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Ensaios

Falando em línguas: uma car- Não é fácil escrever esta carta.


ta para as mulheres escritoras do Começou como um poema, um longo
poema. Tentei transformá-la em um ensaio,
terceiro mundo1 mas o resultado ficou áspero, frio. Ainda
não desaprendi as tolices esotéricas e
GLORIA ANZALDÚA2 pseudo-intelectualizadas que a lavagem
cerebral da escola forçou em minha
escrita.
Como começar novamente? Como
21 de maio de 1980 alcançar a intimidade e imediatez que
Queridas mulheres de cor, quero? De que forma? Uma carta, claro.
companheiras no escrever Minhas queridas hermanas, os
Sento-me aqui, nua ao sol, máquina perigos que enfrentamos como mulheres
de escrever sobre as pernas, procurando de cor não são os mesmos das mulheres
imaginá-las. Mulher negra, junto a uma brancas, embora tenhamos muito em
escrivaninha no quinto andar de algum comum. Não temos muito a perder —
prédio em Nova Iorque. Sentada em uma nunca tivemos nenhum privilégio. Gostaria
varanda, no sul do Texas, uma chicana de chamar os perigos de “obstáculos”,
abana os mosquitos e o ar quente, mas isto seria uma mentira. Não podemos
tentando reacender as chamas latentes transcender os perigos, não podemos
da escrita. Mulher índia, caminhando para ultrapassá-los. Nós devemos atravessá-los
a escola ou trabalho, lamentando a falta e não esperar a repetição da performance.
de tempo para tecer a escrita em sua vida. É improvável que tenhamos amigos
Asiático-americana, lésbica, mãe solteira, nos postos da alta literatura. A mulher de
arrastada em todas as direções por cor iniciante é invisível no mundo
crianças, amante ou ex-marido, e a escrita. dominante dos homens brancos e no
mundo feminista das mulheres brancas,
1. Publicado originalmente em ANZALDÚA , 1981. apesar de que, neste último, isto esteja
Reproduzido aqui com a permissão da autora.
gradualmente mudando. A lésbica de cor
2. Filha de camponeses do sul do Texas, que tiveram
não é somente invisível, ela não existe.
suas famílias separadas por uma fronteira imposta,
Anzaldúa fazia da leitura o descanso de suas jornadas Nosso discurso também não é ouvido. Nós
de trabalho nas plantações. Ativista desde jovem, nos falamos em línguas, como os proscritos e
anos 1950 participou dos protestos de camponeses do os loucos.
sul do Texas. No fim dos anos 1960 e início dos anos Porque os olhos brancos não querem
1970, teve contato com a literatura feminista, mas é nos
anos 1970 que inicia sua produção literária, quando
nos conhecer, eles não se preocupam em
escreve peças de teatro, poemas, contos, romances e aprender nossa língua, a língua que nos
autobiografias. No começo dos anos 1980 defende a reflete, a nossa cultura, o nosso espírito. As
posição de que as mulheres de cor deveriam buscar escolas que freqüentamos, ou não
meios para expressar suas idéias, transformando-se em
freqüentamos, não nos ensinaram a
criadoras de suas teorias e não mais em meros objetos
de estudo. Publicamos este ensaio, inédito em português, escrever, nem nos deram a certeza de que
em homenagem aos vinte anos da antologia This bridge estávamos corretas em usar nossa
called my back (MORAGA & ANZALDÚA, 1981) que foi uma linguagem marcada pela classe e pela
das referências obrigatórias nos debates sobre diferença etnia. Eu, por exemplo, me tornei
dentro do feminismo norte-americano dos anos 1980
(NT).
conhecedora e especialista em inglês,

