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RESUMO RAZÃO,
CONSCIÊNCIA E
O objetivo deste ensaio é apre-
sentar algumas das relações
entre os conceitos de razão,
consciência e ideologia. Nele
serão destacadas relações en-
IDEOLOGIA:
tre ideologia liberal e razão,
e entre o fetichismo e a (fal- ALGUMAS NOTAS
sa) consciência; também se-
rão associadas a razão ins-
trumental e a razão objetiva,
tais como definidas por
Horkheimer, respectivamen-
te com o narcisismo e o amor
objetal, conforme são compre-
J osé L eon C rochík
endidos pela psicanálise. Por
fim, serão discutidos três ti-
pos de ideologia que se apre-
sentam em nossos dias – a
liberal, a tecnicista e a que
se refere à mentira manifes-
ta – e suas relações com ne-
cessidades psíquicas.
O objetivo deste ensaio é pensar algu-
mas das relações entre os conceitos de razão, de
Descritores: razão; cons- consciência e de ideologia. Quando a razão parece
ciência; ideologia; Teoria ter sido reduzida ao pensamento técnico; a cons-
Crítica da Sociedade; Psi- ciência à adaptação aos preceitos vigentes e a ideo-
canálise
logia a ‘livres’ formas de pensar, é importante reto-
mar esses conceitos, considerando que refletem, em
suas contradições e contraposições, uma sociedade
de mal-estar contínuo e desagregador; mal-estar esse
que as ilusões e diversões fornecidas pela cultura
mal conseguem disfarçar. Assim, com o risco de
repetir conceitos sabidos há muito tempo e sem a
riqueza das formulações originais, deve-se voltar a
refletir sobre eles, indicando uma relação entre indi-
víduo e sociedade que continua a viger em termos
talvez mais problemáticos do que os de outrora;
uma reflexão tendo em vista as exigências de adap-
tação do indivíduo a regras sociais que quase anu-
lam as suas possibilidades de resistência, necessária
a uma crítica social fundamentada em apreciação
objetiva.
O texto será dividido em três partes. Na pri-
meira, os conceitos de ideologia liberal e fetichismo
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to; nesse caso, um objeto que só sa- pode se referir à magia, ao feitiço, e,
tisfaz o desejo de manipulação, as- nesse sentido, o esclarecimento é pro-
sociado à onipotência infantil. O en- gressista quando desencanta, mas tam-
canto que liberta está na relação com bém pode significar o que atrai nos-
os objetos, na modificação possibi- sa paixão por aquilo que contém e
litada a eles e a nós; esse encanto se nos afeta, por ser belo, quer no senti-
perdeu na ciência, na técnica e na jus- do histórico, quer natural, como o
tiça, uma vez que estas se tornaram define Benjamin (1939/1989). O fim
meramente adaptativas, presas da do mistério – o desencantamento –
racionalidade instrumental que, é também o fim da busca de relações
como vimos, tem sua base na troca com os objetos. Segundo Horkheimer
mercantil. Assim, o amor ao objeto e Adorno (1947/1985), na crítica que
não pode prescindir da consciência fazem ao esclarecimento: ‘Não deve
da distinção entre esse amor e o su- haver nenhum mistério, mas tampou-
jeito, quer individual, quer coletivo; co o desejo de sua revelação’ (p. 20).
quando isso não ocorre, há o pre- Dessa forma, a psicanálise, ao des-
domínio do sujeito que aniquila o vendar o mistério, pode também
que existe além dele, o que é base desencantar o desejo e auxiliar na cri-
de toda ideologia. ação da frieza. O desejo continuaria
Nessa distinção, a psicanálise a existir, mas agora atenuado pela
pode auxiliar. A psicanálise, no entan- insensibilidade (A questão do encan-
to, como esclarecimento, contém a tamento voltará a ser tratada ao final
contradição; se o esclarecimento deste texto.).
deve desencantar, a psicanálise tam- Se a angústia se refere a algo ines-
bém. Ela aponta para a ilusão de pecífico, o pensamento não deixa de
nossas paixões, deixando o mundo buscar a especificidade dos objetos.
