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Duarte Afonso

Vidas de Sofrimento

Impressão: Grafimadeira, S.A.


1999

Fotolitos: Maquetizar, lda.

D.P. 138676/99

Tiragem 1000 exemplares

Apoio da Câmara Municipal do Funchal

I Parte

Naquela tarde cálida de Agosto, o Leonel não tinha pressa de chegar a casa. Ao
contrário do que era habitual, em vez de se dirigir para a paragem do autocarro que
o levaria à freguesia do Imaculado Coração de Maria, onde morava, preferiu ir até à
Avenida do Mar, a meditar no que lhe tinha acontecido.
Vagueava naquela Avenida, como um barco à deriva, sem rumo, sem destino. A sua
agitação era enorme, o rosto parecia um mar de gotas de orvalho, que não conseguia
estancar, apesar de as limpar constantemente. Nem o zéfiro que se fazia sentir com
alguma intensidade, contribuía para o aliviar daquela situação.
Já o sol estava escondido e o céu a passar de purpúreo para plúmbeo, quando se
dirigiu para a paragem do autocarro.

A mulher estava preocupada com a demora, por recear que lhe tivesse acontecido
algo de anormal, porque não era costume chegar tão tarde; já tinha manifestado a
sua preocupação às filhas, mas elas tranquilizaram-na, alegando que era natural que
o pai tivesse encontrado algum amigo e estivesse com ele a beber alguma cerveja,
porque o calor era sufocante e convidava a tomar bebidas frescas.
Quando o Leonel chegou a casa, já as luzes estavam acesas. Ia de semblante
carregado e ar sorumbático, a deixar transparecer a preocupação que o atormentava,
por ter sido despedido do hotel onde trabalhava. A mulher, ao vê-lo entrar na
pequena porta que dá para o quintal, junto ao candeeiro de iluminação pública, um
suspiro de alívio rompeu-lhe do coração e uma onda de alegria estampou-se-lhe no
rosto; mas foi só por um momento, porque, quando se aproximou dele, notou que
estava diferente dos outros dias, com ar triste e cansado, o que a levou a
perguntar-lhe:
O que é que te aconteceu para vires nesse estado?
- Não aconteceu nada. É só uma má disposição.
- Não acredito! Deve ter-se passado alguma coisa contigo e estás a escondê-la
de mim. Mesmo que tentes disfarçar não consegues, porque a tua cara não te deixa
mentir.
- Já te disse que é só uma má disposição e se não te importas vai fazer-me um
pouco de chá para ver se isto passa.
- Está bem, eu vou, mas não creio que seja só isso que me estás a dizer; já te
conheço muito bem. Deus queira que esteja enganada.
A Matilde dirigiu-se para a cozinha para fazer o chá e o marido foi descansar.
Deitado em cima da cama, ia meditando no que seria a sua vida dali em diante:
- Como é que eu vou sustentar a casa e manter as filhas a estudar? - pensava
ele.
Embora estivesse convicto que seria difícil arranjar trabalho noutro hotel, ia
tentar e, se não conseguisse, não teria outra alternativa, senão a de ir trabalhar
para a construção civil, ou para a agricultura.

A Margarida e a Carolina estavam a estudar no quarto comum a ambas e nem se


aperceberam da chegada do pai. Só quando a Margarida se dirigiu à cozinha, a
perguntar à mãe se precisava de ajuda para fazer o jantar é que deu pela presença
dele devido a um lamento, que emanou do seu quarto, no momento em que ia a passar
em frente do mesmo.
- Meu Deus, que será da minha vida?- disse ele em voz baixa, mas
suficientemente audível para os ouvidos da filha.
Ao ouvir aquele lamento, pensou para consigo:
O que terá acontecido ao meu pai para se lamentar assim? É melhor ir ver o que
se estará a passar.
Bateu três pancadinhas na porta e simultaneamente chamou por ele.
- Pai, posso entrar?
- Podes, minha filha.
Quando ela entrou, ele enxugou logo as faces do longo e quase silencioso
pranto, com um gesto decidido, como se sentisse vergonha, de toda aquela
debilidade; apesar de ter tentado disfarçar o mais que pode, com um sorriso
forçado, não o conseguiu, porque a sua fronte pesada e merencória traduzia bem a
agitação interior.
Depois de Margarida lhe ter pousado o casto ósculo de filha na face, convidou-a
a sentar-se na cadeira que estava ao lado da mesa de cabeceira, mas ela preferiu
ajoelhar-se em cima do tapete que estava à beira da cama e ficou a olhar para ele
de forma preocupada, devido ao lamento que ouvira e por vê-lo diferente. Por um
momento houve silêncio entre ambos, mas terminado esse interregno a filha
perguntou-lhe:
- O que é que lhe aconteceu, pai, para estar assim tão triste?
- Não aconteceu nada, é só uma má disposição.
- Não acredito.
- Porquê?
- Se fosse só má disposição, não estava triste e tão preocupado.
- Como é que sabes que eu estou preocupado?
- Pela sua cara e pelo seu lamento.

- Pelo meu lamento? Essa agora tem piada, não me lamentei com ninguém, como é
que podes afirmar uma coisa dessas?
- Não disfarce, pai, eu bem o ouvi a lamentar-se.
- Eu não sabia que agora andavas a espreitar atrás das portas. Olha que isso é
feio...
- Deixe-se de coisas, sabe bem que não é meu hábito andar a espreitar atrás das
portas mas, sem querer, ouvi-o a lamentar-se quando ia à cozinha, ver se a mãe
precisava de ajuda e fiquei preocupada. Foi por isso que entrei, para saber o que é
que se passa consigo.
- Já agora, posso saber qual foi o lamento que ouviste?
- Ouvi perfeitamente o pai perguntar-se como é que ia sustentar a família e
manter as filhas a estudar.
Ao ouvi-la proferir estas palavras, não conseguiu evitar o aparecimento de duas
lágrimas que, a muito custo, conseguiu suster e evitar que outras lhes sucedessem,
o que não passou despercebido à filha.
Quando a Margarida ia para falar, ele impediu-a de o fazer, colocando-lhe com
muita ternura a mão direita na boca:
- Não penses que as lágrimas que viste, no canto dos meus olhos são fruto da
minha preocupação. Nada disso! Elas são, isso sim, um sintoma da minha comoção, por
mais esta prova de carinho e ternura que acabaste de me dar e por isso estou muito
feliz e comovido. Tu e tua irmã, sois as melhores filhas do mundo. Fica descansada
que não aconteceu nada de grave. Agora vai ter com a tua mãe, porque pode precisar
da tua ajuda.

