legisladores. Os juristas que em-

pregavam, justificando o arbítrio do conquistador por

sua qualidade de civilizador, elaboraram uma teoria

do príncipe, concebido, não mais como o conservador

de direitos consuetudinários, cuja observância man-

tém a paz, mas como o livre autor das Leis que criam

a civilização (946). No mundo onde viviam os legislado.

res e onde reinava, com o espírito militar, o gosto das

novidades, a autoridade do príncipe pareceu se expri-

mir, antes de tudo, pela promulgação de um código

penal, com a idéia da lei opondo-se estritamente à

idéia do costume, e se aliando à crença de que a

civilização se impõe pela força. O código foi conside-

rado o fundamento de uma organização administra.

tiva, cujo principal objetivo era reformar os costumes

com o auxílio de punições. Quando impunham as pe-

nas para fixar as tarefas, os juristas pensavam repri-

mir um atentado a esta função civilizadora que, em

seu modo de pensar, constituía a Majestade do

príncipe.

Tal foi também o espírito segundo o qual o pri-

meiro imperador dirigiu o império. Foi chamado de


tirano porque queria "oprimir o povo" com o auxílio

da magia e porque aplicava os princípios dos legisla-

dores, primeiros servidores dos direitos do Estado. Na

maior parte de suas inscrições, Che Houang-ti gaba-se

de ter reformado os costumes com a ajuda de Leis:

"...exercendo, com vigilância, sua autoridade - ele

fez e editou leis claras; - seus súditos aperfeiçoam-

se e melhoram [219]." " Ele corrigiu e melhorou os cos-

tumes estranhos... - ele eliminou o erro; fixou o

que era necessário fazer [219]." "O sábio de Ts'in, ten-

do tomado as rédeas do governo - foi o primeiro a

determinar as punições e os nomes - ... Cada coisa

tem o nome que lhe convém... Seu grande governo

purificou os costumes... - Todos se conformam com

suas medidas e com seus princípios... Os homens

agradam.se com uma regra uniforme - eles se feli-

citam por conservar a paz universal. - A posteridade

receberá, com respeito, suas leis! [219] (947).

Os Han, depois da ruína dos Ts'in, utilizaram,

tanto quanto eles, os serviços dos juristas, mas tive-

ram o cuidado de repudiar suas teorias. "Quando

triunfaram, os Han suprimiram o governo cruel dos

Ts'in. Limitaram as leis e as ordens. Distribuíram

sua beneficiência e sua compaixão (948)." Um dos pri-

meiros decretos do imperador Wen [179] admite a uti-

lidade das leis, mas lhe atribui um objetivo duplo:

elas têm por finalidade, sem dúvida, "reprimir os per-

versos", mas devem, também, "encorajar os bons".

Pouco depois [178], deixando de mencionar as sanções

negativas, o imperador declara que o Céu estabelece


os príncipes "em favor do Povo" e "para que eles o

alimentem e o governem"(949). Esta inversão da dou-

trina governamental atesta o malogro da teoria dos

legisladores e mostra a causa deste revés. Confundin-

do a prática administrativa com uma simples pesquisa

dos poderes majestáticos, faziam a lei repousar no

arbítrio do déspota. Ora, nem o prestígio do Filho do

Céu, que supõe a observância de práticas consuetu-

dinárias, nem a majestade do Autocrata, que exclui

toda possibilidade de capricho, não podiam se acomo-

dar com uma teoria arbitrária. Os Han tiveram, pois,

que procurar, independentemente de uma idéia de

Estado identificada com a vontade onipotente de um

déspota, uma justificativa para a ingerência presumi-

da pela menor das técnicas administrativas.

Uma teoria sincrética (que foi, sobretudo, obra

dos letrados) tirou.os da dúvida. Admitia, como prin-

cípio fundamental, que a ação do Céu e a do impe-

rador exerciam-se, paralelamente, sobre o povo, e

ambas de maneira benéfica, a primeira, mantendo

a ordem do mundo; a segunda, mantendo a ordem

da sociedade. Nesta concepção, a idéia de Majes-

tade própria ao Soberano não se acha ausente, mas

transposta: passa do plano místico ao plano moral.

Reservatório de todas as energias morais (e não mais

místicas) o imperador determina (sempre por um

efeito imediato devido a um ascendente irresistível)

uma boa conduta universal, à qual a boa ordem físi-

ca é intimamente solidária (950). Nesta espécie de co-


legiado governamental formado pelo imperador e pelo

Céu, este último não tem senão um papel subordi-

nado. A Majestade imperial permanece, de fato, o

poder principal. Admitia.se, no máximo, a fim de sal-

var, na retórica constitucional, a dignidade religiosa

do Céu, que uma calamidade na natureza era uma

espécie de "censura", expressa pela divindade supre-

ma. Mas, de fato, a ordem do Universo não pode ser

perturbada de nenhum modo e o Céu fica passivo,

enquanto que o Soberano faz reinar a ordem moral:

O imperador, ocupando "um posto de confiança

acima da massa popular e acima dos príncipes e dos

reis", deve ser virtuoso, sem o que sua administração

não é justa nem benéfica. É, em princípio, o único

responsável pela felicidade de seus súditos. A majes-

tade do imperador acha-se limitada desde o instante

em que se evita considera-la sob o aspecto de uma

majestade de essência mística e, por conseguinte, in-

condicionada, e desde que é identificada com um foco

de irradiação moral. Evidentemente, ela não justifica

nem uma dominação despótica, nem mesmo uma uti-

lização do poder voltada para fins pessoais. O impe-

rador Wou ficou dominado pela ambição mística quan-

do se serviu do sacrifício fong para formular uma

prece de onipotência. Esta prece era secreta, isto é,

essencialmente pessoal (sseu). Pensa-se que o impe-

rador pediu os plenos poderes dos lmortais e que, se

seu segundo homem morreu logo após o sacrifício,

foi porque o soberano soube passar para ele as cala-

midades que ameaçavam sua própria pessoa. Mas os


T'ang (725 d.C.) não quiseram mais que a prece do

sacrifício fong tivesse algo de secreto; a cerimônia

foi realizada "inteiramente para implorar a boa sorte

para o povo" (951). E o imperador Wen (167 a.C.) já

havia decretado o princípio: "Pelo que sei da Via Ce-

leste (T'ien tao), as calamidades nascem das más

ações e a felicidade vem acompanhando a virtude.

As faltas de todos os oficiais devem ter sua origem

em mim mesmo. Ora, os oficiais encarregados das

preces secretas transferem as calamidades para os

inferiores: torna-se evidente que eu não tenho virtu-

de (952)." Ele suprimiu, também, o cargo de invocador

secreto. Nota-se, entretanto, que ele empregara, em

178, uma fórmula mais branda: "Quando a ordem do

império é perturbada, (isto se deve) a mim somente,

o Homem Único, e talvez às duas ou três pessoas que

têm em mãos a administração e que são como minhas

pernas e meus braços(953)." Na prática dos tempos

feudais, os ministros são as pernas, e os braços do

príncipe e, tal como um grupo de irmãos, formam um

só corpo com seu senhor, podendo ser substituídos

para evitar as desgraças. O imperador Wen, reserva-

va, pois, a possibilidade de uma transferência expia.

tória, mas pretendia limitar a aplicação das penas

somente aos grandes chefes da administração impe-

rial. No entanto, mesmo para os grandes funcionários,

admitiu-se o princípio de que as condenações penais,

depois de terem constituído, para o imperador, a oca-

sião de confessar sua falta de virtude, deviam ser

eliminadas por um perdão, onde resplandecia, em sua


majestade, a munificência imperial(954). Um sistema

de promoções e anistias periódicas substitui, pois, o

sistema repressivo adotado pelos Ts'in. As anistias

eram acompanhadas pela concessão, aos chefes de

família, de um grau de promoção na hierarquia, e as

mães de família recebiam, por sua vez, um presente

substancial de vinho e de carne bovina (955). Pela teo-

ria do governo pela munificência, que se tornou cons-

titucional, o imperador exerce o poder apresentando-o

como uma fonte universal de reconforto e de enobre-

cimento.

