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É precisamente este o regime que se encontra consagrado no art. 15.º do Código
Civil português. Dispõe este preceito:
“A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo
e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos.”
Portanto, a competência atribuída, por exemplo, à lei reguladora da sucessão mortis causa
abrange apenas as disposições dessa lei que, pelo seu conteúdo e função, tenham natureza
sucessória; o que não é o caso, por via de regra, das disposições reguladoras da
apropriação pelos Estados dos bens integrantes das heranças vagas sitos nos respetivos
territórios (como se infere, por exemplo, do disposto no art. 33.º do Regulamento (UE)
n.º 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012).
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4. A interpretação do conceito-quadro da regra de conflitos. O principal
problema que se coloca no primeiro momento da qualificação é o de saber se os conceitos-
quadro das regras de conflitos devem ser interpretados por referência ao Direito material
do foro, isto é, recorrendo aos conceitos homólogos desse Direito, ou com autonomia em
relação a ele; e neste caso até onde deve ir essa autonomia.
Ora, só esta segunda solução permite alcançar em algum grau a desejável
harmonia de julgados e assegurar a tutela da confiança nas situações plurilocalizadas: a
solução oposta implicaria muitas vezes excluir conteúdos normativos estrangeiros
desconhecidos da ordem jurídica do foro, com prejuízo para aqueles valores. Assim, por
exemplo, até recentemente, o divórcio pressupunha em Portugal a intervenção de uma
autoridade judiciária. Não se admitia o divórcio privado, nem que o casamento fosse
dissolvido por uma autoridade administrativa. Mas a Conservatória dos Registos Centrais
reconheceu efeitos a um divórcio de dois japoneses decretado pelo presidente de uma
Câmara Municipal japonesa, por aplicação da lei local. Do mesmo modo, deve entender-
se que à face do Código Civil vigente o conceito de filiação consagrado nos arts. 56.º e
57.º do Código não corresponde necessariamente ao que por tal se entende no Direito
material português, antes são reconduzíveis a essas regras de conflitos as normas
materiais estrangeiras sobre a filiação ilegítima, que o Direito português atualmente
desconhece.
Sendo as regras aplicáveis de fonte europeia, a autonomia dos conceitos nelas
utilizadas corresponde à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União
Europeia desde o acórdão proferido em 14 de outubro de 1976, no proc. C-29/76, LTU c.
Eurocontrol, em que o Tribunal declarou:
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“disposição por morte” inclui “um testamento, um testamento de mão comum ou um
pacto sucessório”. A admissibilidade e validade material das disposições por morte é
submetida pelo art. 24.º, n.º 1, do Regulamento à lei aplicável à sucessão do autor da
disposição, se este tivesse falecido no dia em que fez a disposição. Podem, assim, ser
atribuídos efeitos nos Estados-Membros do Regulamento a testamentos de mão comum
válidos face à lei reguladora da sucessão, ainda que tais testamentos sejam desconhecidos,
ou até proscritos, pelo respetivo Direito material interno (como sucede no Direito
português, que os proíbe no art. 2181.º do Código Civil).
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do foro. Não basta, pois, ao julgador ater-se à caracterização jurídica dessas situações
perante os ordenamentos jurídicos em que se inserem as normas materiais suscetíveis de
lhes serem aplicadas: toda a qualificação em Direito Internacional Privado importa uma
reconstrução, à luz das categorias que delimitam as regras de conflitos do foro, dos
institutos jurídicos nacionais e estrangeiros que compreendam no seu âmbito as situações
decidendas. A última palavra nesta matéria pertence, pois, à lex fori. A qualificação que
aqui se preconiza é, em suma, uma qualificação lege fori operada na base de uma
caracterização lege causae das situações da vida a regular e das normas que as disciplinam
nos ordenamentos com elas conexos.
BIBLIOGRAFIA
D. M. Moura Vicente