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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

GABRIELA SANTOS CAVALCANTE SANTANA

SOBRE CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA:


TRAMAS E MESTIÇAGENS CULTURAIS

Salvador
2009
GABRIELA SANTOS CAVALCANTE SANTANA

SOBRE CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA:


TRAMAS E MESTIÇAGENS CULTURAIS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Dança, da Escola de Dança da
Universidade Federal da Bahia, como requisito
para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Eloisa Leite Domenici

Salvador
2009
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UFBA

Santana, Gabriela Santos Cavalcante.


Sobre capoeira e dança cênica : tramas e mestiçagens culturais / Gabriela Santos Cavalcante
Santana. - 2009.
190 f. : il.

Inclui anexos.
Orientadora : Profª Drª Eloisa Leite Domenici.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2010.

1. Dança. 2. Capoeira. 3. Mestiçagem. I. Domenici, Eloisa Leite. II. Universidade Federal


da Bahia. Escola de Dança. III. Título.

CDD - 793.31
CDU - 793.31
TERMO DE APROVAÇÃO

GABRIELA SANTOS CAVALCANTE SANTANA

SOBRE CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA:


TRAMAS E MESTIÇAGENS CULTURAIS

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança,
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 19 de junho de 2009.

Banca Examinadora

____________________________________________________________
ELOISA LEITE DOMENICI – Orientadora
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC – São Paulo, professora do Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), do Programa de Pós
Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) e do Programa de Pós-Graduação em Dança da
UFBA.

____________________________________________________________
EUSÉBIO LÔBO DA SILVA
Professor Livre Docente do Curso de Graduação em Dança e do Programa de Pós-Graduação
em Artes da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

____________________________________________________________
ISABELLE CORDEIRO NOGUEIRA
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC – São Paulo, professora do Curso de
Graduação em Dança e do Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA.
DEDICATÓRIA
A todos que fazem da roda de capoeira, dança!
AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos pais, Déborah e Aroldo, e à minha irmã Janaína, pelo amor incondicional
e incentivo constante. Motivos da minha motivação.
À Professora Eloisa Domenici, pela cumplicidade, dedicação e por contribuir neste processo
de amadurecimento profissional e pessoal.
A Pedro, pessoa imprescindível para a realização desta dissertação, pelo carinho, energia,
encorajamento e, sobretudo, por mostrar que a convicção é tão importante quanto a dúvida.
A Cia Danças, ao Núcleo Coletivo 22, Alexandre Tripiciano e Carlinha, pela confiança e
interação verdadeira com esta pesquisa.
A Bruno, pela dedicação, amor, pelas palavras de conforto e por insistir junto comigo.
Aos camaradas do Centro Esportivo de Capoeira Angola – CECA, ao Mestre João Pequeno e
em especial ao Mestre Zoinho pela experiência e saberes da capoeiragem.
A Téo, Mara, Lúcia, Joubs, Cíntia e Maga, pela partilha de alegrias e dificuldades.
A Angela, pelas conversas, interrogações, pelos “não sei...”, pela parceria e atenção.
A Frede Abreu, pelo acolhimento, leitura cuidadosa e preciosos momentos de troca.
A Emilia Biancardi, por acreditar.
À família Lélis, em especial, Tia Edna, Tio Brasil, Vadinho e primos, porto seguro nesta
cidade.
A Aninha, vizinha, e a Dona Zélia, pelo apoio e aconchego dos lares.
A Kika e a Rapha, pela disponibilidade e ajuda sempre que solicitada.
Aos alunos da graduação em dança da UFBa, por fortalecerem os elos e os nexos entre dança,
pesquisa e ensino.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Dança e aos demais professores da
graduação, pela partilha não só de aulas, estratégias, planejamentos, mas sobretudo pela
expansão do conhecimento e paixão à dança.
Aos amigos da Pós-Graduação pelos palpites, sugestões e reflexões sobre o projeto, hoje
dissertação.
Aos Professores Eusébio Lôbo e Isabelle Cordeiro, pela generosidade e pela contribuição
valorosa em busca do aprimoramento deste estudo.
A Gil, pela amizade, carinho sempre... e ajuda técnica.
À força espiritual, que me fortalece dia após dia me encorajando a prosseguir.
A Angel Vianna e as instituições Jair Moura e Pierre Verger, por favorecerem a consulta e
autorização de fontes e materiais para este estudo.
A Capes pelo apoio financeiro, entre 2008 e 2009.
SANTANA, Gabriela Santos Cavalcante. Sobre Capoeira e Dança Cênica: Tramas e
Mestiçagens Culturais. 190f. 2009. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

RESUMO

Esta dissertação discute o hibridismo entre dança e capoeira, refletindo sobre a utilização da
capoeira no âmbito da dança cênica no Brasil. Foi analisado o trabalho das criadoras Claudia
de Souza (SP) e Renata Lima (SP), observando os procedimentos e resultados de seus
experimentos. O apoio teórico concentrou-se em teorias da Semiótica da Cultura e da
Mestiçagem. O método utilizado reuniu prerrogativas do estudo de caso e algumas
características da etnografia para a coleta de dados, tais como a observação direta e
observação participante que, respectivamente, se caracterizaram pela observação de ensaios,
aulas e apresentações, como também pela experimentação de aulas ministradas pelas duas
criadoras. Com o objetivo de enriquecer a análise, comentamos sobre o trabalho de alguns
grupos de dança que atuavam nas décadas de 1960 e 1970 em Salvador. A análise evidencia
modos particulares de realizar o cruzamento entre dança e capoeira, possibilitando indicar
alguns parâmetros para caracterizar o fenômeno de modo mais amplo. A discussão aponta
também aspectos e lógicas presentes tanto na capoeira quanto no pensamento contemporâneo
de dança, os quais favorecem tal aproximação. A pertinência do estudo está em articular um
diálogo pouco efetivado no âmbito acadêmico da dança, principalmente se considerarmos a
expansão do interesse de intérpretes e criadores em práticas corporais não acadêmicas. Com
isso, visamos contribuir para a discussão sobre a potencialidade da capoeira como matéria-
prima para o desenvolvimento de métodos e procedimentos de criação em dança, bem como
indicar algumas implicações políticas inerentes a esse cruzamento, além de contribuir para o
estudo dos hibridismos na dança.

Palavras-chave: Dança. Capoeira. Mestiçagem.


SANTANA, Gabriela Santos Cavalcante. About capoeira and dance theatrical: inter-
relations and cultural hybridism (Bahia, Brazil). 190p. 2009. Master Dissertation (Mestrado) -
Programa de Pós-Graduação em Dança Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

ABSTRACT

This dissertation discusses the hybridism between dance and capoeira, reflecting on its
utilization of capoeira in the scope of the dance scene in Brazil. We analyzed the works of
creators, Claudia de Souza (SP) and Renata Lima (SP), through observation of both
their procedures and experiment results. The Mètissage and Semiotics of Culture theories
were utilized as theoretical tools for the basis of this study. The applied methodology is based
on prerogatives of case studies and characteristics of ethnography, to collect information such
as direct and participant observation characterized through observation of rehearsals, classes,
performances, and class experiments administered by the two creators. To enrich this analysis,
we comment on works created by dance groups during the 60’s and 70’s in Salvador's artistic
scene . The analysis demonstrates specific procedures of making crosses between dance and
capoeira, enabling indications of parameters to characterize the phenomenon in a broader
way. The discussion also indicates aspects and logics equally present in both capoeira and
contemporary thought on dance, which favor such a dialogue. The pertinence of this study is
in articulating a discussion rarely reflected on in the academic dance environment, especially
if we consider the growing interest of non- academic body techniques among dancers and
creators. We aim to contribute to the discussion on capoeira as a potential material for the
development of methods and procedures for creative dance processes, as well as indicate
political implications inherent to this crossing , which contribute to the study of dance
hybridisms.

Keywords: Dance. Capoeira. Hybridism.


LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Gravura parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981..................................................... 18


Figura 2: Gravura Carybé. Mural para o Salão de Embarque do Aeroporto Internacional 2 de
Julho. ........................................................................................................................................ 28
Figura 3: Foto de Pierre Verger, Salvador (Bahia, Brasil) 1946-1978. .................................... 31
Figura 4: Gravura de Carybé .................................................................................................... 40
Figura 5: Aspectos comuns ao pensamento contemporâneo de dança e à capoeira. ................ 43
Figura 6: Gravura parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981..................................................... 49
Figura 7: Espetáculo “Q”(2007) ............................................................................................... 57
Figura 8: Espetáculo “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008) ........................... 57
Figura 9: Espetáculo “Q”, da Cia Danças ................................................................................ 58
Figura 10: Espetáculo “Q” (2008) ............................................................................................ 60
Figura 11: Espetáculo “7 e a mesa” .......................................................................................... 62
Figura 12: Espetáculo “Pares” (1999) ...................................................................................... 66
Figura 13: Espetáculo “Pares” (1999) ...................................................................................... 66
Figura 14: Espetáculo “Jogo de Dentro” (1998) ...................................................................... 69
Figura 15: Montagem Coreográfica “Mandinga de Rua” (2004) ............................................. 83
Figura 16: Encontro do Núcleo Coletivo 22 - ‘Dança das articulações’ (sic) .......................... 85
Figura 17: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................... 98
Figura 18: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................... 99
Figura 19: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................... 99
Figura 20: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................... 99
Figura 21: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................. 100
Figura 22: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22 ................................................................. 100
Figura 23: Execução simultânea de um “rabo de arraia” e de uma “negativa”. ..................... 103
Figura 24: Obra coreográfica “Baio” (2007) .......................................................................... 104
Figura 25: Gravura Parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981. ............................................... 106
Figura 26: Sugestão de leitura figurativa da mistura operada por Claudia de Souza. ............ 109
Figura 27: Sugestão de leitura figurativa da mistura operada por Renata Lima. ................... 111
Figura 28: Cartão Postal do Grupo Folclórico “Viva Bahia”. Salvador, Bahia. .................... 121
Figura 29: Espetáculo “Capoeiras da Bahia”, do Grupo “Viva Bahia”.................................. 121
Figura 30: Mestre Dinho ........................................................................................................ 122
Figura 31: Ensaio da obra coreográfica “Ritmos” (2008), da Cia Dance Brazil. .................. 123
Figura 32: Mestre Pastinha ensinando capoeira para duas integrantes do grupo Viva Bahia:
................................................................................................................................................ 125
Figura 33: Gravura Total de Carybé. Capoeira Vinil. 1981. .................................................. 131
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA ...................................................................................... 18


1.1 UMA QUESTÃO DE MESTIÇAGEM CULTURAL .................................................. 19
1.1.1 Para além da “cópia” ........................................................................................... 24
1.1.2 Capoeira como Texto da Cultura......................................................................... 25
1.1.3 Códigos Barrocos e Textos da Cultura............................................................... 30
1.2 CAPOEIRAS: UM PLURAL NECESSÁRIO .............................................................. 34
1.3 ASPECTOS COMUNS E LÓGICAS COMPLEMENTARES ENTRE A CAPOEIRA
E O PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO DE DANÇA ................................................. 39
1.3.1 Subversão, ambiguidades e ambivalências ........................................................ 43
1.3.2 Individualidade e imprevisibilidade ................................................................... 46

2 DOIS MODOS DE PROCEDER ....................................................................................... 49


2.1 A ESCOLHA DAS CRIADORAS INVESTIGADAS E A METODOLOGIA DO
ESTUDO .............................................................................................................................. 50
2.2 CLAUDIA DE SOUZA ................................................................................................. 54
2.2.1 Traços e pensamentos .......................................................................................... 56
2.2.2 Como Claudia de Souza tece tramas entre técnica de Marta Graham e
Capoeira Regional ......................................................................................................... 63
2.2.3 Transições e características da mistura hoje ..................................................... 74
2.3 RENATA LIMA ............................................................................................................ 80
2.3.1 Traços e pensamentos .......................................................................................... 82
2.3.2 Como Renata Lima tece tramas entre Dança e Capoeira Angola ................... 86
2.3.3 A materialidade da mistura hoje ...................................................................... 103

3 INDO ALÉM DA PESQUISA DE CAMPO: A CAPOEIRA COMO MATÉRIA


PRIMA EM DANÇA ............................................................................................................ 106
3.1 ANALOGIAS E COMPARAÇÕES DA PESQUISA DE CAMPO ........................... 107
3.2 CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA: ISSO NÃO É COISA DE AGORA .................... 119
3.2.1 Apontamentos sobre a capoeira como recurso artístico-pedagógico ............ 125
3.2.2 A capoeira nos cursos de formação de dança .................................................. 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 131

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 137

APÊNDICES ......................................................................................................................... 143

ANEXOS ............................................................................................................................... 150


12

INTRODUÇÃO

Esta dissertação discute modos de apropriação da Capoeira pela Dança Cênica no Brasil,
analisando o trabalho de duas criadoras em atividade no momento. A análise utiliza-se de
parâmetros lançados pela Teoria da Mestiçagem e tece ainda reflexões sobre alguns tipos de
mistura realizados por grupos que se utilizavam da dança e da capoeira na Bahia nas décadas
de 1960 e 1970, na cidade de Salvador, Bahia.

Porém, antes de detalhar os objetivos deste estudo, entendemos ser importante compartilhar
com o leitor as inquietações que motivaram esta pesquisa. Tais inquietações brotaram ainda
enquanto cursava a graduação em dança, ao iniciar meu aprendizado na capoeira. Perceber
que tal prática me levava a experimentar corporalmente novas sensações que contribuiam para
diluir automatismos do treinamento de dança suscitou a curiosidade pela possibilidade desse
treinamento tornar os dançarinos mais predispostos e sensíveis a diferentes formas de se
movimentar e criar.

Este processo de descobertas serviu como motivação para escrever a monografia de conclusão
do curso intitulada Um recorte brasileiro na dança contemporânea: Capoeira Angola e o
processo de criação, em 2006. Na referida monografia, com base em dois anos de vivência no
grupo Angoleiros do Mar, de Mestre Marcelo, propus-me a refletir sobre elementos que
construíam o jogo e a roda como uma espécie de ‘campo’ indutor para o desenvolvimento da
criatividade, sendo estes: música, regras, improvisação, caráter ritualístico e ancestralidade.
Com isso, visava discutir a capoeira como prática produtiva para processos de criação em
Dança Contemporânea, retroalimentando também minha pesquisa artística.

Atualmente, como pesquisadora, professora, dançarina e aluna do Centro Esportivo de


Capoeira Angola (CECA), noto que minha curiosidade sobre a capoeira dobrou, e uma das
questões que agora me salta aos olhos é: como uma manifestação cultural historicamente
transmitida há gerações como símbolo expressivo de resistência pôde simultaneamente
interpenetrar, além de outras manifestações populares, o vasto campo das artes?

As relações entre a capoeira e outras danças populares, como o samba, o maculêlê e o frevo,
expressam um tipo de hibridação inerente às dinâmicas dessas práticas, apresentando trocas
13

em “via de mão dupla”. O jeito de dançar frevo, por exemplo, segundo alguns autores1, têm
parentesco com a ginga solta, cruzada e ludibriante característica da Capoeira Angola. Outro
exemplo de hibridismo é verificado na presença de elementos comuns tanto ao universo do
samba de roda como ao da capoeira, tais como corridos2 e instrumentos musicais3.

Tais evidências remetem à convivência habitual entre essas práticas até os dias de hoje. Por
conseguinte, essa antiga convivência é constantemente relatada em estudos e pesquisas
etnográficas interessadas nas rodas de capoeira e samba, que ocorreriam lado a lado, ou uma
em sequência da outra, em festas de largo de Salvador4.

Neste contexto, a capoeira como representação simbólica de grande expressão torna-se parte
da paisagem cultural, entre festas, comemorações e protestos. E, em diálogo constante com
outras linguagens, alimenta o imaginário popular, tornando-se consequentemente alvo de
artistas interessados nas culturas locais. Frede Abreu (2003) comenta a visita frequente de
artistas estrangeiros e brasileiros já nas antigas rodas de capoeira que aconteciam no bairro
popular da Liberdade, em Salvador, na década de 1950. Este quadro tem nutrido mais
recentemente outros estudos acadêmicos, os quais propõem olhar a capoeira sob novas
narrativas.

1
Como importante referência sobre o assunto, temos: OLIVEIRA, Valdemar. Frevo, capoeira e passo. 2. ed.
Recife: Cia Ed de Pernambuco, 1985.
2
Por corrido entende-se como uma das modalidades de canto presente na capoeira e no samba de roda, que se
estrutura em forma de pergunta e resposta. Em cada um desses eventos, o corrido ganha sentido particular. Como
exemplo de corrido, apresentamos um trecho/refrão:
O marinheiro, marinheiro,
Marinheiro só,
Quem te ensinou a nadar?
Marinheiro só,
Ou foi o tombo do navio?
Ou foi o balanço do mar...
(Domínio Público)
3
Os instrumentos que fazem parte da bateria (conjunto de intrumentos) da capoeira são: berimbaus (Gunga,
Médio e Viola), pandeiro, agogô, reco-reco e atabaque. Pandeiro, agogô e reco-reco são comuns no samba-de-
roda, que ocorrem desvinculados da capoeira, enquanto que os demais insrumentos, berimbau e djambe, também
participam atualmente, quando ocorre o samba no final da roda de capoeira.
4
A produção literária sobre a capoeira é constituida preponderantemente por estudos que abordam aspectos
históricos e sociológicos dessa prática. Nessa perspectiva, deparamos com número relevante de estudos
etnográficos realizados tanto por artistas como por estudiosos que se ocupavam de um entendimento mais
pormenorizados sobre as relações sociais que interpenetram tal universo. Entre outros, citamos estudos
reconhecidos pelo seu valor etnográfico: CATUNDA, Eunice. Capoeira no terreiro de Mestre Waldemar,
Fundamentos. Revista de Cultura Moderna, São Paulo, n. 30, p. 16-18, 1952; CARYBÉ. Jogo da Capoeira:
desenhos de Carybé. Coleção recôncavo. n. 3. Salvador: Tipografia Beneditina Ltda.,1951; REGO, Waldeloir.
Capoeira Angola: Ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
14

Castro Junior (2008)5 destaca que as representações simbólicas produzidas pelo corpo do
“capoeira”6 produzem campos de visibilidade para a difusão desta prática. Segundo o autor,
são exemplos as primeiras escolas de capoeira, o cinema, as artes plásticas e o constante
entrelaçamento entre essa prática e as festas populares. Dessa forma, seu estudo chama a
atenção para a apropriação assumida de elementos da capoeira na criação de obras artísticas.

Fora do ambiente acadêmico podemos verificar a expressividade artística da capoeira através


de notáveis trabalhos na fotografia e na pintura, a exemplo das obras dos franceses Pierre
Verger e Jean Baptiste Debret, do alemão Johann Moritz Rugendas e do argentino Hector
Julio Páride Barnabó, famoso pelo apelido de “Capeta Carybé.”

Também na música encontramos criações que apresentam desde a reprodução de toques


próprios da capoeira, sem modificações, até melodias inspiradas no seu universo sonoro, além
da invenção de novas musicalidades que se utilizam de seus elementos. Sobre esse assunto,
Waldeloir Rego (1968)7 comenta as obras de sambistas e músicos, como Vinícius de Moraes,
Baden Powell e Oscar da Penha (o famoso Batatinha), este último criador de músicas como
“Samba-Capoeira” e “Bossa-Capoeira”8.

Valorizada então, em diversas esferas, a capoeira encontra-se difusa no imaginário popular,


sendo constantemente aludida como símbolo marcante e representativo da cultura brasileira.
A esse respeito, Magalhães (2008) analisa representações dessa prática na literatura brasileira,
apresentando a forma caricata com que os capoeiras têm sido frequentemente representados,

5
Luís Vitor Castro Junior é Professor Doutor em História pela PUC-SP e autor da tese: Campos de visibilidade
da capoeira baiana: As festas, as escolas de capoeira, o cinema e a arte (1955- 1985). Seu estudo sobre a
capoeira reúne diferentes enfoques, dentre eles aspectos educativos e artísticos.
6
Capoeira, além de designar a prática cultural discutida nesse estudo, é também um modo de identificar aqueles
que conhecem e vivem esta prática. Segundo SILVA, Eusébio (2008a), o termo era utilizado com maior
constância nos registros policiais até o início do século XX para designar capoeiras identificados como
“valentões e desordeiros”, passando só mais recentemente a ser substituído pelo termo capoeirista.
Etimologicamente, conferimos variadas hipóteses para explicar a palavra, por isso optamos por apresentar
sucintamente quatro acepções levantadas e examinadas por REGO (1968): 1) Caa- puêra s.f. - mato que foi,
atualmente mato miúdo que nasceu no lugar do mato virgem que se derrubou; 2) coó-puêra - roça abandonada;
3) capoeira- (capão + eira) cestos para guardar capões; 4) (Odontophorus capueira, Spix) – ave chamada
capoeira, que além de ser encontrada no Paraguai se acha espalhada em diferentes regiões do Brasil. Apesar das
diferentes acepções, consideramos que estas estão sobretudo relacionadas a elementos e simbologias que de
alguma forma se relacionavam aos contextos nos quais o capoeirista antigamente encontrava-se inserido.
7
Waldeloir Rego foi importante etnossociólogo e autor do mais completo estudo etnográfico sobre a capoeira.
Ver mais informações em: REGO, W. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
8
Destacamos tais músicas por estas ilustrarem a tensão constante de hibridismos entre culturas estrangeiras e
locais, pois, segundo REGO (1968), tais músicas emergem como resposta a investidas estrangeiras, que na época
tomavam forma de cruzamentos como samba-boogie (boogie woogie e samba), samba-bolero e samba-canção.
15

ora como desordeiros e vadios, ora como personagens heróicos e guerreiros, dotados de
grande esperteza, valentia e perspicácia9.

Assim, a caracterização plural da capoeira como jogo, luta, dança, música e poesia penetra em
várias linguagens artísticas, gerando constantemente renovações produtivas nas linguagens
em contato. Contudo, apesar dos importantes trabalhos acadêmicos produzidos sobre o
diálogo entre Capoeira e Dança Cênica, percebe-se ainda uma restrita bibliografia sobre o
assunto, tendo em vista que na prática isso já se verificava há muito tempo.

Eusébio Lôbo da Silva10 (2008a) aponta o uso da capoeira na dança ainda em 1920, em
coreografias concebidas pela sua mestra, a coreógrafa americana Katherine Duhan,
considerada a mãe da chamada “dança negra”. Rego (1968) e Emilia Biancardi11 (2006)
comentam sobre coreografias concebidas nas décadas de 1960 e 1970 por grupos de dança
que recriavam a capoeira na cidade de Salvador, Bahia.

Todos esses dados indicam a relevância do assunto, mas apontam lacunas quanto aos modos
como capoeira e dança eram misturadas nessas criações.

Desse modo, procurando expandir reflexões sobre a capoeira, já desenvolvidas por


profissionais renomados da dança, como Eusébio Lôbo da Silva (2008), Klauss Vianna12
(2005) e Lia Robatto13 (1994), retomamos o assunto propondo tratá-lo sob a ótica da
Mestiçagem. Essa perspectiva reúne autores que discutem a natureza de hibridismos e

9
Pedro Abib (2005) explicita que tais representações são fruto de uma memória coletiva que alimenta o
imaginário popular daqueles que vivenciam a capoeira e que utilizavam-se da malandragem, da valentia e da
desordem como meio de subverter valores dominantes de opressão. Ver mais referências sobre esse aspecto em:
ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda. Salvador,
EDUFBA, 2005.
10
Eusébio Lôbo da Silva, discípulo de Mestre Bimba (Mestre Pavão), é Professor Livre-Docente da
Universidade Estadual de Campinas. Pelo importante estudo que desenvolve sobre capoeira e dança (teórico e
prático), é hoje referência para novos estudos sobre o tema. Devido à semelhança do seu sobrenome com o
sobrenome de outras duas autoras, utilizo as duas letras iniciais do seu nome, identificando-o como SILVA,
Eusébio para diferenciá-lo.
11
Emília Biancardi é reconhecida etnomusicóloga e folclorista. Apresenta importante contribuição acadêmica e
artística, não somente no que diz respeito ao trânsito entre Capoeira e Dança Cênica.
12
Klauss Vianna apresenta, em planos de aulas, entrevistas, textos e livros públicados, indicações sobre a
capoeira como técnica expressiva para o desenvolvimento do dançarino. Mais informações nas referências
indicadas a seguir: VIANA, Klauss. Acervo digital. Disponível em: <www.klaussvianna.art.br> Acesso em: 7
maio 2008; e VIANNA, Klauss; CARVALHO, Marco Antônio. A dança. 3. ed. rev. São Paulo: Summus, 2005.

13
Lia Robatto, renomada coreógrafa baiana e pesquisadora da dança, aponta em diversos trabalhos práticos e
teóricos a capoeira para o desenvolvimento técnico e expressivo do dançarino.
16

mestiçagens na cultura e nas artes, por meio de parâmetros que rompem com o pensamento
dualista e hegemônico. Tal abordagem contribui para esclarecer estratégias utilizadas para a
sobrevivência e renovação de práticas e culturas estigmatizadas como práticas marginais.

Nesta dissertação analisamos o trabalho de duas criadoras, intérpretes e criadoras paulistas,


que se apropriam de elementos da capoeira para suas pesquisas artísticas. São elas: Renata
Lima14 e Claudia de Souza.

Dessa forma, pretendemos avançar em inquietações inicialmente pessoais, geradas


intuitivamente pelo impulso artístico, e aqui transformadas em objeto de interesse geral no
campo da dança.

O objetivo geral deste estudo é refletir sobre algumas lógicas, princípios e modos de operar o
encontro entre dança e capoeira. Assim, visamos problematizar não só questões operacionais
dessas imbricações, como também outras implicações resultantes das tentativas de se
construir tais hibridismos.

Como objetivos específicos têm-se: analisar os modos como as criadoras analisadas operam o
encontro entre Dança Cênica e Capoeira, apontando as regularidades e diferenças; e
enriquecer a presente análise, discutindo alguns tipos de mistura realizados por grupos que se
utilizavam da dança e da capoeira na Bahia nas décadas de 1960 e 1970.

A dissertação está organizada em quatro partes. No primeiro capítulo, discutimos os


pressupostos teórico-metodológicos utilizados para nossa formulação epistêmica, e também
alguns aspectos e lógicas de organização da capoeira e do pensamento contemporâneo de
dança que podem estreitar o diálogo entre as referidas linguagens. No segundo capítulo,
analisamos em detalhes os trabalhos desenvolvidos por Claudia de Souza e Renata Lima, duas
criadoras paulistas interessadas na mistura entre dança e capoeira e que estão em atividade.
No terceiro capítulo, além de discutirmos as particularidades de cada criadora ao realizar essa
mistura, apresentamos breves reflexões sobre alguns modos de hibridizar capoeira e dança nas
décadas de 60 e 70, bem como os avanços da investigação da capoeira como recurso
pedagógico em cursos formais ou não de dança. É importante ressaltar que os dados que

14
Nome artístico de Renata de Lima Silva.
17

trazemos das décadas de 60 e 70 vêm apenas com o intuito de ilustrar determinadas


tendências que se tornarão claras no decorrer da dissertação.

Por fim, na última parte, apresentamos nossas considerações finais, lançando questões sobre a
relevância da capoeira para o ensino e criação em dança, bem como algumas implicações
políticas que permeiam esses encontros.
18

1 CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA

Figura 1: Gravura parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981

A capoeira possui vários elementos expressivos da linguagem cênica, como os


códigos musicais, os códigos gestuais, a improvisação criativa dos golpes, a
disciplina e o preparo técnico, a ritualização da ação e, principalmente, a beleza dos
movimentos despertando, na maioria de seus praticantes, o talento e a prontidão para
a dança. (ROBATTO, 2002)
19

1.1 UMA QUESTÃO DE MESTIÇAGEM CULTURAL

Complexidade, imprevisto e aleatório parecem, pois, inerentes às misturas e às


mestiçagens. Partiremos da hipótese de que possuem, como vários outros fenômenos
sociais ou naturais, uma dimensão caótica. Por isso é que nossas ferramentas
intelectuais, herdadas da ciência aristotélica e elaboradas no século XIX, não nos
preparam a enfrentá-los. (GRUZINSKI, 2001, p.61).

Para falar do encontro entre Capoeira e Dança Cênica designamos inicialmente o que
entendemos por “Dança Cênica”. Neste estudo, tal termo é utilizado para se referir à dança
que se realiza com fins de espetáculo, e que para isso é sistematizada, estruturada e
investigada em espaços especializados de formação, como em grupos de dança, academias,
ateliês, em cursos superiores ou não. Enquanto configuração, a Dança Cênica pode apresentar
diferentes modos de organização, que vão desde obras apresentadas em espaços tradicionais,
como estúdios e palcos, até outras que exploram ambientes diversos, como a rua e demais
espaços públicos.

Esclarecida tal questão, alertamos que no cruzamento da capoeira com a dança estão em jogo
não somente traços estéticos diferenciados, mas, principalmente, lógicas organizativas e
operatórias próprias, bem como modos particulares de pensar corpo, cultura, dança e
movimento.

A Capoeira, apesar de ter na sua gênese preponderante contribuição das culturas africanas,
desenvolveu-se historicamente em meio à pluralidade cultural característica do Brasil,
alimentando-se de cruzamentos culturais variados. Portanto, trata-se de uma criação brasileira
embebida por códigos culturais locais sempre em atualização, como veremos detalhadamente
na próxima seção.

Já a Dança Cênica é uma arte de tradição acadêmica fortemente orientada por modelos
formulados no eixo Europa – Estados Unidos, haja vista a importação de técnicas e estéticas
que caracterizam predominantemente esta linguagem nas escolas de dança no Brasil. Tal
condição contribui para que técnicas como o balé clássico e a dança moderna sejam, até hoje,
comumente assinaladas como prioritárias na formação de dançarinos.
Por este prisma, a mistura entre Capoeira e Dança Cênica é uma questão, antes de tudo, de
encontro intercultural, que por sua vez caracteriza-se como um objeto de estudo da teoria da
Mestiçagem.
20

Nesse sentido, o diálogo com autores das teorias da Mestiçagem e do Hibridismo Cultural15
subsidia nossa discussão, visto que seus estudos transpassam recortes históricos e criam
parâmetros para pensar processos de mistura de ontem e de hoje. Os autores aqui evocados, ao
invés de oferecerem categorias classificatórias, problematizam questões epistêmicas
cristalizadas que costumam dificultar a compreensão dos aspectos que permeiam o híbrido e o
mestiço.

Tal instrumental teórico nos auxilia a reconhecer a mestiçagem, quer ocorra em processos
civilizatórios, quer ocorra nas artes, por uma lógica processual que conduz e permeia tipos
diferentes de misturas, sejam intencionais ou não, o que explica a afirmação de Gruzinski
(2001) de que tal fenômeno não autoriza respostas definitivas.

O historiador francês Serge Gruzinski, em seu livro intitulado O pensamento mestiço (2001),
aprofunda questões fundamentais no tocante à epistemologia utilizada para se tratar as
misturas. Ao investigar o processo de colonização do México no século XVI, o autor
mergulha em questões que eram ocultadas em análises precedentes, e que reduziam a
complexidade inerente a este processo, haja vista o uso de ferramentas teórico-metodológicas
totalitárias e dualistas, que postulavam a questão como um processo simples de “aculturação”.

O autor lembra que o hibridismo não é um fenômeno atual, nascido no processo de


globalização econômica, como postulam alguns autores16. Por essas razões os processos de
mistura são compreendidos como inerentes e ininterruptos na formação das diferentes
culturas, e não como fenômeno exclusivo das sociedades pós-coloniais e pós-modernas. Nesse
raciocínio, o mesmo autor alerta-nos que as premissas da globalização, atualmente
desenfreada por um sistema socioeconômico orientado pela lógica mercadológica nas
Américas, já se faziam presentes no século Ibérico.
Mesmo reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as misturas datam das
origens da história do homem, não podemos reduzir o fenômeno à formulação de
uma nova ideologia nascida da globalização. O fenômeno é a um só tempo banal e
complexo. Banal porque o encontramos em escalas diversas ao longo de toda a
história da humanidade e porque, hoje, ele é onipresente. Complexo, porque parece

15
Ambos os termos, mestiçagem e hibridização, são empregados nesse estudo como sinônimos, haja vista que os
autores aqui evocados, GRUZINSKI (2001) e BURKE (2006), apresentam sobre os referidos termos o mesmo
entendimento, sendo apenas diferenciadas por quem articula o discurso.
16
GRUZINSKI (2001) problematiza o termo hibridismo por ser este frequentemente aludido a uma retórica mais
elaborada que deseja ser pós-moderna e pós-colonial procurando, assim, se emancipar de uma modernidade
condenada por ser ocidental e unidimensional.
21

impalpável quando pretendemos ir além dos efeitos de moda e da retórica que o


cercam. (GRUZINSKI, 2001, p. 41-42)

Gruzinski (2001) ainda destaca uma série de elementos, conceitos e proposições que até hoje
nublam a forma de enxergar o entrecruzamento de práticas culturais. Por isso, propõe, entre
outras questões, revisitar certas terminologias, a exemplo do redimensionamento do termo
‘mestiçagem’, que por muito tempo serviu para se reportar a misturas biológicas e a
discussões sobre questões étnicas. Como demonstrado a seguir, o fenômeno da mestiçagem
possibilita a interpenetração de hábitos e costumes de diversas culturas.
Ainda relativamente pouco explorada e, portanto, pouco familiar aos nossos
espíritos, a mistura dos seres humanos e dos imaginários é chamada de mestiçagem,
sem que se saiba exatamente o que o termo engloba, e sem que nos interroguemos
sobre as dinâmicas que ele designa. Misturar, mesclar, amalgamar, cruzar,
interpenetrar, superpor, justapor, interpor, imbricar, colar, fundir etc., são muitas as
palavras que se aplicam à mestiçagem e afogam sob uma profusão de vocábulos a
imprecisão das descrições e a indefinição do pensamento (GRUZINSKI, 2001, p.
42).

Como decorrência dessa questão, o autor mostra-nos a importância de rever, além deste
conceito, outros pautados no intelectualismo moderno e ocidental, quase sempre dualistas e
responsáveis pelo empobrecimento e simplificação de processos complexos. Assim, vemos
que o legado desta racionalidade dualista escamoteia a ambiguidade presente no mundo, de
modo a contribuir para classificações superficiais e apressadas que muitas vezes associam
práticas culturais locais a termos como ‘autêntico’, ‘primitivo’ ou ‘arcaico’, em contraponto
às “últimas tendências pós-modernas”, conforme ressalta Amálio Pinheiro (2007a, p. 29):
Como seqüela do pensamento por oposição, porém mais academicamente rebuscado
eu este, acentua-se a tendência a designar processos extremamente complexos de
modo geral e abstrato: pós-modernidade, globalização e ultimamente... o
contemporâneo. Cultura, arte, dança “contemporânea”. O que faz nascer de imediato
o pólo entrincheirado dos “não-contemporâneos” que, por exemplo, dançam afro ou
jogam capoeira (práticas mestiças inexistentes na África, assim como a moqueca e a
umbanda).

O obstáculo metodológico detectado acima impede de pensar a cultura popular como fonte
para novos métodos e procedimentos, sendo mais cômodo aceitar o dualismo já estabilizado.

Transpondo esse argumento para o âmbito da dança, entende-se que a utilização de categorias
dualistas como as supra referidas contribui para a disparidade entre o estímulo dado aos
estudos de técnicas de danças formuladas no eixo eurocêntrico em relação às danças e às
práticas locais.
22

Esta realidade espelha a dificuldade em lidar com o mestiço, mostrando-nos ser necessário
romper certos paradigmas que, segundo Gruzinski (2001), ao invés de se extinguirem, andam
lado a lado disputando espaços. Um belo exemplo é a explicação do autor sobre a confluência
de temporalidades distintas na contemporaneidade.

O entendimento sobre linearidade e sucessão entra em choque com um tempo digressivo,


aleatório e imprevisível característico das mestiçagens. Isso porque a ideia de um ponto de
início e um ponto de término poderia, em tese, auxiliar na classificação do que é “puro” ou do
que é “misturado”17. Este pensamento oferece uma falsa noção de que a mistura ocorre
gradativamente, de modo a apresentar etapas claras, gradações coerentes, e que em
determinado estágio deverão se estabilizar.

A seguir, de acordo com o autor, são apresentados aspectos que dificultam inclusive de
precisar tais processos.
A realidade já não corresponde a essa visão das coisas. Em vez de enfrentar as
perturbações ocasionais baseando-se num fundo de ordem sempre pronto a se impor,
a maioria dos sistemas manifesta comportamentos flutuantes entre diversos estados
de equilíbrio, sem que exista necessariamente um mecanismo de retorno à
normalidade. Ao contrário, a longo prazo a reprodução de estados aparentemente
semelhantes ou vizinhos acaba criando situações novas. Quanto mais as condições
são perturbadas, mais ocorrem oscilações entre estados distintos, provocando a
dispersão dos elementos do sistema, que ficam oscilando em busca de novas
configurações. Os movimentos do sistema flutuam entre a regularidade absoluta e a
irregularidade absoluta, mantendo uma margem importante de imprevisibilidade.
Nessa perspectiva, misturas e mestiçagem perdem o aspecto de uma desordem
passageira e tornam-se uma dinâmica fundamental. (GRUZINSKI, 2001, p.59).

Por essas razões, Gruzinski mostra-nos a importância de relativizar nossos modos de pensar,
de maneira a evitar o peso do etnocentrismo presente nas categorias e conceitos formulados
pelo pensamento clássico. Assim, evitamos a armadilha de, na procura de ressaltar o que está
à margem, inverter os papéis sem conseguir deslocar ou renovar posições que residem nos
interstícios dos mundos mesclados.

Transpondo novamente tal questão para a mestiçagem entre Capoeira e Dança Cênica, vale
elucidar que a ênfase em aspectos e elementos da capoeira que interessam à dança não
descarta ou ignora, neste estudo, o fato de que práticas estrangeiras possam ser igualmente

17
Gruzinski (2001) chama-nos a atenção do peso etnocêntrico que preenche tais palavras. A mistura, nesse caso,
sugere que existe algo puro e vice-versa. Este entendimento é controverso ao do autor que, ao longo de todo seu
estudo, comprova que a mestiçagem é inerente à dinâmica da cultura. Contudo, usaremos tais palavras com a
ressalva de que esta terminologia ainda é ineficaz para expressar tail ideia.
23

produtivas para o intérprete. Ao contrário, tenciona esclarecer a importância da coerência


entre os procedimentos empregados para discutir a mistura entre práticas mescladas, sejam
estas locais ou estrangeiras.

Com a rede teórica tecida ao longo desta dissertação revemos a forma como o fenômeno da
mistura é comumente tratado, reforçando a hipótese de Gruzinski, de que a criação de
“ciências nômades” preparadas para circular por diversos saberes é fundamental para
avançarmos na formulação das ideias aqui apresentadas. Explica-se daí, nosso interesse em
sublinhar a atenção dada pelo autor à mestiçagem nas artes18. O autor destaca as maneiras
como a arte pode questionar categorias de conhecimento impostas por paradigmas
disciplinares:
Será o caso de dizer que, nos campos que aqui nos interessam – o estudo e a
compreensão das misturas-, a criação estética concebida na forma de um
pensamento figurativo ou poético, tem tanto a nos ensinar quanto as ciências sociais,
freqüentemente atoladas nos caminhos batidos do discurso e da teoria?
(GRUZINSKI, 2001, p. 38).

Vale ressaltar que esse entendimento emerge em momento de transitoriedade de paradigmas


na cultura, nas ciências e nas artes em que gradativamente ampliam-se os espaços para o
trânsito entre saberes anteriormente dados como díspares. Na dança, podemos verificar esta
tendência pelo crescente interesse em pesquisas artísticas e corporais que se valem de técnicas
diversas para o processo de formação de dançarinos e que resultam em maior liberdade
estética e pluralidade de escolhas; mesmo sendo a utilização de manifestações populares
locais, como aponta Lia Robatto (2002), realizada ainda de forma tímida, em alusão a técnicas
de dança e procedimentos importados.
É notável o incremento de múltiplas técnicas corporais na formação do dançarino,
que além da base do balé clássico e dança moderna inclui vários tipos de trabalho de
correção de postura e fisioterapia com bases científicas, condicionamento físico,
musculação, e treinamento esportivo, técnicas milenares de lutas marciais, práticas
psicofísicas orientais e técnicas peculiares de danças étnicas regionais com a belly
dance, as danças sufistas, adotadas também aqui no Brasil, infelizmente explorando
ainda timidamente nossas manifestações regionais. (ROBATTO, 2002, s.p.).

18
Sobre isto, Gruzinski discute como é tratado o imaginário circundante de povos ameríndios sem exotismos em
processos artísticos, como, por exemplo, na obra do fotógrafo alemão Lothar Baumgarten e em paralelo com as
obras de Hélio Oiticica e Mário de Andrade. “É pelas manipulações de materiais inesperados, de efeitos de
composição ou de ângulos imprevistos, jogando com as armadilhas da percepção, que Baumgarten ou Oiticica,
ao rejeitarem o exotismo, questionam categorias do conhecimento e inventam os meios de libertar nosso olhar.
Partindo de outros processos, a obra de Mario de Andrade os precedera no mesmo caminho”. (GRUZINSKI,
2001, p.37).
24

Será contraditório argumentar isso, tendo afirmado anteriormente o interesse crescente de


iniciativas que envolvem a capoeira? Não, se houver esforço em distinguir pesquisas, de
relações estéticas momentâneas que, como sugere Gruzinski, alimentam a falsa ilusão de uma
pluralidade e diversidade imaginária, onde qualquer troca apresenta-se como mercadoria.

Nesse sentido, a predominância de modelos ocidentais como pilar do nosso fazer artístico,
quando não mascarada por essa “demanda”, mostra-se, como já exemplificado, sem grandes
discussões acerca do assunto, sugerindo uma naturalização deste raciocínio.

Segundo o autor, sociedades indígenas do México e, por analogia, as demais sociedades


colonizadas, realizavam a mímese de hábitos e práticas culturais como estratégia para garantir
aceitação social e até mesmo a inserção no mercado. O mesmo autor esclarece que, no século
XVI, a mímese significava sobrevivência e adaptação. E hoje? A repetição de modelos
importados nos diz o quê? Teríamos ainda a cópia como meio de adaptação, ou ainda, como
legado arraigado em nossos modos de produzir arte?

1.1.1 Para além da “cópia”

O historiador inglês Peter Burke, autor do livro Hibridismo Cultural (2006), aponta questões
referentes aos diferentes processos de hibridação. O autor, que tem grande interesse e fascínio
pela América-Latina, em especial pelo Brasil, problematiza os diferentes tipos de mistura que
se fazem presente nessas e em outras sociedades e discute as terminologias usualmente
empregadas para refletir sobre estas misturas.

Tais terminologias seriam, segundo ele, um recurso para melhor compreender o contexto e a
variedade de situações que permeiam tais misturas e que, de modo variado, podem apresentar
desde engastes até cruzamentos que suplantam fricções em prol da combinação de pontos que
se aproximam.
Como importante contribuição, o autor mostra que nem todo cruzamento segue a lógica do
hibridismo, pois nem toda mistura consegue de fato produzir outra lógica de maneira a
dinamizar as partes mescladas a partir das matérias que são postas em contato.
25

Esses apontamentos permitem desenvolver reflexões sobre a ideia por ele lançada, de que
existem sociedades mais abertas e outras mais fechadas a cruzamentos culturais. Para
investigar essa hipótese entendemos ser necessário um olhar mais cuidadoso sobre a
complexidade de nossa cultura local e os cruzamentos intencionais que buscam potencializar
as dinâmicas de hibridação inerentes à mesma. Devemos, ainda, ter cautela e entender as “[...]
formas híbridas como o resultado de encontros múltiplos, e não como o resultado de um único
encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os
antigos elementos” (BURKE, 2006, p. 31).

