Você está na página 1de 69

FOLHA

E X P L IC A

GUIMARÃES ROSA

W A L N IC E N O G U E IR A G A L V Ã O
GUIMARÃES ROSA
CONSELHO EDITORIAL

Alcino Leite Neto


Ana Luisa Astiz
Antonio Manuel Teixeira Mendes
Arthur Nestrovski
Carlos Heitor Cony
Gilson Schwartz
Marcelo Coelho
Marcelo Leite
Otávio Frias Filho
Paula Cesarino Costa

http://groups.google.com/group/digitalsource
FOLHA
EXPLICA

GUIMARÃES ROSA

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO


© 2000 Publifolha - Divisão de Publicações da Empresa Folha da
Manhã S.A. © 2000 Walnice Nogueira Galvão

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser


reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio
sem permissão expressa e por escrito da Publifolha - Divisão de Publicações da
Empresa Folha da Manhã S.A.

Editor
Arthur Nestrovski
Assistência editorial
Paulo Nascimento Verano
Capa e projeto gráfico
Silvia Ribeiro
Coordenação de produção gráfica
Marcio Soares
Revisão
Mário Vilela
Fotos
Folha Imagem
Editoração eletrônica Picture studio & fotolito

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Galvâo, Walnice Nogueira
Guimarães Rosa /Walnice Nogueira Galvão. -São Paulo : Publifolha,
2000. – (Folha explica)
Bibliografia.
ISBN 85-7402-225-X

1, Ficção brasileira 2. Rosa, Guimarães, 1908-1907 -Crítica e


interpretação I. Título. II. Série.
00-2870 CDD-869.9309
índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira : História e crítica 869.9309
PUBLIFOLHA
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................... 7
1. O LUGAR DE GUIMARÃES ROSA
NA LITERATURA BRASILEIRA ....................... 13
2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS .......................... 27
3. DOS PRIMÓRDIOS AOS PÓSTUMOS .............. 51
4. TRAÇOS BIOGRÁFICOS ................................. 65
CONCLUSÃO ........................................................ 69
BIBLIOGRAFIA ..................................................... 73
INTRODUÇÃO
Quando Guimarães Rosa publicou seu primeiro livro,

Sagarana, em 1946, duas vertentes assinalavam o panorama da ficção


brasileira: o regionalismo e a reação espiritualista.
Sua obra vai representar uma síntese feliz das duas vertentes.
Como os regionalistas, volta-se para os interiores do país, pondo em
cena personagens plebéias e "típicas", a exemplo dos jagunços
sertanejos. Leva a sério a função da literatura como documento, ao
ponto de reproduzir a linguagem característica daquelas paragens.
Porém, como os autores da reação espiritualista, descortinando largo
sopro metafísico, costeando o sobrenatural, em demanda da
transcendência.
No que superou a ambas, distanciando-se, foi no apuro formal,
no caráter experimentalista da linguagem, na erudição poliglótica, no
trato com a literatura universal de seu tempo, de que nenhuma das
vertentes dispunha, ou a que não atribuíam importância. E o fato de
escrever prosa como quem escreve poesia — ou seja, palavra por
palavra, ou até fonema por fonema.
Nesse sentido, Guimarães Rosa é único na literatura brasileira:
foi em sua pena que nossa língua literária alcançou seu mais alto
patamar. Nunca antes, nem depois, a língua foi desenvolvida assim em
todas as suas virtualidades. A tal ponto que, na formulação de um de
1
seus primeiros e melhores críticos, Cavalcanti Proença, ele chega a se
confundir com a língua, colocando-se em seu ponto inaugural e, a
exemplo dela, criando incessantemente.
Assim, por exemplo, toma a liberdade de trocar um sufixo por
outro (prefere "abominoso" a abominável). Ou deriva um adjetivo, até
então inexistente, de um substantivo; ou o contrário. Ou ainda inventa
um verbo, a partir da enumeração das vogais ("o vento aeiouava"). Ou
cunha um nome próprio, juntando o pronome de primeira pessoa em

1
M. Cavalcanti Proença, Trilhais no Grande Sertão. Rio de Janeiro:
MEC.1958.
várias línguas — que, pronunciados à brasileira, se tornam
irreconhecíveis — para batizar a personagem Moimeichego (moi, me, ich,
ego). E assim por diante. O escritor está reproduzindo os processos de
criação da própria língua.
Dedicou-se incansavelmente a atacar o lugar-comum, que
jamais utilizava, a menos que fosse para criar um análogo, antes
escrevendo "antenasal de mim a palmo" que "a um palmo diante do
nariz". Esse propósito de inovação lingüística manifesta-se a todo
momento em sua obra; e ele também se pronunciou a respeito em
entrevistas e declarações.
Outra razão pela qual a leitura de Guimarães Rosa é uma
experiência imperativa reside em sua capacidade de fabulação.
Raramente houve na literatura brasileira um autor tão prolífico em
diferentes enredos, com suma capacidade de inventar tramas e
personagens.
Dentre estas, ao se concentrar nas que elegeu, o escritor como
que dignifica o sertanejo pobre, mostrando como o mais papudo dos
catrumanos dos cafundós pode aspirar às transcendências e se entregar
a especulações metafísicas sem precisar sequer saber ler.
Este livro tem por objetivo apresentar a obra do escritor,
examinando-a de diferentes perspectivas. Um primeiro Capítulo cuida
de determinar o lugar que ocupa na literatura brasileira, mostrando
como sua originalidade o torna incomparável, embora tenha
precursores. O capítulo 2 se concentra em esmiuçar o mais importante
de seus livros, e único romance, Grande Sertões: Veredas (1956),
assumindo que todos os grandes achados de sua ficção se encontram
ali sintetizados.O terceiro capítulo é dedicado ao restante da obra de
Guimarães Rosa, analisando desde Sagarana (1946), passando por
Corpo de Baile (1954), Primeiras Estórias (1962) e Tutaméia - Terceiras
Estórias (1967), até seus dois livros póstumos. Estas Estórias (1969) e
Ave, Palavra (1970). O capítulo seguinte fornece os traços biográficos do
escritor. E a conclusão faz um balanço de seu papel em nossa cultura..
Completa este livro uma biografia de e sobre o autor, em que se
procurou selecionar o que é, de fato, tanto indispensável quanto
ilustrativo do amplo espectro teórico e crítico que essa obra suscitou.
1. O LUGAR DE

GUIMARÃES ROSA NA

LITERATURA BRASILEIRA
REGIONALISMO, REGIONALISMOS

O regionalismo 2
foi uma manifestação literária que em parte

se opunha ao que ocorria nas matrizes européias, por isso reivindicando


a representação da realidade local, e em parte as prolongava, ao aceitar
normas que de lá emanavam. Passou por várias metamorfoses, como se
verá a seguir.
No início, ao aparecer como nativismo, finca raízes na descrição
da especificidade da nova terra, dando ênfase àquilo que lhe é
característico, para efeito de propaganda, como o fizeram os cronistas
coloniais. Daí uma predominância do pitoresco, que se revela nas
enumerações de animais e frutas estranhos, com nomes também
estranhos.
O advento do romantismo, coincidindo com a independência
política, só viria a acentuar tais traços. Se essa escola redescobre o
folclore, pesquisando os contos e cantos do povo na Europa, vinha a
calhar para os escritores nacionais a valorização da cultura popular no
país. Sua principal personagem seria o índio, escolhido como emblema
da nacionalidade para marcar a diferença com relação ao colonizador
português. Número considerável de patriotas, nesses meados do século
19, trocou seus patronímicos castiços por nomes indígenas, numa
verdadeira moda. Repetindo o movimento habitual, o índio das
Américas adquiriu estatura de protagonista antes na França, com
Chateaubriand, para só depois se tornar nosso primeiro herói literário,
assinalando a modalidade nativa de romantismo, ou seja, o indianismo
de José de Alencar e Gonçalves Dias.

2
Antônio Cândido, Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins,
1959. José Aderaldo Castello, A Literatura Brasileira. São Paulo: Edusp, 1999. Ligia
Chiappini Moraes Leite, "Velha Praga? Regionalismo Literário Brasileiro". Em: Ana
Pizarro (org.), América Latina - Palavra, Literatura, Cultura. Campinas: Unicamp, 1994,
v. II.
O desenvolvimento das letras tendo por foco a Corte, posição que
o Rio de Janeiro ocupou como capital do país durante dois séculos, até
a transferência para Brasília em 1960, suscitaria reações localistas,
tanto no sul quanto no norte do país.Tais reações acusam a literatura
da Corte daquilo que hoje chamaríamos etnocentrismo, opinando que o
Brasil autêntico fica no interior e não no litoral deslumbrado pela
Europa, a quem macaqueia. E reivindicam uma expressão tanto própria
quanto autônoma de sua peculiaridade.
Assim nasceu aquilo que se conhece como o primeiro
regionalismo, subproduto do romantismo. Foi também chamado de
sertanismo, porque trouxe o sertão para dentro da ficção, onde teria
longa vida. Manifestando-se entretanto com contornos pouco precisos,
pode-se dizer que sua vigência recobre bem meio século, pelo menos
desde quando já ia avançado o romantismo, passando pelo naturalismo
até atingir o limiar do modernismo.
Nesse amplo guarda-chuva cabem pioneiros como Bernardo
Guimarães, Taunay e Franklin Távora. O próprio Alencar, de
importância seminal em nossas letras, entre as muitas obras que
escreveu procurando realizar sua ambição de cobrir o país no tempo e
no espaço, é autor de vários livros regionalistas. Para todos, o interesse
central estava no pitoresco, na cor local, nos tipos humanos das
diferentes regiões e províncias.
Anos depois surgiria um segundo regionalismo, sob o influxo do
naturalismo, em reação ao romantismo, rejeitando vários de seus
achados e propondo outras sondagens. Destacam-se Inglês de Sousa,
Oliveira Paiva, Rodolfo Teófilo, Afonso Arinos, Domingos Olímpio. A
reação contra o romantismo precedente implicou em busca de descrição
desapaixonada dos fatos, preocupação com os determinismos e com a
ciência, frio diagnóstico, pessimismo e fatalismo. Generalização
entretanto injusta para com alguns livros que, ao alcançar um nível
mais alto de elaboração literária, escapam parcialmente ao bitolamento
naturalista, como Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, e Pelo
Sertão, de Afonso Arinos.
Pode-se ainda afiliar a esse segundo regionalismo de recorte
naturalista alguns tardios, já pré-modernistas, sobretudo paulistas,
focalizando a cultura caipira, como Monteiro Lobato e Valdomiro
Silveira. Contemporâneo deles é um gaúcho dedicado às histórias e às
figuras de seus pagos, Simões Lopes Neto. A relevância de sua reduzida
obra, embora com resultado diverso, é algo que partilha com Valdomiro
Silveira, e reside prioritariamente na criação de uma "fala" própria em
primeira pessoa e em sua atenção à mimese da oralidade.
A essa altura, entre a primeira e a segunda leva regionalista, já
estavam completados, e foi tarefa levada a cabo com empenho e
escrúpulo por pelo menos duas gerações de escritores, tanto o
mapeamento da paisagem e das condições sociais, quanto o inventário
dos tipos humanos que se espalhavam pela desconhecida vastidão do
país: o caipira, o bandido, o jagunço, o caboclo, o cangaceiro, o
vaqueiro, o beato, o tropeiro, o capanga, o garimpeiro, o retirante.
Não se pode minimizar na seqüência dos regionalismos o
impacto da publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, em 1902.
Certamente filiado aos padrões estéticos do naturalismo, embora
matizado de parnasianismo e até de romantismo, sua sombra pairou
sobre a literatura brasileira com uma intensidade que excedeu de muito
a seu tempo.
No entanto, o filão regionalista mostrava-se tão rico que ainda
não se esgotara e voltaria com forças renovadas após o modernismo dos
anos 20. Este, no seu afã de desprovincianizar-se e alçar-se ao patamar
das vanguardas européias, apesar de todo o seu nacionalismo torcera o
nariz para o regionalismo e o decretara de má qualidade estética, bem
como inteiramente equivocado quanto aos propósitos de dar a conhecer
o Brasil. O melhor exemplo é Macunaíma (1928), de Mário de Andrade,
teórico e principal artista da escola, que esboça o panorama do Brasil
em sua totalidade mas deliberadamente confunde as diferentes regiões
e aquilo que as caracteriza, praticando o que chamava de
"desgeograficação".
O REGIONALISMO DE 30 E O ROMANCE
SOCIAL NORTE-AMERICANO