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para irritar, para desafiar os professores calejadas, inadequadas para segurar a
arrogantes e racistas que pensavam que pena?
todas as crianças chicanas eram Como é difícil para nós pensar que
estúpidas e sujas. E o espanhol não era podemos escolher tornar-nos escritoras,
ensinado na escola elementar. E o muito mais sentir e acreditar que podemos!
espanhol não foi exigido na escola O que temos para contribuir, para dar?
secundária. E mesmo que agora escreva Nossas próprias expectativas nos
poemas em espanhol, como em inglês, me condicionam. Não nos dizem a nossa
sinto roubada de minha língua nativa. classe, a nossa cultura e também o
Não tenho imaginação você diz homem branco, que escrever não é para
Não. Não tenho língua. mulheres como nós?
A língua para clarear O homem branco diz: Talvez se
minha resistência ao literato. rasparem o moreno de suas faces. Talvez
Palavras são uma guerra para mim. se branquearem seus ossos. Parem de falar
Ameaçam minha família. em línguas, parem de escrever com a mão
Para conquistar a palavra esquerda. Não cultivem suas peles
para descrever a perda coloridas, nem suas línguas de fogo se
arrisco perder tudo. quiserem prosperar em um mundo destro.
Posso criar um monstro “O homem, como os outros animais,
as palavras se alongam e tomam tem medo e é repelido pelo que ele não
corpo entende, e uma simples diferença é capaz
inchando e vibrando em cores de conotar algo maligno.” 4
pairando sobre minha mãe, Penso, sim, talvez se formos à
caracterizada. universidade. Talvez se nos tornarmos
Sua voz na distância mulheres-homens ou tão classe média
ininteligível iletrada. quanto pudermos. Talvez se deixarmos de
Estas são as palavras do monstro. amar as mulheres sejamos dignas de ter
alguma coisa para dizer que valha a
Cherríe Moraga3 pena. Nos convencem que devemos
Quem nos deu permissão para cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o
praticar o ato de escrever? Por que escrever touro sagrado, a forma. Colocarmos
parece tão artificial para mim? Eu faço molduras e metamolduras ao redor dos
qualquer coisa para adiar este ato — escritos. Nos mantermos distantes para
esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é ganhar o cobiçado título de “escritora
recorrente em mim: Quem sou eu, uma literária” ou “escritora profissional”. Acima de
pobre chicanita do fim do mundo, para tudo, não sermos simples, diretas ou
pensar que poderia escrever? Como foi rápidas.
que me atrevi a tornar-me escritora Por que eles nos combatem? Por que
enquanto me agachava nas plantações pensam que somos monstros perigosos?
de tomate, curvando-me sob o sol Por que somos monstros perigosos? Porque
escaldante, entorpecida numa letargia desequilibramos e muitas vezes rompemos
animal pelo calor, mãos inchadas e as confortáveis imagens estereotipadas
que os brancos têm de nós: A negra
doméstica, a pesada ama de leite com
3. MORAGA, 1983. “I lack imagination you say/ No. I lack
language/ The language to clarify/ my resistance to the
uma dúzia de crianças sugando seus
literate./ Words are a war to me./ They threaten my family./ seios, a chinesa de olhos puxados e mão
To gain the word/ to describe the loss/ I risk losing hábil — “Elas sabem como tratar um
everything./ I may create a monster/ the word’s length homem na cama” —, a chicana ou a índia
and body/ swelling up colorful and thrilling/ looming over
my mother, characterized./ Her voice in the distance/
unintelligible illiterate./ These are the monster’s words”. 4. WALKER, 1979, p. 169.

