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Como Viver Neste Mundo  -  Parte 1

Sentado no carro de bois, uma longa vara na mão , ia um velho tão magro que se lhe viam os
ossos. Tinha o rosto bondoso sulcado de rugas, e a pele muito escura, tostada por muitos óis. O
carro transportava pesada carga de lenha , e o velho fustigava os bois; podia-se ouvir as
pancadas da vara nas costas dêles. Vinham do campo para a cidade , após um longo dia .
condutor e animais estavam extenuados e ainda havia uma boa distancia para percorrer. Os bois
escumavam da bôca, e o velho parecia prestes a cair de cansaço; mas havia vitalidade naquele
corpo rijo e  velho , e os bois iam andando. Ao passarmos ao lado do carro, o velho , olhando-
nos nos olhos, sorriu e parou de bater nos bois. Os bois eram seus, e ele os conduzia há muitos
anos já; sabiam que eles lhes tinha afeto e que as pancadas que lhes  dava eram passageiras . Ele
os afagava agora , enquanto continuavam a locomover-se , pachorrentamente. Os olhos do velho
revelavam paciencia infinita e a boca expressava fadiga e trabalho incessante. Não ia receber
muito dinheiro pela sua lenha , porém o bastante para manter-se. Repousariam durante a noite à
margem da estrada, para partirem de regresso a casa pela madrugada. O carro iria então vazio , e
a viagem de volta seria mais suave. Fomos percorrendo juntos a estrada , e os bois não pareciam
importar-se de serem afagados pelo estranho que caminhava ao lado dêles. Começava  a
escurecer e, em pouco , o condutor deteve o carro, acendeu uma lanterna , pendurou-a debaixo
do carro, e continuou seu caminho para a cidade barulhenta.
Na manhã seguinte , o sol se ergueu atrás de espessas nuvens escuras. Chovia muito
frequentemente nesta grande ilha, e a terra era opulenta de verde vegetação. Por toda a parte
havia árvores imensas e bem cuidados e floridos jardins. O povo era bem nutrido e o gado gordo
e de olhos mansos. Numa arvore viam-se dúzia de pássaros de asas negras e corpo amarelo;
eram de grande porte , mas de voz suave. Saltitavam de ramo em ramo, semelhando fachos de
luz  dourada , e mais brilhante ainda pareciam naquele dia nublado. Uma pêga soltava pios
profundos , e os corvos faziam sua costumeira grazinada. Estava relativaemente fresco , e um
passeio seria aprazível. O templo achava-se repleto de gente ajoelhada, a rezar ,e o terreno que o
circundava era limpo . Além do templo havia um clube esportivo , onde jogavam  tênis. Por
toda a parte crianças , e pelo meio delas  caminhavam sacerdotes de cabeças tonsuradas e o
indefectivel leque. As ruas estavam decoradas , pois ia haver procissão no dia seguinte , dia de
lua cheia . Acima das copas das palmeiras aparecia uma grande extensão de céu azul-pálido ,
que as nuvens se apressavam a encobrir. Por entre as pessoas , pelas ruas barulhentas, e nos
jardins dos abastados , prevalecia uma grande beleza ; ela sempre lá estava , mas poucos lhe
davam atenção.

 
 
Interrogante:            Por favor, senhor, podeis dizer-me como posso viver neste mundo?
 
Krishnamurti:            Nào façamos disso um problema. Quando uma coisa se torna um
problema , ficamos empenhados em achar-lhe a solução e o problema se torna então uma gaiola,
uma barreira à exploração mais penetrante e à compreensão. Portanto, não reduzamos a vida a
um vasto e complexo problema. Se fazeis essa pergunta com o  fim de superar a sociedade em
que viveis ou de descobrir um substituto para ela , u de tentar fugir-lhe , embora nela vivendo,
isso inevitavelmente levará a uma vida contraditória e hipócrita . Esta questão requer também
total negação da ideologia , não achais?  Se em verdade desejais investigar, não podeis começar
com uma conclusão , e todas as ideologias sào conclusões. Por conseguinte, devemos começar
verificando o que entendeis por viver.
 
Interrogante:            Por favor, senhor, vamos devagar.
 
Krishnamurti:            Muito folgo que possamos caminhar devagar, pacientemente, com a
mente e o coraçào aplicados à investigação. Pois bem ; que entendeis por "viver" ?
 
