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DEZEMBRO 2019

1
SUMÁRIO

1. Contribuições para entender o crescimento pentecostal e os desafios para o


campo popular, André Cardoso e Fábio Miranda.........................................................03

2. A Consulta Popular e a luta eleitoral, Fábio Itinga, Acácio Leite, Jarbas Vieira,
Katty Hellen e Tobias Pereira.....................................................................................22

3. A Consulta Popular e a luta político-eleitoral, Paulo Henrique Oliveira Lima ... 33

4. Ode à luta interna, Herick Argôlo ......................................................................... 46

5. A luta em tempos sombrios, Aton Fon, Paola Estrada e Ricardo Gebrim ......... 57

6. Para o aferimento da realidade: uma reflexão sobre a cultura maximalista,


Ivan Siqueira Barreto................................................................................................66

7. Uma nova estratégia para a esquerda, Pedro Carrano ..................................... 73

2
________________________________________________________________________

Contribuições para entender o


crescimento pentecostal e os
desafios para o campo popular
André Cardoso, Núcleo Centro, Consulta Popular - SP
Fábio Miranda, Núcleo Ana Paula Sampaio, Consulta Popular - DF

3
“Alguns autores afirmam que a religião é um mecanismo de alienação dos
homens, que serve para justificar a exploração de uma classe sobre a outra.
Essa afirmação, sem dúvida, tem um valor histórico, na medida em que, em
diferentes épocas históricas, a religião serviu de suporte teórico à
dominação política [...]. Entretanto, os sandinistas afirmamos que nossa
experiência demonstra que quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são
capazes de responder às necessidades do povo e da história, suas mesmas
crenças os levam à militância revolucionária. Nossa experiência demonstra
que se pode ser crente e, ao mesmo tempo, revolucionário consequente e
que não há contradição insolúvel entre ambas as coisas” (Sobre a religião,
comunicado oficial da direção da FSLN)

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse slogan repetido continuamente
pelo presidente da República brasileira sintetiza uma das razões pelo grande
interesse e preocupação dos diversos setores da sociedade em entender o
crescimento e influência das igrejas pentecostais na sociedade brasileira. As
perguntas são variadas, vão da necessidade de conhecer mais detalhadamente
suas transformações até indagações superficiais, como se tivéssemos sido pegos de
surpresa por um tsunami não anunciado. Como a igreja pentecostal cresceu tão
rápido? Como conseguiu ter uma bancada forte dessa forma? Como conseguiu se
enraizar de tal forma nas favelas e bairros? O que raios é pentecostal?

O objetivo desse texto é iniciar o debate com alguns elementos e pistas dos
caminhos necessários para entender esse fenômeno. Embora sejam trazidos
elementos sobre seu desenvolvimento, características e tendências, tarefa que tem
sido buscada por muitos especialistas no tema, a maior pretensão deste trabalho é
auxiliar nos desafios que as forças políticas de esquerda e progressistas devem se
atentar.

A contribuição nesse entendimento são ainda preliminares e traçam algumas chaves


de explicação para esse crescimento. A primeira chave de explicação é a partir de
seu desenvolvimento institucional na política que possibilitou o seu protagonismo na
sociedade. A segunda é a partir da dinâmica do capitalismo, suas transformações
estruturais que inevitavelmente exigem uma superestrutura adequada. A terceira
chave de interpretação, dialogando com a anterior, seria na esfera da dinâmica da
luta de classes, da ideologia e da cultura. Por fim, a quarta e última chave seria o
papel dessas igrejas no atendimento às necessidades físicas e simbólicas da
população.

A origem do pentecostalismo no Brasil

Para entender o pentecostalismo é importante descrever as suas raízes históricas e


o desenvolvimento do protestantismo no Brasil. O protestantismo pode ser dividido
em “protestantes tradicionais” e pentecostais. Os protestantes tradicionais se
estabeleceram primeiro (século XIV, principalmente XIX) e os pentecostais no século
XX.

4
Embora o primeiro culto protestante realizado no Brasil tenha ocorrido em 1557, na
cidade do Rio de Janeiro, somente com a invasão holandesa a religião de fato
começou a se enraizar no território1. Nesse período o protestantismo se tornou a
religião oficial nas capitanias dominadas. No entanto, com a expulsão dos
holandeses em 1654, houve grande ataque à liberdade religiosa e o protestantismo
ficou adormecido até o século XIX.

A nova onda protestante surgiu no contexto da vinda da família real, da proclamação


da independência e da vinda dos migrantes europeus - em 1822 foi inaugurado o
primeiro edifício erguido para o culto protestante no Brasil, pertencente a igreja
anglicana; e alemães luteranos fundaram sua primeira igreja em 18242. O ano de
1855 simboliza o início do “protestantismo de missão” no Brasil, com a chegada de
missionários estadunidenses e ingleses. A partir de então, várias denominações
protestantes se estabelecem. Além do forte anticatolicismo, as principais
características das igrejas protestantes históricas são: ética individualista,
conservadora, filosofia liberal, defesa da democracia e ascetismo (moral que
desvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem para que se alcance a
virtude).

É importante observar que os traços dessas igrejas protestantes tradicionais têm


relação muito forte com sua origem nos missionários norte-americanos, bem
diferente da construção protestante das origens europeias. Em relato, um pastor
presbiteriano afirmou que a igreja Presbiteriana Argentina é muito mais “liberal” nos
costumes e tradições, se aproximando inclusive da católica na liturgia. Segundo ele,
isso foi devido ao fato dos representantes dessa igreja terem vindo diretamente da
Escócia e não dos EUA.

O mesmo raciocínio pode ser atribuído as igrejas Anglicanas e Luteranas no Brasil.


Embora muito fechadas nas comunidades imigrantes no seu início, elas tem esse
mesmo recorte “liberal” e litúrgico. Não à toa, elas estão entre as protestantes
tradicionais que aceitam entre o próprio clero pastores e bispos LGBT’s, além de
terem as lideranças mais progressistas.

Já o pentecostalismo tem sua origem no início do século XX3. O pentecostalismo


clássico abarca as igrejas pioneiras desta vertente: Assembleia de Deus (1911) e
Congregação Cristã (1910). Suas principais características são: anticatolicismo,
sectarismo, ascetismo e glossolalia (fenômeno caracterizado pelo comportamento de
certos indivíduos que começam, espontaneamente, a falar línguas desconhecidas,
tidas como frutos de dom divino).

1 OLIVEIRA, R. S. Pentecostalismo e Protestantismo histórico no contexto da Missão no Brasil. Discernindo, v.1,


n.1, p. 143-153, 2013.
2 REILY, D. A. História documental do protestantismo no Brasil. 3. ed. São Paulo: ASTE, 2003.
3 MARIANO, R. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal. Estudos Avançados, v. 18, n. 52,

2004.

5
A segunda vertente do pentecostalismo não tem terminologia consensual e começou
em meados do século XX. Em 1953 houve a fundação da Igreja do Evangelho
Quadrangular (SP), seguida da Brasil Para Cristo (1955, SP), Deus é Amor (1962,
SP) e Casa da Bênção (1964, MG). Essa vertente se caracterizou pela ênfase na
cura, no uso do rádio e nas pregações itinerantes em tendas de lona.

Por fim, o que se denomina “neopentecostalismo” surgiu em meados dos anos 1970,
crescendo bastante nas décadas seguintes. Entre as igrejas desta vertente estão:
Universal do Reino de Deus (1977, RJ), Internacional da Graça de Deus (1980, RJ),
Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, GO), Renascer em Cristo (1986,
SP) e Igreja Mundial do Poder de Deus (1998, SP). Suas principais características
são: pregação da Teologia da Prosperidade (crença de que “ser próspero
financeiramente” é uma graça de Deus para os que tem fé e que o cristão deve ser
próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos);
valorização do pragmatismo, utilização de gestão empresarial na condução dos
templos; uso intensivo dos meios de comunicação e redes sociais; intensa guerra
espiritual contra o Diabo (personificado, inclusive, nas outras religiões como as de
matriz africana e espiritas); rejeição aos usos e costumes das igrejas pentecostais
clássicas. Diferentemente das clássicas, os fiéis destas vertentes podem usar
roupas da moda e cosméticos; frequentar praias e cinemas; praticar esportes;
assistir televisão e vídeos; e ouvir músicas variadas. Algumas destas práticas,
devido ao seu sucesso em arrebatar fiéis para as igrejas, foram incorporadas as
vertentes pentecostais anteriores, com pontual exceção da igreja “Deus é amor” em
relação ao asceticismo. O ano de estabelecimento das igrejas protestantes no Brasil
e suas principais características estão descritas na Tabela 1.

Tabela 1. Igrejas protestantes no Brasil e suas principais características.


Características
ANO IGREJA Vertente
principais
1822 Episcopal Anglicana Protestante histórica
Anticatolicismo; ética
1824 Luterana (IECL) Protestante histórica
individualista;
1855 Congregacional Protestante histórica
conservadora; filosofia
1859 Presbiteriana Protestante histórica
liberal; defesa da
1867 Metodista Protestante histórica
democracia; e
1881 Batista Protestante histórica
ascetismo.
1900 Luterana (IELB) Protestante histórica
1910 Congregação Cristã Pentecostal clássico Anticatolicismo;
sectarismo; ascetismo; e
1911 Assembleia de Deus Pentecostal clássico
glossolalia
Pentecostal (2ª Ênfase na cura; uso do
1946 Avivamento Bíblico
vertente) rádio; e pregações
1953 Evangelho Quadrangular Pentecostal (2ª itinerantes em tendas de

6
vertente) lona.
Pentecostal (2ª
1955 Brasil para Cristo
vertente)
Pentecostal (2ª
1962 Deus é amor
vertente)
Pentecostal (2ª
1964 Casa da Benção
vertente)
Teologia da
1976 Sara Nossa Terra Neopentecostal
Prosperidade;
Universal do Reino de pragmatismo, gestão
1977 Neopentecostal empresarial; uso
Deus
Internacional da Graça de intensivo dos meios de
1980 Neopentecostal comunicação e redes
Deus
sociais; guerra espiritual
1986 Renascer em Cristo Neopentecostal contra o Diabo; rejeição
aos usos e costumes
Mundial do Poder de das igrejas pentecostais
1998 Neopentecostal clássicas, sendo mais
Deus
liberal.

1. Dados nacionais e regionais

Para analisar a primeira chave comecemos pelo mais evidente, que são os dados do
crescimento evangélico na sociedade e na política brasileira.

De acordo com o Professor José Eustáquio Alves (ENCE/IBGE), o Brasil apresenta


um processo de transição religiosa com quatro tendências: (1) o declínio absoluto e
relativo das filiações católicas; (2) o aumento acelerado das filiações evangélicas
(com diversificação das denominações e aumento dos evangélicos não
institucionalizados); (3) o crescimento do percentual das religiões não cristãs; e (4) o
aumento absoluto dos “sem religião”4. Para o professor, esse não é um processo
recente, mas vem se acelerando nas últimas décadas.

Em 1990, de acordo com o censo oficial do governo (IBGE) as igrejas evangélicas


contavam com 9% da população. Já em 2000 foram para 15,4%. E em 2010 eram
22,2% da população. Dos que se declararam evangélicos, 60,0% eram de origem
pentecostal, 18,5%, evangélicos de missão (protestantes históricos) e 21,8%
evangélicos não determinados. As projeções para o censo de 2020 apontam uma
participação de 30% da população considerada evangélica e para 2030 as projeções
chegam a quase 40%, ano em que a igreja católica possivelmente perderia a sua
maioria, ficando esta última em 38%5.

4 Seminário “Religião e Política”: um olhar sobre o campo religioso brasileiro”. PUC-SP, 2019.
5https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Sociedade-e-Cultura/O-fenomeno-evangelico-em-numeros/52/44150

7
Em 20106, dos 42,2 milhões de evangélicos, aproximadamente 7,7 milhões eram
das igrejas protestantes históricas (4,1% da população brasileira), 25,4 milhões das
igrejas pentecostais (13,5% da população) e 9,2 milhões de evangélicos de vertente
não identificada (4,9% da população). As mulheres representam 55,6% dos fieis
protestantes, percentual ligeiramente maior do que a média de mulheres da
população geral (51,7%). Pesquisa do Instituto DataFolha indicam um número de
58,8 milhões de evangélicos no Brasil em 20167.

O cenário latino-americano não está muito diferente do brasileiro, embora a


porcentagem de católicos seja maior na região como um todo. Segundo estudo do
Instituto PewResearch Center: “Religião na América Latina: mudança generalizada
em uma região historicamente católica”8, a América Latina tem 69% de católicos
(425 milhões de pessoas), contra 19% de evangélicos (117 milhões). Do total de
evangélicos, 65% são pentecostais, e 40% dos católicos dizem ser carismáticos –
uma corrente que incorpora crenças e práticas associadas ao pentecostalismo em
seu cotidiano. Neste trabalho, boa parte das considerações sobre os pentecostais
evangélicos também pode ser aplicada aos carismáticos católicos.

Tabela 2. Denominações evangélicas e número de fieis.


2010
Grupos evangélicos 2016
Total % Homens Mulheres
Evangélicas 42.275.440 100 18.782.831 23.492.609 60.233.000
Protestantes Históricas 7.686.872 18,2 3.409.082 4.277.745
Igreja Batista 3.723.853 8,8 1.605.823 2.118.029 6.574.590
Igreja Adventista 1.561.071 3,7 704.376 856.695 1.793.070
Igreja Luterana 999.498 2,4 482.382 517.116
Igreja Presbiteriana 921.209 2,2 405.424 515.785 1.195.380
Igreja Metodista 340.938 0,8 149.047 191.891
Igreja Congregacional 109.591 0,3 48.243 61.348
Outras 30.666 0,1 13.786 16.880
Pentecostais 25.370.484 60,0 11.273.195 14.097.289 45.342.000
Igreja Assembleia de Deus 12.314.410 29,1 5.586.520 6.727.891 20.321.000
Outras 5.267.029 12,5 2.310.653 2.956.377
Igreja Congregação Cristã do Brasil 2.289.634 5,4 1.060.218 1.229.416
Igreja Universal do Reino de Deus 1.873.243 4,4 756.203 1.117.040
Igreja Evangelho Quadrangular 1.808.389 4,3 774.696 1.033.693
Igreja Internacional da Graça de Deus 1.195.380*
Igreja Deus é amor 845.383 2,0 365.250 480.133

6IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Brasília: IBGE, 2010.
7 DATAFOLHA. Perfil e opinião dos evangélicos no Brasil (2016). Disponível em:
<http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf>.
Acesso em: 5 nov. 2019.
8PewResearch Center. Religião na América Latina: Mudança Generalizada em uma Região Historicamente

Católica. Disponível em: <www.pewresearch.org>. Acesso em: 28 out. 2019.

8
Igreja Maranata 356.021 0,8 156.185 199.835
Igreja Mundial do Poder de Deus 315.000*
Igreja o Brasil para Cristo 196.665 0,5 85.768 110.897
Comunidade Evangélica Sara Nossa
180.130 0,4 77.990 102.141
Terra
Igreja Casa da Benção 125.550 0,3 52.274 73.276
Igreja Nova Vida 90.568 0,2 37.026 53.542
Evangélica Renovada 23.461 0,1 10.412 13.049
Evangélica Não Determinada 9.218.129 21,8 4.100.564 5.117.575

* Tanto a Igreja Internacional da Graça de Deus, quanto a Igreja Mundial do Poder de Deus, embora
já existentes, não são citadas no Censo de 2010, provavelmente constando no grupo “Outras”.

Evolução institucional na política

Na política institucional, os evangélicos hoje (2019) têm 94 parlamentares no


Congresso, sendo 85 na Câmara dos Deputados e 9 no Senado9. Além disso, com a
chegada de Bolsonaro, o grupo evangélico ganhou mais espaço e projeção, sendo
colocados em cargos estratégicos no governo federal, como aponta a pesquisadora
Magali Cunha:

“A pastora pentecostal Damares Alves ganhou a direção do Ministério da


Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Casa Civil foi
ocupado pelo luterano Onyx Lorenzoni e o Ministério do Turismo é
conduzido pelo pentecostal Marcelo Álvaro Antônio. O ministro da
Advocacia Geral da União é o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça e
o recém-nomeado ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz
Eduardo Ramos, é um batista. São cinco evangélicos no primeiro escalão
do governo federal, fora o número significativo de alocados no segundo
escalão. No Congresso Nacional, dois evangélicos ocupam funções
estratégicas: a deputada federal batista Joyce Hasselmann (PSL-SP) é a
líder do governo e o deputado Pastor Marco Feliciano (Podemos-SP) é um
dos vice-líderes e “porta-voz informal” do presidente. Soma-se a visibilidade
que evangélicos alcançaram no Judiciário, especialmente com o
messianismo criado em torno da Operação Lava Jato, alimentado pelas
figuras do procurador batista Deltan Dallagnol e do juiz federal do Rio de
Janeiro, o pentecostal Marcelo Bretas.” 10

Como se deu essa evolução dos evangélicos na política brasileira e as causas a


partir dessa chave de interpretação?

Inicialmente, é importante salientar que a participação evangélica na esfera política e


social era muito baixa até o processo da constituinte em 1986. Primeiro por sua
baixa inserção na sociedade, sendo a igreja católica a principal religião brasileira,
tendo pouca capilaridade e possibilidades de uma maior inserção em outras esferas
da sociedade. E segundo, mesmo depois dos processos de Renovação Espiritual e

9https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/ainda-sobre-a-escalada-de-poder-da-bancada-evangelica/
10https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/evangelicos-alcancam-protagonismo-e-visibilidade-a-que-

preco/

9
início do pentecostalismo (fins de 1960 e 70), que possibilitou uma maior inserção
nas camadas populares, era reforçada por essas novas igrejas a separação entre
religião e política, colocando essa última como um elemento mundano que não cabia
aos crentes, que deveriam se limitar ao cuidado do espírito e da comunidade a eles
ligados11.

Segundo Paul Freston12 é a partir das eleições de 1986 que esse quadro se inverte
quando as igrejas pentecostais entram na política e, de um quadro insignificante de
participação, passam a predominar a frente das igrejas históricas. Em 1987, dos 27
congressistas pentecostais, 21 eram candidatos oficiais, sendo 12 da Assembleia de
Deus (AD), 4 da Universal, 2 da Quadrangular, 3 de outras pentecostais, mas que
contaram com o apoio da AD.

As causas para essa entrada na política, ainda segundo Freston, dizem respeito a
necessidade de defesa de suas fronteiras, em especial ao “clero” pentecostal, que
diferente das igrejas históricas não possuía a tradição que reforça o seu sacerdócio.
Sendo uma igreja nova, popular e fortemente comunitária, a entrada na política além
de lhe conferir um status oficial de autoridade, reduz as tensões no comando do
mundo pentecostal, conferindo títulos a uma nova hierarquia, bem como dando
acesso a recursos financeiros que possibilitam sua estruturação.

Outro fator determinante dessa entrada na política e sua consolidação é a facilidade


ao acesso à mídia. “A mídia e a política se reforçam mutuamente na estruturação do
meio evangélico” (Freston, p. 63). E por fim a conjuntura social favorável para essa
inserção:

“Com a redemocratização, a legislatura recuperou seu poder e os partidos


procuraram diversificar suas clientelas. [...] o eleitorado rural (onde a AD tem
forte presença) agora estava mais livre para votar em candidatos da igreja e
não nos candidatos escolhidos pelos caciques políticos locais. O contexto
econômico é o da ‘década perdida’ dos anos 80, a qual dificultava a
ascensão social muitas vezes produzida pelos efeitos (trabalho,
honestidade, frugalidade) da conversão. No contexto da nova liberdade
democrática, as dificuldades econômicas poderiam tornar alguns
pentecostais mais sensíveis às correntes políticas que se proclamam
defensoras dos pobres como grupo. A política corporativa pentecostal
poderia servir, então, para impedir uma politização indesejável.”(Freston, p.
68)

Entre idas e vindas, a consolidação da bancada evangélica se dá nos anos 2000,


tendo entre os principais fatores os seguintes pontos, observados pela Magali Cunha
e transcritos abaixo, que colocam os evangélicos como protagonistas no processo
político brasileiro hoje:

11Isso não significa que sua participação fosse nula na política, pelo contrário, em toda a história do
protestantismo no Brasil pré 1986, os evangélicos estiveram presentes de formas variadas, mas todas ligadas as
igrejas históricas (presbiteriana, batista, metodista etc).
12 Evangélicos na Política brasileira: história ambígua e desafio ético. Editora Encontrão, 1994.

10
1- Uma aproximação maior dos políticos evangélicos com o governo federal a partir
do governo Lula, em 2002, dadas as alianças com partidos a que os religiosos
estavam predominantemente ligados.

2- Duas igrejas evangélicas concretizam, no período, projetos de ocupação da


política institucional do País: as Assembleias de Deus e a Igreja Universal do Reino
de Deus. Ambas passaram a ocupar, depois de 2003, espaços plenos de poder em
partidos (respectivamente o PSC e o PRB) e maior quantidade de deputados e
senadores no Congresso.

3- Em 2013, a nomeação do deputado Marco Feliciano para a presidência da


Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara culminou no revigoramento
de campanhas por legislação pautada pela moralidade sexual religiosa, sob o rótulo
“Defesa da Família Tradicional”, contra movimentos feministas e LGBTI, em aliança
com a Bancada Católica.

4- As mídias passam a dar visibilidade e a alimentar as ênfases temáticas e as


dinâmicas em torno das pautas sobre a moralidade sexual religiosa, com destaque
na “guerra” entre políticos evangélicos e militantes de movimentos feministas e
LGBTI. Estes temas ganham destaque em campanhas eleitorais e em discursos de
lideranças das igrejas.

5- A eleição do deputado federal evangélico Eduardo Cunha à presidência da


Câmara dos Deputados, em 2015, representou um poder sem precedentes à
Bancada Evangélica e facilitou tanto a defesa das pautas descritas acima quanto a
abertura à concessão de privilégios a igrejas no espaço público.

6- A Bancada Evangélica amplifica o poder político por meio de alianças com


parlamentares e frentes conservadoras para a revisão de temas sociais como a
redução da maioridade penal e o fim do Estatuto do Desarmamento.

7- O presidente recém-eleito foi o primeiro candidato com um discurso identificado


como cristão, marcadamente evangélico. Neste contexto, a bancada evangélica se
fortalece ainda mais como interlocutora do novo governo.

O crescimento institucional se deu a partir de um projeto definido de avanço nos


espaços públicos e a apropriação e institucionalização de temas com recorte
conservador.

2. Dinâmica do capitalismo – estrutura e superestrutura

Outra chave de interpretação desse fenômeno pode ser observada a partir da


dinâmica de desenvolvimento do capitalismo. Podendo parecer demasiado mecânico
nesse primeiro momento, se faz necessário analisar as transformações das

11
expressões religiosas e o contexto econômico e político do capitalismo. Cada
período histórico contou com uma representação religiosa que lhe conferisse
respaldo na sociedade, que desse uma explicação mais adequada às
transformações em curso.

A reforma protestante13, em síntese, teve uma importância determinante nos


processos revolucionários do início do capitalismo, sendo um importante elemento
ideológico para a legitimação e fortalecimento da nascente burguesia, a classe
revolucionária do período14. Como reforça Robinson Cavalcanti

“Para o bem ou para o mal, há de se reconhecer, porém, que a expansão ou


não- expansão do protestantismo nos diversos países europeus no século
XVI, deveu-se menos à ação evangelizadora do que à correlação de forças
políticas e militares. E que, inegavelmente, há uma correlação enorme entre
as diversas esferas da vida social (no caso da religião e da política, muito
mais ainda àquela época), e que as ideias e os fatos se dão concretamente
em determinado momento histórico. Por este prisma, a Reforma foi a
faceta religiosa de todo um processo sócio-econômico-político-cultural
que resultou na superação da Idade Média e no emergir da
modernidade [grifo nosso]” (Cavalcanti, p. 123)

Isso não significa que a religião dominante anteriormente, a católica, deixou de


existir, mas ela perdeu espaço e poder no bloco dominante, sendo atrelada a um
momento histórico derrotado.