Se para o primeiro regionalismo a inspiração tinha provindo do


romantismo e para o segundo do naturalismo, o terceiro, que se
tornaria conhecido como "regionalismo de 30"3, beberia em outras
fontes.
No período entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1939,
viveu-se intensa polarização política. Solicitados por crises sociais sem
precedentes, ainda em pleno rescaldo daquela que foi a primeira guerra
total, envolvendo o planeta por inteiro numa globalização armada até
então inédita — e às voltas com uma escalada de conflitos que
prenunciava a próxima guerra, mais cruel ainda —, intelectuais e
artistas no mundo todo, bem como no Brasil, se arregimentavam à
direita ou à esquerda. De preferência, à esquerda. Um período que
assistiu à ascensão dos totalitarismos por toda parte — fascismo na
Itália, Espanha e Portugal, nazismo na Alemanha, peronismo na
Argentina, ditadura e Estado Novo de Getúlio Vargas no Brasil, para
não falar no integralismo de Plínio Salgado — só podia mesmo convocar
os intelectuais a uma maior participação na luta contra os regimes de
exceção.
Como não podia deixar de ser, essa arregimentação deixou
marcas nas artes e na literatura um pouco por toda parte. Uma das
realizações mais interessantes dela, à esquerda, foi o romance social
norte-americano.
Nas décadas de 20 e 30, exatamente nesse período entreguerras
que estamos recortando, surge com pujança uma novidade literária,
constituindo uma espécie de neonaturalismo em seu empenho de
denúncia da injustiça, da iniqüidade, do preconceito sob todas as suas
formas — de classe, de raça etc. Em sua preocupação social, seu mestre
é o francês Emile Zola (1840-1902), principal ficcionista do naturalismo,
com vasta obra que traça o painel dos males da sociedade francesa da
belle époque. Com berço nos Estados Unidos, teve como pano de fundo
a Grande Depressão, cujo pináculo foi o craque da Bolsa de Valores de
Nova York em 1929. A crise só viria a ser estancada pela prosperidade
trazida pelos investimentos industriais em armamentos e outros
equipamentos bélicos, já preparando a Segunda Guerra Mundial. Os
principais nomes da nova tendência são Theodore Dreiser, Upton
Sinclair, Sherwood Anderson, Michael Gold, Erskine Caldwell, John
Steinbeck, Sinclair Lewis, John dos Passos. E ela acabará atingindo
pelo menos os inícios do jovem Hemingway, também ele jornalista,
também de esquerda, também crítico da sociedade americana. Embora
seja injusto deixar de lado o maior deles, William Faulkner, com o qual
acontece o que sempre acontece com os muito grandes: não cabe muito
bem nessa nem em qualquer classificação.
Os três primeiros surgiram ainda antes do período acima
definido. Destacam-se como pioneiros, todos eles socialistas e
acusadores impiedosos da sociedade norte-americana, principalmente
pelo culto ao dinheiro acima de tudo, com seu poder de corrupção e
degradação moral. Aliás, um bom número desses escritores
neonaturalistas era jornalista de profissão e socialista por convicção.
Como se pode verificar no que escreveram, a busca de uma prosa
desataviada, bem próxima da escrita para periódico, caracteriza a todos
eles — novamente, exceto Faulkner.
Hoje em dia não dá para imaginar a influência que exerceram,
entre nós, em toda a América Latina e na Europa. E, principalmente, a
escala em que eram lidos, pois tornaram-se best-sellers em seu próprio
país e pelo mundo afora. No Brasil foram muito divulgados por várias
editoras, destacando-se entre elas a Globo, de Porto Alegre, que os
publicou a todos.
Como vimos, os autores do romance social norte-americano são

3
Antonio Candido A Revolução de 1930 e a Cultura". Em: A Educação Pela Noite
de esquerda e, se não revolucionários, ao menos reformistas. Praticando
uma literatura empenhada, tiveram enorme divulgação e repercussão
em seu tempo, em seu próprio país e além fronteiras, inclusive na
exigente Europa. Faziam uma literatura mais fácil de ler do que aquela
das vanguardas (por exemplo, James Joyce), nisso já pressagiando a
indústria cultural. Esta optaria sempre em favor do mais fácil, do
simplificado, relegando a alta literatura - aquela cuja forma é
esteticamente informativa — a um pequeno círculo de leitores
sofisticados, cada vez mais exíguo. Sintonizavam com pelo menos parte
do público à época, na tomada de consciência quanto à miséria.
Reivindicavam reformas que minorassem os sofrimentos dos pobres e
oprimidos. Acusavam os ricos e poderosos das condições iníquas da
sociedade. Mostravam-se mais despreocupados com a forma e mais
preocupados com os conteúdos.
O impacto que causaram pode ser medido pelo número de
prêmios Nobel que conquistaram. Sinclair Lewis (1930) foi o primeiro
norte-americano a ser agraciado com esse galardão, que depois coube a
Faulkner (1949), Hemingway (1954), Stembeck (1962). Com os quais, se
juntarmos em registro parcialmente diferente e para cima o notável
dramaturgo Eugene 0'Neill (1936) e em plano inteiramente diferente e
para baixo a romancista popular Pearl S. Buck (1938), teremos uma
boa avaliação do peso das letras dessa nacionalidade no período. Depois
dessa constelação, a premiação americana minguará outra vez.
Foi a primeira vez que a cultura norte-americana suplantou a
européia em nosso país. E nunca mais a Europa retomaria sua
ascendência perdida.
Quanto aos nossos autores, hoje é quase dispensável apresentá-
los, tal a hegemonia exercida durante longo tempo pelo regionalismo de
30, desde que se tornou a vertente dominante na prosa brasileira. O afã
ao mesmo tempo cosmopolita e nacionalista do modernismo, que afinal
se encenara todo no eixo São Paulo-Rio, somado a sua altíssima
qualidade estética, fora incapaz de impedir um novo surto regionalista.
Ao contrário do modernismo, que privilegiava a poesia, a voga em
ascensão investe tudo no romance, gênero certamente mais popular,
mais impermeável a vanguardismos e menos requintado. Com
instrumentos mais aguçados que os regionalismos anteriores, tinha
todo o ar, devido a sua simultaneidade, impressionante volume e
ineditismo, de ser propriamente uma escola, e vinda dos estados do
Nordeste.4
Historiadores e críticos são concordes em considerar como
marco inaugural A Bagaceira (1928),de José Américo de Almeida, da
Paraíba. Ali já se notam certas coordenadas que se farão recorrentes,
desde o entrecho que expõe um drama humano local, até a presença de
coronéis, de retirantes, da seca, da paisagem característica e das
relações sociais. Em rápida seqüência, estrearão e dominarão com seus
romances a cena literária por vários decênios, com apogeu nos anos 30
e 40, Rachel de Queiroz, do Ceará, José Lins do Rego, da Paraíba,
Graciliano Ramos, de Alagoas, e Jorge Amado, da Bahia, afora uma
verdadeira plêiade de autores menores.
Seria injusto, por não ser nordestino e pouco ter de rural, ao
contrário erigindo romance após romance um painel da pequena
burguesia urbana gaúcha, bem como uma saga da colonização do
extremo sul arrancando do campo, deixar de citar Erico Veríssimo.
O fato é que essa safra de ficção ao rés-do-chão, aspirando ao
documentário, constituiu um cânone ainda vigente em nossos dias,
impondo a norma à literatura brasileira, impedindo por longos períodos
que houvesse percepção estética de autores que não atuassem dentro
de seus ditames.
E, porque coincidiu com a formação de um mercado editorial e
de um público leitor, também explica em parte a persistência das
ramificações do naturalismo como principal programa estético-literário
entre nós.

4
Sérgio Miceli, Intelectuais e Classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel,
1979
A OUTRA FACE DA MOEDA: A "REAÇÃO
ESPIRITUALISTA" 5

Entretanto, nem tudo era regionalismo no panorama literário


brasileiro. Uma outra linha, certamente recessiva e abafada pelo
estrondoso sucesso, inclusive de vendas, dos regionalistas, tenazmente
produzia, mesmo que com menos estardalhaço. E viria, a seu tempo, a
gestar pelo menos um escritor extraordinário na pessoa de Clarice
Lispector, embora essa gestação implicasse num salto qualitativo e
numa espécie de superação tanto da negligência com o burilamento
formal quanto da fragilidade de estruturação.
Nessa outra face da moeda, o documento a que aspirava o
romance regionalista passa longe. Nada de documental nem de
engajamento, tampouco. Esses escritores, cada um à sua maneira,
voltam as costas ao social e à militância, para embrenhar-se nas
entranhas da subjetividade.
Muito interessante é que suas afinidades eletivas provenham de
outras paragens que não aquelas para as quais se voltava o romance
regionalista: da França, sobretudo. A grande sombra fecundante que
paira sobre a ficção introspectiva é o romance católico francês de
entreguerras, prolongando-se pelos anos 40 e 50. Lidas, relidas,
assimiladas e depuradas são as obras de romancistas como Georges
Bernanos, François Mauriac, Julien Green, e a doutrinação de Jacques
Maritain. Esse romance quase nunca é rural nem propriamente urbano,
porém de matéria provinciana ou interiorana, de pequenas cidades; ou,
mesmo quando rural, a discussão se entabula no plano dos problemas
urbanos. Compraz-se na decadência e na degradação moral de fim de
raça. Comparecem incestos, aleijões psíquicos resultantes de