Tal proposição ganha espaço em nosso estudo à medida que os processos de mistura que
envolvem Capoeira e Dança Cênica são intencionais e, portanto, gerenciados por criadores
que elaboram formas e procedimentos múltiplos para apreender, incorporar e/ou transformar
códigos culturais presentes tanto numa como noutra linguagem. Como vimos anteriormente, a
imitação como meio de aproximar modelos culturais distintos também pode servir como
estratégia para a assimilação de certos códigos culturais em processos de dança, mesmo que o
resultado almejado não seja a reprodução de códigos estéticos. Por esse fato, não descartamos
terminologias como apropriação, acomodação e empréstimo cultural de nosso vocabulário.
Ao contrário, trazemos à reflexão estas terminologias para problematizar até que ponto e de
que forma estes modos operativos podem ser produtivos ou não para a recriação e geração de
novos códigos estéticos. Burke (2006) salienta:
Conceitos como “apropriação” e “acomodação” dão maior ênfase ao agente humano
e a criatividade, assim como a idéia cada vez mais popular de “tradução cultural”,
usada para descrever o mecanismo por meio do qual encontros culturais produzem
formas novas e híbridas (BURKE, 2006, p.55).

Por essas razões, e diante das implicações políticas que veremos mais adiante sobre alguns
processos artísticos, aprofundaremos a partir de agora sobre dinâmicas culturais que
caracterizam a Capoeira.

1.1.2 Capoeira como Texto da Cultura

Como já discutido, os cruzamentos entre práticas culturais e outras linguagens podem


transpassar a imitação, apresentando interpenetrações que resultam em misturas de diferentes
naturezas. Por isso, a importância de uma análise mais detalhada sobre dinâmicas e
26

mecanismos que são responsáveis pela manutenção e atualização dos códigos que constituem
as práticas coletivas.

Então, seguimos com algumas ideias e conceitos formulados pelo notável representante da
Escola Semiótica de Tartu, Iuri Lotman (2006), cujo trabalho foi dedicado à Semiótica da
Cultura. Tais ideias complementam a argumentação de Gruzinski (2001), que discute a
cultura como fenômeno dinâmico, retirando a ilusão de que esta, pelo desgate teórico e uso
corriqueiro, constrói-se por delimitações claras e contornos tangíveis, como por vezes a
palavra alude. Sobre cultura, postula:
[...] uma inteligência coletiva e uma memória coletiva, isto é, um mecanismo
supraindividual de conservação e transmissão de certos comunicados (textos) e de
elaboração de outros novos. Nesse sentido, o espaço comum, isto é, um espaço
dentro de limites, os quais, alguns textos comuns podem conservar-se e ser
atualizados. (LOTMAN, 1996, p.157, tradução nossa).

Para ir adiante, esclarecemos o que vem há ser “texto” segundo esse autor, ressaltando que tal
conceito passa a ser revisitado e ampliado no campo da Semiótica da Cultura.

Nas semióticas tradicionais, encontramos como objeto comum de investigação o estudo dos
signos constituintes de uma linguagem, enquanto que na Semiótica da Cultura, Lotman (1996)
incorpora a esta ideia a noção de que textos, antes sublinhados pela unidade indivisível de
suas funções em certo contexto cultural, constituem-se de polissemânticas. Ou seja, para
considerar um texto uma “mensagem”, este deve ser codificado ao menos duas vezes.

Nesse viés, texto passa a ser “um enunciado en un lenguage qualquiera”, como é o caso dos
textos não-verbais da cultura, tais como a dança, a arquitetura, entre outros, sendo todos, no
entanto, produzidos por uma memória coletiva comum, o que caracteriza estes textos como
‘textos da cultura’. Nesse estudo, texto refere-se, então, a quaisquer produções da cultura que
transmitam certos comunicados, tendo sido codificados por mais de uma vez e por mais de
uma voz.

Assim, o fato de nos referimos à Capoeira, uma prática cultural, ou a algumas técnicas
tradicionais da Dança Cênica, ambas enquanto linguagens, deve-se pelo entendimento de que
nesses fazeres há uma produção de sentido que se articula diferentemente da linguagem verbal
ou escrita, obtendo, para isso, nexos e lógicas organizativas peculiares.
27

Tal entendimento é coerente com nossas explicações sobre Capoeira e Dança Cênica também
como textos da cultura, que através de seus mecanismos de conservação e renovação são
representadas por mais de uma “voz”. Dança Moderna, Dança Contemporânea, Capoeira
Angola e Capoeira Regional são exemplos de séries de textos.

Essa variação de significados de um mesmo texto cultural diz respeito a mecanismos


intrínsecos da cultura. Sendo assim, Lotman (1996) explica que a cultura é internamente
variada e constituída por dois tipos de memória interdependentes: uma conservadora
(informativa) e outra criadora. Mas em que consiste tal distinção, e como isto se verifica?

Segundo o autor, a memória informativa consiste em um conjunto de estratégias variadas,


onde a transmissão de determinada mensagem privilegia a conservação da informação. Já a
memória criadora, de caráter sinuoso e pancrônico, permite, entre inúmeras possibilidades, o
pinçamento de elementos e aspectos constituintes desses textos, de modo que, através de
interpretações pessoais, por sua vez, imbricadas com codificações locais, receberão novos
tratamentos, criando ‘sotaques’ diferentes, ou ainda, transformando-se em outros textos.

Tais mecanismos são explicados pelo fenômeno da elipticidade dos textos circulantes nas
subcoletividades culturais e no surgimento de semânticas locais para determinado texto.
Fenômeno caracterizado, portanto, pela interação entre textos culturais e sistemas semióticos
diversos, que são denominados pela Semiótica da Cultura como semiosfera.

A semiosfera, apesar de se constituir por códigos materiais que, por exemplo, podem
caracterizar determinada região e/ou cidade, apresenta um caráter abstrato, pois, antes, é um
continuum semiótico completamente ocupado por formações semióticas de diversos tipos que
se comunicam em níveis variados de organização.

Assim, podemos afirmar que a manutenção e a recriação de certos textos ocorrem imersos em
um ambiente onde circulam outros diversos textos da cultura, podendo “se contaminar” ou
não com os mesmos.
Os sentidos na memória da cultura não ‘se conservam’, senão que crescem. Os
textos que formam a ‘memória comum’ de uma coletividade cultural, não só servem
de meio de deciframento dos textos que circulam no corte sincrônico contemporâneo
da cultura, senão também geram novos textos. (LOTMAN, 1996, p.160, tradução
nossa)
28

Amálio Pinheiro (2007), pesquisador dos processos de interação entre processos criativos,
culturais e midiáticos na América Latina, desenvolve proposições formuladas por Lotman,
considerando a complexidade de processos tradutórios que envolvem a cultura do cotidiano.
Partindo do entendimento de que um texto pode entrar em contato com distintos níveis de
uma mesma semiosfera, Pinheiro cunha o termo ‘séries culturais’ e aprofunda o estudo das
interações semióticas entre textos e diferentes faixas da cultura.

As interações entre essas séries culturais, como por exemplo, espaço urbano, arquitetônico,
culinária, práticas culturais, artísticas e religiosas, caracterizam misturas que podem ser
analisadas por categorias antropossociais interdependentes. São estas:
O migrante, o mestiço e o aberto. A primeira determina a mobilidade e a montagem
produtiva entre códigos e linguagens antes inimigas ou heterogêneas; a segunda trata
de engastar mosaicos de alta complexidade, oriundos das mais diversas e
divergentes culturas, indo além das identidades; a terceira exacerba as relações entre
natureza e cultura, entre o dentro e o fora, entre a casa e a rua. (PINHEIRO, 2007,
p.67).

Entendemos que essas categorias tornam-se extremamente relevantes para o nosso estudo,
pois mostra-nos que textos, tais como danças populares, brincadeiras e práticas como a
capoeira têm em comum o fato de seu desenvolvimento se dar no cruzamento direto com o
cotidiano, com a rua, com o ‘fora’.

Figura 2: Gravura Carybé. Mural para o Salão de Embarque do Aeroporto Internacional 2 de Julho.
Salvador, 1984.

O que encontramos em nosso contexto cultural, país, cidade e bairro, são diferentes culturas,
hábitos e costumes compartilhando um mesmo espaço ou evento, como observamos com mais
ênfase nas dinâmicas culturais características das regiões norte e nordeste, onde
29

corriqueiramente vemos eventos como festas, desfiles cívicos, cortejos e procissões. Esses
“espaços” tornam-se propícios para a manifestação de diferentes formas de expressão cultural.
Ou seja, simplesmente: culturas que no seu interior abrigam um número maior
crescente de culturas têm de aumentar sua capacidade de tradução, acelerar a
imbricação entre códigos, textos, séries e sistemas, afinar a complexidade estrutural,
a síntese combinatória das intersemioses. (PINHEIRO, 2007, p.67).

Assim, a heterogeneidade e as interações entre as diferentes práticas culturais características


do Brasil apontam para uma incalculável variedade de resultados referente aos processos de
transformação de textos da cultura, pois, como discutimos até agora, engloba o cruzamento de
diferentes sistemas culturais, ou seja, engloba o cruzamento de informações, aspectos e
subtextos19 variados.

Essas questões refletem significativamente nos processos artísticos intencionais que se


ocupam do cruzamento de práticas culturais, a exemplo de uma técnica estrangeira de dança
que, ao incorporar elementos da cultura à sua volta, cria semânticas locais. Contudo, as
estratégias para essa mescla podem variar indo desde representações até recriações mais
abstratas de signos e símbolos da cultura hibridizada.

Este pensamento nos auxilia a entender que processos artísticos que optam pelo diálogo com
textos de sua cultura adquirem uma gama infinita de informações a serem remodeladas e
transformadas em diferentes níveis. Aspectos posturais, tônicos e estéticos, até aspectos mais
subjetivos dispersos na tradição oral da capoeira, exemplificam essa variedade de informações
presentes em recriações de dança que dialogam com esta prática. Em termos práticos,
podemos pensar nos diferentes contextos em que certos subtextos são extraídos e
reinterpretados. Em outras palavras, uma informação que é extraída da Capoeira Angola ou da
Capoeira Regional (por exemplo, malícia20) passa a ser interpretada e recriada de forma
distinta por grupos de dança que gerenciam procedimentos e métodos próprios de criação.

19
Subtextos são mensagens e informações que participam da formalização de um texto. Na dança cênica temos
como exemplo de subtexto, códigos desse campo artístico, tais como traços estéticos, que podem ir desde
padrões de movimento a qualidades de movimento e padrões tônicos. Na capoeira podemos pensar os subtextos
em termos de valores e comportamentos que se expressam através de códigos materiais. A malícia, um aspecto
presente na capoeiragem, pode ser percebida na Capoeira Regional, por exemplo, através de um golpe aplicado
de forma certeira no momento em que o adversário está distraído. Na Capoeira Angola, além desta possibilidade,
podemos ver mais frequentemente a malícia em atitudes, gestos e ações que visam descontrair e tornar o jogo,
uma brincadeira lúdica e bastante imprevisível.
20
Malícia pode ser entendido como um código da capoeira que se materializa de modos diversos. A esperteza, a
vivacidade, a malandragem, são formas pelas quais a malícia é manifestada no universo da capoeiragem. Refere-
se não somente a forma como um golpe é deferido, mas a um tipo de comportamento dentro e fora da roda.
30

A complexidade desse fenômeno reforça a relevância de uma abordagem interdisciplinar que


nos auxilie a contextualizar e melhor entender a polissemia de sentidos que orienta tais
misturas. Por isso, damos continuidade ao nosso estudo com uma rede de ideias que
interrelaciona os autores até aqui apresentados a contribuições formuladas pelo sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos (2006). Com isso abarcaremos em nossa análise
diferentes aspectos estéticos, sociais e políticos que se entrelaçam no processo de mestiçar.

1.1.3 Códigos Barrocos e Textos da Cultura

Tudo que está por baixo ou por detrás está igualmente por cima e pela frente.
(SANTOS, 2006).

Em A gramática do tempo (2006), de Boaventura de Sousa Santos, encontramos importante


fundamentação sobre como a ambivalência presente em discursos e escolhas incorporadas por
determinadas ações, movimentos sociais e/ou comunitários podem ir de encontro a, ou ao
encontro de paradigmas que ainda asseguram a predominância de modelos hegemônicos.

Tais reflexões tornam-se pertinentes para a reflexão sobre as implicações sociais e políticas
intrínsecas a pesquisas artísticas que dialogam com as culturas populares. O autor fala sobre
uma subjetividade barroca e argumenta que esta não deve ser pensada somente como
movimento estético, mas principalmente como uma lógica para ler as dinâmicas presentes nas
relações sociais características de países Ibéricos e Latino-americanos. Segundo ele, esses
países tiveram alguns de seus conhecimentos e tradições mais importantes suprimidos pelo
processo de colonização, estando atualmente desfavorecidos pela globalização hegemônica21.
Dessa forma, o autor desenvolve um estudo epistemológico que rompe com a supremacia da
razão indolente22, fazendo uso de racionalidades alternativas e combatendo o que denomina
como “monocultura do saber e do rigor científico”; conceito desenvolvido para expressar a
ideia de que a alta modernidade e a ciência moderna são formas superiores de conhecimento.

21
Define como globalização como “o processo através do qual um dado fenómeno ou entidade local consegue
difundir-se globalmente e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar um fenómeno ou uma entidade rival
como local” (SANTOS, 2006, p.195). O entendimento do autor sobre o conceito de globalização é de um
fenômeno plural que se transformam através de um conjunto de relações sociais e, assim, são capazes de
transformar a própria globalização em tipos de globalização.
22
Santos adota o termo “razão indolente”, que por sua vez é designado por Leibniz (1985, apud SANTOS, 2000).
Tal discussão foi anteriormente realizada amiúde pelo autor no livro A critíca da razão indolente (2000).
22
Cf. SANTOS (2000).
31

A razão indolente subjaz, nas suas várias formas ao conhecimento hegemônico,


tanto filosófico como científico, produzido no Ocidente nos últimos duzentos anos.
A consolidação do Estado liberal na Europa e na América do Norte, as revoluções
industriais e o desenvolvimento capitalista, o colonialismo e o imperialismo
constituíram o contexto sócio-político em que a razão indolente se desenvolveu
(SANTOS, 2006, p.96).

Figura 3: Foto de Pierre Verger, Salvador (Bahia, Brasil) 1946-1978.

Assim, a discussão traçada pelo autor sobre experiências sociais, entre outras, festas e
manifestações culturais, dinâmicas expressivas e características nos países por ele pesquisados
(África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal), permite a identificação de
aspectos importantes para este estudo.

A capoeira, devido à conjuntura de fatos e circunstâncias, como o ambiente urbano em que se


desenvolve, bem como suas dinâmicas de hibridação com outros textos da cultura e seu
caráter festivo e lúdico, pode ser incluída nessas observações, conforme explicita, em seus
relatos, Rego (1968, p.37):
Em tudo era notada a presença da capoeira, mui especialmente nas festas populares,
onde até hoje comparecem, embora totalmente diferente de outrora. Em toda festa de
largo profana, religiosa ou profano-religiosa, o capoeira estava sempre dando o ar da
sua graça.

Sendo assim, dentre os aspectos da subjetividade barroca destacados por Santos (2006), um
que nos faz relacionar diretamente à capoeira é o aspeto subversivo, que, como ressalta o
autor, apresenta-se como uma necessidade e uma estratégia de permanência entre práticas e
culturas ditas periféricas.
32

O que, apesar disso, me parece inspirador na cultura barroca é o seu lado de


subversão de excentricidade, a fraqueza dos centros de poder que nela buscam
legitimação, o espaço da criatividade e de imaginação que ela abre, a
sociabilidade turbulenta que promove. (SANTOS, 2006, p.206, grifo nosso).

A argumentação desse autor sobre o espaço da criatividade e da imaginação como meio pelo
qual as práticas culturais marginalizadas subvertem as ordens impostas por um sistema
opressor elucida como os mecanismos de preservação e recriação discutidos por Lotman
(1996) ocorrem em nosso contexto cultural, à medida que o autor contextualiza como esta
subjetividade barroca se articula em meio a tensões sociais e econômicas características de
países colonizados. Apesar de terminologias e campos de análises peculiares, estes dois
autores, Iuri Lotman e Boaventura Sousa de Santos, cada qual com sua perspectiva, digamos,
“micro” e “macro”, mostram-nos estratégias das quais os textos da cultura se utilizam para
garantir sobrevivência, manutenção e constante atualização.

A capacidade de não fechar-se em si e, ao contrário, trocar e incorporar mensagens e códigos


de outras séries culturais é, desse modo, explicada por Santos (2006) como uma subjetividade
imbuída por um caráter poroso e aberto necessário para ocorrência das mestiçagens. Tais
qualidades sugerem que a incorporação e mistura de códigos culturais, por meio de traduções
e recriações de certos textos, são necessárias para a (re)invenção de novas tradições, pois isso
possibilita que um mesmo texto da cultura possa transitar e subverter entre papéis
controversos e complementares para sua permanência e transformação. Isto ocorre seja
através da representação simbólica de tradições, seja através de novas configurações que
emergem de um estado de dilatação em contexto favorável.

Por essa linha de raciocínio, as memórias conservadoras e criadoras propostas por Lotman
(1996) são entendidas como estratégias para escapar de dualismos que imobilizam ações e
posicionamentos, tais como os que se observam no falso dualismo entre ‘tradicional’ e
‘moderno’.
Assim, pois, a memória comum para o espaço de uma cultura dada é assegurada, em
primeiro lugar, pela presença de alguns textos constantes e, em segundo lugar, ou
pela unidade dos códigos, ou pelo caráter ininterrupto e regular de sua
transformação. (LOTMAN, 1996, p.157, tradução nossa).

O argumento acima proposto por Lotman (2006) é mais uma forma de entender a
ambiguidade presente na subjetividade barroca, que, conforme coloca Santos (2006), está
relacionado à explosão da mestiçagem, criando o que ele denomina como códigos barrocos.
33

Esses códigos se ramificam em ações e representações de dois tipos de pensamento: o


pensamento das raízes e o pensamento das opções.

Segundo Santos (2006), o primeiro – das raízes – configura-se por tudo aquilo que é
profundo, permanente, lento e singular, e que dá segurança e consistência. Já o pensamento
das opções se caracteriza por tudo que é visto como variável, efêmero, substituível, possível e
indeterminado a partir das raízes. Contudo, a subversão desses papéis, em grande escala,
representados costumeiramente por manifestações de “raízes” que renovam e recriam
tradições, expressa uma ambiguidade que empresta a determinado código barroco mais de um
sentido. Tal ramificação ocorre também porque há mestiçagem por sobre-exposição ou por
subexposição, resultando em códigos diferentes.

Um processo de sobre-exposição diz respeito à mudança do que até então era visto como
imutável e natural, a ações que recorrem à criatividade e a reformulação de tradições,
discursos, hábitos, costumes e lógicas, presidindo processos sociais de funcionamento em
rede e de dispersão criativa.

Já a mestiçagem resultante da subexposição ocorre quando as opções submetem-se à lógica


das raízes. Nesses casos, o que vemos é a intensificação de reproduções exemplares e
idealmente particulares que transformam novas ou diferentes criações em raízes.

Neste raciocínio, é por meio da mestiçagem que estes códigos vêm diluindo categorias
binárias que aprisionam determinados saberes enquanto práticas genuínas, tradicionais e
autênticas, ou, ao contrário, como práticas superficiais, instantâneas e sem passado. Em
síntese, é esta subjetividade barroca, da qual nos fala Santos (2006), que possibilita a mudança
de algo inicialmente entendido como natural para algo sempre móvel, como verificamos, por
exemplo, na capoeira ora aludida a tradições africanas, ora alvo de desdobramentos que
servem a lógica das opções, incorporando outros elementos em seu discurso e fazer para
própria difusão e/ou ainda para inclusão no mercado.

Mesmo verificando nos dias de hoje certa dilatação desta lógica mestiça, reforçamos a ideia
de que este ‘jeito de pensar’ ainda compartilha os mesmos espaços onde transitam atitudes e
ações hegemônicas. A reflexão sobre as tensões entre esses paradigmas é necessária para
34

compreender questões políticas acerca dos cruzamentos entre cultura popular e cênica, como
neste estudo que se ocupa das relações entre Capoeira e Dança Cênica.

Nesse viés, entende-se que os cruzamentos entre as referidas linguagens podem contrapor ou
alimentar uma lógica de fácil consumo e exportação. Por isso, apesar de a análise deste
trabalho ter como foco os resultados técnico-expressivos dos cruzamentos que envolvem
dança e capoeira, não deixamos de considerar o contexto e a situação em que as misturas
ocorrem. Haja vista o argumento que coadunamos proposto por Canclini (2003, p. 23): “[...]
arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta como essa questão vai
sendo respondida na intersecção do que fazem os jornalistas e os críticos, os historiadores e os
museógrafos, os marchandes, os colecionadores e os espetaculadores.”

1.2 CAPOEIRAS: UM PLURAL NECESSÁRIO

Uma arte de linguagem bem definida cuja prática se exercita mediante a combinação
de luta, dança, música, poesia, mandingas, costumes e memórias. Ao seu domínio
pertence um repertório de movimentos e golpes de fácil assimilação, aplicados para
enfrentar as complexas situações que o jogo coloca no seu desdobramento e as
muitas sugestões de improvisos que dele suscitam (ABREU, 2007, s/p).

Procurando aprofundar a discussão sobre aspectos e elementos que, a nosso ver, favorecem
criadores e intérpretes a construírem a interface entre Dança Cênica e Capoeira,
esclareceremos ao leitor como abordamos a capoeira. Sendo assim, vale a ressalva de que o
interesse aqui explicitado pela perspectiva artística da capoeira é, antes, fruto do entendimento
de que seus códigos são resultantes das relações e dinâmicas internas que desenham a
capoeira como prática plural que engendra em si mesma diversos símbolos e significados.
Por sua vez, estes aspectos encontram-se imbricados com uma forma de ser e estar no mundo.
Portanto, compreendemos que a perspectiva que pode interessar a criadores e intérpretes se
faz não somente por elementos técnicos corporais constituintes desse fazer, mas também pelo
discurso poético de vida e de mundo intrínseco a uma memória coletiva, apontada por Lotman
(1996) como inerente à cultura; uma memória que estabiliza determinadas mensagens e
informações imbricadas com o contexto cultural em que se desenvolve.

Então, ao invés de esvaziar a capoeira desses sentidos e significações culturais em


detrimento de uma análise estritamente estética, procuramos ressaltar que as dinâmicas de
35

produção simbólica intrínsecas à capoeira também podem alimentar processos metodológicos


e de criação em dança.

Alves (2003) reforça essa ideia ao argumentar a importância do discurso poético da capoeira
em processos de criação em dança. O autor sugere a experiência dos sentidos e das intenções
presentes nas dinâmicas internas da capoeira que preenchem movimentos com especial
expressividade estética. Dessa forma, ultrapassa-se uma abordagem tecnicista ainda recorrente
no campo da dança, que, de modo reducionista, tende a atribuir ao movimento da capoeira a
qualidade de uma performance motora interessante e produtiva apenas para o
condicionamento físico e técnico dos intérpretes.

Nesse sentido, fazemos valer o argumento de Alves (2003):


A capoeira, portanto, enquanto performance motora, pode ser uma alternativa
através da qual o artista pode se preparar tecnicamente, no entanto, numa
composição coreográfica em dança, esta conquista técnica não aprisiona o corpo a
uma única expressão. A capoeira, enquanto uma modalidade de expressão corporal é
apenas mais uma alternativa de preparo técnico. A capoeira enquanto manifestação
cultural e artística é um discurso poético que nos mostra o corpo como agente
criador. (ALVES, 2003, p.179).

Por esses motivos, não iremos nos ater aos códigos formais que diferenciam, por exemplo, a
Capoeira Angola da Capoeira Regional. Iremos, ao contrário, discorrer sobre aspectos de uma
memória comum deste texto da cultura, que, mesmo com a variância dos seus sentidos,
permite ser considerado idêntico a si mesmo.

A presente abordagem discursiva ancora-se, assim, em ideias já apresentadas e das quais nos
utilizamos para pensar a capoeira como sistema cultural complexo, que por sua dinâmica
encontra-se em constante interação com o espaço semiótico, ou seja, com a semiosfera
internamente irregular e heterogênea, bem como com seus variados cruzamentos culturais que
possibilitam que a mesma seja compreendida como texto polissêmico. Capoeira Angola,
Capoeira Regional, Capoeira de Rua, Capoeira Contemporânea, são algumas variantes deste
texto da cultura, cada qual resultante de interpretações individuais e coletivas, apresentando
sintaxes e semânticas particulares, que por vezes se entrecruzam, possibilitando sobretudo o
reconhecimento de todas essas variantes como Capoeira. Lotman (1996) ilustra essa questão
ao defender a ideia de que
a atualização destes textos da cultura se realiza dentro dos limites de alguma
invariante de sentido que possibilita dizer que no contexto da nova época o texto se
36

conserva, com toda a variância de interpretações, a qualidade de ser idêntico a si


mesmo. (LOTMAN, 1996, p.157, tradução nossa).

Nas diferentes sintaxes e semânticas locais, vemos comumente a Capoeira Angola ser
destacada e valorizada pelo seu caráter ritualístico e lúdico, ao passo que a Capoeira Regional
pela eficácia de sua movimentação e dinâmica enquanto luta. Com a consolidação destes
discursos, parece surgir a necessidade de destacar e dar nomes a tendências híbridas. Como
exemplo, temos a Capoeira de Rua, em linhas gerais identificada pela flexibilidade em aceitar
o diferente, o novo, ou ainda, a polêmica Capoeira Contemporânea, defendida por certos
grupos como estilo que reúne características pertencentes ao estilo da Angola e Regional,
sendo que, para muitos mestres e capoeiristas, estes estilos nunca estiveram, ou deveriam
estar dissociados.

Assim, considerando que esta prática encontra-se hoje em mais de cento e cinquenta países23,
percebemos que a associação imediatista de traços estéticos a certos estilos acaba, na maioria
das vezes, resultando em formas simplistas, clichês e estereótipos que divergem da
pluralidade semântica que se entrecruzam no fazer capoeira.

Abreu (2007) discute a ambiguidade desta manifestação cultural – jogo, brincadeira, folclore,
esporte, dança e luta – enfatizando e ponderando questões acerca de uma importante interface
para este estudo. Vejamos:
A interface luta–dança é a chave para compreender a dinâmica e as peculiaridades
desse jogo e os limites da periculosidade que nele se encerra, como fator estimulante
para a sua prática. Na verdade, essa interface tem suporte histórico e esteve presente
nos conflitos de rua e disputas em ringues, onde os capoeiras se meteram e se
destacaram pelos recursos de dança, que muitas vezes decidiam as competições a
seu favor. Se a dança valoriza a excelência da luta, esta também é fundamental para
a caracterização da capoeira como uma dança especial, viril e inventiva, plena de
disfarces e simulações, rica de passos cadenciados pelos toques do berimbau. Por ser
assim, não é possível simplificar conceitualmente a capoeira a uma só das partes: ou
é luta ou é dança, sem o risco de afetar a originalidade da manifestação e na prática,
comprometer a integridade da sua expressão. (ABREU, 2007, p.3).

Quando a eficácia do golpe na capoeira é relativizada e os sentimentos de competição e de


luta encontram-se apaziguados em prol de uma atmosfera lúdica e poética presente em uma
capoeira mais “dançada”, percebemos que a polissemia, a imprevisibilidade e a ambiguidade

23
De acordo com Abreu (2007, p.7): “Em menos de 25 anos, a capoeira se expandiu por mais de 150 países
localizados em todos os continentes. Ela passou a integrar uma rede internacional, afirmando-se como cultura
universal capaz de se fazer entender para além das fronteiras geográficas, de língua, condição social, assim como
aconteceu, por exemplo, com o rock, o samba e o reggae.”
37

parecem se dilatar, permitindo que o caráter aberto característico da subjetividade barroca seja
expresso na capoeira por diferentes códigos estéticos. É nesse sentido que o autor identifica as
capoeiras como: “obras abertas permeáveis às influências e novos experimentos incorporados
organicamente aos seus conjuntos sem comprometimento dos parâmetros culturais que lhes
dão sustentação” (ABREU, 2007, p.2). Refletir como estes aspectos se materializam no jogo24
da capoeira apresenta-nos mais do que traços estéticos, princípios que podem ser criados e
recriados na roda de capoeira ou no jogo da dança.

Segue um exemplo:
Oi sim, sim, sim,
Oi não, não, não,
Oi hoje tem amanhã não,
Oi hoje tem amanhã não,
Oi sim, sim, sim,
Oi não, não, não
(Domínio Público).

O corrido acima traduz em forma de canto o caráter aberto da ginga, sendo esta maleável,
dinâmica, fluida e imprecisa. Por essas qualidades é que a ginga inusitadamente se transforma
em ataque e defesa, pois a partir dela o capoeira se prepara para “soltar” outros golpes ou para
se proteger sempre que necessário. O estudo de sua sintaxe proposta por Eusébio Lôbo da
Silva (2007) complementa nossa idéia ao expor que “a ginga propõe: 1. o relaxamento para o
movimento; 2. o não estruturado no estruturado, ou seja, a ginga nasce de uma sucessão de
esquivas (não estruturado) para a composição de uma estrutura aberta a qual denominamos
ginga”. (SILVA, Eusébio, 2007, p.4).

Esse caráter aberto, constituído de ambiguidades e imprevisibilidades, faz com que a ginga e
toda estrutura do jogo da capoeira contribuam para que, algumas vezes, a brincadeira se
transforme repentinamente em luta séria. Isso ocorre preponderantemente por ser um jogo
estruturado por relações entre tudo aquilo e todos aqueles que materializam a roda; entre o
mestre, os demais jogadores, o ritmo e o canto.

24
Sobre uma reflexão mais pormenorizada a respeito da produtividade do jogo da capoeira em processos de
criação em dança, bem como uma discussão mais aprofundada sobre o conceito teórico de jogo, ver a
monografia: SANTANA, Gabriela Santos Cavalcante. Um recorte brasileiro na dança contemporânea: capoeira
angola e o processo de criação. (2006). No presente estudo, sobretudo, neste capítulo, apesar de discutirmos
aleatoriamente alguns códigos, ações, elementos e aspectos presentes no jogo da capoeira, salientamos que a
discussão sobre o jogo é um recurso para nossa análise que tem como foco primeiro investigar como as criadoras
selecionadas, Claudia de Souza e Renata Lima, exploram a capoeira em suas respectivas pesquisas corporais e
artísticas.
38

A imprevisibilidade torna-se então regra, pois, em situação de jogo, a surpresa pode vir de
quem inesperadamente “compra o jogo”25, de quem lança uma mensagem através do canto, de
quem “puxa”26 o ritmo, ou ainda, de quem maneja o berimbau gunga27. O diálogo e a escuta
corporal tornam-se chaves primordiais para o desenvolvimento da ‘brincadeira’. O capoeira
encontra-se sempre em situação de desafio, pois, constantemente atacando e defendendo, lida
o tempo todo com a vulnerabilidade, sem saber o que lhe aguarda. Os humores e as
intencionalidades são camuflados na ginga instável, nos gestos teatrais, na malícia do sorriso,
ou no que é dito em entrelinhas nas chulas e corridos. Dessa forma, a relação com o outro
torna especial a dinâmica de promover diversas situações de improviso, fazendo com que o
corpo reorganize a todo instante novas proposições decorrentes da suscetibilidade
experenciada. Ludibriar o adversário e proporcionar situações que possam desestabilizar o
oponente significa torná-lo suscetível, e isso, na roda, faz-se tão ou mais importante do que
derrubá-lo.

Nesse sentido, o aspecto lúdico e teatral da capoeira pode também ser entendido como
códigos abertos que aparecem em expressões faciais, como em um olhar indireto, ou em um
sorriso “camarada”. Estratégias e brincadeiras como essas compõem o universo mítico e
pouco objetivo da mandingagem da capoeira.

Tais códigos dão certa elasticidade às regras do jogo. Quando dizemos elasticidade às regras
não sugerimos a diluição das mesmas, mas apontamos para a maleabilidade e flexibilidade da
estrutura da roda de capoeira, ou seja, para as constantes negociações que acontecem entre os
participantes da roda. Assim, além de objetivar uma luta centrada na desestabilidade corporal,
o jogo pode apresentar outros encaminhamentos e objetivos, como por exemplo, o
“desconcerto” do jogador e/ou momentos de descontração e confraternização entre os
participantes.

25
A “compra do jogo” é expressão utilizada para descrever a interrupção de um jogo por um terceiro capoeirista.
Esta atitude pode ter diferentes significados, como por exemplo, simplesmente jogar com alguém que lhe é
querido, como também estratégia para apaziguar os ânimos.
26
“Puxar” o ritmo é expressão comumente usada no ambiente da capoeira para se referir à forma como o ritmo é
conduzido. No contexto em que a expressão foi aplicada significa aquele que, observando o jogo e a roda,
propõe certa mudança de andamento.
27
A roda de Capoeira se delineia habitualmente no espaço com o mestre segurando o berimbau Gunga. A
expressão conhecida “O Gunga é quem comanda a roda” é evidenciada por todos aqueles que fazem parte deste
universo. Os outros dois berimbaus, o médio e o viola, bem como os demais instrumentos da bateria interferem
no clima da roda, porém, damos ênfase ao gunga por ser ele manejado prioritariamente por aqueles que
comandam a roda e, assim, interferem de forma mais incisiva no evento. “O Gunga ou berra boi: de som mais
grosso, faz o papel de um contrabaixo, marca o tema básico de um toque.” (CAPOEIRA, 2006, p. 81).
39

Rodas famosas de Capoeira Angola em Salvador, como a do Mestre João Pequeno de


Pastinha, Mestre Curió, ou ainda Mestre Lua, são ótimos exemplos de como estes códigos
abertos, e a estrutura maleável da capoeira, contribuem para que esses mestres codifiquem e
estabilizem mensagens e informações através leituras singulares, tornando-os, cada qual com
seus jogos e suas rodas, bastante peculiares. Esta dinâmica inerente à capoeira nos permite
visualizar que, apesar de existirem códigos e regras fixas, existe nesta prática importante
espaço para que cada aprendiz e mestre desenvolva no jogo a sua individualidade.

Por constatar essas várias interpretações dadas à capoeira é que reforçamos a ideia de como a
produtiva gama de informações corporais e simbólicas da capoeira pode alimentar pesquisas
em dança, estejam elas voltadas para aspectos metodológicos e ou de criação.

1.3 ASPECTOS COMUNS E LÓGICAS COMPLEMENTARES ENTRE A CAPOEIRA E O


PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO DE DANÇA

Nesta seção propomos o entendimento de que o caráter aberto atribuído anteriormente à


Capoeira favorece um estreitamento nas relações com a Dança Cênica e principalmente nas
relações com o pensamento contemporâneo de dança28. Assim, seguimos nossa discussão
salientando como o trânsito da capoeira com outros textos da cultura local se faz relevante
para a geração ou recriação de novos textos culturais e artísticos e as implicações desta
permeabilidade para misturas com dança.

No contexto cultural da capoeira, temos como exemplo o perfil agressivo da capoeira


desenvolvida em Pernambuco e no Rio de Janeiro, no século XIX, em comparação à capoeira
desenvolvida nas demais regiões do Brasil. À época, nessas cidades, verificamos que as
desigualdades sociais e instabilidades econômicas inflavam a desordem, a indignação e a
revolta, contribuindo para o desenvolvimento de uma capoeira predominantemente violenta,
sempre alvo de perseguições políticas. Vejamos um trecho ilustrativo sobre isso:
Em nenhum outro lugar e tempo, a capoeira experimentou como no Rio de Janeiro
situações tão tumultuadas e os capoeiras, castigos tão violentos. Em nenhum outro

28
Este estudo apresenta sucinta discussão sobre pontos comuns entre capoeira e processos e configurações que
desenvolvem um pensamento específico, o que denominamos de pensamento contemporâneo de dança. Contudo,
nossos apontamentos e reflexões neste estudo não se limitam somente a esse tipo de produção em dança, e sim,
de modo mais amplo ao cruzamento entre Capoeira e Dança Cênica.
40

lugar e tempo, a instituição capoeira interveio tanto na vida social, política e no


cotidiano de uma cidade. As notícias dos jornais e as crônicas dos literatos da época
noticiam sobre as ações mirabolantes nas disputas pelos pontos de trabalho, domínio
das festas, desacatos às autoridades, participação na Guarda Negra em favor da
Monarquia, intromissão nas disputas entre os partidos Liberal e Conservador. Foi
muito em cima do comportamento social dos capoeiras cariocas que se justificou a
criminalização da capoeira pelo Código Penal da República, em 11 de outubro de
1890 (ABREU, 2007, p.3).

Figura 4: Gravura de Carybé

A capacidade própria da capoeira de responder ao inusitado, ao que está à volta, possibilitou


segundo Abreu (2007), que a mesma exibisse características também particulares nesse
mesmo período na Bahia, prevalecendo neste lócus, seu caráter festivo.
Na Bahia, no século XIX, a capoeira também conheceu momentos de tumulto,
embora de menor intensidade e dimensão do que os do Rio. Se a violência ficou
como expressão maior da capoeira carioca neste período, a festa é quem referenda a
baiana (ABREU, 2007, p.3).

Tais constatações explicam como o caráter aberto, ambíguo e inacabado da capoeira


contribuiu historicamente para que este texto incorporasse e emprestasse elementos, signos e
símbolos presentes em outras séries culturais. A seguir verificamos a identificação de relações
entre os universos da capoeira e do frevo.
Aos brabos do Recife, que tinham mania por festa, é devotada participação na
criação de uma das mais ricas manifestações da cultura brasileira: o frevo. Segundo
os estudiosos desta manifestação centenária, os passos mais viris da dança do frevo
foram reelaborados pelos brabos acompanhando as bandas de música de Recife
(ABREU, 2007, p.3).
41

Ou ainda, como atesta o mesmo autor, entre a capoeira e os diferentes sambas:


No Rio de Janeiro e na Bahia no final do século XIX e início do XX, também se
atribuiu aos capoeiristas contribuições na elaboração de passos de danças viris. No
Rio, isto ficou estampado nas “rodas de batucadas”, onde a pernada denunciava o
cruzamento (ou junção) do samba com a capoeira. Também visível no desenho da
dança do mestre-sala, a quem cabia proteger a porta bandeira, nos anos inicias e
conturbados dos desfiles carnavalescos, para impedir “desagravos” ao estandarte, o
símbolo maior dos ranchos e das escolas de samba. A ginga, os meneios, as paradas,
os giros e outros mendengues dos capoeiras permanecem nas coreografias dos
mestres-salas de hoje. Na Bahia, ocorreu fenômeno semelhante. Muitos capoeiristas
também se destacaram como jogadores de batuque, neste caso, uma dança luta, hoje
já extinta, com características muito semelhantes à capoeira, a ponto de uma ser
confundida como matriz da outra. O samba-duro, que por muito tempo vigorou no
Recôncavo baiano, também retirou da capoeira subsídios para se expressar
(ABREU, 2007, p.4).

O caráter aberto ou externo-solar, ao qual Pinheiro (2007) se refere para discutir sistemas
culturais mestiços, auxilia-nos a pensar como um texto da cultura que possui alta capacidade
tradutória, como identificamos na capoeira, é capaz de acelerar “a imbricação entre códigos,
textos, séries e sistemas culturais afinando a complexidade estrutural, e a sintaxe combinatória
das intersemioses.” (PINHEIRO, 2007b, p.70).

Sendo assim, os dados expostos até o presente momento ilustram o entendimento de como o
caráter aberto e mestiço inerente à cultura dilata hibridações não intencionais no universo da
cultura popular.

Mas, em quê o caráter permeável, facilitador do cruzamento entre séries culturais, pode
contribuir para estreitar as relações entre a Capoeira e a Dança Cênica desenvolvida nos dias
de hoje?

Consideramos que processos intencionais, como os que ocorrem em ambientes formais e


especializados em dança, munidos então por lógicas próprias, podem se valer desta
permeabilidade característica dos códigos barrocos29 (SANTOS, 2006) para operar futuras
hibridações.

Dessa forma, apesar das reflexões sobre as contaminações entre corpo, rua e cotidiano serem
evidenciadas atualmente como uma questão das artes performáticas, o que parece mais
significativo para esta discussão é o fato do caráter aberto já identificado na capoeira ser

29
Cf. seção 1.1.3 deste estudo.
42

também catalisador de processos atuais de dança que se interessam pelo diálogo com
diferentes linguagens. Este caráter aberto torna-se, então, ponto-chave para entender aspectos
convergentes entre a atual Dança Cênica e a Capoeira, configurando-se metaforicamente
como uma ‘ponte’ capaz de estreitar o contanto com novos processos de criação em dança.

Resta-nos refletir sobre como este caráter aberto tem sido articulado na dança produzida
atualmente. Entretanto, o caminho para esta reflexão não será através da identificação de
códigos estéticos, haja vista que é justamente a permeabilidade inerente à dança desenvolvida
atualmente que torna inviável a descrição de uma estética representativa para o pensamento
contemporâneo de dança.

Sabemos que esta permeabilidade vem desde a década de 1960, quando alguns renomados
coreógrafos deste período passaram a explorar intensa experimentação no que diz respeito à
forma de criar e compor, como comenta Eliana Rodrigues Silva (2005):
Estabeleceu-se, [na Dança Contemporânea] uma variedade de estilos e
principalmente de métodos de criação. A dança podia ser montada ao acaso,
surgindo de improvisações em cena aberta; danças geradas a partir de tarefas
cotidianas e movimentação funcional; danças criadas a partir de scores previamente
concebidos; de brincadeiras infantis; de atletismo; danças construídas a partir de
outras danças; de livre associações; de rituais; de jogos; de literatura; de artes
visuais; de situações compartimentais; da manipulação de objetos; enfim, de um
universo absolutamente amplo e permissivo. Não [havendo] homogeneidade
estilística ou temática (SILVA, Eliana, 2005, p. 109, grifo nosso).

Contudo, no pensamento contemporâneo, padrões são modelados diferentemente, seguindo


convenções30 que buscam romper com o que até então era tido como estável. Sendo assim,
vale ressaltar que parâmetros atuais de corpo, cultura, ciência e arte se entrelaçam com este
pensamento atual em dança, contaminando em maior ou menor grau não somente o que está
sob o rótulo de Dança Contemporânea, mas também formas de dança que apresentem
organizações e concepções peculiares – quer sejam estas populares, quer sejam técnicas de
dança sistematizadas academicamente.

30
A utilização do termo convenção tem como referencial Fazenda (2007), entre outros autores. Estas convenções
seriam geradas por um pensamento contemporâneo que desvelou “novo” mundo complexo e pouco determinista,
sendo, portanto, a forma como criadores e intérpretes vêm criando meios de se colocarem diante de novos
paradigmas da contemporaneidade. À medida que estas convenções se estabilizam, verifica-se a transformação
destas por parte dos demais criadores que as reconhecem e que, pelo impulso de inovar artisticamente, as
remodelam e modificam. Ver mais referências sobre o assunto em: FAZENDA, Maria José. Dança Teatral:
idéias, experiências, acções. Lisboa: Celta, 2007
43

Figura 5: Aspectos comuns ao pensamento contemporâneo de dança e à capoeira.

Os diversos tipos de dança que se deixam afetar por lógicas e procedimentos característicos
deste pensamento contemporâneo de dança contribuem para o alto grau de variação nos
objetivos e finalidades propostas pelos atuais criadores. Por esse motivo, esta seção discutirá
aspectos que compõem lógicas semelhantes que alimentam tanto a capoeira como alguns
processos e pesquisas atuais de dança. Sendo assim, propomos que aspectos como subversão,
ambiguidade, ambivalência, individualidade, individualidade e imprevisibilidade apresentam-
se como aspectos comuns tanto ao pensamento contemporâneo de dança como à capoeira.