A Margarida retirou-se mas, em vez de ir para a cozinha voltou para o quarto,


onde ainda se encontrava a irmã. Ia pensativa e preocupada com o pai: as desculpas
que ele lhe dera não a tinha convencido, a palidez das suas faces, o desalento, as
duas lágrimas ao canto dos olhos e o lamento que tinha ouvido, tinham deixado
transparecer que algo se estava a passar com o pai. Agora, também ela estava
preocupada e essa preocupação alterou imenso a sua maneira de ser, a sua forma de
agir. Ficou triste, já não respondia, com a mesma alegria, às perguntas que a irmã
lhe fazia.
A mudança de comportamento não passou despercebida à irmã que lhe pediu que
explicasse aquela estranha atitude e lhe confiasse a causa de tão súbita e
inexplicável tristeza.
A Margarida ainda tentou esconder aquela preocupação, mas não o conseguiu,
porque os sinais de tristeza eram demasiado visíveis e não os podia esconder, o que
levou a irmã a perguntar-lhe:
- Estás doente Margarida?
- Não, porque é que fazes essa pergunta?
- Acho-te diferente, ainda há bocadinho estavas tão alegre e agora noto que
estás triste.
- Tens razão, estou um pouco preocupada com o pai.
- Ele ainda não chegou?
- Já.
- Então porque é que estás preocupada? Se já chegou, não há motivos para
preocupações.
- Isso é o que tu dizes, Carolina. Quando ia para a cozinha, ouvi-o a lamentar-
se no quarto, a dizer como é que iria sustentar a família e manter-nos a estudar.
- Então passou-se qualquer coisa com o pai. Ele anda sempre tão bem disposto e,
para estar assim e ter esse lamento, coisa boa não foi que lhe aconteceu. O que
teria sido?
- Não sei Carolina.
- Já disseste à mãe?
- Não, e acho melhor não lhe dizermos nada para não ficar aflita.
- Pode ser que ela já saiba, talvez o pai já lhe tivesse dito o que aconteceu,
quando chegou.
- Ponho as minhas dúvidas mas, se ela souber, é capaz de nos dizer, o melhor é
ficarmos caladas e aguardar pelos acontecimentos. Vamos ver o que se passa?
- Vamos.
Dirigiram-se para a cozinha, mas quando ali chegaram ela não estava, tinha ido
levar o chá; regressaram ao quarto e meia hora depois, a mãe foi chamá-las para
irem jantar. Quando chegaram à sala, já o pai ali se encontrava.

Ao vê-las, sorriu e tentou esconder, o mais que pôde, a preocupação que o


atormentava; tal fingimento não passou despercebido à Margarida, que olhou para ele
com ternura, mas também com desconfiança, por notar que o sorriso era forçado e não
espontâneo.
O Leonel apercebeu-se do reparo e compreendeu que era muito difícil manter
aquela situação sem contar à mulher e às filhas o que se tinha passado. Por um
momento, sentiu necessidade de se libertar daquela pressão e procurava as palavras
adequadas, para expor tudo o que estava acontecer; mas, no momento em que tentava
fazê-lo, as palavras ficaram retidas na garganta, porque a voz da prudência o
aconselhou a esconder, por mais algum tempo, aquela situação. Agora, só lhe restava
fazer um esforço suplementar e apelar a todas as energias, para poder continuar a
resistir por mais algum tempo, até chegar o momento oportuno para poder contar à
família e libertar-se da preocupação que tanto o afligia.
Logo que se sentou à mesa, tentou obter o controlo das conversas e desviá-las
para outros assuntos, para evitar que lhe fizessem perguntas, às quais não estava
interessado em responder; mas debalde.
Embora se esforçasse por esconder da mulher e das filhas a realidade dos
factos, a verdade, porem, é que o seu semblante não o ajudava e não conseguiu
evitar que a mulher voltasse de novo a inquiri-lo.
- Ó homem, tens de nos dizer agora o que se passou contigo; as nossas filhas
também já se devem ter apercebido que tu estás diferente e isso preocupa-me e
também as preocupa a elas, porque não estamos habituadas a ver-te assim. Por amor
de Deus, diz-nos o que se passa contigo.
- Pronto, lá estás tu com as tuas manias, já te disse que não aconteceu nada,
foi só uma má disposição.
- Não digas isso homem, eu sei que aconteceu, não queres é dizer.
- Porque é que dizes isso, és bruxa?
- Não, não sou bruxa, mas sinto uma coisa dentro de mim, que me diz que se está
a passar alguma coisa e boa não é.

- Já te disse que não tenho nada, se quiseres acreditar acredita, se não


quiseres não acredites, o problema é teu.
- Está bem, homem, fica com a tua, que eu fico com a minha, a ver vamos.
Quando acabaram de jantar, o Leonel foi de novo para o quarto, a Margarida foi
atrás dele, a irmã e a mãe ficaram a lavar a loiça e arrumar a cozinha. No momento
em que ele estava a entrar no quarto, ouviu a filha a chamá-lo:
- Pai, pai!
- És tu, Margarida, diz lá.
- Desculpe estar sempre a falar no mesmo assunto, mas estamos muito
preocupadas, por não sabermos o que se está a passar consigo. Está doente? Alguém
lhe fez alguma partida? Nós sabemos que está a sofrer e não há maneira de dizer o
que se passa para o podermos ajudar.
O pai ouvia as palavras da filha, com o coração a sangrar, por não poder dar
respostas sinceras às perguntas que ela lhe fazia, mas não podia, porque o momento
não era oportuno e receava que, se o fizesse, as respostas lhes pudessem trazer
mais sofrimento, por não estarem ainda preparadas para receber as notícias e por
não ter conseguido ainda, encontrar algum elemento que as pudesse tranquilizar.
A filha, enquanto fazia as perguntas, ansiosa por que o pai lhe respondesse,
olhava para ele, como que a querer ler-lhe na fisionomia a explicação do enigma que
o atormentava.
Depois de ter manifestado a sua preocupação, bem como a da mãe e a da irmã e
ter terminado as perguntas, o pai, com muita ternura, disse-lhe:
- Eu sei que vos preocupais muito comigo, mas agora não há motivos para
preocupações, já disse o que tinha a dizer, não vale a pena insistir mais.
- Pronto, não volto a falar mais no assunto, mas veja se arranja outra cara
mais alegre.
- Vou fazer o possível, agora se não te importas deixa-me descansar um pouco.