5
Alceu Amoroso Lima, "A Reação Espiritualista". Em: Afrânio Coutinho (org.),
Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, v. IV, 3. ed., revista e
atualizada.
endogamia e consangüinidade, patriarcalismo incontrastado com
opressão de filhos e mulheres, estados mórbidos, crimes, taras e
perversões, mostrando-se afim ao naturalismo.
Os romances dos discípulos desses autores, além de
reivindicarem com ênfase uma espiritualidade que supunham perdida
ou pelo menos extraviada no panorama artístico nacional, apregoavam
o Mistério, assim com letra maiúscula. Suspensos entre o pecado e a
graça,escrevendo aborda do inefável,sustentando que os problemas
materiais — miséria, injustiça, opressão -nada significam quando
comparados à salvação ou perdição da alma, esses escritores e seus
escritos operam por dentro de uma introspecção levada ao limite. Tudo
se passa como se quisessem perquirir uma imensa problemática
espiritual, encenando-se no íntimo de cada um, enquanto recuperavam
a dimensão da subjetividade — mas uma subjetividade bem singular,
vivendo o drama católico.
Em suas obras vamos nos deparar com os embates entre o Bem
e o Mal, a escuridão da alma, a obsessão com a transcendência, o senso
do enigma latente na existência, a onipresença do pecado em meio à
demanda desesperada da perfeição, confrontada com a abolição dos
limites. De um lado, o confinamento na problemática cristã resulta no
ensimesmamento trazido por uma busca incansável do sobrenatural.
De outro, desemboca na angústia da cisão entre o apelo místico e o
aprisionamento na vileza da carne. Tudo isso num clima de pesadelo,
facultando os vários rótulos atribuídos a essa linha literária, como os de
romance de atmosfera, ou intimista, ou introspectivo, ou de sondagem
interior.
Seja como for, certamente encarna com vigor uma reação contra
a particularização do regionalismo: esse romance é universalizante.
Por isso, seus autores manifestam horror à cor local, ao
pitoresco, à exuberância dos trópicos, ao típico, à imanência de um
mundo sem Deus. Nisso, dessolidarizam-se dos regionalistas de 30 no
que estes têm de ateus ou agnósticos, abstendo-se de tocar em assunto
religioso, a não ser para zombar abertamente do caráter interesseiro do
clero e da beatice dos fiéis, denunciando a cumplicidade da hierarquia
da Igreja com os opressores.
É de se notar que, enquanto o modernismo se dá como um
fenômeno primordialmente paulista, passando-se em São Paulo entre
escritores paulistas, e o regionalismo de 30 é coisa de nordestinos,
como vimos, já essa outra face da moeda do romance de entreguerras
tem seu chão no Rio de Janeiro, seja entre os nascidos ali mesmo, como
Octavio de Faria, ou perto, como Cornelio Pena em Petrópolis, migrados
de Minas, como Lúcio Cardoso, ou da Bahia, como Adonias Filho. Na
capital do país, aproximam-se todos do grupo católico liderado por
Tristão de Athayde, pseudônimo do influente crítico e teórico Alceu
Amoroso Lima, que organizou o ideário e escreveu sobre o romance
espiritualista, e pelo pensador católico Jackson de Figueiredo, criador,
em 1922 — ano da Semana de Arte Moderna e da fundação do Partido
Comunista —, do Centro Dom Vital, no Rio, de reavivamento católico.
Quando Jackson de Figueiredo morre em 1928,Tristão de Athayde
coincidentemente se converte e assume a direção daquele Centro.
Todos gravitavam na órbita da revista católica A Ordem. Esse
caldo de cultura, muito influente à época, também produziu, além dos
romancistas, importante poesia e ensaio. Os citados são apenas os
autores de maior renome, havendo um número respeitável de escritores
à época que se pautavam pelo mesmo ideário.
Em doses diversas, e variando conforme a personalidade
artística de cada um, percebem-se todavia elementos comuns na obra
de todos eles. Uma certa vivência exasperada da derrocada, meditação
torturante da subjetividade, preocupação com a fatalidade, religiosidade
assumida ou negada que eclode em obsessão com o pecado, uma busca
da transcendência e até do sobrenatural na ficção.
A reação espiritualista no romance, a exemplo do regionalismo,
tampouco se desprende de todo do naturalismo, no fatalismo com que
abre espaço às forças atávicas e hereditárias, aos instintos, à
irracionalidade. Contribuem para esse efeito a escavação introspectiva e
o aprofundamento de certas técnicas literárias típicas do século 20,
como o monólogo interior, o fluxo da consciência, e tudo o que
desagregasse o discurso, que assim pretendia ser fiel e colado ao que se
postulava como o verdadeiro funcionamento da psique.
Nem sempre é fácil distinguir com clareza uma e outra face da
moeda, havendo de permeio um território de transição que muitos
autores perlongaram, e em que alguns perderam o rumo. E, se Lúcio
Cardoso começou pelo regionalismo, com Maleita, também Caetés e
ainda mais Angústia, de Graciliano Ramos, assim como parte da obra
de José Lins do Rego, por exemplo, têm um inegável ar de parentesco
com esse romance de atmosfera e de indagação interior. E bem mais se
pensarmos na busca de uma transcendência sem Deus.
É nesse panorama literário, basicamente bipartido, que
Guimarães Rosa vai fazer sua aparição, operando como que uma
síntese das características definidoras de ambas as vertentes: algo
assim como um regionalismo com introspecção, um espiritualismo em
roupagens sertanejas.
2. GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Quando Grande Sertão: Veredas é lançado, em 1956, já foi

precedido por Sagarana em 1946 e por Corpo de Baile igualmente em


1956. Até então conhecido por narrativas mais curtas — os contos do
primeiro livro e as novelas do segundo —, Guimarães Rosa surpreendeu
os leitores ao brindá-los com um alentado romance de quase 600
páginas. A reação da crítica foi instantânea e, após as polêmicas
iniciais, acabou por proclamar seu romance uma obra-prima. Os
estudos se multiplicaram imediatamente, os críticos mais reputados
dedicando-se a analisar e interpretar o novo livro. Aqui finalmente se
encontrava a verdadeira saga do sertão, como o próprio título indica.
Não é só Grande Sertão: Veredas, mas toda a obra de Guimarães
Rosa, de fato, que começa e acaba no sertão. Para sempre identificado
ao sertão, esse é seu universo, seu horizonte, seu ponto de partida e de
chegada.

O SERTÃO

Mas que sertão é esse? Geograficamente, não é o do Nordeste, do


Polígono das Secas. É outro, bem menos conhecido e explorado
artisticamente, seja pela literatura, seja pelo cinema: é o sertão do
estado de Minas Gerais.
É importante precisar essa distinção, porque, diferentemente do
sertão calcinado e trilhado pelos retirantes de, por exemplo, Vidas
Secas, de Graciliano Ramos, este é um sertão caracterizado por aquilo
que se chama localmente os campos gerais, com suas pastagens boas
para gado, a perder de vista. E — pasmem — pela abundância de água,
tantos são os rios que o cortam, dos quais o principal é o grande São
Francisco, com seus numerosos afluentes. O leitor de Guimarães Rosa
deve, portanto, habituar-se à idéia de um sertão que não é pardo nem
árido.
A bela oposição entre seco e úmido, uma das mais assentadas
na literatura de todos os tempos — a se fazer notar desde a Bíblia —,
desempenha um papel de primeiro plano na obra de nosso escritor, que
soube reconhecê-lo ao intitular seu único romance como Grande Sertão:
Veredas. Nesse título, armado em antítese, a palavra "vereda" não tem o
sentido corrente de "caminho" ou "via", mas sim o significado local e
regional, que só adquire lá mesmo nos campos gerais, de "regato" ou
"riozinho". O grande sertão, ou espaço circundante abrangente e
presumivelmente árido, é recortado por mil e um desses riachinhos,
como a própria obra rosiana não se cansa de explicar em várias
passagens.
Não se pode, tampouco, ignorar o significado simbólico que se
superpõe a esse, literal: o de um espaço amplo e perigoso, cheio de
percalços e armadilhas, verdadeiro labirinto existencial, mas que admite
brechas levando a saídas, vias de comunicação — talvez vias de
salvação.
Superpondo-se ainda a esse, mas com ele coincidindo,
encontramos um sertão mítico, onde em jogo está a salvação ou
perdição do ser humano, mero peão na eterna batalha entre Deus e o
Diabo.
Esse é o espaço ao mesmo tempo geográfico, simbólico e mítico
onde se desenrola a obra de Guimarães Rosa.
6
Ao escrever o romance, marcado pelo signo da ambigüidade,
Guimarães Rosa mitifica esse grande espaço interior do Brasil que é o
sertão, recolhendo as sagas dos guerreiros que o habitaram. Um espaço
sem fronteiras interiores nem exteriores, tendo por pontos de fuga no
horizonte, aludidos mas nunca mostrados, a cidade e o mar. Um espaço
onde o maravilhoso e o fantástico fazem parte da vida cotidiana.

6
Walnice Nogueira Galvão, As Formas do Falso — um Estudo Sobre a Ambigüidade no
Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Perspectiva, 1972.
OS JAGUNÇOS

Desde a descoberta do país, o sertão fixou-se nos escritos dos


cronistas e viajantes - nossos primeiros historiadores —, mas também
na ficção em prosa e na poesia, como um território desconhecido, palco
de violência e de ausência da lei. Apoiando-se sobre a tradição oral, o
romance de Guimarães Rosa não podia deixar de ser uma história de
bandos e de bandidos.
O bandido que o habita — o jagunço — ocupa tanto o imaginário
popular quanto o literário. Nesse caso, cabe-lhe um lugar central nas
reflexões de Riobaldo, o narrador-protagonista, ele mesmo jagunço e
outrora chefe de bando, ora praticando a autobiografia para um
interlocutor empático.
Do que se sabe a seu respeito na história de nosso país, o
jagunço não é um criminoso vulgar. Seus crimes revelam um laço com a
honra e com a vingança. O jagunço não age isolado, mas sempre
coletivamente: não é um assassino nem um ladrão, mas um soldado em
guerra que devasta e saqueia. Nas palavras de Riobaldo, ao advogar a
absolvição de Zé Bebelo: "Que crime? Veio guerrear, como nós também
[...]. Crime que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou gado... não
cumprir a palavra..." (p. 252).
Esse romance mantém vivas as duas faces do jagunço: a das
proezas cavalheirescas de justiceiros prontos a defender a causa dos
oprimidos (cujo modelo é Robin Hood) e aquela dos atos de crueldade
gratuita. Basta lembrar as dificuldades enfrentadas por Euclides da
Cunha ao escrever Os Sertões. Dilacerado entre a admiração que sentia
pela resistência heróica dos homens de Canudos e o asco que suscitava
nele essa horda de "fanáticos" ignorantes e supersticiosos, recorre às
antinomias e antíteses, em busca de uma síntese que incessantemente
lhe escapa.
Grande Sertão: Veredas mostra como num país imenso, de
território quase infinito, o exercício privado e organizado da violência a
serviço dos poderosos sempre constituiu a regra, e não a exceção. Aí
radica um dos fundamentos de uma sociedade sem par em sua
iniqüidade. Outros fatores, como a escravidão, por exemplo, só
concorreriam para agravar esse quadro. A presença de uma força
armada a serviço de um proprietário de terras, dentro de sua fazenda,
desempenha um papel ao mesmo tempo defensivo e ofensivo: "todos
donos de agregados valentes, turmas de cabras no trabuco e na
carabina escopetada!" (p. 107). Esses sem-terra alugados do patrão
servem para várias coisas: garantir os limites da propriedade, sem
cessar contestados; grilar terras; eliminar adversários; organizar
eleições, recorrendo à fraude e à intimidação, mobilizando os eleitores
"de cabresto"; desencadear contendas ou reprimi-las.
Na pertinência de suas análises, o romance expõe aos olhos do
leitor, como a literatura sempre fez, a concretude dos fenômenos
históricos, encarnados em personagens. Os estudiosos chamaram e
chamam nossa atenção para o caráter rotineiro das diversas
manifestações de violência no Brasil, que causaram não só
perturbações eleitorais no passado, mas também insurreições, rebeliões
e golpes de Estado. Basta pensar em quão poucos anos de democracia
resulta o saldo do século 20 entre nós, em sua maior parte dominado
por ditaduras e estados de sítio. Isso deriva de um regime autoritário de
dominação, onde todo poder emana do alto, de um lado, e de outro lado
há uma ausência quase total de instituições de autodefesa do povo.
Nesse ponto, a instituição da escravidão com mão-de-obra
trazida da África foi decisiva. Toda atividade produtiva se concentrava
nas unidades rurais, as fazendas, onde o trabalho compulsório era feito
pelos escravos, submetidos a um só patrão, o proprietário. A margem
dessa equação senhor/escravo, foi-se constituindo uma enorme
população de homens livres, destituídos de todo poder econômico e
político, dependente da boa vontade do proprietário para sua
subsistência. Inteiramente ao abandono, sem quaisquer direitos civis,
essa população por sua própria natureza inútil acabava por ser utilizada
pelo fazendeiro para as mencionadas operações defensivas e ofensivas.
Cada fazenda, desde os primeiros tempos da colonização, contava com
um verdadeiro exército particular.
Com o passar dos anos, o caráter privado do poder efetivo vai-se
transportar tal qual para os partidos políticos, desde o nível municipal
até o do estado e da nação, de tal modo que o jagunço surge no próprio
núcleo da organização social, econômica e política: não como um
acidente, mas como uma necessidade histórica.