1.3.1 Subversão, ambiguidades e ambivalências

O enfraquecimento e a descentralização de paradigmas que por um extenso período se


exibiam como fios condutores da produção em dança servem de exemplo para discutir a
subversão, a ambiguidade e a ambivalência na dança de modo mais concreto. Dentre estes
paradigmas, podemos destacar o papel da dança e do dançarino diante do contexto social.
44

Sobre o assunto, André Lepecki31 (2003) argumenta fissuras no modo de entender e


desenvolver a Dança Teatral32 a partir da década de 1960, ao destacar um movimento
pensante-coreográfico que ressituava a dança para fora da ideia de gênero artístico passivo em
relação ao espaço cênico e social, e prioritariamente como um gênero disciplinado por
critérios absolutos e medidas acadêmicas únicas da excelência coreográfica.

Nesta direção, a discussão cada vez mais frequente sobre a complexidade do mundo e do
conhecimento contribuiu significativamente para a emergência de novos modos de ler e
apreender o conhecimento, diluindo relações hierárquicas que por muito tempo se
alimentaram de uma racionalidade pautada na modernidade e na alta ciência; como sugere
Santos (2006) ao descrever o que ele denominou como razão indolente, tipo de pensamento
que se caracteriza pela separação e sobrevalorização de certas áreas de conhecimento em
detrimento de outras, a exemplo das polêmicas discussões sobre ciência e religião, cultura e
arte, popular e erudito.

Diante disso, um pensar renovado sobre corpo e sobre dança como ação no mundo vem
constantemente impulsionando criadores a desenvolverem esta arte como atividade engajada e
conectada com o mundo social, subvertendo a ideia de dança desenvolvida simplesmente para
fins de entretenimento ou como expressão da catarse do ser humano. Com isso, o
entendimento de dança como um tipo de conhecimento intensifica a produção de trabalhos
que se apresentam enquanto novos modos de produção da realidade.

No que tange à hibridação em dança, percebemos que a subversão deste paradigma – dança
como conhecimento e não mais como entretenimento – vem se materializando em processos e
configurações que investem frequentemente na desconstrução de códigos já estabelecidos.
Respostas e padrões estéticos já estáveis perdem espaço para narrativas quase sempre
ambíguas que expõem a ressignificação e a criação de novos códigos para ampliar e expandir
as possibilidades de invenção, criando redes mais complexas de cruzamentos. A ambiguidade
e a ambivalência recorrentemente salientadas em estudos sobre a pós-modernidade, por

31
André Lepecki é performer, crítico e Professor Doutor do Departamento de Estudos sobre Performance na
New York University. Sua produção possui destaque na área de vídeo-instalação.
32
As argumentações propostas por Lepecki (2003) sobre Dança Teatral se referem a observações de uma dança
desenvolvida no eixo Europa – Estados Unidos que influenciou notoriamente a Dança Cênica desenvolvida no
Brasil. O termo teatral é utilizado pelo autor para se referir à dança desenvolvida em espaços formais, como em
nosso caso, em que optamos por utilizar o termo Dança Cênica.
45

autores como Gruzinski (2001) e Bauman (1999), são, no âmbito da dança, aspectos e
também recursos frequentemente utilizados por criadores que almejam aguçar o expectador a
problematizar e questionar o que e como está sendo abordada determinada questão, ao invés
de determinar ou exibir respostas prontas.

Nesse sentido, a arte contemporânea de modo geral parece compartilhar da necessidade de


subverter modelos dominantes, que até hoje suplantam outras formas de experenciar corpo e
dança, como também sugere Santos (2006) ao discorrer sobre as práticas populares, festas e
danças que se valem da subversão para resistir e reagir à opressão de sistemas impostos.
Assim, diferentemente da arte moderna e de outros movimentos estéticos, o que nos permite
aproximar um pensamento contemporâneo de dança da cultura popular é, entre outros fatores,
a presença da ambiguidade e da ambivalência, pois são estes aspectos que diluem e abalam
códigos estéticos hegemônicos e cristalizados. São exemplos disso obras que interpenetram
informações variadas, como o uso de metáforas, e o fluxo constante e diverso de elementos
em busca de novas configurações.
Ao criar [dançarinos contemporâneos] estão interessados na presença traçada em
contextos específicos como o inacabamento e a instabilidade característica de quem
vivem em processo e, portanto, não abre mão da história, apesar de conviver o
tempo todo com a plasticidade inerente ao estar vivo (GREINER, 2007, p.16) 33

A argumentação acima proposta por Greiner (2007) ilustra o recorrente entremeamento de


lógicas, bem como a diluição de contornos e formas em obras produzidas atualmente, ao
contrário do que predominava na produção das décadas anteriores, onde podíamos verificar
com mais frequência a manutenção das fronteiras entre os conteúdos que eram “mesclados”.
Esta tendência vem sugerindo, cada vez mais, misturas aparentemente inclassificáveis que
colocam à risca o questionamento de categorias dualistas e rígidas.

Tais subversões no campo da dança decorrem de modificações estruturais; dentre elas,


destaca-se a subversão do que Lepecki (2003) descreve como “estruturas de comandos”, que
se configuravam, segundo ele: “[...] nas funções do mestre, do coreógrafo, do espelho, do
estúdio, do palco italiano, do corpo hipertreinado, do corpo anoréxico, do corpo-imagem ou
corpo-robô, sem vísceras nem desejo, sem excesso nem sombra” (LEPECKI, 2003, p.8).

33
Christine Greiner é Professora Doutora do Programa de Estudos em Comunicação e Semiótica da PUC/SP;
sua pesquisa concentra-se no tema do corpo nas artes.
46

Nesse sentido, outro aspecto que se entrelaça à subversão e à ambiguidade é a valorização da


individualidade. Vejamos, a seguir, nosso entendimento sobre esse aspecto e como deste
decorre a imprevisibilidade como convenção e lógica organizativa presente tanto no
pensamento contemporâneo de dança como na capoeira.

1.3.2 Individualidade e Imprevisibilidade

Parece que, de forma cíclica, a dança contemporânea muitas vezes utiliza-se de


protocolos similares (entendendo-se que similar não é igual) a danças tradicionais.
Ressalto que o meu interesse é o fato de essas manifestações valorizarem e cuidarem
daqueles (as) que produzem a arte, em lugar de colocarem a arte (o produto) como o
mais importante; em outras palavras, como se os fins justificassem os meios.
(SILVA, Eusébio, 2007, p.2).

Como comentamos em outro momento, é a interpretação pessoal de cada jogador que permite,
na capoeira, a renovação de certas mensagens flutuantes em uma memória coletiva; ou seja, a
criação de sotaques e formas peculiares de se entender e jogar a capoeira (ação das
subcoletividades) só ocorre devido à valorização e ao reconhecimento do aprendiz como
indivíduo caracterizado por particularidades.

Um exemplo lúdico-poético desse aspecto é o costume que se observa nos grupos de capoeira,
em geral, de apelidar seus membros. Mas, isto só ocorre após o professor, ou alguém do
grupo, reconhecer peculiaridades existentes em cada capoeirista, estejam estas peculiaridades
expressas no corpo e no jeito de se movimentar, dentro ou fora do jogo, ou no temperamento e
na forma de cada capoeirista se relacionar. Assim, torna-se curioso observar as relações entre
a característica ressaltada pelo apelido de cada capoeirista com a sua maneira de jogar.

Este costume se relaciona com o entendimento que propomos sobre individualidade e que está
de acordo com o argumento abaixo de Lotman (1996).
A tendência à individualização da memória constitui o segundo pólo de sua estrutura
dinâmica. A presença de subestruturas culturais com diferente composição e volume
da memória conduz a diversos graus de elipticidade dos textos circulantes nas
subcoletividades culturais, e ao surgimento de <<semânticas locais>>. (LOTMAN,
1996, p.158, grifo nosso).

Assim, a adoção do termo individualidade como o que caracteriza um indivíduo considera que
este se constitui no diálogo e nas constantes associações advindas da sua interação com o
ambiente cultural do qual faz parte.
47

No campo da dança, Maria José Fazenda34(2007) reforça tal argumento e apresenta a


importância de reflexões acerca da individualidade como questão relevante à criação de
configurações e processos singulares e autorais. Para isso, ela se apropria igualmente da ideia
de que a individualidade se constrói na interação entre o indivíduo e o seu contexto cultural.
Na dança o indivíduo intervém e manipula as convenções, podendo segui-las ou
contribuir para transformá-las. Contudo, o campo da sua intervenção é definido pelo
contexto artístico e sociocultural, certamente dinâmico e heterogêneo, no interior do
qual o indivíduo se movimenta. Dito de outro modo, na dança, a cultura está
incorporada nos corpos em movimento que, simultaneamente, constroem cultura. A
cultura é decretada pelos próprios actores sociais, pelo que o papel individual não
pode ser negligenciado, o que se torna particularmente evidente nas formas da dança
teatral [...] dada a relevância da autoria, mesmo quando esta é questionada ou o
papel social do autor é relativizado. (FAZENDA, 2007, p.48).

Neste entendimento, observa-se que corpo e dança são também redimensionados, e a pesquisa
sobre as possibilidades, restrições e singularidades de cada corpo contribui para a produção de
estratégias e modos operatórios condizentes com um pensamento contemporâneo de dança.

Assim, acreditamos ser notório para a trama entre Capoeira e Dança Cênica o fato de ambas
obterem, em decorrência da valorização da individualidade, textos cada vez mais autorais,
onde a singularidade corpórea se faz tamanha a ponto de dificultar a transferência e a
repetição de formas peculiares de se movimentar.

Esta característica apresenta na dança modos de operar o movimento que dialogam com o que
Abib (2005) denomina como ‘estética do improviso’ na capoeira. Uma estética que toma
forma no desenvolvimento da roda, por meio de uma atmosfera indutora à criatividade
necessária para a permanência do capoeirista no jogo.
Nessa singular sabedoria, expressa-se uma das características mais importantes da
capoeira angola, em que o processo de aprendizagem revela um profundo respeito
pela individualidade de cada aprendiz; na qual o “belo” e o “feio” se confundem,
numa estética do improviso, do instantâneo, da dissimulação e na qual a
criatividade de cada capoeira se manifesta de forma plena e profunda sintonia com a
atmosfera propiciada pelos elementos rituais presentes nas rodas, mas também com
a experiência e a subjetividade de cada um demarcando cada jogo como um jogo
singular momento e ver, observar e aprender. (ABIB, 2005, p.201)

Tais características, na forma de conceber e encadear o movimento na roda da capoeira,


aproximam-se de determinadas pesquisas no âmbito da dança, que têm a improvisação como
um dos focos investigativos, ou seja, como uma lógica organizativa. Apesar das variações no

34
Maria José Fazenda é Professora na Escola Superior de dança do Instituto Politécnico de Lisboa e Doutoranda
em Antropologia pelo ISCTE.
48

que tange ao modo e à finalidade com que o ato de improvisar ocorre na dança, o que se faz
importante para o nosso estudo é o fato de que estes processos frequentemente objetivam o
rompimento de encadeamentos habituais de movimentos, incorporando a imprevisibilidade.
Ou seja, a procura pela produção de ‘novos’ ou diferentes movimentos, em tempo real ou não,
possui primazia em relação à reprodução de códigos formais e padrões de movimentos já
consolidados35. Obviamente, a capoeira, como qualquer técnica corporal, também possui
repertórios consolidados de movimentos, ou seja, padrões de movimentos e códigos formais
geradores de hábitos e engramas36. Contudo, a vivência no universo da capoeira e, sobretudo,
a vivência em rodas de capoeira põem o jogador em contato com uma série de elementos e
regras que fazem da capoeira uma prática propícia para que o corpo crie novas soluções.
Sejam estas criações resultantes de novas combinações a partir do repertório já adquirido,
sejam a partir de inovações que transformam e recriam jeitos variados de jogar capoeira.

A surpresa e o inusitado característicos desta prática auxiliam o jogador a improvisar saídas e


novas situações de ataque e defesa que não se restringem somente a golpes e esquivas formais
da capoeira, mas também envolvem maneiras particulares de lidar com as restrições, seja
brincando, ludibriando, falseando com o jogador e com os elementos que constituem a roda.

No próximo capítulo analisaremos como as criadoras Claudia de Souza e Renata Lima lidam
com as questões até agora levantadas.

35
Ver GUERRERO, Mara Francischini. Sobre as restrições compositivas implicadas na improvisação em
dança. 83 f. Dissertação (Mestrado) - Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2009; e
MARTINS, Cleide Fernandes. A improvisação em dança: um processo sistêmico e evolutivo. 1999. 108 f.
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1999; e MARTINS, Cleide
Fernandes. Improvisação, dança, cognição: os processos de comunicação no corpo. 2002. 129f. Tese
(Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.
36
Eusébio Lobo da Silva (2008), embasado nas explicações de Kottke (1982), explica que um engrama se
caracteriza por movimentos que são realizados coordenadamente sem excesso de trabalho muscular. Segundo
suas explicações, um engrama é formado mais rapidamente pela repetição de um padrão preciso de movimento e
através da repetição desenvolvem-se "engramas" automáticos de movimento. Segundo Kottke (1982 apud
SILVA, Eusébio, 2008b, p.27), a inibição dos músculos que não devem participar é tão importante quanto a
contração dos que devem participar. “[...] A repetição do movimento desejado leva a uma execução cada vez
mais coordenada do mesmo, requerendo o uso de um número mínimo de unidades motoras e, conseqüentemente,
de menor trabalho muscular e mínimo gasto de energia. [...]” (KOTTKE, 1982 apud SILVA, Eusébio, 2008b).
49

2 DOIS MODOS DE PROCEDER

Figura 6: Gravura parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981


50

2.1 A ESCOLHA DAS CRIADORAS INVESTIGADAS E A METODOLOGIA DO


ESTUDO

Para melhor delinearmos a metodologia deste estudo, esboçamos primeiramente um breve


levantamento dos diferentes nichos e situações em que ocorre o encontro entre capoeira e
dança cênica. Observando um conjunto de criadores em dança que desenvolveram ou ainda
desenvolvem investigações artísticas com a capoeira, reconhecemos motivações que
sistematizamos como tendências. As tendências detectadas foram:
- criadores que se interessam por elementos formais da capoeira para composições
específicas, em relações estéticas momentâneas;
- criadores que se utilizam de padrões de movimento do repertório da capoeira com o objetivo
de auxiliar o condicionamento corporal e o aprimoramento técnico dos intérpretes;
- criadores que investigam dinâmicas corporais37 e relações internas38 do jogo da capoeira,
bem como seus aspectos simbólicos, com a finalidade de aplicação em processos de criação
de obras e/ou de abordagens pedagógicas de dança.

Frisamos que essas tendências muitas vezes se entrecruzam, sendo aqui aparentemente
dissociadas apenas para salientar importantes e complexas questões que cada uma carrega em
si, mostrando ainda como este fenômeno requer discussão e aprofundamento teórico para
além do escopo desta dissertação.

Dado esse passo, optamos por investigar criadores que se ocupam em utilizar a capoeira como
fonte, tanto para a elaboração textos coreográficos, como para procedimentos de ensino-
aprendizagem e de processos de criação.

Sobre isso, vale sublinhar que tais práticas – procedimentos de ensino-aprendizagem e


processos de criação – se entremeiam, apresentando-se para nós como práticas indissociáveis,
uma vez que consideramos que a criação de textos coreográficos pode apresentar-se como um
continuum de processos de criação, como pesquisas de movimentos e, ainda, como

37
Adotamos o conceito de dinâmicas corporais proposto por Domenici (2004). A autora propõe o conceito de
dinâmicas corporais ao invés de “passos” para denominar movimentos que desenvolvem uma dinâmica de
variações de padrões tônicos e de qualidades a partir de um mesmo padrão de movimento.
38
O estudo sobre relações internas refere-se a relações intersemióticas entre movimento e jogo. Assim a relação
entre corpo/ movimento e demais elementos que constituem a roda, como por exemplo, a relação com o canto,
com os instrumentos musicais e, com outros códigos que estabelecem às regras desse mesmo jogo, possibilitam a
emergência de aspectos importantes como a ludicidade, o diálogo corporal e a improvisação.
51

composições de caráter processual que se configuram enquanto experimentos compositivos


em obras semiabertas39.

Para a seleção dos criadores, priorizamos trabalhos que apresentam certo grau de
consolidação no que toca a experimentação entre dança e capoeira, intuindo que o tempo e o
amadurecimento dos respectivos trabalhos contribuiriam com mais dados para subsidiar
também a análise de modificações inerentes aos processos desenvolvidos.

Dessa maneira, foram escolhidas: Claudia de Souza (SP), intérprete, coreógrafa e diretora da
Cia Danças; e Renata Lima (SP), intérprete, criadora, diretora do Núcleo Coletivo 22 e
doutoranda em Artes pela Universidade Estadual de Campinas.

Apesar de ambas ministrarem aulas em diversos espaços e dirigirem seus respectivos


trabalhos artísticos, faz-se evidente que suas pesquisas possuem vieses diferentes. Assim, o
nicho de aplicação da pesquisa realizada por Claudia se atém exclusivamente à sua Cia
Danças, enquanto que Renata Lima, em paralelo ao trabalho artístico com o Núcleo Coletivo
22, desenvolve uma metodologia voltada para ambientes de formação em dança, que variam
desde workshops até cursos superiores.

Tais características nos motivou a efetivar um diálogo com as criadoras selecionadas, haja
vista a diversidade de espaços e ações em que as criadoras e suas respectivas pesquisas com a
capoeira transitam.

Para a pesquisa de campo reunimos prerrogativas da metodologia de estudo de caso que,


segundo Yin (2005), caracteriza sobremaneira pesquisas orientadas por questões do tipo
“como” e “por que”. Segundo o autor, são pesquisas que se ocupam em compreender e
explanar questões operacionais. Assim, destacamos a abordagem descritiva e explanatória
deste estudo na medida em que nos propomos a discutir as lógicas operativas dos processos
analisados. Consequentemente, para coleta de dados, foram aplicados métodos como
observação direta e observação participante, que, respectivamente, caracterizaram-se pela

39
Nesse sentido, Mara Guerrero (2009) discute a a improvisação como um modo compositivo em dança. A
autora explica que além de coreografias que apresentam o ensaio de determinadas estruturas, como
encadeamentos motores previamente estabelecidos, existem também composições que prevêem estruturas mais
flexiveis em relação a esses encadeamentos. Servem de exemplo, experimentos de carater processual ou obras
semi-abertas. Mara Guerreiro é improvisadora, e pesquisadora em dança.
52

observação presencial de ensaios, aula e apresentações, e pela experimentação de aulas


ministradas pelas duas criadoras. Além disso, foram realizadas consultas em documentos e
fontes extras, tais como textos e críticas sobre os trabalhos analisados.

O tipo de interação estabelecida com aqueles que constituíam o campo de análise contribuiu
para um entendimento mais pormenorizado sobre as motivações, aspectos e lógicas
correlacionadas ao tema deste estudo. Nesse sentido, este estudo foi desenvolvendo
características que nos permite identificá-lo como uma pesquisa de prática artística.

Dantas (2008), a partir das explanações feitas por Fortin (2006 apud DANTAS, 2008),
sintetiza tal pesquisa como:
[...] uma investigação que se realiza em terrenos de prática artística (ateliês, salas de
ensaio, teatros, espaços de interação entre artistas e público), buscando explicitar os
saberes operacionais implícitos à produção de uma obra ou situação artística. No
entanto, a pesquisa de prática artística nem sempre é realizada pelo próprio criador
da obra ou situação artística, podendo ser realizada por um outro artista que se
coloca como pesquisador. Nesse sentido, Fortin (2006) explica que quando um
artista procede a uma investigação sobre a prática de outro artista, ele o faz a partir
de um ponto de vista de artista e isto influencia as diversas etapas da sua pesquisa.
(DANTAS, 2008, p.3).

Contudo, os esforços em refletir e descrever não só os procedimentos técnicos adotados pelas


criadoras observadas, mas também características e redes entre os elementos e aspectos postos
em contato, e os respectivos contextos culturais das linguagens mescladas, requisitaram um
jeito particular para olhá-las. Sendo assim, a metodologia deste estudo configura-se como a
que reúne procedimentos variados.

No que diz respeito à coleta de dados, salientamos que cada trabalho solicitou uma forma de
olhar e analisar. No caso de Claudia de Souza, foram selecionados cinco espetáculos do
repertório da Cia Danças: “Jogo de Dentro” (1998), “Pares” (1999), “7 e a Mesa” (2003), “Q”
(2007) e “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008), procurando, assim, refletir de
modo mais amplo sobre traços recorrentes que se mostram significativos para a análise de sua
pesquisa artística com a capoeira. Juntamente com os textos cedidos pela criadora, tais como
releases e folders de suas produções, a observação presencial nos espetáculos, ensaios, aulas e
oficinas abertas ao público tornou-se extremamente importante para a problematização de
53

impressões iniciais sobre as configurações analisadas40. Já no caso de Renata Lima, deu-se o


acompanhamento das aulas e ensaios ministrados por ela na Companhia de Dança Balé
Folclórico de São Paulo ABAÇAI e, principalmente, em maior quantidade no Núcleo Coletivo
22, fundado em 2001, dirigido por ela e composto por oito artistas-pesquisadores de dança,
teatro e música; sendo Renata também intérprete. Além disso, recorremos à aplicação de
questionários via correio eletrônico e à consulta da sua produção bibliográfica, tais como sua
dissertação de mestrado, textos em construção para a conclusão de seu doutorado, além de
artigos submetidos a congressos.

Em ambos os casos, as entrevistas semiestruturadas e as análises de vídeos de montagens e


produções coreográficas dançadas e/ou dirigidos pelas criadoras serviram como estratégia
para complementar lacunas no entendimento sobre os procedimentos empregados e os
objetivos traçados para os processos em questão.

Vale ressaltar que esta pesquisa sofreu importantes alterações na medida em que o
planejamento inicial e até mesmo a pesquisa de campo contou ainda com o diálogo com mais
um criador: Alexandre Tripiciano (SP), intérprete, criador e professor do curso Capoeira
Angola e o processo criativo em bailarinos. Contudo, pelo tempo restrito desse estudo, e a
impossibilidade de acompanhar um número maior de suas aulas, o que, sem dúvida,
possibilitaria produzir dados mais sistematizados sobre o trabalho do criador, não foi possível
abarcar uma análise de seu processo tal como ocorreu com as demais criadoras. Ainda assim,
encontros informais, como aulas improvisadas, conversas, jam-sessions e ainda material
audiovisual de alguns espetáculos produzidos e disponibilizado pelo criador, mostraram
particularidades que ampliaram a complexidade do fenômeno investigado, enriquecendo de
forma notória as reflexões aqui presentes.

40
Pude assistir pessoalmente inúmeras vezes, tanto aos ensaios como a apresentações, três dos cinco espetáculos
da Cia Danças: “Pares”, “Q” e “7 e a Mesa”; espetáculos em temporada no mês de dezembro de 2008.
Diferentemente, foram feitas as análise dos espetáculos “Jogo de Dentro”, restritamente por vídeo, e “Adeus,
corpo gentil, morada do meu desejo”, observado somente via ensaios e posteriormente em vídeo. Ver mais
informações no Apêndice B deste estudo, respectivamente intítulado como Pesquisa de campo realizada em
dezembro de 2007, agosto e setembro de 2008.
54

2.2 CLAUDIA DE SOUZA

A trajetória de Claudia de Souza tem relação direta com o trabalho anteriormente


desenvolvido por sua mãe, a coreógrafa e professora Penha de Souza41. Além do legado de
Penha, no que tange aos estudos sobre a técnica de Martha Graham no Brasil e o balé clássico,
que sempre permearam sua formação, Claudia explicita em entrevista, sua experiência com
outras técnicas de dança desenvolvidas por renomes da dança moderna Americana42, tais
como Merce Cunigham, José Limon, Louis Falco, Lester Horton e, ainda, o Jazz Dance. A
criadora destaca também, em sua trajetória, conhecimentos em teatro e música como fator
significativo para o desenvolvimento de seu trabalho coreográfico.

Após participar como bailarina do Grupo Experimental de Dança de São Paulo, Claudia
ganha autonomia e parte para os primeiros experimentos como coreógrafa. Assim, em 1996,
funda a Cia Danças, a fim de desenvolver uma investigação de linguagem embasada na dança
moderna Americana, tendo como técnica central de investigação a técnica de Martha Graham.
Todavia, o convívio entre bailarinos da Cia Danças e capoeiristas, na Oficina Estúdio de
Dança43, que serviu de sede à Companhia, impulsionou a criadora a pesquisar um possível
diálogo entre a técnica de Martha Graham e a Capoeira.

Inicialmente, a aproximação com a capoeira se deu através de uma parceria entre a criadora e
o Professor Bartô Ferreira, capoeirista formado no grupo Porto da Barra, do Mestre
Bradesco. Os integrantes da Cia Danças, ex-alunos da Oficina Estúdio de Dança, e os
capoeiristas Bartô, Tyson e Cauê Monteiro, revezavam-se entre aulas de dança e de capoeira.
A criadora informa que, por volta de um ano e meio após o início da pesquisa, as aulas de
capoeira foram intensivas, contando inclusive com batizados e trocas de cordões.
Posteriormente, o processo foi se modificando, embora alguns intérpretes mantiveram a
capoeira como treino pessoal, ao passo que a companhia contava com treinos de capoeira cada
vez mais esparsos.

41
Penha de Souza destaca-se pela contribuição significativa na inserção da Técnica de Marta Graham no Brasil.
42
Referimos especificamente à sistematização de técnicas e inovações estéticas desenvolvidas nos Estados
Unidos a partir do início do século XX por expoentes da dança moderna. Sendo alguns destes: Isadora Duncan,
Doris Humprey, Ted Shawn, Ruth Saint Denis, Martha Graham e Charles Weidman.
43
A Oficina Estúdio de Dança, antes, Oficina Ginástica e Dança, foi a escola de Penha de Souza, sendo
posteriormente dirigida por sua filha Claudia de Souza.
55

Com a saída gradual dos capoeiristas que compunham a companhia, entre 2005 e 2007,
Claudia informa que os atuais integrantes, sobretudo os mais recentes, participam de
workshops de capoeira conforme necessidades pontualmente identificadas pela coreógrafa.

Atualmente a Cia Danças realiza oficinas, ateliês de criação e ensaios abertos como meio de
difundir aos interessados em seu trabalho, as ideias e práticas que alimentam seus processos
de criação.

Abaixo segue um sucinto histórico sobre o repertório da Cia Danças.

A estreia da Companhia ocorre em 1996 com as coreografias “Mistére” e “Miranda” no I


Encontro Latino Americano de Danza, em Miramar, na Argentina. Já em 1997, são
apresentadas duas novas coreografias: “Memórias” e “Heart-free”. Nesse mesmo ano Claudia
recebe o “Prêmio Estímulo Flávio Rangel 97” – da Funarte – para desenvolver uma pesquisa
em Dança Contemporânea, a partir da proposta do estudo da fusão entre Capoeira e Dança
Moderna, resultando no espetáculo “Jogo de Dentro”. Tal espetáculo teve a direção
compartilhada entre Claudia e Roberto Lima, e recebeu o prêmio de “Melhor Criação em
Dança/98”, dado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

Em 1999, a criadora envereda-se pelo universo das danças de casais, resultando na criação do
espetáculo “Pares”, com direção de Roberto Lage. Em dezembro de 1999, a convite do Itaú
Cultural, estreia o espetáculo “Corpo: Desejo e Consumo”, concebido especialmente para
integrar o evento “Cotidiano/Arte: Consumo”.

Em 2000, a Companhia estreia o espetáculo “Rede” e, um ano depois, dá continuidade ao


processo de pesquisa, estreando o espetáculo “Sons”, com colaboração do compositor e
performer musical Danilo Tomic.

Em 2003, estreia o espetáculo “7 e a mesa” e, após uma avaliação do que até o presente
momento havia desenvolvido, a companhia estreia, em 2006, o espetáculo “Dimensão
Oculta”, apoiado pelo Prêmio Estímulo 2005 da Secretaria de Cultura do Estado de São
Paulo.
56

No ano de 2007, a Cia Danças é novamente contemplada com a Lei de Incentivo – Fomento a
Dança da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo para a montagem do espetáculo “Q”.

Em 2008, além da estreia de “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo”, Claudia apresenta
a remontagem de alguns dos espetáculos que compõem o repertório da companhia, dentre
eles, “7 e a mesa”, “Q”, “Pares” e, mais recentemente, em 2009, “Sons” e “Jogo de Dentro”.

2.2.1 Traços e pensamentos

Para discussão sobre como Claudia de Souza traça relações entre dança e capoeira,
salientamos que a observação de seu trabalho concentrou-se especificamente nas obras
anteriormente citadas44. O acompanhamento dos respectivos processos de criação não foi
possível pelo fato de o calendário de trabalho da companhia não ser compatível com a
possibilidade de um acompanhamento efetivo. No entanto, as configurações analisadas
constituem-se como material rico de análise, pois apresentam conexões profícuas para
procedimentos compositivos que se utilizam da capoeira de modo geral.

No exercício de identificar a lógica que sustenta as obras coreográficas concebidas e dirigidas


por Claudia de Souza se faz importante discorrer, mesmo que sucintamente, sobre o
pensamento coreográfico da criadora.

A antropóloga Sylvia Faure45 (2000) discorre sobre o fato de que a Dança Cênica ocidental,
desde o surgimento do balé clássico até a dança moderna, em seu processo de sistematização,
tomou para si lógicas emprestadas da literatura e das artes visuais para pautar a composição
na dança. Destacam-se então, ideias de harmonia e lógica espacial embasadas na coordenação
criada por movimentos dentro de um agenciamento racional, resultantes por sua vez do
encadeamento sequencial de passos ordenados linearmente no tempo. Tais noções aparecem
como herança no trabalho artístico de Claudia de Souza, que tem como parte significativa de

44
São estas: “Jogo de Dentro” (1998), “ Pares” (1999), “7 e a Mesa” (2003), “Q” (2007) e “Adeus , corpo gentil,
morada do meu desejo” (2008).
45
Sylvia Faure é Diretora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Antropologia e Sociologia da
Universidade Lumière Lyon 2. Sua pesquisa está centrada em: políticas do corpo, práticas de socialização por
meio da dança profissional e amadora e práticas de lazer.
57

sua formação a técnica de Martha Graham. Contudo, em seus textos coreográficos identifica-
se também a recriação de linhas estéticas diversas.

Além dos movimentos recriados do balé clássico, da dança moderna Americana, da capoeira e
das danças de salão, percebe-se novas experiências corporais emergentes de investigações
recentes para seus últimos dois espetáculos, como conferimos em “Q” (2007) e “Adeus, corpo
gentil, morada do meu desejo” (2008).

Figura 7: Espetáculo “Q”(2007)

Figura 8: Espetáculo “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008)


58

Figura 9: Espetáculo “Q”, da Cia Danças

Para entender como ocorre a concepção das obras coreográficas produzidos pela Cia Danças,
observamos como se dá o treinamento técnico proposto por Claudia. As aulas da técnica de
Martha Graham são ministradas por uma metodologia que possibilita aos integrantes da
companhia a assimilação de sequências de movimentos e exercícios elaborados por Claudia.
Assim, pode-se afirmar que esta técnica apresenta maior destaque no treinamento da referida
companhia, seguido das aulas de balé clássico.

Durante o acompanhamento das aulas ministradas por Claudia, observamos que a capoeira
não era praticada. Assim, os movimentos que são criados a partir da mistura entre capoeira e
dança são frutos de investigações que se concentram pontualmente durante o processo de
criação de seus espetáculos. Segundo esta criadora, alguns movimentos são experenciados
primeiramente no seu corpo e/ou entre ela e alguns intérpretes, sendo em seguida transmitidos
para os demais integrantes da companhia.

Identificamos também que parte do repertório de movimentos criados se repete ao longo dos
espetáculos analisados, expressando a estabilização de uma movimentação peculiar e autoral
construída ao longo de doze anos. Dessa maneira, no caso da Cia Danças, torna-se evidente
que a Capoeira, bem como as outras fontes utilizadas para as composições coreográficas, tais
como a Dança Moderna, o Balé Clássico, o Teatro e as Danças de Salão se configuram como
um conjunto de elementos técnicos que alimentam a construção de uma linguagem cênica.
59

Dizemos linguagem cênica por observarmos que o repertório de movimentos presente nos
espetáculos não se projeta enquanto sistematização de uma técnica de dança, metodologia, ou
até mesmo em procedimentos que possibilitem que os intérpretes “manipulem” com maior
autonomia elementos e aspectos da capoeira que possam ser ressignificados. Dessa forma,
constatamos que, no trabalho de Claudia, a mistura entre dança e capoeira concentra-se nas
obras coreográficas da Cia Danças. O desenvolvimento da linguagem cênica pesquisada por
Claudia está intrinsecamente relacionado com uma dramaturgia46 que reúne aspectos e
estéticas pertencentes ao trabalho corporal de formação dos intérpretes. Como exemplo,
citamos as primeiras dançarinas e ainda integrantes da companhia, Anabel Andrés e Cristiana
de Souza, que tiveram intenso diálogo com profissionais do teatro e com dramaturgos que
dirigiram os primeiros espetáculos do repertório da Cia Danças. Ou ainda, como se observa
em todos os oitos integrantes atuais, que igualmente priorizam o aprimoramento técnico tanto
no balé clássico, como na técnica de Martha Graham.

Temos, então, a primeira questão significativa sobre as configurações concebidas por Claudia
de Souza. A pesquisa com a capoeira ocorre para compor uma mistura que, a priori, combina
traços estéticos estáveis, sendo a investigação desta linguagem realizada em decorrência do
interesse da criadora em abarcar e mesclar elementos e contornos explícitos das técnicas
reunidas. Estes contornos são combinados de modo a construir uma movimentação que se
utiliza enfaticamente de movimentos expansivos e continuamente projetados no espaço.

No que tange à utilização da capoeira, um aspecto importante para a dramaturgia


desenvolvida é o fato de Claudia recriar e coreografar constantemente jogos de capoeira.
Nestes ‘jogos’ são acrescentados o uso de expressões faciais e de gestos e códigos teatrais que
dão à movimentação um sentido narrativo. Tal argumento encontra-se diluído em todas as
suas obras coreográficas. Abaixo um release da Companhia que elucida nosso argumento:
“Q”, “7 e a mesa” e “Pares” trazem características marcantes do trabalho de criação
desenvolvido por Claudia de Souza: a teatralidade, a integração com objetos cênicos
por meio e para a criação do movimento, o jogo como eixo criador da
dramaturgia, a fusão de técnicas e linguagens, a busca de uma identidade entre
outras características que trazem a singularidade presente no trabalho do Danças
(ANEXO A - Folder da temporada 2008 da Cia Danças, grifo nosso).

46
Rosa Hercules (2004), em seu artigo Corpo e dramaturgia, discute as especificidades da dramaturgia na
dança, destacando que os modos de organização da construção dramática na dança se diferm da estrutura lógica
linear da linguagem verbal – texto e fala – do teatro literário. A autora ainda ressalta e discute alguns diferentes
protocolos e procedimentos adotados por criadores e coreógrafos. A análise da construção dramaturgica de
Claudia de Souza e a análise dos procedimentos utilizados po Renata Lima neste estudo, exemplificam a
variabilidade de recursos e e protocolos adotados para o desenvolvimento de dramaturgias peculiares.
60

Figura 10: Espetáculo “Q” (2008)

Da opção por determinada dramaturgia que se aproxima do teatro vem a ideia de construir um
corpo imbuído de carga dramática; fato que nos permite interpretar que o maior motivo de
interesse de Claudia de Souza pela capoeira está em utilizar essa linguagem como recurso
para o desenvolvimento de um corpo técnico-expressivo que dialoga com a forma como a
criadora concebe a composição e a cena. Isto porque movimentos e gestos da capoeira passam
por um tratamento que visam à composição de uma movimentação concebida esteticamente
para atender às motivações artísticas que serão precisadas a seguir.

Como pudemos conferir, através da gama de pesquisas artísticas que se interessam pelo
trânsito intenso entre dança e teatro a partir dos anos 1980, são várias as abordagens que
exploram uma expressividade dramática. Contudo, a pesquisa desenvolvida por Claudia de
Souza encontra-se fortemente relacionada com o “jeito” que a dança moderna Americana
desenvolvia ideias acerca da interpretação, encenação e representação, pois em cena é
evidenciada e enfatizada certa teatralidade, que, mesmo remodelada, se assemelha à
concepção de uma expressividade concebida e desenvolvida por Martha Graham.

Segundo Leal (2006)47, a técnica de Graham tem como premissa a codificação de sentimentos
e sensações inerentes ao homem em movimentos característicos dessa técnica. A autora ainda
explica que: “Esta abordagem corporal converge aos questionamentos colocados a respeito de
um cultivo da corporeidade integrada a si, e ao meio” (LEAL, 2006, p.1). Neste sentido, a

47
Ver mais informações sobre o assunto em: LEAL, Patrícia. Respiração e expressividade: práticas corporais
fundamentadas em Graham e Laban. São Paulo: Fapesp; Annablume, 2006.
61

movimentação proposta por Graham era construída de modo que, no processo de codificação
do impulso gerador de qualquer movimento realizado, o intérprete pudesse comunicar o
estímulo interno que o mesmo procurava exprimir, como nos mostra a seguir Leal (2006):
Graham gritava com suas propostas coreográficas: “eu sou humana”. Muitos
atribuíram críticas à dança de Graham, por esta ser uma dança “feia”, por vezes
“grotesca”. No entanto, para esta bailarina, acima de qualquer ideal, acima de
qualquer eficiência estava a expressão humana. Graham queria revelar o interior de
suas personagens, e através da respiração trouxe este contato e esta relação do
corpo interno externo. (LEAL, 2006, p.2, grifo nosso).

Essa citação reforça como a dramaturgia proposta por Claudia de Souza se aproxima do
trabalho corpóreo desenvolvido por Graham, que como observa Leal (2006) se valia de uma
elaboração contextual, criando situações adequadas para trabalhar a expressividade
relacionada à subjetividade do intérprete e à expressividade desenvolvida através de um
contexto e/ou personagem criado.

Nesse sentido, a mesma autora ainda explica que a expressividade almejada e trabalhada
sobre as premissas de Martha Graham não cumpre a função sintomática de mostrar condições
subjetivas, e sim de simbolizar um contexto criado e imaginado pelo intérprete.
[...] O coreógrafo elabora uma maneira de ver e revelar uma realidade, um
sentimento, uma sensação cinestésica. Esta maneira de ver e, portanto, de expressar
relaciona-se ao seu ser, mas não limita-se. Desta forma, o artista objetiva um campo
subjetivo. O que um dançarino expressa não é seu próprio sentimento, mas o que ele
sabe, conhece e coloca em sua obra sobre sentimentos humanos. (LEAL, 2006,
p.52).

A discussão de Leal subsidia reflexões sobre o que Claudia denomina como ‘personagens
emocionais’(sic)48. Estes ‘quase-personagens’ são elaborados pelos próprios intérpretes, que
ao longo da obras coreográficas vão emprestando para as relações cênicas interpessoais
propostas pela criadora: estímulos internos, memórias, impulsos, forma de sentir, agir e reagir
a determinadas situações.

49
O termo ‘personagens emocionais’, utilizado pela criadora, expressa um dos elementos utilizados por ela para
construir determinada dramaturgia. Estes ‘quase-personagens’ são elaborados pelos próprios dançarinos, que ao
longo da obras coreográficas vão emprestando para as relações cênicas interpessoais proposta por Claudia:
estímulos internos, memórias, impulsos, forma de sentir, agir e reagir há determinadas cenas. Na composição
desses personagens, torna-se marcante uma teatralidade resultante da investigação de métodos e pesquisas de
jogos cênicos pesquisados por Roberto Lage (diretor teatral de dois espetáculos montados por Claudia de Souza)
e desenvolvidos atualmente pela criadora.
62

Figura 11: Espetáculo “7 e a mesa”

A crítica produzida por Helena Katz (1999) sobre o trabalho de Claudia complementa esta
reflexão ao identificar no trabalho desta criadora a remodelagem de uma movimentação
embebida por códigos formais do balé clássico e, sobretudo, da técnica de Graham.

O comentário a seguir nos mostra que a ideia de dançar, questões referentes ao cotidiano, não
se restringe a um pensamento contemporâneo de dança, pois, como argumenta Katz, Martha
Graham, bem como a dança moderna em geral, também se ocupava de levar ao palco questões
que lhe pareciam essenciais ao homem de seu tempo.
Movida pelo desejo de dançar assuntos que considerava essenciais ao homem do seu
tempo, Martha Graham inventou um outro corpo para suas composições. Foi com a
moldura desse corpo que Claudia de Souza começou a pensar um dança sua, mais de
60 anos depois. A princípio, buscou o acomodamento daquela técnica em corpos de
uma cultura diversa (a nossa). Aos poucos, foi descobrindo pontos de contato ou
princípios mais gerais, entre o modo como aquela técnica se organiza e a capoeira.
(KATZ, 1999)

No entanto, pesquisas de movimento que emergem de um pensamento contemporâneo se


diferem daquelas concebidas pela dança moderna, pois, em linhas gerais, apresentam modos
operacionais e treinamentos que sejam condizentes com novas convenções estipulada por um
pensamento específico.

Considerando essa tendência, notamos que o trabalho de Claudia transita não somente pelo
legado da dança moderna Americana, como também, por atuais procedimentos em dança,
buscando a partir de um corpo imbuído por pressupostos e códigos da dança moderna, ajustar-
se a experimentos e investigações características do pensamento contemporâneo de dança. O
acesso a relatórios das atividades desenvolvidas pela Cia Danças nos indica a natureza dessas
63

investigações, destacando vivências, experimentações e seminários sobre assuntos de outras


áreas de conhecimento.

Tais procedimentos subsidiam material para que a criadora e demais intérpretes tracem
conexões que auxiliam na composição e no amadurecimento de reflexões sobre o tema que é
abordado em cada obra coreográfica.

Esse jeito de combinar recursos e procedimentos, que são recorrentes no pensamento


contemporâneo de dança com um treinamento intensivo em técnicas como o balé e Graham,
faz-nos concluir que o trabalho de Claudia com a capoeira vem para servir à construção de
uma dramaturgia que frequentemente se ocupa de temáticas como expressão de sentimentos e
anseios característicos das relações interpessoais, como veremos mais detalhadamente a
seguir.

2.2.2 Como Claudia de Souza tece tramas entre técnica de Marta Graham e Capoeira
Regional

A partir de agora adentraremos mais especificamente no modo como Claudia de Souza opera
a mistura entre o jogo da capoeira e a técnica de Martha Graham.

Comentamos anteriormente a teatralidade presente no desenvolvimento dos ‘personagens


emocionais’. Podemos pensar que a construção destes personagens é um dos procedimentos
utilizados em cena, para a criadora ‘provocar estórias’ inspiradas nas relações humanas.

O ‘tempo estendido’ de escuta e olhares entre os intérpretes é parte desse jogo cênico, e neste
caso, expressa significativamente relações propostas por Claudia entre teatro e dança.

O diálogo entre essas duas linguagens também é sublinhado por Claudia quando ela comenta
sobre sua parceria com Roberto Lage, diretor de teatro com quem partilhou a concepção dos
espetáculos “Pares” (1999), “Corpo: Desejo e Consumo” (1999) e “Dimensão Oculta” (2006).
64

“No trabalho dele [Lage], também o jogo e o foco são o principal, e talvez por isso a sintonia
tenha sido tamanha entre nós”49.

Dessa forma, a relação intensa entre os intérpretes se constrói por meio de recursos, tais como
a utilização de objetos e de jogos cênicos. Estes jogos cênicos se valem de códigos variados, a
exemplo da aproximação dos corpos e constante troca de olhares entre os integrantes.