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de cara achatada, passivamente deitada mundo neste livro. Muitas e muitas vezes
de costas, sendo comida pelo homem a me percebo sendo a única mulher do
la La Chingada. terceiro mundo participando de encontros
A mulher do terceiro mundo se literários, workshops e seminários.
revolta: Nós anulamos, nós apagamos suas Não podemos deixar que nos
impressões de homem branco. Quando rotulem. Devemos priorizar nossa própria
você vier bater em nossas portas e escrita e a das mulheres do terceiro mundo.
carimbar nossas faces com ESTÚPIDA, Não podemos educar as mulheres
HISTÉRICA, PUTA PASSIVA, PERVERTIDA, brancas e carregá-las pela mão. A maioria
quando você chegar com seus ferretes e de nós deseja ajudar, mas não podemos
marcar PROPRIEDADE PRIVADA em nossas fazer para a mulher branca o seu dever
nádegas, nós vomitaremos de volta na sua de casa. Isto é um desperdício de energia.
boca a culpa, a auto-recusa e o ódio Em muitas ocasiões — mais do que
racial que você nos fez engolir à força. Não gostaria de lembrar — Nellie Wong, escritora
seremos mais suporte para seus medos feminista asiático-americana, foi
projetados. Estamos cansadas do papel de chamada pelas mulheres brancas para
cordeiros sacrificiais e bodes expiatórios. fornecer uma lista de asiático-americanas
Eu posso escrever isto e mesmo assim que pudessem dar conferências e
perceber que muitas de nós — mulheres workshops. Estamos em perigo de nos
de cor, que dependuramos diplomas, reduzir a fornecedoras de listas de recursos.
credenciais e livros publicados ao redor dos Confrontar nossas próprias limitações.
nossos pescoços, como pérolas às quais Há um limite para o que posso fazer em
nos agarramos desesperadamente — um dia. Luisah Teish, dirigindo-se a um
arriscamos estar contribuindo para a grupo no qual feministas brancas
invisibilidade de nossas irmãs escritoras. “La predominavam, disse a respeito da
Vendida”, a vendida. experiência das mulheres do terceiro
O perigo de vender nossa própria mundo o seguinte:
ideologia. Para a mulher do terceiro mundo “Se você não se encontra no labirinto
que, na melhor das hipóteses, tem um pé em que (nós) estamos, é muito difícil lhe
no mundo literário feminista, é grande a explicar as horas do dia que não
tentação de acolher novas sensibilidades possuímos. Estas horas que não possuímos
e modismos teóricos, as últimas meias são as horas que se traduzem em
verdades do pensamento político, os estratégias de sobrevivência e dinheiro. E
semidigeridos axiomas psicológicos da quando uma dessas horas é tirada, isto
new age, que são pregados pelas significa não uma hora em que não iremos
instituições feministas brancas. Seus deitar e olhar para o teto, nem uma hora
seguidores são notórios por “adotar” as em que não conversaremos com um
mulheres de cor como sua “causa” amigo. Para mim isto significa um pedaço
enquanto esperam que nos adaptemos de pão.”
a suas expectativas e a sua língua. Entenda.
Como nos atrevemos a sair de nossas Minha família é pobre.
peles? Como nos atrevemos a revelar a Pobre. Eu não posso comprar
carne humana escondida e sangrar uma fita nova. As marcas
vermelho como os brancos? É preciso uma desta são suficientes
enorme energia e coragem para não para me manter movendo
aquiescer, para não se render a uma dentro dela, responsável.
definição de feminismo que ainda torna a A repetição como as histórias de
maioria de nós invisíveis. Mesmo enquanto minha mãe
escrevo isto, me sinto perturbada porque recontadas, cada vez
sou a única escritora mulher do terceiro revela mais particulares

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ganha mais familiaridade. pedir para tentar justificar por que estou
Você não pode me levar em seu viva?
carro tão velozmente. O ato de escrever é um ato de criar
alma, é alquimia. É a busca de um eu, do
Cherríe Moraga5
centro do eu, o qual nós mulheres de cor
somos levadas a pensar como “outro” — o
“A complacência é uma atitude escuro, o feminino. Não começamos a
bem mais perigosa que o ultraje.” escrever para reconciliar este outro dentro
Naomi Littlebear6 de nós? Nós sabíamos que éramos
diferentes, separadas, exiladas do que é
Por que sou levada a escrever? considerado “normal”, o branco-correto. E
Porque a escrita me salva da à medida que internalizamos este exílio,
complacência que me amedronta. Porque percebemos a estrangeira dentro de nós
não tenho escolha. Porque devo manter e, muito freqüentemente, como resultado,
vivo o espírito de minha revolta e a mim nos separamos de nós mesmas e entre
mesma também. Porque o mundo que crio nós. Desde então estamos buscando
na escrita compensa o que o mundo real aquele eu, aquele “outro” e umas as outras.
não me dá. No escrever coloco ordem no E em espirais que se alargam, nunca
mundo, coloco nele uma alça para poder retornamos para os mesmos lugares de
segurá-lo. Escrevo porque a vida não infância onde o exílio aconteceu, primeiro
aplaca meus apetites e minha fome. nas nossas famílias, com nossas mães, com
Escrevo para registrar o que os outros nossos pais. A escrita é uma ferramenta
apagam quando falo, para reescrever as para penetrar naquele mistério, mas
histórias mal escritas sobre mim, sobre você. também nos protege, nos dá um
Para me tornar mais íntima comigo mesma distanciamento, nos ajuda a sobreviver. E
e consigo. Para me descobrir, preservar-me, aquelas que não sobrevivem? Os restos de
construir-me, alcançar autonomia. Para nós mesmas: tanta carne jogada aos pés
desfazer os mitos de que sou uma profetisa da loucura ou da fé ou do Estado.
louca ou uma pobre alma sofredora. Para 24 de maio de 1980
me convencer de que tenho valor e que o
Está escuro e úmido e chove o dia
que tenho para dizer não é um monte de
todo. Eu amo dias como este. Enquanto
merda. Para mostrar que eu posso e que estou deitada na cama sou capaz de
eu escreverei, sem me importar com as
aprofundar-me no meu íntimo. Talvez hoje
advertências contrárias. Escreverei sobre o
escreverei deste âmago profundo.
não dito, sem me importar com o suspiro Enquanto tateio as palavras e uma voz
de ultraje do censor e da audiência.
para falar do escrever, olho para minha
Finalmente, escrevo porque tenho medo
mão escura, segurando a caneta, e penso
de escrever, mas tenho um medo maior em você a milhas de distância segurando
de não escrever.
sua caneta. Você não está sozinha.
Por que deveria tentar justificar por
Caneta, sinto-me como em casa em
que escrevo? Preciso justificar o ser chicana, sua tinta, dando uma pirueta, misturando
ser mulher? Você poderia também me
as teias, deixando minha assinatura nos
vidros da janela. Caneta, como pude
alguma vez ter medo de você? Você não
5. MORAGA, 1983. “Understand./ My family is poor./ Poor. tem casa, mas é sua impetuosidade que
I can’t afford/ a new ribbon. The risk/ of this one is enough/ me deixa apaixonada. Tenho que me livrar
to keep me moving/ through it, accountable./ The repetition
like my mother’s/ stories retold, each time/ reveals more
de você quando começar a ser previsível,
particulars/ gains more familiarity./ You can’t get me in quando parar de perseguir diabinhos.
your car so fast”. Quanto mais você me supera, mais eu a
6. LITTLEBEAR, 1977, p. 36.