OS HOMENS E OS BOIS

Recapitulando: o "sertão" designa uma zona vasta do interior do


Brasil, o coração do país. Suas características físicas são variáveis,
embora as associações de seca e de aridez sejam predominantes, e a
vegetação típica a caatinga. Mas há ali também, como se mencionou,
muitas pastagens naturais, ao longo das margens luxuriantes dos rios e
das veredas que recortam o sertão mineiro.
Numa tal diversidade, a unidade é fornecida pela presença
constante do gado e pela prática da pecuária extensiva, com os animais
criados soltos em largas extensões de território desabitado: "Lugar
sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode
torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde
criminoso vive seu cristo-jesus, ar-redado do arrocho de autoridade" (p.
9).
E assim que o gado constitui o pano de fundo para o entrecho. E
raro que apareça em primeiro piano, mas está ali para assegurar a
continuidade do espaço, pontilhando-o com uma presença tão discreta
quanto infalível. Os bois se fazem presentes na linguagem, indo desde
os acontecimentos relatados até as imagens e as metáforas. Lá estão
eles nos topônimos (Curralinho, Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita,
Vau das Vacas — versão sertaneja de Oxford —,7 Ribeirão Gado Bravo,
Currais-do-Padre, Bambual-do-Boi, Lugar-do-Touro, Cachoeira-dos-
Bois e muitos mais), nos nomes de guerra dos jagunços (Marruaz, João
Vaqueiro, Carro-de-Boi), nas toadas que cantam (a Moda-do-Boi, "Meu
boi preto mocangueiro", "meu boi mocho baetão" na cantiga de Siruiz),
nos objetos de uso cotidiano feitos de couro e de chifre, reveladores de
um modo de vida rústico. Enquanto excursionam, em sua vida errante,
os jagunços cruzam freqüentemente com vaqueiros e boiadas. Os bois
são indicadores preciosos para a sinalização: se ariscos, infere-se
ausência de seres humanos; se gordos e prósperos, é porque os
recursos naturais da área são propícios. E assim por diante.
O narrador-protagonista, em seu discurso campesino e
sentencioso, profere provérbios que se referem ao gado: "Todo boi,
enquanto vivo, pasta" (p. 422); ou "De graça berra é o boi, tirante a
vaca" (p. 552). O gado vai também servir de material para a construção
de imagens e metáforas referentes aos jagunços. Coletivamente, eles são
assimilados a uma boiada. Só os chefes são comparados a bois
individuais. E apenas os líderes supremos, capazes de agregar vários
chefes com seus bandos, são comparados a touros. As figuras de estilo
respeitam a hierarquia.
A presença difusa e constante do bovino recria o universo da
pecuária extensiva, onde o gado é criado solto e não estabulado. A
origem dessa maneira de criar gado remonta aos tempos coloniais,
quando a atividade econômica prioritária se resumia às plantações, às
quais se reservavam as terras mais férteis e mais próximas do litoral,
para minimizar os custos do envio da mercadoria para a metrópole.
Espécie de parente pobre da economia colonial, a criação de gado
dispensava investimentos e se contentava com um mínimo de mão-de-
obra. Era, todavia, indispensável, pois alimentava todos aqueles
envolvidos na agroindústria, primeiro de cana-de-açúcar e mais tarde
de café. Socialmente, era uma atividade atraente, pois reservava-se aos

7
Oxford" vem de ox (boi) e fora (passagem, vau, trecho raso do rio).
homens livres, porque os distinguia do trabalho manual dos escravos.
Ainda mais, o cavalo é sinal de prestígio nessa sociedade rústica: "O
pobre sozinho, sem um cavalo, fica no seu, permanece, feito numa croa
ou ilha, em sua beira de vereda. Homem a pé, esses Gerais comem" (p.
351).

A PLEBE RURAL

Em nosso passado, esses homens livres, nem proprietários nem


escravos, aumentaram tanto que chegaram a formar a massa da
população brasileira, sempre à margem do processo produtivo principal.
E aumentaram de duas maneiras. Primeiro, de modo vegetativo;
segundo, quando do encerramento de um ciclo econômico. Foi o que
ocorreu quando cessaram as bandeiras; quando as minas de ouro se
esgotaram; quando o cativeiro foi abolido.
Todas as administrações durante a Colônia, o Império e a
República dão mostras de inquietação constante para com essa massa
de gente potencialmente sediciosa, sempre alerta ao primeiro brado de
insubordinação. Esses sem-terra, como eram carentes de tudo, de
propriedade, de bens, de tradição, de raízes, de qualificação
profissional, seu único meio de vida era colocar-se sob a proteção de um
poderoso, alojando-se "de favor" em suas propriedades. Vêm daí as
designações correntes de moradores ou agregados, prontos a remunerar
o patrão com qualquer espécie de serviço. Desse modo, eles podiam ser,
e foram invariavelmente, convocados todas as vezes que o exercício da
violência era necessário à defesa dos interesses do senhor.
Sem laços, sem raízes, desde então sem terra, como agora: em
decorrência, uma extrema mobilidade horizontal. Sempre em
movimento, ao léu do destino e do arbítrio do patrão, como aparece
claramente nas reminiscências de Riobaldo: "Quem é pobre, pouco se
apega, é um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios
e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e
habilidoso. Pergunto: Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-
d'angola, como todo mundo faz?'" (p.41-2). A resposta vem na
formulação magistral de Guimarães Rosa para a condição da plebe
rural brasileira: '"Quero criar nada não...' — me deu resposta...'Eu gosto
muito de mudar...'" (p. 41-2).
Donde um individualismo avançado até o último grau. Frente à
ausência de toda forma de organização para a defesa de seus direitos, à
beira da anomia, seu bem mais importante reside em sua valentia, que
compensa todas as carências. Como diz Riobaldo: "jagunço não é muito
de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se
misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si"
(p.29). Ou, comentando mais laconicamente essa mesma ordem de
relações sociais: "Em jagunço com jagunço, o poder seco da pessoa é
que vale" (p. 79).
Todas as sutilezas do código jagunço exigem que Riobaldo, em
seu percurso iniciático, dedique a elas o melhor de sua perspicácia. O
que ele faz por etapas. Observa, de saída, que existem diversos chefes e
muitos homens a eles submetidos. Pouco a pouco, percebe que, quando
os chefes não são ligados por laços de sangue, o são por sua posição
social e por sua riqueza. Deslancham, nessa condição, uma guerra
privada, impelidos exclusivamente por motivos pessoais, aos quais seus
subordinados não têm acesso.
Um tal poder social e econômico repercute, evidentemente, em
poder político, havendo dois grupos de alianças contrários um ao outro
em cada município, o grupo da situação e o da oposição. Riobaldo, e
com ele o leitor, fica ciente de que, no aparente caos de aglutinações e
divisões, reina o processo de uma dessas alianças formadas para se
opor à outra então eventualmente no governo. Pouco a pouco, Riobaldo
descobre aquilo que vai enfim determinar toda a sua vida e seu destino
pessoal: "Política! Tudo política e potentes chefias!" (p. 107).
A PERSPECTIVA FEUDAL

É corriqueiro que tanto a literatura quanto a historiografia


brasileiras assinalem a equivalência entre a Idade Média e o universo do
sertão. É uma maneira de dar foros de nobreza a um estilo de vida
brutal,justificando a título de heroísmo crimes bárbaros com
refinamentos de crueldade que um tal espaço difunde. Robin Hood, o
Cid, Carlos Magno ou Parsifal são nomes convocados a todo instante.
Se a representação medieval do sertão é corrente na literatura
culta, nem por isso deixará de freqüentar igualmente a tradição
popular. Seja na oralidade dos causos e das cantorias, seja na literatura
de cordel: as camadas cronológicas se misturam, e o mais recente dos
eventos se desenrola com toda a naturalidade em paralelo com aquele
de outrora. Com a mesma profundidade histórica, acotovelam-se
Roldão, Getúlio Vargas, Lampião, o presidente Kennedy, o padre Cícero,
o Diabo, Genoveva de Brabante e outros.
Um livro em particular constitui a fonte de uma enorme
quantidade de cantigas, de folhetos de cordel, de figuras de folclore e
até mesmo de nomes próprios. Trata-se da versão portuguesa de uma
novela de cavalaria francesa, História do Imperador Carlos Magno e dos
Doze Pares de França. Constituída por um número incalculável de
episódios finitos, estes se prestam à pinçagem e versão independente, a
partir da leitura em voz alta feita para um auditório integrado pela
família e pelos próximos. Romances e livros de memória testemunham a
presença desse livro singular nos lares sertanejos.
Mesmo não sendo citado pelo título, esse livro reponta a cada
momento em Grande Sertão: Veredas.Jocz Ramiro é cognominado "par-
de-frança". Riobaldo se põe na pele de Gui de Borgonha, herói da novela
de cavalaria e amado da princesa Floripes. Um dos dois traidores,
Ricardão, é chamado de Almirante Balão, o vilão da novela. Ainda mais,
o estilo do romance se esforça por assimilar o modelo, dando foros de
aventuras cavaleirescas às peripécias dos jagunços. Coroa o processo o
apelo feito intermitentemente a um vocabulário arcaizante, advindo da
literatura medieval: justas, torneios, ginetes e corcéis aparecem
acoplados a abstrações da mesma proveniência, como honra, justiça,
8
lealdade, palavra dada etc.
Se o modelo literário imita a Idade Média, já o jogo dos tempos
permite uma grande flexibilidade de datação. Deliberadamente, os
limites temporais se esfumam.Todas as vezes que aparece um
documento comprobatório de um evento histórico bem preciso, o
narrador recorre à fórmula coloquial "e tantos". Quando o romance se
decide a apresentar,já em suas últimas páginas, a certidão de batismo
de Diadorim, é para diluir a precisão da data em todo um século:
"Registrado assim: num 11 de setembro de 1800 e tantos..." (p. 566).
A soma das alusões, porém, mesmo que vagas; o nome de
Diadorim, dentre os tantos Deodoros e Deodoras que se batizaram em
homenagem ao marechal Deodoro da Fonseca após a queda da
Monarquia; uma referência à passagem da Coluna Prestes etc, tudo isso
define os contornos da República Velha, ou Primeira República (1889-
1930). Se o sertão é o espaço, essa é a época do romance.

ZÉ BEBELO E A CENTRALIZAÇÃO REPUBLICANA

Enquanto durou essa época, que se concentrou na criação e


consolidação das instituições republicanas, o país assistiu a constantes
insurreições, que por vezes atingiram as raias da guerra civil. Foi a era
da implantação do princípio da centralização nacional, à custa do
princípio federalista ou regionalista representado pelos chefes
particulares com seus bandos armados. É o que se observa no entrecho

8
M. Cavalcanti Proença, op. cit.
do romance, um de seus maiores achados sendo encarnar em
personagens esse processo histórico.
Entre os chefes de jagunços estão aqueles do bom lado, como
Joca Ramiro, ou do mau, como o arquivilão Hermógenes e seu aliado
Ricardão: todos fazem parte da habitual aliança privada para a
dominação local. Todos, salvo um, Zé Bebelo, o qual, juntamente com
Riobaldo e Diadorim, constitui o trio central do romance. Zé Bebelo
encarna o princípio da centralização nacional e a divisa da
República,"Ordem e Progresso".
A bem da ordem, almejando submeter a jagunçagem e pacificar
o sertão: "Sei haja de se anuir que sempre haja vergonheira de
jagunços, a sobre-corja ? Deixa, que, daqui a uns meses, neste nosso
Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar para as
eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, só para tudo
destruírem, do civilizado e do legal!" (p. 125). A bem do progresso,
visando a introduzir ali as benesses da civilização: "Dizendo que, depois,
estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia
perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a
saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas" (p. 126).
Coerentemente, fecha suas cartas com: "Ordem e Progresso, viva
a Paz e a Constituição da Lei!"(p. 312).
Embora não se contente em ser apenas altruísta e espere tirar
proveito pessoal, inclusive uma cadeira de deputado, Zé Bebelo, ao
arvorar-se em militante da modernização, conserva em mente os ideais
da nação: "Agora, temos de render este serviço à pátria... tudo é
nacional!" (p. 125). A tal ponto que Zé Bebelo vem a ser a única
personagem capaz de raciocinar em termos que não os da tradição, ou
de laços de sangue, ou de alianças privadas para dominação, mas de
República e de canais democráticos.Tem por hábito, mesmo em meio ao
fogo cruzado dos combates, fazer comícios políticos nos arraiais por
onde passa e, como se não bastasse, incita Riobaldo a discursar
também: "Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para
perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu que eu
falasse discurso também. Tive de. 'Você deve citar mais é em meu nome,
o que por meu recato não versei. E falar muito nacional...'" (p. 128).
Seu empenho na imposição da lei e na pacificação do sertão é
tão acentuado que ele o manifesta aos berros mesmo enquanto atira
nos outros. Seus gritos de guerra mais usados são "Viva a lei!" e "Paz!".
Já os tendo ouvido, um trêmulo veredeiro se joga a seus pés e implora:
"Não faz viva lei em mim não, môr-de-Deus, seu Zebebel, por
perdão..."(p. 75). Ao que o chefe imediatamente aquiesce e o toma na
garupa para levá-lo a jantar com o bando.
Os traços positivos definidores dessa personagem introduzem a
modernidade no contexto histórico de República Velha do romance:
inteligência, sede de instrução, visão nacional.Todavia, como tudo nesse
livro, ele próprio é ambíguo e sofre o peso de traços tradicionais
negativos: a valentia acima de tudo, a ambição de poder pessoal, a
utilização de jagunços para acabar com a jagunçagem. Finda por
dobrar-se à lei do sertão, assumindo o comando de um bando que ele
próprio antes combatera, e, como se não bastasse, tendo por alvo a
execução de uma vingança privada sem qualquer ideal "nacional".
Jamais conseguirá ser deputado. Já que não morreu pelas armas, à
maneira tradicional, seu destino é degradar-se em mero comerciante.
Tudo isso faz de Zé Bebelo uma personagem que se destaca
entre os diversos chefes do romance. Enquanto os outros pairam num
plano mítico, nebuloso e grandioso, ele renuncia a ganhar a admiração
do leitor e do narrador por ser demasiado humano e muito ele mesmo
com suas manias: seu apito de comando, suas interjeições — "Maximé!"
— e xingamentos, sua tagarelice e suas veleidades de ser deputado.
Até mesmo suas ligações com o governo central, que lhe fornece
armas e financia seu bando, com o fito de acabar com a jagunçagem,
colocam-no numa esfera diferente daquela dos demais chefes, todos
pertencentes às alianças privadas de dominação.
A MATÉRIA DO SERTÃO