Esses códigos se configuram, por sua vez, como regras e “deixas” para o desenvolvimento de
uma movimentação que constrói diálogos entre os intérpretes e que, por sua vez, vão
compondo quadros e cenas específicas. Neste sentido, a recriação de jogos corporais da
capoeira são artifícios cênicos recorrentemente utilizados para esses diálogos. Com isto, os
espetáculos concebidos pela criadora sugerem estórias que podem ou não ser contadas
linearmente, e que objetivam a comunicação de determinadas mensagens. Vale salientar que
outros elementos compositivos, tais como trilha sonora, objetos cênicos e luz, interferem
significativamente na construção do que a criadora explicita por “quarta parede”. Segundo
Claudia, esta parede configura-se como uma parede imaginária, que objetiva provocar o
interesse e desejo do público em partilhar uma mensagem sem que para isso, ele tenha que
interagir diretamente com os intérpretes, tal qual como ocorre com um espectador ao assistir
um filme.

Como resultante desta forma de conceber a obra, reconhecemos nas configurações analisadas
certa atmosfera espetacular, sendo algumas obras caracterizadas por maior dramaticidade,
como ocorre, por exemplo, no espetáculo “7 e a Mesa”.

O jogo da capoeira, nesse viés, é explorado como um dos jogos cênicos utilizados pela
criadora seguindo o seu interesse explícito de abordar temáticas correlacionadas às tensões e
conflitos das relações afetivas e interpessoais, assunto este que interpenetra grande parte do
repertório da companhia.
O jogo, motivo primordial presente na capoeira, é tratado como tema poético-
investigativo desde o nascimento do movimento, sua repetição e transformação nas
relações com o outro, outro-corpo, outra-dança, outra-mesa, outro-banco. O jogo
também é estratégia para compor situações inesperadas de encontros e desencontros,
acordos e desacordos, tensões e oscilações. (ANEXO A – Folder da temporada 2008
da Cia Danças).

49
Relato de Claudia de Souza transcrito do artigo: KATZ, Helena. Jovens bailarinos dançam a relação amorosa
em ‘Pares’. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 04 jun. 2008, Caderno 2 (ANEXO D).
65

A citação acima, extraída de um folder da Cia Danças, auxilia-nos no entendimento sobre a


forma como o jogo da capoeira é concebido para estreitar e contextualizar os diálogos
corporais que se constroem a partir da combinação e fluidez entre passos de dança, golpes de
capoeira e códigos e gestos teatrais, incitando no espectador a leitura de “estórias” que são
provocadas pela criadora.

Desse modo, as relações desenhadas entre os personagens emocionais vão sendo “narradas”
com a transformação do que, a princípio, poderia ser um jogo de capoeira e, no entanto,
apresentam-se como uma forma de comunicar sensações e situações que permeiam relações
interpessoais encenadas.

Percebe-se, então, que dentre os aspectos e relações internas existentes no jogo da capoeira, o
que passa a ser explorado enfaticamente nas obras concebidas por Claudia de Souza é a
encenação e a interpretação de jogos de capoeira que frequentemente utilizam-se da
espetacularidade e da virtuose. Este recurso, espécie de procedimento compositivo, passa
então a ser valorizado através da modulação de golpes, contragolpes e esquivas.

Interrompemos rapidamente esta análise para esclarecer em que consiste a ideia de


espetacularidade cênica presente na capoeira, pois este é um aspecto que nos leva a olhar para
a perspectiva artística da capoeira. No contexto da capoeira, em situação de roda, a
espetacularidade está atrelada às escolhas estéticas presentes no jogo da capoeira. São
escolhas que se exprimem por meio de gestos, atitudes e movimentos evocados a fim de
apresentar àquele que assiste a roda um jogo bonito de se ver. Ou seja, na capoeira, a
performance de cada jogador não é guiada somente por escolhas estratégicas que objetivam o
sucesso do jogador, mas também por escolhas estéticas, como se vê nos ‘floreios’, que são
movimentos realizados com o propósito de enfeitar e tornar o jogo mais atraente,
independente da eficácia do movimento enquanto golpe e esquiva.

No trabalho de Claudia, esse caráter espetacular e cênico é trabalhado predominantemente


através de jogos coreografados que se utilizam de padrões de movimentos próprios da
capoeira. Padrões que constantemente assumem o virtuosismo técnico inerente a esta prática,
sendo ainda ressignificados sutilmente para expressar relações diversas, por exemplo: de
cumplicidade, estranhamento, desconfiança e perigo.
66

Figura 12: Espetáculo “Pares” (1999)

Na Figura 12 acima vemos um dançarino realizando sobre a mesa uma ‘queda-de-rim’ –


movimento típico da capoeira. Já abaixo, na Figura 13, o dançarino realiza uma ‘bananeira’
com apoio de cabeça – outro movimento característico das rodas de capoeira.

Figura 13: Espetáculo “Pares” (1999)

Entretanto, comparando com o aproveitamento do caráter virtuosístico da capoeira, já muito


explorado em shows folclóricos, identificamos no trabalho realizado por Claudia variações no
que tange à textura dos padrões de movimento. Ou seja, a criadora modifica nos movimentos
próprios da capoeira, fatores de movimento como peso e fluência, dando aos mesmos,
nuances, intensidades e texturas diferentes.
67

Atribuímos essas variações à intenção da criadora em expressar sensações e sentimentos


através do próprio repertório de movimentos da capoeira. Assim, a criadora desenvolve uma
pesquisa corporal que modula, além das qualidades de movimento, as pausas e as intensidades
características do jogo da capoeira.

Outra importante discussão é sobre o fato deste caráter cênico da capoeira, tão explorado por
Claudia, apresentar duas importantes funções. Uma de reforçar a inserção de aspectos teatrais
coerentes com a construção dos personagens emocionais, servindo de base para ligar outros
jogos cênicos entre os intérpretes, contribuindo deste modo para aumentar a densidade
dramática das cenas; e a outra de compor em cena arabescos corporais constantes, que se
misturam com a fluidez e dinamicidade característica do jogo da capoeira. Esta última função
se dá, pois os jogos são coreografados constantemente com a intenção de ‘surpreender’ o
público, enfatizando para isso golpes e saltos de difícil execução. Nesse sentido, a exploração
do caráter espetacular e virtuosístico da capoeira regional visa, segundo a criadora, despertar
no público o estado de atenção e alerta que é vivido pelos intérpretes enquanto representam
jogos desafiadores.

Assim, destacamos a seguir alguns aspectos dos procedimentos utilizados por Claudia de
Souza:

2.2.2.1 Estado de alerta, prontidão e a encenação de jogos cênicos da capoeira

O estado de alerta e prontidão apresenta-se como qualidade importante para o intérprete, pois
se caracteriza como estado corporal no qual a percepção está mais aguçada e sensível a
perceber o que o momento presente tem a lhe oferecer em termos de possibilidades técnico-
poéticas. Além de potencializar o diálogo entre intérprete e ambiente, este estado de atenção
caracteriza-se por maior prontidão do mesmo para responder a estímulos de modo rápido e
coerente com o que ocorre em tempo real.
68

Nesse sentido, treinamentos que visam aguçar este estado de alerta são considerados
produtivos para investigações que visam romper com automatismos corporais50. Tais
automatismos se expressam desde vícios posturais presentes na execução de determinados
padrões até bloqueios que dificultam aos intérpretes a improvisação. Isto costuma ocorrer
quando se tem como principal forma de trabalho métodos mecanicistas de treinamento para
dança.

Os estudos realizados por Cleide Martins (2002) sobre a improvisação em dança trazem ricas
contribuições para este assunto, pois apresentam a ideia de que determinações e limitações
variadas inerentes à nossa condição como seres humanos vão agir sobre a processualidade dos
movimentos no tempo. Segundo ela: “O hábito constrói vícios no corpo e, portanto, o corpo
fica menos capacitado a ter o frescor das combinações novas de movimentos na situação de
improvisação em dança.” (MARTINS, C., 2002, p.102).

Reside justamente aí a argumentação de Claudia de Souza diante da pergunta feita em


entrevista, sobre o porquê da capoeira, e não outra linguagem, para o processo de mistura
realizado. Segundo ela, o estado corporal de prontidão e alerta desenvolvido no jogo da
capoeira difere do estado corporal resultante de outros jogos cênicos51 por ela utilizados,
apresentando-se como via altamente eficaz na diluição de possíveis automatismos corporais
que o intérprete desenvolve habitualmente em sua rotina de aprendizagem e aperfeiçoamento
técnico-expressivo.

Contudo, considerando que, no caso desta pesquisa artística, o jogo da capoeira é


coreografado para compor as cenas de um mesmo espetáculo, supõe-se que o estado de alerta
ressaltado pela criadora se faz distinto daquele que se processa na roda da capoeira. Em
situação de roda, o estado de alerta advém do caráter inusitado dos quais falamos
anteriormente, onde se requer do jogador percepção e resposta a inúmeros estímulos que não

50
Este automatismo corporal pode ser identificado, por exemplo, no hábito de encadear determinadas sequências
de movimentos, de forma a executá-los sempre na mesma ordem.
52
Quando relacionamos o jogo da capoeira com os jogos cênicos utilizados pela criadora, deve-se considerar a
forma como Claudia explora as emoções no dialogo corporal entre os intérpretes.
53
A roda de capoeira caracteriza-se como evento performativo. Nesse sentido, ações inusitadas e interferências
externas, ou seja, até mesmo daqueles que assistem a roda podem modificar o curso da roda. Além disso, o
canto, o toque, o jogo corporal e as interações intersemióticas entre essas linguagens se dão conforme o axé da
roda. O axé nesse contexto diz respeito à energia e ao clima que circula e é emanado na roda.
69

se limitam somente ao diálogo corporal, mas a tudo que interpenetra este evento em tempo
real52.
Levantamos então uma questão subjacente à fala da criadora e, para isso, analisamos outras
fontes53 que esclarecem tais ideias. O interesse por esse ‘estado criativo do capoeirista’(sic) –
estado de alerta – ao qual se refere a criadora, não tem relação direta com o exercício de
improvisação que ocorre no jogo da capoeira, haja vista o fato de que Claudia coreografa tais
jogos. A relação traçada pela criadora entre este estado de alerta e a improvisação em dança se
dá, portanto, no sentido de uma ‘prontidão’ necessária à comunicação e ao desenvolvimento
de uma sintonia que assegura o entrosamento preciso para a elaboração de ‘pegadas’54 e duos
muito utilizados por ela. O estado de alerta da capoeira é trabalhado pela criadora na medida
em que a mesma requer de seus intérpretes uma presteza necessária para a encenação de jogos
de capoeira que expressam a sensação de riscos e de desafios repentinos. Estes jogos são
frequentemente caracterizados por jogos rápidos e próximos, quando não aéreos.

Na Figura 14, o capoeirista Bartô executa um salto mortal.

Figura 14: Espetáculo “Jogo de Dentro” (1998)

Mesmo considerando nuanças na movimentação propostas pela criadora, esses jogos


coreografados são recorrentes e demandam constantemente dos intérpretes uma prontidão que

53
As outras fontes as quais nos referimos consistem em depoimentos da criadora transcritos por Helena Katz em
artigo publicado no Jornal Estado de São Paulo. Sobre a questão levantada ( estado de alerta e improvisação), cf.
os Anexos D e E deste estudo.
54
“Pegada” é uma gíria adotada no meio da dança, utilizado para designar diferentes maneiras de contato
corporal entre dançarinos nos quais estes partilham seus centros de gravidade, criando novas formas, apoios e
alavancas para suspender do chão seus corpos.
70

requer não somente uma percepção especial, mas também uma tensão corpórea que perdura
em sequências e frases de movimentos posteriores aos jogos, ou mesmo em todo o espetáculo.

2.2.2.2 Espirais e relações espaciais com a capoeira.

Os deslocamentos e as progressões espaciais provocados pelos intérpretes da companhia são


resultantes do enfoque que a criadora dá à ideia de preenchimento do(s) espaço(s). Por isso, as
espirais que na técnica de Graham ocorrem até mesmo em aparente imobilidade do corpo são
complementadas com as espirais feitas nos jogos da capoeira. Assim, as espirais internas
decorrentes do release-contraction parecem ser ‘ampliadas’ e projetadas no espaço por golpes
e esquivas de formas torcidas e circulares.
Se eu fizesse um ronde-de-jambe [...] não me interessou, quando eu faço uma
queixada sozinha, pé em flex, o que me interessa é quando eu sinto que o
movimento sai da bacia, quando consigo mudar meu eixo, e aquela pessoa dá uma
outra [perspectiva] [...]se você for pensar, [a lógica do jogador] na capoeira é como
você vai preencher o espaço’ e como você vai responder’. (SOUZA, 2008).

O depoimento acima de Claudia, dado em entrevista, dá pistas sobre como o seu estudo sobre
as espirais está intrinsecamente relacionado ao trabalho corporal sobre o centro de gravidade,
e também sobre a importância deste na projeção de linhas e formas que vão preenchendo e
ocupando o(s) espaço(s).

A busca da completude de movimento indicada pela criadora dialoga assim, com a


observação de Alves (2003, p.177): “Ao observarmos a plasticidade dos movimentos [da
capoeira], percebemos que os corpos vão tapando buracos, completando vazios como que
buscando sutilmente o desequilíbrio do oponente através da espiral.”

Por essas razões, a escolha das espirais existentes no jogo da capoeira converge com o
princípio técnico da espiral da técnica de Graham e, consequentemente, com o trabalho
corporal enfático do centro de gravidade ativo e ‘integrado’. Ao discorrer sobre a importância
do centro de gravidade para a realização da dinâmica espiralada do jogo de capoeira, Alves
afirma:
Observamos aqui o conceito da movimentação espiral. Exemplificando este
conceito, podemos citar o movimento da cocorinha. Nesta defesa, o corpo não
despenca levado pela força gravitacional nem retorna para uma posição ofensiva
num esforço direto e brusco. O que ocorre na cocorinha é um abaixamento do centro
gravitacional numa linha vertical coincidente com o eixo de equilíbrio corporal e
71

desta postura abaixada, o corpo pode escapar para qualquer lado, pois armazenou
uma força potencial flexível que pode tomar qualquer direção e/ou nível espacial. O
mesmo acontece com um espiral pressionado que, quando solto, expande e salta para
uma direção imprevisível. O capoeirista parece utilizar se da espiral para manter a
relação imprevisível dos corpos. Esta imprevisibilidade é extremamente excitante e
parece motivar o jogo. O movimento espiral, portanto é um esforço potencial que é
irradiado para qualquer direção como numa explosão. (ALVES, 2003, p.177).

Na técnica de Graham as tensões opostas e interligadas e a exploração dos níveis asseguram


às espirais qualidades técnico-expressivas de torção e continuidade, que também estão
intrinsecamente relacionadas com a ativação do centro gravitacional.

Essa combinação realizada por Claudia de Souza no que tange às espirais características da
técnica de Graham e da Capoeira está relacionada com o fato de a criadora ter uma tendência
a movimentos espiralados como particularidade, ou seja, como um traço característico que se
assemelha a um “engrama corporal”55. Esta tendência, por sua vez, apresenta-se como um
princípio que colabora para outro traço marcante de sua pesquisa: a intensa exploração dos
deslocamentos e projeções dos intérpretes no espaço.

Nesse sentido, as espirais contribuem para uma movimentação contínua, que mesmo com os
repetidos momentos de pausa parecem sustentar o fluxo constante de arabescos delineados
pelos corpos em movimento. Sobre isso, faz-se notável o fato de a movimentação
desenvolvida em cena ser predominantemente espiralada e indireta. Assim, esta tendência da
criadora em conceber e executar movimentos mais sinuosos se intensifica na medida em que
são imbricados passos e movimentos de dança às espirais da capoeira.

Neste caso deve-se sublinhar que a reprodução e remodelagem de movimentos da capoeira


intensificam a investigação da criadora sobre uma espacialidade que busca explorar os
deslocamentos nos diferentes níveis espaciais (alto, baixo e médio) de modo contínuo. No que
diz respeito aos níveis, saliento que a exploração desses se dá pela exploração de apoios
comumente usados na capoeira, por movimentos que recriam esses apoios, ou ainda, por
novos movimentos que se contaminam pelo princípio da continuidade existente tanto na
capoeira como nas espirais concebidas por Martha Granham.

55
Cf. nota explicativa sobre engrama na seção 1.3.2 deste estudo.
72

Vejamos a seguir mais detalhadamente, como Claudia relaciona a reorientação dos vetores
corporais tanto na técnica de Graham como na Capoeira.

2.2.2.3 Padrões de movimentos e a reorientação dos vetores corporais

Fundamental para o Danças, foi a observação de uma especial concordância entre a


capoeira e a dança moderna: um dos fatores de maior importância para conferir o
diferencial entre a dança clássica e a moderna, é o fato desta passar a assumir o peso
do corpo, em outras palavras, a dança moderna reorientou o vetor dos corpos para o
chão e para real, enquanto o clássico orientava para o ar, para a fantasia. (ANEXO B
– Texto: Sobre o Início da Pesquisa de Linguagem da Cia Danças).

Na capoeira, assim como na técnica de Graham, o centro de gravidade apresenta-se


“sustentado” por um tônus ativo. Na primeira, a aproximação do centro de gravidade com o
chão é fundamental, pois, como já dito, em situação de vulnerabilidade o capoeirista ativa por
meio do centro de gravidade um tônus que lhe permite ficar resguardado. Movimentos como a
‘negativa’, o ‘rolê’ e a ‘cocorinha’ exemplificam essa dinâmica. Com o centro ativo e os
apoios das mãos e dos pés no solo, o capoeirista ganha, então, maior estabilidade contra
quedas.

Já na técnica proposta por Graham, a cintura pélvica é a região corporal onde todo movimento
é gerado e impulsionado. Desse modo, esta região do corpo torna-se elementar para o
princípio técnico de contraction-release. Essas contrações características da técnica de
Graham são exploradas nos diferentes níveis espaciais – alto, médio ou baixo. Tal
organização corporal difere dos princípios organizativos do balé clássico, técnica que trabalha
o tronco alinhado sobre as pernas, procurando sempre uma verticalidade que nega o peso e
procura o “alto”. Com isso, entende-se que a vetorização do peso para o chão é de fato um
ponto de contato entre a Capoeira e a Técnica de Graham.

Assim, nas obras coreográficas produzidas por Claudia de Souza pode ser visto uma pesquisa
corporal que sugere uma investigação sobre como um corpo treinado na técnica de Graham se
adequa e transforma padrões de movimentos da capoeira. Mesmo tendo em comum a relação
com o chão, restam diferenças significativas entre as duas técnicas, uma vez que na capoeira a
inversão dos apoios é constante e intensa, principalmente na Capoeira Angola. Além do mais,
princípios corporais organizativos da capoeira se diferem muito do trabalho técnico da dança
73

moderna pelas relações específicas que o capoeirista experiencia em a relação ao peso


(gravidade), força, espaço e fluência.

Sobre as obras analisadas, visualizamos transformações de certos padrões de movimentos da


capoeira que tem os apoios invertidos, como, por exemplo, em um o ‘aú’ feito com o apoio
dos cotovelos, ao invés das mãos, ou o ‘rabo-de-arraia’, que é remodelado com os joelhos no
chão.

No que tange o universo da capoeira, certos movimentos como ‘apanha milho’, ou


‘cocorinha’, demonstram a relação do centro gravitacional com o solo enquanto código
cultural significativo neste contexto, cujas relações simbólicas são expressas através de uma
memória coletiva de antepassados escravizados. Esta memória – ancestralidade – expressa-se
na forte relação com a natureza e o sagrado, como observamos também nos movimentos
inspirados em animais, como por exemplo, o “rabo-de-arraia” e o “macaco”, ou ainda em
gestos que expressam o respeito a entidades religiosas.

Estas explanações nos permitem entender relações feitas por Claudia de Souza a respeito do
centro de gravidade. A criadora informa, em entrevista, associações subjetivas que ela faz
entre o rebaixamento do centro para o chão, e o ‘contato’ dos quadris no jogo da capoeira,
com uma ‘energia atávica e sexual’(sic), que conforme ela explica se faz presente na técnica
de Graham.

As associações como estas realizadas por Claudia podem dialogar, por exemplo, com o mito
do N’golo, traduzido como Dança da Zebra. Segundo Oliveira (1985) esta dança-ritual seria o
“embrião” da capoeira e se caracterizava pelo duelo viril de homens do sul da África que
disputavam durante a efundula56 a primazia de escolher suas futuras esposas.

Assim, torna-se evidente que as tramas entre Graham e capoeira, tecidas por Claudia de Souza
servem-se não somente de princípios corporais, padrões e formas, como também, de modo
mais sutil, de conexões semânticas.

56
Segundo Valdemar Oliveira (1985) efundula consiste na festa da puberdade das moças (mufucuemas) que
passam socialmente da condição de menina para a condição de mulher.
74

Relações simbólicas, metáforas e associações também fazem parte das ressignificações que
compõem os jogos cênicos de capoeira, expressando então troca intensa de sentimentos, tais
como paixão, ciúme, inveja, entrega e amor.

2.2.3 Transições e características da mistura hoje

Quando eu vejo um capoeirista fazendo os espetáculos eu percebo um vigor talvez


até maior do que os meninos possam ter agora, mas como coreógrafa e pesquisadora
corporal disso, eu tô mais satisfeita em ver o resultado corporal daquilo que eu
achava que era muito forma, que se casava bem com uma movimentação que eu
propunha, mas não era aquilo que eu queria, porque eu via muita capoeira ali[...]”
(SOUZA, 2008).

Nesta seção discutiremos mais precisamente de que maneira todas as informações já


apresentadas sobre o trabalho de Claudia de Souza foram se ajustando e se consolidando, de
modo que possamos refletir sobre os atuais traços e tendências da mistura em questão.

Veremos como a pesquisa corporal com a capoeira se desenvolveu, para que, então, possamos
refletir sobre as características da movimentação realizada atualmente pelos intérpretes da Cia
Danças.

Tal análise, apesar de estar centrada na observação de cinco espetáculos, conta com a coleta
de informações complementares em entrevista com a criadora (SOUZA, 2008), advindas de
seu processo de autoanálise. Assim, ao ser motivada a discorrer sobre o processo de pesquisa
corporal realizado ao longo de doze anos, a criadora relatou que no início de sua pesquisa
artística com a capoeira encontrou dificuldades para desenvolver estratégias que pudessem
assegurar determinadas respostas corporais de seus intérpretes. Estas respostas eram, no
entanto, necessárias para o desenvolvimento de suas ideias coreográficas. Nesse período, os
intérpretes integrantes de sua companhia possuíam formações heterogêneas, sendo alguns
capoeiristas e outros dançarinos.
[...] naquela época era assim que eu coreografava, ainda com elementos corporais
conhecidos do capoeirista, porque ele [o capoeirista integrante da companhia]
também tinha um repertório limitado de entendimento corporal da dança assim
como a gente tinha da capoeira. (SOUZA, 2008).

Essa questão sugere a hipótese de que, à medida que a aproximação entre as linguagens se
intensificava, começavam a ficar evidentes também as “faces dessemelhantes”, pois, naquele
75

período, a criadora diz ter identificado pontos de discordância entre o corpo especializado na
capoeira e o corpo dos dançarinos com os quais trabalhavam.

Sobre isso, Claudia explica que nos corpos daqueles capoeiristas que integravam sua
companhia estavam presentes tanto o estado de alerta, que a interessava, quanto
automatismos, para ela indesejáveis, que lhes dificultavam criar movimentos diferenciados
daqueles que fazem parte do repertório da capoeira.

Entende-se que esses automatismos estão relacionados à forma quase instantânea do


capoeirista captar e traduzir estímulos em movimentos eficazes e precisos de entrada e saída,
ataque e contra-ataque. Estes automatismos se caracterizam então por respostas que em
situação de jogo tornam-se imprescindíveis como estratégia para a permanência do capoeira
no jogo, principalmente quando este assume o caráter de luta. No entanto, segundo a criadora,
esta prontidão muscular era incompatível com o ‘estado de abandono’(sic) sugerido pela
mesma. “A capoeira regional por ser muito explosiva, eu não conseguia oposição a isso, nem
em relação à angola, eu não consigo chegar num estado de abandono” (SOUZA, 2008).

Mesmo considerando que certas capoeiras enfatizam uma dinâmica corporal mais stacatta e
explosiva, deve-se ponderar que a descrição feita por Claudia sobre esta qualidade muscular
não abrange a variedade de dinâmicas e intensidades existentes no jogo corporal da capoeira.
Então, com parcimônia, deve-se considerar que esta qualidade aludida por Claudia de Souza
era uma característica daqueles capoeiristas com quem trabalhava, sendo possível identificar
em outros capoeiristas fluxos e intensidades variadas.

Todavia, considerar esta dificuldade exposta por Claudia de Souza nos faz refletir sobre
questões atreladas a comportamentos e atitudes, conscientes ou não, que podem interferir
significativamente no processo criativo. Sobretudo, evidencia que cada treinamento corporal
serve à finalidade específica para qual foi criado.

Alves (2003), ao discutir as percepções experenciadas no jogo da capoeira como forma de


alimentar processos artísticos em dança, diz: “A prática e o treinamento facilitam a abertura
do corpo a este limiar poético da movimentação, mas não garantem a priori esta experiência
artística, esta só pode ser sentida se o capoeirista se deixar levar para além da movimentação
técnica” (ALVES, 2003, p.177). Por isso, entendemos ser relevante grifar o fato de a mistura
76

proposta por Claudia ocorrer inicialmente através do dialogo entre capoeiristas e dançarinos;
duas classes que apresentam traços culturais particulares, que, por sua vez, decorrem de
lógicas não díspares, mas sim peculiares de trabalhar e vivenciar o corpo.

Sendo assim, inicialmente, a mistura proposta por ela diferenciava-se de modo significativo
de uma mistura em que ambas as linguagens se cruzam em um só corpo. Por esse raciocínio,
Burke (2006) esclarece, ainda mais, como trocas culturais que põem em contato sociedades,
grupos ou indivíduos de culturas distintas apresentam maiores engastes.
Sempre que ocorre uma troca cultural, podemos falar metaforicamente de uma “zona
de comércio”, como o faz o historiador da ciência Peter Galison em um estudo do
que ele chama de “subculturas” da física do século XX, no qual descreve estas zonas
como espaços onde “dois grupos dessemelhantes podem encontrar uma base pra o
entendimento mútuo”, trocar itens ao mesmo tempo em que discordam sobre a
importância do que é trocado. Que a troca possa ter significados diferentes para os
diferentes grupos envolvidos é uma questão importante que reaparece em outros
campos de pesquisa [...] (BURKE, 2006, p.70).

A situação experimentada por Claudia expressa uma singularidade de seu processo, alertando-
nos para a importância da investigação e criação de estratégias que possam instrumentalizar o
intérprete a perceber e engendrar diferentes tipos de padrões, sejam estes tônicos, posturais,
ou de movimento, através de dinâmicas variadas, presentes tanto na capoeira como na dança.

A dificuldade detectada pela criadora ressoava por meio de formas distintas. Assim, em “Jogo
de Dentro” e “Pares”, é possível notar mais facilmente a dissociação entre as sequências e
movimentos característicos da capoeira e as sequências elaboradas a partir de codificações
advindas das técnicas da dança moderna e clássica. Nestes dois espetáculos verificam-se,
além de momentos solos, agrupamentos em duos, trios ou conjunto que eram formados de
modo a reunir aptidões e habilidades específicas, destacadas tanto em jogos de capoeira como
em sequências específicas de dança.

Dessa forma, as diferentes maneiras de se movimentar, tanto dos capoeiristas como dos
dançarinos, eram “filtradas” pelo olhar da criadora, que dirigia tendências e restrições
apresentadas pelos integrantes para chegar a determinados objetivos, tanto no que dizia
respeito à movimentação idealizada, como também no que dizia respeito à concepção de seus
espetáculos. Como exemplo, citamos o fato de que em “Jogo de Dentro”, o primeiro
espetáculo desenvolvido dentro da sua pesquisa com a capoeira, vê-se com mais frequência
jogos “fechados”, ou seja, com poucas transformações.
77

[...] corporalmente falando era muito sem significado, uma entrada, uma queixada,
uma rasteira... Agora quando eu faço com Junior [dançarino de formação] é
diferente, eu faço uma entrada, a gente se enrola aqui, e eu faço uma outra coisa que
é quase uma rasteira, mas é a resposta dele. [...] Agora eu posso dar essa
desconstruída e achar uma coisa que signifique mais entre uma queixada e um
ronde-de-jambes, e o pé em flex não faz a menor diferença. (SOUZA, 2008).

Contudo, na análise de “7 e a Mesa”, o terceiro espetáculo relacionado à pesquisa com a


capoeira, diferentemente dos espetáculos anteriores, percebe-se, além das recorrentes
gradações de movimentos oriundos desta linguagem, uma composição mais integrada,
contínua e fluida de movimentos que fundem formas e “passagens” da capoeira com uma
movimentação sinuosa bastante característica no trabalho de Claudia. Esses dados sugerem
que a modificação da movimentação até então pesquisada é também estratégia adotada pela
criadora para “harmonizar” os pontos vistos por ela como divergentes. Esta mudança,
segundo Claudia, tem início em 2003, período em que a criadora diz haver maior
adaptabilidade dos integrantes da companhia (capoeiristas e dançarinos), com a
movimentação proposta por ela. Não obstante, a pesquisa de movimento a partir de padrões e
elementos da capoeira parece ganhar maior autonomia nos últimos espetáculos, “Q” (2007) e
“Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008), pois mostram ocorrências que vão se
estabilizando por meio de formas e padrões específicos.

Sendo assim, faz-se importante ressaltar que entre 2005 e 2007 a formação da companhia foi
alterada com as saída de integrantes capoeiristas e a entrada de outros dançarinos. Sendo
assim, a companhia hoje é composta por indivíduos que possuem o mesmo tipo de
treinamento nas técnicas da dança moderna e do balé clássico e que apreendem uma mistura
com a capoeira já processada pelos integrantes mais antigos que ainda dançam na companhia.

Ademais, fluências e traços estéticos advindos do balé clássico aparecem de modo mais
homogêneo como pano de fundo desta mistura, devido o fato desta técnica corresponder a
uma formação comum entre os atuais intérpretes. Esse fato nos permite inferir que as
informações extras que despontavam nos corpos dos capoeiristas não se apresentam mais
como um “engaste a ser resolvido” para o desenvolvimento da movimentação característica
de hoje.

No entanto, percebemos que essas mudanças foram gradativas e não apresentaram a exclusão
de estados iniciais ou de traços que caracterizam certo estado da mistura. Sobre isso,
78

Gruzinski (2001) nos alerta que, diferentemente da ideia de encadeamento, sucessão ou


substituição, os sistemas mestiços (ou até mesmo aqueles que tencionam hibridações) podem
manifestar comportamentos flutuantes entre diversos estados de equilíbrio. Ou seja, estados
ou ações que caracterizam, por exemplo, uma “etapa inicial”, podem voltar a ocorrer em um
estágio mais avançado da hibridação.

Esse entendimento é aplicável à Cia Danças, na medida em que nos últimos dois espetáculos
dirigidos por Claudia, “Q” (2007) e “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008),
fazem-se perceptíveis a recorrência de traços que permeiam os espetáculos anteriores e de
traços que denotam intensa transformação, como por exemplo a consolidação de uma
qualidade de movimento mais sinuosa e arredondada.

Outra significativa variante deste processo diz respeito a escolhas estéticas preenchidas por
procedimentos compositivos que dão sinais de experimentações iniciais nos primeiros
espetáculos. Em “Jogo de Dentro” (1998) e “Pares” (2003), este último ambientado e
constituído pluralmente pela capoeira e por danças sociais (como o samba de gafieira e o
forró), pudemos verificar movimentos e elementos mais representativos que explicitavam,
inclusive, estórias diretamente atreladas ao universo popular, logo com cruzamentos mais
diretos com o universo da capoeira.

Essas observações denotam que a Cia Danças, atualmente, apresenta maior autonomia ao
rumar para espetáculos construídos com ambientações muito diversas, como ocorre em “Q”
(2007) e “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo” (2008), apresentando, paulatinamente,
ressignificações mais subjetivas57.

Como consequência natural de um processo de experimentação e reconhecimento dos padrões


da capoeira, a pesquisa corporal realizada por Claudia apresenta contínuas modificações na
forma como a capoeira aparece em cena. Assim, observamos que os jogos compostos por

57
Na obra “Q”, o tema abordado é o calor, dessa forma são explorados os estados fisícos e sensoriais que os
corpos experimentam em decorrência desse fenômeno fisíco e químico. Portanto, a dramaturgia do espetáculo
propõe momentos mais investigativos e intimistas entre os intérpretes através de uma narrativa mais neutra,
abstrata e subjetiva. Já em “Adeus, corpo gentil, morada do meu desejo”, o tema central é o desejo, onde a
dramaturgia desse espetáculo intensifica o contato entre os intérpretes, tornando os artífícios e os elementos
cênicos que geralmente remetem ao ambiente popular da capoeira e das danças sociais ausentes – e para essa
temática dispensáveis. Em ambos os espetáculos, a movimentação da capoeira é que tece a mistura entre dança
moderna e capoeira.
79

golpes e acrobacias caracterizados por grande destreza, agilidade, força e prontidão muscular
vão dividindo espaço mais frequentemente com uma movimentação mais fluida e
arredondada. Isto se torna mais evidente principalmente nos últimos dois espetáculos
referidos acima, nos quais a simulação de jogos da capoeira, tal como ocorrem no contexto
primeiro da capoeira – roda –, ganha matizes e apresenta gradativamente ressignificações
diversas no que tange aos apoios e às dinâmicas utilizadas pelos intérpretes. Contudo, vale
ressaltar que, na pesquisa realizada por Claudia, o uso de padrões de movimentos da capoeira
é de suma importância para explorações coreográficas que investem em novas formas de se
movimentar, sem que para isso a criadora negue códigos formais presentes nos movimentos
executados. Em outras palavras, sem que a desconstrução da forma seja o objetivo primeiro
da criadora. Nossa leitura é ratificada pela criadora ao dizer que: “Eu não estou mesmo
preocupada em desconstruir, eu não estou preocupada nem em desconstruir, nem em negar os
códigos formais [...] às vezes eu preciso de uma quinta posição [de balé] e eu faço uso dela.”
(SOUZA, 2008).

Ademais, é através dos padrões de movimentos da capoeira que a criadora efetiva alguns
pontos de contato entre os princípios técnicos já discutidos neste estudo, tais como prontidão,
reorientação dos vetores corporais, espirais e a exploração da espacialidade. Com isso, não se
pode dizer que não exista no trabalho em questão certa desconstrução, mas sim, que esta
desconstrução se assemelha a processos de remodelagem e ou ressignificação de elementos
que compõe determinado padrão. Em outras palavras, no referido processo da mistura, certos
contornos são preservados, como se vê, por exemplo, em elementos estruturais que
formalizam o movimento e dão ao expectador referenciais sobre a procedência daquele
código corporal.

Para melhor exemplificar a questão, pensemos na ressignificação de um ‘rabo-de-arraia’ que


modifica sua dinâmica e intencionalidade, mantendo, no entanto, pontos estruturais desse
movimento, a exemplo do trajeto de uma das pernas no ar e o apoio sobre as mãos.

A modificação de certos aspectos e a manutenção e cristalização de outros, nos espetáculos da


Cia Danças, vão tecendo gradações sutis em uma plasticidade mais fundida e diluída, que
junta, combina e sobrepõe – aleatoriamente – capoeira e dança, dança e capoeira.
80

2.3 RENATA LIMA

Na trajetória de Renata Lima evidenciam-se atividades voltadas para estudos da cultura


popular. Como informa a profissional, sua formação artística perpassa as áreas da “Dança
Negra Contemporânea”58, Consciência Corporal, Expressão Corporal, Improvisação, Capoeira
e Arte-educação. Enquanto dançarina, destaca-se sua participação na Cia. de Dança Negra
Contemporânea Bata kotô, dirigida por Firmino Pitanga, e no ABAÇAI – Balé Folclórico de
São Paulo.

Bacharel e licenciada em Dança pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),


Renata conclui em 2004 a dissertação de mestrado intitulada Mandinga da rua: a construção
do corpo cênico a partir de elementos da cultura popular urbana, sob orientação do Prof. Dr.
Eusébio Lôbo da Silva. Atualmente Renata dá andamento à sua pesquisa de doutorado
intitulada: Capoeira Angola e Sambas de Umbigada no processo de criação em Dança
Brasileira Contemporânea, no mesmo Programa de Pós-graduação em Artes, sob orientação
da Profa. Dra. Sara Pereira Lopes e Co-orientação de Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos.

A referida pesquisa propõe-se discutir a sistematização de uma metodologia voltada para o


intérprete-criador, com vistas em um processo de criação no que ela denomina de “Dança
Brasileira Contemporânea” (DBC). Renata Lima explica que este termo pode ser pensado,
produzido e pesquisado a partir de diferentes motivações e identificações, tendo como eixo
comum a pesquisa sobre a cultura popular brasileira.

No entanto, em sua metodologia, Renata (no prelo) explicita que o estudo sobre a herança
cultural africana se expressa, entre outras práticas, na ‘corporeidade’59 de capoeiristas e
sambadores observados por ela na cidade de São Paulo.

58
Apesar de adotar o termo “Dança Negra Contemporânea”, Renata Lima problematiza em entrevista sua
ineficácia pelo fato deste dificultar a localização territorial de determinada configuração de dança, uma vez que
existem “danças negras” em todos os continentes. Em linhas gerais, a dança a qual Renata se refere ao usar o
termo é caracterizada por traços das danças dos orixás dos terreiros da Bahia e de outras influências de danças
africanas com forte referência na dança moderna estadunidense.
59
O termo ‘corporeidade’ não é escolha nossa – é utilizado pela própria Renata Lima para falar de seu trabalho.
Embasada no argumento de Le Breton (2007) a autora expõe seu ponto de vista sobre a corporeidade como
fenômeno que ocorre no corpo por meio da corporificação de uma identidade emaranhada por lógicas culturais e
sociais de determinado contexto social, cultural e histórico. A pesquisadora Lenira Rengel (2003) elucida que a
ideia de corpo enquanto lugar (campo) traz consigo a perspectiva desenvolvida pela Fenomenologia sobre o
corpo como lugar onde se tem acesso aos fenômenos do mundo. Entretanto, entendemos que estudos das
81

Como diretora artística, Renata vem dirigindo o Núcleo Coletivo 22, fundado em 2001,
caracterizado pela reunião de artistas pesquisadores da dança, teatro e música que realizam
investigações sobre a cultura popular.

Mesmo sendo notório que o referido Coletivo constitui importante interface com o seu
doutorado, vale a ressalva de que as ações produzidas neste grupo não são em si o objeto de
estudo do doutorado da criadora, uma vez que sua metodologia é desenvolvida primeiramente
visando a perspectiva pedagógica e a formação do dançarino. Nesse viés, Renata vem
recentemente aplicando sua metodologia como professora da disciplina Dança e Cultura
Brasileira, do curso de Dança da Universidade Anhembi-Morumbi, em São Paulo.

Segue um sucinto histórico sobre as obras produzidas pelo Coletivo Núcleo 22.

A estreia do Coletivo Núcleo 22 ocorre com a apresentação do trabalho de conclusão de curso


de Ively Mayume Viccari e Renata Lima – “Em qualquer lugar” (2001). A montagem é
orientada por Zúlia Ziviani e Holly Cravell.

Já em 2002, o Coletivo estreia “O Desvio da Serpente”, resultante do processo de criação do


trabalho de mestrado em Artes (UNICAMP) de Laura Pronsato, com direção de Ively
Mayume Viccari, e interpretado por ela própria, Renata Lima e Laura Pronsato.

Em 2004, como fruto da pesquisa de mestrado sobre a construção do corpo cênico a partir de
elementos técnicos da capoeira e a poética do Movimento Hip Hop, Renata Lima apresenta o
trabalho “Mandinga de Rua”, coreografia interpretada por ela e Juliana Klein. No mesmo ano,
Renata Lima dirige o duo criado e interpretado por Carolina Laranjeira e Juliana Klein, “De
folhas, águas, e pedras”.

Ainda enquanto atriz e coreógrafa, Renata Lima participou do espetáculo “Quando as pernas
fazem Miserê: uma homenagem ao Mestre Pastinha” (2005), patrocinada pela Petrobrás.

Em 2007 estreia o “Baio”, fruto da pesquisa de iniciação científica realizada por Juliana
Klein, orientada pela Profa. Dra. Inaicyra Falcão dos Santos. Esse trabalho foi dirigido por

ciências cognitivas avançam nessa discussão ao propor o corpo como operador cognitivo e não como lugar
aonde ocorre as interações de informações externas.
82

Renata Lima e construído a partir da metodologia sistematizada pela mesma (dentro do que
ela denomina Dança Brasileira Contemporânea – DBC).

Além disso, atua frequentemente como preparadora corporal, como foi o caso de sua
participação em trabalhos como “Mãe-da-água”, da Cia RodaMoinho; “Sabenças: a presença
africana na alma brasileira”, do grupo Pé de Palavra, dirigido por Regina Machado; e
“Baquenautas: de bonde pelo Brasil”, da Cia. de Artes do Baque Bolado, co-dirigido por
Renata Lima em parceria com Leandro Medina.

2.3.1 Traços e pensamentos

Para adentrar na análise da pesquisa desenvolvida por Renata Lima ressaltamos que esta se
configura como parte de seu doutorado em andamento. Assim, verificamos que a
sistematização de certas estratégias metodológicas aplicadas é constantemente repensada e
reajustada, sempre que necessário, aos diferentes espaços nos quais a criadora articula sua
investigação.

Dessa maneira, os procedimentos empregados são constantemente revistos pela criadora com
o intuito de instrumentalizar os intérpretes em contato com a metodologia, nos textos culturais
da Capoeira Angola e dos sambas de umbigada.

Com isso, certos conceitos utilizados por Renata, e aqui discutidos, devem ser entendidos
como conceitos em desenvolvimento. Todavia, ressaltamos que parte desses conceitos já eram
esboçados em sua dissertação de mestrado, a qual pode ser considerada como um primeiro
passo na sistematização de vivências, dinâmicas e métodos que a mesma utilizava para a
montagem coreográfica “Mandinga de Rua”.
83

Figura 15: Montagem Coreográfica “Mandinga de Rua” (2004)

No atual estágio da pesquisa, a criadora, além de aprimorar procedimentos advindos de seu


estudo de dança e de capoeira, acrescenta em sua formulação metodológica princípios,
elementos e aspectos presentes em quatro tipos de sambas de umbigada60: Jongo, Batuque,
Tambor de Crioula e Samba de Roda. Sobre isto, vale salientar que os estudos sobre estas
danças mostram-se como resultado de seu interesse em aprofundar seus conhecimentos sobre
o universo da cultura popular, antes mesmo do seu ingresso no curso de graduação em Dança.

Complementar à sua formação enquanto dançarina, Renata Lima apresenta vivência em


capoeira há aproximadamente dez anos, sendo em grande parte desenvolvida dentro do grupo
Angoleiro Sim Sinhô, de Mestre Plínio, em São Paulo. Somado a essas experiências,
destacamos o convívio da criadora em espaços comunitários da cultura popular.

Esta trajetória profissional explica algumas ideias que norteiam seu trabalho, como pudemos
constatar no incentivo dado por ela para que os artistas com quem trabalha desenvolvam
interpretações corporais particulares em resposta às imagens, comandos verbais e jogos
propostos por ela. Essa forma de ensinar sugere conexão com valores presentes nas danças
populares, onde cada brincante emprega sua singularidade na forma de se movimentar. Tais
dados dão sentido à adoção de estruturas flexíveis existentes nas vivências, dinâmicas e jogos

60
Renata Lima esclarece na tese de doutorado em andamento (SILVA, R., no prelo), que o complexo de sambas
de umbigada, por ela pesquisado, agrupa algumas danças de diferentes estados do pais que se fazem presente na
abordagem classificatória de Edson Carneiro (1961 apud SILVA, R., no prelo) por ela adotada. Não obstante, a
criadora explica que este tipo de samba caracteriza-se por manifestações que contam com a presença da
umbigada, ou, menção desse gesto.
84

que compõem a sugestão de metodologia proposta por Renata Lima, fato que nos permite
diferenciar os procedimentos utilizados pela criadora de outros métodos e técnicas de dança,
caracterizados por certa rigidez.