Se o protestantismo se configurou revolucionário para um determinado período


histórico, agora sendo a burguesia a classe dominante do novo sistema, precisa ser
a conservação do mesmo em suas diversas formas cíclicas de acumulação do
capital.

No Brasil, embora o protestantismo implantado pelas igrejas históricas em meados


do século XIX tenham construído certas alianças entre liberais, maçons e
republicanos contra a igreja Católica, não lograram seu desenvolvimento nesse
primeiro período, pois, como Freston analisou “para a elite secularizada, o
protestantismo era apenas aliado tático na batalha contra o poder político católico.
Os liberais queriam a imigração protestante, mas não a protestantização da própria
classe dirigente”.

13 A Reforma Protestante foi um movimento religioso que se voltou contra ações e regras da Igreja Católica. O
principal agente da Reforma foi o monge alemão Martinho Lutero (1483-1546), que, em 1517, publicou 95 teses
que fundamentalmente criticavam a venda de indulgências (quando a Igreja “concedia” o perdão divino a
qualquer pessoa que pagasse). O ato deu origem a um processo de ruptura que abalou seriamente o domínio
católico na Europa Ocidental e permitiu o surgimento de ramificações do cristianismo, como o luteranismo, a
primeira religião protestante (História do Protestantismo, de Jean Boisset).
14 “Quando o mundo antigo declinava, as velhas religiões foram vencidas pela religião cristã; quando, no século

XVIII, as ideias cristãs cederam lugar às ideias racionalistas, a sociedade feudal travava sua batalha decisiva
contra a burguesia então revolucionária. As ideias de liberdade religiosa e de liberdade de consciência não
fizeram mais que proclamar o império da livre concorrência no domínio do conhecimento” Manifesto do Partido
Comunista – Karl Marx

12
É a partir da ditadura civil-militar de 64, ditadura essa necessária para o novo padrão
de acumulação do grande capital internacional analisado por Ianni15, que o
protestantismo histórico se vincula ao desenvolvimento do capitalismo dependente
desse período. O bispo Robinson Cavalcanti retrata essas transformações com a
seguinte passagem:

“Se o [regime militar] pudesse ser comparado a uma composição ferroviária


que é forçada a seguir por um desvio (em 1968), poderíamos dizer que a
Igreja Romana, na maioria de sua liderança, resolve descer na primeira
estação após a entrada do desvio. Eles vinham ocupando os vagões da
primeira classe... Quando eles descem, o chefe do trem convida os
evangélicos a se mudarem para os vagões da primeira classe... Estes o
fazem..., agradecidos pela deferência... Os evangélicos vão se tornando, a
partir da década dos 70 (juntamente com os maçons e kardecistas), em
sustentáculo civis do regime... O regime procura investir ao máximo nos
protestantes: visitas de cortesia, empregos, convênios, nomeações para
cargos importantes, convites para pastores cursar a ESG...” (Freston, p. 25)

Com a crise do modelo de acumulação capitalista iniciada no fim da década de 70


inicia um forte processo de reestruturação produtiva no fim de 80 e início de 90, com
a instauração do neoliberalismo, forte flexibilização das leis trabalhistas,
privatizações e retirada de outros direitos que fossem compatíveis com esse novo
modelo de acumulação, estimulando o livre mercado e a busca por saídas
individuais da crise, individualizando os problemas sociais. Nesse contexto, a
Teologia da Prosperidade, estrutura teórico-ideológico das igrejas pentecostais,
ganha corpo e respalda o neoliberalismo nascente.

A forma de organização dos pentecostais, com uma estrutura mais flexível, rápida
formação de pastores, descentralização e autonomia, como as igrejas constituídas
em células, combina perfeitamente com as formas vividas na reestruturação
produtiva implantada. O neoliberalismo encontra na Teologia da Prosperidade sua
representação religiosa mais aceitável. Em pesquisa recente da Fundação Perseu
Abramo nas periferias de São Paulo, que observou o avanço do neopentecostalismo
nessas regiões, identificou intensa presença dos valores do “faça você mesmo”, do
individualismo, da competitividade e da eficiência16.

Com a deflagração da crise capitalista de 2008/2009 observamos grandes


transformações no mundo com a busca incessante em reiniciar o processo de
acumulação de capital em novos marcos de exploração. A intensificação da
exploração dos recursos naturais e o aumento da flexibilização do trabalho não tem
sido suficiente para isso. Diante desse quadro de esgotamento da acumulação
capitalista, de desgaste da hegemonia dos EUA no globo e do fracasso do
neoliberalismo para a saída da crise, uma onda neoconservadora se coloca em
movimento, além da ofensiva do imperialismo sobre o Sul Global para manter o seu
controle.

15 A ditadura do Grande Capital. Editora Expressão Popular


16http://novo.fpabramo.org.br/content/percep%C3%A7%C3%B5es-na-periferia-de-s%C3%A3o-paulo

13
Todo esse prelúdio da conjuntura recente no parágrafo anterior diz respeito ao
entendimento que a forma que a religião assume em determinado contexto tem
aderência com o desenvolvimento atual do capitalismo.

Dessa forma, quais as transformações que assistiremos na igreja pentecostal? A


supervalorização dos valores conservadores e tradicionalistas, seu enfrentamento
pela igreja respaldando a violência e intolerância religiosa não poderia apontar para
uma nova representação na dinâmica de neofascistização operada na sociedade?

3. A dinâmica da luta de classe, a ideologia e a cultura

É fato que a história não se dá de forma mecânica como acima analisado, a


realidade e sua complexidade são determinadas por muitas particularidades, que
tem sua materialidade, mas também é influenciada pela subjetividade e cultura dos
povos. A dinâmica das classes sociais, sua movimentação e experiência são
fundamentais nessa análise. A força política acumulada impacta nos diversos
segmentos da sociedade, inclusive na religião.
Ou seja, a religião é ambivalente, podendo ser a manutenção de um poder
dominante, mas também como força de contestação e ruptura, “a religião aparece na
história quer como força que sustenta, quer como força que abala o mundo” (Berger,
1985)17, tendo uma autonomia relativa dos processos históricos, sendo também
resultado das contradições do desenvolvimento econômico-social.

Embora em boa parte a religião assuma contornos alienantes, não se trata de


sinônimo de alienação, podendo assumir, em momentos de correlação de forças
favorável à transformação da sociedade, um papel de desalienação e contestação.

“Assim, vemos que a classe dominante de tal sociedade pode, por vezes, perder seu
poder de manipulação da religião aos seus próprios interesses, e é nesse instante
que a religião perde seu status de manutenção do mundo vigente e busca uma nova
alternativa” (Xavier18)

A Reforma Protestante, que assumiu seu caráter revolucionário para a burguesia


nascente, foi levada às últimas consequências pelos camponeses alemães, na
Revolta dos Camponeses, que buscavam sua libertação política e econômica a partir
da releitura do Evangelho (depois duramente reprimida pelos príncipes
aconselhados por Lutero).
Ainda no processo de desenvolvimento do capitalismo, o primeiro avivamento da
igreja protestante se dá na Inglaterra com a saída de um grupo da igreja Anglicana
para formar a igreja Metodista. Esse movimento dá-se exatamente nas
transformações da primeira revolução industrial, onde o trabalhador inicia sua
organização sindical e envolvimento político coletivo. A igreja metodista surge

17O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.


18https://www.recantodasletras.com.br/artigos/626721

14
exatamente como uma igreja das classes populares, fortalecendo a participação
política, o que segundo Robinson Cavalcanti, fez dessa igreja um dos berços do
sindicalismo britânico e do Partido Trabalhista. “Um líder do trabalhismo no século
XX chegou a afirmar: ‘O meu socialismo não procede de Marx, mas do metodismo’”
(p. 149).

Nessa chave de interpretação, o que observamos então da Teologia da Libertação19


na América Latina não se tratou de uma exceção da religião cristã como
contestadora. Neste momento histórico, a dinâmica da luta de classes, intensificação
das lutas pelas reformas de base da década de 60, crescimento da classe operária,
dinâmica da economia brasileira, fortalecimento do bloco socialista no mundo e
processos de libertação nacional e socialista explodindo em todos os continentes,
possibilitaram uma correlação de forças favorável às forças de progressistas e de
esquerda.

Mesmo antes da sistematização da Teologia da Libertação, primeiramente escrita


por dois pastores presbiterianos (Rubem Alves e Richard Shall) e depois difundida e
amplamente utilizada por alguns setores da igreja católica, as reinterpretações
bíblicas estavam em curso. Reinterpretações observadas tanto nos movimentos
populares, como nas Ligas Camponesas, como nas igrejas evangélicas, que teve
seu ponto alto na IV Conferência da Confederação Evangélica do Brasil, tendo a
Igreja Presbiteriana do Brasil a frente, com o tema “Cristo e o Processo
Revolucionário Brasileiro”, ocorrido no Nordeste20.

A Teologia da Libertação é a releitura do povo em movimento da necessidade de


uma religião que reforce sua posição na dinâmica da luta de classes. O mesmo pode
ser analisado de setores das igrejas evangélicas nos EUA nesse mesmo período na
luta contra a segregação racial oficial daquele país.

Nenhum desses períodos fez dessas experiências religiosas no campo do


cristianismo, em especial dos evangélicos, se apresentar de uma única forma, como
contestadora ou como mantenedora do status quo. Na verdade, manteve contínua
disputa entre as forças políticas divergentes, ou como já acima mencionado, sua
ambivalência “a religião não é uma força conservadora nem uma força
revolucionária: ela pode ser ora uma ora outra e pode inclusive ser as duas ao
mesmo tempo, conforme os grupos sociais que coexistem dentro dela”
(Lesbaupin21).

19 A teologia da libertação é uma doutrina que floresceu na América Latina do período pós Concílio Vaticano II
(1962-1965) e da Conferência Episcopal Latina Americana realizada em Medellín-Colômbia em 1968. Em sua
essência, pregava que para viver o Evangelho de Cristo, a opção preferencial pelos pobres e a defesa de seus
direitos, interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação das injustiças impostas aos
mais pobres pelas condições econômicas, políticas e sociais determinadas pelo poder dominador (
20https://www.youtube.com/watch?v=xxxshAqA7C8
21Marxismo e religião.

15
A religião pentecostal, como abordado nas duas outras chaves de interpretação
acima, não apenas representa o fortalecimento ideológico do neoliberalismo, como
dá identificação para o sentimento empreendedor difundido na sociedade, mas
também é explicada pela conjuntura extremamente desfavorável para as forças
progressistas e de esquerda na disputa pela narrativa da história. Não sem
contradições no seio de sua existência eclesial, dando sentido para a vivência
comunitária e tendo uma variedade de grupos religiosos nessas igrejas que buscam
apontar a religião pentecostal como um possível instrumento de contestação social -
a constante batalha interna de ressignificar a interpretação bíblica.

4. O atendimento às necessidades das pessoas.

Para entender o crescimento do pentecostalismo é preciso frisar que seres humanos


têm necessidades materiais e imateriais e que, em certa medida, uma parte dessas
necessidades está sendo atendida por estas igrejas22.

Necessidades materiais

Os protestantes acreditam que a melhor forma de um cristão ajudar aos pobres e


necessitados é aproximando-os de Cristo. Por sua vez, Católicos creditam ao
trabalho voluntário a melhor forma de contribuir com os pobres e necessitados.
Católicos, protestantes e religiosos não afiliados geralmente compartilham a visão de
que o estado deve prover aos pobres e necessitados (80%), mas somente 35%
desses dizem pressionar os governos para conquistar esse intuito (ou acreditam
nessa opção)23. Esse pequeno percentual pode ser explicado pelo fato de 91% dos
cristãos acreditarem que todo o sucesso financeiro deva-se a influência divina, (97%
entre os protestantes)24.

Mesmo afirmando que a conversão dos pobres e necessitados é a melhor forma de


ajudá-los, igrejas protestantes se envolvem muito mais do que as católicas em
trabalhos voluntários e se colocam junto aos fieis na busca por empregos, comida e
roupas. Por essa e outras razões, frequentar uma igreja protestante, sobretudo,
pentecostal, pode melhorar sua vida economicamente.

Tendo como referencial teórico a Teologia da Prosperidade, várias igrejas,


principalmente as pentecostais, desenvolveram complexas estratégias de negócio,
com grandes estruturas empresariais, planos de carreira e lançamento de cartões de
crédito. Muitas montam grupos e realizam reuniões com os objetivos de ensinar
sobre planejamento financeiro e estimular os fieis a abrirem seus próprios negócios
para sanar suas finanças. Embora exista profissionalização e mercantilização em
outras religiões, essas são mais evidentes nas igrejas pentecostais e

22Pew Research Center. Op., Cit.


23 Pew Research Center. Op., Cit.
24 DATAFOLHA. Op., Cit.

16
neopentecostais, principalmente pela elevada exposição midiática (várias igrejas são
detentoras de meios de comunicação em massa, inclusive pela internet) e do próprio
crescimento dos evangélicos no Brasil. A Igreja Universal do Reino de Deus realiza
semanalmente as “reuniões da prosperidade” nos templos, com conteúdos e
depoimentos de participantes exibidos diretamente nos meios de comunicação da
igreja25. Outro exemplo é a Universidade da Família, entidade educacional voltada a
todas as denominações evangélicas e que oferece cursos de planejamento
financeiro:

“Quem participa das aulas de estudos financeiros bíblicos tem contato com
mandamentos que não diferem muito do que é transmitido nos tradicionais
cursos de educação financeira: organizar o orçamento doméstico, traçar
uma estratégia para sair das dívidas e estabelecer metas financeiras. A
diferença é que as explicações são apoiadas em trechos da Bíblia26”

O estudo financeiro realizado na Universidade da Família segue a metodologia


Crown, criada nos anos 1970 nos Estados Unidos, que reuniu 2.350 versículos
(subdivisões da Bíblia) que tratam de finanças e administração. Planejamento
financeiro abençoado por Deus.

A realização financeira é levada tão a sério que pastores tem ficado bastante ricos
no Brasil. Segundo a revistar Forbes, Edir Macedo é o mais rico, com uma fortuna
avaliada em R$ 3,98 bilhões (Tabela 3.). Este fato parece não preocupar muito os
fieis, tendo em vista que a teologia da prosperidade respaldo o enriquecimento dos
“homens de Deus”.

Tabela 3. Lista dos pastores mais ricos do Brasil


Pastor Fortuna Igreja
(milhões de R$)
Edir Macedo 3.980,50 Igreja Universal do Reino de Deus
Valdemiro Santiago 1.843,60 Igreja Mundial do Poder de Deus
Silas Malafaia 628,50 Assembleia de Deus
R. R. Soares 523,75 Igreja Internacional da Graça de Deus
Estevam e Sônia Hernandes 272,35 Igreja Renascer

Outro fator a ser considerado (embora menos abordado na literatura) são mudanças
de hábitos mais comuns aos adeptos das igrejas protestantes que podem impactar
positivamente o orçamento familiar. A redução do consumo de álcool e do fumo, por
exemplo, é apontada como mais importante para protestantes do que para
católicos27.

25 MUNDO CRISTÃO. Economia: Evangélicos chamam atenção da iniciativa privada. Disponível em:
<https://guiame.com.br/gospel/mundo-cristao/economia-evangelicos-chamam-atencao-da-iniciativa-
privada.html>. Acesso em: 18 out. 2019.
26 https://oglobo.globo.com/economia/cursos-sobre-financas-para-evangelicos-sao-nova-face-da-segmentacao-
na-area-de-investimento-24058721
27Pew Research Center. Op., Cit.

17
Segundo a Organização Mundial da Saúde, o uso abusivo de álcool potencializa os
custos em hospitais e outros dispositivos do sistema de saúde, sistema judiciário,
previdenciário, perda de produtividade do trabalho, absenteísmo, desemprego, entre
outros28. Com tantos prejuízos, um fiel que deixa de consumir álcool terá
potencialmente menos problemas na vida e incrementará o seu orçamento com o
dinheiro que não foi gasto em bebidas, gerando melhorias financeiras e no convívio
familiar.

Cruzando informações de renda e consumo de álcool, Valéria Furtado Ikeda concluiu


que as famílias mais pobres da Cidade de São Paulo são as mais prejudicadas por
este hábito, comprometendo cerca de 33% do orçamento familiar em lares com
renda mensal de até R$ 25029.

Outro fator que precisa ser mais estudado são as redes de ajuda mútua
estabelecidas na comunidade evangélica, em que oportunidades de empregos são
direcionados para os “irmãos” da igreja e pequenos negócios são retroalimentados
pela comunidade (eu compro pão na padaria do “irmão” e ele compra “roupas” na
minha loja).

No aspecto macro, o mercado religioso também tem aumentado, com produtos e


serviços específicos para esse público30. Estima-se que somente os evangélicos
movimentam cerca de R$ 21,5 bilhões por ano, gerando 2 milhões de empregos31.
Em uma recente feira, a Expo Cristã, havia a oferta de consórcio evangélico (de
obtenção de carros e imóveis), curso de “coach cristão” e de planos bancários
especiais para esse segmento32.

Necessidades imateriais

Em consonância com mudanças comportamentais como a redução do uso de álcool,


que melhoram o convívio familiar (vide tópico anterior), o atendimento as
necessidades de socialização e reconhecimento são fatores importantes no
segmento religioso.

Segundo Elias Evangelista Gomes33,

Desde crianças ou desde a conversão, os evangélicos são “chamados” a


desenvolverem o papel de ovelhas, de viver sob a condução de um pastor
ou líder. Além disso, são “chamados” a viver juntos com as outras ovelhas,
com as demais pessoas que compartilham a mesma fé ou símbolos

28 CISA. Disponível em: < http://www.cisa.org.br/artigo/10049/relatorio-global-sobre-alcool-saude-2018.php>.


Acesso em: 22 out. 2019.
29 http://agencia.fapesp.br/o-efeito-social-do-alcool/4493/
30https://www.negociosunidosemcristo.com.br/negocio-gospel/#sobre
31https://noticias.gospelmais.com.br/mercado-gospel-movimenta-r-215-bilhoes-95101.html
32https://saidapeladireita.blogfolha.uol.com.br/2019/10/21/expo-crista-mostra-como-os-evangelicos-conseguem-

se-adaptar-aos-novos-tempos/
33 GOMES, E. E. A socialização no aprisco do Senhor. Cadernos CREU, v.21, n.2, p.281-304, 2010.

18
próximos. Seguir, acompanhar, compartilhar, obedecer são ofícios
demandados às pessoas cristãs que se dispõem a uma relação de fé com o
Sagrado, mediada pela relação entre pastor e ovelha.

No processo atual de diluição das relações comunitárias (individualismo) e da


impregnação do medo da violência, muitas famílias têm na comunidade da igreja a
qual pertencem a necessidade de socialização atendida. Assim são formadas
sólidas amizades e relações de confiança, vínculos afetivos que solidificam ainda
mais a permanência dos fieis naquela determinada denominação religiosa. Alguns
estudos têm demonstrado que um número significante de fieis tem preferido igrejas
menores e mais próximas a sua residência para viver mais fortemente estes laços,
por isso a existência de tantas pequenas denominações34.

Além disso, as igrejas pentecostais tem o mérito de adaptarem o seu culto, normas e
funcionamento para conquistar mais adeptos (por isso também cresceram tanto),
deixando de lado o sectarismo das igrejas protestantes históricas. Com isso, tem
atraído parcelas significativas da juventude que não estavam efetivamente dispostas
a “esquecer” totalmente o mundo pagão, mas que viam com simpatia os grupos
evangélicos. Festas e músicas de diferentes estilos, mas com temática gospel, são
exemplos dessa prática.

No tocante ao reconhecimento, o segmento protestante compartilha o poder ao


afirmar que todo fiel é um pastor em potencial e deve exercer a função sacerdotal.
Assim procura-se gerar uma imagem positiva do fiel como referencial administrativo,
moral, ético e político na comunidade35.

Algumas igrejas protestantes instrumentalizaram o exercício da função sacerdotal


por intermédio do processo de “pastor e ovelhas”, no qual ao entrar na igreja você se
torna uma ovelha, mas ao mesmo tempo tem a missão de conquistar o seu próprio
rebanho (ser pastor). Desta forma, os fieis são desafiados constantemente a
aumentar o número de adeptos da sua igreja, e, ao fazer isso, conquistam mais
reconhecimento como líderes36. Esta estratégia de crescimento de algumas igrejas
pentecostais dialoga com as aspirações de reconhecimento e crescimento pessoal
dos fieis, que não difere muito dos que não professam a fé cristã.

Conclusões iniciais e principais desafios

1. Neste trabalho verificou-se que o pentecostalismo brasileiro é uma vertente


protestante que aqui chegou no início do século XX. Existem diferenças importantes

34 DATAFOLHA. Op., Cit.


35 GOMES, E. E. Op., Cit.
36 O modelo G12 pressupõe o crescimento das igrejas por meio de células, nas quais o fiel, ao entrar na igreja,

ao mesmo tempo em que se torna um dos doze discípulos do “líder” (pastor ou fiel mais antigo na igreja), tem a
missão de conquistar pelo menos mais 12 discípulos, formando células indefinidamente. (GOMES, E. E. Ensaios
etnográficos sobre a socialização da juventude para a sexualidade e a fé: “vem, você vai gostar”).

19
entre as igrejas protestantes históricas e pentecostais, assim como existem
variações dentro do próprio pentecostalismo.

2. O crescimento dos pentecostais pode ser explicado pelos seguintes fatores: a) a


própria dinâmica do capitalismo, cuja transformação estrutural exige uma
superestrutura adequada (no caso, uma religião funcional ao modelo). Uma
observação importante é que a religião pode assumir caráter revolucionário,
conservador e até contrarrevolucionário, a depender da correlação de forças na
sociedade); b) o desenvolvimento dos pentecostais na política, o que possibilitou o
seu protagonismo na sociedade; e c) o método de trabalho e organização dos
pentecostais que atende as necessidades materiais e imateriais das pessoas, e cria,
assim, legitimidade e conexão com as massas.

3. O imprescindível trabalho de base popular não pode prescindir de abarcar o


atendimento às necessidades materiais e imateriais do povo, dentro de um processo
de educação popular37. Contribuir na resolução de demandas concretas como
emprego, paz, socialização e reconhecimento, entre outras, cria conexões
fundamentais para um trabalho de base sólido.
4. Entre os desafios, o primeiro deles é que consigamos entender a dinâmica
internacional das transformações em curso no capitalismo e o papel do avanço
neoconservador como resultado da intensificação da crise e da correlação de forças
desfavorável à classe trabalhadora. Se a representação desse processo no Brasil se
concentra em um setor da religião cristã (pentecostalismo), avanços semelhantes ou
piores ocorrem em outras regiões do globo, como na Índia, com o nacionalismo de
direita hindu, representado pelo Partido do Povo Indiano (Partido BharatiyaJanata -
BJP) que avança com uma agenda de intolerância e perseguição as demais religiões
e a aplicação da agenda da ultradireita com as privatizações e a retirada de direitos.