Interrogante:            Nunca entendi expressa-lo em palavras. Vejo-me confuso , atônito, sem
saber o que fazer, como viver. Perdi a fé em tudo   ---   religiões, filosofias e utopias politicas.
Há guerra entre individuos e as nações. Nesta sociedade licenciosa tudo se permite   ---  
matanças, motins, a cínica opressão de uma nação por outra, e ninguem ousa fazer nada, porque
qualquer interferencia pode significar guerra mundial. Em face de tudo isso , não sei o que fazer
; não sei de que modo viver. Não desejo viver no meio de tamanha confusão.
 
Krishnamurti:            Que é que desejais   ---   uma vida diferente ou uma vida nova , nascida
da compreensão da velha  vida? Se desejais viver uma vida diferente, sem terdes compreendido
a causa desta confusão, vos vereis sempre em contradição , em conflito , em confusão. E isso,
naturalmente, não é , de modo nenhum , uma vida nova. Assim , desejais uma vida nova ou uma
"continuidade modificada" da velha , ou compreender  a velha vida?
 
Interrogante:             Não estou nada certo do que desejo , mas começo a ver o que não desejo.
 
Krishnamurti:            O que não desejais se baseia em vossa livre compreensão ou no desejo
de prazer e de evitar a dor? Estais julgando por causa de vossa revolta, ou vedes os fatores que
estão causando este conflito e aflição, e, porque os vedes, os rejeitais?
 
Interrogante :            Estais a perguntar-me muitas coisas. O que sei é só que desejo viver uma
vida de espécie diferente. Eu não sei o que ela significa, não sei porque a estou buscando e,
como disse, vejo-me completamente desnorteado.
 
 
 
Parte 2

O importante na meditação é o estado da mente e do coração. Não é o que alcançais ou dizeis


alcançar, mas o estado da mente que é inocente e vulnerável . Pela negação encontra-se o estado
positivo. O mero esforço para juntar experiencias ou nela viver , nega a pureza da meditação. A
meditação não é um meio que leva a um fim. Ela é meio e fim. Mediante a experiencia a mente
nunca se tornará inocente. A negação da experiencia é que faz nascer o estado positivo da
inocencia , que não pode ser cultivado pelo pensamento. O pensamento nunca é inocente . A
meditação é a terminação do pensamento, mas não por parte do meditador, porque  meditador é
a meditação. Sem a meditação , sois como um homem cego num mundo cheio de beleza , de luz
e de cores.
Caminhai pela praia e deixai vir a vós o estado meditativo. Se ele vier, não o cultiveis . O que
se cultiva se tornará a memória do que foi , e o que foi é a morte do que é. Ou , ao
perambulardes pelos montes , deixai que tudo vos fale da beleza e da dor da vida , de modo que
possais despertar para vosso próprio sofrimento e sua terminação. A meditação é raiz, planta,
flor e fruto . São as palavras que separam o fruto , a flor, a planta e a raiz. Nesse estado de
separação , a ação não cria bondade; virtude é percebimento total.
Era uma estrada longa e sombreada , arborizada de ambos os lados   ---   uma estrada estreita
que coleava através dos verdes e luzentes trigais , já a amadurecer . O Sol fazia sombrar fortes ,
e as aldeias existentes am ambos os lados da estrada eram sujas, mal conservadas , flageladas
pela pobreza. As pessoas de mais idade tinham o aspecto doente e triste , mas as crianças
gritavam e brincavam na estrada , atirando pedras nas aves pousadas no alto das arvores.
Naquela fresca e deliciosa manhã vinha dos montes uma amena viração.
Os papagaios e os minahs faziam naquela manhã muita algazarra . Os papagaios mal se podiam
ver entre as folhas verdes das arvores ; nos tamarindeiros eles tinham buracos, que eram as suas
moradas. Seu vôo em ziguezague era sempre cheio de gritos rouquenhos. Os minahs , bastante
mansos , andavam pelo chão. Deixavam a gente chegar bem perto deles, e só então alçavam
vôo. O dourado papa-moscas , de plumagem auriverde , estava pousado nos fios , do outro lado
da estrada . Era uma bela manhã, e o Sol ainda não tinha esquentado demais. P airava no ar
uma benção e a paz que precede o despertar do homem
Por aquela estrada ia passando um veiculo puxado por um cavalo , de duas rodas e um tablado
com quatro varas e uma coberta de lona. Nele, atravessado entre as rodas   e envolto num pano
branco e vermelho, era conduzido um morto para ser incinerado à margem do rio. Ao lado do
cocheiro , estava sentado um homem , um parente talvez , e o corpo ia aos sacolejos , por aquela
estrada nada suave. Vinham de bem longe, pois o cavalo estava banhado em suor; o corpo
percorrera toda aquela distancia , às sacudidelas , e já devia estar completamente hirto.