Sobre esse aspecto, faz-se notável o fato da formação da criadora ser embasada em um
pensamento contemporâneo de dança e, ainda, obter vestígios de relações anteriores com
pesquisas desenvolvidas por profissionais que igualmente estudam releituras e modos de criar
a partir das danças populares61. Graziela Rodrigues62, Inaicyra Falcão63 e Eusébio Lôbo da
Silva64 foram todos seus professores, por exemplo. Além disto, verificamos a utilização e
investigação de conceitos e ideias que advêm dos estudos realizados por Eugênio Barba e
Luís Otávio Burnier65 e que são exploradas no treinamento do Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da Unicamp (LUME), onde Renata participou de vivências e workshops66.

A mistura de princípios existentes nas abordagens corporais citadas acima para a


sistematização da pesquisa prática de Renata encontra-se, por sua vez, entrelaçada com o

61
Conferimos estas influências em registro teórico realizado pela própria criadora, que destaca a contribuição de
disciplinas ofertadas no seu curso de graduação em dança pela Unicamp, tais como: Danças Brasileiras
(atualmente Danças do Brasil), Técnicas de Dança e Expressão e Movimento e Capoeira aplicada a composição
coreográfica.
62
Graziela Rodrigues é Professora do Departamento de Artes Corporais da Unicamp e criadora do método BPI –
Bailarino-Pesquisador-Intérprete. Em síntese, este método propõe que o criador-intérprete crie a partir de um
trabalho corporal motivado pela interrelação dos registros emocionais próprios do intérprete, que emergem no
contato com fontes da cultura popular
63
Inaycira Falcão dos Santos (co-orientadora do trabalho de doutorado de Renata Lima) é Doutora em Educação
pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Livre-Docente na área de práticas Interpretativas/ Danças do
Brasil é também docente do Departamento de Artes Corporais do Curso de Pós-Graduação em Artes –
IAR/Unicamp.
64
Eusébio Lôbo da Silva (orientador na graduação e no mestrado desenvolvido por Renata Lima), como já dito, é
discípulo direto de Mestre Bimba (Mestre Pavão) e Professor Livre-Docente do Departamento de Artes
Corporais e do Curso de Pós-Graduação em Artes-IAR da Unicamp.
65
Luís Otávio Burnier (1956-1995), ator e diretor, estudou com Etienne Decroux, trabalhou com Eugenio Barba,
Philippe Gaulier, Jacques Lecoq, Ives Lebreton, Jerzy Grotowski e com mestres do teatro oriental (Nô, Kabuki e
Kathakali). Após essa experiência, retornou ao Brasil com a ideia de criar um centro de pesquisa da arte de ator,
que combinaria o conhecimento adquirido na Europa com elementos da cultura brasileira. Assim surgiu o
LUME.
66
Renata explicita em seu estudo de doutorado (SILVA, R., no prelo) que treinos pontuais com o LUME
serviram como fonte para o desdobramento de vivências e dinâmicas que vem elaborando.

66
A diluição de categorias como coreógrafo e bailarino apresenta-se como uma convenção atual bastante difusa
no âmbito da dança. Porém, percebe-se que o entendimento da criadora sobre esta questão apresenta ainda,
vínculo com alguns princípios que tornara-se significativos para a sistematização de sua metodologia e que
dizem respeito ao método BPI (Bailarino Pesquisador Intérprete) formulado por Graziela Rodrigues. Em síntese
este método propõe que o criador-intérprete crie a partir de um trabalho corporal motivado pela inter-relação dos
registros emocionais próprio do intérprete que emergem no contato do mesmo com fontes da cultura popular.
85

entendimento que a criadora tem sobre o intérprete como criador e pesquisador67. Por isso, a
autonomia dada ao dançarino explica como a reunião de exercícios elaborados por Renata
conduz a pesquisas corporais de grande teor investigativo.

Na Figura 16, vemos um momento de aquecimento e alongamento do Núcleo Coletivo 22.

Figura 16: Encontro do Núcleo Coletivo 22 - ‘Dança das articulações’ (sic)

A forma de entender e trabalhar com o intérprete subsidia, então, a proposta de colaborar para
o desenvolvimento de corporeidades, neste caso, entremeadas por reelaborações de elementos
e princípios da capoeira, dos sambas e de artifícios compositivos recorrentes em abordagens
contemporâneas de dança. Como exemplos desses artifícios compositivos, indicamos a
exploração de estados corporais e o uso de jogos e improvisações.

Nessa direção, identificamos, ainda, na mistura operada por Renata Lima, certa ênfase de
princípios existentes na prática da capoeira e no treinamento corporal proposto pelo LUME.
Sendo assim, a ideia de corpo-subjétil, conceito proposto por Renato Ferracini (2006), ganha
importante espaço no estudo teórico que embasa sua prática.
É a busca desse corpo-subjétil construído, ou (re)construído a partir do corpo
cotidiano que faz que cada ator, dentro da proposta de trabalho do Lume, tenha sua
própria técnica pessoal e única. Assim como cada um, através de sua história de
86

vida, singular e social possui uma maneira particular de agenciamento


corporificação e atualização dessas vivências, criando para si seu próprio corpo
cotidiano, cada ator, na (des)construção e (re)construção do corpo cotidiano,
possuirá também seu próprio corpo-subjétil, transbordando ações físicas pessoais e
únicas, criando, dessa forma, uma técnica (tekhné) pessoal de atuação que somente
existirá em sua forma plena no momento da cena. (FERRACINI, 2006, p. 150).

Segundo Ferracini (2006) corpo subjétil refere-se a um processo de desterritorialização do


corpo cotidiano, que cria linhas de fuga neste mesmo corpo para recriar relações de poder,
dobras e memórias que dimensionam o corpo cotidiano. Portanto, Renata Lima pensa este
corpo subjétil a partir da Dança Brasileira Contemporânea, ou seja, a partir da investigação de
um corpo que dialoga com a cultura popular, e que neste caso apresenta, como todo corpo
cotidiano, agenciamentos de uma memória coletiva e social expressiva. Assim, percebe-se
que o manancial de elementos e símbolos da capoeira pesquisados pela criadora constitui-se
apenas como uma parte que compõe processo o criativo sugerido por ela, sendo igualmente
valorizados o reconhecimento e o desenvolvimento de ações que caracterizam a participação
dos brincantes, tanto no universo da capoeira como no universo do sambas; principalmente,
no que se refere à forma de agir nas práticas ritualísticas desses dois textos da cultura.

Vejamos adiante como esse pensamento é desenvolvido na pesquisa desenvolvida pela


criadora.

2.3.2 Como Renata Lima tece tramas entre dança e capoeira angola

Após explanar sobre o entendimento de Renata Lima sobre dança e corpo, entende-se que o
trabalho corporal proposto por ela converge para a ‘construção’ de um corpo que “transborda”
em cena sua dimensão social e cultural, justapondo à preparação corporal, lógicas e valores
que observamos nos capoeiras e sambadores. Dessa forma, a ideia da criadora de que a
convivência em campo, o contato com capoeiristas e com os mestres são fundamentais e apresentam-
se como estratégias produtivas e complementares ao trabalho desenvolvido por ela para o
processo de apreensão desses códigos (SILVA, R., no prelo).

Por isso, a elaboração das vivências, dinâmicas e jogos elaborados por Renata encontram-se
preenchidas por códigos, formas e aspectos que podem levar o intérprete a experimentar
envolvimento, estrutura e jogo. Qualidades estas que Renata identifica como três elementos
87

comuns à capoeira, aos sambas de umbigada e aos demais procedimentos que ela utiliza. A
maneira como Renata pensa esses elementos, é descrita a seguir.
O envolvimento diz respeito à maneira com que cada indivíduo se coloca e participa
do evento (concentração, responsabilidade, papel, identificação, crença, respeito); a
estrutura diz respeito aos códigos gerais e também à técnica e forma dos
movimentos; e o jogo, que é a própria interação entre envolvimento e estrutura, diz
respeito às relações (entre brincantes, brincante e movimento/voz, entre brincantes e
música, brincante e elementos do ritual). Vale frisar que o jogo, conceito importante
no âmbito dessa discussão, deve ser compreendido como conceitua Roger Callois
(1967), como uma ação ou uma atividade voluntária, realizada dentro de
determinados limites fixados de tempo e de lugar, de acordo com uma regra
livremente aceita, mas imperiosa, provinda de um fim em si mesma, acompanhada
por um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser algo diferente da
vida corrente. E, também, como o exercício da liberdade no seio do próprio rigor,
como coloca Johan Huizinga (2001). (SILVA, R., no prelo, grifo nosso).

Em entrevista, Renata complementa dizendo que o envolvimento está, segundo suas


observações, relacionado a comportamentos e atitudes que expressam um “engajamento”
peculiar do jogador no universo ritualístico da Capoeira Angola. Sendo assim, a identificação
de aspectos correlacionados ao envolvimento, como concentração, identificação, crença e
respeito, sugere que nesse processo de criação o jogador, ou neste caso o intérprete, apreende
códigos culturais que se alimentam historicamente de subtextos expressivos, a exemplo da
ancestralidade e da tradição.

O envolvimento somado à estrutura e ao jogo se faz, segundo Renata Lima,como uma via
para incitar um ‘corpo limiar’68, que, por sua vez, constrói-se em uma zona de
entrecruzamentos de realidades e temporalidades distintas, como conferimos a partir de suas
palavras:
O corpo limiar é o próprio corpo da encruzilhada, entre o passado e o presente, o
sagrado e o profano, o eu e o outro. É o corpo que se move, brinca, dança, canta e
recria a história [...] Isto é, a partir da assimilação da memória coletiva, dá corpo a
herança cultural negro-africana no Brasil. [...] Além do mais, o corpo limiar da
capoeira e dos sambas de umbigada, no devir presente-passado, atualiza
identificações corporais herdadas de um processo histórico de fuga e dobra de poder,
representada na manobra cultural que foi a instalação e permanência da cultura
bantu na cultura popular brasileira. (SILVA, R., no prelo).

De acordo com esse pensamento, a zona denominada de encruzilhada é responsável por


produzir no corpo identificações culturais advindas de uma memória coletiva, bem como suas

68
O conceito de corpo limiar é gerado a partir de relações teóricas feita pela autora no seu doutorado em
andamento. Ver mais referências em: MARTINS, Leda Maria. Afrografia da memória: o Reinado do Rosário
no Jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.
88

respectivas estruturas e regras, propiciando então, neste ‘território poético’, a recriação de


aspectos que compõe os universos que ali se entrecruzam.
A encruzilhada, lócus tangencial é aqui assinalada como instância simbólica e
metonímica, da qual se processam vias diversas de elaborações discursivas,
motivadas pelos próprios discursos que a coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da
performance, é o lugar radial de centramento e descentramento, interseções,
influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergências,
unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e de
discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz de produção, as noções
de sujeito híbrido, mestiço e liminar, articulado pela crítica pós-colonial, podem ser
pensadas como indicativas de efeitos de processos e cruzamentos discursivos
diversos, intertextuais e interculturais. (MARTINS, L. 1997, apud SILVA, R., no
prelo).

Entendemos que a descrição acima se relaciona diretamente com estratégias das quais os
capoeiristas se valem para subverter um conjunto de relações sociais de poder historicamente
consolidadas.

Porém, ao transpor a discussão deste corpo que experencia a encruzilhada para o corpo do
intérprete, Renata Lima sugere a potencialização de aspectos e atitudes favoráveis ao processo
de criação.

Olhando para a forma como a criadora sistematiza sua metodologia, reconhecemos que esta
ideia de corpo transversaliza dois importantes pontos inerentes ao trabalho do intérprete. Um
desses pontos encontra-se relacionado a um estado corporal propício para o desenvolvimento
da habilidade técnico-poética de traçar conexões e então criar. O outro se relaciona ao
aprimoramento técnico e mecânico do intérprete que, neste caso, desenvolverá habilidades
também nos textos da cultura trabalhados por Renata: capoeira e samba.

Sendo assim, prosseguimos explanando sobre algumas ideias e objetivos traçados pela
criadora para a sistematização de sua metodologia, visando criar parâmetros para discutir o
modo como ela operar tal mistura. Antes, porém, esclarecemos que, devido à extensão da
pesquisa observada e o enfoque traçado nesta dissertação, centramos na discussão sobre a
investigação e utilização da capoeira, não comportando nesta análise uma discussão
aprofundada sobre como os sambas de umbigada são utilizados. A criadora explica:
A meu ver, a preparação em Dança Brasileira Contemporânea deve estar a serviço
do desenvolvimento do “domínio do movimento”, isto é, o uso consciente do
movimento em suas possibilidades espaciais e eucinéticas. Da geração de uma
“consciência de corpo” na qual o atuante tenha autonomia para o trabalho de criação
e, neste caso, suporte técnico propulsionado por motivos da cultura popular. [...] O
trabalho de desenvolvimento técnico, visto dessa perspectiva, permite, além do
89

desenvolvimento técnico, mecânico, e expressivo, o aprimoramento da capacidade


criativa e intelectual do atuante. Permitindo, assim, uma maior flexibilidade para se
transitar entre diferentes linguagens, sendo essa uma importante chave da
transdisciplinaridade e atendimento às novas demandas de hibridismo cultural e do
teatro pós-dramático, assinalando questões relacionadas à “identidade popular” por
meio da corporeidade. (SILVA, R., 2008, p.4).

Tal argumento esclarece o porquê da adoção de procedimentos técnicos que visam estimular a
percepção corporal e a busca pela expressividade na movimentação que está sendo elaborada.
Nesse sentido, faz-se notável a exploração do sentido cinestésico nos procedimentos que serão
discutidos a seguir. Destacamos, então, três pontos que orientam todo o processo criativo.
Pensemos nestes pontos dispostos metaforicamente ao longo de um eixo horizontal.

O primeiro ponto caracteriza-se por uma etapa preliminar de suma importância, à medida que
o treinamento realizado neste momento reverbera em todo o processo. Neste momento são
realizados exercícios de relaxamento e aquecimento que auxiliam o intérprete a incitar uma
noção de inteireza. São exercícios que contribuem para a preparação de um trabalho corporal
que está centrado na utilização da propriocepção e na modificação para outro estado corporal.
Pode-se dizer que esta etapa preliminar já faz parte da primeira etapa da ‘instalação’69
propriamente dita.

Abaixo discutiremos alguns procedimentos metodológicos utilizados pela criadora e de que


maneira elementos e aspectos da capoeira são incorporados a eles:

2.3.2.1 ‘Instalação’ e a Capoeira

Segundo Renata Lima:


[...] Na língua corrente, instalar, refere-se a idéia de dispor algo para funcionar,
sendo a instalação o ato ou efeito de instalar – a disposição de objetos no lugar
70
apropriado. Aqui, [na DBC ,] a instalação é vista como um trabalho de consciência
corporal de transformação do corpo (simplesmente corpo ou corpo cotidiano) em um
corpo diferenciado, em um processo de se aliar a imagem de si e a sensação de si
através de exercícios que acionam um tônus muscular, respiração, equilíbrio e
concentração, distintos do cotidiano. (SILVA, R., no prelo).

69
Instalação é o termo que a própria Renata Lima utiliza para descrever essa etapa em sua metodologia.
70
DBC é a sigla utilizada por Renata Lima para discutir a metodologia com vistas em um processo criativo em
Dança Brasileira Contemporânea.
90

Dessa forma, a criadora sistematiza tal trabalho corporal em exercícios primários e


secundários. Esses exercícios são elaborados para um treinamento corporal que visa o
alinhamento da ‘ossatura’, dos grandes e pequenos encaixes (articulações) e o acionamento de
certos grupos musculares, requerendo um estado de atenção e consciência corporal que se dá
por meio da propriocepção e do sentido cinestésico.

Os exercícios primários, sistematizados por ela – ‘enraizamento dos pés’; ‘arqueamento dos
joelhos’; ‘seta no cóccix’; ‘zíper no púbis’; ‘fio de nylon’; a‘cachoeira nos ombros’ – somado
aos exercícios secundários – ‘afundar crescendo’; ‘crescer afundando’; ‘expansão e
recolhimento’; ‘equilíbrio de risco’; ‘impulso’ e ‘queda pela seta’71 – são complementados
com o trabalho técnico da capoeira, pois nesta prática o centro gravitacional está em constante
deslocamento e os movimentos e alavancas utilizadas contam igualmente com certa
vetorização do corpo para o chão. Ou seja, os joelhos constantemente flexionados auxiliam ao
rebaixamento da cintura pélvica. Dessa forma, os apoios solicitados durante o jogo da
capoeira apresentam grande aderência ao chão para evitar quedas e formas de equilíbrio
instável bastante recorrente neste jogo.

O equilíbrio instável refere-se a situações em que a sustentação do centro de gravidade sobre


o apoio se torna difícil de ser mantida, exigindo uma rápida resposta corporal, devido à
alteração de verticalidade do centro. Desse modo, a forma instável está intrinsecamente
relacionada à troca de equilíbrios e à exploração de outras situações corporais no espaço. Por
essas características, o jogo corporal da capoeira compõe e intensifica a instalação proposta
para a modificação do equilíbrio, do tônus, do fluxo e da respiração. Além disso, a inversão
dos apoios, geralmente com a cabeça e as mãos voltadas para o chão, bem como as alavancas
necessárias para as esquivas e para o ataque, facilitam o corpo a adquirir tônus muscular
adequado para executar quedas e saltos com a prontidão necessária para recolher, expandir,
ter impulsão, deslocar e retomar ao eixo rapidamente.

71
Tendo em vista o fato de Renata Lima já apresentar uma sistematização e descrição detalhada dos exercícios
que compõem o processo da instalação corporal, optamos por disponiblizar tais informações como anexo,
procurando, neste texto, traçar relações sobre como esse processo se relaciona com a incorporação de elementos
da capoeira. Ver mais informações no Anexo F deste estudo.
91

O mesmo vetor para o solo é ainda responsável por promover a suspensão desse corpo em
movimentos que se opõem ao solo, como vemos nas saídas, nos movimentos espiralados e
nos pulos que caracterizam um corpo aparentemente em constante desequilíbrio.

O estudo de Eusébio Lôbo da Silva esclarece como esta vetorização corporal ocorre através
do que ele chama de “relaxamento ativo”, sem forças, tensões e compensações musculares
desnecessárias72.
A atitude de abaixar o centro do corpo ocorre desde a ginga, pois se torna
impraticável gingar com as pernas esticadas, e a ginga deve ser feita pelo aluno de
forma a não utilizar força desnecessária para abaixar-se. O aluno deve deixar o
corpo cair para baixo e a direção correta é aquela em que ele cai sobre si
mesmo. Este é o real sentido de abaixar o centro do corpo que se encontra
presente desde a ginga, passando pela mecânica corpórea da cocorinha e,
principalmente, em todos os movimentos que vão na direção do nível do chão.
Nas palavras da capoeira, significa que o capoeirista não cai, ele sempre entra
ou escorrega para uma nova posição. Como abaixar o centro? No momento em
que se solta a pélvis ocorrerá uma leve flexão nas articulações das virilhas e dos
joelhos, o que libera a flexibilidade das pernas, permitindo uma maior liberação do
corpo para mover-se nas mais variadas direções; ao mesmo tempo intensifica-se o
contato e/ou a referência com o chão. (SILVA, Eusébio, 2008b, p.92. grifo nosso).

Com isso, consideramos que os exercícios formulados, em junção com os comandos dados
por Renata para uma investigação que se dá no corpo, promovem motivação criativa,
consciência corporal e condicionamento físico para o desenvolvimento de todo o processo de
criação. A descrição desse trabalho corporal baseado em princípios organizativos da capoeira
e do samba complementa a descrição abaixo feita pela criadora de determinado momento do
processo criativo proposto por ela:
Em um terceiro momento esses exercícios [primários e secundários da instalação]
serão submetidos, já de forma conjugado, ao ritmo e dinâmica, das manifestações
selecionadas. O próximo procedimento seria o desdobrar esses exercícios nos
próprios passos dessas danças, exemplo: cresce afundando > punga do tambor de
crioula. (SILVA, R., no prelo).

Em seguida comentaremos outros procedimentos que incorporam elementos, princípios e


aspectos da capoeira.

72
Sobre relaxamento ativo, o autor argumenta “[...] relaxar não significa desmilingüir, desmontar, parar a
atividade, pois também é possível, o qual denomino de relaxamento ativo, partindo do pressuposto de que o
molejo ou flexibilidade nasce do relaxamento que, por sua vez, nasce da respiração.” (SILVA, Eusébio,
2008b, p.192, grifo nosso).
92

2.3.2.2 Eucinética, Corêutica e Capoeira

O dentro e o fora, instaurados por uma consciência-percepção, tenciona-se, atritam-


se... Dilatando o corpo e estendendo às ferramentas da instalação. De onde o
movimento poético acontece no espaço e através dele, em pleno domínio do atuante.
Nessa perspectiva de corpo no espaço, a ação acontece considerando os fatores da
eucinética e os elementos da corêutica. (SILVA, R., no prelo).

Eucinética e Corêutica são conceitos desenvolvidos por Laban (RENGEL, 2003). O primeiro
consiste em um estudo qualitativo sobre fatores que dão expressão ao movimento; o segundo
está voltado para estudos sobre como tais fatores se organizam espacialmente.

Conforme Lenira Rengel73 (2003) as dinâmicas de movimento e os padrões espaciais devem


ser entendidos como duas facetas de uma mesma realidade, não sendo recomendável
metodologicamente a aplicação separada destes saberes.

Renata Lima entrecruza intencionalmente esses conhecimentos na formulação de sua


metodologia de trabalho. Para ilustrar tal ideia, sublinhamos uma vivência denominada por
ela como Ginga Pessoal, que tece relações diretas com a instalação e com os conceitos
labanianos.

Nesta vivência, a instalação é complexificada, pois os princípios corporais organizativos, em


dado momento experimentados por meio de exercícios específicos e graduais, passam a
ganhar maleabilidade à medida que são aplicados, tanto sobre códigos formais (como
esquivas, passagens, golpes e contragolpes da capoeira), como sobre a ginga e uma
movimentação que parte dela, que recria e transforma o tempo todo esses mesmos códigos.
Para essa transformação, emprega-se uma postura investigativa sobre as possibilidades de
remodelar os apoios, as alavancas e as dinâmicas presentes em alguns padrões de movimentos
da capoeira, sobretudo da ginga.

Verifica-se, então, que esta vivência: ginga pessoal propicia tanto a investigação de padrões
quanto de princípios (lógicas de organização), pois em sua estrutura naturalmente se
estabelecem evoluções sobre a transferência de eixo e consequentemente de peso. Com isso,

73
Lenira Rengel é Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica, PUC/SP e
docente da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia – UFBA desde 2009. Exerce atividade artística e
didática nas áreas da Arte e da Educação. Enquanto pesquisadora destaca-se pela notável contribuição acerca da
pesquisa sobre a arte do movimento de Rudolf Von Laban.
93

Renata explora a ginga como um recurso facilitador para experenciar os quatro fatores do
movimento tratados pela Eucinética. Entendemos que este trabalho sobre a ginga favorece
significativamente o estudo da Eucinética, uma vez que a ginga da capoeira apresenta grande
variedade de dinâmicas no que tange ritmo, velocidade, fluência e qualidades de movimento.

Observa-se que tais investigações se entrelaçam com comandos e dinâmicas que intensificam
investigações sobre as direções, dimensões, planos, progressões, projeções, formas, tensões
espaciais, característicos da Corêutica. Sendo assim, citamos abaixo reflexões realizadas por
Eusébio Lôbo que complementam a discussão e que se referem ao sentido do movimento na
capoeira.
O sentido do movimento na capoeira determina a direção, inversamente ao que
estamos acostumados (visão cartesiana), no qual as direções determinam o sentido
dos movimentos. As noções de frente, trás, cima, baixo e lados encontram-se
implícitas nos graus de mobilidade do capoeirista, por exemplo: atacar geralmente
implica em avançar, no entanto, na capoeira, atacar implica não somente em
avançar, mas também em recuar, pois os dois sentidos se encontram conjugados em
toda direção. Em outras palavras, o capoeirista não segue uma direção, ele constrói
as direções. Observando uma meia-lua de frente podemos constatar que ela tanto
ascende como descende, tanto avança quanto recua. Por não enfatizar direções, mas
sentidos de movimentos no espaço, as direções são resultantes dos sentidos que
estão contidos nelas. Uma direção contém no mínimo dois sentidos: avançar e
recuar. Os sentidos dos movimentos, ou graus de mobilidade, são determinados por
estímulos, que podem ser internos, do próprio capoeirista, ou externos, fornecidos
pelo ambiente, e às vezes ambos, interno e externo. O capoeirista expressa-se em
respostas a esses estímulos. (SILVA, Eusébio, 2008b, p.75)

Por identificar que o trabalho de Renata Lima se ocupa bem, como a pesquisa desenvolvida
por Eusébio Lôbo, da exploração do sentido do movimento da capoeira no espaço, indicamos
que o uso da Corêutica no trabalho da criadora e a aplicação de elementos, princípios e
dinâmicas características da capoeira e da metodologia utilizada pelo Lume não ocorrem
através de etapas lineares, mas sim por meio da (re)combinação de diversos procedimentos
simultaneamente.

O trecho descrito abaixo por Renata ilustra como a investigação dos fatores de movimento,
impulsionada por dinâmicas características do Lume, potencializam a geração de ações
corporais. Outro procedimento que será explicado a seguir.
A ginga se projeta além da cinesfera e interage com o espaço, inclusive com outros
que possam estar ocupando esse espaço. No limite de expansão da ginga, começa o
movimento de recolher, de guardar essa ginga no eixo do corpo, sem deixar que essa
ação deixe que reverberar, vibrar no corpo todo, mas ela vai ficando menor... Sem
apagar, sem desaparecer. A ginga volta para seu estado de impulso primitivo e de lá,
torna a se expandir, só que dessa vez, sendo deformada, transformada, relida,
alterada (SILVA, R., no prelo).
94

Assim, conclui-se que o procedimento, que Renata denomina ginga pessoal, desenvolve uma
série de explorações investigativas no sentido da pesquisa de movimento e da criação
explorando a dinâmica corporal mais matricial da capoeira, que é a ginga.

2.3.2.3 Ações corporais e matrizes

O modo como Renata Lima entende ações corporais referencia-se no conceito de ação física
proposto por Burnier (2002 apud SILVA, R., no prelo).
As ações corporais são a principal base do trabalho de composição, as peças chave
da composição - que podem ser entendidas com montagem de um quebra cabeça.
Essas peças são na verdade, matrizes que propiciam, em primeira instância, um
estado corporal, identificado por uma suposta harmonia entre a imagem do
movimento e a sensação, isto é, quando a ação corporal atinge certa plasticidade e ao
mesmo tempo se resolve no corpo do atuante como algo executado em pleno
domínio do movimento. (SILVA, R., no prelo).

Em nossa vivência nas aulas ministradas por Renata, percebemos que o trabalho desenvolvido
para a geração das ações corporais não são os únicos, mas são importantes “pontos de
arrancada” para a criação de procedimentos compositivos. Portanto, se faz importante grifar
que estas ações corporais são entendidas como ações portadoras de sentidos e tensões que são
geradas no corpo que dança. Essas ações se caracterizam pela criação de movimentos que, ao
invés de serem executados de modo mecânico, ocorrem buscando relações com a expressão
cênica de cada intérprete.
Esse estado corporal é investigado em um exercício de ir e vir de uma ação ou
partitura de ação. Ação primeira pode ser impulso, ou a mímese e de um passo ou de
um brincante de manifestação popular, ou ainda de uma imagem, texto ou musica,
traduzido em movimento a partir das intensidades eucinética e relação com o espaço.
(SILVA, R., no prelo).

Sublinhamos ainda o fato dessas ações serem geradas por variadas dinâmicas e/ou recursos
pedagógicos. Para tornar mais clara a ideia, exemplificamos três modos operacionais que
detectamos em nossa observação, e que servem como “caminho” para a criação das ações
corporais:

a) O estudo da Eucinética, conforme já explicado, é um modo operacional, pois a investigação


incessante de certos padrões de movimentos da capoeira pode resultar em uma variação de
dinâmicas, que, além de ampliar o repertório de movimentos, requer do intérprete uma
concentração favorável à investigação de diferentes possibilidades corporais;
95

b) Exercícios e atividades que utilizam e adaptam princípios do “treinamento energético”74


proposto pelo grupo Lume, nos quais a ginga da capoeira passa a ser intensificada, e sobre ela
são dados comandos para a investigação de ações experenciadas no espaço-tempo75;

c) Jogos e dinâmicas (discutidas a seguir) também propiciam a investigação de princípios,


elementos, códigos materiais (que funcionam como sub e intertextos) e dinâmicas internas
existentes nos sambas de umbigada e na capoeira, potencializando a criação de ações
corporais. Além dessas possibilidades, percebemos que algumas vezes as ações corporais
geradas pelos intérpretes observados ficam ‘suspensas’ aguardando a hora de se entrecruzar
com um estado corporal favorável à criação das chamadas matrizes76. Segundo Renata Lima,
as matrizes se configuram como ‘ponto de encontro’ que criam ambientes e estados corporais
que ressoam em toda a criação ainda por vir, ou até mesmo, em um texto coreográfico já
estruturado.
A matriz acontece em um estado corporal, mergulhado em um campo de
intensividade, foge dos chavões pessoais e redimensiona as ações que o corpo
cotidiano criando nexos de sentido, jogando-o no caminho da construção de um
corpo-subjétil. Não que essa organicidade não exista fora das matrizes, mas as
próprias matrizes alimentam aos outras ações, a força da matriz reverbera na
partitura de ação, criada a partir da própria matriz, como num “crochê”. (SILVA, R.,
no prelo).

Como descrito, o processo de criação até a geração das matrizes ocorre por meio de uma
‘preparação corporal em vistas ao processo de criação’(sic), por isso caracteriza-se por um
treinamento que visa à consciência e à expressividade do corpo e do movimento. Portanto, a
partir da produção destas matrizes, o processo pessoal do intérprete passa a ser compartilhado
com um “olhar de fora”, que pode ser do diretor, do orientador, ou até mesmo de outro
intérprete, a depender do ambiente em que se cria. Dessa forma, o intérprete passa do ‘jogo de
dentro’ para o ‘jogo de fora’77, conforme descrito por Renata Lima:

74
O Treinamento energético é parte do trabalho corporal utilizado pelo grupo Lume e visa a expressão do ator e
a “quebra de vícios de clichês”. Burnier embasado nas práticas de Grotowski sugeriu a formulação deste
treinamento a partir de um trabalho corporal pautado no estado de limite de exaustão física. Ver mais
informações em A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator (2001) e Café com Queijo: Corpos em
Criação (2006), de Renato Ferracini.
75
Ver maiores descrições a respeito desse tópico nas aulas descritas nos apêndices desta dissertação
(APÊNDICE C).
76
Este outro momento pode se caracterizar por um‘corpo instalado’, que poderá impulsionar a transformação das
ações corporais em matrizes.
77
Jogo de Dentro é expressão comumente usada no universo da capoeira para se referir a um jogo corporal,
muito próximo, fechado e mandingado que se dá restritamente no nível baixo. Este tipo de jogo difere-se do jogo
habitual mais aberto. A autora cria analogias com tais expressões para referir-se a duas instâncias da sua
metodologia que são codependentes e caracterizam, respectivamente, um momento mais intimista, onde o
96

[...] momento posterior ao jogo de dentro, no qual os excessos do primeiro são


lapidados, ou mesmo execrados, ao passo que as descobertas de maior relevância
simbólica e expressivas são valorizados, à medida que aprofundadas ou mesmo
“desenroladas”, tendo como ponto de vista o olhar de fora, que preza por uma
mensagem clara, no sentido de ser direcionada. Neste momento, são relevantes
considerações que se referem à organização espacial, ao ritmo, excesso de
informação, e sobre a aproximação com o tema inicial ou contexto. (SILVA, R., no
prelo).

Mesmo considerando que as matrizes são procedimentos que dialogam mais precisamente
com o momento de estruturação do ‘material’ até então explorado, este recurso não deve ser
considerado o último passo da metodologia proposta. Pois, tanto ações corporais como
matrizes podem ser elaboradas e transformadas por jogos e dinâmicas que são propostas para
reajustes e reorganizações importantes do processo de criação.

A forma como as ações corporais e as matrizes são trabalhadas varia a depender do que está
sendo objetivado enquanto prática pedagógica, ou enquanto desenvolvimento estético.

Em nossa observação, pudemos constatar três maneiras dentre essas possibilidades de


trabalhar as ações corporais e as matrizes. São elas:
- A partir da construção de partituras de ações, que se configuram como textos coreográficos,
e não necessariamente utilizam-se de passos;
- A partir da construção de partituras, que podem se caracterizar como sequências de
movimento, ou ainda;
- A partir de jogos que apresentam alta margem de imprevisibilidade e que podem inclusive
agregar estímulos pesquisados anteriormente.

2.3.2.4 Jogos, Improvisações e Capoeira

É claro que Jogo e Improvisação não são, necessariamente, a mesma coisa, tão claro
quanto a noção de que ambos podem se referir a várias coisas. Contudo, falando da
experimentação do fazer artístico – em artes cênicas – o Jogo e a Improvisação
assumem-se em papéis que ora se complementam, se intersectam e ora se fundem.
(SILVA, R., no prelo).

dançarino investiga no e pelo corpo sua dança, com um momento posterior, em que irá partilhar com demais
colaboradores seu processo compositivo.
97

O argumento acima subsidia discussão sobre a ideia de que os jogos sistematizados por
Renata Lima caracterizam-se expressivamente pela improvisação. Por esse viés, segue breve
discussão sobre a imprevisibilidade no jogo da capoeira. Segundo o Mestre Angoleiro baiano
Bola Sete (1997):
[...] a capoeiragem é um jogo livre, possibilitando ao capoeirista improvisar, dentro
de suas características e até criar movimentos no momento em que se encontra
‘vadiando’ e às vezes, sem que ele próprio perceba, não tendo assim, condições de
repetí-los por mais que se esforce, depois de terminado o jogo (BOLA SETE, 1997,
p.47).

A citação acima nos auxilia no entendimento de que as regras do jogo da capoeira funcionam,
ao mesmo tempo, como artefatos que induzem cada capoeirista a agir de forma peculiar
naquele espaço-tempo. Essa forma peculiar de se movimentar cria no jogo da capoeira a ideia
de surpresa que contribui significativamente para o desenvolvimento de um ambiente lúdico e
poético.

Dessa forma, torna-se compreensível o porquê, dentre tantos jogos elaborados pela criadora, a
utilização do jogo da capoeira em si – caracterizado pela pergunta e resposta, ataque e defesa
– como meio do intérprete vivenciar e, consequentemente, assimilar certos códigos culturais
presentes nesta prática.

Rememorando as perspectivas da criadora e identificando o jogo desta linguagem como


‘campo indutor’ para um estado de maior envolvimento necessário ao ato de criar, fica
evidente que o jogo da capoeira serve como estratégia para incitar o intérprete a experiências
que vão contribuir para criações que dialoguem com este universo, e também, para relações
de interação entre os jogadores.

No entanto, estruturas e dinâmicas internas que configuram as relações lúdicas e poéticas da


capoeira e dos sambas são muitas vezes moduladas, servindo apenas como estrutura de base
para “outros jogos” que se utilizam de atributos importantíssimos da capoeira e dos sambas,
como por exemplo, o diálogo e a escuta corporal.

Por esse viés, Renata elabora frequentemente jogos e vivências com estes e outros princípios
sem a obrigatoriedade da reprodução de padrões de movimento da capoeira.
98

Ademais, esses jogos geralmente são complexificados ao se fundirem com regras e princípios
importantes para o trabalho técnico-expressivo do intérprete. Como exemplo, indicamos a
dinâmica de ataque e defesa (lógica estruturante do jogo da capoeira) experenciada em
grandes distâncias, diferentemente de como ocorre na capoeira; e a remodelagem de como
este ataque é realizado, por exemplo, com partes do corpo pouco convencionais ao jogo da
capoeira. Dessa forma o ataque e a defesa são ressignificados e passam a ser procedimentos
relevantes para o intérprete investigar impulsos, níveis, ações e fluências diversas.

A foto abaixo (Figura 17) ilustra a dinâmica elaborada para investigação do impulso e do
tempo – intervalos entre um movimento e outro (o golpe da meia lua é ressignificado em
outras partes do corpo).

Figura 17: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22

As fotos a seguir (Figuras 18 e 19) ilustram dinâmica que propõe “ataque e defesa” a distância
(investigação do deslocamento espacial, foco, projeção e ressignificação do vocabulário da
capoeira).
99

Figura 18: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22

Figura 19: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22

Já as fotos a seguir (Figuras 20, 21 e 22) ilustram dinâmica elaborada para ressignificação do
jogo. Na ginga, a dois, os intérpretes investigam o comando dado por Renata Lima (foco
‘troca de olhares’, improvisação e comunicação).

Figura 20: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22


100

Figura 21: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22

Figura 22: Foto do Ensaio do Núcleo Coletivo 22

Além dos jogos descritos anteriormente, Renata propõe outros, que incorporam – além de
princípios técnicos difundidos de modo geral na dança – subtextos e intertextos da capoeira e
dos sambas. Aparecem aí padrões rítmicos, elementos sonoros, gestos e metáforas que
compõem o universo da cultura popular. Sendo assim, os jogos tanto da capoeira, como do
samba e outros provenientes do treinamento em dança são recombinados para colaborar na
preparação do intérprete, tanto no que tange a investigação corporal e a recriação estética dos
códigos apreendidos, como no desenvolvimento de habilidades técnicas necessárias para o
desenvolvimento individual e/ou coletivo. Neste último caso, configurando-se como recurso
pedagógico que possibilita a integração do grupo e o desenvolvimento de habilidades técnico-
expressivas.
101

Assim, este procedimento, o jogo, mostra-se como componente fundamental nesta


metodologia por dois motivos: primeiro, pelo fato de os jogos utilizados estarem embebidos
de informações presentes no texto da capoeira; segundo, pela forma como estes mesmos jogos
permeiam toda pesquisa observada.

2.3.2.5 Estímulos e recursos didáticos

Em seu estudo teórico, Renata discorre sobre aspectos que estão interligados com a
subjetividade e que, segundo ela, podem inclusive liderar os processos de composição
propulsionados por sua metodologia, como ocorre quando o intérprete se vale do ‘acaso’(sic)
e da intuição.

Esta ressalva nos permite coadunar com a ideia da criadora de que a subjetividade se expressa
de modo implícito ou explicito em processos de criação onde o intérprete é também o criador,
e, portanto, desenvolve pesquisas autorais. Por essas razões, interpretamos a subjetividade
como um aspecto diluído nos demais procedimentos técnicos propostos por Renata:
instalação, eucinética, corêutica, jogo, ação corporal, matrizes e construção de partituras de
movimento.

Dessa forma, percebemos que a individualidade já destacada no âmbito da capoeira passa a


ser projetada em toda a metodologia em questão. Renata Lima afirma que em seu trabalho “a
subjetividade [não representa] um mero fato, mas fato determinante no processo de
composição, e é por essa razão que aparece nessa discussão como um viabilizador da
transposição de elementos da cultura popular para a cena contemporânea.” (SILVA, R., no
prelo).

Com base nestas reflexões, torna-se evidente que a valorização da subjetividade, além de
subsidiar o desenvolvimento criativo, configura-se como recurso didático escolhido para o
desenvolvimento de singularidades no processo de criação.

Outro importante recurso didático identificado na metodologia em questão é a mímese e


transformação dos padrões de movimento. A partir da citação abaixo discutiremos
brevemente esse procedimento metodológico.
102

No caso específico desse laboratório, o passo de dança do tambor-de-crioula e a


música foram os estímulos pra essa transformação da ginga pessoal. É como se mais
um elemento entrasse no jogo, e o objetivo deixar de ser somente experimentar e
passa a ser buscar uma primeira matriz. Essa matriz não deve ser qualquer
movimento, escolhido aleatoriamente, deve ser um “ponto de encontro”. (SILVA,
R., no prelo).

A citação exemplifica como a criadora trata do uso de padrões de movimento, tanto da


capoeira como dos sambas de umbigada. Nesse exemplo, uma dinâmica corporal do tambor-
de-criola é aplicada para transformar algo, não sendo o principal objetivo, a reprodução da
forma tal como ela existe em seu contexto primeiro. Assim, como uma dinâmica corporal,
outros códigos são utilizados como recurso metodológico para incitar o intérprete a recriar
sobre os mesmos, como pode ser verificado no frequente uso da música, seja da capoeira ou
dos sambas pesquisados.

Neste contexto, a ação de imitar dialoga com reflexões produzidas por Eusébio Lôbo da Silva
(2008a), que a seguir salienta importantes questões sobre o assunto.
A idéia de Aristóteles, porém nos permite inferir que a mímese é um fenômeno que
inicia todo processo de conhecimento. Nisto reside uma das forças do paradigma: ao
se entrar em contato com este começa-se o processo de identificação, reprodução e
construção de um modelo que já não é o mesmo, pois permite a inclusão de aspectos
pessoais, a reprodução, enfim, não escapa do fenômeno da mímese. (SILVA,
Eusébio, 2008a, p. 64).

Dessa forma, a mímese de movimentos advindos do jogo da capoeira vai ao encontro do


entendimento proposto pelo mesmo autor, que argumenta que “a idéia de imitar corresponde a
uma reprodução, que não é fiel, mas que permite acrescentar aspectos pessoais, portanto
resulta sempre em uma representação simbólica.” (SILVA, Eusébio, 2008a, p.64).

Ponderando essas questões, entendemos que o trabalho corporal caracterizado pela mímese de
padrões de movimento pode, a depender da forma como é pensado e operado, apresentar-se
como um importante procedimento para o aperfeiçoamento técnico-expressivo do intérprete,
bem como para o condicionamento corporal do mesmo, tendo em vista, ainda, o fato do
repertório de movimentos da capoeira contribuir para a resistência muscular, força e
flexibilidade em determinadas alavancas frequentemente solicitadas no treinamento de alguns
dançarinos.
103

Figura 23: Execução simultânea de um “rabo de arraia” e de uma “negativa”.

2.3.3 A materialidade da mistura hoje

Os comentários tecidos sobre como elementos e aspectos da capoeira são pensados e


incorporados nas atividades propostas por Renata Lima fomenta a discussão sobre o tipo de
mistura e corporeidade investigada pela criadora.

Todavia, ressaltamos que na pesquisa de campo realizada por meio da observação de ensaios
do Núcleo Coletivo 22 analisamos que alguns dos artistas-pesquisadores envolvidos
aparentam estar em processo de assimilação e apreensão dos códigos e movimentos propostos
pela mesma. Além disso, verificamos também um quadro heterogêneo composto por artistas
que possuem formações bastante singulares.

Este perfil torna-se relevante para a compreensão de que a criadora, a partir das habilidades
desenvolvidas em seu corpo e através da autorreflexão sobre seu processo de criação ainda no
mestrado, vai continuamente criando parâmetros sobre quais habilidades corporais são
necessárias para articular nos corpos de outros intérpretes uma qualidade técnico-expressiva
coerente com sua proposta artística.

Todos esses dados observados em lócus dificultam uma análise mais precisa sobre os traços
estéticos da sua produção enquanto criadora, como pôde ser feito com a Cia Danças, pois
naquele caso os intérpretes, além de apresentarem uma formação mais homogênea,
desenvolvem no corpo movimentos predominantemente coreografados por outro agente, neste
caso, a criadora Claudia de Souza.
104

Além disso, a análise sobre a materialidade da mistura elaborada por Renata Lima é
complexificada pelo fato de que sua metodologia de trabalho não apresenta o intuito de criar
uma técnica específica, mas corporeidades que dialoguem com traços da cultura popular.
Nesse caso, o trabalho corporal proposto passa a ter diversos desdobramentos, pois se dá na
perspectiva de que os códigos do samba e da capoeira sejam transformados por processos
individuais ou grupais de interpretação.

