Você está na página 1de 5

A Susan Sontag de Benjamin Moser

Eu gostaria de conversar um pouco sobre a recente biografia de Susan Sontag que foi
escrita pelo escritor Benjamim Moser. Quero falar sobre um texto rico, desafiador e
revelador.

Alguns romances nascem de experiências amorosas, ficções científicas de grandes


dúvidas existenciais ou frustrações teóricas, por exemplo. E as biografias? Segundo se
sabe, nascem do desejo de alguém de contar a história de outra pessoa. Moser nos conta
a história de Susan Sontag, numa riqueza de detalhes que as vezes dificulta as vezes
prende o leitor, mas sempre desafia a alguma coisa: 1. desafia a tomar uma posição
diante da trajetória dela, 2. desafia a uma reflexão sobre seus temas e 3. desafia a quem
lê a repensar muitos elementos de nosso tempo, sobretudo, poder, política e cultura, e as
formas como eles aparecem diariamente.

Enfim, quem escreve responde perguntas pessoais nascidas de inquietações sobre o


mundo (pelo menos deveria ser assim) e, de certo modo, encontramos uma curiosa
proximidade dessa sugestão de Merleau-Ponty com o que Susan Rosenblatt, que
decidiu assinar e viver socialmente como Susan Sontag, representou enquanto viveu
(1933-2004) e representa através de seus livros que ficaram e desta biografia
desconcertante.

Me interessa aqui que esse estilo de vida, calcado no assumir-se como uma metáfora,
para Susan, sempre foi um modo de sobrevivência ao mesmo tempo que ela própria
questionava o poder do conceito de sugerir uma estreita relação entre performance e
ilusão. Ora, a performance está atrelada ao que Merleau-Ponty sugere no seu
pensamento: um constante aprendizado do mundo, dos outros que gera uma constante
criação de si mesmo. Trata-se de um encontro teórico notório que, aparentemente,
nunca se materializou. Em um de seus livros, Sob o signo de Saturno, publicado vinte
anos depois (1980) ela igualmente dispara (quase que como uma eco): “O eu é um texto
– precisa ser decifrado”, para defender logo a seguir que uma “relação consciente e
implacável com o eu, que nunca pode ser dada como certa”1.

1
Nas páginas pg. 121 e 124 do volume em inglês
Bem, coube a Benjamin Moser nos apresentar o conjunto dessas criações que marcaram
a vida de uma das escritoras mais presentes do agitado século de incertezas.

O volume de mais de quinhentas e noventa páginas (694 no total) representa uma


façanha notória de investigação. Moser, 46 anos, decidi investigar, historiar e relacionar
os fatos da vida pessoal, os temas de interesse, as contradições e a participação pública
de Susan num texto hercúleo, traduzido para nosso português brasileiro por José
Geraldo Couto, e lançado pela editora Companhia das Letras.

Embora o nome nos pareça latino, Moser é americano e outra biografia marca seu
trabalho: Why this World: a biography of Clarice Lispector, que chegou até nos sob o
título Clarice, uma biografia (publicada pela antiga Cosac-Naify). Não me parece que
sua biografia de Clarice Lispector seja muito badalada e talvez seja muito cedo para
refletir sobre os alcances e opiniões sobre este novo trabalho, sobre Susan Sontag, que
disputa com um texto não tão aceito escrito pelo filho dela, David Rieff, que se chama
Swimming in a sea of Death: a son's memoir.

Voltemos a Moser. O livro divide-se em partes, quatro partes, antecedidas por uma
introdução com título convidativo, Leilão das almas, e seguida de um epílogo, O corpo
e suas metáforas, onde vemos uma voz de autoria questionando seu próprio trabalho de
maneira segura, bem como supondo a permanência da questão de Sontag quanto os
limites da própria biografia quando pensa retrospectiva e conclusivamente sobre os
avisos sontagianos: “e [ela] alertou contra as mistificações de fotografias e retratos:
inclusive os dos biógrafos” e com um “ponto” encerra-se o trabalho. Já aviso que não
estou preocupado em apresentar parte a parte, mas sim umas anotações de coisas que
apareceram e foram marcantes para se compreender Susan Sontag de uma forma mais
completa.

Temos uma parte 1 que conta um pouco do percurso dos pais de Susan antes dela
mesma nascer e é interessantíssimo o apanhado do autor sobre sua mãe, Mildred
Jacobson, a influência dela na própria personalidade de Susan, sobre o relacionamento
da família dela com a China, onde seu pai, Jack Rosenblatt, mantinha um comércio de
artigos artesanais chineses. Ficamos conhecendo um pouco mais da infância da
biografada, lembrando-nos sempre de que era filha de judeus poloneses, e que com a
morte prematura de seu pai, se estabeleceram definitivamente nos Estados Unidos. Na
ocasião, vieram ela, a mãe e uma irmã de nome Judith. Além disso, são apresentadas as
conturbações deste relacionamento entre elas, especialmente entre Susan e sua mãe e
como uma vontade ulterior de liberdade fomentou o interesse literário de Susan, ou
como ela conhecida Sue Rosenblatt, por seus amigos de escola. Aparentemente, Sue era
um prodígio desde a adolescência, devorando livros e buscando refúgio do mundo nas
letras e histórias.

Ficamos conhecendo também a metodologia adotada por Moser que seguirá por todo o
texto: apresentar os dados amparando-os em falas de pessoas próximas (feitas a partir de
entrevistas do autor com os que se encontravam vivos à época da escrita do texto) ou
mesmo citações de livros paralelos que sua investigação apresentou.

Torna-se um pouco exaustivo o recurso do rodapé, mas, talvez, seja um dos jeitos mais
viáveis de não fazer o volume dobrar de tamanho com a inserção de tantas datações,
desde livros e pessoas, a trechos inteiros, os quais se encontram quase sempre
parcialmente.