 
 
Krishnamurti:            Vossa pergunta básica é "como viver neste mundo?"   ---  não é esta?
Antes de o averiguarmos, vejamos o que é este mundo. O mundo não é só as coisas que nos
rodeiam, é também a nossa relação com essas coisas, com pessoas, com nós mesmos, e com
idéias. Isto é , nossa relação com nossas posses, com pessoas, com conceitos, enfim , nossa
relação com a corrente de fatos que chamamos "vida" . Isso é o mundo. Vemos divisão em
nacionalidades, religiões, grupos econômicos, políticos, sociais e étnicos; o mundo está todo
fragmentado , e tão fragmentado está, exteriormente, como nós, entes humanos, o estamos
interiormente . Em verdade, essa fragmentação exterior é a manifestação da divisão dos entes
humanos.
 
Interrogante :            Sim, percebo claramente essa fragmentação, e começo também a ver que
o ente humano é por ela responsável.
 
Krishnamurti :            Vós sois o ente humano!.
 
Interrogante :             Posso, então, viver diferentemente do que eu próprio sou? Subitamente ,
estou percebendo que, se quero viver de uma maneira totalmente diferente , deve ocorrer em
mim um renascimento , com uma nova mente, novo coração , novos olhos. E percebo também
que isso não aconteceu. Vivo conforme eu próprio sou, e o que sou tornou a vida o que ela é.
Mas , daí partindo, aonde chegamos?
 
Krishnamurti :            Não chegais a parte alguma, partindo daí ! Não há possibilidade de ir a
parte alguma . O "ir" , ou a busca do ideal, daquilo que pensamos ser melhor , dá-nos a
impressão de que estamos progredindo, de que estamos em movimento para um mundo melhor.
Mas, esse movimento nenhum movimento é, porque o alvo foi projetado de nossa aflição ,
confusão , ambição e inveja. Assim, esse alvo , que supomos ser o oposto de "o que é " , é em
verdade idêntico ao que é , gerado pelo que é. Por conseguinte, ele cria o conflito entre "o que
é" e "o que deveria ser". É aqui que se origina a nossa básica confusão e conflito. O alvo não
está lá, do outro lado do muro; o começo e o fim estão aqui.
 
Interrogante :            Um momento, senhor, por favor; não estou compreendendo isso. Quereis
dizer que o ideal   ---   o que deveria ser   ---   é o resultado da incompreensão de "o que é " ?
Quereis dizer que "o que deveria ser " é  "o que é ", e que esse movimento de "o que é " para o
que "deveria ser" não é , na realidade , movimento nenhum?
 
Krishnamurti :            "O que deveria ser"   é uma idéia, uma ficção. Se compreendeis "o que é
" , que necessidade tendes do que "deveria ser"   ?                   
 
Interrogante:            É mesmo assim? Eu compreendo "o que é". Compreendo a bestialidade da
guerra, como é horrível matar, e é porque o compreendo que tenho o ideal de não matar. O ideal
nasceu de minha compreensão de "o que é " e, por conseguinte , não é uma fuga.
 
Krishnamurti :           Se compreendeis que matar é horrível, tendes necessidade do ideal para
vos absterdes de matar? Talvez não nos esteja bem clara a palavra "compreensão". Quando
dizemos que compreendemos uma coisa, isso implica que aprendemos tudo o que ela tem para
dizer-nos, não é verdade? Exploramo-la, e descobrimos sua verdade ou falsidade. Implica isso,
também, que a compreensão não é um fato intelectual , mas que a sentimos bem no intimo do
coração, não é mesmo? Só há compreensão quando a mente e o coração estão em perfeita
harmonia. Dizemos, então: "Compreendi esta coisa, e para mim ela está acabada";  a coisa já
não tem vitalidade para gerar mais conflito. Estamos dando, nós dois , o mesmo significado à
palavra "compreensão"?
 