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amo. É quando estou cansada, ou quan- as refeições, entre o dormir e o acordar. Eu
do tomei muita cafeína ou vinho que você escrevo sentada no vaso. Não se demore
ultrapassa minhas defesas e digo mais do na máquina de escrever, exceto se você
que pretendia. Você me surpreende, me for saudável ou tiver um patrocinador —
choca quando revela alguma parte de você pode mesmo nem possuir uma
mim que mantive em segredo de mim máquina de escrever. Enquanto lava o
mesma. chão, ou as roupas, escute as palavras
Registro de diário. ecoando em seu corpo. Quando estiver
As vozes de Maria e Cherríe chegam deprimida, brava, machucada, quando
da cozinha e caem nestas páginas. Eu for possuída por compaixão e amor.
posso ver a Cherríe andando em seu Quando não tiver outra saída senão
quimono, lavando os pratos de pés escrever.
descalços, batendo a toalha de mesa, Distrações todas — alguma coisa me
passando o aspirador. Enquanto sinto um acontece quando estou concentrada no
certo prazer em observá-la fazendo estas escrever, quando estou quase chegando
simples tarefas, fico pensando, eles lá — aquele sótão escuro onde alguma
mentiram, não existe separação entre vida “coisa” está propensa a pular e precipitar-
e escrita. se sobre mim. As formas com que subverto
O perigo ao escrever é não fundir o escrever são muitas. A maneira como não
nossa experiência pessoal e visão do tiro água da fonte e nem aprendo a fazer
mundo com a realidade, com nossa vida o moinho de vento girar.
interior, nossa história, nossa economia e Comer é minha principal distração.
nossa visão. O que nos valida como seres Levantar para comer uma torta de maçã.
humanos, nos valida como escritoras. O Mesmo o fato de não comer açúcar por
que importa são as relações significativas, três anos não me dissuade, mesmo que
seja com nós mesmas ou com os outros. tenha que vestir o casaco, encontrar as
Devemos usar o que achamos importante chaves, e sair na neblina de São Francisco
para chegarmos à escrita. Nenhum para comprá-la. Levantar para acender
assunto é muito trivial. O perigo é ser muito um incenso, colocar um disco, dar uma
universal e humanitária e invocar o eterno caminhada — qualquer coisa para adiar
ao custo de sacrificar o particular, o o escrever.
feminino e o momento histórico específico. Voltar depois de empanturrar-me.
O problema é focalizar, é se Escrever parágrafos em pedaços de
concentrar. O corpo se distrai, faz papel, formando um quebra cabeças no
sabotagem com centenas de chão, a confusão de minha escrivaninha,
subterfúgios, uma xícara de café, lápis para protelando a conclusão e tornando a
apontar. O recurso é ancorar o corpo em perfeição impossível.
um cigarro ou algum outro ritual. E quem
26 de maio de 1980
tem tempo ou energia para escrever,
Queridas mulheres de cor, me sinto
depois de cuidar do marido ou amante,
pesada e cansada e há um barulho em
crianças, e muitas vezes do trabalho fora
minha cabeça — muitas cervejas ontem
de casa? Os problemas parecem
à noite. Mas preciso acabar esta carta.
insuperáveis, e são, mas deixam de ser
Meu suborno: me levar para comer pizza.
quando decidimos que, mesmo casadas
Então corto e colo e cubro o chão
ou com filhos ou trabalhando fora, iremos
com meus pedaços de papel. Minha vida
achar um tempo para escrever.
espalhada em pedaços pelo chão, e eu,
Esqueça o quarto só para si —
contra o tempo, tentando colocar nisto
escreva na cozinha, tranque-se no
alguma ordem, preparando-me
banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da
mentalmente com café descafeinado,
previdência social, no trabalho ou durante