É curioso que nesta parte ficamos conhecendo a sua estreia intelectual, embora isso
nunca tenha sido analisado como se deve no Brasil. Por aqui, o que mais se lê é o texto
Notas sobre o camp, que depois dessa biografia eu passei a ver como uma gota no
oceano de suas reflexões. Digo mais: se formos pensar o camp, devemos considerar o
vínculo de Sontag com Andy Warhol e toda uma conjuntura americana de muita
mudança. Os anos 1960, as vozes da liberdade, as lutas históricas pelos direitos civis, o
intenso processo de transformação do papel da cultura no espaço público, os
submundos, os grupos, o campo do queer, ou seja, uma complexa conjuntura em que
todos eram convocados a falar, e Sontag não foi exceção. Camp nasce da reflexão sobre
esse estado de espírito altamente crítico, e, embora o texto tenha aparecido em 1964,
sugere uma reflexão de Sontag de anos antes sobre “uma possibilidade de improvisar e
se libertar das convenções estabelecidas”, primeiro com relação a sexualidade e as
normativas estabelecidas, depois, com relação a um sem número de coisas que leitores
mais corajosos escolheram para testar a aplicabilidade do camp. Mas, justamente pelo
camp ser usado como uma síntese de Sontag, quero dar destaque outra obra de Sontag
que, no entanto, não tem sua assinatura.

Moser nos apresenta a história da polêmica do relacionamento entre Susan e Philip


Rieff, renomado sociólogo da Universidade de Chicago que publicou um livro nascido
de profundas reflexões de Susan: Freud, a mente do moralista. Não tenho notícias deste
livro ter chegado no Brasil. A biografia apresenta o processo de elaboração, através dos
cadernos pessoais de Susan, os quais guardam suas anotações sobre textos, pensamentos
e percursos teóricos usados na construção do texto, que, entretanto, nunca levou sua
assinatura. Aliás, a polêmica cresce: nesta mesma época Susan repensa consigo mesma
sua sexualidade, assume relacionamentos lésbicos e tem um filho, David Rieff (com 67
anos atualmente).

Por sua vez, sendo Rieff ele mesmo um moralista, inicia uma guerra, judicialmente,
contra a autoridade materna de Sontag, diante do que descobre sobre ela e seus
relacionamentos, e pelos direitos de guarda de David, e um acordo envolvendo o livro e
o direito de autoria do livro toma forma, para que Susan conseguisse manter-se com a
criança e não ser julgada (moralmente) pela prática da sua bissexualidade. David fica e
a história é entrelaçada para vermos nascer um retrato da mãe Susan, que pode gerar no
leitor algumas repulsas e raivas específicas, em paralelo com o perfil da intelectual
pública, da performance, respeitada e circulada que conhecemos desde os começos na
militância: um misto de uma mãe perdida com uma intelectual engajada.

É curioso notar esse e outros temas que Moser reconstrói: o seu temperamento com as
mulheres com quem se relacionou, o envolvimento psicológico de Susan na criação de
uma personalidade pública, suas brigas textuais... Ele recheia a história com
interessantes passagens de seus textos em jornais ou depoimentos de pessoas próximas
(amigas ou não) que desnudam a elaboração do ícone a sua vida pública agitada, como
se vê através de sua participação em temas como a Guerra do Vietnã, a Guerra da
Bósnia, a Ocupação do Iraque, eventos dos quais nasceram textos, discursos e uma
adaptação da peça Esperando Godot de Samuel Beckett, encenada desde Sarajevo (onde
ela ganhou uma homenagem, uma praça com seu nome). Ao mesmo tempo, vemos os
momentos em que pessoas muito próximas se sentiram desconfortáveis e frustrados com
sua posição. Edward Said, por exemplo, questionou uma de suas participações e
discursos em um prêmio literário em Jerusalém.

Na ocasião Said questionou Susan quanto a sua ida para a premiação e ela julgou muito
mais útil ir do que deixar de ir – depois de tudo, Said, segundo Moser, emitiu a opinião
de que o texto foi ruim e pouco efetivo. Temos uma versão dele em um dos livros em
português Ao mesmo tempo, com o título A consciência das palavras e fica o convite
para que julguem os leitores se foi eficaz ou não.

Vale destacar que Moser é respeitoso em não desqualificar as posições contrárias a


Susan, ao contrário, mapeia e as apresenta para o leitor mesmo julgar, mesmo que em
alguns momentos pareça que precisamos desse direcionamento. A história do ícone, da
sua franqueza e virtudes, é acompanhada de uma história das fraquezas e lutas, das
doenças dela e de uma geração.

A aids e sua presença pública são analisadas por Sontag, mas não só a aids: o próprio
câncer que a acometeu deu origem a uma reflexão que acompanha este livro e ainda
Diante da dor dos outros. Em ambas as situações, Sontag reflete sobre o significado da
doença, do tratamento o lugar social da ideia de doença e o grande tema de sua vida:
corpo e representação, eu e identidade, sonho e realidade, a interpretação e a própria
metáfora que qualifica a sua obra.

Por fim, concordamos com o biógrafo quanto ao uso da poética de Elias Canetti. O
escritor, Canetti escreve e Moser cita, “é original; ele sintetiza sua época; ele se opõe a
sua época”. Mas, preferimos encerrar com a própria Susan falando da literatura,
portanto da sua escrita: “Uma das tarefas da literatura é questionar e construir contra-
afirmações às crenças dominantes.” Como eu acho que ela estava, na verdade, falando
de si mesma de maneira inconsciente, meu convite é que muitas pessoas leiam este texto
e encontrem inspirações em nosso tempo tão carente de vozes e ações como as dela.

Você também pode gostar