5. É fato que seu protagonismo jogou luz para os métodos de trabalho dos
pentecostais pelo seu rápido crescimento. É importante aprofundar o estudo sobre
esse tema também. Não é algo novo, pois a hegemonia ideológica não se dá no
vazio, mas possui uma materialidade de atendimento das necessidades dos
indivíduos, seja na construção de laços comunitários, como na obtenção de
emprego, comida e lazer. Contudo, é importante salientar que tanto no Brasil como
na América Latina, Teologia da Libertação influenciou muitas experiências de
trabalho nas bases da sociedade com resultados concretos também, desde o
mesmo atendimento as necessidades básicas até a disputa de setores da
sociedade, como a educação e a ciência popular (Paulo Freire e Fals Borda).

37 A Educação popular é uma ferramenta político-pedagógica cujos objetivos permanentes são: a) traduzir,
divulgar e recriar o conhecimento como força material para transformar a realidade; b) construir, divulgar e
acompanhar a implantação da estratégia da organização popular como resposta aos desafios do cotidiano e da
história; c) qualificar quadros militantes que se dispõem a transformar, pela raiz, a estrutura do sistema
capitalista, no nível político, econômico, ideológico e cultural; d) elevar o nível de consciência da classe oprimida
e incorporar o povo como protagonista; e) facilitar o entendimento e aplicação do conteúdo e da metodologia
popular, comprometendo as pessoas com a multiplicação criativa (Trabalho de base, Ranulfo Peloso (org.)).

20
6. É importante que aprofundemos o entendimento do papel das religiões, em
especial da igreja pentecostal, mas é imprescindível que tenhamos entre seus
formuladores companheiras e companheiros que professam essa fé e disputam
cotidianamente esses espaços. O acúmulo que possuem é fundamental para que
não nos deixemos levar por problemas e temas que podem para nós parecer
profundos, mas para eles é algo já bem resolvido e explicado.

7. Desse desafio, se faz importante mapear e identificar os diversos grupos


protestantes e católicos progressistas e de esquerda para o fortalecimento da frente
popular. Verifica-se que cristãos progressistas gastam muita energia e tempo
buscando convencer a esquerda brasileira que existem setores dentro das igrejas
que querem a transformação social. O tempo que poderia ser muito melhor utilizado
para entender o fenômeno de crescimento do conservadorismo dentro das igrejas
pentecostais e pensar em como construir força social nesse setor, fica relegado à
autodefesa, necessária, entre os demais setores da esquerda.

8. Entender a sua história e desenvolvimento ajuda a não ser pego de surpresa por
seu crescimento, pelos métodos empregados e pelas ações que fazem no dia a dia
como elementos novos. Muito do que fazem são estruturais da organização religiosa
e talvez a explosão de crescimento se deve menos a isso e mais ao contexto que
vivemos.

9. É muito importante que estudos similares a esse sejam realizados nas cidades e
regiões em que a militância atua. O Brasil é muito diverso em todos os aspectos.
Entender as características principais, denominações predominantes, força política,
método de trabalho e funcionamento destas igrejas em cada território definitivamente
nos auxilia em uma correta análise de conjuntura e na realização do trabalho de
base.

10. É preciso compreender melhor a relação entre alguns setores das igrejas
pentecostais e a complexa rede de tráfico e milícias nos territórios que tenham
implicações significativas nas relações sociais e no trabalho militante.

11. A influência das religiões cristãs (e da ideologia cristã) na ascensão da direita em


outros países da América Latina deve ser mais estudado. Muitos autores se
debruçado sobre este tema, observado que este elemento tem sido comum nos
processos golpistas e eleitorais no continente.

12. Por último, produzir materiais ou cartilhas que expliquem o universo evangélico
pode facilitar o trabalho popular, entendendo os grupos que vão encontrar. São
muitas linhas, denominações, formas organizativas e teologias em que ter o
entendimento mínimo para iniciar um diálogo se faz necessário.

21
________________________________________________________________________

A Consulta Popular e a luta eleitoral


Fábio Itinga, Acácio Leite, Jarbas Vieira, Katty Hellen e Tobias Pereira38

38Militantes da Consulta Popular do Distrito Federal

22
1. Questões introdutórias

A necessidade histórica de surgimento da Consulta Popular (CP) foi baseada na


premissa que o Partido dos Trabalhadores (PT), maior força política de esquerda da
realidade brasileira, havia abandonado a estratégia revolucionária de tomada do
poder político e se distanciava a cada dia do Programa Democrático e Popular
(PDP), este que seria o elo de transição para uma sociedade socialista.

O principal dilema colocado para nós, desde o nosso surgimento, tem sido como
recolocar para o conjunto das forças de esquerdas e progressistas a necessidade da
centralidade do Poder de Estado, como única saída para construirmos a revolução
brasileira e assim conseguir resolver os problemas estruturais da sociedade
brasileira.

Em alguns momentos de nossa história travamos o debate sobre o local e a forma


de organização de esquerda em determinadas conjunturas, para ter condições de
recolocar a questão do poder de estado como central. Em nossa cartilha 19,
ensaiamos dizer que nós, da esquerda social, iríamos nos centralizar não pela luta
eleitoral devido a sua fragilidade, mas na construção de um novo ciclo da esquerda
que não passasse por essa luta:

O mais provável é que o novo ciclo da esquerda brasileira, que tem como
seu pólo dinâmico os setores da chamada esquerda social, não mais se
centralize pela lógica da luta eleitoral e institucional (Cartilha 19, Consulta
Popular).

Desde 2007, ano da III Assembleia Nacional da CP, a organização e o campo


político tentaram diversas vezes rearticular uma parte da esquerda em torno de
outras táticas, que não à luta eleitoral (Assembleia Popular, Plebiscitos, Central dos
Movimentos Sociais e a Frente Brasil Popular). Nada conseguiu ter grande impacto.

A realidade tem demonstrado que a inserção da questão do Poder de Estado no


conjunto das forças de esquerda e da sociedade por meio de táticas que passassem
por fora da via institucional não é simples.

Para ajustar nossa tática nessa conjuntura algumas perguntas são fundamentais:
Porque as iniciativas unitárias não tiveram êxito político? Quais as forças políticas
estavam conosco? Em que momento essas ações se ampliaram para além do
Campo Político? Já estávamos vivendo realmente esse novo ciclo onde a tática
eleitoral não estaria mais na agenda da esquerda e do povo brasileiro?

Sabemos que sobre essa última pergunta, temos apontamentos sobre o equívoco
dessa formulação. No entanto, o que fizemos para ajustar a nossa tática? A saída
era insistir em alternativas que não passassem pela via eleitoral?

23
Estamos vivendo um momento de reorganização da esquerda, em que se necessita
juntar forças para fazer com que suas táticas sejam implementadas e acumulem na
estratégia. Essa abertura está se dando pelos elementos surgidos nos últimos anos
dos governos Petistas e da derrota de sua estratégia. Nesse momento está aberta a
possibilidade de uma reorganização das forças de esquerda e progressistas, e nós
ainda não temos nítido como faremos para nossa estratégia ser hegemônica no
conjunto da esquerda. A tarefa não é simples, tampouco, uma receita de bolo, mas
temos que nos debruçar profundamente sobre qual o movimento que iremos fazer.
Para onde a Consulta Popular vai?

Por isso, elencamos dois pontos que acreditamos ser centrais para a Consulta
Popular nesse próximo período. A primeira hipótese defendida é que a luta eleitoral e
institucional não está esgotada no Brasil e que sua adoção entre as formas de luta
implementadas pela organização política não requer o abandono da estratégia
revolucionária da tomada do poder de Estado.

E a segunda hipótese é que a luta eleitoral e institucional ainda está presente na


reorganização da esquerda e que devemos adotá-la com uma das formas de
aglutinar o maior número de forças políticas com o objetivo de implementar o Projeto
Popular para o Brasil.

2. As eleições na estratégia da Consulta Popular

Como já foi dito, a Consulta Popular frequentemente apresentou em suas resoluções


uma negação direta ou uma política de não aprofundamento da importância da luta
eleitoral na realidade brasileira. Esse fato nos levou a “construir na prática” uma
suposta saída de tomada do poder, por fora do Estado, sem um necessário
aprofundamento sobre esse caminho ou construir efetivamente as bases desse em
um momento oportuno.

A Consulta Popular não percebeu as necessidades do momento:

A história nos ensina que o processo da revolução envolve diferentes


táticas, determinadas por cada conjuntura em cada situação histórica [...].
Há que se diferenciar o processo, que pode envolver táticas as mais
diversas – inclusive a luta eleitoral e institucional – da conquista do poder,
que nunca é “pacífica”, pois só pode ser assegurada mediante uma ação
que suporte a reação armada do inimigo (Cartilha 21, Consulta Popular)

Essa afirmação da Cartilha 21 diz que podemos combinar as diversas táticas


distintas para colocar a questão do poder, sendo a luta eleitoral uma possibilidade.

Mas o que fizemos em relação a essa tática, além de apoiar candidaturas Petistas
(em sua maioria) que representam o abandono do Projeto Democrático e Popular?
Talvez o maior avanço nessa seara foi estabelecer critérios de apoios às

24
candidaturas como fortalecimento do jornal Brasil de Fato, manutenção de espaços
organizativos e liberações de militantes.

Acumulamos pouco sobre as experiências que passaram pela luta eleitoral, assim
como as experiências latino-americanas do século XXI, que combinaram a luta
eleitoral, luta de massas, fortalecimento dos movimentos populares e a centralidade
do poder político. Está nítido que não foram todos os países que conseguiram
avançar nessas combinações e colocar o poder político em xeque – constatamos as
diferenciações desde a Venezuela até o que ocorreu no Brasil.

“Com a crise econômica, o imperialismo estadunidense colocou em marcha uma


contra-ofensiva que tem como objetivo central retomar suas posições no continente,
atuando para derrotar os governos progressistas” (Cartilha 25). Neste cenário
explosivo de grande arrocho e repressão, com o enfraquecimento do movimento
“Lava Jato” e aumento das contradições das políticas neoliberais aplicadas desde o
governo Temer, existe a possibilidade de retomada de governos progressistas? É
necessário analisar com cuidado o papel das forças internacionais nesta disputa,
partindo do que está acontecendo recentemente na América Latina, desde a
Argentina até a Bolívia.

Assim sendo, a saída da crise e melhoria das condições de vida através do processo
eleitoral de 2022 estarão colocados para o conjunto da população. O que vamos
querer com esse processo: seguir acumulando ao projeto político do PT e fortalecer
sua estratégia ou iremos construir a Consulta Popular enquanto projeto político
alternativo ao Petismo, sem que neguemos as suas potencialidades?

Será que é possível construir o nosso objetivo estratégico, isto é, tornar hegemônico
na sociedade brasileira a centralidade do poder combinado com a luta eleitoral?

Entendendo cada momento histórico e não querendo automaticamente transplantar


o processo revolucionário Russo para nossa realidade, Vladimir Lênin, no livro
“Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo”, ressalta o papel das eleições
naquele período revolucionário - a combinação das táticas:

“Nós, bolcheviques russos, não tínhamos, porventura, em setembro-


novembro de 1917, mais direito que todos os comunistas do Ocidente de
considerar que o parlamentarismo havia sido superado politicamente na
Rússia? Tínhamos, sem dúvida, pois a questão não se baseia em se os
parlamentos burgueses existem há muito ou há pouco tempo, mas sim em
até que ponto as massas trabalhadoras estão preparadas (ideológica,
politicamente e na prática) para adotar o regime soviético o dissolver (ou
permitir a dissolução) do parlamento democrático-burguês. Que a classe
operária das cidades, os soldados e os camponeses da Rússia estavam, em
setembro-novembro de 1917, excepcionalmente preparados, em virtude de
uma série de condições particulares, para adotar o regime soviético e
dissolver o parlamento burguês mais democrático é um fato histórico
absolutamente indiscutível e plenamente demonstrado. Contudo, os

25
bolcheviques não boicotaram a Assembléia Constituinte, e sim, pelo
contrário, participaram das eleições, tanto antes como depois da conquista
do Poder político pelo proletariado [...] Nós, bolcheviques, atuamos nos
parlamentos mais contra-revolucionários e a experiência demonstrou que
semelhante participação foi não só útil como necessária para o partido do
proletariado revolucionário, precisamente depois da primeira revolução
burguesa na Rússia (1905), a fim de preparar a segunda revolução
burguesa (fevereiro de 1917) e, logo em seguida, a, revolução socialista
(outubro de 1917)” (Lenin, 1920).

Essa passagem demonstra que mesmo na experiência russa, os Bolcheviques


participaram dos processos eleitorais do momento histórico ao qual estavam
inseridos.

Em nossas resoluções contidas na Cartilha 21, afirmamos que:

“A capacidade de direção das vanguardas reside em sua preparação


integral para utilizar todas as formas de luta, que lhes permitam articular
respostas enérgicas e oportunas ante as diversas mudanças impostas pela
luta de classes”.

Complementando essa formulação, nós necessitamos não somente disputar a


vanguarda, mas também disputar os reformistas para acumular forças.

Qual é a saída além dessa combinação de lutas? Independente da nossa vontade, a


política brasileira atual passa pelas eleições, passa por ter base social em
movimento popular e passar por ter base sindical. Se queremos, de fato, construir a
revolução brasileira temos que empenhar mais força nesses três campos. Assim
teremos condições de incidir na realidade para construir essa transformação.

3. As eleições para o povo

Até aqui foi tratada a combinação de diferentes táticas para alcançarmos a nossa
estratégia. Daqui para frente serão trazidos elementos sobre a visão da sociedade
brasileira e da participação popular na luta eleitoral.

Inicialmente precisamos fazer uma diferenciação entre participação e interesse


político nos pleitos eleitorais, ao risco de incorrer no erro de dizer que essa tática
está esgotada.

O histórico político brasileiro nos mostra que as classes dominantes, em manobras


distintas, sempre teve como objetivo retirar a participação popular na tomada de
decisões da política nacional. Se considerarmos os três marcos da constituição do
novo Estado brasileiro, como a articulação da abolição da escravatura (1888), a
nova República (1889) e a Constituição de 1891, teremos quase 100 anos sem
participação popular direta em poder votar e ser votado (considerando o Estado
“moderno”).

26
Para controlar o processo eleitoral e a participação popular, a burguesia criou
decretos-leis, atos institucionais, reformas no sistema partidário brasileiro,
fechamento do Congresso Nacional, cassações, censura aos meios de
comunicação, supressão dos direitos políticos, prisões e exílios. Todas essas ações
solidificaram o caráter antidemocrático, antipopular e antinacional da Burguesia, que
também atua preventivamente, antecipando movimentações arbitrárias diante de
mudanças na correlação de forças. Florestan Fernandes, em “Reflexões sobre a
construção de um instrumento político” diz que a Burguesia brasileira se associa ao
imperialismo como forma de autodefesa, para suprimir qualquer tipo de pressão
reformista ou revolucionária.

Somente no início da década de 80 que tivemos grandes movimentações de massa


em torno da aprovação da Emenda Dante de Oliveira, a “Diretas Já”. A luta pelas
Diretas foi um movimento suprapartidário que conseguiu ampliar a participação
popular em seus atos e aglutinar forças em torno da bandeira política “Eleições
Diretas”. Outros fatores fizeram crescer a participação popular contra o discurso de
desenvolvimento rotulado pela ditadura militar, mas esses não diminuem a
importância do movimento mesmo com a proposta sendo rejeitada pelo Congresso
Nacional.

Florestan Fernandes, em artigo que escreveu à Folha de São Paulo em 1984 “O


significado do 16 de abril”, avalia o processo das Diretas e aponta os sujeitos
centrais do processo que culminaram no 16 de abril, dizendo que o:

“personagem central é a massa mais ativa e decidida, politicamente


falando, da população. Massa que abrange as várias classes e frações de
classes, mas que possui seu peso estatístico dos trabalhadores
assalariados, nos desempregados ocasionais e estruturais, numa pequena
burguesia quase completamente empobrecida e proletarizada e em alguns
estratos das classes médias e da alta burguesia. O centro burguês ocupa o
palco político através da direção e das cúpulas dos partidos. No entanto, a
força política que impulsiona a oposição, sacode os partidos, faz os políticos
perderem o sono e amedronta um Executivo irresponsável, se concentra na
base mais pobre da pirâmide das classes”.

As “Diretas Já” foram centrais para o processo de mobilização popular, sendo este, o
primeiro momento após o fechamento do regime em 1968, em que o povo retoma as
ruas, massivamente, cria um sentimento nacional de participação popular, volta a
vigorar e fazer parte da pauta nacional de discussões a possibilidade de mudar os
rumos políticos do país. De alguma forma, a Consulta Popular também é fruto desse
processo histórico de mobilização pelas “Diretas Já”, pois esse é o tempo histórico e
político de construção da esquerda brasileira ao qual fazemos parte!

A sociedade brasileira ainda colhe os frutos desse processo de mobilização por


participação popular na luta eleitoral (apesar de existir a geração que foi às ruas no

27
ano de 2013 com sentimentos muito difusos sobre a política e as instituições). Por
mais que nossa gênese se deu pela crítica ao abandono da construção do Projeto
Democrático e Popular e da política do “possível” nos moldes do Capital, é
importante dialogar com o nível de consciência das massas.

Será que o povo brasileiro ainda visualiza possibilidades de mudança nas eleições?
Para o conjunto do povo o que representa a democracia? São perguntas que
precisam ser enfrentadas por um partido que tem como objetivo central fazer a
revolução brasileira.

Para responder essas questões, é importante fazer uma análise histórica do


processo eleitoral brasileiro, das conjunturas políticas de cada momento e,
principalmente, do ânimo das massas em relação ao processo eleitoral em cada
pleito.

Segundo dados do TSE, em 1989, a primeira eleição direta (fruto das mobilizações
que conseguiram conquistar eleições sem restrições de gênero, cor, alfabetização e
poder aquisitivo), combinada com a efervescência política do momento contribuiu
para que apenas 11,93% dos aptos a votar se abstivessem de participar das
eleições, enquanto que nas eleições posteriores esse percentual foi de 17,77%
(1994); 21,46% (1998) e 20,47% (2002);

Pegando como exemplo as eleições de 1998, considerando o descenso da luta de


massas derivado dos impactos na esquerda com a queda do muro de Berlim, o
avanço do neoliberalismo pelo continente, as derrotas eleitorais do PT e a derrota
dos petroleiros, esse percentual de abstenção não é alto. Ou seja, se avaliarmos
esses elementos da conjuntura, com correlação de forças desfavorável, 78,54% dos
brasileiros foram às urnas votar em um candidato. Foram às urnas com expectativa
de mudança.

E se avaliarmos a primeira investida do imperialismo para retirada do Partido dos


Trabalhadores do poder Executivo (caso do Mensalão - maio de 2005 a abril de
2006), as forças golpistas foram derrotadas nas eleições! Lula foi reeleito com
83,25% de participação (16,75% de abstenção).

Esses dados apresentados anteriormente representam a participação popular a


partir do primeiro turno, mesmo com a disputa de diversos projetos e difusão de
ideias, ocorreu uma grande participação eleitoral. Quando avaliamos a não
participação quando existe polarização eleitoral entre dois projetos (segundo turno
das eleições), teremos um fenômeno interessante no de 89, onde apenas 14,39% da
população não foi às urnas, enquanto que nos “melhores” momentos dos governos
Petistas, houve abstenção de 18,99% em 2006 e 21,50% em 2010.

28
Em 2018, em cenário altamente polarizado, com maior incidência do discurso
“apolítico”, houve uma taxa de comparecimento de 79,67% (20,33% de abstenção).
Esses números não corroboram com o discurso disseminado pela mídia e em
setores da própria esquerda que há um desgaste crescente dessa tática de luta.
Claramente persiste uma grande participação popular nas eleições, com poucas
variações após a redemocratização do país, com índices similares de abstenção
entre 2002 e 2018. A eleição de 1989 é uma exceção pelos motivos acima
apresentados.

4. Reorganização da Esquerda

Os elementos e fatos até agora debatidos evidenciam que a reorganização da


esquerda passará pela construção da tática eleitoral - nível de consciência das
massas trabalhadoras, combinação de tática diversas e tempo histórico da esquerda
brasileira.

Diante desta constatação, cabe a CP apontar as possibilidades nesse terreno de


luta.

3.1 O nosso Instrumento

Precisamos dar um salto de qualidade para responder as necessidades históricas de


nosso tempo e construir outra hegemonia na esquerda brasileira. Talvez, esteja
aberta novamente à CP o dilema enfrentado em 2004, descrito no texto “Refundar a
Esquerda para Refundar o Brasil”:

“estamos, pois, diante de uma grave decisão: ou a Consulta se retira do


processo político brasileiro e aceita a dispersão de seus militantes, ou
produz em si mesma um salto de qualidade”.

Dentre os dois pontos elencados em 2004, atuais nessa conjuntura, iremos nos
deter somente ao segundo, ao qual, deve estar prioritariamente centrado na unidade
e pactuação do campo político, processo que já foi inaugurado em 2015, mas que
não conseguimos alcançar os nossos objetivos para poder dar esse salto de
qualidade em nosso instrumento político. Ou seja, a nossa V Assembleia Nacional,
foi insuficiente. Se ainda está em tempo, o que podemos tirar como lição desse
processo? Qual foi a nossa proposta política para repactuar o campo?

Na tradição da esquerda mundial algumas frentes de atuação são de nossa tradição


partidária: movimento sindical, instrumentos de comunicação própria e ampla
diversidade de movimentos populares. Nessas frentes de atuação, temos acúmulo
acerca do Movimento Popular e dos Instrumentos de Comunicação (com fortes
debilidades, mas temos). O que menos temos acúmulo é o movimento sindical. Será
que o fato de existir essa debilidade no movimento sindical nos impede de participar

29
das eleições? Existe essa relação direta? Não existe viabilidade em repactuar o
campo em torno da legalização partidária e construção de força no movimento
sindical?

Se a pergunta para essas três perguntas for “Sim”, logo está encerrada a discussão
acerca de termos o instrumento político partidário próprio, registrado. Isso, por
decisão política! No entanto, os argumentos utilizados para justificar a não criação
de uma nova legenda carece de argumentos mais objetivos.

Não se pode simplesmente, mecanicamente, utilizar do argumento da “Cláusula de


Barreira” ou do ordenamento jurídico do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A recente
divulgação da criação do Partido Aliança pelo Brasil, ligado ao Bolsonarismo, mostra
que ainda há espaço para essa iniciativa. Também é preciso mencionar que nosso
campo possui grande capilaridade nacional para enfrentar os limites jurídicos e
conquistar o número de adesões necessárias para registar uma nova legenda.

Neste contexto, acreditamos que essa possibilidade ainda existe (criação de uma
nova legenda). Em “Refundar a Esquerda para Refundar o Brasil” afirmamos que:

“tornou-se evidente que a esquerda brasileira necessita de um instrumento


político novo, capaz de recuperar os aspectos positivos da história anterior,
mas de propor outro caminho, com uma interpretação renovada de nossa
realidade. Um instrumento político que seja radical, pois a crise brasileira
exige soluções radicais, sem ser sectário, de modo a conter dentro de si a
diversidade, a generosidade, a espiritualidade e a alegria do povo, condição
para ser parte dele”.

É importante frisar que já tivemos 15 anos de amadurecimento nas relações com


reformistas e esquerdistas, de forma a marcar nossa posição política entre esses
dois campos.

3.2 Outras possibilidades

Acreditamos que a construção de uma nova legenda protagonizada pelo


campo popular seria a melhor saída para atuarmos na luta eleitoral. No entanto,
visualizamos que outras três opções estão colocadas – entrar no PT, entrar no PSOL
ou Construir uma Frente de Partidos que disputam as eleições.

3.2 Entrar no PT

A opção política de entrar no PT nos colocará numa posição bastante conflituosa


com boa parte das nossas resoluções e linhas de formação política. Além disso,
estaremos fortalecendo um projeto que, desde o nosso nascimento, apontamos
como insuficiente para construção da revolução brasileira. Mesmo sabendo da
aproximação que temos em vários estados com os setores Petistas.