A organização administrativa apóia-se no mes-

mo princípio. No decreto de 178, logo depois que afas-

tou a desgraça de um eclipse do sol humilhando-se

e confessando sua falta de virtude, o imperador Wen

ordena a todos que "reflitam a respeito das faltas

que ele pôde cometer, das imperfeições de seu dis-

cernimento, de sua visão, de suas opiniões" e que

"as declarem francamente" (956). No mesmo ano, pro-

clamando de novo o valor do direito da crítica, revoga

uma lei punindo "as palavras irrefletidas". Autorizar

a crítica livre, é evitar que "as pessoas do povo (não)

pronunciem imprecações contra o imperador e (não)

se unam para conjurações". Além deste resultado

essencial, mas negativo, o soberano pretende, "per-

mitindo a cada um revelar o fundo de seus sentimen-

tos", fazer vir a ele, do lugar mais longínquo do lmpé-

rio, "as pessoas de grande virtude", isto é, os funcio-

nários que praticam a moral da sinceridade. " Recomen-


dem-me os (homens) sábios e bons, direitos e corre-

tos, capazes de falar com retidão e dispostos a ir até

o fim de suas admoestações(957)". Do mesmo modo

que o vassalo, o funcionário é um conselheiro, antes

de ser um agente de execução. A principal função do

imperador e, abaixo dele, de todos seus auxiliares, é

estimular vocações de conselheiros íntegros. (Viu-se

que legisladores e fiscais exerceram sua profissão re-

cebendo a denominação honorífica de indicadores ínte-

gros) (958). O corpo de funcionários é concebido como

representando a consciência do império. É, exatamen-

te, a consciência difundida do imperador. Vale, moral-

mente, o que vale o Homem Único, com o sentido de

sinceridade que se pode achar no país, dando a me-

dida da sinceridade imperial. A eficácia que o sobe-

rano recebe de sua majestade, apresentada sob o

aspecto de uma energia moralizadora, infiltra-se no

povo depois de ter beneficiado um corpo de adminis-

tradores, que alicia por um simples efeito de atração.

Desde então, a função administrativa e a fun-

ção soberana, em si mesma, parecem se reduzir a

uma obra de ensino. A Virtude imperial conserva, em

sua essência, o valor de uma força edificante e pa-

rece, às vezes, que o soberano procede a essa

obra como asceta. Ouve.se, por exemplo, o im-

perador Wen [162] exclamar: "Levanto-me com a au-

rora! Não me deito senão à noite! Consagro todas

as minhas forças ao império! Aflijo-me, sofro pelo

povo(959)!" Mas estes lamentos expiatórios, ele os

solta no Conselho e os torna públicos por decreto,


enquanto que a penitência imperial, embora continue

a se assemelhar com a de um grande asceta, deveria

manter.se silenciosa, para alcançar sua eficácia plena.

É que, por influência dos letrados, herdeiros das tra-

dições feudais (mesmo quando utilizam a tradição

mística), a obra edificante transforma-se em obra sim-

plesmente educadora. O imperador não é mais o mês-

tre que transmuda as coisas e os seres, sem nada

revelar de sua fórmula maravilhosa. Como os conse-

lheiros do Estado que procuram afastar da corte im-

perial os favoritos dos conselhos secretos, ele de-

sempenha o papel de um professor predicante(960).

A pregação imperial substitui, com a mesma eficácia,

a fórmula mística. Não se trata de dotar o Estado com

uma função de comando ou de conceber o poder do

príncipe como um poder de coerção. O imperador

tanto quanto pode, abstém.se de legislar. Devota-se,

por decretos benevolentes, a abolir as punições le-

gais, ou então, a suprimir os efeitos das leis por anis-

tias freqüentes. Em vez de regulamentar, ele educa

e seus funcionários exortam, em vez de ordenar. A

administração inteira dissimula-se sob a aparência de

um ensino colegiado. Ela evita o menor constrangi-

mento. Demonstra esperar tudo dos efeitos de uma

disciplina enobrecedora. Propõe-se, como único obje-

tivo, promover todos os súditos do imperador à digni-

dade de pessoas honestas (kiun tseu), que até então

só era privilégio dos nobres. Um senhor ou um suse-

rano ensinavam, a seus súditos imediatos, a arte de

viver nobremente. O Filho do Céu toma o aspecto de


um Soberano quando procura enobrecer seu povo in-

teiro, auxiliado por uma propaganda moralizadora -

isto é, quando assimila o papel da administração à

difusão de um velho ideal de cultura e que estabelece,

como função principal do Estado, o cumprimento de

uma obra civilizadora, compreendida num sentido in-

teiramente moral.

As transformações da sociedade

Perto da era cristã, a sociedade chinesa

sofreu uma mudança profunda. A distin-

ção entre nobres e não-nobres, gente

de posses ou gente do povo, perde toda

importância. A oposição entre ricos e

pobres torna-se o grande princípio da

classificação. - A época das tiranias passa por ter

sido a era do luxo: foi, pelo menos, a grande época

dos discursos violentos contra o luxo. Estes últimos

e o rigor de seu tom revelam a gravidade da crise

atravessada pela sociedade chinesa. Sobre esta crise,

permaneceram poucos testemunhos, que não assina-

lam nem suas causas nem seus resultados. Mas a

extensão destes últimos revela-se desde o tempo do

imperador Wou, e parece que a partir deste reinado

a crise precipitou-se. Podem-se distinguir as grandes

diretrizes do movimento por meio de medidas mais

ou menos hábeis, que tentaram impedir sua ação.

Seus efeitos e seu ponto de partida deixam-se adivi-


nhar. Parece que a crise originou-se, primeiramente,

da ruína da velha nobreza dizimada pelas guerras dos

Reinos combatentes; depois (e sobretudo), do traba-

lho de colonização e de preparação do solo, iniciado

pelos tiranos, e que prosseguiu, com mais recursos,

na época dos imperadores. O preparo da terra fez

surgir, com novas fontes de riqueza e um novo gosto

pela magnificência, homens novos, cuja influência na

corte e nas cidades arrebatou toda a autoridade dos

representantes da velha nobreza. Assim se criou um

meio favorável a uma reforma dos costumes.

l - A Corte e a nobreza imperial

Tiranos e imperadores vivem rodeados por uma

corte numerosa que não poderia se manter nos humil-

des burgos, onde os grandes senhores e os suseranos

de outrora estabeleciam suas capitais. As cidades feu-

dais eram pequenas e pouco povoadas: pareciam

desproporcionadas uma vez que suas muralhas atin-

giam 3.000 pés (cerca de 1 quilômetro)(961). Os reis

Tcheou que, em 256, reinavam sobre uma população de

30.000 súditos, deviam abrigá-los em 36 cidades (962),

o que não impede o Tcheou li de lhes atribuir uma

administração composta de seis serviços ministeriais

- dos quais só um (o primeiro: compreende os em-

pregados de justiça, mas não todos) conta com mais

de 3.000 cargos. Esses serviços só poderiam se de-

senvolver numa capital grandiosa como foi a de Ts'in


Che Houang-ti. Com efeito, o primeiro imperador

pôde transferir, para sua cidade de Hien-yang, 120.000

famílias, todas as pessoas poderosas e ricas do im-

pério(963). Foi assim que ele pôde provê-la de habi-

tantes. Por outro lado, cada vez que destruía um do-

mínio, tomava a planta de seu palácio e o fazia re-

construir em sua capital, para alojar as mulheres e

guardar as jóias que tomava do vencido. Vê-se como

a Cidade imperial constitui, não só no sentido místico,

a concentração do império. Ela contém reféns captu-

rados na China inteira e princípios de influência váli-

dos para cada uma de suas províncias. Os Han adota-

ram os usos do Ts'in, apenas abrandados por uma

medida do imperador Wen [179]: este autorizou alguns

senhores apanagiados, ou seu filho herdeiro, a irem

viver em sua região. Tinha medo de que a capital

corresse o risco de se congestionar. "Hoje os senho-

res moram, em sua maioria, em Tch'ang-ngan; suas

terras são afastadas; seus oficiais e seus soldados

são mantidos á custa de muitas despesas e esfor-

ços(964)." A capital enriquecia-se com os despojos

do império todo, enquanto que a nobreza territorial,

fiscalizada e dominada, transformava-se em nobreza

da corte.