Quando o pai entrou para o quarto, a Margarida voltou de novo para a cozinha.
Quando ali chegou, a irmã que a tinha visto ir atrás dele, não se conteve sem lhe
perguntar:
- Foste ver se conseguias convencer o pai a desabafar?
- Fui, mas não consegui nada.
- Não vale a pena insistirmos, o melhor que temos a fazer é deixar passar mais
algum tempo a ver no que isto vai dar e não devemos pressionar mais, porque assim
ainda é pior.
- Acho bem, o pai nem sequer se despediu de mim, talvez com o receio que lhe
fizéssemos mais perguntas - disse a Carolina.
- Tens razão, filha, ele anda muito preocupado, mas quer carregar a cruz
sozinho, agora vamos para a caminha que já são horas.
A Carolina e a irmã despediram-se da mãe e foram deitar-se. Logo de seguida,
ela fez o mesmo.
Quando se deitou, notou que o lado do marido estava muito molhado de tanto ter
transpirado, o que veio trazer mais algumas achas para a fogueira das preocupações,
por saber que raramente transpirava e quando tal acontecia, era nas noites
demasiado húmidas, o que não era o caso. Embora estivesse ansiosa por saber o que
lhe estava a acontecer, não lhe fez qualquer pergunta para não o perturbar ainda
mais, preferia que fosse ele a tomar a iniciativa. Levantou-se e foi à cómoda
buscar-lhe um pijama, para substituir o que estava molhado. No momento em que o
marido o estava a trocar, e como que a querer justificar toda aquela transpiração,
para não a afligir ainda mais, disse:
- Não fiques preocupada por estar assim a transpirar. Foi devido ao último chá
que me fizeste, por tê-lo bebido muito quente.
- Está bem, homem, agora vê se dormes, porque amanhã tens de te levantar cedo
para ires para o trabalho.
Mais uma vez a mulher lhe tocou na ferida, mas ele não reagiu, apenas lhe deu
um beijo e lhe desejou boa noite.

No dia seguinte, levantou-se à hora habitual, como se fosse para o trabalho.


Foi para a baixa do Funchal e como ainda era cedo, sentou-se num banco do jardim, o
que deu azo a apoderar-se dele uma enorme sonolência, por não ter conseguido dormir
durante a noite. Eram dez horas, quando começou a procurar trabalho. Andou de
hotel, em hotel, mas não conseguiu ser aceite em nenhum deles. As respostas que ia
obtendo, eram quase sempre as mesmas: agora não admitimos ninguém. Num desses
hotéis, ainda lhe alimentaram uma ténue esperança, quando lhe disseram que para o
fim do ano, talvez fosse possível admiti-lo.
Quando terminou a via-sacra pelos hotéis, ainda era cedo para regressar a casa
e era necessário esperar algum tempo para chegar mais ou menos à hora do costume,
para não levantar ainda mais suspeitas à mulher e às filhas.
Dirigiu-se para a esplanada de um café, situado no centro da cidade, pediu uma
cerveja e ali ficou a meditar na melhor solução, para resolver a sua vida. Mas, por
mais que pensasse nada lhe vinha à mente para o tirar daquela situação. O ar triste
e a fronte pesada, eram sintomas indesmentíveis da agitação interior. Soprava uma
pequena brisa, que não impedia que do seu rosto se soltassem pequenas gotas de
água, que iam escorrendo pelas faces, enquanto não as limpava. Nem as nuvens cor de
fogo, nem o sol com todo o seu esplendor, quando se dirigia para o esconderijo, lhe
despertaram a atenção. Só acordou daquela meditação, quando um amigo se aproximou
dele e lhe deu duas pancadinhas nas costas, ao mesmo tempo que o inquiria a
respeito do ar sorumbático que deixava transparecer, ao invés das outras vezes que
se encontravam, que o via sempre com ar jovial.
- Estás doente, Leonel?
- Não.
- Alguma coisa se passa contigo. Estás triste, estás diferente, o que é que te
aconteceu?
- Estou preocupado.
- Porquê?
- Despediram-me do hotel, alegaram que o turismo estava atravessar uma crise.
- Despediram-te só a ti?
- Não, despediram mais quatro.

- Deixa lá, fecharam-te uma porta, hão-de abrir-te outra. Não é caso para te
deixares ir abaixo. Assim ainda é pior. Tens de reagir. Se não conseguires agora,
vais conseguir daqui a mais algum tempo.
- Não vou esperar mais tempo. Amanhã vou tentar arranjar trabalho nas obras
como servente de pedreiro e se não conseguir, vou procurar na agricultura, alguma
coisa se há-de arranjar, nem que seja a cavar bananeiras.
- Olha lá, uma vez que estás na disposição de ires trabalhar para as obras,
porque é que não aproveitas e vais para a França, agora lá é que está a dar. Tenho
um amigo que foi para lá a salto, há pouco mais de um ano e tem ganho muito
dinheiro, já está a pensar em comprar uma casa.
- Mas isso é muito arriscado - disse o Leonel.
- É capaz de ser, mas olha que está a ir para lá muita gente, principalmente do
continente e estão a dar-se muito bem. Às vezes lá há um ou outro que tem azar e é
apanhado na fronteira, mas a grande maioria salva-se.
- És capaz de ter razão, também já ouvi dizer que se ganha lá muito dinheiro.
- Disso não tenho dúvidas Leonel. Ganha-se lá mais num mês, do que aqui em dois
ou três.
- É capaz de ser boa ideia Diogo, vou pensar nisso.
- Pensa e, se resolveres ir, diz-me, que é para entrar em contacto com o meu
amigo, para te dizer como é que hás-de fazer.
- Obrigado, Diogo, tenho o número do teu telefone. Se resolver ir para lá,
entro em contacto contigo.
A hora do Leonel ir para casa aproximava-se e o amigo também não podia ficar
mais tempo, porque ainda tinha de ir para Santana onde residia. Despediram-se e
cada um foi ao seu destino.
Já dentro do autocarro, o Leonel ia pensando na ideia que o amigo lhe
transmitira e tinha a sensação que o pesadelo que o atormentava, desde o dia em que
foi despedido, ia dissipar-se e começava a acreditar que iria vencer a crise,
porque já via uma pequenina luz ao fundo do túnel.

A ideia de ir trabalhar para a França, levou-o a pensar imenso e analisar


cuidadosamente, os aspectos positivos e negativos, que tal situação recomendava.
Depois de muito reflectir e ponderar, chegou à conclusão, que a melhor decisão a
tomar seria a de tentar a sua sorte naquele país.
Quando chegou a casa, embora ainda fossem visíveis no seu rosto, alguns
sintomas de preocupação, já não se comparavam com os do dia anterior. Ia mais
alegre, com um sorriso natural e mais falador. Não fora os pequenos vestígios de
preocupação, dir-se-ia que já tinha debelado a crise. Mas não era bem assim: apesar
de ver à sua frente um futuro mais promissor e mais risonho para a sua família e
para si, quando pensava nos inconvenientes de tal decisão, vinham-lhe à mente
muitos pensamentos preocupantes e desmotivadores, que o levavam algumas vezes a
arrefecer o seu entusiasmo e até a desistir da ideia. Entre esses pensamentos, o
que mais o atormentava era o facto de ter de se separar da mulher e das filhas e
ainda o receio de ser preso, porque o regime vigente não dava tréguas e fazia uma
vigilância apertada, principalmente junto à fronteira: havia muita gente a ir
clandestinamente para a França à procura de um futuro melhor e isso incomodava
demasiado o governo, porque havia muitas aldeias, principalmente do interior, a
despovoarem-se, chegando ao ponto de, em muitas delas, ficarem só mulheres, idosos
e crianças.
Embora estivesse à frente do governo, o professor Marcelo Caetano mantinha o
mesmo regime, apesar de algumas aberturas aqui e além. Mas os pensamentos positivos
do Leonel sobreponham-se aos negativos, o que lhe davam a força suficiente e a
coragem necessária para enfrentar a situação.
A mulher, ao vê-lo entrar pela porta do quintal, foi ao seu encontro e assim
que o viu, leu-lhe no rosto a boa disposição que emanava do seu interior; ia mais
alegre e mais corado, como se uma onda de sangue lhe tivesse invadido as faces, com
a mesma rapidez com que lhas empalidecera no dia anterior. Sem dar azo a que a
mulher lhe fizesse qualquer pergunta, foi ele que se antecipou e, com uma voz
ressonante e melodiosa, disse-lhe:
- Ora viva quem é uma flor!
- Uma flor a ficar envelhecida por causa dos desgostos da vida.