30
Nessa seara é importante não promover um discurso purista ou ingênuo, tendo em
vista que a experiência cubana nos mostra o papel que Fidel teve ao entrar no
Partido Ortodoxo e não no PC cubano. Sabemos que hoje, com todas as fragilidades
apontadas, o PT continua sendo o partido com maior capilaridade nacional – mais de
3 mil diretórios. Se essa for a saída apontada, algumas questões são latentes:
teremos condições de fazer a disputa interna, de rumo do partido? Ou entraremos
para poder construir uma ruptura por dentro com outras correntes e a militância sem
vínculo com estas? Assumindo essa posição, precisamos ter uma estratégia
extremamente elaborada para essa saída.

Essa entrada também significa o afastamento de um conjunto de militantes, inclusive


do nosso campo, que não possui mais referência ou acredita nos rumos do Partido
dos Trabalhadores, além de ter pouca capacidade de influenciar a reorganização da
esquerda na estratégia da tomada do poder.

3.3 Entrar no PSOL

Temos percebido uma movimentação do PSOL que o tem retirado do isolamento


esquerdista. No entanto, o Partido ainda tem pequena capilaridade nacional e pouco
poder de influência na política nacional.

Nacionalmente (e também nos estados), temos pouca relação com o partido e nossa
construção sempre se deu de enfrentamento com a linha adotada por eles. Em seu
programa, o PSOL reivindica o rompimento com o imperialismo, com a construção
de uma soberania nacional e a execução de reformas estruturais - ponto que nos
aproxima ideologicamente. Porém, nos afasta em tantos outros pontos.

O que não podemos negar nesse momento é o crescimento do partido nos últimos
quatro anos – na classe média e nos setores descontentes com o PT. Mas essas
questões são suficientes para construirmos a reorganização da esquerda por dentro
do PSOL? Pela sua tradição, haverá abertura para inserir setores reformistas dentro
do partido? A base do nosso campo se identifica com o programa do Partido? Ainda
não podemos responder a essas questões, mas precisamos ficar atentos para o
Congresso do PSOL que ocorrerá no ano de 2020.

3.4 Frente de Partidos

A história da Consulta Popular é marcada, como já apontado anteriormente, por


esforços na construção de Frentes Unitárias, articulando partidos, setores das
igrejas, movimentos populares, ONGs e sindicatos. Porém, foram iniciativas em
relação a pautas conjunturais e, nenhuma experiência em relação à disputa eleitoral.

Desconsiderando a criação de uma nova legenda, essa saída é a que mais pode
contribuir com a construção de uma outra estratégia hegemônica na esquerda

31
brasileira, articulando reformistas, esquerdistas e os descontentes com a estratégia
anterior. Porém, teremos que nos debruçar sobre os seguintes pontos: Quais setores
já tem demonstrado insatisfação com os dois campos apontados? O nosso campo
consegue dialogar com quantos setores para viabilizar essa estratégia?
Considerando que a esquerda partidária considera somente quem possui registro
eleitoral, estamos propensos a não compor o comando político dessa frente?

Nesse processo Congressual que estamos vivenciando, a Consulta Popular precisa


dar um salto de qualidade em relação a tática eleitoral. Temos que fazer um
movimento para tirar a CP da inércia que nos encontramos atualmente. A
combinação de diferentes táticas, incluindo a disputa eleitoral, e a inserção efetiva
nas massas urbanas e no setor sindical são caminhos que necessariamente
devemos trilhar para construir a revolução brasileira.

Brasília, 18 de outubro de 2019.

32
________________________________________________________________________

A Consulta Popular e a luta político-


eleitoral
Paulo Henrique Oliveira Lima39

39 Militante do núcleo Luiz Gama da Consulta Popular Ceará.

33
"Para o desenvolvimento das lutas, o princípio básico é a combinação das
formas de luta e organizações legais e ilegais, e a utilização de todas e
quaisquer possibilidades legais, no terreno da defesa das reivindicações
nacionalistas e democráticas, inclusive camponesas, no terreno da política
interna ou externa, ou no terreno jurídico.”

(Carlos Marighella – A crise brasileira)

Este texto tem como objetivo recuperar e problematizar o acúmulo histórico da


Consulta Popular acerca da luta político-eleitoral, sua relação com nossas lacunas
no debate estratégico e o desafio político de pensarmos a combinação das diversas
formas de luta no contexto atual, marcado sobretudo pela derrota estratégica sofrida
pelas forças populares com o Golpe parlamentar de 2016.

1. A luta político-eleitoral no nosso leito histórico.

Nós da Consulta Popular afirmamos ao longo da nossa trajetória enquanto


organização política, a nossa filiação ao leito histórico da esquerda revolucionária
latino-americana. O referido leito histórico tem como característica fundamental a
afirmação do marxismo-leninismo e sua aplicação criativa à realidade latino-
americana.

Esta tradição revolucionária aberta pela Revolução de Outubro terá como expoentes
em nosso continente o pensamento de diversos intelectuais revolucionários, tais
como José Carlos Mariátegui, Florestan Fernandes, Marta Harnecker, entre
outros/as. Este pensamento será enriquecido pelas experiências triunfantes da
Revolução Cubana e Nicaraguense. Embora não vitoriosa, a Revolução
Salvadorenha contribuiu a partir do seu acúmulo teórico e prático, com debates
importantíssimos para a esquerda latino-americana.

Recuperar estas experiências, mesmo após a queda do Muro de Berlim e o fim da


União Soviética, tem um significado importante para a nossa geração de
revolucionários/as brasileiros/as. Obviamente não com o intuito de copiá-las. Afinal,
não queremos que o socialismo no Brasil seja “nem decalque, nem cópia”, mas
representa recuperar o debate sobre a necessidade de combinar as diversas formas
de luta, dentro de uma estratégia revolucionária de conquista do poder de estado.

a) A experiência bolchevique.

A Revolução de Outubro, segue sendo para os revolucionários/as de todo o mundo,


a principal experiência revolucionária do século XX, tanto pelo seu significado
internacional, o papel exercido pela União Soviética na libertação de diversos povos
pelo mundo, mas sobretudo pela sua contribuição teórica em temas fundamentais
como a teoria da organização política, da revolução proletária e do imperialismo.
Isso não nos impede de tecermos críticas aos limites e equívocos desta experiência.

34
No entanto, isso não significa compactuarmos com seus adversários ou detratores,
tanto no campo de direita quanto de esquerda, que buscam restringir a riqueza de
sua experiência ao fenômeno do stalinismo. Nesse sentido, recuperar a experiência
bolchevique e em especial o pensamento de Lenin, continua fundamental.

Uma das críticas corriqueiras ao pensamento bolchevique, e com certa influência na


academia e na esquerda brasileira é de que Lenin por reafirmar o seu caráter de
classe, tinha uma concepção restrita, instrumental, monolítica do estado burguês.
Esta concepção impediria explorar as contradições das diversas instituições estatais,
menosprezar a importância da luta democrática, legal, parlamentar, dentro de uma
estratégia revolucionária, o que conduziria a uma estratégia mecânica de dualidade
de poderes. Além disso, esta concepção, teria como efeito colateral o obreirismo: a
secundarização do papel das classes médias e da intelectualidade no processo
revolucionário.

Se estas concepções se manifestaram nos diversos partidos comunistas durante o


século XX, elas devem ser compreendidas como desvios de apropriação. Visto que
no pensamento leninista elas não encontram materialidade. Lenin, já em 1902, em
sua obra “Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento” criticava as
concepções economicistas existentes no movimento operário russo que impediam o
partido de se inserir e disputar as diversas instituições do estado czarista, como fica
evidente no trecho abaixo:

Um camarada contou-me uma vez que um inspetor de fábrica, que ajudara


a social-democracia e estava pronto a continuar a ajudá-la, queixava-se
amargamente de não saber se suas - informações - chegavam ao
organismo revolucionário central, se sua colaboração era necessária e em
que medida seus pequenos, ínfimos serviços eram utilizáveis. Todo militante
poderia citar inúmeros casos semelhantes, onde nossos métodos artesanais
nos fizeram perder aliados. Ora, não apenas os empregados e funcionários
de fábricas, mas também os dos correios, ferrovias, alfândega, da nobreza,
do clero e de todas as outras instituições, inclusive a polícia e a justiça,
poderiam prestar-nos e prestar-nos-iam – pequenos - serviços cujo total
seria de um valor inestimável! Se tivéssemos desde agora um partido
verdadeiro, uma organização verdadeiramente combativa de
revolucionários, não utilizaríamos diretamente esses auxiliares, não nos
apressaríamos em integrá-los sempre e necessariamente à "ação ilegal";
muito ao contrário, os homens para essas funções seriam preparados e
formados especialmente, sabendo-se quantos estudantes poderiam ser
mais úteis ao Partido como funcionários "auxiliares" do que como
revolucionários "à curto prazo". Mas, repito, apenas uma organização já
perfeitamente sólida, e que disponha de forças ativas em quantidade
suficiente, tem o direito de aplicar essa tática40.

Do mesmo modo, ainda no Que Fazer? Lenin ressalta a importância de desenvolver


um trabalho de propaganda e agitação com os militares e a criação de organizações
específicas, que integrassem o partido:

40 LENINE, V. I. Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento. Disponível em:


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm Acesso em 24 de novembro de 2019.

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Entre os militares, por exemplo, observa-se ultimamente uma indubitável
reanimação do espírito democrático, em parte como consequência dos
combates de rua, cada vez mais frequentes, com "inimigos" como os
operários e os estudantes. E, desde que as nossas forças o permitam,
devemos prestar sem falta a mais séria atenção à propaganda e à agitação
entre os soldados e os oficiais, à criação de "organizações militares" filiadas
no nosso partido41.

Neste sentido, podemos afirmar categoricamente que Lenin não possuía uma
concepção monolítica do estado burguês. Pelo contrário, compreendia a importância
de uma organização revolucionária se inserir nas diversas instituições do estado –
Lenin defendia a inserção até na nobreza! - e disputá-las dentro de uma estratégia
revolucionária. Do mesmo modo, também não é correta a afirmação de que o Lenin
defendia um partido exclusivamente operário/proletário. Embora, compreendesse
que sua estrita ligação com as massas trabalhadoras proletárias e não proletárias
era um elemento fundamental para a constituição de um partido revolucionário.

Outro elemento importante da crítica à experiência bolchevique diz respeito à


participação na luta democrática e parlamentar. Para esses, decorrente de uma
concepção restrita do estado, o pensamento leninista secundariza a importância
dessa forma de luta, em detrimento da construção de organismos de poder popular,
tais como os soviets.

Se é verdade que Lenin afirma a supremacia destes organismos de poder popular


em detrimento das instituições típicas da democracia burguesa, e em certos
momentos específicos a justeza do boicote a estas instituições, também é verdade
que Lenin ressaltou a importância da atuação dos revolucionários/as nos
parlamentos mais reacionários.

Em seu folheto “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, Lenin reconhece que


a riqueza da experiência bolchevique foi justamente combinar as diferentes formas
de luta, de acordo com as alterações na correlação de forças na sociedade e por
conseguinte no regime político:

Por outro lado, o bolchevismo, surgido sobre essa granítica base teórica,
teve uma história prática de quinze anos (1903-1917) sem paralelo no
mundo, em virtude de sua riqueza de experiências. Nenhum país no
decurso desses quinze anos, passou, nem ao menos aproximadamente, por
uma experiência revolucionária tão rica, uma rapidez e uma variedade de
formas do movimento, legal e ilegal, pacífico e tumultuoso, clandestino e
declarado, de propaganda nos círculos e entre as massas, parlamentar e
terrorista. Em nenhum país esteve concentrada em tão curto espaço de
tempo, semelhante variedade de formas, de matizes, de métodos de luta de
todas as classes da sociedade contemporânea, luta que, além disso, em
consequência do atraso do país e da opressão do jugo czarista, amadurecia

41 LENINE, V. I. Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento. Disponível em:


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1902/quefazer/index.htm Acesso em 24 de novembro de 2019.

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com singular rapidez e assimilava com particular sofreguidão e eficiência a
“última palavra” da experiência política americana e europeia42.

Em outro trecho do Esquerdismo, Lenin afirma que a combinação de formas de luta


e a atuação no parlamento não só foi útil, como também um aprendizado necessário
para o partido revolucionário:

Nós, bolcheviques, atuamos nos parlamentos mais contra-revolucionários e


a experiência demonstrou que semelhante participação foi não só útil como
necessária para o partido do proletariado revolucionário, precisamente
depois da primeira revolução burguesa na Rússia (1905), a fim de preparar
a segunda revolução burguesa (fevereiro de 1917) e, logo em seguida, a,
revolução socialista (outubro de 1917) 43.

Portanto, engana-se também aqueles que acreditam que a combinação das formas
de luta, a luta político-eleitoral, bem como a atuação nos parlamentos está restrita a
momentos de ascenso da luta de massa. A experiência bolchevique demonstra, que
as formas de luta político-eleitoral, parlamentares podem ser utilizadas em diversos
momentos da luta política, de ofensiva ou defensiva, e que inclusive em momentos
específicos de ascenso de massas, pode ser benéfico ou conveniente ao
proletariado boicotar estas instituições.

Lenin, ainda no Esquerdismo, ao refletir sobre a história do bolchevismo, em


especial a polêmica travada contra os “bolcheviques de esquerda”, no período de
1908-1914, afirmou a combinação obrigatória das diversas formas de luta como um
elemento decisivo para a consolidação do núcleo dirigente do partido:

Hoje, quando se considera retrospectivamente esse período histórico já


encerrado por completo, cuja ligação com os períodos posteriores já se
manifestou plenamente, compreende-se com extrema clareza que os
bolcheviques não teriam podido conservar (já não digo consolidar,
desenvolver e fortalecer) o núcleo sólido do partido revolucionário do
proletariado durante os anos 1908/1914, se não houvessem defendido, na
mais árdua luta, a combinação obrigatória das formas legais com as ilegais,
a participação obrigatória num parlamento ultra-reacionário e numa série de
instituições regidas por leis reacionárias (associações de mútuo-socorro,
etc)44.

Por fim, em julho de 1920, durante o 2º Congresso da Internacional Comunista,


Lenin polemiza novamente acerca da participação nos parlamentos burgueses,
desta vez com dirigente comunista italiano, Amadeo Bordiga:

Dizem que perdemos muito tempo ao participar na luta parlamentar. Haverá


uma outra instituição que interesse tanto todas as classes como o
Parlamento? Não podemos criar isso artificialmente. Se todas as classes

42 LENINE, V. I. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em:


https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm Acesso em 24 de novembro de 2019.
43 LENINE, V. I. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm Acesso em 24 de novembro de 2019.
44 LENINE, V. I. Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm Acesso em 24 de novembro de 2019.

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são levadas a participar na luta parlamentar, é porque os interesses e os
conflitos de classe se refletem no parlamento. Se fosse possível organizar,
de imediato, em todo o lado, por exemplo, uma greve geral decisiva capaz
de derrubar de um só golpe o capitalismo, a revolução estaria feita em
vários países. Mas é preciso ter em conta a realidade, e o Parlamento é
sempre a arena da luta de classes. O camarada Bordiga e aqueles que
partilham o seu ponto de vista devem dizer a verdade às massas. A
Alemanha é o melhor exemplo de que é possível uma fração do Partido
Comunista no Parlamento e por isso devereis dizer claramente às massas:
somos muito fracos para constituir um partido solidamente constituído. Esta
é a verdade que seria preciso dizer. Mas se reconheceis a vossa fraqueza
perante as massas, elas tornar-se-ão não vossas amigas, mas vossas
adversárias, e ligar-se-ão ao parlamentarismo. Se dizeis: "Camaradas
operários somos tão fracos que não podemos criar um partido
suficientemente disciplinado para obrigar os deputados a submeter-se à sua
vontade", os operários abandonar-vos-ão porque dirão: "Como poderemos
nós instaurar a ditadura do proletariado com pessoas tão fracas?"45.

Como que a Consulta Popular, uma organização revolucionária que pretende


conquistar o poder de Estado secundarizou por tanto tempo a luta parlamentar?

b) A experiência da FMLN.

Outra experiência bastante rica no tocante a combinação das diversas formas de


luta, dentro de uma estratégia revolucionária de conquista do poder de Estado, é a
da Revolução Salvadorenha. Embora não vitoriosa, durante um período de 20 anos,
as diversas organizações que integraram a Frente Farabundo Martí de Libertação
Nacional – FMLN, tiveram que combinar as diversas formas de luta, em meio a uma
guerra civil, alternando momentos de maior e menor abertura política, de luta
armada e participação nos processos eleitorais.

Após a ofensiva militar de 1989, e a situação de impasse político e equilíbrio de


forças na sociedade, a FMLN ainda obteve um papel destacado na conquista dos
Acordos de Paz de 1992, evitando a marginalização da luta política e a perda de
seus aliados democráticos. Fato político importante, se considerarmos parte das
organizações guerrilheiras em nosso continente que permaneceram em armas após
a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.

Segundo, um dos seus principais dirigentes, Schafik Hándal, a experiência das


revoluções triunfantes na América Latina, e da própria FMLN é preciso “renunciar a
ideia de seguir contrapondo a luta armada a luta política, senão porque as formas
não armadas de luta política são também formas de violência revolucionária,
independentemente do grau de acirramento com que esta se exerça”.

Neste sentido, mesmo os processos eleitorais podem ocorrer em contextos de


guerra tais como na Nicarágua e em El Salvador, como também em momentos de

45 LENINE, V. I. Discurso Sobre o Parlamentarismo. Disponível em:


https://revolucionrusa.net/index.php/articulos-v-i-lenin/150-discurso-acerca-del-parlamentarismo Acesso em
24 de novembro de 2019.

38
relativa paz, esta forma de luta pode expressar formas de violência revolucionária. O
que fica evidente se observarmos a experiência recente da Revolução Bolivariana.

Hándal, ainda afirma que as forças conservadoras e reacionárias utilizam os


diversos processos eleitorais, mesmo que restritos e fraudulentos, para fortalecer
suas posições políticas na sociedade e isolar e marginalizar as organizações
revolucionárias:

Durante um longo período do processo de luta pela revolução em nosso


país, a luta armada e a luta política se contrapuseram, em meio a um
grande debate e a um grande confronto entre as forças revolucionárias,
devido a qual, sobretudo durante os anos de guerra, as forças
contrarrevolucionárias recorreram a luta eleitoral para fortalecer suas
posições políticas e atrair aliados. A vida foi demonstrando que ambas as
formas de luta não só era compatíveis, senão que era necessário combiná-
las com precisão, pois de outro modo não era possível atrair uma série de
aliados democráticos, cujo interesse político principal é a luta eleitoral.
Interesse que devíamos respeitar e estimular, e sem o qual não poderíamos
isolar nossos inimigos, dentro do exército e do governo46.

Outro elemento político importante do pensamento de Hándal, e da experiência da


FMLN, é a compreensão de que a questão do poder político, se coloca de diferentes
formas de acordo com o regime político, mesmo nos marcos de um estado burguês.
E quando enfrentamos o debate acerca da via mais provável para o triunfo da
revolução é fundamental precisarmos o peso de cada forma de luta, em cada
momento político:

(…) A via da revolução consiste na aplicação simultânea de distintas formas


de luta em sua profunda e inteligente integração, partindo do fato objetivo de
que uma delas se transforma em principal durante um período mais ou
menos longo e as outras em secundárias, porém não de forma estanque, de
modo que a que tem sido principal deixa de sê-lo e as outras passam a ser
prioritárias e principais47.

Este elemento deve-se a uma particularidade da Revolução Salvadorenha, na qual o


desenlace da guerra revolucionária e a dualidade de poderes por ela criada, não
resolveu de forma clássica o problema do poder, com a derrota militar das forças
conservadoras, a destruição do antigo aparelho burocrático e militar, e a constituição
de um governo popular revolucionário. Fato que obrigou as forças revolucionárias a
disputar os Acordos de Paz, a construir uma nova institucionalidade mais
democrática, e a preparar a organização revolucionária a desenvolver e combinar
outras formas de luta, tais como a luta político-eleitoral com a mobilização de
massas. Aspecto inédito na história política de El Salvador, devido ao alto grau de
repressão política.

46 HÁNDAL, Schafik. La lucha política electoral – desde una perspectiva revolucionaria. Ediciones Instituto
Schafik Hándal. San Salvador. 2015. P. 11.
47 HÁNDAL, Schafik. La lucha política electoral – desde una perspectiva revolucionaria. Ediciones Instituto
Schafik Hándal. San Salvador. 2015. P. 11.

39
Ou seja, nos marcos de um regime político minimamente democrático, mesmo com
uma democracia burguesa limitada e frágil, a luta pela Revolução Democrática – ou
dentro da ordem, como nos dizia Florestan - ganha um aspecto fundamental, tanto
na defesa dos interesses populares mais imediatos, bem como no objetivo
democratizar as parcelas de poder político que as classes dominantes não põem em
disputa no processo eleitoral, tais como o judiciário e as forças armadas.

Por fim, Schafik Hándal ainda identifica o potencial revolucionário das eleições:

Neste sentido, devemos ver as eleições como um meio para ascender ao


poder temporal48, ou a partes do mesmo, e desde aí, avançar no
aprofundamento das mudanças institucionais e estruturais em geral. Sem
dúvida, a luta política do FMLN não se reduzirá a pura luta parlamentar e
eleitoral, senão que o FMLN se colocará à cabeça e promoverá a luta
permanente do povo na defesa dos seus interesses e do fortalecimento da
democracia política, social e participativa. A luta eleitoral, ademais deve
desenvolver-se em função da ampliação da organização social e
fortalecendo o protagonismo da sociedade civil, de maneira que o exercício
do poder não se reduza a puros atos de governo 49.

2. A Consulta Popular enquanto crítica ao rebaixamento estratégico do Partido


dos Trabalhadores.

O surgimento da Consulta Popular em 1997, produto do ascenso de massas da luta


camponesa durante a década de 90, aglutinou um conjunto de militantes e
organizações populares da chamada “esquerda social” críticos ao rebaixamento
estratégico do Partido dos Trabalhadores. Por iniciativa do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, em um contexto marcado por forte ofensiva
neoliberal, se constitui uma organização com o objetivo central de recuperar um
projeto de transformações estruturais para o país, o que chamamos projeto popular
para o Brasil.

Em nossos documentos históricos criticávamos a compreensão hegemônica na


esquerda brasileira que identificava “os processos eleitorais como única forma de
fazer política”. “A esquerda, majoritariamente, deixou de acreditar no sonho da
libertação” e o que era tático, a luta político-eleitoral, transformou-se em estratégico.

Em outro parágrafo afirmamos:

“a ideia de futuro passou a ser construída dentro das regras e espaços


permitidos pelo pensamento dominante, sempre como resultante da soma,
ou da sucessão, de operações de curto prazo, tanto na economia, como na
política. Nesta lógica, as estratégias não contemplam descontinuidades,
mutações e principalmente rupturas. Aceitou-se passivamente que os
conceitos de Revolução, Imperialismo e Luta de Classes fossem

48 Hándal utiliza o conceito de poder temporal para referir-se a parcelas do aparato de estado burguês, que são
possíveis de ser disputados através dos processos eleitorais, tais como o poder executivo e o legislativo.
49 HÁNDAL, Schafik. La lucha política electoral – desde una perspectiva revolucionaria. Ediciones Instituto
Schafik Hándal. San Salvador. 2015. P. 12.

40
desqualificados como ultrapassados e a ação política se limitasse a lógica
do possível50”.