Afora as linhas mestras do corte cronológico que delimita a


época do romance, as crônicas do sertão, especialmente aquelas da
região do rio São Francisco, são o celeiro onde o anedótico se abastece.
O entrecho se apresenta como um prolongamento ficcional das proezas
sangrentas dos poderosos latifundiários do sertão, que preencheram os
tempos do Império e o começo da República, e que hoje, ocupado o
sertão, avançaram para novas fronteiras, a oeste e a norte. No romance,
a todo momento surgem catálogos onde os nomes próprios e os
topônimos das fazendas ou arraiais são fornecidos ao leitor, extraídos
dessas crônicas. Por isso, o relato pulula de alusões a pessoas da
região, de comprovada existência histórica, como "Domingos Touro, no
Alambiques, Major Urbano no "Macaçá, os Silva Salles na Crondeúba,
no Vau-Vau dona Próspera Blaziana" (p. 107). Até mesmo alguns de
nome ainda mais improvável que os constantes nesse catálogo, como
Rotílio Manduca e Antônio Dó, são pessoas históricas.
Da matéria do sertão — termo usado aqui como se diz que tal
novela de cavalaria pertence à "matéria da Bretanha"— a narrativa
aproveita muitos outros elementos. Era costume que os jagunços de um
bando assumissem coletivamente, como substantivo comum, o nome de
seu chefe. Tal ocorreu com os feitosas, os brilhantes, os antunes, como
no romance com os ramiros, os zebebelos, os hermógenes, os riobaldos.
Do mesmo modo, o jagunço assumia um nome de guerra; e
mesmo os mais célebres, como Lampião, estavam nesse caso Virgulino
Ferreira recebeu a alcunha de Lampião porque atirava com tal rapidez
que tudo clareava em volta. Seu irmão adotou o nome de Ponto Fino
porque seus tiros costuravam cerrado — o que vai ao encontro do
primeiro apelido de Riobaldo, o Cerzidor. Este receberá mais um
apelido, o de Tatarana, "lagarta de fogo", antes de atingir a culminância
da chefia e de um cognome ilustre como o de Urutu Branco, serpente
das mais venenosas.Três vezes renominado, persiste a alusão à
excelência do tiro: primeiro como costureiro, depois como bicho que
queima e enfim pela precisão do bote letal.
O Liso do Sussuarão, definido como "o raso pior havente" (p. 34),
se baseia no Raso da Catarina, no sertão da Bahia, com suas
características físicas de extrema agrura, deserto onde Lampião se
embrenhava com seu bando para escapar ao assédio das forças legais.
Mesmo a utilização do zurro eqüestre como sinal convencionado para
ordens de batalha está registrado nas crônicas.
Não só pormenores anedóticos, mas o esteio da narrativa, que é
a legenda do pacto com o Diabo e do corpo fechado, são das mais caras
tradições da região e se aplicaram a todos os jagunços famosos. Assim,
a "matéria do sertão" fornece ao romance o substrato que sustenta a
fabulação ficcional.

O PAPEL DO NARRADOR-PROTAGONISTA

A situação de narrar que Grande Sertão: Veredas propõe


mimetiza o testemunho de um velho jagunço chamado Riobaldo, agora
retirado das lides guerreiras e, por artes que aos poucos se
esclarecerão, transformado em próspero fazendeiro. Dispõe-se ele a
contar a história de sua vida a um interlocutor letrado e urbano, que
anota suas palavras:
"— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem
não, Deus esteja" (p. 9). Por essa célebre frase se abre a narrativa, ou
seja, por um travessão que é signo de fala, e de uma fala que só se
encerra quase 600 páginas depois, sem divisão de capítulos. Esse
travessão instaura um monólogo ininterrupto, que é um dos lados de
um suposto diálogo, já que em nenhum momento aquele que monologa
cede a palavra ao interlocutor. Mas este é postulado desde a primeira
frase, pelo travessão e pelo tratamento respeitoso de "o senhor", que se
reitera até o fim.
O interlocutor é interpelado, sempre dentro da fala do narrador,
através de "respostas" que o narrador dá a suas presumíveis perguntas,
em geral sugerindo pedidos de esclarecimento. E também através de
alusões a suas características, como o uso de óculos e de uma
caderneta de notas, ou a seus gestos, como o escrever e desenhar
continuamente ao anotar o que ouve. Os elogios, até cômicos de tão
exagerados, que o narrador faz ao interlocutor incluem alusões a sua
"carta de doutor", ao fato de vir da cidade grande, a sua instrução e até
a sua "suma doutoração" (p. 15).
A oportunidade de atender à solicitação do interlocutor, que
conhece sua fama de jagunço, se transforma numa verdadeira ocasião,
aliás bem aproveitada, de passar a vida a limpo. Ou seja, construindo,
com o auxílio do interlocutor, um texto de autobiografia que o ajude a
compreender sua vida, segundo ele mesmo caótica, desnorteante.
O monólogo funda a opção por um discurso "oral", que se
expressa mediante interjeições, cláusulas exclamativas e interrogativas,
frases truncadas. A opção pela fala é um feliz achado, pois confere ao
romance unidade estilística, abolindo a multiplicação de recursos que
obrigaria forçosamente uma variação dos pontos de vista ou focos
narrativos. Pela boca de Riobaldo, são todas as personagens do
romance que falam.
Entretanto, trata-se de um discurso "oral"... que é escrito. Não se
pode esquecer que foi a partir do modelo oral da fala sertaneja que
Guimarães Rosa criou uma linguagem especial, nutrida de arcaísmos e
de elementos eruditos. A verossimilhança de um jagunço dispor de uma
tal linguagem reside em conferir-lhe um passado de letrado, do qual
Riobaldo se vangloria, embora não tenha ultrapassado as primeiras
letras. Foi ao se tornar professor e depois secretário de Zé Bebelo que
acabou por entrar no ofício da jagunçagem. Até o fim, Zé Bebelo o
chamará com todo o respeito de "Professor" — mas unicamente Zé
Bebelo, contrastando com os demais, que utilizam suas três alcunhas
de jagunço.
Dando a palavra a um jagunço, o romance ganha outra
vantagem, ao eliminar o contraste canhestro, tão praticado pela prosa
regionalista, entre uma linguagem pitoresca e folclórica, do sujeito
analfabeto, e a norma culta, da classe a que pertence o escritor, que
assim exibe ao leitor o exotismo do cangaço.

O PERCURSO DE RIOBALDO

Riobaldo, o narrador-protagonista, numa espécie de exame de


consciência feito na velhice, analisa em retrospecto seu duplo destino
de jagunço-letrado, por solicitação do interlocutor "mudo" e contando
com sua parceria. Nascido pobre e bastardo, guarda uma boa
lembrança da mãe, falecida quando o filho mal saía da infância.
Rememora com freqüência o evento mais marcante dessa primeira parte
de sua vida, a saber o encontro com o Menino, ao qual ele fará
subseqüentemente repetidas alusões.
Após a morte da mãe, Riobaldo é recolhido pelo padrinho
Selorico Mendes — na verdade, o pai ignorado —, em cuja fazenda vai
morar.
É o padrinho quem o inicia nas artes da guerra e nas letras. O
padrinho tinha ilimitada admiração pelos jagunços e gostava de se
jactar das relações de amizade que tinha com muitos deles. Nessa
ordem de idéias, põe nas mãos do afilhado diversas armas com as quais
deve se exercitar. E, contrariado porque o pequeno, analfabeto, não
consegue ler os documentos que lhe mostra para atestar sua
familiaridade com jagunços célebres, decide enviá-lo à escola da aldeia
mais próxima.
Na escola, Riobaldo mostra boa aptidão para os estudos. Mas
não se sai tão bem nas tarefas da vida prática, extraindo por isso de seu
hospedeiro na aldeia a seguinte observação:"Baldo, você carecia mesmo
de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você
jeito não tem. Você não é habilidoso" (p. 109). O professor, Mestre
Lucas, confirma: "É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor
de mão-cheia você dava..." (p. 109). A partir daí, Riobaldo passa a
assistente de Mestre Lucas, na escolinha de primeiras letras.
Ao saber, eventualmente, que seu presumível padrinho é de fato
seu pai, Riobaldo foge de casa e arranja um cargo para ensinar numa
fazenda por indicação de Mestre Lucas. Até aqui, dois arbítrios da sorte.
Primeiro, a jagunçagem o joga nas letras, pois o pai o manda
alfabetizar-se ao não conseguir ler os documentos comprobatórios de
suas relações com chefes de bando. Depois, as letras o jogam na
jagunçagem, o aluno que o aguarda na fazenda sendo ninguém menos
que Zé Bebelo, influência maior na definição de seu destino.
Devido aos brilhantes dotes do aluno, logo o professor nada mais
tem a lhe ensinar. Mas aceitará o oferecimento do posto de secretário,
assim permanecendo ao pé de Zé Bebelo. A fazenda deste está em pé de
guerra, em meio aos preparativos de arrancada da campanha para
acabar com a jagunçagem utilizando jagunços. Riobaldo, sem nada que
o prendesse, segue junto, embora apenas como secretário não-
combatente.
Mas um dia, presa de desgosto à vista de tanta mortandade,
resolve fugir e abandonar aquela vida. O que faz, para melhor ser
laçado por outro arbítrio da sorte, tornando-se mais completamente
presa do destino. Pois, em meio à fuga, vai topar numa outra fazenda
com o Menino, agora o adulto Diadorim, membro importante do bando
de Joca Ramiro, que Zé Bebelo justamente combatia.
O enredo é emaranhado, e a reflexão de Riobaldo também, pois
se percebe joguete de forças que não compreende. Ao reencontrar o
Menino, não mais o abandonará, e será ele quem determinará dali em
diante seus passos. Passa a fazer parte do bando dos adversários de Zé
Bebelo e se tornará definitivamente um jagunço.