- Não digas isso, estás aí que nem uma rosa acabada de desabrochar.
- Mas que elogio! Onde é que aprendeste essa filosofia?
- Com os turistas do hotel.
- E tu, onde é que foste aprender essa palavra tão elegante?
- Com as nossas filhas, não te esqueças que já temos uma no quinto ano e outra
no sexto. Mas deixemo-nos de brincadeiras. Que bicho te mordeu, para um dia
apareceres em casa com cara de inverno, branco como a cal da parede, sem quereres
falar com ninguém e no outro apareceres com cara de primavera, vermelho como um
pimentão, a falar dessa maneira, como se nada tivesse acontecido?
- São os desgostos e alegrias da vida, como tu dizes.
- Estou a falar a sério, o que é que se passou contigo?
- Um pequeno percalço, mas quando formos jantar conto tudo o que se passou.
- Porque é que não me contas já?
- Prefiro esperar para o jantar, porque quero que as nossas filhas também
saibam.
- Ó homem, assim ainda me deixas mais preocupada, sem saber o que te aconteceu!
- Não te aflijas, não é nada que não possa ser resolvido aliás, já resolvi.
- Por isso é que vens contente. Pelo menos isso deixa-me mais tranquila, já que
não me queres dizer agora, vou acabar de preparar o jantar para contares essa
historia o mais depressa possível.
- Não é ainda cedo para jantar?
- Não, até é tarde, quanto mais cedo jantarmos, mais cedo fico liberta deste
sufoco.
- Vai então, que eu ainda fico por aqui mais um pouco, depois chama-me.
- Está bem, até já.

A Matilde enquanto ultimava o jantar, não parava de pensar no que teria


acontecido ao marido. E se alguns pensamentos lhe traziam alguma luz e
tranquilidade, outros conduziam-na por abismos e areias movediças, como se
estivesse a caminhar no meio das trevas. Embora já faltassem poucos minutos, para
que o marido desvendasse o mistério, pareciam-lhe horas, chegando a pensar, que o
relógio estava parado, tantas eram as vezes que olhava para ele e tão grande era a
ânsia de querer que os ponteiros avançassem.
Um quarto de hora depois, a Matilde foi ao quintal chamar o marido e passou
pelo quarto das filhas a chamá-las também.
O Leonel já tinha exumado o passado e devassado o futuro, mas de tudo o que
revia e antevia, apenas estava interessado em contar à mulher e às filhas, os
aspectos positivos e com eles, pintar um quadro de sonhos e esperança de modo que
olhassem para ele, como quem olha para a primavera, com o céu azul, o sol a brilhar
e os campos a florir.
Quando chegou à sala de jantar, já a filha mais velha ali estava a acabar de
pôr a mesa. Tinha as feições amorosas, os olhos perscrutadores e sagazes, de uma
sagacidade incómoda, o que deixava antever a pré-desposição em tentar interrogar o
pai, no sentido de lhe arrancar a confissão do enigma que tanto a preocupava. Mas o
pai já tinha a lição bem estudada e ao aperceber-se do ar perscrutador da filha foi
ele quem tomou a iniciativa da conversa.
- Diz-me uma coisa, Margarida, qual é a carreira que pretendes seguir medicina,
direito, arquitectura?
- A que propósito vem essa pergunta agora? - disse a Margarida com cara de
desconfiada.
- Estás com cara de quem tem jeito para a investigação.
- Nesta situação qualquer um tinha jeito para investigar; quero que o pai se
deixe de evasivas e nos diga de uma vez por todas o que é que se está a passar
consigo.
- Está bem, não te aflijas, espera que a tua mãe e a tua irmã venham para
sossegar as vossas cabecinhas.

Alguns minutos depois, chegava a Matilde, com a terrina de sopa e a Carolina


com os guardanapos que ainda faltavam pôr na mesa. Depois de estarem todos
sentados, e ao contrário do que seria de esperar, houve um longo silêncio, como que
à espera uns dos outros, para ver quem tocava primeiro no assunto. A situação não
era normal, nem vulgar. O Leonel embora estivesse preparado para dar a notícia, não
se sentia muito à vontade, por ter medo da reacção da mulher e das filhas. Estas,
embora estivessem ansiosas por saberem as novidades, também estavam receosas de as
ouvir, por pensarem que as mesmas seriam desagradáveis, o que originou aquele
silêncio, longo e inesperado.
Foi a Matilde a primeira a romper o silêncio e a ir direita ao assunto:
- Agora que já estamos todos, está na altura de deitares cá para fora o que
tens para nos dizer:
- Das notícias que tenho para dar, uma não é agradável, mas a outra é.
- Ó homem, desembucha, não nos faças esperar mais tempo. Afinal que notícias
são essas?
- Já não trabalho mais no hotel, fui despedido. Mas não fiqueis preocupadas que
já decidi o que vou fazer e, se Deus me ajudar, ainda vamos ficar melhor.
Ao ouvirem estas palavras, tanto a Matilde como as filhas ficaram surpreendidas
e preocupadas, mas essa preocupação foi atenuada por pensarem que a boa notícia que
tinha para lhes dar era a de que já tinha arranjado emprego noutro hotel.
- Porque é que o despediram e para onde é que vai trabalhar agora? - Perguntou
a Carolina.
- Alegaram que tinham pessoal a mais e o sector do turismo está a atravessar
uma crise.
- Foi só a si que despediram?- interrompeu a Margarida.
- Não. Mandaram mais quatro para a rua.
Mas já conseguiste arranjar trabalho noutro hotel? - perguntou a mulher com uma
ansiedade enorme.
- Não! Procurei mas está muito difícil. As portas onde bati fecharam-se todas,
já decidi ir trabalhar para a França. Lá é que se ganha muito dinheiro. Esta era a
boa notícia que tinha para vos dar.