Em nossas formulações também identificávamos os fatores que condicionaram o


rebaixamento estratégico do PT, foram eles:

a) A incompatibilidade entre o ascenso de massas no Brasil e na América Latina


com o refluxo iniciado nos países centrais;
b) O fim da URSS e a queda dos países socialistas do Leste Europeu;
c) A reestruturação produtiva e o enfraquecimento do movimento sindical;
d) A ofensiva neoliberal e a blindagem do estado;
e) a hegemonia neoliberal nos valores;
f) o poder da mídia e do financiamento empresarial influenciando na disputa interna
do PT

Somado a estes fatores internacionais, algumas características e mudanças internas


no PT, fizeram com que concepções reformistas, antes minoritárias, se tornassem
hegemônicas dentro do partido:

a) uma certa indefinição acerca do caráter do estado brasileiro;


b) o esvaziamento do papel dos núcleos partidários;
c) a concepção da democracia como um valor universal.

O resultado desse processo fez com que o PT paulatinamente, durante a década de


90, abandonasse seu projeto estratégico estabelecido em seu V Encontro Nacional,
realizado em 1987, sintetizado no “programa democrático e popular”. As formulações
do PT em seu V Encontro representavam um salto de qualidade na esquerda
brasileira, em relação ao ciclo anterior hegemonizado pelo PCB, combinando a luta
por transformações estruturais da sociedade brasileira com a construção do
socialismo:

"(...) Na luta pelo socialismo, é preciso distinguir dois momentos


estratégicos que, apesar de sua estreita relação de continuidade, são de
natureza diferente. O primeiro diz respeito à tomada do poder político. O
segundo refere-se à construção da sociedade socialista sobre as condições
materiais, políticas etc. deixadas pelo capitalismo." E mais adiante: "nas
condições do Brasil, um governo capaz de realizar as tarefas democráticas
e populares, de caráter anti-imperialista, antilatifundiário e antimonopólio –
tarefas não efetivadas pela burguesia – tem um duplo significado: em
primeiro lugar, é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo
e a ordem burguesa, portanto, um governo hegemonizado pelo proletariado,
e que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; em segundo
lugar, a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção
concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da
economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas
condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de

50 GEBRIM, Ricardo. Sobre o instrumento político. Disponível em:


http://www.consultapopular.org.br/biblioteca/sobre-o-instrumento-pol%C3%ADtico . Acesso em 24 de
novembro de 2019.

41
uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático popular, e,
o que é mais grave, criando ilusões, em amplos setores, na possibilidade de
uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular 51

Vale destacar, que no referido período a posição do PT perante o Parlamento


também era bastante distinta da atual. Produto do ascenso de massas da década de
80, as formulações do PT expressavam a crítica ao projeto de abertura da Ditadura e
a chamada transição lenta, gradual e segura. Isso enriqueceu a compreensão do
partido acerca da luta parlamentar, materializada na campanha pelas Diretas Já, ao
boicote ao Colégio Eleitoral e a participação popular na Constituinte.

De acordo com os documentos históricos do PT, a posição que os trabalhadores


assumem frente a este aparelho do Estado capitalista “não é fixa e imutável”, mas
que depende do “momento histórico, da correlação de forças, do tipo de estrutura
política vigente”. Em alguns momentos os trabalhadores optarão por boicotar o
processo eleitoral e “pela negação completa da luta parlamentar”, em outros
“investirão nela com bastante intensidade”, ou dedicarão somente “parte das suas
energias”.

Tampouco, o PT confundia a conquista destes espaços institucionais no legislativo e


no executivo com a conquista do poder político pela classe trabalhadora.

“A conquista de espaços no Executivo e no Legislativo nos diferentes níveis


só pode concorrer para a mudança da estrutura de poder se os
trabalhadores forem capazes de sustentar uma correta articulação travada
entre as lutas travadas no interior desses organismos com as lutas
fundamentais que se desenrolam fora deles. A participação do PT nas
eleições não nos deve levar a confundir a conquista de executivos estaduais
e municipais como sendo a conquista do poder. Mas eles devem servir
como alavanca na organização e mobilização dos trabalhadores na
perspectiva da construção do poder popular. É uma etapa de aprendizado,
de acúmulo de forças, de propaganda em torno de um programa de
transformações, de conquista de espaço mais amplo para o fortalecimento
da organização política dos trabalhadores, de mais respaldo para as lutas
sociais52.

Portanto, a Consulta Popular se constitui enquanto organização, num momento


muito específico da luta dos trabalhadores no mundo inteiro. A queda do Muro de
Berlim e o fim da União Soviética, impactaram fortemente as organizações
revolucionárias, fazendo com que muitas destas abandonassem seu horizonte
estratégico de transformação estrutural da sociedade e a construção do socialismo.
Como efeito colateral deste processo, a secundarização da formação de quadros, do
trabalho popular, e a centralidade quase que exclusiva na luta eleitoral.

51 GADOTTI, Moacir. Pra que PT? Origem, Projeto e Consolidação do Partido dos Trabalhadores. Editora
Cortez. São Paulo. 1989.
52 GADOTTI, Moacir. Pra que PT? Origem, Projeto e Consolidação do Partido dos Trabalhadores. Editora
Cortez. São Paulo. 1989. P. 233.

42
3. A luta político-eleitoral na CP em perspectiva histórica.

Da crítica ao rebaixamento estratégico do Partido dos Trabalhadores, não tardou a


que nós da Consulta Popular, concentrássemos nossa crítica à forma de luta
predominante na esquerda brasileira do período. Embora correta e verdadeira, a
crítica a centralidade da luta eleitoral em detrimento da luta de massas, fez com que
cristalizássemos uma posição de negação/abstenção perante a esta forma de luta.
Como fica evidente num documento de 2001, no qual afirmávamos:

O que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. Assim enquadradas, as


eleições têm sido um momento privilegiado para difundir maciçamente a
ideologia conservadora. Em nada contribuem para desenvolver o sentido
crítico do povo em relação ao sistema e fortalecer sua capacidade de
mobilização, ou seja, sua vontade de tomar para si a construção do
próprio destino. Se não há grandes alternativas em jogo, então não há
lugar para engajamentos coletivos movidos a entusiasmo e esperança 53.

Esta posição fez com que, ao longo da década de 2000, abdicássemos de incidir nos
diversos processos eleitorais ocorridos, nos restringindo a nos posicionar nos
segundos turnos das eleições presidenciais de 2006 e 2010. Em nossa III Plenária
Nacional João Cândido, menosprezamos as diferenças entre as candidaturas Dilma
e Serra, nos limitando a caracterizá-las como capitalistas, e concluindo que – se
ambas são capitalistas – o projeto popular não estava em disputa no processo
eleitoral. Para piorar, orientamos nossa militância a “aproveitar o momento eleitoral
para promover a agitação e propaganda dos pontos programáticos do Projeto
Popular”.

Olhando de forma retrospectiva, nossas posições acerca da luta eleitoral são


estapafúrdias, típicas do esquerdismo. Fato que só começamos a alterar em 2012,
com a nossa 4ª Plenária Soledad Barret, e com a elaboração da teoria da frente
neodesenvolvimentista, que nos possibilitou ter uma compreensão mais complexa
da luta de classes no Brasil, os diversos interesses de classe e frações de classe,
bem como as contradições entre o projeto neodesenvolvimentista e o neoliberal.

Com a campanha da Constituinte, pela primeira vez, incidimos de forma mais


qualificada no processo eleitoral, combinando a mobilização popular com a eleição
da presidenta Dilma. Apesar disso, não apresentamos candidaturas próprias, e
confiamos que os parlamentares de outras organizações teriam compromisso com
aquela bandeira política.

Após esse breve histórico, faz-se necessário que nós enquanto organização política,
façamos a devida autocrítica:

53 GEBRIM, Ricardo. Sobre o instrumento político. Disponível em:


http://www.consultapopular.org.br/biblioteca/sobre-o-instrumento-pol%C3%ADtico . Acesso em 24 de
novembro de 2019.

43
1) menosprezamos a importância da luta político-eleitoral, assumindo perante a
mesma uma postura negativista/abstencionista;
2) Deveríamos ter lançado candidaturas próprias em 2014, combinando de forma
mais incisiva a campanha da Constituinte com o processo eleitoral;
3) Terceirizamos a outras organizações a nossa representação política, não forjando
novas lideranças de massa para incidir no processo de reorganização da esquerda
brasileira.

4. Desafios da Consulta Popular na luta político-eleitoral.

Com o golpe parlamentar que afastou Dilma da presidência da República, a prisão


de Lula e a eleição de Bolsonaro, um conjunto de novos desafios se colocaram para
o conjunto das forças populares no Brasil. A derrota que sofremos impõe
repensarmos o nosso debate estratégico, refletindo acerca de qual o lugar da luta
político-eleitoral em nossa estratégia enquanto organização.

Ao mesmo tempo, precisamos aperfeiçoar a nossa compreensão do estado burguês,


seus mecanismos de dominação, as diferentes formas regime político, as formas de
estado de exceção, bem como suas contradições internas, e como desenvolver a
luta político-eleitoral dentro de uma estratégia revolucionária.

Diante deste cenário se colocam um conjunto de reflexões. São questões complexas


que precisaremos refletir coletivamente. No entanto, é possível iniciarmos um debate
acerca das questões acima.

a) É o momento de fazermos experiências parlamentares?

Acredito que sim. Inclusive acreditamos que deveríamos tê-lo feito enquanto
experiência em 2014, combinando a campanha pela Constituinte com o processo
eleitoral. Além disso, hoje já temos maturidade organizativa o suficiente para
combinarmos essa forma de luta, sem sermos cooptados pela institucionalidade
burguesa.

b) Quais nossos objetivos com a luta político-eleitoral?

Nosso principal objetivo com a luta político-eleitoral é acumular forças para o projeto
popular, isso significa atuar no parlamento como tribunos/as na defesa dos
interesses populares, na defesa das liberdades democráticas e contribuir para o
fortalecimento da organização popular. Forjar novas lideranças de massa, que
possam incidir na reorganização da esquerda brasileira, retomando o debate acerca
de uma estratégia revolucionária para o país.

c) Por qual(is) outro(s) partido(s) devemos disputar as eleições?

44
Independente de qual partido devemos filiar militantes com a tarefa da luta
parlamentar, é fundamental os compreendermos como frentes eleitorais. Ou seja,
não devemos, pelo menos neste momento, nos transformar em uma tendência
interna de outra organização, muito menos diluirmos a Consulta Popular. A
tendência predominante é que utilizemos o PT para lançar nossas candidaturas,
sobretudo pela inserção no seio da classe trabalhadora. No entanto, devemos
avaliar cada situação política nos estados.

d) Quais questões se apresentam para nossa política de alianças?

Com a construção da Frente Brasil Popular, ampliamos nossa política de alianças


nos estados, com destaque para parcelas do movimento sindical cutista e com
parcelas do PT. Precisamos ter habilidade para preservá-las. Não nos interessa
retrocedermos neste aspecto. Ao mesmo tempo, precisamos envolver o nosso
campo político do projeto popular na construção/direção dessas possíveis
candidaturas. A Consulta Popular sozinha é insuficiente para incidir nesse processo
de forma efetiva. Somente com a força das organizações do nosso campo político
teremos condição de ter êxito nessa empreitada.

5) Quais riscos devemos evitar e quais desvios devemos combater?

Assim como toda forma de luta, a luta político-eleitoral pode trazer uma série de
riscos e desvios. O primeiro risco é que os parlamentares ganhem autonomia frente
a organização política. Outros desvios são a institucionalização, a burocratização, a
cooptação, o personalismo, etc. Não há remédio de antemão para esses riscos e
desvios, somente uma organização sólida tem a capacidade de manejar as
diferentes formas de luta. Teremos que ter a firmeza necessária enquanto
organização para centralizarmos nossos parlamentares, bem como combatermos os
referidos desvios.

45
________________________________________________________________________

Ode à Luta Interna


Herick Argôlo

46
Glória à luta interna. Pois, sem ela, a consciência revolucionária não progride. Só
com o progresso da consciência dos militantes da vanguarda pode haver revoluções
vitoriosas e a libertação dos povos. O materialismo dialético é, ao mesmo tempo, o
fundamento e o guia da luta interna.

1. Movimento e Dialética

Na vida, tudo está em movimento. Neste momento, seus neurônios estão


transmitindo informações entre si por meio de impulsos elétricos e reações químicas.
Seu sangue está em fluxo constante, passando por órgãos, tecidos e células, que
por sua vez estão desenvolvendo outros tipos de atividade. Os objetos ao seu redor,
por mais estáticos que pareçam, estão se degradando de modo ininterrupto. Os
inúmeros átomos que formam seu corpo e toda matéria presente no mundo estão se
movendo, assim como as inquietas partículas que o constituem. A América do Sul e
todas as imensas massas de terra denominadas continentes estão em contínuo
deslocamento. O planeta Terra está, agora, girando em torno de si, ao mesmo
tempo que gira em torno do Sol, também este em movimento de rotação. Não só
eles, mas todos os corpos celestes se movem no espaço e, conforme as
descobertas astronômicas, o próprio Universo está em expansão. Como disse
Engels, “o movimento é o modo de existência da matéria. Nunca, em parte
nenhuma, houve matéria sem movimento, nem pode haver”54.

No seu movimento, a matéria se desenvolve e se transforma. Nos primeiros anos do


universo, aproximadamente 13,5 bilhões de anos atrás, o hidrogênio e o hélio foram
os primeiros e únicos átomos a se formar. Posteriormente, eles deram origem a
estrelas, que geraram outros elementos através de pressões enormes, e um dia
explodiram e desenvolveram todos os outros átomos que compõem todas as coisas
no mundo, inclusive você. Em algum momento, você dará seu último suspiro e seu
corpo vai se decompor, e os cientistas calculam que em 5 bilhões de anos o Sol
vivenciará sua explosão. Do mesmo modo que os elementos da tabela periódica, a
espécie a qual você pertence nem sempre existiu tal como se apresenta. Os estudos
e as observações científicas de Charles Darwin permitiram concluir que o “homo
sapiens” e todas as espécies do planeta evoluíram a partir de outros seres. Você
tem uma avó longínqua que é irmã de um ancestral de chimpanzé. E seus ancestrais
mais antigos eram seres aquáticos.

Esse movimento, desenvolvimento e transformação da matéria não é aleatório, mas


é regido por leis. Darwin observou e estudou as leis que determinavam o
desenvolvimento e transformação das espécies. Albert Einstein revolucionou a física
ao descobrir as leis que regem a interação entre a matéria, o espaço e o tempo. Karl
Marx desvendou as leis que impulsionam o desenvolvimento da história55. Para

54“Anti-Dühring”, Friedrich Engels.


55 Em seu discurso diante da sepultura de Marx, disse Engels, "assim como Darwin descobriu a lei do
desenvolvimento da natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana".

47
compreender a fundo o mundo, é preciso compreender os aspectos gerais dessas
leis, o que começou a ser feito pelo desenvolvimento da dialética. “A dialética é a
ciência das leis gerais do movimento”56.

Historicamente, a concepção dialética do mundo foi e continua sendo contestada ou


obscurecida por outra concepção antagônica a ela, a metafísica. Para essa
concepção, as coisas são eternas e imutáveis, fixas e acabadas. O desenvolvimento
da matéria se daria apenas por alterações quantitativas, sem alteração de qualidade,
por meio de causas externas. Nas palavras de Lenin, “as duas concepções
fundamentais (as duas possíveis ou as duas historicamente observadas) do
desenvolvimento (evolução) são: desenvolvimento no sentido de diminuição e
aumento, como repetição, e desenvolvimento no sentido da unidade dos contrários
(a divisão da unidade em dois polos mutuamente excludentes e a relação entre
eles)”57.

O confronto entre essas concepções remonta à antiguidade. Na Grécia Antiga,


Heráclito, considerado o pai da dialética, concebia um mundo em movimento e
transformação, "tudo flui e nada permanece". Por sua vez, Parmênides definia a
natureza como imóvel e imutável, “toda a mutação é ilusória”. A metafísica continua,
até hoje, se impondo às cabeças de modo dominante, sob a forma de ideologia.
Porém, o progresso da ciência nas mais diversas áreas possibilitou demonstrar, de
modo irrefutável, o caráter anticientífico dessa concepção.

Podemos citar como leis da dialética, observáveis na natureza, a lei da


transformação da quantidade em qualidade e a lei da contradição. Em um exemplo
clássico da primeira, a água em estado líquido aquecida até certa temperatura
permanece em estado líquido. Porém, a partir de 100ºC, em condições normais de
temperatura, o líquido vira vapor. Assim, o estado de agregação da água muda
quantitativamente até certo ponto, quando salta para uma mudança qualitativa. Por
sua vez, a lei da contradição é “o cerne da dialética”, como disse Lenin58. A
contradição no interior de cada fenômeno é o motor do movimento. É a combinação
e a dissociação de átomos, por exemplo, que move os processos químicos. Na
biologia, Darwin descobriu na contradição entre a luta pela sobrevivência e a
hostilidade do meio ambiente a causa da evolução das espécies. Einstein encontrou
a causa da gravidade na contradição entre a massa e a deformação que produz no
espaço. E Marx demonstrou que a luta entre opressores e oprimidos é o motor da
história.

A dialética ganhou uma nova qualidade com Hegel, no início do século XIX. Diante
da filosofia hegeliana, “nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que

56 “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Friedrich Engels.


57 “Sobre a questão da dialética”, Lenin.
58 “Sobre a questão da dialética”, Lenin.

48
há de transitório em tudo que existe”59. Hegel buscou demonstrar a existência de um
fio condutor do desenvolvimento. “No sistema hegeliano, pela primeira vez – e este é
seu grande mérito – encontra-se descrita uma compreensão de todo o mundo
natural, histórico e espiritual como processo, isto é, como movimento, mudança,
transformação e desenvolvimento constantes, e no qual se faz a tentativa de
demonstrar o nexo interior existente nesse movimento e desenvolvimento” 60.

Porém, os limites da sua filosofia se esboçavam na medida em que atribuía às ideias


o papel criador do mundo. Para Hegel, a natureza seria a exteriorização da ideia, o
seu produto, a sua derivação. Coube a Marx e a Engels enfrentar, frontalmente, a
questão da relação entre o ser e o pensamento para romper com o idealismo de
Hegel e, assim, fundar uma nova filosofia. Uma filosofia que tem como função não
só guiar uma interpretação científica do mundo, mas transformá-lo.

2. Materialismo e Conhecimento

De onde vem nosso conhecimento? De acordo com o idealismo, sustentado por


Hegel, as ideias nasceriam a partir das próprias ideias. Elas existiriam por si
mesmas, independentemente do mundo natural. Não somente isso, mas a ideia
seria o próprio sujeito que moldaria o mundo61. Marx e Engels rechaçaram o
idealismo, de modo sistemático, na sua obra “A ideologia alemã”. Desde então,
passaram a erguer solidamente o materialismo. O cerne do materialismo marxista
pode ser resumido na seguinte sentença, “não é a consciência que determina a vida,
é a vida que determina a consciência”62.

É a partir do ser, do mundo, da vida, enfim, da prática que a consciência dos seres
humanos é moldada, e é da prática que extraímos nossas ideias e conhecimentos.
Há variadas formas de prática social, como a luta pela produção, a luta de classes,
os experimentos científicos e a atividade artística, que impulsionam o
desenvolvimento do conhecimento. Mas é a primeira, a atividade dos seres humanos
na produção material para a solução dos problemas da vida, que constitui a prática
fundamental que impulsiona e determina a consciência e o progresso do
conhecimento63.

Para nos mantermos vivos, devemos atender certas necessidades. Comer é um dos
exemplos mais elementares. Os humanos, impulsionados pela necessidade, usavam
pedras para abater animais menores e cortar sua carne. Do uso repetido da pedra,
chegaram à fabricação do machado. Ao longo dos anos, ao modificar a natureza, a

59 “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Friedrich Engels.


60 “Anti-Duhring”, Friedrich Engels.
61 “Hegel era idealista, isto é, as ideias em sua mente não equivaliam, para ele, a retratos mais ou menos

abstratos das coisas e dos processos reais, mas, em vez disso, as coisas e seu desenvolvimento eram apenas
retratos realizados da ‘ideia’ que já existia em algum lugar antes do mundo”, “Anti-Dühring”, Friedrich Engels.
62 “A ideologia alemã”, Karl Marx e Friedrich Engels.
63 Ver “Sobre a Prática”, Mao Tsé-Tung.

49
percepção dos seres humanos sobre o mundo foi se expandindo e se elevando. Os
humanos dominaram o fogo, domesticaram animais, aprenderam como e quando
semear e colher, criaram a escrita, fabricaram o aço, inventaram a máquina a vapor,
manipularam vacinas, lançaram foguetes ao espaço, desenvolveram computadores
que cabem no bolso. Na luta que os seres humanos travam com a natureza para
assegurar sua existência, aprendem a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente.

Como bem apresentou Mao Tsé-Tung no texto “Sobre a Prática”, o processo do


conhecimento começa com o grau do conhecimento sensível. Os fenômenos com os
quais nos deparamos na nossa prática social são percebidos através dos nossos
órgãos do sentido. Eles criam imagens, sons e sensações que são refletidos na
nossa consciência. Esse reflexo é, até então, o da aparência. Ocorre que a
aparência revela, mas também esconde a essência das coisas. Esse reflexo é
incompleto, isolado, unilateral. Não representa, ainda, a essência dos fenômenos.
Esse é o primeiro grau do conhecimento.

A reiteração da prática social e dos fenômenos possibilita um salto no processo do


conhecimento, a formulação dos conceitos a partir da realidade. Os conceitos
conseguem captar os fenômenos em sua essência, em seu conjunto e conexões
internas. A partir de então, é possível desenvolver o conhecimento através de
métodos de juízo e dedução. Esse é o segundo grau do conhecimento, o grau do
conhecimento lógico ou racional.

Quem quer que olhe a trajetória do Sol no céu, desde que nasce até quando se põe,
e se retenha nessa percepção sensível, pode se enganar e imaginar que ele gira em
torno da Terra. Foi essa a visão, inclusive, que predominou durante muito tempo.
Somente no século XVI, Nicolau Copérnico fez uma série de observações dos
movimentos dos corpos celestes que lhe permitiram romper com essa ideia e saltar
para o grau do conhecimento racional. Ele concluiu que a órbita dos planetas não
condizia com o geocentrismo e chegou à representação de um novo modelo no qual
os planetas é que giram em trono do Sol. Assim, pôde compreender, também, que
os dias e as noites são originados por um movimento de rotação da Terra.

Através da observação e estudo de determinada prática social, a luta de classes,


Karl Marx chegou à concepção que o que move a luta política, essencialmente, são
os interesses de classe. Em “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”, Marx operou
com a importante noção de cena política para demonstrar que, por trás das cortinas
da aparência dos conflitos, na França, entre legitimistas e orleanistas, monarquistas
e republicanos, havia conflitos de interesses mais profundos entre as frações
burguesas. Eram esses interesses que determinavam, de fato, a ação dos atores
políticos.

O processo de desenvolvimento do conhecimento requer, ainda, que o


conhecimento seja aplicado na prática social, quando será possível confirmar ou não

50
a sua correção, pois “a prática é o critério da verdade”64. Os machados de pedra
fabricados pelos humanos se provaram mais eficientes na prática de caçar e cortar
alimentos. O modelo de Copérnico, apesar de rudimentar, se mostrou correto em
sua essência diante da prática científica posterior, e foi desenvolvido e aprimorado
por Galileu, Kepler, dentre outros. A Revolução Russa de 1917 foi a aplicação bem-
sucedida das teorias do marxismo-leninismo na prática da luta de classes. Assim, é
preciso pôr o conhecimento à prova da prática para, então, verificar se reflete
corretamente as leis da realidade objetiva e comprovar sua justeza, ajustá-lo ou
refutá-lo. Como diz o companheiro Ranulfo Peloso, “quem sabe como fazer, mas
nunca fez, ainda não sabe”65. Da prática ao conhecimento e do conhecimento à
prática, sempre elevando o conhecimento e a prática.