Os nobres retidos na corte obtinham cargos

honoríficos. Todos os postos ativos eram confiados

a novos homens. Sob o reinado do imperador Wou,

este princípio foi seguido com rigor. Kong-souen Hong,

que se tornou grande conselheiro, iniciou como car-


cereiro e chegou a ser guardador de porcos; Tchou

Fou-yen começou sua vida como vagabundo e Ni

K'ouan como carregador: ambos fizeram parte do cír-

culo do imperador. Do mesmo modo, Kin Mi-ti, que

deveria ser nomeado regente do império, foi um pri-

sioneiro que servira anteriormente como palafrenei-

ro(965). Coisa mais grave: "A valentia guerreira" era

suficiente para "dar acesso aos cargos", "assumindo

uma posição exagerada" (966). Quem era bom soldado,

podia se tornar marquês: esse foi o caso de Ho K'iu-

p'ing. Seu tio, Wei Ts'ing, que chegou a ser general,

era um bastardo que, durante a mocidade, fora tra-

tado como escravo por seus meio-irmãos e obrigado

a guardar carneiros(967). Podia-se, pois, alcançar as

mais altas posições partindo-se do nada e tendo exer-

cido qualquer profissão. O êxito "das pessoas cujos

meios de vida eram incertos e cujas ocupações eram

provisórias" escandalizavam os admiradores dos ve-

lhos tempos, partidários das hierarquias estáveis onde

tudo era hereditário: ofícios nobres e empregos humil-

des (968). Nesses tempos felizes, "aqueles que ocupa-

vam qualquer cargo, conservavam-no até que seus

filhos e netos fossem adultos; aqueles que exerciam

uma função pública tiravam dela seu nome de família

e seu sobrenome; todos os homens estavam conten-

tes com sua sorte", que podiam fixar antecipadamen-

te (969). Pelo contrário, no regime adotado pelo império,

"os princípios da promoção aos cargos se degenera-

ram" (970). "O povo (gente de baixo nascimento) pôde

compensar a incapacidade em atingir os cargos pú-


blicos", adquirindo "títulos na hierarquia nobiliária"

criada pelos Ts'in e conservada pelos Han. "Como os

caminhos para chegar aos empregos eram diversos

e havia muitas maneiras de alcançá-los, os cargos

perderam seu valor(971). Tais são as queixas deste

conservador irritado que era Sseu-ma Ts'ien. Ele se

gabava de descender de uma antiga família que pos-

suía, por hereditariedade, o cargo de sseu-ma (gene-

ral); tinha sucedido a seu pai como Grande Analista,

que era um dos primeiros cargos de uma corte feudal;

mas, sob o imperador Wou, seu pai foi considerado

"uma insignificância". O soberano "divertia-se com

ele", mantendo-o apenas "como um cantor ou um

comerciante " (972).

Nobres decadentes e novos homens encontra-

vam-se na Corte. Tudo dependia do mérito e não do

nascimento: o homem era distinguido por seu mérito,

depois de demonstrá-lo, fazendo fortuna, qualquer que

fosse o trabalho exercido. "A imperatriz Lu (já) havia

relaxado os regulamentos relativos aos comercian-

tes... mas, como no passado, os descendentes dos

mercadores não podiam ser funcionários"(973). Sob

o reinado do imperador Wou, é claro que a riqueza

tornou-se o sinal eminente do mérito. "A partir deste

momento, surgiram homens hábeis em fazer crescer

os lucros (974)." Com efeito, o império, desde que foi

constituído, tem grandes necessidades orçamentárias,

e as finanças tornam-se a principal preocupação do

governo. Em 120, o tesouro público foi organizado;


imediatamente, três personagens tornaram-se altos

funcionários. "Tong kouo Hien-yarig'era um grande

refinador (de sal) da região de Ts'i. K'ong Kin era um

grande fundidor de Nan-yang. Os dois haviam con-

seguido uma fortuna de vários milhares de libras de

ouro: foi por isto que Tcheng Tang-che (que era mi-

nistro e encarregado da economia nacional; ta-nong)

recomendou-os ao imperador. Sang Hong-yang era

filho de um mercador de Lo-yang. Como ele calculava

de cabeça, tornou-se che-tchong com a idade de treze

anos. Estes três homens quando discutiam questões

financeiras, eram extremamente minuciosos(975)."

"Aqueles que eram, anteriormente, os mais ricos sa-

lineiros e os mais poderosos donos de fundições fo-

ram nomeados funcionários. A carreira oficial recebeu

assim novos elementos estranhos. A escolha não se

fez mais pelo mérito (do nascimento) e os comercian-

tes eram, ali, numerosos(976)." Sseu-ma Ts'ien faz

remontar ao duque Houan de Ts'i, o primeiro Hege-

mon, este poderio novo dos bens de fortuna que,

segundo ele, explica a aparição do regime tirânico.

"A partir deste momento... coloca-se a fortuna e a

posse de bens em primeiro lugar e, no último, a mo-

déstia e a humildade (977)."

Ao contrário das cortes feudais, a corte im-

perial não é mais o teatro dessas justas de polidez,

onde se forma o senso da medida. Reinam o fausto e

a ostentação. Todas as mulheres da capital podem

ser comparadas às princesas das mais nobres casas,


todos os homens aos duques, aos marqueses, aos

cavalheiros ilustres das lendas. Apressados como as

nuvens, os altos funcionários, os provincianos céle-

bres, os mercadores enriquecidos, misturam-se aos

embaixadores enviados pelos Bárbaros submissos (978).

Esta multidão suntuosa é convidada para as festas

que o imperador pode dar neste vasto conservatório

que é seu palácio. Seus eunucos dirigem companhias

de prestidigitadores e músicos. Seu harém encerra

um conjunto de cantoras e de dançarinas: as mais

hábeis tornam-se imperatrizes ou favoritas, como, no

tempo do imperador Wou, a imperatriz Wei e a fou-jen

Li, uma, hábil no canto, e a outra, perita nas danças.

Uma vasta construção, o palácio Kia-yi, contém todo

um maquinário de ópera; ali se realizam os grandes

torneios de onde saiu o teatro chinês (979). Ali se pode

ver a neve caindo e as nuvens que se elevam, enquan-

to que os turbilhões da tempestade, o ribombo do

trovão, o brilho do relâmpago mostram todo o pode-

rio majestoso do Céu. Cortejos de imortais ou de

Animais estranhos desfilam, alternando-se com palha-

ços que sobem em varas ou levantam pesos. Os pres-

tidigitadores engolem sabres, cospem fogo, fazem

jorrar água, traçando desenhos no chão, brincam com

as serpentes, enquanto que mulheres com longas

mangas, vestidas de gaze e com o rosto pintado, exe-

cutam as mais lascivas de suas danças e que, bem

no alto de um mastro, equilibristas ficam suspensos

pelos pés ou giram infinitamente, lançando flechas

em todas as direções do Espaço, do lado dos Tibeta-


nos, como do lado dos Sien-pi, por toda a parte em

que deve triunfar a Majestade do imperador. As caça-

das e as pescarias são, também, ocasião de galas

triunfais. Esta grande quantidade de festas e de des-

pesas suntuárias não é reservada apenas ao soberano.

Pequenos príncipes apanagiados possuem palácios es-

plêndidos, cujos tetos, ornamentados de caixotões

quadrados, tendo, no centro, uma saliência redonda,

deixam pender flores esculpidas, lótus e dormideiras.

As vigas são enfeitadas com nuvens, os acrotérios

sustentam dragões cinzelados: o Pássaro Vermelho

abre suas asas sobre a viga da cumeeira; o Dragão

sustém, com suas sinuosidades, a verga da porta;

Bárbaros com grandes cabeças e órbitas profundas,

arregalam seus olhos, como abutres, agachados sobre

todas as vigotas. Nas paredes, os deuses das monta-

nhas e dos mares estão pintados com as cores que

lhes são próprias e, a seu lado, acha-se apresentada

a história do mundo, desde a separação do Céu e da

Terra (980). "Aqueles membros da família imperial que

tinham apanágios, os duques do palácio, os altos

dignitários, os grandes oficiais, e aqueles que esta-

vam abaixo deles, rivalizavam-se, no fausto e na pro-

digalidade, em suas habitações, em suas vilegiaturas,

em suas equipagens, em suas vestimentas, usurpando

privilégios imperiais. Não havia mais nenhuma mo-

deração (981). "