Porém, para alguns apontamentos gerais, refletimos sobre a dramaturgia corporal presente em
duas montagens coreográficas dirigidas por Renata Lima e advindas da preparação corporal
desenvolvida pela mesma, como no caso de “Baio” (2007), criado e interpretado por Juliana
Klein, e “Mandinga de Rua” (2004), criado por Renata Lima, interpretado por ela e por
Juliana Klein.

Figura 24: Obra coreográfica “Baio” (2007)

A estas reflexões incluímos algumas ideias que emergiram da observação de processos de


criação individuais e composições coletivas (em duplas, trios ou em conjunto) realizadas
pelos interpretes do Coletivo Núcleo 22 durante a pesquisa de campo.

Assim, entendemos que a mistura entre capoeira e dança não se atém a formas codificadas ou
pré-estabelecidas, pois exibe modos de se movimentar que se encontram emaranhados à
construção de uma dramaturgia que se constrói, frequentemente, a partir de interpenetrações
de elementos da cultura popular.
105

Sobre a fisicalidade, percebe-se muitas vezes oscilações ininterruptas de intensidades e


dinâmicas, sugerindo a absorção e recriação de pausas, acentos e “arrancadas” (impulsos)
característicos dos jogos corporais do samba e da capoeira. Estas contaminações ajudam a
visualizar uma mistura que ocorre principalmente através de princípios organizativos
corporais presentes nestes textos da cultura.

Deste modo, torna-se possível visualizar paisagens transitórias que se diluem certas vezes por
meio da construção e desconstrução de imagens e metáforas que corporificam materiais da
cultura popular.

Ademais, nas montagens coreográficas analisadas, percebemos que as relações trabalhadas


entre os elementos cênicos como objetos, figurinos, projeções e trilha sonora, tornam, no
trabalho de Renata, mais denso o diálogo com a cultura popular, permitindo, assim, identificar
o interesse da criadora por temáticas que fazem referência direta à cultura popular.
106

3 INDO ALÉM DA PESQUISA DE CAMPO: A CAPOEIRA COMO MATÉRIA


PRIMA EM DANÇA

Figura 25: Gravura Parcial de Carybé. Capoeira Vinil. 1981.


107

3.1 ANALOGIAS E COMPARAÇÕES DA PESQUISA DE CAMPO

A partir dos dados apresentados no capítulo anterior, prosseguimos analisando e confrontando


as lógicas e as maneiras como Claudia de Souza e Renata Lima desenvolvem suas pesquisas
com a capoeira, visando assim, refletir sobre as semelhanças e diferenças existentes entre tais
trabalhos.

Considerando que o treinamento diário da Cia Danças prioriza as técnicas de Graham e do


balé clássico, identificamos – enquanto importante questão – como um corpo capacitado nas
referidas técnicas de dança absorve e transforma informações e aspectos advindos da capoeira
quando esta não é a técnica de formação da companhia. Dessa maneira, os elementos da
capoeira apresentam-se como informações que são transformadas e adaptadas a partir dos
referenciais já corporificados nos intérpretes. Essas evidências reforçam mais uma vez a ideia
de que a investigação corporal de Claudia de Souza sobre a capoeira advém de um rol de
convenções que dizem respeito à sua formação em dança. Essas premissas configuram-se
como um campo de “restrições”, sobre as quais Claudia cria continuamente estratégias para
desenvolver soluções coerentes com os seus objetivos cênicos.

Ainda observando o modo como Claudia opera a mistura entre dança e capoeira,
consideramos que a mesma intensifica traços estéticos similares entre as referidas linguagens.
Os movimentos expandidos, resultantes da combinação de movimentos da Capoeira Regional,
com a criação de outros movimentos e formas, e a ideia e sensação de continuidade que se
expressa em movimentos espiralados são exemplos dos traços comuns que se intensificam
pela opção estética da criadora em produzir riscos sinuosos e contínuos arabescos no espaço.

Já os pontos de fricção entre as linguagens mescladas por Claudia, a exemplo da dificuldade


de alguns ex-integrantes capoeiristas criarem movimentos diferentes daqueles pertencentes ao
repertório da capoeira, ou dos automatismos identificados pela criadora decorrentes da
prontidão necessária para o jogo da capoeira, são resolvidos de várias formas. Nessa direção,
a substituição de capoeiristas por dançarinos foi uma opção utilizada pela criadora para obter
respostas corporais mais próximas das quais ela estava habituada a produzir em seu corpo.
Contudo, este ‘ponto de dificuldade’ (a repetição de padrões da capoeira tal como ocorre em
situação de roda e a qualidade muscular característica dos movimentos constituintes dessa
linguagem) não é suprimido, uma vez que Claudia se utiliza frequentemente da encenação de
108

jogos de capoeira para provocar diálogos entre os intérpretes, remodelando sutilmente estados
tônicos que dão aos movimentos qualidades diferenciadas das que caracterizam a qualidade
muscular de golpes e esquivas próprias da Capoeira Regional. Essa solução, ativação ou
inibição de determinado tônus, apresenta-se como consequência de uma habilidade adquirida
pelos integrantes, que, ao longo dessa pesquisa artística, aprenderam a transitar
constantemente por estados tônicos distintos.

Como decorrência do processo de consolidação de movimentos criados e sistematizados por


Claudia, percebe-se que os atuais intérpretes da companhia facilmente se conectam e se
desconectam a estímulos específicos, ajustando e acionando constantemente estados
corporais, percepções somatossensoriais e padrões tônicos específicos para a comunicação de
uma determinada “mensagem".

A reunião dos dados até aqui analisados nos permite inferir que a forma como Claudia opta
por mesclar capoeira e dança resulta em matizes sobre a qualidade do movimento que compõe
o repertório técnico da capoeira, apresentando nuanças de uma mistura em processo que
encontra-se a serviço de uma dramaturgia criada para reforçar mensagens que aludem tanto a
sentimentos como a sensações táctil-cinestésicas.

Fazemos um adendo sobre a dramaturgia proposta por Claudia, procurando traçar outras
inferências. A preservação de certos contornos da movimentação da capoeira é escolha pela
qual a criadora constrói determinada dramaturgia; sendo a teatralidade um recurso para
‘provocar estórias’.

Em síntese, constatamos como traço marcante da mistura operada por Claudia a valorização
de elementos estruturais da capoeira para recriar esteticamente tal linguagem, de modo a
permitir ao espectador traços e esboços que dão o referencial de códigos estruturais da
capoeira.

Considerando, então, o realce dado aos padrões de movimento da capoeira, recriados em


maior ou menor grau pela criadora, e a importância deste recurso para a construção
dramatúrgica das obras analisadas, concluímos que no trabalho desenvolvido por Claudia os
padrões de movimento funcionam como espécie de via pela qual a criadora aproxima
109

princípios mais gerais da técnica de Graham, com princípios corporais organizativos que
caracterizam um corpo treinado para jogar capoeira.

O diagrama a seguir tenciona ilustrar as tramas tecidas por Claudia para a construção de uma
pesquisa de movimento construída para a cena.

Figura 26: Sugestão de leitura figurativa da mistura operada por Claudia de Souza.

Esses e os demais traços estéticos evidenciados em nossa análise não excluem nosso
entendimento de que os dados coletados caracterizam um processo, restando a nós
expectadores considerar a alta margem de imprevisibilidade e incerteza que reside no devir
dos processos artísticos. Como nos elucida Burke (2006, p.31):
[...] devemos ver as formas híbridas como o resultado de encontros múltiplos e não
como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos
elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos [...]

Prosseguimos com a análise do trabalho de Renata Lima e, mais adiante, retomaremos a


análise do trabalho de Claudia de Souza à guisa de outras considerações.
110

A coleta e exposição dos dados sobre o trabalho de Renata Lima privilegiou reflexões sobre
como elementos e aspectos da capoeira se entrecruzam ao longo de um eixo metodológico
que, como verificamos, traça um contínuo desde a preparação corporal dos intérpretes como
de laboratórios investigativos de criação e de procedimentos compositivos.

Como já dito, os procedimentos adotados para o desenvolvimento desse trabalho são


relacionais e se entrecruzam o tempo todo, pois observa-se que certos processos de
investigação para a criação e composição favorecem, por exemplo, consciência e
condicionamento corporal. O contrário também ocorre na medida em que certos exercícios
técnicos favorecem a criação e a investigação.

Nesse sentido, a capoeira permeia todos os procedimentos técnicos dispostos na metodologia


de Renata Lima, na medida em que este trabalho encontra-se centrado em uma pesquisa
corporal sobre elementos, aspectos e princípios da capoeira. Sendo assim, consideramos que
esta pesquisa corporal tenciona contribuir para o aprimoramento da capacidade criativa do
intérprete, tornando-o apto a realizar determinados padrões de movimento e, ao mesmo
tempo, a criar e recriar em território poético habitado por códigos materiais, signos e símbolos
constituintes da capoeira e dos sambas.

A seguir, esboçamos uma “leitura figurativa” que detecta a capoeira nesta metodologia como
uma espiral que entrecruza todo o processo criativo proposto por Renata Lima.
111

Figura 27: Sugestão de leitura figurativa da mistura operada por Renata Lima.

Portanto, torna-se explícito o fato de a sugestão metodológica como um todo ser


expressivamente contaminada pela vivência da criadora no que toca as danças populares.
Assim, os elementos e princípios técnicos e expressivos pesquisados a partir da capoeira e dos
sambas de umbigada parecem se projetar durante toda a aula e;ou ensaio orientado por Renata
Lima. Em outras palavras, envolvimento, jogo e estrutura, princípios por ela ressaltados, não
estão somente na capoeira, ou no samba, mas como pudemos acompanhar na análise também
se encontram:
- no aquecimento e ao longo de todo o processo de criação (que neste caso, requer dos
intérpretes, envolvimento, concentração e “entrega” para a criação de ações corporais e
matrizes singulares);
- nos variados jogos que propõem o aprimoramento técnico e criativo do intérprete;
- no território poético evocado nos laboratórios;
- e na sugestão de corporeidades que dialoguem com elementos da cultura popular.

Desse modo, consideramos que nesta pesquisa corporal a capoeira compõe uma metodologia
desenvolvida para trabalhar, dentre vários os conteúdos, a própria capoeira, sendo este texto
da cultura um conteúdo central do processo criativo sugerido por Renata Lima. Em síntese,
concluímos que a capoeira torna-se ao mesmo tempo substrato lógico e matéria prima para
112

ressignificações sobre seu discurso poético, simbólico e metafórico (textos e subtextos), a


partir de um treinamento corporal que ocorre através de exercícios que visam contribuir para
processos de criação.

Já em relação às regularidades existentes entre as duas criadoras investigadas neste estudo,


Claudia de Souza e Renata Lima, percebemos que ambas, mesmo trilhando caminhos
peculiares, são motivadas pelo desejo de dialogar com práticas pertencentes à cultura local.

Das observações realizadas consideramos que, apesar das duas criadoras privilegiarem a
capoeira como matéria prima central para suas referidas pesquisas artísticas, seus trabalhos
apresentam também relações com códigos culturais presentes em outras danças populares e
com o imaginário que se refere à cultura popular brasileira de um modo geral.

No caso de Claudia de Souza, danças como o forró e o samba de gafieira permeiam três dos
espetáculos da Cia Danças e, mesmo verificando que tais referências se fazem ausentes nas
demais configurações que compõem o seu repertório, nota-se investigações referentes às
mesmas em aulas específicas e recorrentes.

No caso de Renata Lima, a relação com outros códigos da cultura popular torna-se ainda mais
explícita, uma vez que a criadora possui contato direto com grupos folclóricos e centros
culturais, que, por sua vez, estabelecem contato direto com comunidades que praticam danças
populares e capoeira.

Estas relações entre capoeira e outros códigos da cultura popular brasileira transpassam as
criadoras analisadas, permitindo vislumbrar, no âmbito da Dança Cênica, entre outros
trabalhos, obras como “Cantinho de Nóis” (2005), de Jorge Garcia78, ou, ainda, de modo mais
amplo, obras coreográficas produzidas por Antônio Nóbrega79.

78
Entrevistei pessoalmente o intérprete e criador Jorge Garcia em dezembro de 2007. Segundo ele, a capoeira já
é fonte de investigação em seus processos de criação desde 2005. Para o espetáculo que estreiou em 2008, “Um
conto idiota”, Jorge informa que além da investigação e modificação de textutra e apoios da capoeira, contava
com treino de capoeira angola uma vez por semana com o preparador corporal e capoeirista Pedro Peu. Além
desse espetáculo, pude conferir que a capoeira se faz presente também no espetáculo Cantinho de Nóis citado no
corpo do texto e “Histórias da Meia Noite” (2007). O criador da JGarcia &Cia – Dança Contemporâna foi
bailarino das Cias: Experimental de Recife, Cisne Negro e Balé da cidade de São Paulo. Jorge vem se utilizando
também de uma pesquisa sobre a técnica do Aikidô.
79
Antônio Nóbrega é artista e pesquisador da cultura popular. Nóbrega se utiliza da capoeira de uma gama
extensa de manifestações populares para compor trabalhos coreográficos
113

Consideramos que tais trabalhos levam ao palco a discussão traçada neste estudo acerca dos
cruzamentos com séries culturais de uma cultura diversificada e heterogênea. Além de nossas
fontes primeiras de investigação, Claudia de Souza e Renata Lima, os demais criadores
citados anteriormente apresentam formas peculiares de compor dramaturgias que dão ao
espectador referencialidades não só da capoeira, mas de outras expressões da cultura popular
brasileira.

Em razão dessa observação, deduzimos que, diferentemente de pesquisas corporais centradas


restritamente na movimentação da capoeira, a exploração do seu universo simbólico pode
alimentar investigações acerca de relações entre capoeira e outras práticas culturais.

Dessa forma, consideramos que pesquisas de entrecruzamento de dança com capoeira,


catalisam ainda investigações sobre intertextos que estão presentes na cultura popular de
modo geral, na forma de informações corporais ou simbólicas, estimulando consequentemente
pesquisas com outras danças populares que igualmente mostram-se produtivas para a dança
cênica.

Ainda sobre constante utilização da capoeira na atual Dança Cênica em geral, consideramos
que relações mais explícitas com a capoeira tanto podem ocorrer em obras coreográficas, que
fazem esta opção por não apresentarem intimidade com a capoeira, como podem ocorrer
seguramente por um interesse estético, como o trabalho de Claudia de Souza, que objetiva a
preservação de certos contornos e a sutil recriação de padrões de movimento da capoeira.
Como no trabalho de Claudia, existem outros coreógrafos que se ocupam da remodelagem de
formas características da capoeira, como é o caso do trabalho desenvolvido pela Cia Dance
Brazil, do Mestre Jelon Vieira80

Misturas como essas, interessadas na remodelagem e não na desconstrução de padrões de


movimento da capoeira, apresentam uma questão complexa, que deve ser analisada
cuidadosamente, pois, tal escolha pode muitas vezes, de modo ambivalente, contribuir tanto

80
O baiano Mestre Jelon Vieira iniciou sua trajetória na capoeira na Bahia (Santo Amaro e Salvador). Após
participar como intérprete do grupo “Viva Bahia”, residiu por um tempo na Europa até se fixar em Nova York
(EUA), onde fundou a “Capoeira Fundation”. Juntamente com Loremil Machado fundou o grupo “Capoeiras da
Bahia”, hoje “Cia Dance Brazil”. Para este estudo, assistimos presencialmente durante a breve temporada de
verão/09 da companhia em Salvador as últimas obras coreograficas produzidas pela mesma: “Ritmos” (2008), do
próprio Mestre Jelon Vieira, e “Inura” (2009), do coreógrafo brasileiro Carlo dos Santos. Mais informações
sobre algumas caracteristicas do trabalho desta companhia mais adiante deste estudo.
114

para a reprodução de clichês – ainda recorrente em trabalhos que se ocupam


momentaneamente de colagens superficiais desenvolvidas para atender a uma lógica
mercadológica da exploração de exotismos –, como também para a qualificação de pesquisas
artísticas interessadas na capoeira.

Outra questão que permeia ambos os trabalhos (de Claudia e de Renata) diz respeito à
complementaridade entre as técnicas por elas mescladas. Neste caso, a complementaridade
está entrelaçada ao uso frequente de associações. Sobre isso, Katz (1998) comenta:
Todo vocabulário tende a conter uma determinada coleção de associações e não
conter outras. Isso significa que a própria natureza do vocabulário que se escolhe
trazer para o corpo já seleciona quais conexões se tornam mais ou menos viáveis
neste corpo. [...] Uma vez que o vocabulário de cada técnica implica também numa
rede particular de conexões que depende da familiaridade, em primeira instância,
quando se aprende um passo qualquer de dança geralmente aprende-se junto com
qual ou quais ele combina, o que acaba produzindo uma cadeia entre passos que
vêm antes e os que vêm depois. O corpo se habitua a conectá-los por que eles lhe
são apresentados dentro de determinados cardápios de sucessão. (KATZ, 1998, p.18-
19).

Ao dizer que a própria natureza do vocabulário que se escolhe trazer para o corpo já seleciona
quais conexões se tornam mais ou menos prováveis, entendemos que as misturas observadas
neste estudo se balizaram por referenciais já corporificados e que naturalmente reconhecem,
no novo vocabulário, possibilidades de misturas. Tecendo relações entre a pesquisa de campo
aqui realizada e a ideia proposta por Katz, faz-se importante olhar para o lugar que a capoeira
ocupa na formação das criadoras observadas.

No caso de Cia Danças, o vocabulário de base é o da Técnica de Marta Graham, seguida do


balé clássico, sendo a Capoeira uma espécie de técnica alternativa, por isso, usada de modo
complementar. Nesse sentido, para esclarecer um pensamento presente na mistura de Claudia,
trazemos proposições formuladas por Klauss Vianna81, uma vez que estas ilustram as ideias de
Katz sobre a complementaridade e a associação de treinamentos corporais à medida que
sugere que a capoeira exibe o mesmo “sentido muscular” do balé clássico e anatomicamente
apresenta em suas sequências o trabalho desenvolvido na barra.

Entendemos que este ‘sentido muscular’ requer estudos mais aprofundados, pois, como já
discutido, as variações de padrões de tonicidade da capoeira complexificam as aparentes
semelhanças e diferenças entre Capoeira e balé clássico. Contudo, as similaridades existentes

81
Dados coletados em entrevistas realizadas com Klauss Vianna. Consultar material em anexo.
115

no que tange a mecânica de movimento entre alguns passos de balé e certos golpes da
Capoeira Regional, apontadas por Vianna, podem de fato auxiliar em um primeiro contato
entre as referidas técnicas pelo aspecto cinesiológico e pela forma – essas duas técnicas
corporais. Por exemplo, a mecânica do movimento da perna em um grand développé devant
ou a la seconde, ambos en dedans apresentam familiaridade com a ‘benção’ ou ‘martelo’, ou
ainda, um rond de jambe en l’air en dehors e en dedans com a ‘queixada’ ou ‘meia-lua-de-
frente’82. Associações como essas, feitas a partir da semelhança dos padrões de movimento,
ocorrem por estratégias de tradução; ou seja, no movimento “alheio” (aquele recém
aprendido) procura-se correspondências com movimentos já incorporados. O mesmo parece
ocorrer no aspecto semântico: os novos movimentos buscam associações de sentido no
repertório já conhecido. Contudo, esses aspectos semânticos apresentam-se como um
território ainda pouco explorado em termos do detalhamento dos processos de mistura,
sugerindo muitos desdobramentos, ressaltando quão profícua é essa zona de produção de
novos textos.

Burke (2006) também contribui para essa questão, pois sublinha a questão da familiaridade
como aspecto presente nas estratégias de tradução cultural. Desse modo, o exemplo a seguir
ilustra, mais uma vez, por quais vias a tradução ocorre nos cruzamentos culturais.
[...] quando Vasco da Gama e seus homens entraram em um templo indiano em
Calcutá e se defrontaram com uma imagem com a qual não estavam familiarizados,
as cabeças de Brahma, Vishnu e Shiva, eles “traduziram” a imagem para termos
familiares recorrentes aos esquemas visuais ou estereótipos concorrentes em sua
própria cultura. Neste caso, a tradução foi provavelmente inconsciente. (BURKE,
2006, p.57).

A sugestão do autor de pensar em termos semelhantes para o entendimento de processos de


hibridação na história da arte ou da música sugere que processos de hibridação nas diversas
linguagens artísticas ocorrem, em grande parte, pelo impulso de criadores traduzirem imagens
e informações para a composição de releituras artísticas. Estes impulsos podem, no entanto,
apresentar-se conscientemente ou não. Ademais, a citação seguinte deflagra problematizações

82
Entendo que a correspondência entre os movimentos da capoeira e do balé clássico apresentam inegavelmente
semelhanças no que tange ao desenho do movimento no espaço. Contudo, na experimentação de tais padrões de
movimento reconheço princípios organizativos diferenciados. Tanto no grand devellopped devant ou a la second
en dedans, o quadril deve manter-se alinhado e estável, enquanto que na ‘benção’ e no ‘martelo’ se faz
necessário o envolvimento do tronco e da região pélvica para a alcançar o oponente. Em outras palavras, nos
développés o tronco se mantem estático no eixo vertical e somente a perna é projetada, enquanto que nos golpes
referidos o tronco pode sair do eixo vertical e a pelve pode participar do movimento. Estas peculiaridades
conferem qualidades expressivas distintas, sendo no balé tais movimentos realizados de modo direto, enquanto
na capoeira de modo circular e sinuoso.
116

igualmente importantes em torno da subjetividade existente nos diversos processos tradutórios


em dança:
O termo “tradução” [...] É obviamente um termo neutro, com associações de
relativismo cultural. [...] “Tradução” contrasta com termos carregados de valores
como “mal-entendido, interpretação errônea, engano na leitura, tradução incorreta,
emprego impróprio”. [...] Este contraste entre terminologias mostra a questão da
possibilidade de se fazer traduções culturais incorretas. O que torna a questão difícil
de responder é a falta de consenso quanto a quais seriam os critérios para se definir o
que seria uma tradução incorreta. (BURKE, 2006, p.59).

Através dessas reflexões, reforçamos a identificação de uma singularidade no processo de


Claudia: as relações traçadas por ela advêm de um processo tradutório pessoal. A Capoeira é,
nesse sentido, um texto traduzido exclusivamente pela sua vivência anterior com técnicas de
dança corporais como o balé clássico, jazz e dança moderna. Tal dado dá sentido à fala da
criadora, que em entrevista diz: “Eu sou da dança eu não sou da capoeira” (SOUZA, 2008).

Concluindo que esta tradução – que tem como filtro as técnicas de dança – apresenta-se como
o modo operativo pelo qual esta criadora mescla capoeira e dança, torna-se compreensível a
questão da adaptação que apontamos na análise de seu trabalho. Tal adaptabilidade se
evidencia no reconhecimento de uma estabilidade, mesmo que provisória, de um tipo de
movimentação sugerida pela criadora aos capoeiristas com quem trabalhava. Ainda sobre esta
adaptabilidade, encontra-se nossa hipótese de que corpos treinados na técnica de Graham, ou
em quaisquer técnicas de dança, testam e ajustam padrões de movimento da capoeira de
acordo com a sua lógica anterior.

Tais evidências confluem para o esclarecimento sobre adaptação cultural proposta por Burke
(2006), que explica o fenômeno como “um movimento duplo de des-contextualização e re-
contextualização, retirando um item de seu local original e modificando-o de forma a que se
encaixe em seu novo ambiente” (BURKE, 2006, p.91). No caso de Claudia, a Técnica de
Graham parece procurar nos códigos da capoeira esse movimento de duplo de
descontextualização e recontextualização.

Já no caso de Renata Lima, sua vivência na capoeira há mais de dez anos colabora
significativamente para conexões com outros procedimentos e métodos que, em suas
respectivas estruturas, espelham aspectos e lógicas presentes neste texto da cultura. Deste
modo, compreendemos que no caso de Renata Lima, a própria capoeira colabora para balizar
a escolha das abordagens corporais que são postas em cruzamento. Isto possibilita um
117

trabalho de tradução em que a capoeira participa em condições de igualdade, favorecendo a


dupla assimilação característica da mestiçagem. Sobre isto, vale reforçar que nem toda
tradução ocorre dupla-assimilação, sendo esta resultante exclusiva de misturas que procuram
se aprofundar em saberes específicos para uma inteligibilidade mútua do que está sendo
mesclado.

Porém, como no caso de Claudia de Souza, que trabalha com técnicas importadas como o balé
e a técnica de Graham, vemos também que as abordagens corporais adotadas por Renata Lima
são igualmente ‘originais’ e pautadas em princípios e estruturas organizativas advindas de
modelos estrangeiros, haja vista a adoção de referenciais como Laban, Grotowski e Barba83.
Todavia, salientamos que essas abordagens apresentam historicamente adaptações e releituras
que são frutos de traduções anteriores ao processo de pesquisa em desenvolvimento por
Renata Lima84. Além disso, ressaltamos o fato de tais abordagens terem como premissa o
diálogo intercultural, seja através da investigação de corporeidades locais ou culturalmente
diversas; ou ainda, por se configurarem como sistemas de análise de movimento, como no
caso de Laban e não como técnicas sistematizadas propriamente ditas85.

A constatação desses dados nos permite concluir que as abordagens corporais reunidas por
Renata dialogam com mais tranquilidade com o caráter poroso e híbrido observado na
capoeira, uma vez que, nesse texto da cultura, bem como nas abordagens corporais utilizadas,
vê-se mais facilmente cruzamentos e interpenetrações de informações culturais mais diretas.

Neste caso, inferimos que o modo operativo utilizado por Renata Lima para mesclar Capoeira
e Dança Cênica consiste na identificação e convergência de aspectos e lógicas semelhantes.
Este procedimento difere, por sua vez, da tradução de aspectos formais, como concluímos ser
o caso de Claudia de Souza. Sobre essa ‘leitura’ se faz necessário uma pausa para esclarecer a
natureza da presente análise.

83
Jerzy Grotowski foi renomado teórico, crítico e diretor teatral polonês. Apresenta-se como uma das principais
referências do Teatro experimental. Eugenio Barba, criador da Antropologia teatral, é diretor e fundador da
companhia de teatro Odin Teatret. Seu trabalho conta com a influência de Grotowski, o qual acompanhou por
volta de três anos. Ambos estão presentes indiretamente no trabalho de Renata Lima pelo fato de que ela utiliza
procedimentos técnicos criados por Luíz Otávio Burnier a partir de Barba e Grotowiski.
84
O treinamento corporal sistematizado pelo Lume, ou ainda, a noção e trabalho corporal para a construção de
um corpo-subjétil, como propõe Renato Ferracini, são exemplos de releituras feitas sobre a antropologia teatral
proposta por Eugênio Barba e sobre a pesquisa desenvolvida por Grotowiski.
85
Técnicas sitematizadas, neste caso, se refere a técnicas de dança que possuem vocabulário já consolidado de
movimentos a exemplo do jazz e do balé clássico.
118

Ao identificar afinidades e possíveis contradições entre as propostas desenvolvidas pelas


criadoras e a lógica e os aspectos que caracterizam práticas mestiças, não estamos atribuindo
julgamento de valor aos seus respectivos trabalhos. Trata-se apenas de ressaltar o que e como
está sendo misturado, para assim, apreender questões sobre os processos de mistura que
envolvem a Capoeira e a Dança Cênica. Por essa via, os trabalhos realizados pelas criadoras
são meios de aprofundar nossa análise sobre questões que dizem respeito à produtividade e às
possíveis dificuldades existentes na construção dessa interface, partindo de especificidades
para generalizações que, ao invés de universalizar verdades, desejam contribuir com
parâmetros para novas reflexões acerca do assunto.

Esse tipo de leitura tem como objetivo apresentar discussões sobre a mestiçagem e seus
parâmetros para reflexões sobre as lógicas operativas de cada criadora analisada e não
qualificar seus modos de mesclar a capoeira.

Por isso, grifamos que não nos importam os resultados estéticos advindos de uma tradução
que tem como vocabulário primeiro o balé ou a dança moderna, pois entendemos que os
meios para se fazer uma tradução são inúmeros e estes podem se configurar como recursos
compositivos esteticamente tão interessantes como em outros modos de operar a mistura. Não
obstante, outra variante importante a ser discutida diz respeito à materialidade do que está
sendo relacionado à capoeira. Assim, entendemos que a tradução feita por Claudia apresenta
implicações pertinentes para pesquisas de linguagem que investem no contato entre Capoeira,
balé clássico e dança moderna.

O balé clássico e a técnica de Martha Graham apresentam maior sistematização no que diz
respeito a sua estrutura, permitindo que estas sejam reconhecidas como tal, pois certos
contornos são sempre preservados. Já na dança contemporânea, os contornos são muitas vezes
permeáveis e a instabilidade de códigos e padrões apresenta-se como característica marcante.

Por esse viés, o alto teor sistemático de técnicas acadêmicas de dança, em tese, dificultaria a
interpenetração necessária para o entrecruzamento com outras linguagens, pois, como vimos,
sistemas que apresentam alto teor de hibridação são caracterizados por notória
permeabilidade. Entretanto, não podemos negligenciar que estes cruzamentos ocorrem no
corpo. Sendo assim, a forma como essas técnicas de maior rigor sistemático são interpretadas
e reinventadas pode interferir e conduzir a atualizações no modo daquele corpo compreender
119

uma vivência mais tradicional com estas mesmas técnicas e, consequentemente, na mistura
que se deseja fazer.

Expandindo nossa discussão para além das criadoras investigadas, são numerosos os trabalhos
coreográficos com os quais nos deparamos atualmente e que expressam, ainda que de modo
superficial, uma aproximação com a capoeira. Essa realidade nos expressa que até mesmo as
relações estéticas momentâneas entre capoeira e dança apontam a necessidade de mais
debates acerca do assunto.

Tal carência reforça olhares estereotipados sobre textos da cultura, que ora são banalizados,
ora valorizados enquanto produto exótico de fácil consumo, como alerta Gruzinski (2001).
Consequentemente, essa necessidade encontra-se imbricada, como já discutido, com o fato de
a cultura popular ser geralmente tratada como questão periférica no campo acadêmico da
dança, dando sentido à ideia já discutida de obstáculos conceituais e práticos que criam
barreiras para o entendimento da capoeira e das demais danças populares como conhecimento
produtivo para a dança.

Por essas razões, teceremos a seguir breves comentários sobre algumas maneiras de misturar
Capoeira e Dança Cênica nos anos 1960 e 1970, em Salvador, visando apontar alguns
aspectos importantes para a discussão sobre os atuais modos de promover esta interface.

3.2 CAPOEIRA E DANÇA CÊNICA: ISSO NÃO É COISA DE AGORA

Nos palcos teatrais, a capoeira aparece totalmente estilizada. Quando não se estiliza
nas coreografias de danças modernas, fazem-no nos espetáculos de conteúdo afro-
brasileiro, como se vem fazendo, dentre outros, Solano Trindade. (REGO, 1968, p.
322)

Para discutir outros modos de misturar capoeira e dança, escolhemos a cena artística de
Salvador nas décadas de 60 e 70 do século 20. O local escolhido justifica-se por ser esta
cidade reconhecida como “berço da capoeira”, razão que explica o interesse dos artistas locais
que tinham próximo de si esta prática em pujança. Apesar desta importante característica,
Eusébio Lôbo Silva (2008a) chama-nos a atenção para o usual interesse pela cultura brasileira
fora do Brasil, já em período precedente a este:
120

86
Estudando e trabalhando com a Senhora Katherine Dunham , pude constatar in
locus que ela foi a primeira a utilizar elementos folclóricos de diversas culturas na
criação de danças cênicas. Ela já utilizava a capoeira e diversas manifestações da
cultura popular brasileira desde a década de 1920 como subsídios para as suas
criações coreográficas. (SILVA, Eusébio, 2008a, p.25).

Já sobre as décadas de 60 e 70, em Salvador, notam-se algumas questões que contribuíam


significativamente para que os cruzamentos entre Capoeira e Dança Cênica naquelas décadas
fossem conduzidas de modo peculiar. Então, frisamos dois importantes fatos históricos que
envolvem a capoeira e que precedem o referido contexto espaço-temporal. São esses: a
retirada da capoeira do Código Penal Brasileiro de 1890 e o apoio do programa modernizante
da Era Vargas à capoeira, passando a incentivar, reconhecer e propagar esta arte como prática
genuinamente brasileira. Com isso, a capoeira passava a ocupar espaços públicos e recintos
fechados com privilégio e destaque. Contudo, é na década de 1960 que a capoeira e outras
danças populares passam a ser difundas enquanto folclore nessa cidade.

No processo, tornou-se significativo o trabalho de grupos denominados para-folclóricos87 que


transpunham tais manifestações para o palco italiano. Dentre muitos, destacamos os de maior
repercussão: “Viva Bahia” (1962), sob direção da etnomusicóloga e folclorista Emília
Biancardi; “Afonjá”, de Mestre Vermelho de Pastinha (Maurício Lemos) e Mestre Geni (José
Serafim Vieira Jr.); e “Balé do SESC/SENAC”, do Professor Mestre King (Raimundo Bispo
dos Santos). Apesar de extintos, tais grupos marcaram significativamente a história da dança
em Salvador.

Na Figura 28 vemos um postal produzido na década de 1970, no Solar do Unhão, Salvador,


Bahia. Dentre os capoeiristas e dançarinos, encontra-se João Grande, de calça azul, hoje
renomado mestre de Capoeira Angola.

86
Katherine Dunham, antropóloga, bailarina e coreógrafa é considerada por demais críticos do campo da dança
como Mãe da Dança Negra nos Estados Unidos, é também re-conhecida como uma das pioneiras da dança
moderna Americana e destaca-se por um estudo que mesclava, ainda na década de mil novecentos e vinte,
danças populares de seu contexto local com outras técnicas de dança.
87
Adotamos o entendimento de parafolclórico proposto por Robatto que explica o termo como “denominação
adotada pelos estudiosos do folclore para os grupos de dançarinos profissionais que adaptam cenicamente as
manifestações tradicionais populares regionais, mantendo vínculos culturais tradicionais” (2002, p.23).
121

Figura 28: Cartão Postal do Grupo Folclórico “Viva Bahia”. Salvador, Bahia.

As recriações produzidas por estes grupos podem ser consideradas como primeiros passos
para processos inventivos em pesquisas de dança que envolvem a capoeira. Como argumenta
Eusébio Lôbo da Silva (2008a) sobre o trabalho desenvolvido por Emília Biancardi na direção
do grupo “Viva Bahia”:
A Professora Emília Biancardi Ferreira criou uma nova forma de apresentação do
Espetáculo Folclórico, com novas interpretações em todos os aspectos formais, a
exemplo do modo como elaborava a apresentação do canto de músicas tradicionais e
do uso do instrumental; no primeiro, utilizou-se das mesmas letras das músicas
tradicionais, acrescentado uma melodia atualizada; no segundo, acrescentou novos
instrumentos como a Guitarra Elétrica. O mesmo ocorreu com o tratamento do
cenário, do figurino, da iluminação. Posso arriscar dizer que em termos de
Espetáculo, a Professora Emília Biancardi Ferreira deu à Arte Mãe uma
configuração espetacular aproximando-a do contexto de sua época. (SILVA,
Eusébio, 2008a, p.24).

Figura 29: Espetáculo “Capoeiras da Bahia”, do Grupo “Viva Bahia”.


122

Figura 30: Mestre Dinho

Na foto da Figura 30, Mestre Dinho, fundador do grupo de Capoeira Regional Topázio, na
época também participante do Grupo “Viva Bahia”. Durante 25 anos Mestre Dinho
coordenava e participava diariamente dos shows folcóricos que aconteciam desde 1983 no
extinto restaurante do Solar do Unhão/MAM - Salvador - BA.

Apontamos também outras companhias que se utilizam de um vasto repertório de práticas


corporais e técnicas de dança para recriarem cenicamente a capoeira e outras danças
populares, todas interessadas na combinação e remodelagem destas técnicas para referendar
um universo cultural bastante específico. Neste bojo, temos companhias que comumente
identificam-se como ‘Companhias de Dança Afro-brasileira Contemporânea’, como: a
“Companhia de Dança Ladainha”, de Antônio Pequeno (França); a Companhia “Dance
Brazil”, de Mestre Jelon Vieira; e a Companhia “Brasil Tropical”88 (EUA), todas atuando fora
do país.

88
A companhia Brasil Tropical foi inicialmente fundada com o nome de Grupo Olodum(1968) pelos Mestres
Camisa Roxa, Mestre Acordeon (Ubirajara Almeida), Mestre Itapoan (Raimundo Cézar de Almeida) e Beijoca
(Beijamim Muniz), transformado-se em Olodumaré (1970) e só posteriormente em Brasil Tropical(1972).
123

Figura 31: Ensaio da obra coreográfica “Ritmos” (2008), da Cia Dance Brazil.

Tais companhias, apesar de incorporarem códigos, padrões estéticos e temáticas que dialogam
com a cultura brasileira, diferem de outras companhias que, mesmo se utilizando de outras
técnicas de dança, objetivam a produção de espetáculos que representam estritamente
manifestações populares das quais se apropriam. Como exemplo desta última linha de
desenvolvimento, temos a Companhia do “Balé Folclórico da Bahia”, fundada 1988 por
Walson Botelho e Ninho Reis, sendo desde 1993 dirigida por José Carlos Santos (Zebrinha).

Vale salientar que esta intensa produção emerge por volta de 1960, em fase de expansão
econômica e de crescimento industrial e turístico da Bahia, o que interferiu de forma notória
no desenvolvimento dos grupos de dança atuantes. Castro Junior (2008) levanta questões
pertinentes à ideia de baianidade propagada neste momento de modificações estruturais em
Salvador. Tais questões nos auxiliam na problematização sobre como a Dança Cênica seguia
as tendências da época:
A Bahia é caricaturada como “Terra Hospitaleira”; promovida pelas campanhas
publicitárias e ostentada pelo povo baiano sob o estigma de receber o turista de
“braços abertos”. Isso acaba sendo uma marca corporal que tem implicações
seríssimas no nosso modo de agir e nos “controles das emoções dos corpos”, pois
muitas vezes acabamos de instituir, forçosamente, uma certa fisionomia
historicamente inserida no povo baiano, como aquele sujeito bom, que está sempre
sorrindo, é gentil, agradável, amável e cordial com os turistas. (CASTRO JUNIOR,
2008, p.80).

Ainda sobre esta realidade, é importante ressaltar que a repercussão de trabalhos nesta
vertente ocorria, em sua maioria, fora do país e não em território nacional. Mesmo nos dias de
hoje, identificamos um número grande de grupos de capoeira e dança que promovem seus
espetáculos fora do país. Contudo, esses dados não excluem a existência de grupos de
capoeira e dança também no circuito turístico da cidade. Tais grupos se apresentam, por
exemplo, em restaurantes e praças soteropolitanas.
124

Para discutir a natureza das misturas produzidas nas décadas de 1960 e 1970, recorremos aos
relatos produzidos por Rego (1968), esclarecendo ainda que as observações feitas pelo autor
não contemplam a totalidade de misturas que ocorriam nessa época e que, como expõe
Eusébio Lôbo, não condizem com a diversidade de modos de misturar a capoeira e a dança
cênica existente neste contexto89. Porém, nosso estudo utiliza apenas estes exemplos, com a
finalidade de ilustrar os pontos de análise aqui levantados.

Rego (1968) relata que:


Nos palcos teatrais, a capoeira aparece totalmente estilizada. Quando não se estiliza
nas coreografias de danças modernas, fazem-no nos espetáculos de conteúdo afro-
90
brasileiro, como se vem fazendo, dentre outros, Solano Trindade . Quando isso não
acontece, fazem-se espetáculos montados, onde se cantam músicas com conteúdo de
capoeira, como fazem Ellis Regina e Baden Powell, na boîte Zum Zum, batizando o
91
espetáculo com o nome de Berimbau . (REGO, 1968, p. 322).

Nas configurações relatadas acima, podemos identificar dois modos de aproximação entre
capoeira e dança, sendo o primeiro caracterizado pela escolha de temáticas que se serviam da
capoeira para representação de uma ideia específica como fio condutor de um espetáculo ou
coreografia, como por exemplo, “cultura baiana”. Já o segundo diz respeito ao empréstimo do
virtuosismo e de padrões de movimentos presentes na capoeira, possibilitando a inovação de
passos e do vocabulário de movimentos das técnicas tradicionais de dança, através da
adaptação de linhas e formas da capoeira à estética do balé clássico ou da dança moderna.

O procedimento que Rego (1968) denomina de estilização refere-se a uma mistura em que um
texto, neste caso, uma técnica serve como “tradutora” da outra sem que haja modificações
significativas em ambas durante o processo de mescla. No caso explanado, as técnicas
acadêmicas serviram como filtro pelo qual a capoeira era “traduzida”.

Desse modo, inferimos que algumas configurações produzidas nas décadas de 1960 e 1970 na
cena baiana, apresentavam-se muitas vezes contextualizando e dando sentido lógico à
inserção da capoeira em shows folclóricos, ou apresentavam-se inseridas em coreografias que

89
Deve-se ressaltar a existência de outros modos de hibridação entre capoeira e dança na década de 60 e 70 em
Salvador além das exemplificadas e discutidas nesse estudo. No entanto, os exemplos que trazemos visam
apenas traçar os pontos de análise.
90
Jornal do Brasil, Guanabara, 18/1/67, Caderno B, p. 5.
91
Jornal do Brasil, Guanabara, 18/1/67, Caderno B, p. 6.
125

se interessavam em combinar e ressaltar o virtuosismo técnico, um ponto comum existente na


dança moderna, no balé clássico, e em algumas formas de Capoeira.

Um exemplo é a coreografia Capoeira do amor, criada em 1970 pelo Mestre Acordeon


(Ubirajara Almeida), e reproduzida, segundo Emília Biancardi (2006), por vários grupos
parafolclóricos.

Contudo, seríamos simplistas se enquadrássemos nesta tendência o trabalho dos inúmeros


grupos e ou companhias de dança que atuavam no período, tendo em vista que muitos desses
grupos, sobretudo os folclóricos e os parafolclóricos, recriavam as danças locais partindo da
premissa de reafirmar a necessidade de valorização das mesmas. O extinto Grupo “Viva
Bahia” exemplifica tais premissas, uma vez que obtinha constantemente encontros com
mestres da cultura popular para ensinar seus saberes e tradições ao grupo. Emilia Biancardi
(2006), diretora do grupo, denomina esses mestres como “portadores do folclore”.

Figura 32: Mestre Pastinha ensinando capoeira para duas integrantes do grupo Viva Bahia:
Luisa Sampaio e Helena Santos, 1963.

3.2.1 Apontamentos sobre a capoeira como recurso artístico-pedagógico

As informações sobre a utilização da Capoeira pela Dança Cênica nas décadas de 60 e 70, em
Salvador, fazem-nos refletir sobre a ideia de que o impacto visual da capoeira em shows,
espetáculos e obras coreográficas parece ter assegurado um interesse estético que permitiu
126

que a capoeira fosse utilizada até hoje: como artifício cênico em configurações que investem
na virtuose e na espetacularidade da capoeira e/ou como recurso preparatório de grupos
voltados para a recriação de danças populares locais.

Nesse sentido, reforçamos nossa hipótese de que os primeiros registros deste cruzamento,
coreografias e espetáculos comentados por Rego (1968), serviram como principal espaço para
o impulsionamento de um processo paulatino de investigação desta linguagem por
coreógrafos que visavam certas qualidades, habilidades e aptidões características dos
capoeiristas para dançarinos que tinham um treinamento pautado em técnicas tradicionais de
dança.