A mulher e as filhas ao ouvirem estas palavras, sentiram como se o mundo


tivesse desabado sobre as suas cabeças. Ficaram atónitas, a olhar umas para as
outras em silêncio e, de vez em quando, fixavam o olhar impaciente no chefe de
família, como que a pedir mais explicações para tão inesperada e preocupante
notícia.
A vida corria sempre sem crises nem contrastes na casa do Leonel. À parte uma
ou outra contrariedade que por vezes surgiam, tudo era ultrapassado, porque havia
compreensão mútua entre todos e vontade de resolver os problemas, sem recriminações
nem amuos, mas com compreensão e amor.
Recompostas do choque, por tão inusitada notícia, voltaram a fazer perguntas ao
Leonel, de forma ansiosa, com o intuito de afastarem dele a ideia de ir para a
França, ou então, de obterem respostas convincentes, de forma a acalmar os seus
corações, que começavam a bater mais intensamente.
- Tu não estás bom da cabeça! Já reparaste nos perigos que vais correr, sujeito
a seres preso e na situação em que nós ficamos?
Seguiu-se um longo silêncio como se todos tivessem necessidade de fazer uma
reflexão profunda a respeito do que acabavam de ouvir.
As autoridades faziam uma vigilância apertadíssima nas fronteiras, mas não era
só pelo facto de algumas aldeias começarem a ficar despovoadas. Se, por um lado, a
situação trazia um descrédito muito grande para o governo, por outro dava-lhe
jeito, porque quanto mais pessoas iam para a França, mais divisas entravam no país;
divisas essas que eram bem vindas, por causa da despesa que estava a ter com a
guerra do Ultramar.
Quebrado o silêncio, foi o Leonel a reiniciar o diálogo, para tentar acalmá-las
e fazer valer os seus pontos de vista.
- Calma aí! Vós estais só a ver as partes negativas e a pensar de uma forma
radical,- disse ele, em tom enérgico.
- A mãe e a mana não estão a exagerar- interrompeu a Carolina.

- Porque é que dizes isso?- perguntou o pai.


- Uma colega esteve a dizer que o pai foi para a França a salto, mas sofreu
muito para chegar lá; o grupo onde ele ia foi interceptado pela guarda republicana
já perto da fronteira. Cada um fugiu para seu lado, mas muitos foram presos, só o
pai dela e mais sete ou oito colegas que iam com ele, é que conseguiram escapar.
Agora não podem vir cá, porque os companheiros que não conseguiram fugir foram
obrigados a dar informações deles e, se vierem a Portugal, são presos e nós não
queremos que suceda o mesmo ao pai.
- Ouviste, ouviste? - Disse a mulher, ao mesmo tempo que lhe escorriam pelas
faces algumas lágrimas.
No momento em que as lágrimas se desprendiam, parecia que uma mão invisível
tocara a corda de sensibilidade no coração do Leonel, o que o levou a arrefecer um
pouco a sua decisão, mas não o suficiente para o afastar dos objectivos
pretendidos. Ele não esperava uma reacção tão forte da mulher e das filhas.
Precisava, pois, de mais argumentos para as convencer. Por um momento, ficou calado
a procurar no seu interior as respostas adequadas, enquanto a mulher e as filhas as
aguardavam em silêncio.
As perguntas que elas lhe fizeram e os argumentos que utilizaram eram demasiado
fortes e pertinentes, o que o levaram a reflectir imenso e procurar as palavras
certas que o momento exigia. Estas brotaram-lhe, doloridas, mas sem fraqueza,
sustentadas por argumentos que a própria filha lhe oferecera:
- Olha lá Carolina, tu disseste que o pai da tua colega, sofreu muito para
chegar a França, não é verdade?
- É.
- A tua colega não te disse mais nada?
- Disse que agora está bem, já compraram uma casa com o dinheiro que ele
enviou.

- Aí tendes a resposta. Se eu ficar cá, é muito provável que não consiga


emprego noutro hotel e não terei outra solução senão a de ir a trabalhar para a
construção civil ou para a agricultura e não conseguirei ganhar o suficiente para
sustentar a casa e manter-vos a estudar. Se for para a França, não vos irá faltar
nada; passais a ter uma vida melhor, podeis ir estudar para a universidade e ainda
teremos a possibilidade de comprar uma casa. Se não for a trabalhar para lá, nunca
passamos da cepa torta.
- Mesmo assim, é preferível vivermos mal e até as nossas filhas deixarem de
estudar, do que te vermos na prisão,
- Lá estás tu com os teus pessimismos, mulher. É certo que vou correr um risco,
mas temos de ter fé e esperança. Há imensos emigrantes em França e não só, também
os há e muitos, nos países vizinhos, na Bélgica, na Alemanha, na Suíça, no
Luxemburgo e quase todos foram a salto, porque o governo dificulta ao máximo a
saída para o estrangeiro, pelas vias legais. Hoje estão bem e se não tivessem
arriscado, muitos deles viviam na miséria.
- Mas também os há que estão mal, os que são presos na fronteira e antes de lá
chegarem, - disse a Carolina.
- É verdade, mas são poucos, são os filhos da pouca sorte.
- E quem sabe se tu não serás um deles?
- Não sejas derrotista, mulher, temos de ter fé e esperança. Assim não vamos a
parte nenhuma.
- Quer dizer que neste caso o risco compensa?- perguntou a Margarida.
- Claro que compensa! Na vida temos de correr riscos e este é um daqueles que
vale a pena correr! se eu tivesse deixado o hotel para ir para a França, era
diferente, porque deixava o certo para ir à procura do incerto mas neste caso não
tenho alternativa nos hotéis não consigo arranjar trabalho, só me resta ir
trabalhar para as obras ou cavar bananeiras.
- Também não gostava de ver o pai a trabalhar nas obras ou a cavar bananeiras.
Não quero dizer que não seja um trabalho digno como outro qualquer, mas o pai
sempre teve um serviço leve e trabalhar nas obras ou na agricultura é muito duro e
não está habituado- disse a Carolina.
- Mas tenho de me habituar minha filha. O trabalho não me mete medo, mas
trabalhar nas obras aqui ou em França, o trabalho é duro na mesma e lá ganha-se o
dobro ou triplo do que se ganha aqui. Por isso é que vale a pena arriscar.