RIOBALDO E DIADORIM

No primeiro encontro entre ambos, ainda na adolescência,


Riobaldo recebera do Menino uma lição de coragem quando da travessia
do São Francisco numa canoa. No segundo encontro, arrebatado pelo
fascínio de Diadorim, vai aprender em sucessivas lições de quanta
coragem se precisa para ser jagunço. Sendo Diadorim filho secreto de
Joca Ramiro, chefe do bando, estabelece-se entre os dois uma relação
de amor e de morte, que se desenrola sob o signo de Deus e do Diabo.
Nessa relação, a camaradagem viril se mistura a um desejo dos mais
ambíguos, assim como o prazer da amizade entre ambos à guerra
incessante em que estão empenhados. Disso resultará, por fim, a morte
de Diadorim, da qual Riobaldo se sentirá culpado pelo resto da vida.
Riobaldo demora um pouco a perceber que o que sente é amor, e
amor por um outro homem. Sua perturbação é enorme, e ele chega a
pensar em suicídio. Só saberá, para sua pena e alívio, que se trata de
uma mulher disfarçada de homem nas últimas páginas do livro, quando
Diadorim mata e morre, num duelo a faca com Hermógenes —
assassino de seu pai, Joca Ramiro. Seu corpo vai ser preparado para
receber a mortalha, quando também o leitor fica sabendo seu
verdadeiro sexo.
A essa ambigüidade se acrescentam os problemas inerentes à
carreira de jagunço: vencer o medo, provar a destreza nos combates e,
sobretudo, empenhar lealdade a um chefe. Tendo pertencido
sucessivamente a vários bandos, às vezes inimigos uns dos outros,
Riobaldo não tem clareza sobre suas próprias motivações. Persistem
suas indagações sobre a justiça e sobre as causas últimas. Para obter a
confiança de Diadorim, que jurou vingar o assassínio do pai matando o
Hermógenes e exige igual juramento do amigo, Riobaldo acaba por
vender a alma ao Diabo em troca de atingir esse objetivo. A partir daí,
diluem-se suas dúvidas, ele destitui Zé Bebelo e se torna chefe em seu
lugar. Passa a ter apenas um alvo, inexorável: eliminar o Hermógenes.
É o que se encontra resumido numa frase que serve de epígrafe
ao romance, já na folha de rosto, e que é repetida inúmeras vezes: "O
Diabo na rua, no meio do redemoinho". Frase que só se decifra quando
Diadorim e Hermógenes afinal se defrontam e se entrematam no meio
da rua, rodamoinhando um em torno do outro e levantando poeira.
Desaparecidos o amigo e o inimigo, tudo fica sem sentido, e Riobaldo se
retira da jagunçagem, para deitar-se na rede e ficar cogitando sobre sua
vida, tal como o interlocutor virá encontrá-lo.
Para Antônio Cândido, um dos primeiros estudiosos de Grande
Sertão: Veredas, nesse ponto, ao renunciar "aos altos poderes que o
elevaram por um instante acima da própria estatura, o homem do
sertão se retira na memória e tenta laboriosamente construir a
sabedoria sobre a experiência vivida, porfiando, num esforço
comovedor, em descobrir a lógica das coisas e dos sentimentos".
O crítico adverte ainda o leitor de que deve dispor-se a "penetrar
nessa atmosfera reversível, onde se cortam o mágico e o lógico, o
lendário e o real. Só assim poderá sondar o seu fundo e entrever o
intuito fundamental, isto é, o angustiado debate sobre a conduta e os
9
valores que a escoltam" .
Assim termina e começa, ou começa e termina, encerrado o
colossal percurso de sua narrativa, esse monumento tanto da obra de
Guimarães Rosa quanto das letras em língua portuguesa.

9
Antônio Candido/'O Homem dos Avessos". Em: Tese e Antítese. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1964; p. 135 e 139.
3. DOS PRIMÓRDIOS
AOS PÓSTUMOS
SAGARANA

Se Grande Sertão: Veredas é a obra-prima, Sagarana assinala o


ponto de partida. Foi com ele que o escritor afinou seus instrumentos,
sua maneira, sua linguagem, e circunscreveu seu espaço — este último
tão decisivo e marcante em toda a sua obra.
Inícios tateantes cobriram quatro contos publicados em revistas
(três deles mostrando preferência por enredos localizados em países
estrangeiros) e um livro de poesia, Magma, o qual, apesar de premiado,
nunca obteve permissão do autor para vir à luz, o que só ocorreu
décadas após sua morte. Nada tinham a ver com o que futuramente
seria sua obra.
Entrementes, candidata-se a um concurso literário, o prêmio
Humberto de Campos da Editora José Olympio de 1938, com um
volume modestamente intitulado Contos, tendo o júri agraciado outro
concorrente.
Não se sabe se foi a derrota que o desanimou, ou as dificuldades
intrínsecas a uma mudança para fora do país, como exigia sua nova
profissão, a de diplomata. O certo é que levou quase dez anos
preparando o livro para publicação. E com certeza foi nessa lida insana
que aprendeu seu ofício, tornando-se não só um escritor, mas um
grande, um genial escritor.
Sempre é de interesse verificar em que se constituiu essa
aprendizagem, que provou ser um verdadeiro rito iniciático. Para
começar, podou os escritos sem piedade. O volume foi reduzido quase à
metade, passando de perto de 500 páginas para cerca de 300. Além
disso, três dos contos foram sumariamente eliminados.
Sagarana finalmente foi publicado em 1946. Seu autor nada
mais fez nesse período em termos de literatura, a não ser reescrever
sem cessar o livro, agora integrado por nove contos, com extensões que
vão de 20 ("Sarapalha") a 65 páginas ("O Burrinho Pedrês"), todos já em
plena "matéria do sertão".
Além da matéria do sertão, também a linguagem já é a da
maturidade - original, sem dúvida, a mais brilhante e estupenda das
linguagens. E já, como sempre seria, baseada na oralidade sertaneja,
com aproveitamento de regionalismos e de arcaísmos preservados no
sertão, mas também adaptando estrangeirismos e criando neologismos.
Essa mistura será a marca registrada de toda a obra do autor.
Outro traço que será permanente aparece nesse livro de estréia:
a extrema fertilidade em criar enredos. São tantos, tão variados e
complexos que jamais se esgotariam e muito ainda renderiam. Mas vale
a pena examiná-los mais de perto nesse livro.
"O Burrinho Pedrês" conta uma estória (termo que Guimarães
Rosa cunhou e divulgou, opondo-o, como em inglês, a "história") de
cataclismo, na qual uma boiada e os vaqueiros que a conduzem são
tragados pelas águas de um córrego avolumado pelas chuvas, só
sobrevivendo um que cavalgava Sete-de-Ouros, o burrinho do título, e
outro que se agarrou a sua cauda.
"A Volta do Marido Pródigo" narra uma trama picaresca de
politicagens eleitorais e introduz as estrepolias de um invulgar
protagonista, Lalino Salathiel, que vende a esposa e depois a recupera
de graça.
"Sarapalha" apresenta dois primos a tiritar de malária e a
ajustar velhas contas.
Em "Duelo", dois homens se perseguem mutuamente com
intuitos assassinos, sem se encontrar, ao azar do destino, que afinal
cumprirá por linhas tortas seus desígnios.
Em "Minha Gente", uma temporada na fazenda vale por uma
aula de política dos coronéis para dois primos, um rapaz e uma moça.
Em "São Marcos", um tenebroso caso de feitiçaria produz
cegueira temporária no protagonista, juntando-se a uma reveladora
discussão sobre o canto e a plumagem das palavras.
Em "Corpo Fechado", valentões se sucedem no arraial com um
cômico episódio de fechamento de corpo que dá bom resultado.
Em "Conversa de Bois", os animais justiceiros que puxam o
carro entabulam diálogo, como nos tempos primordiais em que os
bichos falavam, numa viagem que começa com o transporte de um
defunto e termina com dois.
E em "A Hora e Vez de Augusto Matraga" vamos nos deter um
pouco, por se tratar do mais proeminente conto do livro, tendo uma
recepção de alcance muito maior do que os restantes. Relata o percurso
de um homem que começa mandão e prepotente e, ao perder tudo de
uma hora para outra, vê-se vítima de um atentado, sendo jogado como
morto de um barranco.
Recolhido por um casal de pretos velhos que moram num
rancho e por eles tratado, volta à vida e se arrepende dos pecados
anteriores, tornando-se um penitente. Chegará às raias do martírio, ao
se utilizar novamente da violência que renegara, porém imolando-se em
lugar de uma pessoa indefesa. É assim que Matraga vai ao encontro
daquilo por que tanto ansiava, sua hora e vez, na morte.
Uma última palavra a respeito do título da coletânea.
Apresentado ao concurso como Contos, um termo anódino, acabou
ganhando outro, que faria história, e que revela um escritor já dono de
seus instrumentos e neles confiante, sem temor de inventar um
neologismo e uma sonora palavra cheia de aa. Ao somar o germânico
"saga"10 ao sufixo tupi "—rana" ("à maneira de"), Guimarães Rosa mostra
que está pronto para se dedicar ao restante de sua obra, sabendo o que
está fazendo.

10
Saga: conjunto ou série de estórias orais; termo derivado do verbo "dizer",
portanto um índice épico.
Oswaldino Marques, um dos primeiros e mais sutis exegetas de
Sagarana, dedicou-lhe um estudo focalizando sobretudo a linguagem.
Ali examina minuciosamente os processos de criação de neologismos,
argumentando que eles não são ornamentais nem supérfluos, enquanto
procura situar Guimarães Rosa entre os escritores de língua
portuguesa: "Compreende-se, assim, que as suas exigências sejam de
natureza substancialmente qualitativa, nunca quantitativa [...] A
composição realizada [...] acabaria por impugnar toda deliqüescência
sentimental, plasmando a maneira peculiar ao escritor segundo um
anti-romantismo que é o traço que melhor o diferencia de seus pares,
aqui e em Portugal. Não é por mera coincidência que se deve creditar a
ele, de direito, a criação da prosa expressionista brasileira".11

CORPO DE BAILE

Mais dez anos sem livro, e em 1956 Guimarães Rosa surge logo
com dois, ambos volumosos, tendo Corpo de Baile precedido Grande
Sertão: Veredas por poucos meses.
Do que foi essa experiência quase enlouquecedora o escritor
deixou registro em cartas, ao confessar-se povoado por uma multidão
de personagens. Novamente, observa-se não só o pleno domínio de uma
linguagem própria, sabiamente manejada, mas, de modo semelhante, a
pluralidade de enredos.
De porte maior e mais extensas, essas novelas, como as rotulou
o autor, são bem mais ambiciosas e de densidade maior que os contos
de Sagarana. Para se ter uma idéia, aqui o tamanho das estórias varia
entre 68 ("Cara-de-Bronze") e 138 páginas ("A Estória de Lélio e Lina").

11
Oswaldino Marques, "Canto e Plumagem das Palavras". Em: A Seta e o Alvo.
Rio de Janeiro: MEC/INL, 1957; p. 26-7.
Na primeira edição preenchendo dois grossos volumes, da segunda em
diante passariam a ocupar três.
"Campo Geral", a primeira novela, tornou-se uma das mais
estimadas de suas produções, devido ao encanto do protagonista, o
menino Miguilim. É inesquecível o lance no qual, em meio a uma
tragédia familiar e às dificuldades de ser criança, dão óculos ao menino,
que não se sabia míope, e ele de repente descobre as belezas do mundo.
Costuma-se ver nisso a transposição de uma experiência pessoal do
escritor, a quem teria acontecido algo idêntico.
Em "Uma Estória de Amor", depois republicada como
"Manuelzão", o protagonista comanda uma festa de consagração da
capela que mandou erigir em sua fazenda, ponto culminante de uma
vida de trabalhos, no percurso da qual perdeu alguma coisa de
espontâneo, o que o torna ressentido e cismado.
Em "A Estória de Lélio e Lina", floresce uma amizade entre um
moço e uma velha, fonte de iluminações para ambos.
Em "O Recado do Morro", assistimos à tortuosa retransmissão
de uma suposta mensagem, prevenindo e salvando a vida de uma
personagem, enquanto paralelamente se vai compondo uma canção.
Em"Lão-Dalalão", o protagonista recebe lições de vida da esposa,
ex-prostituta que retirou da zona para com ela se casar, sem que se
proíba de ter fortes ciúmes de seu passado, que fazem de seu cotidiano
um inferno.
Em"Cara-de-Bronze", o fazendeiro a quem cabe essa alcunha
fica ancorado em casa e manda seu vaqueiro Grivo fazer o levantamento
de tudo o que existe no mundo para vir contar-lhe de volta. Ele está
interessado em conhecer "o quem das coisas".
Em "Buriti", duas moças da cidade, cunhadas, mantêm-se sob a
guarda de poderoso fazendeiro, das quais uma delas é a nora
abandonada pelo marido. Outras personagens circulam, como o chefe
Zequiel, que sofre de insônia e gasta a vigília a ouvir as vozes da noite.
Oswaldino Marques também se manifestou sobre Corpo de Baile
num pequeno artigo. Após assinalar novamente a riqueza da linguagem,
mas também a profundidade psicológica das personagens e o
aproveitamento da épica dos vaqueiros, saúda "uma obra na iminência
de se instalar na memória primigênia de um povo, reconvertendo-se [...]
em folclore. A destinação, aliás, de todas as grandes criações do espírito
humano é tender para o folclore como um limite".12
O tradutor de Corpo de Baile para o italiano, Edoardo Bizzarri,
trocaria extensa correspondência com o autor, discutindo pormenores
da tarefa. Depois publicaria as cartas de ambos em volume, elucidando
os bastidores da criação rosiana de uma maneira até então inédita. O
avanço estético do primeiro para o segundo livro é medido pela
observação de que um conto de Sagarana, que anteriormente também
traduzira, não passa de um "riachinho montano, nenhum milagre que
suas águas permanecessem limpas e claras, borbulhadas de luz". Em
contraste, o novo livro é "um bruto de um rio amazônico, cheio de
tudo".13
Se por um lado essas novelas mantêm uma unidade, fornecida
mais uma vez pelo espaço e pela linguagem, por outro lado seu elenco e
suas tramas manifestam a diversidade exigida por uma leitura de alto
teor.