Há dois desvios frequentes da teoria marxista do conhecimento na luta


revolucionária. O primeiro é o chamado dogmatismo, que trata o marxismo-leninismo
como uma teoria acabada e dispensa a importância do conhecimento sensível, da
análise concreta da situação concreta, ou seja, da prática, para o conhecimento da
realidade. O segundo é o empirismo, que não compreende que para se alcançar o
verdadeiro conhecimento dos fenômenos é necessário elevar-se da sensação à
teoria, desvelar a essência a partir da aparência, isto é, saltar do conhecimento
sensível para o conhecimento lógico.

Como já destacamos em outro momento66, a ideologia movimentista no interior da


Consulta Popular determina um rebaixamento do papel da teoria na nossa
organização, que é tratada como um mero meio de abastecer de ânimo os
militantes. Isso nos inclina para equívocos comuns ao empirismo. Como reduzir a
análise política ao comentário dos fatos políticos imediatos, sem poder dela extrair
as consequências necessárias para a ação. O ecletismo, ou seja, o convívio pacífico
e irrefletido de teorias que não guardam coerência entre si, o que nos empurra para
uma política errática. E a desvalorização e repúdio da luta interna na organização, a
qual será aqui tradada de modo mais detido.

É fácil imaginar que, quando pretendemos chegar a um local difícil, o menos


recomendável é sair caminhando à esmo. Na luta revolucionária, ainda que
trabalhemos com muito afinco e imbuídos das melhores intenções, somente munidos
da teoria é possível conhecermos o caminho. Como assinalou Mao Tsé-Tung acerca
do empirismo, “(...) tudo o que, após ter surgido no processo do conhecimento na
base da prática, foi submetido a uma elaboração científica, reflete, como dizia Lenin,
o mundo objetivo de uma maneira mais profunda, mais justa, mais completa. É
justamente isso que os práticos ‘vulgares’ não compreendem. Eles se inclinam
diante da experiência e desprezam a teoria, em consequência de que não podem

64 Idem.
65 “Trabalho de Base”, Ranulfo Peloso.
66 Ver “Somos a Consulta Popular II”, Dalva Angélica, Durval Siqueira, Erick Feitosa, Herick Argôlo, Kevin

Ismerim, Cadernos de Debates nº 1, 2019.

51
abarcar o processo objetivo no seu conjunto, sofrem de falta de clareza de
orientação, de perspectiva larga, e se embriagam com seus sucessos ocasionais e
suas vistas curtas. Se esses indivíduos dirigissem a revolução, a conduziriam a um
beco sem saída” 67.

Para entender como é possível mudar a história em favor dos oprimidos, Karl Marx
precisou antes fundar uma nova filosofia, de caráter científico. Essa filosofia concebe
a natureza e a sociedade em seu incessante movimento e transformação, e o
conhecimento se formando e se desenvolvendo a partir da vida. A ela chamou
materialismo dialético. Com essa filosofia, deu fundamento à teoria que abre o
caminho para a transformação revolucionária da sociedade inteira. Enquanto o
marxismo é um guia para a ação, o materialismo dialético é o guia do conhecimento
científico68.

Como demonstra o materialismo dialético, na contradição entre o conhecimento e a


ignorância, impera inicialmente o segundo. Contudo, na prática social, a quantidade
de sensações se acumula e permite saltar à qualidade dos conceitos. Por sua vez,
esses podem ser desenvolvidos pelo pensamento teórico. Este é posto à prova na
prática, para que seja confirmado e aprimorado, ou refutado. Da sensação aos
conceitos, e de novo às sensações. Da aparência à essência, e de novo à
aparência. Da prática à teoria, e de novo à prática. Eis o processo de
desenvolvimento do conhecimento.

3. Luta Interna e Revolução

A luta interna é uma forma específica de prática social. Ela é a prática pela qual se
enfrenta as divergências políticas e se desenvolve a consciência dentro do partido
revolucionário. Como lembra Carlos Marighella, “a luta interna constitui a um só
tempo uma luta ideológica e teórica”69. Através dela, é possível superar desvios
ideológicos e o atraso entre o movimento da realidade e o seu conhecimento. “O
objetivo da luta interna — no seu aspecto teórico-ideológica — ou como luta teórico-
ideológica — é conseguir chegar a mudanças na cabeça dos homens, na
consciência dos militantes da vanguarda”70.

Desde a V Assembleia Nacional da Consulta Popular, em 2017, a conjuntura


internacional e brasileira se movimentou em uma velocidade e profundidade sem
precedentes para as gerações mais novas de lutadores. Os fatos transcorridos de lá

67 “Sobre a Prática”, Mao Tsé-Tung.


68 “Já se disse com acerto que o marxismo é um ‘guia para a ação’. Ele pode ser esse ‘guia’ porque não é um
falso guia, mas um guia verdadeiro, porque é uma ciência, e unicamente por este motivo. Digamos com todas
precauções requeridas por esta comparação que, em numerosas circunstâncias, também as ciências têm
necessidade de um ‘guia’, não de um guia falso, mas de um guia verdadeiro – e entre as ciências o próprio
materialismo histórico tem uma necessidade vital desse ‘guia’. Esse ‘guia’ das ciências é o materialismo
dialético”. Louis Althusser, “Teoria, prática teórica e formação teórica. Ideologia e luta ideológica”.
69 “Luta Interna e Dialética”, Carlos Marighella.
70 Idem.

52
para cá, por si só, demandam a necessidade de análises acuradas e um amplo
processo de debates na nossa organização. Os revolucionários devem seguir com
rapidez as modificações da situação objetiva e estar atentos às tendências. Caso
contrário, ficam a reboque dos acontecimentos e reféns da ação do inimigo,
incapazes de estabelecer a tempo as tarefas que correspondem a cada momento.
Como dizia Che Guevara, “a verdadeira capacidade de um revolucionário se mede
por sua habilidade de encontrar táticas revolucionárias adequadas para cada
mudança de situação”.

Esse quadro é agravado porque há profundas divergências políticas não


enfrentadas, há quase dois anos, dentro da nossa organização. Como temos dito71,
durante esse período, nós não temos dado consequência à derrota estratégica
sofrida pelas forças populares. Estamos sem uma linha que guie a ação dos
militantes da Consulta Popular, sempre a reboque das propostas de outras
organizações, como o MST e o PT, mesmo quando divergentes das nossas análises
políticas. Assim, a Consulta Popular vem deixando de ser o centro político que dirige
o trabalho dos seus próprios militantes. O movimentismo, um desvio ideológico que
marca a Consulta Popular desde o seu nascimento, vem se aguçando em seu
interior. Isso abre brechas para o reformismo, o vanguardismo, o pragmatismo e
outros desvios.

Recentemente, a Direção Nacional da Consulta Popular aprovou que estamos em


um “processo congressual”. Na situação em que nos encontramos, é preciso dar
máxima prioridade a esse processo e possibilitar que o todo da Consulta Popular
desenvolva o conhecimento da realidade política que enfrentamos. Assim, cada
militante será capaz de ajustar as suas tarefas e o seu trabalho às modificações da
realidade objetiva. O exercício franco da luta interna é a prática que permite que
tracemos a linha política necessária para esse período, além de possibilitar que
aprofundemos o longo combate ideológico que travaremos contra o movimentismo.
Marighella destacava que “o primeiro cuidado da luta interna é não trata-la como luta
entre inimigos”72. A luta interna, embora seja influenciada pela penetração da
ideologia burguesa na organização, não é o mesmo da luta de classes. Deve ser
uma luta fraterna, entre companheiros que estão em divergência política. Caso se
julgue que os erros de companheiros são graves, que põem em risco a
sobrevivência da organização, deve-se ser firme, sem dúvidas. Não se deve temer
ferir suscetibilidades individuais. Como dizia Che Guevara, “é preciso ser duro”. Ao
mesmo tempo, é preciso indicar e deixar livre o caminho para que corrijam seus
erros, sem perder o senso de camaradagem. Completava Che, “mas sem perder a
ternura, jamais”.

71 Ver “Somos a Consulta Popular II”, Dalva Angélica, Durval Siqueira, Erick Feitosa, Herick Argôlo, Kevin
Ismerim, Cadernos de Debates nº 1, 2019.
72 “Luta Interna e Dialética”, Carlos Marighella.

53
Um segundo cuidado é estar ciente que a luta interna não se trata de uma luta de
grupos, nem por poderio individual, mas uma luta em torno de ideias, em torno da
ideologia revolucionária e da teoria marxista-leninista. Assim, o compromisso de
cada revolucionário não deve se dar com indivíduos ou grupos, embora estes
possam, naturalmente, se formar e encarnar determinada posição em dado
momento. Mas o compromisso deve se dar, como princípio, em torno do
conhecimento preciso da realidade, da correta orientação teórica e ideológica, da
justeza da linha que daí decorre, enfim, em torno da verdade. O revolucionário deve
ter um compromisso inquebrantável com a verdade.

Em terceiro lugar, não se pode tratar a luta interna como uma disputa centrada no
controle burocrático das instâncias de direção da organização. Assim, a luta interna
não pode ter como objetivo liquidar a minoria, expulsar quadros da organização,
forçar cisões ou aplicar medidas de coação. “Quantas cisões não poderiam ter sido
evitadas se a expressão das minorias houvesse sido respeitada? Em vez disso,
muitas vezes se utilizou de todo o peso do aparelho burocrático para aniquilá-las,
não lhe deixando outra saída, a não ser a cisão” 73. Na luta interna, deve-se adotar
como método a crítica e autocrítica, e a exposição das ideias de forma clara,
transparente e fundamentada, buscando-se convencer os demais da correção delas
ou sendo convencido.

Um outro cuidado é não tratar a luta interna como uma quebra do centralismo
democrático. Deve-se estimular a mais ampla liberdade de crítica, para que a luta
interna se dê com o pleno exercício da democracia interna. Por outro lado, deve-se
cuidar para que não se venha a ferir a unidade de ações deliberadas pelo partido.
Por fim, o quinto cuidado é partir do princípio que dentro da organização não se
pode evitar ou restringir a luta interna. Buscar soluções fora do exercício da
democracia interna, do debate amplo, só estimula a intolerância. Por vezes, essa
atitude transforma problemas políticos em intrigas pessoais, fofocas, etc. Não se
pode aprisionar as ideias. Buscar silenciar minorias, exercer o controle burocrático
do debate, só pode levar à debilidade da unidade partidária ou até ao fim do
partido74.

A luta interna se fundamenta na concepção de que a matéria e a vida estão em


constante movimento, desenvolvimento e transformação. Que esse movimento é
regido pelas leis gerais descobertas pela dialética. E que, assim, a realidade objetiva
pode ser conhecida com o processo do conhecimento que parte da prática social ao
pensamento teórico, e de volta à prática. Sendo conhecida a teoria, deve ser usada
para transformar a realidade.

73“As minorias podem ter razão”, em “Ideias para a luta”, Marta Harnecker.
74 “Oposição e luta entre concepções diferentes surgem constantemente no seio do partido; é o reflexo, no
partido, das contradições de classes e das contradições entre o novo e o velho existentes na sociedade. Se no
partido não houvesse contradições e lutas ideológicas para resolver as contradições, a vida do partido cessaria”,
“Sobre a Contradição”, Mao Tse-tung.

54
No caso dos partidos revolucionários, a prática que permite ao conjunto dos seus
membros ultrapassar o reflexo incompleto, isolado e unilateral dos fenômenos
políticos e alcançar a essência deles, em seu conjunto e conexões internas, é a luta
interna. Os princípios que a guiam decorrem do materialismo dialético. Nas palavras
de Marighella, “só há um método correto a ser aplicado na luta interna, um único
método capaz de fazer avançar o partido no curso de tal luta, e este é o método
dialético-materialista”75.

O “processo congressual” da Consulta Popular deve contar com o máximo de


espaços estaduais e nacionais. Precisamos, através dos textos e debates, ouvir a
pluralidade de posições, desenvolver a compreensão a fundo das análises, críticas e
propostas, buscar sempre o convencimento e, ao final, se necessário, decidir através
de votações. A aplicação posterior da linha aprovada demonstrará ou não a sua
justeza, para que siga sendo aplicada ou seja posta de lado, sendo resgatada a linha
antes rejeitada. Como dizia Lenin, não há, nem pode haver, quem não cometa erros.
Errar não é um problema, o problema é persistir no erro.

Os momentos de graves crises políticas refletem em graves crises no mundo das


ideias. No início da década de 90, logo após o fim da União Soviética, foi lançado um
livro intitulado "O fim da história e o último homem", escrito pelo americano Francis
Fukuyama. O autor sustentava a inviabilidade do socialismo e que o capitalismo
seria o último estágio da história da humanidade. A sensação de que, de fato, a
história teria chegado a seu fim se alastrava e adentrou a fundo até os partidos de
esquerda. O livro foi traduzido para diversas línguas e milhares de exemplares foram
vendidos.

Nesses momentos de crise, como o atual, desconfia-se até das verdades mais
comprovadas. Não é por acaso que tem adquirido autoridade um sujeito como Olavo
de Carvalho, ideólogo do neofascismo, que deprecia a teoria da evolução de Darwin
em favor do criacionismo, defende o geocentrismo, dá holofotes a alegações de que
a terra seria plana, dentre outros. Por sua vez, as organizações revolucionárias,
apesar de se fundarem na ideologia popular, não ficam imunes aos assédios da
ideologia burguesa.

Com o auxílio do materialismo dialético, Marx fundou a ciência da história. Através


dela, demonstrou que a contradição das forças produtivas atravancadas pelas
relações de produção abre a possibilidade de revoluções. E que essa possibilidade
pode ser agarrada pelo proletariado, guiado pelos revolucionários, em luta contra a
burguesia. Assim, podemos dar um salto na história e transitar a outro modo de
produção, ao modo de produção socialista.

75 “Luta Interna e Dialética”, Carlos Marighella.

55
Deitando os olhos sobre o movimento de formação de todo o universo, da evolução
dos seres vivos e das sociedades, é muito medíocre imaginar que o capitalismo
representa, fatalmente, o ápice da história humana. Quem quer que duvide que o
mundo está aberto a revoluções, que observe a crisálida, que vai acumulando
pequenas mudanças até que, em uma revolução da vida, transforma-se em
borboleta. A vida é feita de revoluções. Não é possível decretar o fim da história.
Nenhuma derrota pode parar o tempo. Ninguém pode parar a história.

56
________________________________________________________________________

A luta em tempos sombrios


Aton Fon Filho, Paola Estrada e Ricardo Gebrim

57
Seria evidentemente muito cômodo fazer a história se só devêssemos travar
a luta com chances infalivelmente favoráveis. De outro lado, esta história
seria de natureza muito mística se os ‘acasos’ não desempenhassem nela
nenhum papel. Estes casos fortuitos entram naturalmente na marcha geral
da evolução e ficam compensados, por sua vez, por outros acasos. Mas a
aceleração ou a desaceleração dependem muito de ‘acasos’ semelhantes,
entre os quais figura o ‘acaso’ do caráter dos chefes [...]. (MARX, ENGELS,
Resposta a Kugelmann ,1971, p. 268).

Todos e cada um de nós iniciamos nossa militância quando, de algum modo, fomos
impactados pela realidade. O conhecimento de um fato, a atenção despertada para
a importância de alguma opressão, serviu muitas vezes de motivação para que nos
sentíssemos mobilizados a enfrentá-la. Golpeados em nossos sentimentos e
emoções, esses impactos nos puseram a transitar entre a emoção e a razão e nos
despertaram para a comunidade daqueles que já não conseguiam ignorá-los.

O companheirismo, já apontava Guevara, resulta muito mais de uma identidade de


sentimentos do que uma identidade de pontos de vista:

...si usted es capaz de temblar de indignación cada vez que se comete una
injusticia en el mundo, somos compañeros, que es más importante. (Carta a
María Rosario Guevara, de 20 de fevereiro de 1964)

Mas se essa escolha por estar ao lado dos oprimidos, do lado que queremos ver
vencedor ante as dificuldades que enfrenta, serve para estabelecer como meta a
cessação da opressão e define nossa condição de companheiros, ela não é, por si
só, suficiente para determinar a efetividade de nossa contribuição para a vitória
contra os opressores.

Os valores e sentimentos podem ser suficientes para despertar empatia e


solidariedade. Contudo, valores e sentimentos são atributos do indivíduo, não dizem
respeito aos instrumentos que a humanidade constrói para somar, ampliar e
organizar energias no rumo das mudanças pretendidas. Para isso se faz necessária
a teoria revolucionária, a ciência das lutas sociais, o marxismo, capaz de organizar a
ação coletiva com vistas ao desígnio.

O mesmo Che Guevara destaca a contradição que se põe para um dirigente


revolucionário ao exercitar a um só tempo seus sentimentos e emoções de indivíduo
com a racionalidade humana necessária para traçar os roteiros - estratégia e tática -
para a consecução dos objetivos da organização política:

Déjeme decirle, a riesgo de parecer ridículo, que el revolucionario verdadero


está guiado por grandes sentimientos de amor. Es imposible pensar en un
revolucionario auténtico sin esta calidad. Quizás sea uno de los grandes
dramas del dirigente; éste debe unir a un espíritu apasionado una mente fría
y tomar decisiones dolorosas sin que se contraiga un músculo. (El
Socialismo y el hombre en Cuba)

58
Temos vivido, no interior da Consulta Popular, momentos difíceis a partir do
encerramento de nossa 5a Assembléia Nacional, desde quando tivemos que nos ver
a braços com a necessidade de promover os ajustes necessários em nossa política,
face a uma derrota de natureza estratégica que reconhecemos ter sofrido e que
colocou na ordem do dia a tarefa de redesenhar elementos táticos ajustados aos
novos contornos estratégicos que foram colocados.

Os debates surgidos no interior de nossas instâncias diretivas ganharam proporções


que puseram em questão fórmulas marcadas pelo movimentismo, mas cuja crítica
não conseguiu ser absorvida como própria da busca do conhecimento da realidade,
como se não fosse possível separar a posição política de seus defensores.

Tanto interna quanto externamente nossa dirigência se tem visto incapaz de


enfrentar essa contradição que se estabelece entre os sentimentos e a razão, seja
naquilo que se refere ao respeito e consideração por lideranças de destaque dos
movimentos sociais, seja mesmo naquilo que se refere a lideranças de destaque de
outras organizações políticas.

E os sentimentos individuais têm vencido, e a análise concreta da situação concreta


tem perdido.

Deslocamentos políticos absolutamente sem sentido revolucionário foram realizados


nos dois anos que se completaram desde nossa última assembleia, impedindo que
déssemos consequência prática às formulações produzidas em Fortaleza: fomos
Congresso do Povo quando recusamos o recuo organizado, definhamos isolados e
ainda estertoramos de vez em quando agarrados na bandeira que seus próprios
propositores já não querem mais. Fomos, inutilmente, Porto Alegre depois do
julgamento de Lula; e fomos Brasília numa greve de fome para comover corações no
STF, atitudes que talvez ainda nos venham dizer que lograram os efeitos
pretendidos, embora ano e meio depois. Tudo isso com objetivos eleitorais.
Reiteramos seguidamente as convocações às manifestações públicas, quando nem
mesmo a militância organizada a elas mais acorre.

Atrelamos nossos compromissos revolucionários à derrotada estratégia eleitoral


petista, e, limitando-nos ao horizonte próximo de 2020 e distante de 2022, vamos
nos preparando para filiar nossos militantes ao partido de Lula em busca de uma
vitória eleitoral destinada a retomar políticas públicas distributivas e redistributivas,
mas cada vez mais distanciados da questão do poder.

E tudo isso gira em torno da figura de Lula, e tudo isso gira em torno da bandeira
Lula Livre e da solidariedade a Lula.

Diversas vezes, em nossa Direção Nacional, o questionamento à bandeira Lula Livre


foi repudiado em nome da solidariedade a uma vítima da repressão política. Mesmo

59
reconhecendo indiscutível esse dever de solidariedade sempre aclaramos que, como
Lula, são dele merecedores todos os outros que foram e estão sendo vítimas de
igual perseguição, com expressa menção às várias lideranças dos movimentos de
moradia que estiveram meses no cárcere, de lá saindo poucos dias antes do próprio
ex-Presidente.

É certo que a figura de Lula vem cercada de um simbolismo de que carecem as


demais vítimas da repressão política. Porém, é forçoso reconhecer que esse mesmo
simbolismo une também a imagem de Lula à derrotada (mas não abandonada)
estratégia eleitoral petista, de modo que fortalecer uma implica necessariamente
comprometer-se com a outra. Motivo pelo qual defendemos que a solidariedade a
Lula fosse expressa em palavra de ordem inclusiva dos demais e que nos afastasse
do compromisso com o lulismo, com o petismo, com o eleitoralismo.

O distanciamento da política, da análise política e da prática política com ela


consequente, significou o distanciamento do papel definidor, organizador e condutor
de lutas que é próprio da organização política. Significou a subordinação a decisões
emanadas fora de nossas instâncias, ainda que, às vezes, por pessoas pertencentes
a nossos quadros. E, por essas vias e pela via do lulismo, significa agora o
reboquismo à defesa de interesses da burguesia interna que nem ela própria se
dispõe mais a defender.

Já Marighella apontava, em circunstâncias semelhantes:

A questão mais importante, a fundamental, é a questão do poder. Os


revolucionários no Brasil não podem propor a outra coisa senão a tomada
do poder, juntamente com as massas. Não há porque lutar para entregar o
poder à burguesia, para que seja constituído um governo sob a hegemonia
da burguesia. Foi o que se pretendeu com o governo nacionalista e
democrático. E o que se pretende agora, propondo-se a conquista de um
"governo mais ou menos avançado", eufemismo que traduz a esperança
num governo sob hegemonia burguesa, fadado a não resolver os problemas
do povo. Isto significa a renúncia à luta pelo poder através da ação
revolucionária, a confiança no caminho pacífico e eleitoral, a capitulação
ante a burguesia. (Carta à Comissão Executiva do Partido Comunista
Brasileiro)

Nossa tática não pode se subordinar a uma estratégia que consideramos derrotada.
O debate que enfrentamos atualmente define o destino de nossa organização, pois o
momento atual, marcado por mudanças profundas é implacável com os erros.

O desafio de construir a Organização

Não é fácil construir uma organização que se pretende revolucionária, em tempos


tão sombrios como os atuais. Nunca é simples o trabalho organizador.

60
Uma das primeiras idéias-força, propagandeadas pela Consulta Popular foi a do tripé
constitutivo: lutas, formação e organização. Nas viagens aos estados era comum
buscar um banquinho de três pés para visualizar o principal desafio em que se
assentava nossa proposta.

Ainda nos primeiros anos, quando realizávamos um balanço de nossa construção,


invariavelmente constatávamos que o pé mais frágil era o da organização.

Passados 22 anos de existência, em que pesem os consideráveis avanços que nos


permitiram a estruturação orgânica em vários estados e um funcionamento mais
regular e profissionalizado, seguimos identificando que o "pé" mais frágil de nosso
"banquinho" é a organização.

Não há solução organizativa fora da política. Ela é quem nos projeta, conquista
adeptos, resolve os desafios materiais. No texto "Por Onde Anda a Consulta
Popular II", Fon e Gebrim relataram minuciosamente os momentos que nos
marcaram com uma ação que retratava uma tática adequada e facilmente é possível
relacioná-los com nossos ganhos organizativosi.

Nossa história comprova que avançamos organizativamente quando tivemos uma


tática adequada que pautava nossas ações no sentido de nossa estratégia,
estacionamos ou recuamos quando estivemos paralisados na política, com uma
tática inadequada. Não será diferente agora.