Parte 3
Meditação é o despertar da bem-aventurança : inclui os sentidos e também os transcende. É 
sem continuidade , porque atemporal. A felicidade e as alegrias da vida de relação , o espetáculo
de uma nuvem que passa a projetar sua sombra na terra , da luz da primavera nas folhas , deleita
a vista e o espirito. Esse deleite pode ser cultivado pelo pensamento e, no espaço da memória,
ser-lhe dada uma duração , mas não constitui a bem-aventurança da meditação , na qual se
inclui a intensidade dos sentidos. Os sentidos devem ser penetrantes, não pervertidos pelo
pensamento, pela disciplina do ajustamento e, pela moralidade social. Liberdade dos sentidos
não significa imoderação; a imoderação vem do pensamento e seu desejo de prazer.  O
pensamento é como a fumaça de uma chama , e a bem-aventurança é a chama sem a nuvem de
fumo que faz os olhos chorarem . Prazer é uma coisa , e outra coisa é a felicidade. Prazer é
escravidão ao pensamento, e a felicidade está além e acima do pensamento. A base da
meditação é a compreensão do pensamento e do prazer, com sua moralidade e confortante
disciplina. A bem-aventurança da meditação não pertence ao tempo e à duração; está fora de
seus limites e, portanto , não é mensurável . Seu êxtase não está nos  olhos  do observador e não
é uma experiencia do pensador. Esse êxtase não pode ser turvado pelo pensamento, com as
palavras , os simbolos , a confusão por ele criada; não está na palavra , que pode enraizar-se no
pensamento e por ele ser moldada. A bem-aventurança nasce do silêncio completo.
 

Linda manhã , com nuvens passageiras e um céu azul muito claro . Chovera e o ar estava
lavado . Cada folha era nova e o triste inverno se fora ; cada folha que cintilava ao Sol sabia que
não estava em nenhuma  relação com a passada primavera. Os raios solares se coavam por entre
as folhas novas , lançando uma luza verde e suave no caminho molhado que, aatravessando a
mata , levava à estrada principal que seguia para a garnde cidade. Crianças brincavam , sem
olhar o belo dia primaverial. Não tinham necessidade de olhar , porque elas eram a primavera.
Seus risos e brincadeiras faziam parte da árvore , da folha , da flor. Isso sentíamos , não
imaginavamos. Era como se as folhas e as flores participassem  nos risos, nos gritos , no balão
que ia passando. Cada folhinha de capim, e o amarelo dente-de-leão , e a tenra folha, tão
vulnerável , faziam parte das crianças , e as crianças faziam parte de toda a terra. A linha
divisória entre o homem e a natureza desaparecia; mas o homem que de carro passava pela
estrada e a mulher que voltava do mercado não percebiam isso. Provavelmente nunca olhavam
o céu , a folha tremulante, o cândido lilás. Levavam no coração os seus problemas , e seu
coração nunca olhava as crianças e o vivificante dia primaveril . O lamentável é que eles
estavam criando aquelas criançase, daí a pouco , iam elas tornar-se "o hommem que passa pela
estrada no seu carro, e amulher de volta do mercado"; e o mundo ia ser escuro como dantes .
Isso é que era infinitamente triste. O amor naquela folha pousado ia ser levado pelos ventos do
outono vindouro.

 
 
Interrogante:            É mesmo assim? Eu compreendo "o que é". Compreendo a bestialidade da
guerra, como é horrivel matar, e é porque o compreendo que tenho o ideal de não matar. O ideal
nasceu de minha compreensão de "o que é " e, por conseguinte , não é uma fuga.
 
Krishnamurti :           Se compreendeis que matar é horrivel, tendes necessidade do ideal para
vos absterdes de matar? Talvez não nos esteja bem clara a palavra "compreensão". Quando
dizemos que compreendemos uma coisa, isso implica que aprendemos tudo o que ela tem para
dizer-nos, não é verdade? Exploramo-la, e descobrimos sua verdade ou falsidade. Implica isso,
também, que a compreensão não é um fato intelectual , mas que a sentimos bem no intimo do
coração, não é mesmo? Só há compreensão quando a mente e o coração estão em perfeita
harmonia. Dizemos, então: "Compreendi esta coisa, e para mim ela está acabada";  a coisa já
não tem vitalidade para gerar mais conflito. Estamos dando, nós dois , o mesmo significado à
palavra "compreensão"?
 