PRIMEIRAS ESTÓRIAS

Em 1962 vem à luz um volume fino, batizado Primeiras Estórias.


Contém 21 contos, que vão de quatro ("Soroco, Sua Mie, Sua Filha") a
14 páginas ("Darandina"). Os contos encolhem enquanto seu número se
multiplica.
O livro se abre e se fecha com um menino visitando os tios numa
cidade em construção — que se presume ser Brasília —, em meio a um

12
A Revolução Guimarães Rosa". Em: Oswaldino Marques, op. cit.; p. 175-6.
13
Edoardo Bizzarri (org.), J. Guimarães Rosa - Correspondência com o Tradutor
Italiano. São Paulo: Instituto Cultural Italo-Brasileiro, s/d; p. 105.
sofrimento infuso, mas permeado por epifanias desencadeadas pela
visão de duas aves, um peru no primeiro conto, "As Margens da
Alegria", e um tucano no último,"Os Cimos".
Entre valentões locais e crianças em estado de graça, além de
alguns relatos surpreendentes por seu cunho cômico, encontra-se nesse
livro pelo menos uma obra-prima, "A Terceira Margem do Rio". Nesse
conto, um homem, enigmaticamente, entra numa canoa e vai viver no
meio do rio, sem nunca mais tocar em terra, resistindo aos apelos de
sua família para que volte. Na eventualidade, seu filho permanece à
beira do rio, mas, quando convocado a substituir o pai, vacila e não
corresponde ao apelo, para ficar pelo resto da vida paralisado pelo
remorso.
Contrapõem-se aí com força duas imagens literárias: o rio,
simbolizando a continuidade, e a canoa, a descontinuidade. Ambas se
espelham, modificadas, no tempo, que é lentíssimo como o fluir
ininterrupto do rio, e na duração de uma vida humana, que é
extremamente curta. E uma nova oposição entre a fixidez das margens
e o movimento das águas remete a uma terceira margem, que nunca é
mencionada a não ser no título e que abre o relato para uma outra
dimensão, a da finitude.
Os laços de família aparecem aqui com todo o seu peso,
acentuados pelo uso do possessivo plural de primeira pessoa: nunca se
utiliza o singular, mas sempre se diz "nosso pai", "nossa mãe", "nossa
casa" etc. O pai deseja que o filho o substitua na mesma canoa, mas o
filho se assusta e refuga, desistindo de cumprir seu papel, por sua vez,
de enfrentar a finitude, à qual, como todo vivente, está de qualquer
modo condenado.
Embora essa seja a mais impressionante, Primeiras Estórias é
um livro que merece ser lido por inteiro.
Outro autor de estudos clássicos sobre Guimarães Rosa,
Benedito Nunes, nele enfatizou, entre outros méritos, a variedade a que
é submetido um tema constante em toda a obra do autor, o da viagem:
"Há também, a par de muitos périplos, andanças, partidas e chegadas
de Primeiras Estórias, a peregrinação sem horizontes, antecipação da
morte, e voluntária provação". Mas por vezes também há o seu
contrário: "no assomo de vitalidade [...] do velho de 'Tarantão meu
Patrão', que, D. Quixote 'em maluca velhice', ganha o mundo, para
pelejar a esmo, em ritmo de farsa, parodiando antigos e gloriosos rasgos
dos Roldões e pares de Carlos Magno".14

TUTAMÉIA - TERCEIRAS ESTÓRIAS

Não desmerecendo sua reputação de original, em 1967


Guimarães Rosa publica um livro com esse título, sem que existisse,
como aliás nunca veio a existir, um com "segundas estórias".
Acentuando a tendência ao encolhimento da extensão, acoplada
à multiplicação do número, esse volume traz 44 textos. São 40 estórias
e quatro prefácios, estes não acumulados no início, como seria de
esperar, mas distribuindo-se a intervalos regulares. A maioria das
estórias conta entre três e quatro páginas, uma ou outra mal chegando
a cinco. Os textos maiores são os prefácios: dez páginas para o
primeiro,"Aletria e Hermenêutica", e um exagero de 21 páginas para o
último, "Sobre a Escova e a Dúvida". A razão — pelo menos a razão
material — para a pequena extensão das estórias é o limite do tamanho
da seção em que Guimarães Rosa as publicou primeiro, em Pulso, um
jornalzinho de médicos.
Os quatro prefácios entregam-se com prazer a especulações
sobre a linguagem e o ato de narrar. Já as estórias tratam de assuntos
variados, e mais uma vez assombra o leitor a capacidade do autor de
criar intrigas tão originais e tão diferentes umas das outras, mais

14
Benedito Nunes,"Guimarães Rosa". Em: O Dorso do Tigre. São Paulo: Perspectiva,
1969; p. 177-8.
acentuada nesse caso por se tratar de 40 estórias num livro só.
Entre os variadíssimos entrechos desse livro, a maioria deles
tendendo para o inesperado, destaca-se "Desenredo", por sua perfeição
e malabarismo. Nesse conto temos, em resumo, a estória de um homem
que é sistematicamente traído por sua amada, que só é constante na
traição. Sempre amante e disposto a recuperar a amada, ele se entrega
à paciente operação de reinventar o passado, para desculpá-la e abrir
as vias para que ela venha de volta.
O conto é escrito com base nas construções fixas e já como que
calcificadas ou solidificadas da língua, que vai sistematicamente
desmantelando. Não contente de escrever uma estória em que desmente
o lugar-comum da tradicional honra masculina que se lava com sangue,
o discurso também se dedica a inverter os lugares-comuns da
linguagem, um após o outro. Em vez do clichê "num abrir e fechar de
olhos", temos "num abrir e não fechar de ouvidos". Em vez de "olhos de
mosca morta", temos "olhos de viva mosca". Em vez de "cor de pão de
mel", temos "morena mel e pão".
O objeto central da inversão acaba por ser o provérbio, fórmula
ossificada e conservadora. O narrador afirma que "a bonança nada tem
a ver com a tempestade"— quando a sabedoria popular garante que
"depois da tempestade vem a bonança"— ou então que "vá-se a camisa,
que não o dela dentro" (em vez de "vão-se os anéis e fiquem os dedos" e
"o homem feliz não tem camisa"). Negando os provérbios existentes, o
conto se esmera em criá-los inéditos, como: "todo abismo é navegável a
barquinhos de papel" ou "de sofrer e amar, a gente não se desafaz".
Tudo isso para narrar um caso que também é o contrário de um clichê.
No fim das contas, Tutaméia — Terceiras Estórias vem a ser o
mais minimalista dos livros de Guimarães Rosa. Suas narrativas estão
dispostas em ordem alfabética, conforme a inicial do título. Traz dois
índices — um de leitura, no início, e outro de releitura, no fim — e os
índices também estão em ordem alfabética, exceto numa pequena
alteração: quando o G e o R colocam-se fora de ordem, logo em seguida
ao J, formando as iniciais do autor.
Dele disse Paulo Rónai:
"Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons,
o formigar dos caracteres, o fervilhar de motivos o leitor naturalmente
há de, no fim do volume, tentar uma classificação das narrativas. É
provável que a ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja
apenas um despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções
ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas
peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de
estados de alma sucedem densas micro-biografias; a patéticos atos de
drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia
alternam com episódios lírico-fantásticos".15

OS PÓSTUMOS

Ao morrer em 1967, Guimarães Rosa deixou quase prontos para


serem editados dois outros livros, Estas Estórias e Ave, Palavra. Lendo
esses volumes, percebe-se serem subprodutos dos extraordinários
êxitos anteriores, que o alçaram ao posto de mais importante ficcionista
brasileiro, critério partilhado pelos críticos e pelo público.Tornara-se um
sucesso editorial, e tudo o que ele fornecesse seria bem-vindo e
avidamente comprado. Daí o surgimento desses dois livros, reunindo
textos que não mostram a obsessão com a unidade e a coerência que se
encontram nos demais.
O primeiro deles, Estas Estórias (1969), constitui-se de nove
contos, e seu título dá continuidade à tradição das "primeiras" e
"terceiras" estórias.
Enquanto os anteriores se assinalam pela coesão, o mesmo não

15
Paulo Rónai,"Apêndice - Os Prefácios de Tutaméia - As Estórias de Tutaméia". Em
João Guimarães Rosa, Tutaméia -Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio,
1967 ;p. 193-201.
ocorre nesse livro, que reúne estórias que o próprio Guimarães Rosa
não quis incluir nos outros, porque não combinavam e não alcançavam
o mesmo nível. Figuram escritos que antes tinham saído em periódicos,
mais um que tinha saído num volume coletivo, e alguns inéditos, entre
eles sobras do conjunto de Contos que depois se transformaria em
Sagarana. Mas ainda são, todos, estórias.
O que resgata o conjunto é "Meu Tio o Iauaretê", uma de suas
obras-primas, relatando a trajetória de um mestiço de índio, caçador de
onças no sertão mais bravio e isolado. O entrecho é terrível: de tanto ser
maltratado pelos brancos, o onceiro acaba preferindo as onças, vivendo
entre elas e se acreditando uma. O feito lingüístico é dos mais notáveis,
porque elege uma mistura de três canais de comunicação, a saber: o
português, o tupi do índio e as onomatopéias da onça.
O segundo livro, Ave, Palavra (1970), traz ainda mais acentuado
o cunho de miscelânea. Compõem-no quase exclusivamente recortes de
jornais e revistas, incluindo crônicas, pequenas ficções, anotações sobre
zoológicos, vários poemas, fragmentos de diários, oratórios etc. São ao
todo 54 textos e, o que é mais bizarro, aqui o escritor escapa de seu
espaço por assim dizer co-natural, a quase totalidade deles tendo
cenário alheio ao sertão.
Sem a anuência de Guimarães Rosa, e três décadas após sua
morte, veio à luz o livro de poemas que vencera um concurso em 1937,
Magma, e que ele, bom juiz de sua própria obra, sempre se esquivara a
publicar.
4. TRAÇOS BIOGRÁFICOS

Guimarães Rosa durante cerimônia de posse na ABL, em 1966


Se Guimarães Rosa veio a se tornar mais conhecido como

escritor, ocuparam-no todavia outras profissões.