Quando acabou de proferir estas palavras, a mãe olhou para as filhas com ar de
preocupação e encolheu os ombros, resignada.
Neste momento, ele estava senhor da situação e tinha a firme convicção de que o
primeiro obstáculo estava ultrapassado e os objectivos pretendidos estavam
alcançados.
Quando acabaram de jantar, a Matilde e a Margarida foram para a cozinha lavar a
loiça, enquanto a Carolina ficou a arrumar a mesa.
O Leonel estava visivelmente bem disposto e aproveitou a ocasião para gracejar
um pouco com ela. No dia anterior, tinha-a visto acompanhada com um rapaz que
apresentava ter mais ou menos a idade dela e isso serviu de pretexto para lhe fazer
algumas perguntas e alimentar a sua boa disposição.
- Ontem ias bem acompanhada Carolina. Eu não sabia que já tinhas um galito
arrastar-te a asa...
A Carolina ficou surpreendida e pensativa com aquela conversa e não conseguiu
reagir. Ficou vermelha, sem articular qualquer palavra.
O pai, ao vê-la tão corada, foi em seu auxílio e disse-lhe:
- Não fiques assim, minha jóia. Eu só estava a brincar contigo: Não queria de
maneira nenhuma recriminar-te, podes andar à vontade com os teus amigos, desde que
seja dentro da ética e haja respeito mútuo. E pousou-lhe na testa um beijo cheio de
ternura.
Aquele gesto encheu-a de orgulho filial e deu-lhe a tranquilidade suficiente,
para ultrapassar o rubicão e poder falar à vontade a respeito do rapaz.
- Tem cada uma! Se todos os rapazes com quem falo me andassem a arrastar a asa,
não diria que era só um galito, mas sim uma capoeira de galitos.
O pai sorriu e disse:
- Gostei dessa resposta, mas não podes negar, que ontem ias com um rapaz mais
ou menos da tua idade.
- É verdade! Mas, já agora, para ficar mais sossegado, sempre lhe direi que é
meu colega do liceu: É rico, bom rapaz e gosto dele. Já está satisfeito?

- Já. Mesmo que não dissesses nada, ficava satisfeito na mesma. Podia ter-te
feito outra observação qualquer, mas como ias acompanhada com o rapaz, foi a
primeira que me veio à cabeça. Só disse isto para brincar contigo, porque ainda és
muito nova para namorar, não é verdade?
- Não é bem assim lembre-se que já fiz dezassete anos, tenho colegas da mesma
idade e até mais novas que já namoram, mas, por enquanto não namoro, o que não quer
dizer que não possa acontecer em qualquer altura.
- Fazes bem filha! Primeiro estão os estudos e agora com a minha ida para
França, tenho esperanças de que tu e a tua irmã venham a ser alguém, porque vou ter
possibilidade de vos pôr a estudar, numa universidade no continente.
- Deus queira, pai! É sinal de que tudo irá correr bem.
- Há-de correr se Deus quiser!
Quando terminaram o diálogo, o Leonel estava muito bem disposto, desejou-lhe
uma noite feliz, passou pela cozinha para desejar o mesmo à mulher e à outra filha
e, de seguida, foi deitar-se. Meia hora depois elas fizeram o mesmo.
Já nos respectivos quartos, todos pensavam no que tinha acontecido. Parecia que
a principal tormenta tinha passado e estavam na fase do rescaldo. O receio juntava-
se à esperança, a alegria e a tristeza habitavam na mesma morada. Todos tinham
receio que a tempestade voltasse com mais violência e destruísse a alegria e o bem-
estar daquele lar. Mas havia também a esperança de aparecer a bonança e, com ela,
um futuro mais risonho e ainda mais alegre para toda a família. A decisão estava
tomada; a mulher e as filhas estavam resignadas, agora restava apenas esperar o que
o futuro lhes tinha reservado.
No dia seguinte, o Leonel telefonou para casa do amigo que morava em Santana,
para lhe comunicar a decisão que tomara e para lhe propor um encontro o mais
urgente possível, para poderem falar sobre o assunto: Seria no dia a seguir que era
um Domingo.

No mesmo dia em que o Leonel ia a Santana, havia um baile no Ateneu Comercial


do Funchal, para o qual a Margarida e a irmã estavam convidadas. Embora tivessem
ficado radiantes com os convites, já tinham posto de parte a ideia de irem devido
aos acontecimentos que tinham surgido em casa. Mas depois do pai as ter
tranquilizado e a mãe incitado a irem, acabaram por mudar de opinião.
A Margarida já tinha telefonado ao namorado a avisá-lo que não ia ao baile, mas
depois de ter mudado de opinião, voltou a telefonar, para lhe comunicar a última
decisão e para marcarem novo encontro.
A tristeza que lhes ensombrava o rosto dias antes, dava agora lugar à
jovialidade habitual; os receios que se tinham instalado nas suas mentes, por causa
do que tinha acontecido ao pai, pareciam ultrapassados.
No dia seguinte, à hora marcada, o Raúl foi buscá-las a casa no seu próprio
carro. Era um Volkswagen de cor verde, bem tratado, o que chamava a atenção das
pessoas, principalmente das raparigas, por não haver ainda muitos na altura.
Quando chegaram ao Ateneu, já o baile estava animado. Sentaram-se numa mesa
ainda disponível que se encontrava a um canto da sala.
A Margarida e o namorado foram logo dançar um tango que o conjunto tocava no
momento. A Carolina ficou sentada à espera que o Eduardo aparecesse, conforme
tinham combinado na véspera. Ela já não sentia só amizade por ele. Sentia algo
mais. Havia já indícios de paixão e uma atracção cada vez mais forte. O mesmo se
passava em relação a ele que só se sentia bem ao pé dela e quando não estavam
juntos, telefonava-lhe amiúde.
Enquanto esperava, dois rapazes foram convidá-la, mas ela recusou.

No dia anterior ao baile, a irmã do Eduardo tinha-lhe dito que a sua amiga
Mónica também ia e se não se importava que ela fosse com eles. Tinha combinado com
um grupo de amigos do liceu, para se encontrarem lá e gostaria de ficar na mesma
mesa. O irmão não fez qualquer objecção, uma vez que também ia o grupo de amigos
dela e assim já podia divertir-se com eles, deixando-lhe o caminho livre para poder
estar com a Carolina.
Logo que chegaram ao Ateneu, a Sara foi dançar com o namorado e a Mónica
manifestou o desejo de dançar com o Eduardo. Ele aceitou, uma vez que a Carolina
ainda não tinha chegado e convicto, que o grupo da amiga da irmã não tardaria a
chegar. O tempo ia passando, mas os amigos da Mónica não chegavam e começava a
ficar numa situação embaraçosa: se, por um lado, queria ver-se livre dela por
outro, não tinha coragem para a deixar sozinha, sentada à mesa, por achar que não
seria correcto. A Carolina já tinha chegado, mas ele não se tinha apercebido da sua
chegada. Só deu pela sua presença quando a viu dançar com o namorado da irmã.
Ela ia observando os pares que se encontravam a dançar, muitos deles eram seus
colegas. Num dos momentos em que o seu olhar percorria toda a pista, viu, ao fundo,
o Eduardo a dançar com outra rapariga muito agarradinhos.
Naquele momento, um onda de sangue corou-lhe as faces, algumas palavras
brotaram-lhe do coração, mas ficaram retidas na garganta; apenas uma chegou aos
seus lábios que foi pronunciada muito baixinho.
- Mentiroso!
Quando o conjunto terminou a série, todos os pares foram ocupar as suas mesas;
o Eduardo e a companheira dirigiram-se para a sua, onde se encontravam sentados a
irmã e o namorado.