Poetas e moralistas não exageram quando mos-

tram que o gosto pelo luxo, no tempo dos Han, es-


palhou-se pela sociedade inteira. Este gosto corres-

ponde a um desenvolvimento das indústrias de arte

que as recentes escavações japonesas permitem

apreciar. Estas escavações, feitas no norte da Coréia,

no local da capital da província, datando da conquista

do país pelo imperador Wou, permitiram exumar abun-

dante material funerário (982). Muitos objetos são data-

dos dos anos que se avizinham da era cristã. Sua

execução é extremamente requintada. As peças de

laca e de ourivesaria demonstram uma técnica notá-

vel. Os objetos de laca, tanto executados em madeira

laqueada, como os feitos de tecidos - recobertos

de laca, são, muitas vezes, guarnecidos de ornamen-

tos de prata ou de cobre dourado, e, geralmente,

pintados a pincel ou delicadamente gravados. Em cer-

tas peças, sobre uma fina folha de ouro, aparecem,

traçados em laca brilhante, animais e pássaros. As

inscrições dão uma idéia dos cuidados empregados

na execução; conservam o nome dos artistas que

dela participaram: um preparou a laca, outro deu a

forma, outro executou os bordos, outro, os desenhos,

outro assentou a laca vermelha e, depois deles, dois

artistas retocaram e terminaram o trabalho. Uma

grande caixa descoberta num desses túmulos conti-

nha um espelho com seu cordão de seda e, embaixo

de grampos, um pente num cofre, e caixinhas com

pó branco e vermelho. A mais bela descoberta foi a

de uma fivela de um cinto, de ouro maciço, engastada

de turquesas, representando dois dragões entrelaça-

dos; seu trabalho em filigrama mostra a perícia dos


ourives. Ursos de cobre dourado que serviam de pés

de mesa, diversas estatuetas de animais e de pássa-

ros em terracota esmaltada atestam a perfeição que

a arte industrial atingiu sob os Han. O fato de os arte-

sãos terem se especializado ao mais alto grau e de

trabalharem sob a direção de funcionários das ofici-

nas do Estado não é menos digno de nota, e mais

significativa ainda é a abundância dos tesouros de

arte acumulados numa cidade da fronteira. Não é mais

a época dos pequenos burgos meio camponeses, iso-

lados uns dos outros pelas barreiras das peagens

feudais. A riqueza e o luxo circulavam livremente em

todo o império. Todas as cidades organizadas acom-

panham os gostos da Corte. Os homens ricos que as

povoam, comerciantes ou industriais, aspiram a ter

um lugar na nobreza imperial.

Nos tempos feudais, artesãos e mercadores

viviam nos arredores da cidade senhorial. Entretanto,

podem ser assinalados alguns traços de sua impor-

tância crescente. Uma velha tradição afirma que um

forasteiro conquistou a confiança do Hegemon Houan

de Ts'i, tornando-se seu ministro(983). Explorados du-

ramente pelos nobres, os artesãos nem sempre se

deixavam maltratar. Em 471, em Wei, eles se revolta-

ram contra o príncipe (984). Não parece, entretanto, que

as classes artesanais tenham sido levadas em conta

pelo Estado, antes da unificação imperial. As medidas

e os trabalhos que a acompanharam e, mais ainda,

talvez, a política militar seguida pelos grandes impe-


radores, parecem ter favorecido um brusco desenvol-

vimento da indústria e do comércio.

A razão de ser do império foi a grande luta

empreendida contra os Bárbaros. Para que tivesse

êxito, era preciso dispor de um exército móvel e bem

abastecido. Acabaram-se os recrutamentos feudais,

quando se via partir, por alguns dias, um pequeno

número de carros. A força do exército imperial está

em sua cavalaria ligeira, capaz de operar grandes

incursões pelas estepes. Estes cavaleiros têm neces-

sidade de um abastecimento de montarias, de armas,

de forragem, de carne e de grãos. A primeira exigên-

cia do império é facilitar a mobilização de seu exér-

cito. Tal é o princípio que inspirou as medidas e os

trabalhos de onde saiu a unificação do país. O preparo

das terras que estavam incultas serviu para aproximar

os centros da vida social que até então permaneciam

isolados; a adoção de um sistema único de escrita,

de pesos e de medidas teve a mesma finalidade; a

grande obra foi a construção de estradas e de canais.

Ts'in Che Houang-ti e o imperador Wou estabelece-

ram sua capital no centro de um grande cruzamento

de caminhos. Puderam, desde então, abastecer sua

Corte e sua Guarda. Conseguiram, também, consti-

tuir um celeiro central, oficinas e arsenais capazes

de prover as necessidades do exército, operando em

diversas fronteiras. Seu objetivo principal parece que

foi, inicialmente, mobilizar os grãos. Assim se expli-

cam, sem dúvida, as medidas legislativas de Ts'in,


suprimindo o antigo sistema de posse da terra. Tor-

nando os camponeses proprietários do solo, espera.

va-se aumentar seu rendimento, e, outorgando a liber-

dade ao comércio de grãos, pensava-se acabar com

a velha idéia feudal de que a produção das colheitas

não deveria sair das fronteiras: assim, os celeiros

imperiais poderiam ser aumentados.

Todas essas medidas parecem ter sido toma-

das em favor da agricultura que é, declara-se, sem

cessar, a única profissão honrosa. "A última das pro-

fissões", a dos artesãos e dos mercadores, foi a

primeira a tirar proveito. "As terras no interior dos

mares foram unificadas; construíram-se passagens e

pontes; suprimiram-se as proibições que impediam o

.acesso às montanhas e às lagoas. É por isso que os

mercadores ricos percorreram todo o império: não

houve nenhum objeto de troca que não pudesse ir

para todos os lugares(985)." Os imperadores foram

levados a favorecer a indústria dos transportes e

todos os fornecedores do exército. Querendo ou não,

tiveram que se compor com as grandes fortunas, cria.

das nas empresas importantes, sem as quais seus

projetos militares não poderiam ter êxito. Quando, sob

o reinado do imperador Wou, os Hiong-nou atacaram

a fronteira do norte, os estoques locais tornaram-se

insuficientes para abastecer as colônias militares que

deviam ser reforçadas. Foi preciso, então, "apelar

para as pessoas do povo: concederam-se posições

na hierarquia para aqueles que pudessem fazer os


transportes e conduzir mantimentos à fronteira. Foi.

lhes possível chegar até o grau de ta chou tchang" (986).

Era um dos mais elevados (o décimo oitavo); conce-

dia a mais alta posição na categoria dos altos digni-

tários; acima, não havia mais do que os diversos

títulos de marquês (987). Teve-se ainda necessidade

de empresários de transportes, quando se enviaram

imensas multidões para as terras de colonização. Al-

guns entre eles, diz Sseu-ma Ts'ien, eram capazes de

formar "comboios de muitas centenas de carros" (988).

O historiador nota que estes empresários, fato signi-

ficativo, eram também ricos mercadores. Fala, na

mesma passagem, das imensas fortunas feitas pelos

salineiros e pelos donos de fundições. As empresas

de transportes e de abastecimento militar acarretaram

a formação de capitais que eram empregados no co-

mércio e na indústria, mas que também ajudaram na

constituição de grandes domínios de terras.

As salinas e as fundições são as indústrias

principais: viu-se que fundidores e salineiros alcan-

çaram as mais altas dignidades do Estado. Os fun-

didores, em particular, os de ferro, trabalhavam para

o exército. Foram, também, razões de ordem militar

que fizeram prosperar a criação de animais, tanto a

de carneiros como a de cavalos. As incursões da ca-

valaria ligeira, nas quais chegavam a se perder, numa

campanha, mais de 100.000 cavalos, exigiam uma

quantidade de montarias que os haras imperiais sozi-


nhos não podiam fornecer (989). Estes haras do Estado

eram, na verdade, muito importantes. Em 119, os ca-

valos reunidos nos arredores da capital "eram em

número de várias miríades" (990). Mas eles todos não

procediam das criações imperiais, pois se tivera o

cuidado de encorajar a criação particular (991). Enquan-

to que, no princípio dos Han, os altos funcionários

faziam-se transportar em carros de bois(992), sob o

imperador Wou, viam-se cavalos, "mesmo nas ruelas

habitadas pelo povo", e era considerado desonroso

montar uma égua(993). A criação de carneiros tomou

uma extensão comparável, pois era necessário forne-

cer carne ao exército. Sseu-ma Ts'ien nota, com in-

dignação, que se podia obter o título de lang forne-

cendo carneiros ao Estado. De resto, é significativa

a fortuna de um criador de carneiros chamado Pou-che.

