A temática da ressurreição talvez seja um dos assuntos mais controvertidos dos
domínios da Cristologia. Isso porque, ao longo da história, muitos foram os equívocos hermenêuticos que se cometeram ao abordarem o tema. Ao preterirem de uma análise mais acurada do termo, isto é, de apreendê-lo enquanto metáfora viva, ampliação de sentido, eles desarticularam o ideado de ressurreição de seu contexto originário, consequentemente, deturpando o seu significado. Portanto, a tarefa que se impõe a Cristologia é exatamente a de recolocar a eventicidade da ressurreição em seu contexto epocal, a fim de se “desideologizar” o vocábulo e recuperar o seu significado mais primário, de modo que, na medida do possível, aproximemo-nos daquela experiência fundante realizada pelos discípulos da primeira hora, e como eles, assintamos a força desse mistério em nossas vidas. Para tal empresa, se nos é imperioso retornar as escrituras, mais precisamente, aos relatos acerca da ressurreição contidos no Novo Testamento (nos Evangelhos), com o propósito de, primeiro, verificar como podemos compreender tal experiência como reencontro e reconhecimento, depois, investigar em que consiste os seu pontos de convergência, bem como suas incongruências, ou melhor, suas singularidades. Nessa direção, o relato lucano sobre os discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) ser-nos-á de grande auxílio, pois, traz elementos que nos permitirão explicitar de maneira bastante tangível aquilo que temos como sendo a estrutura comum que perpassa todos os relatos concernentes a ressurreição. Sobre essa estrutura, a primeira evidência que nos ocorre é o fato de que Jesus se faz ver, ofertar-se, doar-se, o que sugere que tal fenomenologia não parte dos discípulos, mas do próprio ressuscitado, portanto, a iniciativa é daquele que se faz ver. Em uma linguagem filosófica, diríamos que Jesus é o fenômeno que sustenta o seu próprio ser (Edmund Husserl parte do pressuposto que o fenômeno por si só se sustenta). No relato de Emaús, essa experiência fenomênica se dá no caminho (24, 15), algo típico da teologia de Lucas. Dois discípulos viajavam, discutiam entre si acerca do que havia acontecido em Jerusalém (a morte, o assassinato de Jesus), quando Jesus mesmo se aproximou e pôs-se a caminhar com eles. Aproximar aqui, equivale a se achegar, manifestar-se, dar-se a ver, não obstante, devido aos seus olhos obscurecidos pela tristeza, não o reconhecerão, o que significa dizer sequer o reencontraram (pensaram ser Jesus um andarilho qualquer, um peregrino). De qualquer modo, Jesus ressuscitado se manifesta, e faz todo o sentido que os discípulos não o reconheçam, ora, pois, ao ressurgir da morte, Jesus inaugurou um novo modo de vida, não mais condicionado pelo espaço e pelo tempo (a ressurreição não é revivificação de cadáver, ou seja, Jesus era e não era o mesmo – continuidade, descontinuidade -, por isso, os discípulos só poderiam o reconhecer se fizessem a experiência do ressuscitado). Um segundo elemento importante a se considerar quanto a estrutura comum entres os relatos bíblicos acerca da ressurreição é a atitude de Jesus de apresentar aos seus as marcas da paixão, construção teológica realizada para que se tenha claro que, o Jesus histórico é o Cristo da Fé, e que a ressurreição é o culminar de um processo que já havia começado em sua própria vida, em sua própria condição histórico-humana de um existente. Lucas aborda esses sinais de maneira bastante interessante e pedagógica em seu relato sobre os discípulos de Emaús. Aqui, os sinais são dados ao longo do caminho, não aqueles sinais imprimidos no corpo de Jesus, mas, aqueles tantos outros sinais que remetem aquilo que foi a sua vida. Na narrativa, Jesus é aquele que retoma e problematiza a história, faz memória, discute, dialoga, explica, e ao final, senta-se a mesa com os dois discípulos, toma o pão, parte-o, e ao ser reconhecido por eles, desaparece (24 ,25-32). Este último seria, pois, o gesto mais explícito, o sinal mais visível da paixão de Jesus, o símbolo por excelência do sentido que ele atribuiu tanto à sua vida, quanto, sobretudo, à sua morte: comunhão e entrega. Isso faz sugerir que, a fenomenologia empírica tem o seu tempo de duração, e que a experiência do ressuscitado, no momento mesmo do reconhecimento, o que possibilita o verdadeiro encontro, ultrapassa a simples relação sujeito cognoscente (os discípulos que veem) / objeto cognoscível (Jesus que se dá a ver, a conhecer), afinal, o ressuscitado se lhes torna inteligível na mente e no coração, no âmago de seu ser, em sua própria vida, real presença na mais pura ausência (Jesus ressuscitado não está fora deles, mas dentro, por isso eles não mais precisam vê-lo). Por fim, a ideia de um dinamismo do Espírito, que por seu poder, impele os seguidores de Jesus à missão de anunciá-lo (em Lucas, até os confins de toda a terra), testemunhá-lo com a própria vida, o evangelista o reserva ao Pentecostes (AT 2, 1-13). De qualquer modo, um coração que arde (24, 32), não o faz por acaso, isto é, não é sem razão que a metáfora do coração sempre aponta para experiências fortes e profundas; neste caso, a experiência do reencontro com o ressuscitado, e a partir dele, dos discípulos consigo mesmo, com sua esperança perdida, energia vital exaurida e predisposição à fé adormecida, mas que, doravante, pela força da ressurreição, ganham novo vigor. Ora, pois, se foi por meio de seu Espírito que Deus ressuscitou o seu filho, então, fazer a experiência do “Vivente” (daquele que não morre mais, porque venceu definitivamente a morte) é de alguma forma, antegozar dessa mesma força potencializadora que, na trama de Lucas, dentro em breve, ser-lhes-á comunicada; ademais, experimentá-la o suficiente para sentir o coração arder e recobrar as forças para refazer o caminho de volta à Jerusalém (24, 33). Esta seria, pois a estrutura fundamental comum à todos os evangelhos no que tange aos relatos da ressurreição. Quanto as singularidades do texto dos discípulos de Emaús, uma vez que a própria análise estrutural acima nos propiciou apresentar particularidades teológico-hermenêuticas lucanas, apenas chamaremos atenção para um último detalhe também relevante para a devida compreensão do pensamento do autor, a saber, os títulos atribuídos à Jesus ao longo do texto de Emaús. Primeiro, temos o peregrino; depois, o profeta, em seguida, o libertador, por fim, após partir o pão e ser reconhecido pelos seus, o Vivente (o ressuscitado). Ao que parece, com esse arranjo teológico, Lucas pretende indicar que, só há uma maneira de se fazer uma autêntica experiência da ressurreição: colocar-se no caminho com Jesus, e nesse caminho, que é processo, que é a nossa própria existência, atentar-se à fenomenologia da palavra; palavra essa por meio da qual o ressuscitado, incessantemente, faz se manifestar, dá-se a ver, a conhecer, como que numa cadeia de significantes que, ao se confrontarem com a nossa existencialidade fática, ganham novos significados e aportam às nossas vidas um sentido, uma razão de ser.