A Carolina não tirava os olhos daquela mesa. Mas, para seu desespero, o Eduardo
sentou-se numa posição, que tornaria difícil olhá-lo de frente. Só quando a irmã
desviava a cabeça, ora para um lado, ora para o outro, é que conseguia pousar o
olhar no rosto dele, de uma forma fugidia, o que não era suficiente para lhe dizer
com os olhos, o que sentia naquele momento Porém, teve tempo suficiente para
observar a conversa que ele mantinha com a companheira de dança e isso ainda lhe
trouxe mais desespero e simultaneamente revolta, por saber que não estava a ser
sincero e que as palavras lindas, cheias de sonhos que lhe dissera na véspera pelo
telefone, não passavam de pura fantasia.
O abalo que sentira naquele momento era notório, o que não passou despercebido
à irmã e ao namorado, o que levou este a perguntar-lhe:
- O que é que a minha futura cunhadinha fez, ou lhe fizeram, para estar com
essas faces tão vermelhas?
- Nada! Disse ela, secamente, ao mesmo tempo que apareciam duas pequeninas
lágrimas a dançar ao canto dos olhos.
- Nada? perguntou a irmã e acrescentou:- esse vermelho nas tuas faces e as
lágrimas ao canto dos olhos, dizem que alguma coisa menos agradável se passou
contigo.
- A tua irmã tem razão. Não coramos nem choramos, sem termos motivos e, para
estares assim, é porque tens motivos. Algum malandreco fez-te alguma partida? Diz-
me que eu puxo-lhe as orelhas.
Quando o Raúl disse estas palavras, um sorriso forçado apareceu-lhe nos lábios
e algumas palavras soltaram-se-lhe da boca, bem elucidativas da revolta que sentia
naquele momento.
- Não devias puxar-lhe as orelhas. Devias era arrancar-lhas, porque era o que
ele merecia.
- Foi o Eduardo que te fez alguma partida?
- Foi, olha para aquela mesa, ali em frente.
- É ele, mais a irmã e o namorado, mas também está outra rapariga com eles.
- Pois está, deve ser a namoradinha dele.
- Tens razão, Carolina. Ele procedeu mal. Se queria vir acompanhado não devia
ter insistido contigo para vires e não andava a fazer-te promessas- disse a irmã.
Aos poucos, o rosto da Carolina ia ficando com a cor normal, mas algumas
lágrimas teimavam em aparecer e só não escorriam pelas faces, porque o esforço para
as suster era enorme e sempre que apareciam, limpava-as logo, com um lenço de
bordado madeira, que o próprio Eduardo lhe oferecera no dia dos anos.

A irmã estava preocupada por vê-la assim, tentou animá-la o mais que pôde e
disse-lhe:
- Olha Carolina, o que tens a fazer, é deitar este episódio para trás das
costas e divertires-te com outros rapazes, como se nada tivesse acontecido e
esperares que o tempo diga o que está reservado para ti.
- Eu tenho uma sugestão a fazer-te,- disse o Raúl.
- Qual é?
- Quando o conjunto começar a tocar outra série, vais dançar comigo e passamos
junto deles, de modo a que ele te veja, para vermos a reacção dele.
- Boa ideia, Raúl . Mas talvez seja melhor dançar com outro rapaz, pretendentes
não me faltam; na série anterior, recusei dois convites e o rapaz que me fez o
último tem estado a olhar muito para mim. Já fez um gesto a convidar-me para a
série seguinte.
- Ainda bem! Vais dançar com ele e depois logo vês qual a reacção do Eduardo-
disse a irmã.
Quando o conjunto começou a tocar, o Eduardo foi novamente dançar com a mesma
rapariga. A Carolina, ao vê-lo, sentiu um atordoamento, mas era preciso não se
deixar abater e reagir com calma e prudência àquela situação. Apesar das suas
dezassete primaveras e ainda na idade dos verdes anos, mantinha a jovialidade de
menina, mas já tinha a compostura da mulher feita, regia a sua conduta pelos
ensinamentos que os pais lhe tinham ensinado e à irmã, ainda no berço, baseados no
respeito para com o próximo, na ética e na moral. Também sabia ser meiga para os
meigos, dura para os que o eram. Sabia agir no momento certo, sem rebuço, nem
hesitação. Foi o que fez naquele momento.
Quando a Margarida se ia levantar para ir dançar com o namorado, a Carolina,
depois de ter reflectido um longo momento, disse para a irmã:
- Tenho outra ideia, Margarida.
- Qual é?

- Vou aceitar a sugestão do Raul. Vou dançar com ele, para evitar que o Eduardo
me atire com poeira aos olhos; era capaz de dizer que também não o respeitei e não
cumpri com o que tínhamos combinado, se me visse a dançar com outro rapaz. Assim,
fica a saber que só dancei com outros rapazes, depois da garotice que ele me fez.
- Óptimo! - disse a irmã.
O Raul e a Carolina foram dançar e logo que se levantaram, um rapaz aproximou-
se da Margarida, a convidá-la, tendo levado de imediato uma tampa. Tanto a
Margarida como a irmã eram muito lindas, ambas de estatura média, mas com uma
grande diferença nos olhos e no cabelo: a Carolina tinha o cabelo loiro e os olhos
azuis, mais parecida com o pai; a Margarida tinha os olhos e o cabelo castanhos,
mais parecida com a mãe. Por isso, não era de admirar que os rapazes as cortejassem
com muita frequência.
À medida que iam dançando, iam-se aproximando do Eduardo e quando chegaram bem
perto dele, fizeram um rodopio de modo a que a Carolina ficasse voltada para ele.
Quando estavam frente a frente, ela lançou-lhe um olhar severo e frio, bem
demonstrativo da indignação que lhe ia na alma. Ele não resistiu ao olhar e, como
que envergonhado, voltou os olhos para o outro lado, fixando o olhar por um momento
num quadro com uma paisagem do Ribeiro Frio, que estava pendurado na parede. A
Carolina e o Raul, ainda permaneceram por mais algum tempo perto dele e da
companheira mas, depois da missão cumprida, foram-se afastando, até chegarem perto
da mesa onde estava a Margarida.
Agora, a Carolina já não tinha necessidade de continuar a dançar com o Raúl e
por isso, pediu-lhe para irem sentar-se e para ir dançar com a irmã. Ele fez-lhe a
vontade e alguns minutos depois, já andava a dançar com a namorada, enquanto a
Carolina permanecia sentada. Alguns minutos depois, o rapaz que lhe tinha feito o
segundo convite foi convidá-la de novo para dançar. Desta vez não recusou.
Depois do Eduardo ter visto a Carolina, formou-se no seu interior uma enorme
tempestade de revolta, que urgia por fim, antes que transbordasse para o exterior e
causasse estragos, principalmente na grande amizade que tinha com a irmã, por ser
ela a principal causadora daquela situação.