Interrogante:            Antes eu não dava, mas percebo agora que o que estais dizendo é
verdadeiro. Entretanto, sinceramente falando , não compreendo , por essa maneira, a desordem
total existente no mundo , a qual , como bem disseste, é minha própria desordem . Como posso
compreende-la? Como aprender tudo o que diz respeito à desordem e confusão reinantes no
mundo e em mim mesmo?
 
Krishnamurti :            Por favor , não useis a palavra "como".
 
Interrogante:            Porque não?
 
Krishnamurti :            O "como"implica que alguem pode dar-vos um método, uma receita , a
qual , se a observardes , criará a compreensão. Pode a compreensão ser produzida por um
método? Compreensão significa amor e sanidade mental . E o amor não pode ser praticado nem
ensinado. A sanidade mental só é possivel quando há claro percebimento , quando se vêem as
coisas tais como são, sem emocionalismo , nem sentimentalidade. Nenhuma dessas duas coisas
pode ser ensinada por outra pessoa ou por um sistema inventado por vós mesmo ou por outrem.
 
Interrogante :            Sois persuasivo ou lógico demais. estais procurando influenciar-me para
ver as coisas como a vedes?
 
Krishnamurti :            Deus me livre! A influencia, em qualquer forma é destrutiva do amor .
A propaganda que visa a tornar a mente sensível , alertada, só poderá torná-la embotada e
insensivel. Portanto, de modo nenhum estamos tentando influenciar-vos ou persuadir-vos ou
tornar-vos dependente. Estamos apenas "apontando as coisas", explorando juntos. E, para
explorarmos juntos, deveis estar livre tanto de mim como de vossos próprios preconceitos e
temores. De outro modo, ficaremos a rodar e a rodar , em circulos. Voltemos , pois, à pergunta
inicial: Como viver neste mundo? Para vivermos neste mundo , temos de negar o mundo. Com
isso queremos dizer: negar o ideal , a guerra, a fragmentação , a competição , a inveja , etc, etc. ;
não , negar o mundo assim como um estudante que se revolta contra os seus pais. Nega-lo
porque o compreendemos . Esta compreensão é negação.
 
Interrogante:            Já não tomo pé, nestas águas.
 
Krishnamurti :          Dissestes que não desejais viver no meio da confusão, da insinceridade e
brutalidade deste mundo. Por conseguinte, o negais. Mas , com que base o negais, porque o
negais? É porque desejais viver uma vida tranquila, uma vida de completa segurança e
isolamento, ou o negais porque vedes o que ele é realmente?
 
Interrogante:            Penso que o nego porque vejo o que se passa em redor de mim.
Naturalmente meus preconceitos e temores entram rtambém em linha de conta. trata-se, pois, de
uma mistura do que se está passando e de minha própria ansiedade.
 
Krishnamurti :            Qual dos dois predomina, vossa ansiedade ou o verdes o que realmente
se passa em torno de vós? Se é o medo que predomina , nesse caso não podeis ver o que se
passa, porque medo é escuridão , e na escuridão nada se pode ver. Se compreenderdes isso,
vereis o mundo tal como é, vereis a vós mesmos tal como sois. Porque vós sois o mundo , e o
mundo é vós; não sois duas entidades separadas.
 
Interrogante                 Podeis explicar mais completamente o que entendeis por "o mundo é eu
, e eu sou o mundo"?
 
Krishnamurti :            Mas isso requer explicação? Quereis que eu vos descreva com todos os
detalhes o que sois e vos mostre que isso que sois é a mesma coisa que o mundo? Essa
descrição irá convencer-vos de que "vós sois o mundo" ? Desejais ser convencido por uma
explicação lógica e conseqüente que você mostre a causa e o efeito ? Se fordes convencido por
uma explicação detalhada , isso vos dará a compreensão? Far-vos-á sentir que sois o mundo,
far-vos-á responsável pelo mundo? Parece perfeitamente claro que nossa humana avidez, inveja,
agressividade e violencia criaram a sociedade em que estamos vivendo , uma aceitação
"legalizada" do que somos. Isso, com efeito , se me afigura suficientemente claro e não
percamos mais tempo com esta questão. Vede, nós não sentimos essa verdade , nós não amamos
e, consequentemente , existe esta separação entre mim e o mundo.
 