Quando ofereceu ao imperador Wou a metade de sua

fortuna, ele recebeu, com o título de lang, o encargo

de fazer prosperar os redis imperiais. Depois disto,

tornou-se prefeito e, mais tarde, yu-che-ta-fou: era

uma das mais altas dignidades do Estado(994). Vê-se

que a criação em grande escala, como o comércio e

a indústria, conduziam às honrarias.

Para a criação em grande escala, são neces-

sárias propriedades vastas, como também, uma mão-

de-obra abundante para as fábricas e os transportes.

Ora, as medidas destinadas, inicialmente, a aumentar

o rendimento das terras e a mobilidade dos grãos

tiveram a conseqüência inesperada de favorecer o


desenvolvimento conjugado dos latifúndios e da es-

cravidão. Na época em que os camponeses eram sim-

ples rendeiros, eles não podiam vender nem a terra,

nem a sua pessoa. Assim que os Ts'in romperam a

dependência que ligava os cultivadores e o solo, acon-

teceu que, para terminar a obra dos grandes trabalhos

e a das colonizações longínquas, recorria-se, freqüen-

temente, às corvéias que tiravam os camponeses de

sua terra natal (995). Expatriados ou atingidos pela es-

cassez de alimentos - houve (por exemplo, em 113)

grandes períodos de fome, quando os homens se

devoraram uns aos outros - os pobres eram freqüen-

temente obrigados a vender seu patrimônio, a vender-

se a si mesmos, e, sobretudo, a vender seus filhos.

Viram-se, portanto, "os campos dos ricos contarem-se

por milheiros e por centenas, não tendo os pobres

terra suficiente para plantar uma agulha" (996). Mesmo

o Estado, para ter carregadores ou criados do exérci-

to, tinha necessidade de escravos. Ele encontrou um

meio de obtê-los em abundância, como condenados,

utilizando as leis monetárias, cuja aplicação foi con-

fiada a legisladores cruéis. Sseu-ma Ts'ien afirma que

"quase que todo mundo no império, pôs-se a cunhar

moedas". Foi fácil aos inquisidores imperiais conde.

nar mais de um milhão de pessoas por este único

motivo (em 115) (997). Estes infelizes, depois de serem

anistiados, foram empregados como colonos ou cria-

dos do exército. Mas era necessário renovar conti-

nuamente a multidão de escravos empregados nos

transportes sobre o rio(998). O império recorreu, en-


tão, aos particulares e consagrou a escravidão privada.

Em 128, ofereceu-se uma dignidade às pessoas que

consentissem em ceder seus escravos ao Estado (999).

Era reconhecer o valor enobrecedor de um novo ele-

mento da fortuna de natureza mobiliária.

O império, tolerando a escravidão, ia ao encon-

tro da crise agrária que devia dominar as duas dinas-

tias Han e terminar, na época dos Três Reinos, com

um renascimento do feudalismo. Desde o reinado do

imperador Wou, queixava-se, nos conselhos imperiais,

"das pessoas ricas que, açambarcando, escravizavam

os pobres". Tratava-se, freqüentemente, "de associa-

ções ilegais", "de dominadores", "de pessoas auda-

ciosas que se reuniam em bandos e se impunham

pela violência, nos burgos e nas aldeias" (1000). Foram

usados diversos expedientes para combater os açam-

barcadores: diligências judiciárias, confiscos dos cam-

pos e dos escravos em proveito do Estado, institui-

ção de monopólios destinados a fazer concorrência

às indústrias e ao comércio particulares. Uma medi-

da, tomada em 119, mostra que os conselheiros im-

periais haviam sentido a gravidade da crise e suas

causas. Proibiu-se que os mercadores aplicassem sua

fortuna em bens de raiz, seja pessoalmente, seja

mesmo por intermédio de terceiros (1001). Mas nada

sustou o movimento começado, como nada pôde parar

o desenvolvimento da riqueza mobiliária. Para para-

lisá-lo, sem dúvida, Ts'in Che Houang-ti havia emitido

uma moeda pesada, para que seu uso fosse incô-


modo (1002). Os Han adotaram o sistema de moedas

leves: mudaram seu tipo várias vezes; lançaram um

padrão novo, permitiram, e depois proibiram, a cunha-

gem livre: parece que fizeram o possível para depre-

ciar os valores mobiliários e o entesouramento. Com-

seguiram, simplesmente, encorajar a estocagem de

mercadorias e o espírito de especulação (1003). Depois

de terem procurado dominar os mercadores "contra-

riando-os e humilhando-os", "proibindo-os de utilizar

carros e de vestir roupas de seda", "sobrecarregan-

do-os com taxas e pagamentos a prazos fixos" (1004),

viram-se constrangidos a reconhecer a importância

representada pelo dinheiro. Sucessivamente, as dife-

rentes formas de riquezas mobiliárias foram aceitas

por eles a título de contribuições, conferindo (como o

velho tributo agrícola de grãos e de seda) o direito

de ingressar na carreira oficial. Conseguiram reabsor-

ver, em proveito do tesouro, uma parte da riqueza

que se formava: com esta finalidade, procederam a

concessão de títulos de nobreza que cada um era

obrigado a adquirir, quando tinha que se redimir da

indignidade que atinge todo homem enriquecido re-

centemente. Autorizaram, assim, o reagrupamento

que colocava, no primeiro plano da sociedade, os habi-

tantes ricos das cidades. Retiveram nas cidades aque-

les que haviam conseguido adquirir grandes domínios,

por meio de intermediários. Os grandes proprietários

de terras vincularam-se aos centros urbanos onde a

fortuna se forma e onde as honrarias são distribuídas.

Todos os membros da nova nobreza imperial eram


habitantes da cidade, vivendo ao lado dos funcioná-

rios, para que pudessem aprender as regras de com-

portamento que convêm às classes oficiais.

II - A reforma dos costumes

A velha nobreza, dizimada, perdeu todo prestí-

gio; os diversos povos da China misturaram-se e se

mesclaram em virtude das longas guerras e das mu-

danças ordenadas pelos grandes imperadores; cons-

truiram-se cidades, centros de administração e de

comércio, enriquecidos com uma atividade totalmente

nova; são habitadas por homens, soldados de fortuna,

chefes de indústria bem sucedidos que não estão

ligados às tradições feudais: entretanto, o que parece

surgir deste novo meio é uma moral arcaizante. A

nobreza imperial procura imitar as regras de compor-

tamento da nobreza feudal, que veio substituir. A ruína

desta última termina com a divulgação de um ideal de

vida que pretende se inspirar em suas tradições.

A propagação deste ideal é devida, em grande

parte, à pressão oficial. Mas esta se exerce de ma-

neiras muito diferentes. - Ts'in Che Houang-ti, em

suas inscrições, vangloria-se de ter "purificado os

costumes", corrigido e melhorado os hábitos estra-

nhos". Trata-se, principalmente, dos costumes se-

xuais. O primeiro imperador gaba-se de ter restabele-

cido, em sua força antiga, o princípio da separação

dos sexos, instituída, na origem dos tempos, pelos


soberanos Fou-hi e Niu-koua. As inscrições nos seus

monumentos proclamam que "ele separou com evi-

dência, o interior e o exterior" e que, doravante, "o

homem e a mulher conformam-se com os ritos". "Os

homens entregaram-se com alegria à cultura dos cam-

pos. - As mulheres dedicam-se, com cuidado, a seus

trabalhos - toda coisa tem seu lugar", pois o impe-

rador "estabeleceu barreiras entre o exterior e o inte-

rior. - Ele proibiu e suprimiu a devassidão. - Os

homens e as mulheres obedecem à lei e são ínte-

Gros(1005)." O primeiro imperador queria conceder a

si uma glória idêntica à do fundador da dinastia

Tcheou. O rei Wen - por um efeito imediato de sua

virtude (ela lhe serviu, primeiramente, para discipli-

nar sua própria esposa) - havia conseguido que,

mesmo nas regiões do sul, se praticasse uma casti-

dade perfeita (1006). Os eruditos chineses acreditavam

que Che Houang-ti se vangloriava de ter restabelecido

os bons costumes na região meridional de Yue, que

uniu à China: ali a moral do rei Wen fora esquecida

depois dos tempos de Keou-tsien, pois parece que

este potentado tinha adotado uma política da natali-

dade que não estava de acordo com as tradições

sadias (1007). Mas o que nos dizem, prova, simplesmen-

te, que o povo de Yue conservava os costumes ca-

racterísticos de uma organização indivisa da família:

as mulheres idosas esposavam os jovens, e os velhos

apropriavam-se das moças. Semelhantes usos, viu-se,

subsistiam mesmo nas classes nobres da sociedade

feudal. Proibindo-os para obter, com casais mais har-


moniosos, famílias mais prolíferas, Keou-tsien não

empreendeu nada contra a separação ritual dos sexos:

ele ajudou o movimento que fez surgir a família pa-

triarcal da família indivisa. Ts'in Che Houang-ti traba-

lhou no mesmo sentido. Atribuía, com efeito, à regra

da separação dos sexos, um valor favorável ao desen-

volvimento da autoridade marital e paterna. Queria se

opor à instabilidade conjugal: "Se uma mulher fugir

para ir esposar (um outro marido) - os filhos não

têm mais mãe!" Condenava, pois, severamente, o

adultério. "Se um homem for a uma casa que não é

a sua, para se conduzir como um porco - aquele que

o mata não é culpado! " Proibia o casamento de viúvas

(pelo menos das viúvas com filhos) como sendo uma

infidelidade ao dever de obediência conjugal. "Se uma

mulher tiver filhos e tornar a se casar - ela desobe-

dece ao morto e não é casta(1008)!" Enfim - e este

último fato mostra, claramente, o sentido da reforma

de costumes intentada pelo primeiro imperador - ele

incorporou aos grandes bandos empregados na con-

quista de Kouang-tong [214], ao lado de vagabundos e

mercadores, todos os maridos-genros (1009). Ele não

conseguiu destruir o costume que substituiu sempre,

nos meios camponeses, dos filhos que abandonavam

a casa paterna para ir ganhar sua vida trabalhando

em proveito dos parentes de suas mulheres. Mas

Ts'in Che Houang-ti, como o prova sua decisão brutal,

pretendia que, em todas as classes da sociedade, a

autoridade paterna se tornasse o único fundamento

da ordem doméstica.
Sendo de linhagem nobre, era natural que o

primeiro imperador tentasse impor a seu povo todo

as regras dos costumes patriarcais próprios da no-

breza. Os Han, procedentes do povo, mostraram me-

nos decisão. De resto, repugnava-lhes legislar e punir.

Pouco intervieram para fixar o direito doméstico, sal-

vo, talvez, para diminuir os rigores da solidariedade

passiva que unia os membros de uma mesma família.

Por um decreto famoso (mas que se tornou uma ma-

nifestação sem efeito) o imperador Wen [179] aboliu

a regra do parentesco responsável (1010). Ele proibiu

que se incriminasse, pelo único fato de seu parentes-

co, o pai, a mãe, a mulher, os filhos e os irmãos con-

sangüíneos do culpado. A responsabilidade coletiva

dos parentes de três gerações consecutivas (san-

tsou) tinha sido cuidadosamente mantida pelos legis-

ladores dos Ts'in: ela era a contrapartida desta " solida-

riedade de coração", que constituía a força da comuni-

dade fraterna. É preciso ver, sem dúvida, no édito

do imperador Wen, a indicação de que a família se

reduz e tende a repousar nas relações entre pai e

filho, mais do que na proximidade colateral. Esta evo-

lução é, talvez, uma das conseqüências das condições

de vida próprias dos meios urbanos. A comunidade

fraterna tinha, outrora, por fundamento, o trabalho

comum nas terras paternas. O Yi li já admite, para os

irmãos, não a propriedade pessoal de bens móveis,

mas, pelo menos, um certo direito de usá-los priva-

damente (1011). Não é possível determinar a que data


remonta o costume de dividir os bens entre irmãos,

assim que o luto pelo pai termina, acabando com uma

comunidade provisória, mas há probabilidades de que

este costume tenha sido adotado quando os valores

mobiliários superaram os bens de raiz. A independên-

cia dos colaterais parece ser um produto antigo do

direito urbano e dos costumes comerciais. Por outro

lado, parece legítimo induzir que a autoridade pater-

na e o poder marital não puderam fazer progressos

efetivos senão na época em que desapareceram as

sobrevivências mais importantes da velha indivisibi-

lidade. Ora, desde os tempos dos Han, os direitos do

marido e do pai parecem absolutos ou, antes, eles

não são limitados senão por regras de eqüidade,

todas morais.

O papel dos Han na reforma dos costumes foi,

de acordo com a doutrina constitucional, um papel de

propaganda moral. Eles preconizaram, diante do luxo

reinante, a volta à simplicidade antiga. Um dos do-

cumentos mais significativos é um trecho que Pan

Kou escreveu para a glória do imperador Kouang-wou,

fundador dos Han orientais. Este soberano sabia puri-

ficar e transformar o povo por seus benefícios. Ele

temia o espírito de prodigalidade e o menosprezo, que

acarreta, pelos trabalhos agrícolas. Ordenou que se

mostrasse moderação e economia e que se obser-

vasse a mais extrema simplicidade. A exemplo dos

Soberanos míticos, enterrou ouro nas montanhas e

pérolas nos abismos. Aconselhou seus súditos a des-


prezarem o raro e o precioso, a se servirem de bilhas

de barro ou de cabaças, a usarem roupas sem enfei-

tes. É assim que se pode renunciar aos desejos e aos

vícios, viver na pureza e conservar o aspecto calmo

e correto que convém às pessoas livres das paixões

vulgares (1012). O imperador Wou [122] já tinha pen-

sado em pregar as mesmas coisas, mas por meio de

intermediários. O grande conselheiro Kong-souen

Hong foi encarregado de dar "o bom exemplo ao im-

pério". "Ele usou (então) vestimentas de algodão e

só comia um único prato em suas refeições." Sseu-ma

Ts'ien nota, com malícia, que "nada disto melhorou

os costumes; pouco a pouco, as pessoas se precipita-

ram para as honrarias e os lucros"(1013).

Não sendo suficiente o exemplo, recorreu-se,

para disciplinar os apetites, à propaganda pela histo-

rieta e pela imagem. O mestre, nesse gênero, foi Lieou

Hiang (fim do século 1), bibliotecário bastante suspei-

to a quem se deve, aparentemente, muitas modifi-

cações fraudulentas dos raros documentos antigos,

mas, em compensação, escritor perfeito de obras mo-

ralizadoras. São coletâneas de historietas ilustradas.

Estas historietas tiveram muito sucesso e foram infi-

nitamente copiadas, como também suas ilustrações.

Um bom número delas foi gravado nas paredes late-

rais das câmaras funerárias (datando dos segundos

Han), que foram estudadas por Chavannes. A maior

parte é tirada da antiguidade e é de lá que vem sua

autoridade. Eis alguns exemplos propostos à medita-


ção das esposas. Uma mulher muito bela e muito

virtuosa da região de Leang ficou viúva com um filho

pequeno; muitos homens de famílias nobres propuse-

ram-lhe casamento mas ela recusou. Ora, o rei de

Leang, em pessoa, enamorou-se dela. Enviou um men-

sageiro para lhe oferecer os presentes dos esponsais.