Uma política organizativa não pode medir seu crescimento pela aquisição de novos
membros. Mas, nos momentos em que não há um ascenso revolucionário, o critério
principal é a manutenção de seus quadros.

Quadros políticos demoram para ser formados. Pacientes e laboriosos anos,


experimentando lutas, participando em inúmeros momentos de formação,
solidificando a lenta construção da confiança. Cada um que se perde, equivale a
muitas e muitas novas aquisições.

Quanto mais difícil o momento histórico, mais difícil será preservar quadros, estamos
enfrentando uma derrota profunda que corretamente caracterizamos, na 5ª
Assembléia Zilda Xavier, como de caráter estratégico, tal ofensiva atinge as classes
trabalhadoras com uma intensidade sem precedentes, desmontando as principais
conquistas históricas e gerando imensos desafios.
Não há como prever a duração histórica deste período. Perderemos menos se nos
prepararmos para uma longa duração, desejando fortemente estar errados.

É possível afirmar, que a imensa maioria da militância das organizações de


esquerda é convencida por razões ideológicas e não materiais. A rigor, tal situação
somente se inverte em períodos revolucionários.

61
Como manter nossa motivação ideológica?

O desejo de vivenciar uma transformação revolucionária é uma aspiração legítima


que impulsiona as gerações nas suas convicções ideológicas, é o que alimenta e
permite enfrentar momentos desanimadores, que por vezes se prolongam.

Visualizar um horizonte socialista nitidamente foi o propulsor que melhor explica a


rapidez com que toda uma geração de jovens revolucionários recompõe a perda de
milhares de quadros durante a segunda guerra mundial, em tão pouco tempo.

O momento atual é outro.

Somos a primeira geração com a tarefa histórica de retomar o pensamento e a


organização revolucionária após o fim da URSS e de outras experiências de
transição ao socialismo. Já não contamos mais com um claro horizonte socialista e
com um movimento comunista internacional que cumpre o papel de verdadeiro
exército da revolução mundial, tampouco contamos com uma situação em que optar
pela luta revolucionária é um caminho quase sem volta.

Enfrentamos pressões de novo tipo. Somos assaltados por profundas dúvidas


ideológicas, cotidianamente propagadas, enfrentamos um enorme âmbito de teorias
revisionistas que sustentam a inviabilidade das rupturas revolucionárias e contamos,
mais do que nunca, com o convencimento e disposição dos que se enfrentam com
toda essa dificuldade.

Pressões ideológicas e sociais gigantescas recaem especialmente sobre a


juventude, sobretudo sobre aqueles que ao saírem das universidades enfrentam um
mercado de trabalho restrito incompatível com as legítimas aspirações de
sobrevivência e construção familiar, que acabam por restringir as condições de
dedicação à militância.

A todo o momento são questionados os valores e a opção de dedicar energias a um


projeto que não se visualiza no plano imediato. Manter-se na militância
revolucionária nos tempos atuais impõe novos e imensos desafios, que devem ser
compreendidos pela organização de forma que cada militante possa manter sua
dedicação nos limites compatíveis com a sua realidade e possibilidades.

Períodos históricos anteriores foram bem distintos. Ingressar num partido comunista,
enfrentando a repressão social e muitas vezes familiar, era um caminho
praticamente sem volta. Havia um horizonte socialista nítido, ganhando terreno a
cada ano, atraindo os melhores e alimentando uma inesgotável disposição de
oferecer o melhor, por maiores que fossem os sacrifícios pessoais. Uma organização
podia - e devia - exigir esse máximo de seus militantes.

62
Vivemos tempos bem distintos. Não é fácil manter o ânimo e a felicidade em tempos
sombrios. A insegurança e o sofrimento ante a dimensão da derrota que estamos
enfrentando amplia a insegurança e as dúvidas. E seguir dedicando energias
crescentes a um projeto coletivo já não se sustenta somente com o efêmero efeito
dos momentos de mística, exigindo muito mais da compreensão da realidade para
não sermos sufocados pelas derrotas que parecem não ter fim.

Maior deverá ser o esforço do convencimento, menor será o uso do método do


dirigismo.

Cada vez mais, em nossa construção organizativa não basta vontade e


planejamento, ainda que estes sejam elementos essenciais. É preciso uma linha
política adequada, que permita interpretar corretamente o momento histórico,
identificando seus limites e compreendendo que sua alteração não decorrerá de uma
profecia, ou feito messiânico, mas do complexo desenvolvimento de um processo
histórico que deve ser interpretado cientificamente.

Sem uma teoria que interprete corretamente a realidade, sem uma definição tática
que defina nossas ações políticas, os melhores planos organizativos se perdem,
mesmo quando cumprem inicialmente suas metas, seguem fadados a reproduzir o
inevitável ciclo rotativo de militantes que marca uma parte expressiva das
organizações de esquerda.

No contexto atual, a disciplina se constrói muito menos em torno de regras e


imposições, mas principalmente em torno do convencimento e do ânimo. Isso exige
dos quadros uma generosidade e paciência que não tiveram a mesma importância
em outros momentos históricos. E, principalmente, impõe um salto de qualidade em
nosso processo formativo, possibilitando a compreensão da atual dinâmica de luta
de classes, evitando falsas ilusões, que somente aprofundam a percepção de
derrota.

Por sua vez, o que chamamos de "profissionalização da política de quadros"


depende estreitamente da capacidade de recursos econômicos. Não recebemos
fundo partidário, não contamos com as mesmas possibilidades de outras
organizações e sabemos que a necessária auto-sustentação militante tem um papel
pedagógico, mas nunca corresponderá aos crescentes custos de uma organização
política da classe trabalhadora.
Nossa sustentação historicamente se dá pelo apoio de movimentos populares, que
precisam apostar na Consulta Popular como instrumento político para que esses
recursos financiem uma política autônoma e não subordinada.

Desconsiderar tudo isso é como esvaziar um barco furado com uma canequinha.
Enquanto conquistamos novos militantes, a infernal lógica da rotatividade, vai

63
afastando aqueles que acumularam anos de formação prática e teórica. Enquanto
achamos que estamos efetuando novas "liberações profissionalizadas", estaremos
apenas perdendo nossa capacidade de construir uma política própria.

Marighella nos ensina que “a nosso ver, qualquer mudança de qualidade do


movimento revolucionário determina mudanças de qualidade na organização
revolucionária”.

O que é construir a organização agora?

Antes de tudo é ter a coragem de incorporar a correta deliberação que tomamos na


5ª Assembleia e assumirmos uma tática de recuo organizado e preservação de
forças, condizente com a compreensão de uma Derrota Estratégica. Um debate
sobre o qual enfrentamos resistências e seguimos patinando há mais de dois anos.

Neste sentido, insistimos em quatro grandes movimentos necessários para


materializar a tática:

1) Produzir um salto de qualidade em nossa formação política, superando o


ecletismo ideológico, potencializando a capacidade política de nossos militantes
mediante um aprofundamento da formação marxista-leninista. Os traços essenciais
dessa tarefa foram esboçados no texto "Uma Proposta de Formação Política para a
Nossa Realidade", escrito por Gebrim, Fon e Armando Boito Jr., no qual se propõem
cursos que permitam a nossa militância:

- Compreender, identificar e examinar as classes e frações de classe em disputa;


- Compreender a construção de uma tática e a identificação dos inimigos;
- Compreender com mais profundidade o conceito de Estado, seus aparelhos
ideológicos e sua importância na estratégia revolucionária;
- Construir uma crítica leninista ao espontaneísmo e ao economicismo;
- O estudo de outros conceitos fundamentais do marxismo-leninismo, construindo
uma base de pensamento que assegure uma formação ideológica em um período
tão desfavorável para as concepções revolucionárias;
- Criticar aberta e rigorosamente as concepções e teorias reformistas ou
voluntaristas que - embora possam ter aceitação em parte do campo democrático e
popular - nos afastam do marxismo, do leninismo e da revolução.

2) Definir áreas em que investiremos um paciente e cirúrgico trabalho de base.


Um trabalho decisivo que somente poderá ser desenvolvido se não estiver
subordinado a uma lógica eleitoral, o que implica em uma tática independente,
preservando ao máximo essa paciente construção.

3) Enfrentar as adequações estratégicas e táticas que as mudanças profundas


que estamos vivenciando nos impõem no campo da teoria.

64
4) Construir e participar de lutas, tendo como elemento central nossa preservação
de forças.

A organização se constrói num movimento dialético constante e contraditório de


projetar ações políticas "para fora" de acordo com suas capacidades internas, ao
mesmo tempo que vai adequando sua estrutura e funcionamento interno à realidade.

Não se trata de incorporar algum dos pontos ora sugeridos. Se trata de absorver
uma concepção.

Nada disso será possível sem deflagrarmos uma verdadeira inflexão tática,
envolvendo o conjunto da organização. Ou seja, não basta aprovar uma Resolução,
será necessário envolver cada núcleo da Consulta Popular na compreensão e
materialização da tática de recuo organizado e preservação de forças.

Ademais, reiteramos o que já dissemos em textos anteriores, neste processo não


podemos nos furtar de enfrentar uma questão decisiva sobre o nosso projeto de
construção organizativa: quanto mais a Consulta Popular deixar de ser o espaço
coletivo de construção política dos dirigentes da CP - que também dirigem o MST e
os demais movimentos populares do nosso campo -, cada vez mais as linhas
políticas e organizativas orientadoras da ação do campo serão tomadas em outros
espaços, o que consequentemente determinará quais as prioridades e conteúdos
das nossas alianças, das nossas lutas, das formações, do trabalho de base, da
comunicação, etc.

Precisamos lançar luz sobre essa questão, que está em aberto desde o processo
congressual que antecedeu nossa 5ª Assembléia Nacional "Zilda Xavier", no qual
um dos nossos objetivos, parcialmente frustrados até agora, era exatamente
repactuar com os movimentos populares (que nos fundaram) o papel da Consulta
Popular como um instrumento político do nosso campo. Este impasse não tem uma
solução fácil e aparente, o novo processo congressual - inaugurado pela Direção
Nacional em julho de 2019 - precisa enfrentar esta questão de forma corajosa,
transparente e generosa. Se não conseguirmos superar esse desafio, a Consulta
Popular estará fadada a ser mera auxiliar de linhas políticas definidas fora dela.

Se prosseguirmos na relação subordinada a uma política que já constatamos


derrotada, pagaremos o preço de perder o que de melhor acumulamos em nossa
história. Infelizmente, a história não tem rascunhos.

São Paulo, 25 de novembro de 2019.

65
________________________________________________________________________

Para o aferimento da realidade: uma


reflexão sobre a cultura maximalista
Ivan Siqueira Barreto
CP-Sergipe

66
A esquerda brasileira tem enfrentado sua maior crise após o período marcado pela
reabertura democrática posterior à ditadura militar (1964-1985). Destaca-se uma
questão geracional de exceção diante do maior intervalo democrático da história
brasileira, entre as eleições diretas de 1989 e o golpe de 2016, com amplas
liberdades jamais vividas por outras esquerdas – a destacar os ciclos de ilegalidade
do PCB. Esse momento tem oportunizado aos lutadores e lutadoras do povo a
demanda por um balanço de importância superior – trata-se de uma esquina
histórica, quando os balanços ganham peso estratégico. A combinação entre a
exaustão de uma estratégia reformista, moderada e institucional e o avanço da
extrema direita aqui no Brasil e no mundo, são marcas desse período.

Nos últimos debates travados na Consulta Popular (escritos e orais), diversas


posições se estabeleceram díspares. Para a tática as questões têm envolvido
prioritariamente o aferimento da correlação de forças, a caracterização da derrota e
os graus de antecipação necessários e consequentes. Por outro lado, relacionado à
estratégia e concepção de partido, outros debates acerca das insuficiências, lacunas
e erros têm se imbricado com o da tática de modo que seus tratamentos cobram
imensa capacidade para “trocarmos o pneu com o carro andando”.

Não é o objetivo primeiro deste texto tratar o rigor das lacunas no atacado. É notório
o desaceleramento de debates importantes em nossos ambientes decisórios e
elaborativos após seus registros em cartilhas. Tais como “A via revolucionária e suas
combinações”, “A questão eleitoral” e –principalmente- “Que estado é esse a ser
tomado?” e “Que tipo de partido e sua viabilidade histórica?”. Decerto há uma parte
desses entendimentos que não estão sistematizados – aparecem diluídos ou
materializados mecanicamente-, como ocorreu metabolicamente no curso de
inúmeras experiências da classe trabalhadora. Outros nos chegam através dos
desdobramentos da nossa ação, inclusive –dessa forma, longe da rigidez
laboratorial, acadêmica e estéril- essa é a forma leninista de atacar as questões
elementares: a partir do desenvolvimento da luta política do conjunto da classe
trabalhadora em busca do poder.

Um exemplo emblemático, espraiado pela nossa ação na realidade, cuja reflexão


resultante nos recobra atenção, é justamente acerca do nosso entendimento e
formulação sobre o estado. Embora não se apresente num tópico exato, está
emaranhado em diversos capítulos e cartilhas. Neste aspecto mais reafirmamos o
conceito clássico (estado enquanto instrumento da burguesia) do que uma
caracterização moderna e brasileira. Consequentemente sugerimos um estado
impenetrável clássico, desmoronável à ação direta, “colunistíca” e insurrecional.
Porém, entre as nossas elaborações mais enérgicas está a da Constituinte,
justamente pondo à prova o que entendemos por estado e a luta parlamentar no
bojo de uma estratégia revolucionária. São questões para aprofundamento!

67
Esta contribuição textual será dividida em duas partes, uma para agora e outra para
os próximos cadernos. Nesta primeira, trago uma reflexão acerca do que Gramsci
tratou enquanto “maximalismo” na Itália, com ênfase relativa ao período de crise da
II internacional e os iniciais da III (1919), cujo entendimento também nos ajuda a
destacar alto grau deste método diante de importantes acontecimentos na nossa
história. Mas não só pelo retrovisor este debate merece atenção. Cabe restabelecê-
lo para o agora e futuro.

Sobre a cultura maximalista

Quando Gramsci discorre sobre o “maximalismo” o faz em duas direções: para o


Partido Socialista Italiano (PSI) e determinadas posições do próprio PC Italiano.
Exemplarmente a Giacinto Menotti Serrati (principal líder da corrente maximalista do
PSI) e Amadeo Bordiga (líder da fração maximalista abstencionista e posteriormente
fundador do PCI). Portanto, nominalmente, não se trata das adjetivações
comumente associadas -noutro sentido, não pejorativo- ao caso russo: Bolcheviques
(maximalistas) e Mencheviques (minimalistas). Aqui daremos ênfase ao sentido que
Gramsci desenvolve, na sua fase dentro do PSI e na criação do PCI.76

Na medida em que critica o PSI, Gramsci os coloca enquanto oportunistas: "o


Maximalismo é uma concepção fatalista e mecanicista da doutrina de Marx [...]. É
inelutável que o proletariado vença (diz o Maximalismo). É inútil que a gente se
mova: para que se mover e lutar, se a vitória é fatal e inelutável? Entretanto um
maximalista pode estar [...] também no Partido Comunista".

Para os companheiros do Partido Comunista Italiano ele destaca a mesma


conotação e consequência, mas com origem distinta. Neste caso não os condena
enquanto oportunistas, seriam intransigentes. Aqueles que aguardam “o grande dia”.
“As massas não podem deixar de nos seguir, já que a situação objetiva as empurra
para a revolução. Portanto, vamos esperar por elas, sem quebrar a cabeça com
tantas manobras táticas e expedientes do gênero.”

“Para nós, isso é maximalismo, igualzinho ao do partido maximalista. O


camarada Lênin nos ensinou que, para vencer nosso inimigo de classe –
que é poderoso, que tem muitos meios e reservas à sua disposição-, temos
não só de aproveitar todas as fissuras apresentadas pelo seu bloco, mas
também de utilizar todo aliado possível, ainda que incerto, oscilante e
provisório. Ensinou-nos que, na guerra dos exércitos, não se pode atingir o

76 O II Congresso da III Internacional Comunista (IC), realizado entre 19 de julho e 7 de agosto de 1920 em
Moscou, fixa as condições para a aceitação dos partidos nacionais (os chamados "21 pontos"). Esse congresso
convida o PSI a expulsar os reformistas, que acabou não ocorrendo pela direção de Serrati e contribuindo para
cisão e criação do PCI. Entre 15 e 21 de janeiro de 1921 Gramsci participa em Livorno do XVII Congresso do
PSI. A tese do grupo de Ímola ("comunista pura"), defendida por Terracini, Bordiga e os delegados da IC, obtém
58.783 votos. A tese de Florença ("comunista unitária"), representada por Serrati, obtém a maioria dos votos:
98.028 votos; a de Reggio Emilia (reformista), 14.695 votos. Em 21 de janeiro, os delegados da fração comunista
decidem constituir o "Partido Comunista da Itália. Seção italiana da Internacional Comunista". Gramsci faz parte
do Comitê Central do novo Partido.

68
objetivo estratégico, que é a destruição do inimigo e a ocupação do seu
território, sem ter antes atingido uma série de objetivos táticos, visando a
desagregar o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto. Todo o
período pré-revolucionário se apresenta como uma atividade
predominantemente tática, voltada para a aquisição pelo proletariado de
novos aliados, para a desagregação do aparelho organizativo de ataque e
de defesa do inimigo, para o conhecimento e esgotamento de suas
reservas.” (Coutinho, 1999)

As posições de Bordiga aprofundavam a razão economicista-fatalista típica da


Segunda Internacional77, ainda que tenha participado da III IC e PCI.
Consequentemente extraiu de forma abstrata uma ideal prioridade de se construir
um partido puro; dos melhores, mas poucos; dos intransigentes. O abstencionismo
eleitoral decorrente caminhou inclusive no sentido preservacionista, de livrar os
“puros” das ilusões parlamentares que inevitavelmente fortaleceriam os reformistas;
assim como aprofundou a vigilância depurativa pela expulsão destes.

Em sua polêmica com o grupo L’Ordine Nuovo78, Bordiga externou uma breve e
“magistral” síntese: “O maximalismo terá sua primeira vitória com a conquista de
todo o poder pelo proletariado. Antes disso, ele nada mais tem a fazer além de
promover a organização cada vez mais vasta, consciente e homogênea da classe
operária no terreno político”. A encarnação desta idéia converte-se então num
destacamento doutrinário à espera do “grande dia”, no qual teriam lugar ao mesmo
tempo a primeira vitória e a vitória final. (Coutinho, 1999)

As linhas defendidas por Bordiga à luz da Segunda Internacional, além de


receberem o combate por Gramsci, tão logo, a partir da III Internacional (1919),
também acolheram duras e incisivas críticas de Lênin. Em “Esquerdismo, Doença
Infantil do Comunismo” ele destaca um capítulo para a questão italiana. Através do
anúncio “conclusões erradas de premissas justas” trava simultaneamente uma crítica
aos parlamentaristas reformistas (autenticando em partes a crítica Bordiguista) junto
às conclusões abstencionistas.

Para a Consulta Popular qual a exata serventia desta reflexão, já que há um


entendimento, em partes tácito, de que há de se considerar as diversas formas de
luta e que nossas insuficiências são justificadas pelas tarefas imediatas que
comportávamos?

77 Criada principalmente por iniciativa de Friedrich Engels, por ocasião do Congresso Internacional de Paris,
em 14 de julho de 1889 seguiu existindo inclusive após a criação da III (1919). Foi uma associação livre de
partidos socialdemocratas e trabalhistas, integrada tanto por elementos revolucionários quanto reformistas. Seu
caráter progressista chegou ao fim em 1914, quando suas seções mais importantes violaram os princípios mais
elementares do socialismo ao apoiar seus governos imperialistas na Primeira Guerra Mundial. Desintegrou-se
durante a guerra, porém ressurgiu como organização totalmente reformista em 1923.
78 A revista L'Ordine Nuovo [A Nova Ordem] foi criada em abril de 1919 por Gramsci, Tasca, Togliatti e Umberto

Terracini, com o subtítulo "Resenha semanal de cultura socialista". Gramsci foi seu secretário de redação.
Posteriormente se dividiram e na criação do PCI (21) transformou-se em semanário do partido.

69
Há um consenso na Consulta Popular sobre os diversos saltos de qualidade dados
ao longo do tempo, principalmente quando deixa de ser uma combinação de
pensadores(as) e lutadores(as) para se transformar numa organização. Porém
algumas raízes desse processo foram superadas, outras dispersadas. O tratamento
quase exclusivamente moral dada à questão eleitoral na nossa primeira década foi
um dos fatores que emprestou fortes traços abstencionistas e maximalistas às
gerações primeiras da CP. Ainda quando superamos esse período, convertendo-se
em partido entre a II e III Assembleia (2005-2007), seguimos enfrentando nosso
próprio esquerdismo gradual e coletivamente. Mas é preciso sinalizar aqui que não
foram somente passos possíveis a serem dados por um corpo em crescimento!
Foram inúmeros passos corretos, mas também equívocos danosos ainda banhados
de “premissas justas”.

Em diversos momentos eleitorais envolvendo os governos petistas contra os


tucanos, num contexto de avanço de experiências progressistas na América Latina,
por exemplo, travamos expressivas batalhas entre abstenção, preservação, voto
nulo, etc. Para que nossa autocrítica seja construtiva e impiedosa devemos
categoricamente perceber casos peculiares – registrar e tirar lições- de tipo
maximalista próprios. Nada mais nítido que nossa resolução para as eleições de
2006: “O Projeto Popular para o Brasil (PPB) não está em jogo, por isso não
prestaremos apoio eleitoral. Nossa tarefa é propagandear o PPB (...)”. Seria um caso
maximalista excêntrico alicerçado num programa de transição (e não no máximo). Já
em 2010 seguimos com alguns avanços, mas desenvolvendo linhas semelhantes:
“Trata-se de uma eleição plebiscitária, onde não há projetos antagônicos em disputa
(...)”. Não cabe aqui empobrecer a nossa história, nem pessoalizá-las no âmago
fratricida. Cabe a nós, mesmo havendo superado vários desses pensamentos,
caracterizá-los corretamente para tirar determinadas lições úteis ao aferimento da
realidade que se apresenta hoje.

Por essa razão levantarei algumas reflexões e conclusões:

1) Considerando as questões postas podemos afirmar que historicamente


nos relacionamos de forma “principista” com nosso programa mediador (Projeto
Popular para o Brasil). Nas diversas discussões, agitações e propagandas, o PPB se
converteu numa carta geral pouco móvel. Não avançou para o diálogo momentâneo,
até porque a aplicabilidade das “reformas estruturais em atraso” no Brasil está
subordinada a uma correlação de forças de ascenso. Longe deste cenário o nosso
“Projeto mediador” não se instrumentaliza, não se atualiza com tarefas imediatas nas
diferentes esferas da política.

2) Para todos os momentos chave nessas duas décadas de existência


adotamos uma prática preservacionista, cuja centralidade designou “formar e
preservar uma coluna de quadros dotados pelo instrumental teórico e revolucionário
com foco na tomada do poder (...)”. Unindo este ponto ao anterior podemos refletir

70
sobre a forma maximalista-preservacionista implícita, pela qual estamos construindo
uma cultura revolucionária idealista, apesar da justeza da teoria geral, em busca do
“grande dia”. Aqui gestamos uma coluna de abnegados para um futuro onde o PPB
irá se apresentar de forma clara.