Interrogante:               Posso voltar amanhã?
 
 
 
Parte 4
Jardim bem bonito, com verdes gramados, franqueados ao público, florido arbustos, e todo
rodeado de árvores frondosas. Da estrada à margem  vinham frequentemente sons de vozes,
principalmente de tarde , à hora em que as pessoas regressavam aos lares. Fora isso , era muito
tranquilo o jardim . A grama era regada pela manhã  e à tarde; e nessas horas percorriam-na
bandos de passarinhos à cata de minhocas. Tão absorvidos ficavam nessa busca, que não
temiam aproximar-se de quem estivesse sob árvore. Dois pássaros auriverdes, de cauda
retangular , da qual  sobressaía uma pena longa e delicada, vinham com toda a regularidade
pousar entre as roseiras. Tinham exatamente a mesma côr das folhas tenras, o que os tornava
quase invisiveis. Cabeça achatada, olhos longos e estreitos, bicos escuros . Baixavamàs vezes
em vôo curvo, rente ao solo , para acompanhar um inseto, e retornavam ao ramo balouçante de
uma roseira. Era uma coisa deleitável de ver, plena de liberdade e beleza. A gente não podia
acercar-se dêles, de tão tímidos; mas , se a pessoa se aquietava sob a árvore , podia aprecia-los
nos seus folguedos , o sol a brilhar-lhes nas asas transparentes, côr de ouro.

Não raro, um grande mangusto emergia das moitas espessas, seu focinho vermelho a farejar o
ar, os olhos vivos observando cada movimento em derredor. No primeiro dia, pareceu muito
perturbado ao notar uma pessoa sentada debaixo da arvore, mas logo habituou-se à presença
humana. Atravessava o jardim de ponta ponta , sem pressa, arrastando a longa cauda. Às vezes
caminhava beirando a orla da grama , por perto das moitas, e então mostrava-se muito mais
atento , o focinho tremulante. Um dia saiu a familia tôda, o grande mangusto à frente , seguido
da companheira , menor do que ele , e atrás dois filhotes , todos  alinhados em fila. Estes
ultimos paravam aqui e ali , para brincar; mas, quando a mãe notava que não iam imediatamente
atrás e voltava enérgicamente a cabeça, davam uma corrida e entravam de nôvo em forma.

Ao luar , o jardim se tornava um lugar encantado , as árvores imóveis e silenciosas, projetando


na grama e nos quietos arbustos sombras longas e escuras . Após muito bulício e vozerio , os
passarinhos se acomodavam para a noite, entre  a folhagem escura. Quase já não se via ninguem
na estrada , mas ocasionalmente podia-se ouvir , ao longe, uma cantiga ou as notas de uma
flauta, tocada por alguem que se dirigia para a aldeia. Afora isso , o jardim era todo quietude ,
cheio de suaves murmúrios . Nem uma fôlha se movia, e as arvores davam forma ao nevoento e
prateado céu.

A imaginação é incompativel com a meditação; ela deve ser posta de parte, completamente ,
porque , senhoreada pela imaginação , a mente só pode gerar ilusões . Cumpre  a mente estar
clara , imóvel , e nessa luminosa claridade se revela o atemporal.
 

 
Interrogante:               Posso voltar amanhã?
 
Voltou, no dia seguinte, muito entusiasmado. Nos olhos lhe luzia o interesse em investigar.
 
Interrogante:               Desejo, se tiverdes vontade de fazê-lo, penetrar mais nesta questão de
"como viver neste mundo". Compreendo agora, com a mente e o coração , como ontem
dissestes, a total insignificancia dos ideais . Tive de sustentar uma longa luta, para chegar a
perceber a trivialidade dos ideais. Dizeis   ---   não é exato?   ---   que quando não há ideais ou
fugas , só há o passado , os milhares de "ontens"que constituem o "eu". Assim , perguntando
"como viver neste mundo?", não só fiz uma pergunta errônea , mas também expressei uma
contradição, por quanto coloquei o mundo e "eu" em oposição um ao outro. E essa contradição
é o que chamo "viver". Assim , com a pergunta "como viver neste mundo? " estou procurano
remediar essa contradição, justifica-la , modifica-la , porque ela é a unica coisa que conheço ,
nada mais conheço.
 