Depois de declarar que uma mulher deve permanecer

fiel a seu primeiro marido, ela pegou um espelho,

com uma das mãos, e com a outra, uma faca. Depois,

cortou seu nariz, acrescentando que ela não se matava

por causa do órfão que tinha que cuidar. Agora que

se tinha infligido uma mutilação semelhante àquela

com que se puniam certos crimes, o rei certamente

renunciaria a ela. Emocionado com tal fidelidade con-

jugal, o rei lhe concedeu o título de "aquela que agiu

nobremente"(1014). - "Um homem da região de Lou,

chamado Ts'ieou Hou, deixara sua esposa cinco dias

depois de ter-se casado, indo para um reino estran-

geiro, onde permaneceu durante cinco anos. Quando

regressou, pouco antes de chegar em sua casa, viu

uma mulher que colhia folhas de amoreira; eles não

se reconheceram. Ts'ieou Hou, seduzido pela graça

da jovem, fez-lhe propostas desonestas, que ela repe-

liu com indignação. Continuando seu caminho, ele

entrou em sua casa e pediu que o levassem à presen-

ça de sua mulher. Quando esta apareceu, ele ficou

estupefato em reconhecer a pessoa com quem aca-

bara de falar à beira do caminho. Depois de dirigir

censuras veementes a seu marido, ela foi se jogar no

rio (1015)". "Em Tch'ang-ngan... vivia um homem que


tinha um inimigo mortal. Como sua mulher possuía

um grande respeito filial, o inimigo aproveitou-se para

ameaçá-la de matar seu pai se ela não lhe oferecesse

uma ocasião para assassinar seu marido. Apanhada

entre seus deveres de esposa e seus deveres de fi-

lha... ela indicou o local em que seu marido devia

ir dormir na noite seguinte, mas ela ali se deitou

sozinha e o inimigo cortou-lhe a cabeça (1016)." Eis ago-

ra modelos de filhos respeitosos: "Min Tseu-k'ien e

seu irmão mais moço perderam sua mãe. Seu pai tor-

nou a se casar, tendo mais dois filhos. Um dia em

que conduzia o carro de seu pai, Tseu-k'ien deixou

cair as rédeas. O pai tomou sua mão e percebeu que

suas roupas eram muito finas. O pai voltou para sua

casa, chamou os filhos da segunda esposa, tomou

suas mãos e percebeu que suas vestimentas eram

muito mais espessas. Disse, então, a sua mulher: "Se

eu vos esposei, foi pelo bem de meus filhos. Estais

agora me iludindo. Ide embora e não fiques mais

aqui.'Tseu-k'ien disse então: 'Até agora somente mi-

nhas vestimentas eram finas; mas, se nossa mãe par-

tir, os quatro filhos terão frio.' O pai guardou silên-

cio(1017)." "Lao Lai-tseu era um homem da região de

Tch'ou. Quando chegou aos setenta anos, seus pais

ainda estavam vivos. Seu respeito filial era muito

grande. Constantemente vestido de roupas pintadas

(como as crianças), ele fingia tropeçar quando che-

gava na sala, trazendo o que beber a seus pais, e

depois ficava estendido no chão, soltando gemidos

como as criancinhas. Ou ainda, para rejuvenescer seus


velhos pais, ele ficava brincando diante deles com

suas longas mangas ou se divertia com pintinhos (1018)".

Estas historietas de fundo moral têm em vista

um efeito dramático. Passam facilmente do cômico ao

horrível, do filho engenhoso que mastiga os alimen-

tos para seu pai desdentado ao filho heróico que, mui-

to pobre para sustentar, ao mesmo tempo, sua velha

mãe e seu filhinho, conserva-o enquanto sua mulher

pode lhe dar o seio, mas, apenas desmamado, dispõe-

se a enterra-lo - o que o leva a achar uma panela de

ouro, pois o Céu sabe recompensar as virtudes (1019).

Em todas estas historietas pretensiosas e pueris, sen-

te-se o mestre-escola. É, na verdade, estabelecendo

escolas nas capitais e nos povoados, que o soberano

deve ensinar ao povo a humanidade (jen), a eqüidade

(yi) e o cerimonial (li), pois a educação produz exce-

lentes costumes. Tal era a opinião que Tong Tchong-

chou desenvolveu longamente diante do imperador

Wou. Ele não hesitou em afirmar que tal era a prática

dos velhos soberanos, e, de fato, nos rituais em moda

sob os Han, acha-se a indicação do programa escolar

das mais remotas épocas (1020). Depois que os instru-

mentos musicais eram consagrados por uma unção

sangrenta, inaugurava-se o ano escolar com um con-

certo e uma refeição que eram oferecidos aos velhos;

era uma ocasião para ofertar um pouco de agrião às

almas dos velhos professores. Os alunos começavam

a cantar alguns versos do Che king, depois, "com o

rufar de um tambor, tiravam, de suas caixas, livros e

instrumentos. Eles trabalhavam com submissão, (pois)


o bastão de madeira de catalpa e as varas de madeira

espinhosa, ali estavam, prontas para os incitar ao

respeito"(1021). "O ensino variava segundo as esta-

ções": "na primavera e no verão, aprendia-se a mane-

jar a lança e o escudo (isto é, a dançar os passos

militares); no outono e no inverno, a empunhar a pena

do faisão e a flauta (isto é, a executar as danças ci-

vis)(1022)." Cantava-se na primavera; no outono, toca-

vam-se instrumentos de corda. No outono, também,

sob a direção de mestres-de-cerimônias, aprendiam-se

os ritos (li) na Escola dos cegos, e no inverno, pas-

sava-se a aprender história na Escola superior. Isto

durava nove anos. Os alunos, cada ano, faziam um

exame. Desde o primeiro, era preciso demonstrar

"que sabiam separar as frases dos autores segundo

o sentido e discernir as tendências, boas e más de

seu coração". No exame final, mostravam que "com-

preendiam as razões das coisas e que sabiam classi-

ficar por categorias". "Sua formação estava então

terminada" e "eles caminhavam com passo firme, na

estrada do dever". Conheciam, na verdade, as Seis

Ciências (a saber: 1a as cinco espécies de ritos; 2a

as seis espécies de músicas; 3a as cinco maneiras de

atirar flechas; 4a os cinco modos de conduzir os car-

ros; 5a os seis tipos de escrita; 6a os nove métodos

de cálculo), as Seis Etiquetas (a saber: 1a a postura

do sacrificante (circunspeção); 2a a postura do hós-

pede (atenção respeitosa); 3a a postura do cortesão

(solicitude); 4a a postura do luto (gravidade); 5a a

postura do militar (a posição de sentido); 6a a postu-


ra no carro (vigilância), as Três Virtudes (Sincerida-

de, Vigilância, Respeito Filial) e as Três Práticas

(Respeito Filial, Amizade, Deferência para com o mes-

tre). - Na verdade, não sabemos nada de preciso

sobre as escolas feudais e quase nada sobre as dos

Han, a não ser que nas primeiras, aprendia-se a boa

apresentação, como convém nas escolas de pajens,

com o auxílio de exercícios práticos, e, nas segundas,

faziam-se, sobretudo, exercícios de retórica sobre os

temas da boa apresentação e da etiqueta. O fato

essencial é que o ensino era fundamentalmente livres-

co: "Os professores que ensinam agora, contentam-se

em ler, cantando, os livros que têm sob os olhos(1023)."

"Aos treze anos, eu sabia tecer, - aos catorze

anos, eu podia cortar, - aos quinze anos, eu tocava

alaúde, - aos dezesseis anos, eu lia Versos e Histó-

rias, - aos dezessete anos, tornei-me tua mulher (1024)."

Este começo de idílio mostra que era necessária uma

cultura literária, mesmo para as jovens. Ela se impõe,

muito mais, a todo homem que quer ingressar na car-

reira das honrarias. A este respeito, nada é mais

significativo do que certas inscrições onde foi grava-

do o louvor a personagens oficiais da segunda dinas-

tia Han. Lê-se, por exemplo, na estela elevada em

honra de Wou Jong (morto em 167 d.C.): "O honrado

defunto teve por nome pessoal Jong e, por denomina-

ção, Han-ho. Ele se dedicou ao estudo do Livro de

Versos do texto de Lou, dividido em parágrafos e em

frases, do mestre Wei. Antes mesmo de ter seu bar-

rete viril, ele o ensinava e o explicava. O Hiao king


(Livro do Respeito Filial), o Louen yu (Conceitos de

Confúcio), o Livro dos Han, as Memórias Históricas

(de Sseu-ma Ts'ien), o Livro de Tso (o Tso tchouan),

o Kouo yu (Discursos dos Reinos), ele os estudara

bastante, apreciando suas sutilezas. Não havia nada

nestes escritos que ele não tivesse compreendido e

aceito. Durante muito tempo, ele freqüentou a Escola

superior. De uma maneira profundíssima, ele era edu-

cado e sério. Poucos podiam ser comparados a ele.