um deserto, tirando todo o sentido Mas aqui cabe uma distinção entre o
doado aos objetos, dirigindo-o aos pensamento que se estrutura no tem-
sujeitos. Esse desencantamento, con- po, no espaço e na lógica e aquele
tudo, tal como o feito em relação aos que se volta para o que foi negado,
mitos, coisifica a alma. A psicanálise, quer individualmente quer coletiva-
assim, não deixa de, ao desvelar o que mente; aquele que não deixa de refe-
se sobrepõe aos desejos infantis rir-se aos tabus (e aqui não se trata
como disfarce, desencantar o sujeito, da razão objetiva, mas de uma que
mas nesse desencanto a vida pode ao negar o existente revele as outras
perder o seu sentido. A objetividade possibilidades até o momento não
do sujeito – seus pensamentos, senti- realizadas: uma razão histórica). Os
mentos, experiências – é reduzida à tabus agem como resistência ao que
infância. Não que essa não tenha im- é proibido, não permitindo compre-
portância, mas, conforme defende endê-lo. O pensamento negativo deve
Adorno (1955/1991), calcado em contrapor-se aos tabus, revelando o
Nietzsche, o que surge depois não é seu anacronismo, ao evidenciar que
menos verdadeiro do que a origem. se antes puderam ser necessários, hoje
Como dito antes, o encantamento talvez não mais o sejam.
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fruto da objetividade, permite que objeto que, por sua vez, como diz
nos defendamos de ameaças do Benjamin (1939) sobre a aura, nos
mundo externo; contudo, ao que pa- retribui o olhar. Percebemos no ob-
rece, também serve de defesa contra jeto o que queremos que ele seja, mas
ameaças psíquicas; serve como ideo- também essa percepção é provoca-
logia e como defesa psíquica, ainda da pelo objeto que nos ‘pede’ para
que ambas não devam ser confundi- ser olhado; nessa relação, o homem
das. Isso implica que esse pensar, ao se constitui. Se o encantamento que
dar as suas formas para a consciên- desvirtua o entendimento deve ser
cia, não permite, por um lado, a ex- combatido, o mesmo não pode
periência com os objetos, pois, se- ocorrer com o encantamento do su-
gundo Adorno (1969/1995), a for- jeito que o move em direção ao ob-
ma não pode experimentar; por ou- jeto; que se expressa nos sentimentos
tro lado, entretanto, oculta e realiza e nos pensamentos; que ao se apro-
desejos inconfessos, relacionados à ximarem dos objetos permitem que
ausência da experiência e a uma falsa estes os levem longe.
onipotência. Essa forma que se re- Já a ideologia que se expressa
pete e reafirma a todo o momento como mentira manifesta dirige-se
o sujeito em detrimento do objeto é diretamente ao que é desejado por
o contrário do pensamento e atende aquele que se sente impotente e pre-
necessidades narcísicas. Assim, o pen- cisa ver confirmada a falsa onipotên-
samento instrumental dirige-se ao cia como defesa. O narcisismo tam-
narcisismo, a um estágio anterior à bém é uma de suas bases: a divisão
constituição de um eu, possibilitada do mundo em fortes e fracos, a iden-
pelas identificações a que se refere o tificação com a força, o culto à saú-
amor anaclítico. de, que serve como defesa contra a
A ideologia como mentira ma- angústia da morte.
nifesta suscita o cinismo, a ideologia Se o narcisismo é base psíquica
da racionalidade técnica suscita o en- dessas duas expressões de ideologia;
cantamento do desencantamento. e se, segundo Adorno (1955), ele im-
Como Horkheimer e Adorno (1947/ plica a renúncia à consciência, a menti-
1985) observam, o esclarecimento ra manifesta dirige-se diretamente aos
visa ao desencantamento, mas a críti- desejos e temores de um eu que se
ca ao animismo, tal como dito antes, sabe frágil e tenta se fortalecer, e a ide-
converteu-se em coisificação das al- ologia da racionalidade tecnológica, à
mas: o sujeito só se expressa como negação desses desejos.
objeto que se repete sem ter consci- Se a vida dirigida à autoconser-
ência disso; como essa repetição está vação já poderia ser superada, mas
associada ao desejo da morte, da não o é, as ideologias atuais fomen-
destruição, ela não deixa de ser en- tam a adaptação à sociedade existen-
cantada, tal como o mito o era. O te, eliminando as possibilidades da
encanto, por outro lado, refere-se à consciência das contradições que nos
paixão pelo objeto, do qual não se levariam a lutar pela sua superação.
consegue desvencilhar; ele dá vida ao Como é possível inferir do trabalho dos
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Horkheimer, M. (1976). A eclipse da razão. 2 Sobre essa questão, consultar Matos (1993).