Krishnamurti :            Então nossa questão fica sendo esta: Há necessidade de vivermos
sempre no passado , de todas as nossas atividades emanarem do passado,  e todas as nossas
relações resultarem do passado? O viver é essa complexa memória do passado? É só este o
viver que conhecemos: o passado a modificar o presente. E o futuro é produto deste passado, de
sua ação através do presente. Portanto , passado, presente e futuro   ---   tudo é só passado. E
esse passado é o que chamamos "viver". A mente é o passado , o cérebro é o passado, os
sentimentos são o passado, e a ação que deles vem é a ação positiva do conhecido. Este
processo total constitui a vossa vida e todas as relações e atividades que conheceis. Assim, ao
perguntardes "como viver neste mundo? " , estais pedindo uma troca de prisões.
 
Interrogante:               Não é isso que quero dizer. Quero dizer que vejo muito claramente que
meu processo de pensar e de agir é o passado a atuar através do presente para o futuro. Isso é
tudo o que sei, e é um fato. E percebo que, a menos que ocorra uma mudança nessa estrutura,
nela ficarei aprisionado , a ela pertenço. Daí vem, inevitavelmente , a pergunta: Como operar
essa mudança?
 
Krishnamurti :            Para viver sãmente neste mundo , torna-se necessária uma mudança
radical da mente e do coração.
 
Interrogante:               Sim, mas que entendeis por "mudança"?  Como posso mudar , se tudo o
que faço é movimento do passado? Só eu posso transformar-me, ninguem mais pode fazê-lo. E
não percebo o que isso significa   ---   mudar.
 
Krishnamurti :            De modo que a pergunta "como viver neste mundo?" passou a ser
"como mudar? ".    ---   tendo-se em mente que o "como"não significa "método", porém uma
investigação , a fim de compreender . Que é "mudança"? É possivel alguma mudança? Ou só se
pode perguntar se é possivel alguma mudança, depois de ter se verificado uma total
transformação, uma revolução? Voltemos ao começo, para vermos o que esta palavra significa .
Mudança  implica um movimento de "o que é" para alguma coisa diferente. Essa coisa diferente
é apenas um oposto ou pertence a uma ordem inteiramente nova? Se é apenas um oposto são
mutuamente dependentes, como o calor e o frio, o alto e o baixo. O oposto está contido no outro
oposto e é por ele determinado ; ele só existe pela comparação , e as coisas resultantes de
comparação têm diferentes medidas para a mesma qualidade e, por conseguinte, são similares.
Assim, a mudança para um oposto não é mudança nenhuma. Ainda que esse movimento para
aquilo que parece diferente vos dê a impressão de estardes realmente fazendo alguma coisa ,
trata-se de uma ilusão.
 
Interrogante:               Dai-me um momento para absorver isso.
 
 
Parte 5 e Final
Meditação
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O som dos sinos vinha vindo através da floresta, do rio , e do extenso prado. Era diferente, conforme
atravessava a mata, o prado ou o rio rápido e turbulento. O som, como a luz, possui uma qualidade derivada
do silencio; quanto mais profundo o silencio , melhor se percebe a belez do som . Naquela tarde, com o Sol
justamente por cima dos montes de oeste, era verdadeiramente extraordinario o som daqueles sinos; como
se os estivessemos ouvindo pela primeira vez . Não eram sinos tão velhos como os das antigas catedrais,
mas transportavam todo o enlevo dauele entardecer . Não havia uma nuvem no céu . Era o mais longo dia
do ano , quando o Sol se põe mais para o norte do que qualquer outro dia.
Raramente escutamos o som do latido de um cão , do choro de uma criança, ou da risada de um passante.
Separamo-nos de todas as coisas, para, desse isolamento , olha-las e escuta-las. Essa separação é que é
verdadeiramente nociva , porquanto nela reside todo conflito e confusão. Ouvindo em completo silêncio o
som daqueles sinos, com ele nos íamos   ---   ou, melhor, o som nos transportava para além dos vales e dos
montes. Só se pode ter o sentimento daquela beleza, quando a pessoa e o som não estão separados, quando a
pessoa faz parte do som. A meditação é o fim da separação , não por ação da vontade ou do desejo, ou pela
busca de prazer em coisas ainda não provadas.
A meditação não é uma coisa separada da vida; é a pprópria essência da vida, a própria essência do diário
viver. Escutar aqueles sinos , ouvir os risos do camponês ao caminhar com a esposa , escutar o som da
campainha da bicicleta que passa a nosso lado , guiada por uma menina: é o todo da vida, e não um simples
fragmento dela, que a meditação nos abre.