Rego (1968) nos dá pistas sobre o assunto em sua obra Capoeira Angola - ensaio sócio-
etnográfico ao colocar que:
A capoeira é ensinada como educação física, nas forças armadas e nas escolas.
Alunos da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia vão às academias
aprenderem capoeira para utilizarem na criação de suas coreografias. A capoeira está
92
no cinema, na música, nas artes plásticas, na literatura e nos palcos teatrais.
(MAGALHÃES apud REGO, 1968, p.316).

Contudo, as observações que fizemos durante esta pesquisa, de processos recentes, parecem
indicar avanços na construção da interface capoeira e dança.

Tal argumento se constrói sobremaneira por duas ideias. A primeira diz respeito à expansão
de diálogo que a “capoeira” conquistou desde a década de 60, ou seja, além de shows
folclóricos e ou grupos interessados em recriar traços de uma dança afro-brasileira,
conferimos atualmente inúmeros espetáculos que se utilizam da capoeira sem, contudo,
apresentar relações cênicas explícitas com o universo popular93. A outra ideia, também
entrelaçada a essa, diz respeito aos diferentes propósitos com os quais a capoeira vem sendo
apropriada atualmente, transpassando configurações e tornando-a cada vez mais constantes
investigações para processos de criação e ou metodologias para a dança, como veremos na
próxima seção.

92
Trecho da carta redigida por Juracy Magalhães (Interventor Federal na Bahia) a Waldeloir Rego em 10/05/
1966 – Guanabara.
93
As obras produzidas pelo capoeirista e criador Alê Tripiciano servem de exemplo. Seus espetáculos, apesar de
apresentarem a desconstrução e recriação de códigos formais da capoeira, abordam temáticas que não criam
relações metafóricas e simbólicas com a cultura popular. Ver mais informações no Anexo G deste estudo. Outro
exemplo dessa tendência pode ser conferida nas obras coreográficas já citadas e produzidas por Jorge Garcia,
como “Histórias da Meia Noite” (2007) e “Um conto idiota” (2008).
127

Assim, a deflagração de pesquisas corporais que misturam elementos e aspectos da Capoeira à


Dança Cênica alavanca discussões levantadas já há certo tempo, como as realizadas por
Robatto (2002), que defendia a integração da capoeira como uma das disciplinas básicas de
técnica corporal na formação de dançarinos. A autora parte da observação de um conjunto de
princípios que, segundo ela, torna-se produtivo para pesquisas interessadas em utilizar a
capoeira enquanto ferramenta para a investigação de conteúdos frequentemente abordados em
técnicas de dança94. Entre suas observações ressaltamos:
- a multiplicidade de dinâmicas de movimento existentes no jogo corporal da capoeira;
- o uso equilibrado dos esforços empregados aliados a uma base rítmica com movimentos
“ondulados” (sic), fluidos e contínuos;
- a alternância do peso, utilizando movimentos balançados;
- a ‘soltura’ dos movimentos consequentes destas dinâmicas.

Podemos detectar, na capoeira, uma compensação na distribuição do peso que está


quase sempre fora do seu eixo natural. O uso de contrapeso, como, por exemplo, nos
chutes tipo martelo ou nos impulsos para aumentar a força dos golpes, como no
chapéu-de-couro, em que o troco é usado na direção oposta da perna que desfere o
golpe, aproveitando o balanço do corpo em busca de um equilíbrio dinâmico [..] As
quedas pousam o corpo no chão, suavemente, sem nunca quebrar a continuidade, e o
fluxo do movimento do jogador, que coordenadamente, interliga seus ritmos, níveis
e suas mudanças de direção contrastantes e, por isso, inusitados para o adversário,
que, para defender-se e contra-atacar, tem que ter um bom jogo de cintura,
propriamente dito! (ROBATTO, 2002, p.73).

A descrição acima explica o que a autora denomina como qualidade “dançável” na capoeira.
Uma qualidade que, para a mesma, não se atém somente à observação de princípios
organizativos, mas também à expressividade dos códigos gestuais, à beleza dos movimentos e
à improvisação criativa dos golpes (ROBATTO, 2002, p.75).

94
No livro Passos da Dança na Bahia (2002), além de discutir princípios e características que a autora considera
relevantes para o dançarino, Robatto aproxima capoeira e a técnica de dança de contact improvisation:
“Comparando a capoeira com as técnicas de dança moderna de contact improvisation de origem norte-americana
vejo alguns fatores comuns: a relação cinética dois a dois, o diálogo através do movimento, o mútuo estímulo
físico, dentro de princípios simetricamente opostos. A capoeira lida com uma interrelação corporal de golpes,
contragolpes e fugas, em que os contatos físicos têm a função de ataque e defesa com objetivo de desequilibrar,
derrubar ou neutralizar o outro pelo impacto do movimento, o que exige o domínio de uma técnica de controle
dos pontos de apoio e transferência de peso. Na técnica de contatct improvisation há também uma interrelação
corporal, uma dança com uma ação contínua de aproximação, em que o corpo de um dançarino, impulsionando
seu próprio movimento e/ou o do parceiro, através de um controle de pontos de apoio e transferência de peso,
como na capoeira, com objetos estético-criativos coreográficos. Em relação desses pontos em comum, acredito
que uma experiência de trabalho conjunto dessas duas técnicas podem resultar num desempenho corporal com
uma qualidade muito especial para a dança”. (ROBATTO, 2002, p. 75).
128

A essa discussão torna-se complementar a proposta de Klauss Vianna de incluir a prática da


capoeira como técnica complementar em um Planejamento de técnica básica de dança
(ANEXO J), formulado coletivamente por ele e demais dançarinos, em 1985, como no trecho
a seguir:
4o. semestre – capoeira como dança. O desenvolvimento da capoeira até se tornar
dança, estabelecendo uma relação com o ballet clássico, no sentido de dinâmica e
musculatura. Tanto o ballet como a capoeira deverão ser desenvolvidos até o último
semestre. (ANEXO J).

Tendo em vista que as sugestões formuladas por Vianna (1985) e Robatto (2002) ainda não
apresentam grande aderência no ambiente acadêmico da dança, entendemos que esses dados,
ao mesmo tempo em que evidenciam uma pálida inserção da capoeira e de outras danças
populares em cursos superiores95, retratam paralelamente um recorrente interesse por
criadores e intérpretes fora do ambiente acadêmico96.

3.2.2 A capoeira nos cursos de formação de dança

No que tange a incorporação desta linguagem em instituições superiores, temos


frequentemente a capoeira dentro de atividades de extensão ou em projetos artísticos e
científicos gerados por alunos e professores interessados nessa prática97. Como parte de
disciplinas específicas voltadas para a formação de dançarinos, têm-se exclusivamente as
disciplinas denominadas: Capoeira aplicada à composição coreográfica e Capoeira como
técnica alternativa; respectivamente, ofertadas pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto
de Artes da Universidade Estadual de Campinas/IAR – Unicamp e pelo Curso de Educação

95
A argumentação sobre o pouco destaque desta prática cultural em ambiente acadêmico não foi alvo de uma
pesquisa detalhada, tendo em vista o número crescente de cursos superiores em dança, a formulação e
reformulação constante de novos e antigos cursos na área, e o entendimento de que esse mapeamento
extrapolaria a amplitude desta dissertação. Porém, nas grades curriculares dispostas na internet e manuais
acadêmicos dos cursos superiores em dança mais difundidos, não identificamos nehuma referência à prática da
capoeira. Esse dado, embora preliminar, reforça o argumento embasado prioritariamente na minha vivência
enquanto aluna e professora das respectivas Universidades: Faculdade de Artes do Paraná, Universidade Federal
de Viçosa, Universidade Federal da Bahia.
96
Nos apêndices desta dissertação, encontra-se um sucinto levantamento de profissionais que já investigaram ou
que utilizam recorrentemente a capoeira como recurso pedagógico em dança ou em seus processos de criação.
Esta lista foi elaborada em momento de pré-seleção dos profissionais investigados neste estudo, e visa oferecer
ao leitor informações sobre demais interessados no tema (APENDICE A).
97
O projeto de pesquisa Pensamento mestiço no corpo que dança: entrecruzamentos entre Capoeira Angola e o
Movimento Hip Hop, de Verônica de Moraes sob orientação da Professora Doutora Eloisa Domenici,
exemplifica uma forma de articulação entre interessados no tema. O objetivo do projeto consistia em investigar
procedimentos compositivos como operadores de mestiçagem na criação e dança e resultou no solo de dança
Bom de Quebrar, selecionado par a Mostra Rumos Dança (2006/2007).
129

Profissional Técnico de Nível Médio em Dança da Escola de Dança da Funceb/BA98. Esses


dados sugerem como aponta Domenici (2009), um desafio a ser vencido.
Recentemente, a ação de alguns criadores da dança contemporânea em busca de
novas matérias primas reacende o interesse pelo assunto. O desafio de integrar as
danças populares no ensino acadêmico não se coloca desta vez sob a bandeira
ufanista do modernismo, mas pelos novos pressupostos abertos pela própria dança
contemporânea, que incluem o interesse por diferentes possibilidades de ignições
corporais, de dramaturgias e procedimentos técnicos. Ou seja, não se trata de afirmar
que o Brasil é só o que interessa, mas de assumir que as culturas locais também
interessam e com a mesma importância que as culturas estrangeiras. (DOMENICI,
2009, p.16).

É notável que o pensamento contemporâneo de dança, frequentemente interessado no


cruzamento de diversas linguagens, tem gerado novas demandas de aprendizado, bem como a
abertura para outras técnicas e práticas corporais na formação de dançarinos. Nesse sentido,
evidenciam-se cursos, workshops e minicursos ministrados por dançarinos e capoeiristas que
pesquisam relações entre capoeira e dança, seja em academias, encontros, e/ou festivais e
mostras. Essa demanda reverbera também na forma de estudos acadêmicos desenvolvidos em
grande parte nos programas de pós-graduação em artes e educação. Em suma, são estudos que
investigam a capoeira como foco de interesse para pesquisas corporais destinadas a práticas
socioeducativas, ou a processos de criação, em dança, teatro e música.

Voltada para o campo da dança, destaca-se a pesquisa desenvolvida pelo Professor Eusébio
Lôbo da Silva, que instrumentaliza dançarinos não só corporalmente, mas teoricamente a
entender princípios, fundamentos e conceitos da capoeira para a composição coreográfica.
Também Flávio Soares Alves99 apresenta singular contribuição para o assunto, pois concentra
seus estudos em princípios corporais organizativos, estéticos e expressivos da capoeira para
uma poética em dança contemporânea.

98
A discplina Capoeira aplicada à composição coreográfica é ministrada pelo Professor Doutor Eusébio Lobo
da Silva. Informações sobre sua atuação e pesquisa já foram citados neste estudo. Além desta, vale destacar a
participação de Mestres de capoeira nas disciplinas Danças do Brasil, que compõem a grade curricular do curso
de Graduação em Dança da UNICAMP. Já a disciplina Capoeira como técnica Alternativa (Escola de Dança da
FUNCEB/BA) é ministrada por Mestre Zambi desde 2003. Marcos Cezar Santos Gomes é Mestre de Capoeira
formado pela Associação de Capoeira Mestre Bimba, graduado em Educação Física pelo Centro Universitário
Jorge Amado, e Especialização em Psicopedagogia- ACEB-FETRAB. Mestre Zambi foi professor do Balé
Folcórico da Bahia entre 2003 a 2007 e atualmente dá andamento ao curso de especialização em estudos
contemporâneos em dança - UFBA.
99
Flávio Soares Alves, pesquisador da capoeira e da dança, é Mestre em Artes pela Universidade Estadual de
Campinas e Doutorando em Educação Física pela USP-SP. O artigo ao qual nos referendamos é intitulado como:
“Uma conquista poética na dança contemporânea” (2003).
130

Além desses, merece destaque a dissertação de mestrado de Sandra Santana100, que apresenta
como objetivos principais: apontar critérios para a definição de princípios de treinamento
técnico para a dança contemporânea, e, tomando-os como referência, num procedimento
caracteristicamente comparativo, discutir a aplicabilidade ou adequação do treinamento da
capoeira angola na preparação técnica de dançarino. Outra importante contribuição na área é a
dissertação de Renata Lima101, uma das criadoras investigadas neste estudo, que já no
mestrado discutia de que maneira a capoeira era utilizada dentro de um processo criativo,
apoiada em uma pesquisa sobre o Hip Hop e a Capoeira.

Todavia, vale salientar que estudos na área do teatro, os quais se propõem a refletir sobre a
capoeira, são também de extrema pertinência para reflexões na área da dança, visto o enfoque
recorrente ao componente prático do jogo como lugar onde se obtém ferramentas preciosas
para o desenvolvimento técnico-expressivo do intérprete102.

100
Sandra Santana, capoeirista e dançarina é autora da dissertação de mestrado entítulada: Capoeira angola e
técnica de dança: Análise de movimento e descrição de princípios para o treinamento de dançarinos. Progreama
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UFBA. Salvador – BA, 2002.
101
SILVA, R. L. Mandinga da rua: a construção do corpo cênico a partir de elementos da cultura popular
urbana. 2004. Dissertação (Mestrado em Artes) IAR. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004.
102
Ver mais informações em: BARÃO, Adriana de Carvalho. A performance ritual na roda de capoeira.
1999. 231f. Dissertação (Mestrado em Artes Corporais) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 1999; OTANI, Daves. O ator em jogo. Campi2005. Dissertação (Mestrado em Artes) –
Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.; LIMA, Evani. Capoeira angola como
treinamento para o ator. 2002. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2002.
131

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Figura 33: Gravura Total de Carybé. Capoeira Vinil. 1981.


132

Nesta dissertação discutimos o encontro entre Dança Cênica e Capoeira, analisando o trabalho
de duas criadoras que se dedicam à construção desta interface. A pesquisa se define como
estudo de caso, no qual foram utilizadas observação participante, entrevistas e análise de
material escrito pelas criadoras e sobre as mesmas.

A análise dos modos como cada criadora opera esse cruzamento nos serve como mote para
discutir as relações que se estabelecem entre as linguagens em questão – Capoeira e Dança
Cênica –, bem como para refletirmos a respeito dos processos de mestiçagem e como estes
ocorrem nas artes.

No caso da hibridização entre dança e capoeira, há que se considerar que fatores


historicamente consolidados colaboram para um desnível de relações entre essas linguagens,
uma vez que observamos frequentemente profissionais da dança cênica manipularem a
capoeira como material exótico, estabelecendo uma relação de dominância das lógicas de uma
linguagem perante a outra. Mudanças trazidas pelo pensamento contemporâneo de dança
tendem a desconstruir tal desnível, possibilitando maior diálogo material entre as linguagens
postas em contato, neste caso, dança e capoeira.

Constatando o rico manancial de possibilidades indicadas nos diferentes cruzamentos entre


capoeira e dança cênica discutidos nesta dissertação, consideramos que pesquisas artísticas
que exibem o propósito de valorizar a capoeira como prática capaz de fecundar
entrecruzamentos artísticos enfrentam o desafio de estabelecer nexo entre seus propósitos e as
tensões sociais densificadas em contexto de globalização. Como argumenta Gruzinski (2001),
esta condição vem contribuindo para o aceleramento de trocas que volta e meia são associadas
a mestiçagens, uniformização e globalização, transformando qualquer objeto em mercadoria e
acionando circulações incessantes que alimentam um melting-pot agora planetário.

Por essas razões, consideramos que a promoção do conhecimento das danças populares no
campo da dança não pode ocorrer a qualquer custo. Antes, é necessário desmistificar visões
equivocadas que isolam tais práticas dos processos formativos em dança e, principalmente,
debater sobre as implicações políticas subjacentes em ações como as pensadas ao longo deste
estudo, como já observou Katz (2004):
As danças populares brasileiras, porque estariam à salvo do imperialismo da técnica
do balé, seriam a salvaguarda última da dança brasileira. O equívoco dessa
formulação se dá por conta da ignorância de que o corpo é corpomídia e, portanto,
133

também o corpo da dança popular não escapa à ação por exemplo, dos meios de
comunicação de massa. Carnaval, capoeira, hip-hop – nada permanece imune à
contaminação. Nem hoje, nem nos seus respectivos processos de formação, nos
quais não se podem ignorar as relações coloniais e mercantis existentes. (KATZ,
2004, p.128).

Dessa forma, apresentamos a ideia sobre quão importante se faz o estímulo e o


desenvolvimento de estratégias e procedimentos que propiciem aos intérpretes a exploração
da mistura capoeira e dança, uma vez que estas investigações potencialmente podem auxiliá-
los a borrarem fronteiras entre ambas as linguagens, por meio de tessituras variadas.

Nesse sentido, concluímos que investigações que se utilizam da capoeira para a criação de
dinâmicas, jogos, processos compositivos, estruturais (sejam estes, regras, roteiros,
sequências de movimentos) e estudos sobre a sintaxe e a semântica do movimento da
capoeira, sua ressignificação e transformação, configuram-se como um conjunto de
estratégias produtivas para se criar a partir da capoeira.

Costurando nossa análise sobre a pesquisa de campo realizada, bem como nossas
considerações finais sobre a produtividade da capoeira em processos de criação em dança,
percebemos no trabalho desenvolvido por Renata Lima contribuições já direcionadas para
essa perspectiva, uma vez que seu trabalho parte do ponto de vista de quem investiga modos
de ensinar e colaborar com um instrumental metodológico para que outros intérpretes possam
posteriormente dirigir seus próprios processos de criação.

Assim, nessa metodologia, a capoeira é trabalhada como meio de capacitar o intérprete à


aquisição de qualidades relevantes para o processo criativo, como, por exemplo, a habilidade
de explorar estados corporais que podem posteriormente resultar em formas singulares de se
movimentar. Como argumenta Domenici (2008), estes procedimentos apresentam-se como
atuais parâmetros de investigação do corpo que dança:
A exploração de estados corporais na criação em dança utiliza uma capacidade
fisiológica do corpo, que é o ciclo de produção de movimentos e imagens
(metáforas). Compreender os mecanismos que interligam estados tônicos a imagens
mentais e sensações corporais pode ser de grande interesse para aprofundar esse tipo
de trabalho (DOMENICI, 2008, p.3).

Nesse viés, processos de criação que “manipulam” a capoeira por meio de procedimentos
como a criação de metáforas, imagens tátil-cinestéticas, dinâmicas internas e corporais e
estados de corpo tendem a reunir informações deste universo que são intrínsecas à
134

materialidade da capoeira. Por essa via, entendemos que o reconhecimento de alguns aspectos
e lógicas que entremeiam este texto da cultura e o pensamento contemporâneo de dança
(ambiguidade, subversão, imprevisibilidade, individualidade e permeabilidade, entre outros)
pode facilitar o intérprete a compreender lógicas que acompanham traços estéticos da
capoeira e, consequentemente, pode fomentar a expansão de redes de conexões que se
propõem ir além da reprodução de códigos formais e técnicos da capoeira e dança. Reside aí o
porquê das explanações anteriores sobre alguns aspectos presentes na capoeira, pois, como
ocorre na dança, o corpo do capoeirista apresenta lógicas coerentes com os princípios que
fazem a capoeira ser como é.

Certamente, sobre isso, reconhecemos que tais explanações são limitadas, uma vez que o
trânsito entre os saberes populares e acadêmicos ainda mostra-se tímido e, consequentemente,
impede um acesso mais sensível que só se dá na prática. Apesar de detectar que algumas
pesquisas artísticas, como no caso da metodologia proposta por Renata Lima, vêm explorando
mais intimamente fundamentos, lógicas e aspectos subjetivos deste texto da cultura, não
apresentamos mais dados empíricos sobre a relevância desse entendimento para processos de
criação que envolvem capoeira e dança, visto que nosso objetivo concentra-se, primeiramente,
em explanar questões emergentes dos trabalhos que misturam ambas as linguagens e que
foram discutidos nesta dissertação. Contudo, reforçamos tal argumento por entender a dança
como um tipo de conhecimento específico; uma forma de ler o mundo. Por essa razão,
sublinhamos que, assim como a dança, qualquer outra técnica corporal que seja mesclada a
ela encontra-se implicada com aspectos organizativos de nível macro, contextos e
entendimentos que ocorrem no corpo e que, se entendidos e assimilados, poderão
potencializar ainda mais a hibridação em questão.

Com isso, não estamos supondo que a única via para processos interessados em hibridizar
Capoeira e Dança Cênica seja através da iniciação do intérprete na capoeira. Entretanto,
entendemos que a compreensão das lógicas e princípios desta prática pode subsidiar
sobremaneira investigações corporais que se interessam pela construção de interfaces com
dança e capoeira. Além disso, entendemos que procedimentos compositivos, mesmo que
desenvolvidos inicialmente para a produção de textos coreográficos, podem também servir
como espaço para reflexões sobre a construção desta interface. Nesse viés, encontra-se o
trabalho de Claudia de Souza, que, como já explicitado, visa produzir material para
composições coreográficas. Este direcionamento não impede, no entanto, que as conexões
135

feitas por ela possam ser desdobradas metodologicamente para alimentar futuras pesquisas,
mesmo tendo claro que este não é seu objetivo atual.

Desse modo, observações e pesquisas sobre procedimentos, como apresentamos na análise do


trabalho de Claudia de Souza, a nosso ver, podem levar à formulação de algumas hipóteses
que, mesmo não apresentando estabilidade enquanto metodologia para a capacitação de
qualidades técnicas e expressivas, mostram-se como questões relevantes para uma análise
sobre o nexo entre as escolhas estéticas e a proposta de cada criador. Ainda nesta direção e
por meio da análise dos trabalhos observados ao longo deste estudo, constatamos que a
experiência do jogo corporal da capoeira pode atender tanto às relações estritamente estéticas
como também ao desenvolvimento de estratégias pedagógicas. Essa variação de
possibilidades apresenta-se como um dos fatores que contribui para que o fenômeno da
mestiçagem seja caracterizado pela imprecisão e a incerteza do devir, permitindo-nos afirmar
que os trabalhos de Claudia de Souza e Renata Lima estão em constante processo de ebulição.

Mesmo nos deparando com a incerteza e a infinitude de possibilidades de desenvolvimento da


mistura entre Capoeira e Dança Cênica, operadas por essas e outros criadores, consideramos
que nossos esforços para entender questões emergentes desse fenômeno contribuem para
acrescentar conhecimento a proposições e apontamentos formulados por outros estudiosos
sobre a aplicação da capoeira como recurso pedagógico relevante para o desenvolvimento
técnico-expressivo do intérprete.

Em suma, não procuramos universalizar a capoeira como prática fundamental para a dança,
pois entendemos que o desenvolvimento de qualquer processo criativo deve apresentar
coerência entre o treinamento adotado pelo criador e o propósito o qual este se debruça.
Mesmo assim, considerando as ricas possibilidades de diálogo entre capoeira e o pensamento
contemporâneo de dança, apresentamos àqueles que se interessam pelo assunto questões que
possibilitam o aprofundamento de reflexões sobre a hibridação entre Capoeira e Dança
Cênica.

Nesse sentido, quando um professor ou criador em dança, além das técnicas estrangeiras,
incorpora a cultura local enquanto recurso para inovação e reinvenção de códigos artístico-
estéticos exercita a construção do que Lotman (1996) conceitua como texto multivocal, que
combina diferentes “vozes” em um único texto. Um enunciado que em sua codificação é
136

capaz de comunicar mais de um significado em uma linguagem qualquer, capaz de ser


comunicado, por exemplo, pelo corpo que dança. Esta argumentação possibilita a
compreensão proposta pelo autor no que diz respeito à dinâmica interior de textos artísticos,
que são criados em diálogo com os símbolos e signos da cultura, e apresentam
[...] uma parte orientada a aumentar a unidade interna e a clausura imanente do
próprio texto [artístico], sublinhando a importância das fronteiras do texto, e, por
outra, a incrementar a heterogeneidade, a contrariedade semiótica interna da obra, o
desenvolvimento de subtextos estruturalmente contrastantes dentro desse texto, que
tendem a uma autonomia cada vez maior. (LOTMAN, 1996, p.79, tradução nossa).

A diluição dos contornos, a vulnerabilidade dos mesmos e a criação de novos elementos


resultantes dessa instabilidade podem metodologicamente auxiliar em diálogos interculturais,
onde se faz possível a criação do próximo e do familiar entre textos diferentes.

Consequentemente, nos processos de desconstrução destes códigos materiais, verifica-se a


possibilidade de redes de cruzamento mais complexas devido a interpenetrações de
informações variadas, pois, assim, aumentamos o fluxo constante e variado de elementos em
busca de novas configurações. Ao contrário da manutenção fronteiras entre os textos, o
entremeamento de suas lógicas e a diluição dos seus contornos pode enriquecer os processos
de misturas culturais, tais quais elas são produzidas em seus respectivos contextos
socioculturais.

Considerar esta possibilidade de análise para o que em cena é materializado sob forma de
dança nos permite ampliar as possibilidades de abordagem no que se refere ao
entrecruzamento da cultura popular local com a dança cênica, sem, contudo, exigir do artista-
propositor e do público a obrigação do reconhecimento de formas literais de movimento e da
reprodução destas manifestações culturais tais quais elas são produzidas em seus respectivos
contextos “originais”. Ou seja, uma vez que exercícios de tradução aumentam as capacidades
produtivas de cada ambiente onde são gerados, a criação de textos artísticos embebidos pela
cultura popular tendem a ganhar autonomia.

Assim, finalizamos esta dissertação com a ideia de que os processos de mistura que envolvem
a capoeira podem abrir efetivamente novos caminhos para a produção de dança.
137

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143

APÊNDICES

APÊNDICE A – Sucinto levantamento de profissionais que investigaram ou


recorrentemente se utilizam da capoeira como recurso pedagógico em dança ou em
processos de criação na área.

Renata Lima (SP)


Claudia de Souza (SP)
Alê Tripiciano (SP)
Eusébio Lôbo da Silva (SP)
Lara Machado (SP)
Antonio Nóbrega (SP)
Jorge Garcia (SP)
Flávio Soares Alves (SP)
Rita Rodrigues (BA)
Sandra Santana (BA)
Verônica de Moraes (BA)
Flávia Pilla do Valle (BA)
Claro Trigo (BA)
Geovanni Luchini (BA)
Armando Pequeno – Cia Ladainha (FR)
Jelon Viera – Cia Dance Brasil (EUA)
Zebrinha – Balé Folclórico da Bahia (BA)
Cia Khoros (RJ)
Intrépida Trupe (RJ)
144

APÊNDICE B – Cronograma de atividades da pesquisa de campo realizada.

I Etapa - Pesquisa de campo realizada em dezembro de 2007.

Dezembro 04 05 06 07
Assisti ao ensaio
Assisti ao ensaio e
Claudia de Assisti ao Assisti ao de “Pares” e
ao espetáculo “7 e
Souza espetáculo “Q” espetáculo “Q” espetáculo “7 e a
a mesa”.
mesa”.

Dezembro 08 11 13 16 17
Assisti ao
Claudia de
espetáculo Entrevista
Souza
“Pares”
Assisti a aula
Renata ministrada
Lima para Cia
Abaçaí
Alê Assisti oficina
Tripiciano - Crisamtempo
Jorge Conversei e
Garcia assisti o ensaio
Consulta
Extra acervo Galeria
Olido

II Etapa - Pesquisa de campo realizada em agosto 2008.

Agosto 19 26 29 30 31
Fiz
Renata Lima Fiz aula
aula
Alê Fiz Jam-
Tripiciano session

Fiz aula de balé clássico


Claudia de
Encontro + Filmei ensaio:
Souza
“Adeus corpo gentil”

Extras Arquivo/Multimeio
Centro Cultural São
Paulo + Aula de
Capoeira Angoleiros Sim
Sinhô (Renata Lima).
145

III Etapa - Pesquisa de campo realizada em setembro em 2008.

Setembro 01 02 06 09 12 14 15

Filmei Ensaio “7
Aula de e a mesa” Ensaio
Claudia
Moderno Ensaio “Adeus (filmagem)
de Souza
+ ensaio corpo
gentil...”
Encontro Encontro
Renata
sem Renata (filmagem)
Lima
(filmagem)
Coleta
Alê
de
Tripiciano
material

Setembro 19 22 23 27 28 29 30 31

Aula e
ensaio
Claudia Palestra
aberto
de Entrevista para o
para o
Souza “Danças”
vocacional

Ensaio
Renata Encontro
cancelado Entrevista
Lima (filmagem)
(PAC)
Jam-
Alê Conversa Aula e
session e Conversa
Tripiciano conversa
Conversa
146

APÊNDICE C – Relatórios descritivos das aulas e laboratórios de criação propostos por


Renata Lima

AULA 1 – Aula ministrada para a Cia de Dança Abaçaí – Balé Folclórico de São Paulo.

OBSERVAÇÃO DIRETA – Primeiro encontro (08-12-2007)

Renata diz que irá retomar a aula anterior. Inicia no nível baixo, soltando as
articulações, trabalhando ‘rolê’, ‘cocorinha’, movimentos livres e conduzidos com o quadril
para o chão. Faz isso sem e com deslocamentos. Em seguida, aquece as partes do corpo
envolvendo de modo livre, cabeça, braços, coluna, bacia, corpo todo mais rápido (tipo de
comando: 10% + rápido). Desenvolve, através de movimentos e condução oral, imagens que
propiciam os princípios da ‘instalação’: ‘enraízamento dos pés no chão’, ‘espiral pelas coxas’,
‘zíper e seta’ para alinhar a bacia e a coluna, ‘cachoeira’ que se espalha pelas costas e
extremidades.
Através de deslocamentos na diagonal (em fileiras que avançam para frente),
desenvolve os exercícios: crescer afundando e afundar crescendo (várias formas de
experênciar o eixo), em deslocamento (na meia ponta e com as pernas semiflexionadas),
“ioiô”, “obaluaê”, “enterrando areia”. Trabalha a ideia de cachoeira secando e ganhando
volume até transformar a ginga (trabalho com impulso).
No último bloco da aula, Renata trabalha Samba de congo.

Observações sobre esta dinâmica:


- Relação direta entre a movimentação e que é produzido pelos tocadores. Nesta
vivência a tônica é a comunicação entre os intérpretes que estão no centro da roda
improvisando. O principio olho no olho e a ideia de preenchimento dos espaços são regras
estruturais para o desenvolvimento de uma movimentação que é combinada, encadeada na
hora.

Impressões pessoais:
- Renata fala do corpo instalado experienciando a ginga, o que me faz pensar que o
“aluno”, por esse viés, é incentivado a experimentar qualidades de movimento e fluência
diferenciada através da ginga da capoeira e de golpes que requisitam a expansão e o
recolhimento do corpo;
147

- Renata estimula o intérprete à percepção do que esta sendo feito;


- Desenvolve a maior parte da aula nos exercícios de instalação, dialogando com o
repertório de movimentos característicos do grupo folclórico. Ou seja, além dos padrões da
capoeira e imagens variadas, Renata adapta os exercícios secundários, como por exemplo,
crescer afundando e afundar crescendo por meio de passos e um gestual dos Orixás.

AULA 2 - Aula e laboratório de criação ministrados para o Núcleo Coletivo 22

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE (19-07-2008)

Primeiro momento...
-Massagens com bolinhas de tênis;
-Alongamento pessoal;
-“Pré-Instalação”;
- No chão, deitadas de olhos fechados desenvolvemos um trabalho de respiração.
Ainda deitadas nos é dado o comando para iniciar um alongamento sutil visando
perceber o espaço entre as articulações até gradualmente começar a focar o alongamento dos
músculos. Esse alongamento é executado de forma fluida, com movimentos pessoais que
buscam dar uma dinâmica contínua e redonda para o próximo comando de rolar a partir da
bacia. Os rolamentos começaram a ganhar maior dinamicidade até que os movimentos foram
pausados para o aquecimento da coluna [“gatinho”/ondulações (quatro apoios)]. Após este
exercício, experenciamos nível médio e nível alto procurando projetar desenhos no espaço,
alongando no nível alto extremidades e todo corpo, com a dinâmica chamada “dança das
articulações”.
Aquecidas, entramos na dinâmica chamada ginga pessoal. Começamos através do
comando de explorar uma ginga desequilibrante, pensando em usar os pés de formas variadas
(bordas, extremidades etc). Após certo tempo de exploração, foi pedido a nós que esta ginga
tomasse forma para começar a instalar o corpo.
Comandos: pés enraizados; espiral pelas pernas que sobe até a bacia, possibilitando a
rotação dos joelhos para fora; seta para baixo; e o zíper no púbis. Dessa forma, experenciava
um alinhando entre quadril e coluna.
Nessa ginga instalada, Renata ainda passou aleatoriamente algumas defesas e golpes,
como: ‘meia lua de frente’, ‘rolê’ e ‘negativa’. Sempre de forma contínua, sem pausas
abruptas e chamando atenção para o trabalho postural até o momento realizado.
148

Gingando sempre em deslocamento, foi-nos dado constantemente comandos para que


experenciássemos esta ginga de forma mais suave, de forma mais densa, com a energia gerada
no centro e se espalhando para além das extremidades, passando pela cachoeira, encolhendo e
expandindo a ginga, e, ainda, gingar de forma mais intensa (curta e rápida).
Após um período extenso de investigação dos estados corporais que eram edificados
por meio de imagens e comandos diversos, foi pedido para que gingássemos sempre nos
relacionando entre nós. Após explorar essa relação com o outro, foi pedido que gingássemos
cada qual em um espaço da sala, de modo mais “agressivo” e mais rápido para atacar com o
corpo todo, o espaço. O ataque poderia ser feito com as pernas, braços ou qualquer outra parte
do corpo. Um bombardeio de ataques até que, após todo o corpo aquecido e num estado
corporal de introspecção e muita ação, atacássemos com o externo exaustivamente. A partir
desse momento, foi pedido que gradualmente voltássemos, cada qual para sua pulsação,
assim, o ataque passou a ser transformado em pulsos internos que se transformaram em cada
corpo em uma pulsação cadenciada.
Após esse trabalho corporal, Renata pediu que os intérpretes retomassem as matrizes
de movimentos que foram criadas em encontros anteriores. Neste momento eu me retirei para
escrever a presente descrição.

AULA 3 - Aula e laboratório de criação ministrados para o Núcleo Coletivo 22

OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE (26-07-2008)

O grupo como de praxe conversa inicialmente sobre dinâmicas internas do Coletivo


Núcleo 22.
Em círculo de pé, iniciamos o primeiro exercício na segunda posição, pernas e pés
voltados para fora, joelhos flexionados, quadril alinhado, um braço por cima da cabeça, com
punhos fechados, enquanto o outro ficava próximo ao centro do corpo, também com os
punhos fechados, para fazer a respiração de “cachorrinho cansado” (respiração que tem como
princípio o ato voluntário de vibrar intensamente o diafragma, procurando mantê-lo
“suspenso” sobre o ventre). Pausa, com as pernas esticadas e braços abertos ao lado do corpo,
para inspirar e voltar à posição inicial e repetir mais uma série de respiração (o exercício foi
feito três vezes).
Ainda em roda, com os joelhos pouco frouxos, fizemos balanceios com o corpo para
um lado e para o outro, tranquilamente, sem a preocupação em alinhar o corpo, apenas
149

deixando o movimento ganhar cadência. Desse “balancinho” para os lados, começamos a


gingar descompromissadamente. A ginga era solta e, entre uma ginga e outra, recebíamos o
comando para que fossemos alongando o corpo. Sempre através de pausas e/ou movimentos
contínuos, mas, independente do tempo necessário para alongar as partes do corpo, éramos
conduzidas a manter a ginga.
A ginga, a partir daí, era feita com atenção no espaço e nas articulações. O corpo então
projetava o movimento, desenhando no espaço, linhas e formas. Renata chamava atenção para
os pés, e as formas de usar esses pés na ginga; e, posteriormente, como poderíamos explorar
na ginga os joelhos e os quadris pensando em construir um corpo instalado. Ou seja, ao
brincar pelo espaço com estas partes do corpo, sempre gingando, teríamos que edificar um
corpo instalado, com a seta para baixo, com zíper no púbis, e com o fio de nylon flexível no
corpo. Assim, a transferência de peso ocorria com uma tensão entre o chão e o corpo na
verticalidade, para cima. Nesse momento, passamos a experimentar não só nível baixo e alto
com mais dinamicidade, como também pequenos saltos, giros e quedas que aconteciam com
impulso tirado dos pés enraizados.
Através de comandos verbais, foi pedido que gingássemos pensando nas extremidades
ativas e em uma ginga ampla e condensada, ou ainda, mais rápida, do centro para
extremidade. A ginga tornava-se interna sem, no entanto, parar o movimento, pois o
movimento continuava, mas aparentemente não era externado.
Após experienciar diferentes formas e dinâmicas de ginga, foi orientado que
gingássemos entre nós e em deslocamento pelo espaço; posteriormente foi pedido que
gingássemos de forma mais rápida, mais agressiva para atacar e voltar para a ginga, repetidas
vezes até o bombardeio de ataques constantes com o externo, e, a partir daí, os intérpretes
voltavam e resgatavam as matrizes já geradas em encontros anteriores.
No que segue o processo de criação, pude perceber que após os intérpretes
improvisarem sequências e movimentos, Renata parava e pedia para que refizessem
determinada frase de movimento, então, após esse momento de composição, Renata como
coreógrafa e diretora sugeria algumas emendas com o que já estava estruturado com as frases
de movimento que surgiam no laboratório de criação (composição).
De tempos em tempos, Renata pedia para que as intérpretes gingassem em dupla,
como forma de (re)instalar o corpo; assim, pedia para que em dupla os mesmos
desenvolvessem a dinâmica de investida e ataque, projetando o que estava sendo internalizada
para o espaço.
150

ANEXOS

ANEXO A – Folder da Cia Danças (Temporada de 2008).


151
152
153
154

ANEXO B - Texto cedido por Claudia de Souza referente à pesquisa da Cia Danças
sobre com dança moderna e Capoeira

Sobre o Início da Pesquisa de Linguagem

O projeto da pesquisa nasceu da convivência entre bailarinos do Danças com o


professor Bartô e seus alunos do curso de capoeira na Oficina Estúdio de Dança, escola que
serviu de sede à companhia. A capoeira pode ser percebida sob várias dimensões além de seu
aspecto de luta. É um “jogo” incluído num processo “ritual” com a finalidade de ser
demonstrado em público, o que lhe confere um caráter “cênico”.
A exemplo do que ocorreu às religiões que os negros trouxeram para o Brasil no
período de colonização, a capoeira, que originalmente é uma arte marcial, passou por um
processo de sincretização, precisando “camuflar-se” em um jogo que chegava a assumir ares
de bufonaria. Deste modo, ela assumiu seu caráter mais lúdico no Brasil e assim vem sendo
desenvolvida ao longo da história. È aqui que se dá a introdução dos instrumentos musicais
mais complexos para acompanhamento do jogo, entre outras coisas.
Esses aspectos despertam o interesse para a pesquisa de linguagem, assim como o
domínio do espaço, a qualidade de movimento e o aprimoramento técnico que sempre foram
os objetivos da companhia no seu trabalho. Fundamental para o Danças foi a observação de
uma especial concordância entre a capoeira e a dança moderna: um dos fatores de maior
importância para conferir o diferencial entre a dança clássica e a moderna, é o fato desta
passar a assumir o peso do corpo, em outras palavras, a dança moderna reorientou o vetor dos
corpos para o chão e para real, enquanto o clássico orientava para o ar, para a fantasia. Cada
membro da companhia passou por um processo de treinamento e pesquisa, adquirindo não
apenas o vocabulário dessa arte, como também aquele estado de pré-disposição criativa que
tem o capoeirista ao jogar, tornando-o capaz de recuperar a originalidade do movimento
tantas vezes repetido.
O objetivo do trabalho não é buscar uma coreografia que dê um “tratamento” ao
repertório de movimentos da capoeira, mas antes, dar condições ao bailarino para que venha a
ter com os códigos da dança a mesma relação de originalidade e o mesmo estado de atenção
criativa do capoeirista, que lhe permita recriar os movimentos pela compreensão do diálogo
que é o jogo cênico.
A partir daí, o Danças vem aprofundando-se nessa pesquisa de linguagem, o que o
reverteu à questão da “brasilidade” e suas manifestações, no que diz respeito à forma como
155

uma cultura se inscreve e se lê nos corpos que a vivenciam. Assim, a pesquisa estendeu-se
para os aspectos que as danças e bailados populares abrangem, com especial atenção para a
naturalidade que a expressão através do contato, do toque, tem para nós, e que aos olhos de
um estrangeiro parece tão exótico e especial.
O trabalho da Danças aproveita o resultado da articulação entre dança moderna,
capoeira, dança social e o Teatro para compor espetáculos que falam do nosso tempo e
registram elementos atávicos da cultura que nós, nossos corpos, testemunhamos e
construímos.
156

ANEXO C – Artigo escrito por Helena Katz para o Jornal O Estado de São Paulo, em 16
jun. 99.
157

Artigo ‘Pares” conquista uma nova qualidade no movimento (recorte para melhor
visualização).
158

ANEXO D – Artigo escrito por Helena Katz para o Jornal O Estado de São Paulo. São
Paulo, 4 jun. 1999, Caderno 2.
159

ANEXO E – Artigo escrito por Ana Francisca Ponzio para o Jornal Folha de São Paulo,
São Paulo, 7 jun. 2000
160

ANEXO F - Texto explicativo e descritivo sobre os exercícios formulados para o


processo de Instalação Corporal da Metodologia proposta por Renata Lima

(O texto que se segue é uma parte do texto Sobre Instalação Corporal que está contido na tese
de Doutorado em andamento: Capoeira Angola e Sambas de Umbigada no processo de
criação em Dança Brasileira Contemporânea, e foi cedido gentilmente pela autora, Renata
Lima da Silva.

4.1 Instalação Corporal

O corpo instalado é, então, um corpo diferenciado, isto é, sensivelmente


preparado para uma abordagem extracotidiana do movimento corporal. Assim, a
Instalação se concretiza em alguns exercícios, classificados como primários e
secundários, que foram nomeados metaforicamente para facilitar a explicação e,
também, como recurso imagético de extensão do corpo - conexão do espaço interno e
externo. Sendo os exercícios primários a instalação propriamente dita, ou seja, o corpo
instalado, que é estudado, lapidado, desenvolvido e potencializado nos exercício
secundários, que pressupõem a consciência corporal do primário aliada com atividade
física de condicionamento. Além dos exercícios secundários outros exercícios (que
podem derivar desses ou não) serão citados mais adiante como agente potencializador
do corpo instalado e mais do que isso, como fomentadores da capacidade criativa e
simbólica do corpo.
Tais exercícios (primários e secundários) têm como preliminar um relaxamento e o
aquecimento, procedimentos fundamentais que determinam o nível de concentração e
energia em todo processo de instalação, aqui cabe revelar que a Instalação completa é
realizada em uma média de 1 a 2h de atividade ininterrupta.
A noção de inteireza corporal deve estar presente desde o primeiro momento, isto
é, o relaxamento não deve ser apenas a suavização do tônus muscular, mas também, dos
pensamentos e emoções. Isso porque os exercícios primários e secundários exigem um
grau elevado de concentração, pois tal atividade se baseia em uma busca individual de
auto-conhecimento, e não apenas em repetições de ações padronizadas, que só é
possível de se alcançar com total envolvimento.
161

O preliminar pode ser feito de muitas maneiras, apresento a seguir algumas


formas utilizadas com o Núcleo Coletivo 22, grupo que a pesquisa prática foi
desenvolvida.

Exercício Preliminar 1: Indicado para laboratórios em que os participantes


apresentem bastante autonomia e consciência corporal, bem como envolvimento com o
trabalho

• Corpo estendido no chão, barriga para cima, em situação de repouso.


Completamente inerte a ação da gravidade (aproximadamente 10 min.)

• A partir de alterações na respiração, acontece a transição do relaxamento


(repouso) para o aquecimento (estado ativo).

• Amplia-se a respiração natural, gradativamente, ora projetando no peito


(esterno), ora nas costelas (lateralmente) e por fim no baixo ventre.

• No limite da ampliação da respiração, acrescenta-se a ação vocal,


inicialmente com o som de um “suspiro”.