(S. U. Leite, trad.) Rio de Janeiro, RJ: 3 Horkheimer e Adorno (1947/1985) dizem-
Editorial Labor. (Trabalho original pu- nos que no sonho nos sentimos felizes, uma
blicado em 1946) vez que podemos esquecer quem somos; o mes-
_______ & Adorno, T. W. (1956). Ideolo- mo vale, em alguma medida, para os antigos
gia. In M. Horkheimer & T.W. Adorno. bacanais e para o carnaval, quando este último
Temas básicos de sociologia. (A. Cabral, trad., retinha alguma espontaneidade.
pp. 184-205). São Paulo: Cultrix. 4 Não se deve exagerar essa distinção entre am-
______. (1985). Dialética do esclarecimento. bos os tipos de amor, posto que, mesmo no amor
(G. A. de Almeida, trad.). Rio de Janeiro: anaclítico, os objetos que lhe servem de base
Jorge Zahar. (Trabalho original publica- devem representar situações prazerosas vividas
do em 1947) outrora. Nas palavras de Laplanche e Pontalis
Kant, I. (1991). Crítica da razão pura. In (1988): “Mas é duvidoso que se possa opor, mes-
Coleção: Os Pensadores (V. Rohden & U. B. mo como tipos ideais, escolha narcísica e escolha
Moosburger, trad.). São Paulo: Nova anaclítica. É no ‘pleno amor de objecto segundo
Cultural. (Trabalho original publicado em o tipo anaclítico’ que Freud encontra a ‘hiperva-
1781) loração sexual impressionante que tem justa-
Laplanche, J. & Pontalis, J-B. (1988). Voca- mente a sua origem no narcisismo originário da
bulário da psicanálise (P. Tamen, trad., 10a criança, e corresponde pois a uma transferência
deste narcisismo para o objecto sexual” (p. 211).
ed.). São Paulo: Martins Fontes.
Apesar disso, devemos ressaltar que Freud
Marcuse, H. (1981). Eros e civilização. (A.
(1921/1993b) insistiu em que somente o amor
Cabral, trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Tra- ao objeto combate o narcisismo.
balho original publicado em 1955)
5 “A racionalização privada, o auto-engano do
______. (1998). Industrialização e capitalis-
mo na obra de Max Weber. In H. Marcu- espírito subjetivo, não é o mesmo que a ideolo-
se, Cultura e sociedade. Vol. II. (W. L. Maar, gia, não é a falsidade do espírito objetivo. Não
obstante, os mecanismos de defesa do indiví-
I. M. Loureiro & R. de Oliveira, trad., pp.
duo voltam uma ou outra vez a buscar reforços
113-136). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
nos da sociedade, já estabelecidos e acreditados
(Trabalho original publicado em 1964) muito mais vezes.”
Marx, K. (1984). O capital: Crítica da econo-
6 “Pelos trabalhos realizados no Instituto de
mia política (R. Sant’Anna, trad., 9a ed.,
vol. 1). São Paulo: Difel. (Trabalho origi- Investigações Sociais, que lamentavelmente não
nal publicado em 1867) temos podido desenvolver o suficiente, temos
alguns indícios de que se produz uma curiosa
Marx, K. & Engels, F. (1987). A ideologia ale-
dualidade. Por um lado, os indivíduos são obe-
mã (Feuerbach) (J. C. Bruni & M. A. No-
dientes aos mecanismos de personalização, tal
gueira, trad., 6a ed.). São Paulo: Hucitec. como são exercidos pela indústria da cultura
(Trabalho original publicado em 1847) (recordo os papéis de Soraya e Beatriz); mas,
Matos, O. C. F de. (1993). Iluminismo visioná- por outro lado, se alguém escarva só um pouco(
rio: Benjamin, leitor de Descartes e Kant. São e não necessita nenhum ‘ questionário profun-
Paulo: Brasiliense. do’ para isso; pode-se comprovar facilmente),
Rouanet, S. P. (1985). A razão cativa. São se acautela que os indivíduos sabem, realmen-
Paulo: Brasiliense. te, que o importante não passa pela princesa
Beatriz e pela senhora Soraya, ou quem seja.”
NOTAS
jlchna@usp.br
1 Essa tese é também defendida por Rouanet Recebido em março/2007.
(1985) em seu livro Razão cativa. Aceito em junho/2007.
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