 
Interrogante:               Dai-me um momento para absorver isso.
 
 
Krishnamurti :            Assim , que é que nos interessa agora? É possivel promovermos em nós
mesmos o nascimento de uma ordem inteiramente nova, não relacionada com o passado? O
passado é irrelevante, trivial, para esta investigação , porque é irrelevante para a nova ordem. .
 
Interrogante:               Como podeis dizer que ele é irrelevante, quando estivemos dizendo até
agora que o passado é o unico problema?
 
Krishnamurti :            O passado parece ser o único roblema porque é a unica coisa que nos
está prendendo a mente e o coração. Só ele é importante para nós. Mas , porque lhe darmos
importancia? Porque se tornou tão importante esse espaço insignificante? Se ele vos vedes
inteiramente imerso , preso , nesse caso nunca desejareis ouvir falar em mudança. Só o homem
que não está de todo aprisionado é capaz de escutar, de investigar , de indagar. Ssó ele poderá
perceber a trivialidade desse limitado espaço . Assim, estais totalmente imerso, ou vossa cabeça
está acima da superfice? Se vossa cabeça está acima da superfice podeis ver então que ele é uma
coisa trivial. Tendes então a possibilidade de olhar em torno . Até onde estais mergulhado?
Ninguem, senão vós mesmo, pode responder a esta pergunta. No próprio ato de fazê-la , já há
liberdade e, por conseguinte, não há medo. Vossa visão é então ampla. Quando o padrão do
passado vos tem firmemente seguro pela garganta, então aquieceis, aceitais, obedeceis, seguis,
credes. Só quando ficais cônscio de que isso não é liberdade , começais a libertar-vos. Assim,
tornamo-nos a perguntar: Que é mudança, que é revolução? Mudança não é um movimento do
conhecido para o conhecido, e todas as revoluções polïticas o são. Não é dessa espécie de
mudança que estamos falando. Evolver de pecador a santo é passar de uma ilusão para a outra.
Pois bem; agora já estamos livres da mudança como um movimento disto para aquilo.
 
Interrogante:               Terei compreendido isso realmente? Que me cumpre fazer com a cólera,
a violencia, o medo , quando se manifestarem em mim? Devo soltar-lhes as rédeas? Como
proceder em relação a eles? Aí, é necessária a mudança , senão continuo como antes.
 
Krishnamurti :            Está bem claro para vós que essas coisas não podem ser superadas por
seus opostos? Se está, então só tendes a violencia, a inveja , acólera, a avidez. O sentimento
surge em consequencia de um desafio, e então se lhe dá um nome. Este dar nome ao sentimento
o confirma no velho padrão. Se não lhe dais nome, o que signific que não vos identificais com
ele, então o sentimento é novo e desaparecerá por sí. O dar-lhe nome fortalece-o e dá-lhe uma
continuidade, que é o movimento do pensamento.
 
Interrogante:               Vejo-me empurrado para um canto ao perceber-me tal como sou e ao
ver como sou trivial . Que vem . a seguir?
 
Krishnamurti :            Qualquer movimento que se afaste do que sou fortalece o que sou.
Assim, a mudança não é movimento nenhum. "Mudança"é a negação de mudança, e só agora
posso perguntar: Existe mudança?  Só se pode fazer esta pergunta quando cessou todo o
movimento do pensamento, porque o pensamento deve ser negado para que surja a beleza da
"não mudança" . Na negação total do movimento de pensamento que se afasta do que é , está o
fim de "o que é ".
 

Extraído dos livros  Diálogos sobre a Vida -  Cultrix - 1972 e


                             A Luz que não se apaga - ICK - 1970  de J. Krishnamurti 
A Outra Margem do Caminho  de J. Krishnamurti 

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