• Ao exercício da respiração ampliada com o “suspiro”, se insere o


movimento voluntário de expansão (inspiração) e recolhimento
(expiração). Sendo a inspiração-expansão a busca do “alongar” e a
expiração de recolhimento, de relaxamento (esvaziar). A ação começa pela
ossatura, quase sem movimento aparente. A ação vocal pode se
abandonada ou crescer acompanhando os movimentos, variando com sons
de v, x, s e vogais.

• Na dinâmica de alongar e esvaziar, o corpo vai abandonando a inércia e se


tornando cada vez mais ativo, passando do nível baixo para o médio, até
chegar ao alto, valorizando também os pontos de apoio.

• Nas transições entre os alongamentos e relaxamentos se valoriza o


trabalho com as articulações, que aos poucos vão se tornando mais
evidentes.

• A livre movimentação das articulações vai tomando o lugar dos


alongamentos e relaxamentos.

• A “dança das articulações” vai crescendo gradativamente até chegar a um


estado “frenético”, em que todos as articulações se movem
simultaneamente (dinamização).

• Com precisão a “dança das articulações” é interrompida e chega a uma


pausa total de movimento aparente, porém, preservando - na respiração e
no ritmo interno - a intensidade de todo o aquecimento.
162

Exercício Preliminar 2: Seqüência indicada para o grupo que está se iniciando dentro
da metodologia, por ser orientado, fornecendo referências de alongamento.

• Pés plantados no chão, joelhos flexionados, bacia solta, braços ao longo do


corpo, pescoço, cabeça e musculatura da face bem relaxada.

• Inspirar profundamente e na expiração empurrar completamente, que sai


pela boca.

• Fechar os olhos e projetar a escuridão gradativamente para cada corte do


corpo, que vai cedendo à força da gravidade, caindo no chão como em um
desmaio.

• Deitar no chão, sentir os pontos de apoio, soltar as extremidades (dedos,


pernas e braços). Na expiração expulsar totalmente o ar, inspirar
lentamente e na expiração começar a rolar o corpo no chão, utilizando
principalmente o peso da bacia, na inspiração impulsiona o rolamento e na
expiração deixa-o acontecer naturalmente. O chão serve como um
massageador. Dai a necessidade de um piso adequado e limpo, de
preferência madeira ou emborrachado, para que não seja nem frio e nem
duro demais.

• O rolamento vai acontecendo de forma preguiçosa, sem tensão, ao poucos


a dinâmica do rolamento vai aumentando, até que aproveitando um
impulso passa-se da posição de bruço para a posição do gato. Alonga com
os braços esticados a frente e o quadril nos pés.

• Inicia o exercício do Tigre, ondulando a coluna do cóccix ate a cabeça


utilizando o movimento da perna como auxilio, aumentando a dinâmica
gradativamente mais sem exagero de velocidade.

• Empurra o chão e vai pra cócoras esvaziando, alonga parte interna da coxa,
compensa coluna.

• Quadril pra cima e cabeça pra baixo, vai desenrolando lentamente


encaixando cada vértebra. A cabeça e as pernas são as ultimas a chegar. Em
pe, empurra o céu com o topo da cabeça ate o limite.

• Quando se flexiona os joelhos e vai se abaixando ate o nível médio com a


cabeça e o quadril fazendo oposição, formando uma parábola voltada pra
cima na coluna, que no agachamento se transforma em um “c’, isto é, uma
parábola pra dentro, na subida. Em pé, empurra o chão e repete a
seqüência.

• Depois de repetir algumas vezes o “agachamento”, empurra o céu com a


cabeça e espreguiça, expande braços e pernas. Recolhe esvaziando.
Repete. Nas transições entre os alongamentos e relaxamentos se valoriza o
163

trabalho com as articulações, que aos poucos vão se tornando mais


evidentes.

• A livre movimentação das articulações vai tomando o lugar dos


alongamentos e relaxamentos.

• A “dança das articulações” vai crescendo gradativamente até chegar a um


estado “frenético”, em que todos as articulações se movem
simultaneamente (dinamização).

• Com precisão a “dança das articulações” é interrompida e chega a uma


pausa total de movimento aparente, porém, preservando - na respiração e
no ritmo interno - a intensidade de todo o aquecimento.

Exercício Prelimiar 3: Indicado para os dias em que a temperatura do ambiente ou


mesmo a energia do grupo está baixa (frio)

• Em pé, depois de uma leve espreguiçada começa uma ginga solta e


preguiçosa, malandriada... Que se estende por um período que seja
suficiente para o corpo está bem aquecido.

• Com o corpo aquecido a ginga começa a se desdobrar em alongamentos. A


ginga em si vai ficando expandida e densa.

• A ginga volta a para o estado “malandriado”, de onde começa o trabalho


com as articulações – uma ginga das articulações.

• Neste caso, os exercícios primários, são realizados na própria ginga (em


movimento)

4.1.1 Dinamização

Baseado no treinamento energético desenvolvido pelo Lume, dinamização


tem como função a produção de uma grande descarga de energia por meio da
intensificação da dança das articulações, em movimentos em tempo rápido e fluência
livre. Essa descarga de energia é concentrada nos exercícios primários, contando com
uma musculatura extremamente aquecida, a percepção corporal dilatada e o processo de
consciência racional diluída na corporal. Isto é, depois da dinamização dificilmente se
pensa em outra coisa a não ser no seu corpo e estado vivido.
164

A primeira vista, a dinamização parece ser algo estranho, esquisito e


desconfortável. É comum alunos apresentarem dificuldade ou mesmo certa resistência
em executá-la. O que pode se constituir como um problema, pois a dinamização somente
cumpre sua função quando conta com o máximo de empenho.
Assim sendo, é prudente que todo o processo de instalação seja explicado
etapa por etapa, ressaltando a importância de um trabalho contínuo e concentrado (sem
conversa ou pausa e o mínimo possível de distração). Um bom exemplo figurativo para a
dinamização é o exercício realizado por uma dupla:
 O primeiro, com o punho cerrado, e braço esticado tenta realizar uma adução do
braço enquanto o segundo, utilizando mais força que o primeiro impede a
elevação do braço do primeiro.

 Após um tempo de esforço o segundo solta o primeiro. E o primeiro relaxa o


braço.

 O primeiro se surpreenderá ao perceber que o braço se eleva involuntariamente.

Na dinamização acontece algo similiar, ocorre o esforço e a concentração


desse esforço. No entanto ao invés de relaxar como no exercício, a dinamização
desemboca diretamente nos exercícios primários, que agem sobre a energia
produzida no esforço um organizador, um dilatador do potencial expressivo do
corpo.

4.2 Exercícios primários

Fio de Nylon
da cabeça ao ceú

Cachoeira nos
ombros

Zíper no púbis

Seta no cóccix

Arqueamento dos joelhos

Enraizamento dos pés


165

Como podemos perceber no esquema, esses exercícios foram abordados da base


do corpo para cima, justamente com o intuito de trabalhar a noção de “edificação”
corporal, começando do alicerce até chegar ao ápice.
Apesar de cada exercício ser uma etapa da construção, ou melhor, da instalação,
todos se integram e são determinados uns pelos outros. A ausência de um só tijolo põe
em risco toda a arquitetura.
Ainda no calor do aquecimento, de preferência após a dinamização, em pé, com os
pés descalços, paralelos e separados um do outro na largura do quadril, iniciam-se os
exercícios primários propriamente ditos, com o enraizamento dos pés103.
O enraizamento dos pés consiste na máxima adesão dos pés ao chão, abrindo
espaços entre os dedos, enfatizando o apoio em três pontos básicos, formando um
triângulo onde o ápice está no calcanhar. O enraizamento dos pés se completa com um
segundo exercício primário: o arqueamento dos joelhos. Os joelhos são ligeiramente
“rotacionados” para fora, aumentando o arco dos pés, à medida que faz com que os
maléolos mediais “subam”.
O trabalho nos joelhos, ligado com o próximo exercício primário, tem como
conseqüência uma espiral nas coxas, ação de extrema importância em técnica de dança,
já que aciona a musculatura interna da coxa sem sobrecarregar os joelhos - resultante do
arqueamento dos joelhos com o encaixe da bacia, ocasionada pela seta imaginária posta
no cóccix. A seta no cóccix é o terceiro exercício primário e age na região da bacia,
juntamente com o zíper no púbis (do púbis ao esterno), o quarto exercício. Os dois agem
em direções opostas, encaixando o quadril e alongando a coluna, que cresce da região do
sacro até a cabeça, que por sua vez, é o prolongamento da coluna, atravessada por um
fio de nylon que perfura o crânio e se amarra na última estrela do céu. Em oposição ao fio
de nylon está a cachoeira nos ombros. A água corrente e forte da cachoeira cai pelos
ombros, passando pelas escápulas, braço, antebraço e mãos, escorrendo pelos dedos. Ao
passar pelas escápulas, a água da cachoeira alivia o esterno (relaxa).

103
O termo enraizamento dos pés foi baseado na abordagem feita pela Profa. Graziela Rodrigues nas aulas
de Danças Brasileiras, no curso de Dança na Unicamp e pode ser conferida em seu livro Bailarino-Intérprete-
Pesquisador: processo de formação. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.
166

O corpo devidamente instalado tem como pressuposto as oposições, que


modificam o equilíbrio do corpo, o fluxo de energia e até mesmo a respiração, que se
torna mais profunda e lenta.

1 - ENRAIZAMENTO DOS PÉS > Reconhecer o triângulo de base do apoio dos pés:
primeiro metatarso (dedão) , Quinto metatarso (dedinho) e o calcâneo. Pressionar os pés
contra o solo, vetor para baixo a favor da gravidade (afundar). Acentuar (sustentar) o
arco logitudinal medial .
Exercícios complementares:
 Massagem: amassar os pés como se fosse uma massa de pão; desatarraxar os
dedos; entrelaçar os dedos das mãos com os dos pés; tatear os espaços entre os
metatarsos e o arco medial; lateral e transverso. Distanciar o calcâneo da tíbia e
fíbula, como se estive tirando o sapato. Com os pés apoiado no chão, trabalhar
sobre o peito do pé, abrindo os espaços entre os metatarso.

 Rolar os pés sobre o bastão ou bolinha, massagendo-o e pressionando bem contra


o solo e testando o equilíbrio. Com a bolinha no metatarso enfatizando o arco
transversal, e no calcâneo buscando o equilíbrio a medida que enfatiza os pontos
do triângulo do pé.

 Sucção: pressionar os pontos de apoio dos pés e em seguida subir o maléolo


medial repetidamente, trabalhando o arco medial do pé.

2 - ARQUEAMENTO DO JOELHO> como os joelhos levemente flexionados (soltos,


desprendidos) e na conseqüência da elevação do maléolo medial e da rotação externa da
articulação coxo-femural se dá a rotação da tuberosidade da tíbia, provocando o
arqueamento do joelho.

3 - SETA NO CÓCCIX > O cóccix, um pequeno osso no final da coluna vertebral, de


onde se projeta a seta de ferro trabalhando com o peso de toda a bacia, também formada
pelo sacro, ílio, púbis e ísquios.
167

Exercício complementar:
 Desenhar no chão com a seta círculos e o símbolo do infinito (∞) começando do
pequeno (quase imperceptível externamente) para o grande (exagerado)

4 - ZÍPER NO PUBIS > encaixar o púbis, considerando o peso da seta, contraindo a


região abdominal e simultaneamente alongando-a em direção ao esterno.
5 - CACHOEIRA NOS OMBROS > peso de água corrente que desce do topo da
cabeça em direção aos ombros, escorregando também pelo esterno. Está ação provoca a
abdução das escapulas e relaxamento do esterno. A abdução da escapula e o
abaixamento e distanciamento da coluna vertebral que perpassa todo o úmero, rádio e
ulna com o fluxo intenso de água que passa pelas falanges, vazando para espaço externo.

Exercício complementar
 Sensibilização através do toque no outro (parceiro) na região do esterno, clavícula
e esterno direcionando-o para baixo e pra fora. Experimentar a mobilidade do
braço a partir da escapula e do cotovelo.

6 - FIO DE NYLON > Linha imaginária que nasce no sacro em oposição a seta se
estendendo por toda a coluna e a partir da ponta do áxis perfura o crânio em direção ao
céu.
4.2.1 “Consciência do corpo”

Cheguei a dizer precipitadamente, em orientação de laboratório, que a ação


corporal que buscamos, é acompanhado por uma sombra. Mas na verdade não é apenas
isso, trata-se sim, de algo que envolve o corpo e o movimento externamente, como uma
segunda pele ou campo de força, porém determinada pela percepção/ação do corpo
enquanto esqueleto, musculatura e articulações em seu uso diferenciado, que conecta
fisicamente os dois planos do espaço do corpo.
O limite do interno e o externo é a principio a fina camada da epiderme, que
funcionaria como uma fronteira permeável. O dentro e o fora, instaurados por uma
consciência-percepção, tenciona-se, atritam-se... Dilatando o corpo e estendendo-o as
ferramentas da instalação. De onde o movimento poético acontece no espaço e através
168

dele, em pleno domínio do atuante. Nessa perspectiva de corpo no espaço, a ação


acontece considerando os fatores da eucinética e os elementos da corêutica.

• O movimento dos braços sempre, em qualquer situação (rápido, lento,


direta, indireta, livre, controlada, leve ou pesado). Começa na coluna, no
centro do corpo, sendo acionado nas escapulas e definidos pelos
cotovelos. O movimento do braço é um fluxo contínuo de água da
cachoeira, podendo variar a intensidade.

• No corpo instalado a coluna está estendida por dois extremos – a seta no


cóccix e o fio de nylon, que agem em oposição. O fio de nylon não é nada
mais do que uma representação imagética da possibilidade de flexibilização
da coluna. Enquanto a seta tem o peso de uma barra de ferro, que
pendulada no cóccix, faz no espaço o gráfico do movimento do quadril.
Esse peso na bacia é o próprio peso que encontramos nos sambas de
umbigada e na capoeira angola.

• Nas pernas o movimento acontece no enraizar e puxar da raiz do solo


(como se extrai uma cenoura da terra) acompanhada pelo
flexionar/arquear e estender dos joelhos. Essa é uma ação espiralada,
acionando o arco do pé, subindo o maléolo medial e utilizando os músculos
internos da coxa (sartório).

4.3 Exercícios secundários

Nos exercícios secundários o corpo edificado com os tijolos que são cada exercício
primário, é posto em movimento aparente. Essa fase da instalação tem a função de
consolidar o trabalho anterior e de verificar, bem como treinar a sua aplicabilidade. São
eles:
A fun dar
crescen do

E quilíb rio de C rescer


risco afund and o

E xercício s
P rim ários

Im p ulso E xp an são e
reco lh i-
m ento

Q ueda p ela
seta
169

1. Afundar crescendo: à medida que os joelhos se flexionam, as raízes dos pés se


embrenham ainda mais no chão, como raízes de uma grande e velha falsa-seringueira;
simultaneamente, o fio de nylon que sai do topo da cabeça faz força contrária, como
se impedisse a flexão.

2. Crescer afundando: do céu, puxa-se lentamente o fio de nylon, obrigando os joelhos a


se estenderem e os pés a irem para a meia ponta; no entanto, as raízes fazem força
contrária, como se impedissem a elevação.

3. Impulso: O fio de nylon puxa o corpo em direção ao céu, depois que este é alimentado
por uma energia extraída do chão, no ato de flexionar os joelhos e valorizar o
enraizamento dos pés, incorrendo em saltos.

4. Queda pela seta: O peso da seta, repentinamente, faz com que o arqueamento dos
joelhos se afrouxem, ocasionando uma queda a favor da gravidade, ora no nível
médio, ora até o nível baixo.

5. Expansão e recolhimento: O movimento começa no centro do corpo, na coluna, e


cresce passando pelas escápulas, braços, antebraços e mãos, como se a cachoeira que
escorre pelos ombros transbordasse às margens e depois recuasse, indo ainda mais
em direção ao centro. A expansão se inicia nos braços, mas, aos poucos, é
introduzido o uso das pernas. O recolhimento é exercitado primeiro na forma de
relaxamento e depois como contração. Esse exercício pode variar o tempo e a
intensidade: recolher e expandir lentamente; expandir rápido e recolher lentamente;
expandir lentamente e recolher rápido; recolher e expandir rápido.

6. Equilíbrio de risco: Todas as bases primárias agem no deslocamento, explorando


posições em equilíbrio precário, acionando abdômen (baixo ventre) como eixo e força
de equilíbrio.

Observações
 Todos os exercícios devem ser experimentados primeiramente na base primária e
depois em deslocamento. Em primeiro momento, com uma turma com pouco
vocabulário de dança os exercícios podem ser realizados a partir de um modelo. No
entanto, o ideal é que essa seja uma pesquisa individual, isto é, um trabalho de auto-
investigação, onde a cada dia o participante se arrisca mais um pouco.

 A transição entre um exercício e outro deve acontecer de maneira dinâmica e fluida.

 Os exercícios não precisam ser realizados todos de uma só vez, podem ser trabalhados
isoladamente considerando a necessidade do grupo. Como por exemplo, em um dia de
trabalho se concentrar apenas nos dois primeiros exercícios.

 É importante que na realização dos exercícios secundários o corpo está o tempo todo
instalado, isto é, com os exercícios primários em execução.

 Esses exercícios devem ser a base técnica para se adentrar na matrizes da capoeira
angola e dos sambas de umbigada.
170

ANEXO G – Releases das Obras produzidas pelo capoeirista e criador Alê Tripiciano

Evento: Novos e Novíssimos coreógrafos intérpretes – Centro Cultural São Paulo, 2004.
171

Evento: Solos, Duos e Trios – Centro Cultural São Paulo, 2005.


172

Evento: O masculino na Dança 2008 – Centro Cultural São Paulo.


173

ANEXO H – Entrevista com Klauss Vianna no Jornal Folha de São Paulo em 22 ago.-
1990.
(Documento disponível no Acervo Klauss Vianna)

Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 22 de Agosto de 1990


página E-14 / Ilustrada
Érika Palomino

KLAUSS VIANNA CONTA EM LIVRO SUA REVOLUÇÃO

A DANÇA - De Klauss Vianna. Ed. Siciliano, 144 pgs. Cr$ 1.015,00. Lançamento dia
29 na livraria Siciliano do shopping Iguatemi. Já disponível nas livrarias.

“Não é um tratado sobre dança. E quem procurar exercícios, tipo Jane Fonda, vai se
decepcionar. Eu apenas situo o momento atual de dança, questiono o balé clássico, o que eu
faço, o que outros fazem. E falo um pouco sobre minha vida. Questiono mais do que tudo”.
Assim é o livro “A Dança”, numa explicação de seu autor, Klauss Vianna.
Aos 61 anos, 45 deles dedicados ao estudo do movimento, o mestre vê hoje
consolidada sua técnica do movimento consciente. Modesto, diz que o método não é seu, e
sim universal. “Essa técnica possibilita que as pessoas tenham sua individualidade. Se alguém
diz que usa o método de Klauss Vianna é porque não entendeu nada mesmo”.
*
Folha – Você diz que começou a pensar em criar seu próprio método quando seu filho
Rainer nasceu.
Klauss Vianna – Angel, mãe de Rainer, e eu fazíamos clássico. Depois fui tirando a
sapatilha, adaptando o movimento para mim. Quando vi o Rainer nascer, foi também o
nascimento da coisa. É emocionante ver um parto. O menino recebe luz na cara, é separado da
mãe, aquela violência toda. Tive pena do corpinho dele...Fico emocionado até hoje. Foi aí que
comecei a pensar no que acontece com essa criança, que está sendo destituída do essencial, do
movimento da mãe.
Folha – Qual a relação entre o desenvolvimento de seu método e as crianças?
Vianna – Observar crianças é importante. Porque até uns 5, 6 ou 7 anos você ainda se
conserva. Depois dos 30 já se é responsável pela cara e pelo corpo que tem. Você é quem
constrói – ou destrói – seu corpo. Quem não se ama profundamente e quem não quer mudar
174

não precisa nem se matricular na minha aula.


Folha – O que você pensa do balé clássico. Você é contra?
Vianna – Pelo contrário. Luto pelo clássico, desde que bem-dado. O clássico mudou
Se Pavlova visse o clássico de hoje teria dificuldade. Tem que se levar às últimas
conseqüências o que diz o balé clássico, saber por que as posições são abertas, por exemplo. E
também há a sensação de presença. Hoje você começa uma aula, minutos depois não tem
ninguém mais “presente”. O professor fala as mesmas coisas, o pianista lê gibi. Até as pessoas
procuram o mesmo lugar na barra. Estão só cumprindo um dever, não existe um prazer de
dançar. Eu posso dançar em cada movimento, num “pliê”, num “tendu”. Perdeu-se essa
imagem da dança clássica e ficou em evidência apenas a coisa técnica
Folha – O que a capoeira adicionou à sua visão do balé clássico?
Vianna – A seqüência da capoeira é a mesma da dança clássica. Anatomicamente,
toda a barra está ali. Se fosse levada mais a sério, a capoeira poderia ser o balé clássico
do Brasil. (grifo nosso).
Folha – Você acha que existe um dançar brasileiro?
Vianna – Eu também me pergunto isso. E não tenho resposta. Cada um faz de um
jeito.
Folha – Como foi sua gestão à frente do Balé da Cidade, de 83 a 84?
Vianna – De certa forma, foi uma revolução. O bailarino se anula, perde a
individualidade. Então, quis refazer isso, mudar a mentalidade e senti-los como pessoas.
Comprava jornais e livros de história da arte, que líamos juntos. E comecei a falar com eles,
porque até então diretor não conversava direto, deixava bilhete no quadro. Mas fui
pressionado a fazer solos clássicos, como Dalal Aschcar no Rio. Isso eu não faço. Então,
quiseram me botar para fora, mas os bailarinos entraram em greve – a primeira da história -,
pedindo para eu ficar. Cortaram nossas datas no Municipal e então fomos para a escola de
samba. Formei um grupo experimental, com todos esses modernos: Ismael Ivo, Mara Borba,
Denilto Gomes, J.C. Violla.
Folha – E os coreógrafos de hoje?
Vianna – Você não pode ter uma coreografia na sua cabeça e levar isso para o grupo.
Tem que conhecer as pessoas. É desse papo que surge a coreografia.
Folha – Você acha então que a criação é algo essencialmente coletivo? Um
coreógrafo não pode...
Vianna – Não deve, pelo menos. Se você não conversar com o grupo não vai viver a
ansiedade dele. Não sobre vida particular, não é fazer terapia. Mas sentir o que eles querem, o
175

que eles sentem. Dançar estando presente. Imagine 30 pessoas levantando o braço juntas. Só o
balé russo consegue isso. Brasileiro não faz. Mas com emoção a técnica se universaliza e os
braços saem iguaizinhos .
Folha – O que você acha do balé na União Soviética?
Vianna – Acho que eles estão mudando tudo. Eles são danados, estão sacando a coisa
da emoção. Mas eles só vão lançar isso quando tiverem certeza.
Folha – E os americanos?
Vianna – É muito pela máquina...Há os ídolos, como Graham, Limón, Balanchine,
mas há também muita técnica em desenho.
Folha – Mas não há nada ainda definido?
Vianna – Não. Começou com Agnes de Mille em “Rodeo”. Ela pegou o folclore
americano para fazer uma dança americana. Jerome Robbins também já pegou muitas coisas.
Mas ainda está em formação. Se ao menos eles assumissem essa falta de estilo...

Conceitos são individuais

Klauss Vianna nunca quis “batizar” seu método. o NOME – Técnica do Movimento
Consciente – foi dado por seu filho Rainer, 31, também professor. O livro “A Dança” também
não entra em considerações práticas – exercícios, explicações sobre músculos etc. Tanto que a
sistematização da técnica só vai chegar ao prelo através de um livro que Rainer está
preparando, com direito a fotos explicativas.
Klauss afirma não ter seguidores, que o método é individual. Então essa abordagem
tão especial da dança vai acabar com Klauss? Claro que não. Mesmo que negue, o mestre tem
muitos adeptos e alguns herdeiros naturais – a começar de sua própria família: Angel, Rainer,
Neide Neves e até mesmo a pequena Tainá, filha de Rainer e Neide. Sem falar em toda uma
geração de atores, como Tonia Carrero, Marília Pêra e José Wilker, que, literalmente,
aprendeu a pisar no palco com Klauss.
Observação, percepção dos músculos e o gesto a partir de intenções. Apoios do corpo
e a oposição de suas forças, desenvolvida a partir do espaço entre as articulações. Com esses
conceitos – que ele ainda acha que ninguém entendeu direito – Klauss Vianna escreveu seu
nome na história da dança. Um revolucionário. Mas a seu modo, sem alarde. Como a
movimentação que ele propõe que aconteça: em silêncio, individualmente. Como convém a
um mineiro
176

ANEXO I – Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 06-06-1982.


(Documento disponível no Acervo Klauss Vianna)

O Estado de São Paulo, São Paulo, 06 de junho de 1982


Aida Barbara
Coordenação e texto final Luiz Carlos Caversan

O CAMINHO PARA SE CHEGAR A UMA DANÇA BRASILEIRA

No grande palco do Teatro Castro Alves, em Salvador, o clima é de sonho. Um sonho


real, porém a vida, ainda a morte, as cores das ruas, as paixões, o negro/escravo, o grito de
liberdade diante da prisão que é a condição humana, Sonhos reais de um personagem real, o
poeta que empresta seu nome ao teatro, Castro Alves.
Na última sexta-feira de maio, o Balé do Teatro Castro Alves – companhia oficial
criada há pouco mais de um ano e dirigida pelo coreógrafo Antonio Carlos Cardoso –
estreou sua segunda coreografia de peso: “Sonhos de Castro Alves”, inspiração de Cardoso
a partir do livro de Jorge Amado, “ABC de Castro Alves”, com música especialmente
composta por Egberto Gismonti e coreografia de Victor Navarro.
Gente da terra falando (dançando) coisas da terra. Antonio Carlos Cardoso não
desvincula o trabalho artístico da condição social em que ele surge: a arte é voz que fala da
vida. Esta proposta já levada ao palco por Cardoso é aqui discutida pelos diretores das
outras quatro companhias oficiais de dança no País: Balé da Cidade de São Paulo, Balé do
Teatro Municipal do Rio, Balé Guairá, de Curitiba, e Corpo de Baile da Fundação Clóvis
Salgado, de Belo Horizonte. Seguir rigidamente os preceitos do balé clássico ou dar
passagem a temas, gestos e comportamentos brasileiros? Esta questão foi levantada pelas
sucursais do Rio, Curitiba e Belo Horizonte.

A companhia Balé do Teatro Castro Alves tem apenas um ano e pouco de vida, é o
mais novo grupo de dança oficial (mantido direta ou indiretamente por verbas do governo) a
surgir no País. Seu diretor é o gaúcho Antonio Carlos Cardoso, coreógrafo de respeitada
experiência no meio e o principal responsável por uma das fases mais elogiadas no então
Corpo de Baile Municipal de São Paulo. Quando a Fundação Cultural do Estado da Bahia
resolveu fundar uma companhia estável e oficial de dança e convocou Cardoso, o quadro não
era dos mais propícios. Havia apenas o grande teatro Castro Alves e iniciativas esparsas e
177

interrompidas. Mas Antonio Carlos topou a parada e começou do ponto zero: criar condições
físicas no próprio teatro, armar um corpo de assistentes – atualmente, Ariane Asscherick, Ana
Maria Mondiani, Carlos Moraes e Umberto Silva – e, principalmente, reunir o número
necessário de bailarinos. A seleção destes foi feita entre profissionais da região, gente sem
muita experiência e nas condições técnicas possíveis fora do malfadado eixo Rio-São Paulo.
O trabalho foi árduo, reconhece Cardoso. “Porém houve apoio tanto da Fundação
Cultural quanto do público, e, n este último trabalho, de empresas do Pólo Petroquímico e do
Centro Industrial de Aratu. E a partir da realização do primeiro trabalho – ‘Maria Quitéria’,
principalmente – este apoio cresceu, já que a companhia passou a se impor como alguma
coisa concreta, com características bem profissionais”.
A companhia foi ocupando seu espaço, cresceu, ganhou crédito. E uma subvenção que
proporcionou até um especial para a TV com “Maria Quitéria”, com uma hora de duração,
sendo que a meia hora exclusivamente de dança não sofreu interrupções para comerciais. “O
resultado foi nada menos que 14 pontos de Ibope n TV Itapuana, o que equivaleria a 80
espetáculos com casa cheia”.
E depois de contar a saga da heroína, suas lutas como revolucionária popular, símbolo
da força da Bahia, chegou a vez do poeta maior, orgulho do povo baiano. Maria Quitéria,
Castro Alves, temas brasileiros, conotação política: a primeira, revolucionária e heroína; o
segundo, poeta libertário, louco, radical, personalidade controvertida que vai além da
oficialização dos livros adotados pelas escolas de todo o País. Lutador pela causa do negro
escravo, exemplo (ou antiexemplo) de comportamento inquieto. O objetivo de buscar nas
raízes da cultura nacional elementos para um trabalho artístico é muito claro e definido para
Antonio Carlos Cardoso. “Minha intenção é mesmo fazer um trabalho visceralmente ligado ao
Brasil, embora sem radicalismos regionais. Assim, foi com Maria Quitéria, assim é com
Castro Alves. O que poderia fazer? Adotar os estereótipos de que o baiano dança em quanto
anda, fazer um trabalho ‘folclórico’? Não, a partir da pulsação toda especial que há no
movimento de gente daqui, da força da cultura que está aí, na realidade, procuro propor algo
a mais. Castro Alves, ;por exemplo, seria hoje alguma coisa como juma mistura de Chico
Buarque de Hollanda com o Lula: poeta, ativista, político, amante. E minha preocupação é
exatamente com isso tudo, com a realidade, a vida”.
De fato, Cardoso não se contenta apenas com um trabalho esteticamente elaborado. A
estética, só, fica x; a estética voltada para a realidade fica x mais 1. Por isso a sua proposta de
procurar, através do trabalho artístico da companhia que dirige, conscientizar as pessoas para
a importância dos heróis populares que incomodam e são afastados pelo poder –
178

independentemente do regime político. “Além do mais, acho um desperdício se fazer o


exercício estético puro e simples. Se ao fazer arte eu posso conseguir uma conotação social,
porque tentar outro caminho? Mas também sou contra o ranço do ‘engajamento’, assim como
sou contra o discurso do político profissional”.
Cardoso, apesar das dificuldades que enfrentou e enfrenta, está satisfeito com o
resultado que vem obtendo: uma companhia em moldes profissionais, trabalhando em período
integral e desenvolvendo uma proposta artística e política coerente. Sem arroubos
contestatórios, apenas voltada para a riqueza cultural do Brasil. Ou melhor, da Bahia, do
Nordeste, distante muitos quilômetros da atenção das elites culturais deste País. E o trabalho
continua: já em agosto a companhia estréia duas novas coreografias, ainda em elaboração, e a
partir de setembro começam a turnê nacional com “Sonhos de Castro Alves”, devendo
percorrer, pela ordem, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília.Uma turnê
ousada, sem dúvida, mas que provavelmente servirá para que o Balé do Castro Alves
conquiste em outros recantos do País um prestígio que hoje já é perfeitamente consolidado em
Salvador.

Na rua, para sentir o movimento do povo

Avenida São João com a Ipiranga, 18 horas. O semáforo fecha. As pessoas correm
desajeitadas. Tentando atravessar a rua. Alguns dão passos largos, apressados. Outros, lerdos,
sem pressa de alcançar seu destino. Os gestos de uns, rígidos, dispersos. Outros, lentos. Cada
um reflete uma vida, uma necessidade.
Para Klauss Vianna, diretor artístico do Balé da Cidade de São Paulo há apenas dois
meses, este momento é único, inédito. “Movimentação de dança que nenhum coreógrafo
jamais conseguirá registrar”. Esta dificuldade em captar a realidade dos que andam pelas ruas,
o envolvimento do povo com a dança, a integração do bailarino e seu instrumento de trabalho,
o corpo, com o dia-a-dia daquele que persegue o “pão nosso de 7cada dia”, buscando,
escavando, são os objetivos que Vianna pretende transmitir em sua dança.
- A própria natureza do povo brasileiro demonstra que eles são extremamente
inclinados à dança. Mas não a um bailado que reflita necessidades, outras expressões, como
os inspirados em modelos russos, franceses ou ingleses. E sim os de inspiração que diga m
mais a respeito de nosso dia-a-dia, com temas nacionais, regionais, afro ou até os estrangeiros,
mas que nos sensibilize e nos dê algo.
179

Klauss Vianna, n o entanto, não é contrário à execução de “Giselle” ou de “Quebra


Nozes” ou qualquer outro tema do repertório clássico. “Em primeiro lugar, quero deixar claro
que não sou contra nenhuma corrente de balé: clássico, moderno ou jazz. Afinal, para mim,
clássico é tudo que é bem-feito, realizado com dedicação e consciência. Mas, de qualquer
maneira, o que pretendo é conscientizar o bailarino da realidade que está na rua e que,
principalmente, está dentro de cada um, como o medo, o amor e até o ódio”.
A partir da consciência dessa realidade social, cultural, política e econômica é que o
diretor do Balé da Cidade introduzirá a técnica e levará a seguir seu corpo de bailado às ruas,
mais próximo do povo. Para que isto aconteça, a companhia paulista não capitulou na
aceitação de temas europeus, para remontar clássicos de maneira convencional.
- O aproveitamento de nossas heranças, bem como da literatura folclórica, da pintura e
da música brasileira aparecem como elementos extremamente propícios a um
desenvolvimento de um balé nacional que possa vir a ser apresentado com características
próprias e marcantes. Mesmo no Exterior, se viermos a os apresentar, garanto que eles terão
muito mais interesse em ver uma criação nossa, que represente nossas raízes e convicções, do
que interpretarmos uma cópia de seus modelos.
Klauss Vianna teve uma formação em dança clássica em Belo Horizonte, onde nasceu,
mas sua contribuição maior para a arte cênica ocorreu quando introduziu a expressão corporal
em espetáculos teatrais, no Rio de Janeiro. Chegou até a receber um prêmio Molière, o único
até hoje destinado a um professor de dança. Suas experiências em teatro revolucionaram a
dança. Como em “Caso do Vestido”, poema de Carlos Drummond de Andrade, onde a dança
partia apenas do ritmo das palavras, e depois do “Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos,
em que a música era apenas o barulho da máquina de escrever.
Mas sua importância para a dança brasileira vai além dos espetáculos teatrais que fez.
Ele desenvolveu uma técnica, que hoje tenta aplicar nos bailarinos que dirige, que define
como a procura de se usar o espaço em relação ao corpo. ‘Meu trabalho começou a partir da
técnica clássica conhecida. Então eliminei a sapatilha, senti a dança descalço; eliminei a
forma estrutural à procura de outro tipo de expressão em que a emoção também ficasse
presente e à procura de uma técnica que seja uma sementinha para a criação de uma
dança brasileira. Nós temos uma riqueza de música no Brasil; a capoeira mesmo tem um
sentido muscular de dança clássica. É importada da África, mas já foi assimilada e, da
dança, passou a ser uma luta”(grifo nosso).
E Klauss Vianna é, nisso tudo, um autodidata. “Nunca fiz uma aula de dança moderna
e, aliás, dança moderna e clássica são, na verdade, uma coisa só, porque o corpo é um só.
180

Agora as soluções do corpo são infindáveis, mas não são únicas porque sempre haverá uma
certa contemporaneidade nas soluções encontradas”. Sua proposta com o Balé da Cidade não
é utópica, é passar todas as suas impressões. Afinal, ele vê o bailarino como um profissional
com uma série de problemas. “A começar por uma dificuldade verbal em dizer o que está
sentindo, e o problema de viver num mundo muito fechado, muito fora da realidade social
brasileira. Precisamos pensar e criar a partir da nossa realidade social, esse é o primeiro
passo”.
Mas o que ele pretende é, assim como a capoeira, continuar lutando, desbravando
fronteiras. “Temos de seguir um caminho objetivo, percorrer um corredor escuro e comprido,
esquecendo-nos das laterais”.

O clássico como um ‘alicerce fundamental’

Se os balés do Teatro Castro Alves e do Municipal de São Paulo já incorporaram à sua


filosofia de trabalho uma perspectiva nacional, uma preocupação com a realidade imediata do
País, o mesmo não ocorre com o balé do Municipal carioca. O repertório desta companhia é
composto basicamente de peças clássicas estrangeiras, como “Giselle”, “Copellia” ou
“Romeu e Julieta”. E segundo Jorge Siqueira, hoje respondendo pela direção artística do Balé
do Municipal do Rio – Dalal Achar, a diretora, está em Nova York – a ênfase neste repertório
deve-se principalmente à necessidade de se construir o que ele chama de “base sólida” para a
companhia: “Os clássicos se constituem nos alicerces fundamentais de uma escola. Temos de
nos aprofundar neles antes de partir para a montagem de obras regionais ou contemporâneas”.
Ele não descarta, porém, a intenção de, futuramente, adotar um maior número de obras
brasileiras, “desde que o grupo se sinta maduro para tal”.
Fundado em 1932, o Balé do Municipal do Rio teve uma existência desigual até 1975,
quando foi reestruturado e vinculado à Fundação de Artes do Estado do Rio, Funarj. Em 1980
realizou 26 apresentações e, em 1981, passou à direção de Dalal Achar, assessorada por Jorge
Siqueira, para quem Dalal é “a grande animadora da dança brasileira”.
Ex-professor do próprio Balé do Municipal, Siqueira acredita que a montagem de
obras nacionais será uma “conseqüência natural” do trabalho ali desenvolvido. “Além do
mais, se fôssemos procurar uma peça exclusivamente nacional, teríamos de nos limitar a
temas indígenas, pois todo o resto é, de uma forma ou outra, importado”. No entanto, apesar
de não ter assistido ao trabalho do Balé do Castro Alves, ele considera importante a proposta
de Antonio Carlos Cardoso sobre a figura literária, agitadora, do poeta Castro Alves. “O
181

fundamental é que esse trabalho tenha condições de prosseguir, caso contrário poderá ser
reduzido a uma atividade episódica e superficial”.
Mesmo tendo em seu repertório algumas montagens sobre temas brasileiros –
inclusive um recente sobre o “Navio Negreiro”, de Castro Alves – a opção do Corpo de Baile
da Fundação Clóvis Salgado, de Belo Horizonte, é mesmo o balé clássico, tendo como
modelo o europeu. Para esta conduta, o ex-bailarino, coreógrafo e diretor da companhia
Carlos Leite tem uma explicação simples: “Nossos compositores eruditos atuais não escrevem
nada para dança e, em conseqüência, não temos material brasileiro para fazer nossas
montagens”.
Aficcionado, fervoroso e radical do balé clássico, Carlos Leite chega a ser cáustico
para com aqueles que defendem uma “modernização do balé”, incluindo aí a opção pelas
adaptações a partir de temas nacionais: “Na verdade, isso que chamam de balé moderno, com
raras exceções, são modismos utilizados para encobrir a falta de preparo de um corpo de
baile”. Em sua opinião, a boa montagem depende fundamentalmente de uma música
composta para ser coreografada, “como ocorria na Rússia, berço da dança. Qualquer
adaptação será sempre uma adaptação imperfeita”.
Além dos problemas relativos à adaptação de uma coreografia à música já pronta,
Carlos Leite aponta um outro: “O Brasil é um país de tradições muito pobres em dança. As
culturas que contribuíram para sua formação, exceto a negra, também eram muito pobres;
então, a música tradição em dança que nós temos, a verdadeiramente brasileira, é o samba”.
Também com relação à formação de bailarinos, Jorge Leite é pessimista: “É preciso pelo
menos sete anos de estudo do clássico e treinamento diário para se formar um bailarino. Os
jovens de hoje querem começar a estudar e já subir no palco daqui a uma semana...”

Desvirtuamento ou experiência válida?


Para se discutir a inspiração nacional no balé brasileiro – sem dúvida a proposta da
montagem baiana “Sonhos de Castro Alves” – é impossível fugir de dois tipos de enfoque:
abordagem pura e simples do tema e a técnica, inevitavelmente presa a princípios e conceitos
da escola européia.
Quem defende esta posição é Carlos Trincheiras, que pertenceu aos quadros do Balé
da Fundação Gulbenkian, de Lisboa, e hoje dirige artisticamente e é coreógrafo, há três anos,
do Balé Guairá, de Curitiba. E ele vai além: “Não se fará nunca um balé brasileiro unicamente
por se buscar música, temática e coreografia ‘nacionais’, pois aí deixaria de existir o balé em
sua concepção”.
182

“Sem ser maniqueísta”, como faz questão de ressaltar, Trincheiras não poupa críticas
ao seu colega Antonio Carlos Cardoso, aliás seu amigo e com quem segundo diz, já discutiu
várias vezes esta questão. E sentencia:
- As tradições do balé vieram de outros países, chegaram até o Brasil da Europa e a
linguagem do balé, hoje, é universal. Propor uma mudança radical no balé é alterar sua
concepção original, tentar mudar sua linguagem. Isso só mudará a essência do balé e, aí,
teremos dança ou qualquer outro nome, menos balé como nós o conhecemos.
Na opinião de Trincheiras, “o Brasil é um país jovem, ainda não tem uma identidade
própria de balé. Portanto, não se pode querer impor, de uma hora para outra, esse
nacionalismo que o Antonio Carlos Cardoso propõe. O Brasil, antes de tudo, precisa se impor
como um país com tradição de dança, tem de formar um substrato cultural de temática que
ainda não tem, mas que, com certeza, terá em alguns anos”.
Jair de Moraes, um carioca de 29 anos, primeiro bailarino do Guairá e coreógrafo de
“Microcosmos” – um dos carros-chefe da companhia – procura “traduzir” s concepções de
Trincheiras, sem, contudo, deixar de considerar importante a experiência desenvolvida na
Bahia:
- Antes de tudo, o balé é universal e disso é impossível fugir. Por outro lado, deve-se
destacar o descaso das “autoridades competentes” em relação à cultura nacional. Por que não
se pesquisa, ao nível de balé, o cangaço, por exemplo? Por que não fazemos bailados sobre as
mulheres lavadeiras do Maranhão? Temos, enfim, um imenso arsenal de temas que não são
colocados da dança simplesmente porque n ao existe um staff especializado para isso e
porque o governo não tem como prioridade estimular pesquisas neste campo.
Jair lembra que conheceu o Royal Ballet de Londres que, respeitando a linguagem do
balé, formou uma companhia que se dedica a temas ingleses, “com aquelas mulheres de
vestidos pesados, sapatos e perucas, sempre sem deixar de fazer balé. O mesmo ocorre com
Béjart na França...”
O bailarino e coreógrafo chega a discordar de Trincheiras ao afirmar que o Balé do
Teatro Castro Alves está desenvolvendo uma “boa experiência, e só através de trabalhos deste
tipo será possível se chegar a uma escola brasileira. Vamos errar e errar muito. Mas é
importante que se faça alguma coisa, pois senão nunca teremos um balé brasileiro”.O Balé do
Teatro Guairá, dirigido desde 79 por Carlos Trincheiras, “pode ser considerado a mais
importante companhia de dança do Brasil, ainda que com algumas dificuldades”, segundo o
atual diretor. “Petruchka”, “Catulli Carmina” e o famoso “Quebra Nozes” – dançado em
novembro de 80 por Vladimir Vassiliev e Ekaterina Maximova – são os espetáculos mais
183

importantes da companhia que, n o próximo ano, fará uma excursão aos EUA. Nos planos de
Carlos Trincheiras, algo mais pretensioso: já que considera o Guairá pronto para se submeter
às exigências do público internacional, ele pretende realizar uma turnê por países europeus, o
que deverá acontecer daqui a algum tempo.
184

ANEXO J – Planejamento de Técnica Básica de Dança realizado em 1985 por Klauss


Vianna e um grupo de Dançarinos
(Documento disponível no Acervo Klauss Vianna)
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