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tentando preencher os vazios. ato reside nossa sobrevivência, porque
Leslie, com quem compartilho a uma mulher que escreve tem poder. E uma
casa, chega, se ajoelha para ler os mulher com poder é temida.
fragmentos no chão, e diz, “Está bom, “O que significou uma mulher negra
Gloria.”. E penso: Não preciso voltar ao ser artista no tempo de nossas avós? Esta é
Texas, para os meus conterrâneos, uma pergunta cuja resposta pode ser
mesquitas, cactos, cascavéis, cucos. Minha suficientemente cruel para parar o
família, esta comunidade de escritoras. sangue”. Alice Walker.9
Como pude viver e sobreviver tanto tempo Nunca vi tanto poder para motivar e
sem isso? E me lembro do isolamento, revivo transformar os outros como aquele presente
a dor novamente. na escrita das mulheres de cor.
“Estimar a devastação é um ato Em São Francisco, que é onde vivo
perigoso”, escreve Cherríe Moraga 7 . agora, ninguém mexe mais com o público,
Interromper é ainda mais perigoso. com sua arte e verdade, do que Cherríe
É muito fácil culpar todos os homens Moraga (chicana), Genny Lim (asiático-
brancos e as feministas brancas ou a americana) e Luisah Teish (negra). Na
sociedade ou nossos pais. O que dizemos companhia de mulheres como estas, a
e o que fazemos volta sempre a nós, então solidão do escrever e a sensação de falta
vamos assumir nossa responsabilidade, de poder dissipam-se. Podemos caminhar
colocá-la em nossas mãos e carregá-la juntas falando do que escrevemos, lendo
com dignidade e força. Ninguém irá fazer uma para outra. Quando estou sozinha,
meu trabalho de merda, eu mesma limpo mesmo junto às outras, a escrita me possui
o que sujo. cada vez mais e me faz saltar para um
Faz total sentido para mim minha lugar sem tempo e espaço, não-lugar,
resistência ao ato de escrever, ao onde esqueço de mim e sinto ser o universo.
compromisso da escrita. Escrever é Isto é o poder.
confrontar nossos próprios demônios, olhá- Não é no papel que você cria, mas
los de frente e viver para falar sobre eles. O no seu interior, nas vísceras e nos tecidos
medo age como um ímã, ele atrai os vivos — chamo isto de escrita orgânica.
demônios para fora dos armários e para Um poema funciona para mim não
dentro da tinta de nossas canetas. quando diz o que eu quero que diga, nem
O tigre que carregamos nas costas quando evoca o que eu quero que
(a escrita) nunca nos deixa só. Por que você evoque. Ele funciona quando o assunto
não está montando em mim, escrevendo, com o qual iniciei se metamorfoseia
escrevendo? Ele pergunta constantemente, alquimicamente em outro, outro que foi des-
até sentirmos que somos vampiros coberto pelo poema. Ele funciona quando
sugando o sangue de uma nova me surpreende, quando me diz algo que
experiência; que estamos sugando o reprimi ou fingi não saber. O significado e o
sangue vital para alimentar a caneta. valor da minha escrita é medido pela
Escrever é o ato mais atrevido que eu já maneira como me coloco no texto e pelo
ousei e o mais perigoso. Nelie Wong chama nível de nudez revelada.
a escrita de “demônio de três olhos gritando
a verdade.” 8 Audre disse que precisamos falar.
Escrever é perigoso porque temos Falar alto, dizer coisas sem ordem—
medo do que a escrita revela: os medos, coisas que podem ser perigosas—e
as raivas, a força de uma mulher sob uma mandar que se fodam, pro inferno,
opressão tripla ou quádrupla. Porém neste