Quando terminou seus estudos, exerceu funções pú-

blicas. E assim sucessivamente... Quando atingiu

a idade de trinta e seis anos, o governador Ts'ai...

notou-o e o recomendou por seu respeito filial e por

sua integridade... Foi promovido à dignidade de che-

fe adjunto dos guardas do interior do palácio impe-

rial... Olhando para o que era sublime e procurando

penetrar no que era resistente - ele teve, verda-

deiramente, os talentos civis! teve, verdadeiramente,

os talentos militares! - Seus estandartes produziam

um clarão vermelho no Céu! Era como o estrépito de

um trovão, como a aparição de um relâmpago! - A

claridade que espalhava era terrível! Imponente era

seu bramido de tigre (1025)! "

"Desde a época do imperador Wou", escreveu

Chavannes, "começou a se manifestar a tendência do

espírito chinês a procurar nos livros clássicos o prin-

cípio de toda sabedoria(1026)." E preciso acrescentar:

"e de todas as virtudes sociais", inclusive a bravura,

como pôde demonstrar o louvor a Wou Jong. É bem

possível que esta importância exclusiva concedida a


uma cultura estritamente literária seja muito mais

antiga. Há, mesmo, razões para se acreditar que espí-

ritos ousados tenham-na considerado perigosa. Sabe-

se que Ts'in Che Houang-ti tomara grande cuidado em

conservar os tratados técnicos (medicina, farmácia,

agricultura, arboricultura) mas proscrevera, especial-

mente, os Versos e a História. Sem dúvida, pensava

que eram necessários ao Estado nascente os serviços

de técnicos especializados, mas que, tanto ao conse-

lho, como à batalha, pouco podiam ajudar as alocuções

repletas de versos tirados da literatura e de prece-

dentes históricos. Os panfletários do começo dos Han

acusaram o primeiro imperador "de ter queimado os

Ensinamentos das Cem Escolas, para tornar estúpidos

os Cabeças-pretas (= o povo)"(1027). Os Han, na ver-

dade, pareciam considerar o direito de advertência

como o único princípio do acordo que deve reinar

entre o príncipe e seus súditos, sob a vigilância do

Céu. Desde o reinado do imperador Wou, o grande

conselheiro Kong-souen Hong "governou os ministros

e o povo em nome da interpretação dos Anais de Con-

fúcio (Tch'ouen ts'ieou)"(1028). Seguro de um conheci-

mento minucioso dos fatos antigos da História e dos

sinais correspondentes emitidos pela Natureza, clas-

sificados em categorias simétricas(1029), ele se sentia

dono de uma ciência total, ao mesmo tempo física e

política, que permitia prever e governar. É o mesmo

Kong-souen Hong que, dando o exemplo, pretendia

ensinar à multidão dos ricos arrogantes, a simplicida-

de dos costumes que é o sinal do homem honesto.


Príncipes e súditos deviam regrar suas vidas pro-

curando confrontá-la com a de seus antepassados. Os

Han impuseram o aprendizado da modéstia e dos ri-

tuais exteriores aos ricos, cujas facções temiam. Esta

etiqueta tivera seus efeitos. Tinha servido para disci-

plinar as paixões dos senhores feudais, que transfor-

mara em gentis-homens. Quando, ao contrário dos

Ts'in, os Hans induziam seu povo a seguir os passos

dos anciãos e a viver em respeitosa meditação do pas-

sado, eles não pensavam em "torná-lo estúpido". Que-

riam torná-lo sensato. Condenando os ensinamentos

técnicos, de que não pode surgir senão o gosto pela

riqueza e pela força, aos novos homens que povoavam

as cidades enriquecidas, os Han propuseram, como

condição para o enobrecimento, uma vida inteiramen-

te dedicada ao ensino dos clássicos.

Conclusão

Para concluir este livro, eu deveria tentar

definir o espírito dos costumes chineses.

Mas isto é possível antes de eu ter

apresentado um esboço da história das

idéias? Esta conclusão terá seu lugar no

fim do volume que completará este aqui.

Entretanto, no presente volume, em que a história so-

cial ocupa o lugar de destaque, insistiu-se a respeito

do que a disciplina de vida própria dos Chineses pode

ter de característico. Sua apresentação isolada corre


o risco de causar uma impressão que, sem dúvida,

deve ser imediatamente corrigida.

A ausência de intimidade é um traço dominan-

te da organização familiar; marcou, primeiramente,

as relações entre maridos e mulheres e entre pais e

filhos; parece ter-se tornado a regra para todas as

relações de família; dominada pela idéia do respeito,

a moral doméstica, finalmente, confunde-se com um

cerimonial da vida de família. Por outro lado, as rela-

ções da sociedade animadas, inicialmente, pelo espí-

rito de justa ou pelo amor ao prestígio, acabam sendo

regidas por um gosto exclusivo pelo decoro: a moral

cívica, orientada para um ideal de polidez pretensio-

sa, parece visar, unicamente, à organização, entre os

homens, de um sistema de relações protocolares, fi-

xando os gestos que convêm a cada idade, a cada

sexo, a cada condição social, a cada situação de fato.

Enfim, na vida política, em que se preconiza o prin-

cípio do governo pela história, parece que se pretende

satisfazer tudo apenas por intermédio das virtudes

de um conformismo tradicionalista. Assim, no momen-

to em que, no início da era imperial, a civilização

chinesa parece atingir um ponto de maturidade, tudo

contribui para tornar evidente o reinado do formalismo.

Mas, qual é a importância real deste sistema

de convenções arcaizantes, com o qual se pretende

reger a vida inteira da nação? É verdade, como se

poderia ser tentado a pensar, que ele contribuiu para

empobecer e para tornar árida a vida moral dos Chi-

neses? É mesmo certo que tenha produzido determi-


nados efeitos nas classes oficiais, deliberadamente

consagradas ao culto do conformismo, como sendo a

única disciplina capaz de formar o homem honesto?

Deve-se, a este respeito, formar uma opinião, lendo.

se apenas as obras de propaganda e as biografias de

homens ilustres? Mesmo sabendo que estas derivam

do elogio fúnebre e que haveria muita ingenuidade

em se aceitar o tom de uma pregação como a nota

justa, é difícil evitar a sensação de que a evolução

dos costumes fez-se na China por. Intermédio da des-

secação progressiva e que, na vida normal, sob a

força crescente de uma etiqueta convencional, a es-

pontaneidade reduziu-se a nada. Somente a história

do pensamento pode demonstrar que, pelo contrário,

a aceitação pelas pessoas honestas de uma atitude

conformista deriva, em parte, da esperança de con-

servar, para a vida do espírito, uma espécie de inde-

pendência resguardada e de plasticidade profunda.

Mas podemos indicar, desde já, alguns fatos

que serão suficientes para marcar os limites do ideal

formalista. - Já assinalamos o papel do misticismo

nos meios cortesãos. Seu papel nas massas popula-

res não é menos importante. Não é muito evidente

porque os Anais dinásticos só se interessam pela vida

da corte e pelos altos personagens. A grande crise

mística do ano 3 (notada, acidentalmente, por um epi-

sódio da vida da corte) não foi, com certeza, uma

crise isolada: a seu respeito, possuímos poucos de-

talhes, mas todos mostram que, nos meios campo-

neses, conservavam-se, com um frescor perfeito, cer-


tos ideais místicos que remontam às mais antigas

eras. - Por outro lado, durante o período agitado dos

Três Reinos, o velho espírito feudal parece reencon-

trar sua força: presume-se que nos grandes domínios

rurais criados na época dos Han, mantiveram-se hábi-

tos de vida e uma disciplina de costumes menos afas-

tados, sem dúvida, da antiga moral feudal do que o

ideal arcaizante preconizado pelo ensino ortodoxo. A

história recusou-se a registrar os fatos e não sabemos

nada sobre a permanência dos elementos feudais da

vida social. - A história, enfim, informa muito pouco

sobre a evolução dos costumes nos novos centros

urbanos (as classes oficiais postas à parte); nesses

centros, entretanto, criou-se uma moral própria dos

comerciantes, caracterizada, parece, pelo espírito de

associação e pelos acordos eqüitativos. Pode-se pre-

sumir que sua influência sobre a vida chinesa não foi

negligenciável: entretanto, a respeito do período an-

tigo, não sabemos quase nada sobre a vida real das

classes industriais, sobre o papel das cidades na

economia geral, sobre a evolução jurídica e moral dos

centros urbanos. Seria extraordinário se eles não ti-

vessem elaborado ideais eficazes e se sua atividade

estivesse reduzida à prática da etiqueta ortodoxa. Não

se deve subestimar a ação das classes oficiais. En-

tretanto, terminando este livro, convém assinalar que

a história, devido a uma tradição aristocrática, deixou

de registrar os movimentos populares. Com a era im-

perial, que encerra a história da China antiga, a civi-

lização chinesa chega, certamente, à maturidade, mas,


embora os defensores da ortodoxia quisessem dotá-la

de uma dignidade imóvel, definindo com um rigor

crescente seus ideais tradicionais, ela continua reple-

ta de forças novas.

Fim do Volume 2

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