Depois de ter aprendido as primeiras letras em sua cidade natal,
Cordisburgo, Guimarães Rosa teve que deixá-la para candidatar-se aos
benefícios de uma educação propriamente formal. Em 1918, aos dez
anos, dirigiu-se inicialmente a São João Del Rei e seu Colégio Santo
Antônio e depois a Belo Horizonte. Nessa cidade, pela mão de seu avô e
padrinho Luís Guimarães, matriculou-se no Colégio Arnaldo, dos
padres alemães, o mais prestigioso da capital, também freqüentado em
diferentes fases por Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e
Gustavo Capanema.16
Ao passar para os estudos superiores na mesma cidade, inicia
em 1925 e conclui em 1930 o curso de medicina, ano em que se casa
com Lígia Cabral Pena.
Dois anos antes de se formar, em 1928, obtivera sua primeira
colocação, na Secretaria Estadual da Agricultura. De uma maneira ou
de outra, tramitará como funcionário público por vários pequenos
empregos.
Logo em seguida à formatura, começa a trabalhar em 1931 como
médico em Itaguara, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Ali,
nasce-lhe nesse ano a primeira filha, Vilma. No ano seguinte, 1932, é
nomeado inspetor de Educação e Saúde, em Itaguara. E, por ocasião da
Revolução Constitucionalista de 1932, em que São Paulo, com grupos
mineiros e gaúchos, rebelou-se contra o governo federal, apresentou-se
como voluntário à Força Pública de seu estado, tendo servido no túnel
da serra da Mantiqueira, onde houve uma das mais importantes
batalhas da conflagração.
Em 1933 presta concurso para a Força Pública, tornando-se
oficial-médico, em outra cidade mineira, Barbacena, sendo promovido a

16
Renard Perez,"Perfil de João Guimarães Rosa1'.Em: Em Memória de João
Guimarães Rosa. Rio de Janeiro- José Olympio, 1968.Vicente Guimarães, Joãozito -
Infância de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1972.Vilma
Guimarães Rosa, Relembramentos:João Guimarães Rosa, Meu Pai. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
capitão no ano seguinte. Em 1934 nasce Agnes, segunda filha do casal.
E de 1933 a 1935 trabalha no Serviço de Proteção ao índio. Na
corporação militar reencontrou outro oficial-médico, Juscelino
Kubitschek de Oliveira, futuro presidente da República, que conhecera
quando ambos estagiavam na Santa Casa de Belo Horizonte e ao qual,
muitos anos mais tarde, em 1958, deveria sua promoção a embaixador.
Em 1935 ingressa no Itamarati, sendo nomeado cônsul de
terceira classe. Sua trajetória naquele ministério está bem registrada,
17
em livro interessante, que traz alguns documentos redigidos por
Guimarães Rosa e submetidos a seu crivo antes de serem selecionados
para publicação. Dentre eles se destaca um oficio interno que tem o
requinte de limitar-se a palavras iniciadas pela letra c. Os testemunhos
convergem para delinear o perfil de um funcionário consciencioso e
trabalhador.
A carreira de diplomata, como de praxe, implicaria em
deslocamentos sucessivos. Cônsul-adjunto em Hamburgo em 1938, ali
conheceria Aracy Moebius de Carvalho, sua segunda esposa. Aproveita
a oportunidade da estada no exterior para viajar pela Europa. A
Segunda Guerra, provocando o rompimento de relações com a
Alemanha, leva-o a ser internado por quatro meses em 1942, em
Baden-Baden. Nesse ano é nomeado segundo-secretário da embaixada
em Bogotá, de onde volta em 1944, para trabalhar na Secretaria de
Estado, no Rio.
Em 1946 é nomeado chefe de gabinete do ministro João Neves
da Fontoura, com o qual desenvolveu calorosa amizade e do qual faria o
elogio protocolar ao tomar posse 20 anos depois na Academia Brasileira
de Letras, ao sucedê-lo na mesma cadeira. Viaja para Paris nesse ano,
para a Conferência de Paz ao término da guerra, como secretário de
nossa delegação. Em 1948, a mesmo título, vai à Conferência Pan-
Americana, em Bogotá. Antes do fim do ano é nomeado secretário da
embaixada em Paris, e promovido a conselheiro no ano seguinte,

17
Heloísa Vilhena de Araújo, Guimarães Rosa: Diplomata. Brasília: Ministério das
Relações Exteriores, 1987.
obtendo o cargo de ministro de segunda classe em 1951, quando
reassume seu antigo posto junto a João Neves da Fontoura, no Rio.
Dois anos depois passa à chefia da Divisão de Orçamento e em
1958 a ministro de primeira classe, ou embaixador. De 1962 em diante,
seria chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras, posto em que viria
a falecer, em 1967.
CONCLUSÃO
Embora tenha sido objeto de efêmeras polêmicas quando

surgiu, hoje em dia ninguém mais discute o papel de Guimarães Rosa


na literatura e na cultura brasileiras. Recente pesquisa18 realizada entre
nós para eleger os dez melhores romances da literatura universal no
século que passou, apontou como o único brasileiro dentre eles Grande
Sertão: Veredas.
Por isso, não é de surpreender que tenha gerado um bom
número de discípulos, que procuraram e procuram imitar sua maneira
inconfundível. Desse ponto de vista, pode-se dizer que fecundou nosso
panorama literário de um modo duradouro. Antepõe-se, todavia, a essa
estimativa por assim dizer positiva, uma outra, que deixa uma dúvida
pairando no ar. Um mestre, Guimarães Rosa esgotou a tal ponto a feliz
combinação entre oralidade sertaneja e erudição poliglótica que nossa
literatura como que paira aquém daquilo que ele realizou.
Provavelmente, as novidades estéticas interessantes virão de outros
quadrantes.
Mas o mais curioso de tudo é que ele tenha dado frutos onde
menos se esperava: na literatura africana. Dentre os mais importantes
ficcionistas escrevendo em português no continente, destacam-se o
angolano (naturalizado) Luandino Vieira e o moçambicano Mia Couto.
Ambos não só incorporam, com naturalidade, descobertas de
Guimarães Rosa naquilo que escrevem, como até contam em entrevistas
a revelação que foi para eles a leitura de um tal autor, quando, até por
projeto político, não conseguiam sair do neo-realismo — de influência
tanto portuguesa quanto brasileira, através do romance de 30 - que até
então praticavam.
Entre nós, a influência propriamente literária de Guimarães
Rosa tornou-se difusa e ubíqua. Do mesmo modo, estendeu-se a outras
áreas da cultura, fazendo-se notar, por exemplo, no cinema. Muito do
que escreveu já foi filmado, como Grande Sertão: Veredas; "A Hora e Vez
de Augusto Matraga", de Primeiras Estórias; "Buriti", de Corpo de Baile;

18
Mais!", Folha de S.Paulo, 3 jan. 1999; p. 4-8.
"A Terceira Margem do Rio", de Primeiras Estórias etc, com resultados
variáveis. Dentre eles, o trabalho de Roberto Santos com "A Hora e Vez
de Augusto Matraga" (1965) se destaca pela qualidade.
Inúmeras montagens teatrais já foram feitas, e ainda se fazem,
adaptando obras suas. Dentre elas, teve grande repercussão aquela
dirigida por Antunes Filho sobre Grande Sertão: Veredas. Esse romance
foi igualmente objeto de uma minissérie da TV Globo.
Guimarães Rosa foi parar de um modo perceptível também na
canção popular, cujas letras influenciou fortemente, como se nota em
Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mais
ou menos inesperada foi uma assinalável — e confessada — absorção
de algumas de suas técnicas por humoristas mais cultos e sofisticados,
como Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo.
Um desenvolvimento recente tem sido a recuperação da
oralidade de Guimarães Rosa num retorno que o leva de volta a suas
raízes, mas depois de ter atravessado o patamar letrado dos livros
difíceis. (Os Miguilins, contadores de estórias originários de sua cidade
natal, Cordisburgo, estão agora decorando páginas de Guimarães Rosa
e declamando-as.)
Algo que sempre agradou aos leitores foi sua habilidade para
criar palavras, e de fato se notam em toda parte muitas escolas e
logradouros públicos batizados com invenções suas. Dentre elas, a mais
popular parece ser a palavra "Sagarana", que se encontra disseminada
pelo Brasil afora, como rua, praça, centro cultural, colégio.
Em suma, uma obra tão vasta e tão rica como essa descortina
um amplo futuro pela frente, a respeito do qual se pode prever que
ainda muito dinamizará o processo cultural.
BIBLIOGRAFIA
DE GUIMARÃES

Sagarana. Rio de Janeiro: Universal, 1946.

Corpo de Baile. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, 2 volumes.

Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962.

Tutaméia — Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

Estas Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.

Ave, Palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

Magma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.


SOBRE GUIMARÃES

Heloísa Vilhena de Araújo, Guimarães Rosa: Diplomata. Brasília:


Ministério das Relações Exteriores, 1987.

Edoardo Bizzarri (org.),_/. Guimarães Rosa — Correspondência com o


Tradutor Italiano. São Paulo: Instituto Cultural Italo-Brasileiro, s/d.

Antônio Cândido, "Jagunços Mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa".


Em: Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
_______,"O Homem dos Avessos". Em: Tese e Antítese.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

Eduardo de Faria Coutinho (org.), Guimarães Rosa -Fortuna Crítica. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

Mary L. Daniel, João Guimarães Rosa: Travessia Literária. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1968.
Diálogo, 8. São Paulo: Sociedade Cultural Nova Crítica, nov. 1957
(número especial sobre Guimarães Rosa).

Walnice Nogueira Galvão, As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva,


1972.
_______, Mitológica Rosiana. São Paulo: Ática, 1978.
_______, "As Listas de Guimarães Rosa". Em: Cecília Almeida Salles
(org.), Eclosão do Manuscrito. São Paulo: FFLCH-USP, 1988.
_______, "Heteronímia em Guimarães Rosa". Em: Desconversa. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1998.
_______."Metáforas Náuticas". Em: Desconversa. Rio de Janeiro: UFRJ,
1998.
_______/'Distinguindo". Em:/ Donzela-Guerreira. São Paulo: Senac,
1998.
_______(coord.), edição crítica de Grande Sertão:Veredas. Paris:
Collection Archives, no prelo.

Vicente Guimarães, Joãozito — Infância de João Guimarães Rosa. Rio de


Janeiro José Olympio/INL, 1972.

Oswaldino Marques, "Canto e Plumagem das Palavras" e "A Revolução


Guimarães Rosa". Em: A Seta e o Alvo. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1957.

Benedito Nunes,"Guimarães Rosa". Em: O Dorso do Tigre. São Paulo:


Perspectiva, 1969.

M. Cavalcanti Proença, Trilhas no Grande Sertão. Rio de Janeiro: MEC,


1958.

Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 41. São Paulo: USP, 1996


(número especial sobre Guimarães Rosa).

Revista USP, 36,dez./jan./fev. 1997-8. Dossiê 30Anos Sem Guimarães


Rosa.

Paulo Rónai, "Apêndice — Os Prefácios de Tutaméia — As Estórias de


Tutaméia".Em:João Guimarães Rosa, Tutaméia — Terceiras Estórias. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1967.

Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu


Pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

Kathrin Rosenfield, Os (Des)caminhos do Demo. Tradição e Ruptura em


Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Edusp, 1992.

Heloísa Starling, Lembranças do Brasil — Teoria Política, História e


Ficção em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Iuperj/Revan, 1999.

Francis Utéza, Metafísica do Grande Sertão. São Paulo: Edusp, 1994.


[Vários], Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1968.

Teresinha Souto Ward, O Discurso Oral em Grande Sertão: Veredas. São


Paulo: Duas Cidades/INL, 1984.

Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar,
de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem
comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a
venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é
totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é
a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois
assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure :
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo
em nosso grupo.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource
SOBRE A AUTORA

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de teoria literária e


literatura comparada na USP.
Palestrante convidada em instituições da Europa, dos Estados
Unidos, da Ásia e da África, tem livros publicados sobre Guimarães
Rosa, Euclides da Cunha, crítica da literatura e da cultura. Entre esses,
os mais recentes são Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp,
1997), Desconversa (UFRJ, 1998), A Donzela-Guerreira (Senac, 1998) e
Le Carnaval de Rio (Chandeigne, 2000).
FOLHA
EXPLICA

Folha Explica é uma série de livros breves, abrangendo todas as


áreas do conhecimento e cada um resumindo, em linguagem acessível,
o que de mais importante se sabe hoje sobre determinado assunto.
Como o nome indica, a série ambiciona explicar os assuntos
tratados. E fazê-lo num contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor
condições não só para que fique bem informado, mas para que possa
refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das
circunstâncias do país.
Voltada para o leitor geral, a série serve também a quem domina
os assuntos, mas tem aqui uma chance de se atualizar. Cada volume é
escrito por um autor reconhecido na área, que fala com seu próprio
estilo. Essa enciclopédia de temas é, assim, uma enciclopédia de vozes
também: as vozes que pensam, hoje, temas de todo o mundo e de todos
os tempos, neste momento do Brasil.
1 MACACOS Drauzio Varella
2 OS ALIMENTOS TRANSGÊNICOS Marcelo Leite
3 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Francisco Achcar
4 A ADOLESCÊNCIA Contardo Calligaris
5 NIETZSCHE Oswaldo Giacóia Júnior
6 O NARCOTRÁFICO Mário Magalhães
7 O MALUFISMO Maurício Puls
8 A DOR João Augusto Figueiró
9 CASA-GRANDE & SENZALA Roberto Ventura
10 GUIMARÃES ROSA Walnice Nogueira Galvão
11 AS PROFISSÕES DO FUTURO Gilson Schwartz
12 A MACONHA Fernando Gabeira

Você também pode gostar