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Marcelo Gleiser

A nova sopa cósmica


Fótons, prótons e elétrons viviam um triângulo amoroso

Costumo escrever com freqüência sobre a infância do Universo, falando de coisas que
aconteceram há 13,8 bilhões de anos. Volta e meia leitores me perguntam, alguns mais
curiosos, outros mais indignados, como é possível termos certeza do que ocorreu tão
cedo na história cósmica, numa época em que não existiam pessoas, estrelas ou mesmo
átomos para observar e fazer medidas.
A resposta tem duas partes. Uma delas é semelhante ao que diria um paleontólogo:
embora não existíssemos quando os dinossauros reinavam sobre a Terra, podemos
acumular evidências de sua presença e detalhes das várias espécies estudando seus
fósseis. Esse é o modo mais direto de reconstruir o passado, através do estudo de coisas
que foram preservadas e que são acessíveis hoje. No caso do Universo primordial,
temos alguns fósseis também. O mais famoso deles é a chamada radiação cósmica de
fundo, que é composta pelos fótons, as partículas que equivalem à luz e aos outros tipos
de radiação eletromagnética, como os raios X e a radiação infravermelha, que
emergiram do processo de formação dos primeiros átomos, quando o universo tinha a
(relativamente) tenra idade de 400 mil anos.
Antes disso, prótons, elétrons e fótons interagiam violentamente, num triângulo
amoroso que não se resolvia. Com a expansão gradual do Universo, a matéria se
resfriou; no fim das contas, os prótons e elétrons se juntaram para formar os primeiros
átomos de hidrogênio e os fótons passaram a se propagar livremente pelo espaço. Suas
propriedades, estudadas em detalhe em dezenas de experimentos, alguns a bordo de
satélites, permitem a reconstrução do cosmo nessa era tão distante do passado.
O segundo método para estudar a infância cósmica é mais ambicioso: tentar reconstruir
no laboratório as condições presentes nos primeiros instantes de existência do Universo.
A dificuldade é que, quando voltamos no tempo, a matéria fica cada vez mais
comprimida e a temperatura sobe. Por exemplo, na época em que se formaram os
primeiros átomos, a temperatura era de aproximadamente 2.700 graus Celsius, coisa
fácil de reproduzir no laboratório. Como comparação, a temperatura na superfície do
Sol é de 6.000 graus. Mais perto da origem do tempo, a temperatura sobe ainda mais.
Para reproduzir tais condições, são necessárias máquinas que aceleram núcleos
atômicos ou partículas subatômicas até velocidades próximas da velocidade da luz.
Um desses aceleradores é o RHIC (Colisor Relativístico de Íons Pesados), que opera
nos EUA. Seu objetivo é repetir as condições que existiam no cosmo quando tinha
apenas um centésimo de milésimo de segundo de existência. Para tal, núcleos de átomos
de ouro são postos em dois anéis de 3,8 km de diâmetro e acelerados em sentidos
opostos até atingirem 99,99% da velocidade da luz. Depois disso, os feixes de núcleos
são alinhados como duas mangueiras, causando colisões entre deles. Durante frações de
segundo, a matéria na região da colisão atinge temperaturas de 1 trilhão de graus
Celsius: a mesma que existiu na infância cósmica quando nem mesmo núcleos atômicos
estavam presentes. Os próprios prótons e nêutrons se dissolvem em seus constituintes,
os quarks e os glúons. E o que se observa é uma sopa de quarks e glúons semelhante,
mas não idêntica, àquela prevista por teorias que descrevem a infância cósmica. Essas
diferenças podem ter repercussões profundas. Só com novos experimentos poderemos
confirmar o que de fato ocorreu. Felizmente, uma máquina ainda maior entrará em
funcionamento na Europa em 2008. Será o ponto mais quente do cosmo, ao menos hoje
em dia.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor
do livro "A Harmonia do Mundo"

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