7. Ensaio de Chérrie Moraga, ver “La Güerra”.


9. WALKER, 1974, p. 60.
8. WONG, 1979.

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deixar sair e fazer todo mundo ouvir Muitos que têm palavras e língua, não têm
quer queiram ou não. ouvidos. Não podem ouvir e não saberão.
Kathy Kendall10 Não há necessidade de que as
palavras infestem nossas mentes. Elas
Eu digo, mulher mágica, se esvazie. germinam na boca aberta de uma
Choque você mesma com novas formas criança descalça no meio das massas
de perceber o mundo, choque seus leitores inquietas. Elas murcham nas torres de
da mesma maneira. Acabe com os ruídos marfim e nas salas de aula.
dentro da cabeça deles. Joguem fora a abstração e o
Sua pele deve ser sensível suficiente aprendizado acadêmico, as regras, o
para o beijo mais suave e dura o bastante mapa e o compasso. Sintam seu caminho
para protegê-la do desdém. Se for cuspir sem anteparos. Para alcançar mais
na cara do mundo, tenha certeza de estar pessoas, deve-se evocar as realidades
de costas para o vento. Escreva sobre o pessoais e sociais — não através da
que mais nos liga à vida, a sensação do retórica, mas com sangue, pus e suor.
corpo, a imagem vista, a expansão da Escrevam com seus olhos como
psique em tranqüilidade: momentos de pintoras, com seus ouvidos como músicas,
alta intensidade, seus movimentos, sons, com seus pés como dançarinas. Vocês são
pensamentos. Mesmo se estivermos as profetisas com penas e tochas. Escrevam
famintas, não somos pobres de com suas línguas de fogo. Não deixem que
experiências. a caneta lhes afugente de vocês mesmas.
Penso que muitas de nós Não deixem a tinta coagular em suas
fomos enganadas pelos meios de canetas. Não deixem o censor apagar as
comunicação de massa, pelo centelhas, nem mordaças abafar suas
condicionamento da sociedade, vozes. Ponham suas tripas no papel.
levadas a acreditar que nossas vidas Não estamos reconciliadas com o
devem ser vividas em grandes opressor que afia seu grito em nosso pesar.
explosões, em “apaixonar-se”, em Não estamos reconciliadas.
“perder o controle”, ou que os gênios Encontrem a musa dentro de vocês.
da mágica irão realizar nossos Desenterrem a voz que está soterrada em
desejos e ambições, todos os nossos vocês. Não a falsifiquem, não tentem
desejo infantis. Desejos, sonhos e vendê-la por alguns aplausos ou para
fantasias são partes importantes de terem seus nomes impressos.
nossas vidas criativas. São os degraus Com amor,
que uma escritora assimila no seu Gloria
ofício. São os espectros das fontes
para alcançar a verdade, o coração
das coisas, a imediatez e o impacto Referências bibliográficas
do conflito humano. ANZALDÚA, Gloria (1981). “Speaking in tongues:
a letter to Third World women writers”. In:
Nellie Wong11 MORAGA, Cherríe & ANZALDÚA, Gloria
(orgs.). This bridge called my back: writings
Muitos têm habilidade com as by radical women of color. New York:
palavras. Denominam-se visionários, mas Kitchen Table, p. 165-74.
não vêem. Muitos têm o dom da língua, LITTLEBEAR, Naomi (1977). The Dark of the Moon.
mas nada para dizer. Não os escutem. Portland: Olive Press.
MORAGA, Cherríe (1983). “It’s the Poverty”. In:
Loving in the War Years: Lo que nunca pasó
10. Carta de Kathy Kendell, 10 de Março 1980, sobre um por tus lábios. Boston: South End Press.
workshop para escritoras ministrado por Audre Lorde, WALKER, Alice (1974). “In Search of Our Mothers’
Adrienne Rich, e Meridel LeSeur. Gardens: The Creativity of Black Women in
11. WONG, 1979. the South”. MS (May).

ESTUDOS FEMINISTAS
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____ (ed.) (1979). “What White Publishers Won’t
Print”. In: I Love Myself When I am Laughing:
A Zora Neale Hurston Reader. New York: The
Feminist Press.
WONG, Nelie (1979). “Flows from the dark of
Monsters and Demons: Notes on Writing”.
Radical Woman Pamphlet. San francisco.
TRADUÇÃO
Édna de Marco
REVISÃO
Claudia de Lima Costa
Simone Pereira Schmidt

ANO 8
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