3) No que essa cultura/método ainda pode nos atrapalhar? Exatamente


na sua tendência teleológica e fatalista. No geral, dentro da esquerda, há tendências
que veem pouca gravidade no processo iniciado pelo golpe de 2016 (tratam-no
como uma derrota reversível no curto prazo, concentrando toda esperança na figura
de Lula, nas instituições, eleições e na possibilidade de reeditar um governo similar
aos dos anos 2000); outros oscilam para uma versão mediadora em busca do
“sucessor” de Lula e há tendências propensas ao imobilismo diante do impacto da
derrota sofrida.

4) Nos últimos períodos a Consulta Popular têm sido um pólo de reflexão


que se afastou do otimismo vulnerável, desenvolveu caracterizações sobre o tipo da
derrota, assim como ajustou determinadas linhas (tal qual o recolhimento da
proposta da constituinte). Não só a consulta, mas o chamado campo popular é parte
da esquerda que entende a alteração do quadro atual num prazo longo, fruto de um
trabalho a ser feito arduamente.

5) O risco, no entanto, consiste em nosso grau de antecipação. Esta é


uma tarefa das mais complexas, basta ver os últimos tensionamentos na América
Latina – a aprofundar. A propensão a linhas inevitáveis poderá nos lançar à
“centralidade de sempre”: “Preservar uma coluna de quadros(...)”. Como um relógio
quebrado pode acertar, erraremos no que fazer momentâneo, ou seja, poderemos
seguir como um grupo revolucionário, porém sem perspectiva histórica.

6) Caso déssemos centralidade para num rearranjo prioritariamente


internista, poderíamos dizer que a nossa leitura estaria adequada para um período
de fechamento de regime. Ainda que esta seja uma tendência a se considerar, será
resultante de uma série de batalhas –ainda em curso- a percorrermos. Nossa defesa
não comporta somente um centro preservacionista, ainda que deva incorporar
elementos de segurança e conservação. Deverá hibridamente combiná-los com a
iniciativa, resistência, amplo diálogo com as vanguardas e trabalho de massas. Por
essa razão temos dado conteúdo ao termo defesa ativa.

7) Para concluir, afastando-me da proposta de centralidade


preservacionista, destaco a necessária reflexão sobre o tipo de frente adequada
para o isolamento do bloco neofascista e objetivos programáticos que deem unidade
a amplos setores (soberania, direitos, emprego, etc). Assim como nossa atualização
para o elemento concreto “Lula-livre” nessa conjuntura.

71
Referências:

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

________, Carlos Nelson. O Leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2011.

GRAMSCI, Antonio. Os cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a


política. (vol.3); Trad. Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henrique, Marco Aurélio
Nogueira. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

LENIN, Vladmir. Esquerdismo, a doença infantil do comunismo. Global Editora

PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

72
________________________________________________________________________

Uma nova estratégia para a


esquerda
Pedro Carrano
Núcleo Fidel Castro, Consulta Popular (PR)

73
América Latina novamente em ebulição

1. Ao longo do último período, a análise da Consulta Popular, calcada sobretudo na


análise do MST, visualizava a conformação dos governos latino-americanos em três
campos distintos, de acordo com suas políticas e correlação de forças na sociedade
e no interior do Estado.

Um primeiro campo refere-se aos governos alinhados diretamente com a política dos
EUA. Um segundo campo abrange os governos considerados progressistas, mas
com limites na correlação de forças para maiores avanços populares. E cinco países
compõe o que seria uma política de avanços sociais mais robustos, governos com a
marca da soberania, da integração regional, com maior participação da classe
trabalhadora nos rumos desses governos, chocando-se diretamente com o
imperialismo. Entre esses países estão Venezuela, Nicarágua, Bolívia e Equador, os
chamados países do campo bolivariano, ao lado de Cuba. Em comum entre os
processos foi a adoção da via eleitoral para ocupar uma fatia do Estado e, a partir
daí, visualizamos menores e maiores avanços segundo a análise acima.

O tabuleiro geopolítico do nosso continente está se movendo e nesse momento


temos uma visão de conjunto para começar a repensar a estratégia das forças
populares na América Latina e, consequentemente, no Brasil.

2. De forma geral, no ano de 2009, nosso continente chegou a ter ao menos doze
presidentes de orientação progressista, restando agora, até a data de conclusão
deste texto, cinco cadeiras presidenciais. O que nos debates mais cotidianos da
esquerda pode surgir com terminologia de um “novo ciclo” conservador no
continente não pode ser visto como um processo estanque, como apenas um
suposto “ciclo” que substituiu um ciclo formal de governos progressistas. Tampouco
o estopim de uma luta em um país vizinho, como temos visto, pode ser o salvo-
conduto para desmontar nossa tese de derrota profunda e estratégica no caso
brasileiro.

O que devemos perceber é que, nos anos 1990, após aplicação do neoliberalismo e
o desgaste provocado nas condições de vida da população, a opção eleitoral foi por
governos que no plano econômico e político trouxeram ganhos à classe
trabalhadora. Seus limites e possibilidades sempre estiveram condicionados à
correlação de forças na sociedade.

“Ganhamos as eleições por nossos discursos mas sobretudo pelo cansaço,


pelo esgotamento do sistema patronal, e temos gerado um novo momento
de mudanças. Mas certamente não foram as mesmas condições históricas
que as da revolução russa ou da cubana que através de revoluções
triunfantes geraram novas condições desde o princípio. Em troca, em
nossos processos enfrentamos a necessidade de negociar as possibilidades
de estabilidade logo do triunfo eleitoral. Muitos processos nasceram

74
cercados e limitados”, (Documento da Tricontinental, maio de 2019,
tradução nossa)

Porém, neste exato momento o continente vive a declarada retomada de iniciativa e


controle do imperialismo e, ao mesmo tempo, devemos ressaltar também a
incapacidade de avanço interno na organização popular e no controle dos aparatos
do Estado, sobretudo o militar, na imensa maioria dos governos de orientação
progressista.79

3. Uma constatação importante é sobre como os setores golpistas, alinhados com o


imperialismo, em momento algum deixaram de fazer agitação política contrária aos
governos de esquerda, inclusive em momentos em que a economia era plenamente
favorável a esses governos. Devemos perceber nesse período que a direita manteve
ferramentas de denúncias políticas, por meio de institutos com orientação golpista,
contando com a agitação e orientação da mídia comercial e atacando os governos
progressistas, muitas vezes usando denúncias de corrupção, questões pessoais dos
governos, etc. Entre 2002 e 2019, o golpismo sempre buscou essas brechas e no
mínimo podem ser contabilizadas, entre golpes e tentativas de desestabilização, ao
menos doze sérios ataques golpistas. A contradição é como se, de alguma maneira,
a direita no continente neste período não tivesse deixado de fazer o que sempre
orientou a esquerda a partir de Lênin e, com isso, tivesse conseguido uma posição
favorável para o desgaste do progressismo.

“Na realidade, pode-se ‘elevar a atividade da massa operária’ com a


condição de que não nos circunscrevamos à agitação política no terreno
econômico”. E uma das condições essenciais para essa expansão
indispensável da agitação política é organizar denúncias políticas que
abarquem todos os terrenos. A consequência política e a atividade
revolucionária das massas não podem ser educadas senão com base
nessas denúncias”, (O quê Fazer, página 134).

4. Com diferentes realidades e processos, não parece ser por acaso o fato de que, entre os
processos mais avançados, dos países que classificamos como “bolivarianos”, venezuelano
resiste, na longa travessia de um período duríssimo de cinco anos. É fato que o processo da
revolução bolivariana conta com uma aliança fundamental cívico-militar e com a formação
de uma geração de militares identificados com os princípios da Revolução. Tem acesso a
recursos naturais (petróleo, ouro, coltán) que outros países na região não possuem na
mesma dimensão. Mas é preciso ressaltar a capacidade de convocatória, organização e
produção dos trabalhadores venezuelanos80 como um dos principais fatores que mantém,
até o momento, o êxito da resistência contra o assédio permanente do bloqueio e da guerra
econômica81.

79 A entrevista do vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, à Telesur para explicar as razões do golpe de
Estado na Bolívia usa a imagem interessante de que uma pedra atirada em algo conta com dois fatores. O golpe
externo da pedra e o componente interno do material que se rompe e não resiste. Por que, internamente, nossos
processos romperam e não resistiram? Ainda mais se falamos da Bolívia, país em franca expansão econômica.
80 HARNECKER, Marta. Um mundo a construir. Expressão Popular, 2018.
81 Radiografía de un país bajo asedio. Mision Verdad. Caracas, 2019.

75
É preciso também ressaltar no processo venezuelano a dinâmica criada não só de
orientação do Estado, com seu caráter de classe, a serviço de políticas sociais, mas a
construção de uma rede de organização popular capaz de ir tensionando, disputando, e, de
acordo com as condições, substituindo parcelas desse Estado82.

Martha Harnecker defende, no compilado de final de vida, “Um mundo a construir”, de forma
contundente, que o processo da revolução bolivariana, ao buscar convocatória e
participação popular, se distancia inclusive do burocratismo presente na experiência russa,
sobretudo no que toca a crítica à relação entre burocratização e extrema centralização das
iniciativas vindas do Estado.

A reflexão central de Harnecker neste trabalho é sobre como envolver a participação


popular, contar com espaços de organização, em um processo de transição ao socialismo.
O desafio apontado pela autora é como trabalhadores podem se sentir parte do processo. O
empoderamento popular nessa relação é fundamental:

“Não é a mesma coisa, dizia o dirigente político venezuelano, que uma


comunidade conquiste uma passarela para a qual tenha se organizado e
lutado, ou que o receba como um presente do Estado” (página 107).

5. A principal conclusão desse período deve ser o fato de que a estratégia de tomada de
governos com orientação progressista encontrou nesses diferentes países seu limite e
esgotamento – e também a impossibilidade aparente de simplesmente repetir esse ciclo
virtuoso como num passe de mágica. Seja pela ação do imperialismo, seja pelo desgaste
próprio da permanência no poder com avanços limitados, e também pelos efeitos dos
ataques diversos do imperialismo em várias frentes.

6. Essa constatação não muda em nada nossa caracterização da revolução como


democrática, nacional, popular, anti-imperialista, componentes que muitos desses governos
citados acima, em alguma medida, possuíam. Nem descamba para apontamentos
maximalistas sobre um programa imediatamente socialista. Ou mesmo despreza a via
institucional como uma possível chegada ao poder, amparada pelo movimento de massas.
Apenas acrescenta o componente de que, para desencadear um processo de tomada do
poder do Estado, é preciso a convocatória das massas, politizá-las, permitir que vivam a
experiência de transformação.

Em última análise, no próprio balanço que fazemos sobre os determinantes no golpe no


Brasil, em 2016, e a sequência de derrotas sofridas pelos trabalhadores, fica nítido que não
estamos diante apenas de um problema de orientação econômica dos governos petistas,
mas sim de um problema de organização política na relação entre os governos do PT e sua
base de apoio. Como afirmou o psicólogo cubano Josué Veloz, em seminário Latino-
americano realizado pelo Instituto Tricontinental (maio de 2019):

“No período de governos progressistas faltou a construção de um


verdadeiro poder popular, que se expressou na forma em que esses
governos entenderam a função que tinham os movimentos sociais
combativos. Porque efetivamente a retaguarda estratégica de cada um

82 Um mundo a construir, página 189.

76
desses processos de câmbio deveriam ter sido os movimentos sociais e
combativos”, página 27, tradução nossa.

7. Um balanço estratégico é urgente entre a esquerda continental e brasileira, sob o risco de


irmos novamente arrastados por uma mesma estratégia ao simplesmente não criticá-la e
não buscar pensar outra forma.

A determinante econômica dos processos nesses balanços não pode apagar o fato de que,
do Brasil à Venezuela, o que tem determinado a capacidade de resistência popular é a
capacidade de envolvimento das massas populares a partir da chegada da esquerda aos
governos. Os setores golpistas, por sua vez, aproveitaram as janelas e flancos deixados
pelos governos progressistas, sob o pano de fundo da crise econômica mundial. Mas,
reparemos, o centro da luta esteve a todo momento na política. E é impressionante como
muitas análises sobre o processo do Brasil à Bolívia, ainda se agarram no componente
econômico e uma possível estabilidade neste campo como garantidora dos avanços. As
novas vitórias de governos de centro-esquerda no México e Argentina, em rechaço ao
neoliberalismo, certamente devem reforçar em nossas análises sobre os limites colocados
para esses avanços apenas repetindo a estratégia anterior, que foi derrotada.

No Brasil, vitória da campanha Lula Livre, a necessidade de pautar a esquerda para


uma nova estratégia, o papel da Consulta Popular

“ (Él) Cambió el curso de los ríos e el destino a tanta gente”, Roberto Molinari, Lula Libre.
“Chama que o homem dá jeito”, jingle de 2018.

1. Mesmo depois da importante vitória popular que significou a saída de Lula do cárcere, na
qual a Consulta Popular teve papel importante no Comitê Nacional Lula Livre, e mesmo
depois da tenacidade com que o líder petista enfrentou os 580 dias em uma condição
ultrajante de uma solitária, aos 74 anos, sabemos que, passada a euforia de uma vitória
tática, a principal liderança petista e seu partido não apresentam o histórico e as condições
de repensar uma nova estratégia de poder para a esquerda.

2. Neste cenário de uma profunda derrota que classificamos de estratégica, que ao mesmo
tempo força um novo apontamento, um novo caminho, uma reorganização e reconstrução
da esquerda no país, como a Consulta Popular deve se posicionar, inclusive para garantir
sua sobrevivência como organização? Como buscar a unidade expressa até então na
Frente Brasil Popular, com esse campo democrático, sem deixar de diferenciar nossa
análise, colocando em pauta a construção: da perspectiva de poder b) construção de base
social popular e urbana c) de comunicação estratégica d) de trabalho de base e) de
convocatória para reformas populares e estruturais?

3. Sem dúvida Lula é hoje a principal liderança de referência de massas no Brasil, e a elite
parece disposta a mantê-lo como inimigo. Sem dúvida nesse período do cárcere houve um
maior aprofundamento em suas mensagens no temário nacional e da soberania. Porém, a
questão agora é se as organizações de esquerda terão condições de estar preparadas para
ataques e instabilidades que, como aprendemos no cenário latino-americano, são a regra
neste quadrante da História. A necessidade urgente neste momento seria que o Lula do “Eu
resolvi e resolvo” desse lugar a um Lula que projetasse novas lideranças, que enviasse uma

77
mensagem organizativa às massas beneficiadas pelas políticas de seu governo e que agora
sofrem um veloz desmonte. A mensagem e posicionamento abaixo, já no sétimo Congresso
nacional do PT83, está carregada de um conteúdo agitativo avançado comparado com outros
períodos. Embora, mesmo nela, está nítido o fato de que o caminho a ser feito seria
melhorar a mesma via (institucional, estável, possível no período anterior e não no atual). Ou
seja, não reflete o debate estratégico que estamos propondo para a esquerda. A ver:

“Embora tantos tenham cometido erros antes e depois dos nossos


governos, é somente do PT que exigem a autocrítica que fazemos todos os
dias. Na verdade, querem de nós um humilhante ato de contrição, como se
tivéssemos de pedir perdão por continuar existindo no coração do povo
brasileiro, apesar de tudo que fizeram para nos destruir. Preciso dizer
algumas verdades sobre isso.

O maior erro que nós cometemos foi não ter feito mais e melhor, de uma
forma tão contundente que jamais fosse possível esse país voltar a ser
governado contra o povo, contra os interesses nacionais, contra a liberdade
e a democracia, como está sendo hoje.

Deveríamos ter feito mais universidades do que fizemos, mais reforma


agrária, mais Luz Pra Todos, mais Minha Casa Minha Vida, mais Bolsa
Família e mais investimento público.

Teríamos de ter conversado muito mais com o povo e com os trabalhadores,


conversado mais com os jovens que não viveram o tempo em que o Brasil
era governado para poucos e não para todos.

Também tínhamos de ter trabalhado muito mais para democratizar o acesso


à informação e aos meios de comunicação, apoiado mais as rádios
comunitárias, fortalecido mais a televisão pública, a imprensa regional, o
jornalismo independente na internet.

Antes que a Rede Globo me acuse outra vez pelo que não disse nem fiz,
não ousem me comparar ao presidente que eles escolheram. Jamais
ameacei e jamais ameaçaria cassar arbitrariamente uma concessão de TV,
mesmo sendo atacado sem direito de resposta e censurado como sou pelo
jornalismo da Globo”

4. Se, como nos ensinou Carlos Marighella, no texto “A Crise Brasileira” (1966), é necessária
a unidade com diferentes setores, inclusive na órbita de uma burguesia local, contra o
imperialismo, porém é preciso reforçar a hegemonia da classe trabalhadora neste processo.
Essa é a lição essencial. Não é incomum ver a análise de que o “problema esteve nas
alianças espúrias” nas fileiras do Psol ao PT, passando por artistas e pela classe média
radicalizada. Porém, a questão é que as alianças continuarão sendo feitas e sem que se
busque, no interior dela, construir a hegemonia do processo – essa sim a questão central,
lição do processo venezuelano citado acima.

5. Pressionado pela mídia comercial que cobra uma “auto-crítica” petista, como Lula bem
frisou acima, que sabemos ser uma autocrítica que siga atrelando o partido ao tema da
corrupção, é fato que o PT, de maneira geral e entre sua direção, parece hoje acuado em
dar resposta a essa pressão, revela-se até aqui sem capacidade entre seus quadros para
fazer uma análise serena do período anterior e corrigir seus erros táticos e estratégicos.

83 https://www.brasildefato.com.br/2019/11/23/leia-a-integra-do-discurso-de-lula-na-abertura-do-7o-congresso-
nacional-do-pt/

78
Sem capacidade de produzir uma nova síntese para o momento, além do que tem sido
pautado pelas lutas reativas que marcaram 201984.

6. Desde o plebiscito pela Constituinte, em 2014, é fato que a Consulta Popular tem se
posicionado de forma tímida e sem segurança diante das iniciativas da esquerda. Em última
análise, assinamos e endossamos muitas delas, nos resguardando de tomar posições,
sejam críticas no interior da vanguarda, e sem definir a nossa própria linha para determinado
tema. Não conseguimos produzir linhas nítidas para cada período, compreensíveis para a
nossa militância e seu raio de influência85.

7. E agora? A Consulta Popular tem sentido? Seguiremos à sombra da estratégia do Partido


dos Trabalhadores, que conseguiu se reposicionar enquanto polo de resistência (frágil) no
período do golpe contra Dilma e da prisão de Lula; que agora ganha fôlego como liderança
de maior comunicação com o povo; Reafirmaremos nossa posição diante da vanguarda,
mesmo se isso causar atritos com nossa política da unidade entre as forças? Criaremos
força real no interior do sindicalismo, disputando aparatos, mesmo se para isso nosso perfil
tornar-se mais público, abrindo, mas também fechando portas? Seguiremos amarrados à
contabilidade quantitativa de nosso número baixo de militantes, afirmando que teremos
sentido apenas quando crescermos? Entretanto, como iremos crescer sem ter a consciência
de qual é o espaço que ocupamos, nossa linha, nossa política?

8. Encontrar o espaço da Consulta Popular entre a vanguarda, os partidos de esquerda e os


próprios movimentos populares do campo do Projeto Popular não é uma tarefa simples.
Afinal, somos uma ferramenta de natureza diferente dos movimentos de massa e dos
partidos institucionais e de tendências. Não temos um pé na luta institucional, que é a luta
visível e aparente para a maioria dos militantes sociais, inclusive quadros médios e
dirigentes dos movimentos que historicamente conformam a CP.

A Consulta Popular, assim mesmo, é uma ferramenta necessária, pelo que as lutas de
classe em nossa Pátria Grande latino-americana apontam, porque justamente a grande
lacuna dessas lutas tem sido a construção de um partido político com vocação de poder. O
espaço de lutas sociais já têm um leque importante de organizações e o espaço
institucional, idem. Precisamos reafirmar nosso terreno de atuação e o nosso sentido.

Desafios

“Quando o pensante foi surpreendido por uma violenta tempestade estava


dentro de um carro grande e ocupava muito espaço. A primeira coisa que
fez foi sair de seu carro. A segunda coisa, tirar o casaco. A terceira, deitar-
se no chão. Assim ele enfrentou o temporal expondo seu menor tamanho”,
Bertolt Brecht, Histórias do senhor Keuner.

84 A comunicação é cada vez mais central na luta de classes, como deixa nítido o texto da companheira
Joana Tavares no Caderno de Debates anterior. Mas não parece uma reflexão profunda ainda por parte de Lula
sobre a necessidade de meios de comunicação próprios da classe trabalhadora. Nas entrevistas dadas da prisão
em Curitiba, a prioridade era a difusão via mídia comercial e não via construção de mídia alternativa.
85 Recordamos que no episódio do Fora
Cunha, em 2016, tivemos uma nota bastante ousada, várias organizações próximas nos elogiaram por uma
capacidade de iniciativa que o PT muitas vezes não consegue apresentar.

79
O terremoto que move as forças nos países da América Latina não é a mesma tempestade
brasileira que, coloca as forças populares recolhidas. Se as lutas, neste momento, não
tendem a massificar, ou teríamos pouca influência em manifestações esporádicas, a
Consulta Popular deve dar prioridade a se resguardar, ganhar musculatura.

O neoliberalismo é produtor de crises sociais e está no horizonte a possibilidade de uma


revolta de massas no Brasil. Porém, sem um adequado posicionamento e reinserção – por
parte da esquerda, do campo do Projeto Popular e da Consulta Popular – o resultado, já
imprevisível, pode ser de mais repressão ou de fortalecimento do conservadorismo.

O estopim de uma revolta popular pode esbarrar hoje na onda que passa, levando
entusiasmo, fetiche com a criatividade surgida nas ruas, mas caindo no risco de não
conseguir consumar uma alternativa de poder.

O principal desafio da esquerda neste momento é conseguir fortalecer sua base social,
questão comum entre a maioria das organizações e partidos86.

Parece que estamos apressados em compor todas as lutas urgentes. Mas o momento é de
resguardo, precisão nas movimentações e dar conta das tarefas essenciais na construção e
fortalecimento do partido. Temos simbologia, temos História, temos mística, temos
ferramentas de luta com marca de ousadia, não somos um partido de um, mas de vários
elaboradores e formadores; temos tudo para dialogar e encantar os setores – da juventude
universitária ao precário mundo do trabalho -, que venham a se somar nas lutas futuras.

Precisamos:

1 - Consolidar nossos materiais, nossos meios para fazer chegar à militância, aos
estudantes, nossos materiais de propaganda;

2 - Solidificar um programa de formação de nossos quadros que dê conta dos desafios


desse momento;

3 - Atuar entre a vanguarda de forma autônoma, crítica, com a confiança de quem se


destaca com lealdade nos processos unitários, mas sem deixar de afirmar nosso sentido,
nossa simbologia, nossas posições, entre os diversos partidos e entre os movimentos
populares de vanguarda;
4 – Alcançar autonomia financeira;

5 - Criar pontos fortes de organização popular que estejam conectados com os trabalhos de
economia popular. Dar urgência à construção nacional do MTD nessa perspectiva;

6 - Deixar de ser uma organização federativa e passar a pensar a nossa construção


nacional, não deixando as iniciativas políticas apenas para os estados definirem, olhando o

86 Após a vitória de Bolsonaro, se fortalece um clima favorável à unidade da esquerda como não se havia visto
entre 2003 e 2016. Possibilidades de alianças nas eleições municipais; o Psol participando da campanha Lula
Livre, comitês unificados tendo mais vida que a Frente Brasil Popular e a Povo Sem Medo em alguns locais. Mas
as questões mudaram. O problema é a ausência de força social na maioria das organizações.

80
cenário nacional, buscando atuar nele, ser uma organização de fato nacional e não um
consórcio de consultas populares;

Curitiba, 25 de novembro de 2019.

81

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