À medida que ia dançando, ia-se notando nele uma enorme indiferença para com a
companheira, apesar de esta, se mostrar solicita e atenciosa. Algum tempo depois,
chegou a reflexão a dominar a tempestade interior, ou antes, a alumiar os seus
destroços.
Ele sabia que a Carolina tinha razão e merecia uma explicação mas receava que
ela não a aceitasse, porque o comportamento que tivera para com ela, fora
incorrecto e indigno. Agora, a sua atenção concentrava-se na Carolina. O seu olhar,
sempre que podia, fixava-o nela como que a querer dizer-lhe alguma coisa, mas
quando a viu levantar-se e ir dançar com outro rapaz, o seu coração tumultuava
cheio de amor, ciúme e revolta.
- Para que é que eu fui na conversa da minha irmã? Se ela anda a fazer algum
arranjinho com a sua amiguinha, está muito enganada! - pensava ele.
Quando a série terminou, foram sentar-se; o Eduardo estava um pouco mal
humorado, o que levou a irmã a perguntar-lhe:
- Passa-se alguma coisa contigo?
- Não me sinto bem, vou para casa.
- Porquê? andavas tão bem disposto e de um momento para o outro ficaste com
cara de caso - disse a irmã.
- Se calhar não gostas de dançar comigo, nem da minha companhia- perguntou a
Mónica.
- Não digas isso! Eu que estou um pouco mal disposto, não sei se foi alguma
bebida que me fez mal, ou se foi outra coisa qualquer.
- Se não te sentes bem, o melhor é ires embora e não andares aqui contra a tua
vontade - disse o namorado da irmã, que já se tinha apercebido do olhar
persistente, que o Eduardo pousava na Carolina.
- Tens razão Horácio, não me sinto bem, vou-me já embora.

A irmã depois de ter ouvido aquela conversa do namorado, apercebeu-se de que


ele sabia mais alguma coisa a respeito da atitude do irmão e que a mesma deveria
estar relacionada com alguma rapariga. A mudança brusca que se verificou no seu
rosto veio ainda a dar mais razão ao seu pensamento. Mas, se alguma dúvida ainda
ficasse a respeito de tal pensamento, ela dissipou-se quando o irmão se despediu
dela e lhe disse muito baixinho, mas o suficiente para ela ouvir.
- Temos que falar!
A irmã ainda pensou em inquiri-lo a respeito daquela observação, mas acabou por
não lhe dizer nada, receosa de obter alguma resposta desagradável. A atitude e a
observação do irmão deixaram-na pensativa e sem grande vontade de continuar no
baile. Apenas dançou mais uma série com o namorado e depois foram todos embora.
A Carolina continuou a dançar com o rapaz e enquanto o Eduardo ali esteve,
sempre que podia, olhava para ele, embora de soslaio, para não se aperceber que o
estava a vigiar e para não pensar que já tinha esquecido a partida que lhe fizera.
Notava nele uma enorme diferença de comportamento em relação à Mónica: estava mais
triste, mais frio, com ar de preocupado, ao contrário do que acontecera, antes de a
ver dançar. Mas o que a deixou mais pensativa foi ele ter-se ido embora algum tempo
depois de ter terminado a série. No momento em que estes pensamentos lhe ocorriam,
um suspiro de alegria rompeu-lhe do coração, ao mesmo tempo que renascia uma
pequena esperança de que tudo se iria recompor e começava acreditar que o Eduardo
teria uma boa justificação para lhe dar. E, se antes de se ir embora tentava
esquecê-lo, depois daquela reflexão, tentava vê-lo através da névoa luminosa da
imaginação. O próprio rapaz que dançava com ela, notou-lhe essa diferença de
atitude. Se antes ela falava animadamente com ele e respondia logo às perguntas que
lhe fazia, agora já não respondia com a mesma prontidão e algumas das perguntas
ficavam sem resposta, o que levou o rapaz a perguntar-lhe:
- A Carolina anda a dançar comigo e já há um pouco que venho a notar que o seu
pensamento anda muito longe ou então sou eu que me estou a tornar maçador; se for
este o caso, peço desculpa e prometo que não a importuno mais com as minhas
conversas.
- Mas que ideia a sua, Pedro : Eu é que lhe peço desculpa de ter andado um
pouco distraída e distante com os meus pensamentos.
- Pensava em algum rapaz do liceu?
- Não, não era em nenhum rapaz do liceu.

- Pode-se saber em quem pensava?


- Pode. Era no meu pai.
- No seu pai?
- Sim, no meu pai. Não posso pensar nele?
- Pode, mas nos bailes pensa-se em quem se gosta.
- Aí está, pensava no meu pai, porque gosto muito dele. Não costuma pensar no
seu?
- Costumo e muito; gosto imenso dele, mas não era isso que eu queria dizer.
Peço desculpa por não me ter exprimido bem. Claro que os nossos pais são os
melhores tesouros do mundo. O que eu queria dizer é que, nestes lugares, os rapazes
pensam mais nas raparigas e as raparigas nos rapazes.
- Compreendo-o perfeitamente, mas estava mesmo a pensar no meu pai
- O seu pai não está cá?
- Está, mas por pouco tempo. Quer ir para a França e eu tenho receio que não se
dê bem e não sei como é que irei suportar a ausência dele.
- Tudo há-de correr bem! Ele depois vem cá visitá-la e à sua família e lá
sempre se ganha mais.
- Porque é que diz isso? Há quatro ou cinco meses foram para lá a salto dois
colegas que foram despedidos do hotel, trabalham num restaurante e estão muito bem.
Eu, se não estivesse a estudar, também tinha ido com eles
- Já me disse que trabalhava num hotel, mas ainda não me tinha dito que
estudava.
- É verdade! Trabalho de dia e estudo à noite. Estou no quarto ano da escola
industrial.
No momento em que o Pedro lhe dizia estas palavras, o conjunto terminou a
série, mas ainda teve tempo de a convidar para a seguinte, mas ela recusou,
desculpando-se que estava um pouco cansada e não lhe apetecia dançar mais.
Quando foi sentar-se, manifestou à irmã o desejo de ir para casa, mas ela
pediu-lhe para ficar mais um pouco, somente enquanto iam dançar a última série.

Enquanto a Margarida e o namorado estavam a dançar, a irmã permanecia sentada a


aguardar que a série terminasse. Durante este período, três rapazes foram convidá-
la mas ela recusou, alegando que estava cansada e nem os suspiros do galã, nem as
facécias do gracioso a convenceram; mas, o último que a foi convidar, era um galã
de gema e não se conteve sem dizer com ar de gozo e comportamento gingão:
- Tão nova e já cansada. O que será de ti, quando tiveres mais idade?
A Carolina olhou para ele com desdém e respondeu-lhe:
- É verdade! Mas às vezes, também nos cansamos com a maneira grosseira e ar
petulante, que certos hipócritas exibem quando se aproximam de nós. O Galã não
replicou e foi-se embora.
A Carolina manteve-se sentada enquanto a série não terminou. À sua frente, numa
outra mesa que entretanto vagara, foi sentar-se o Pedro. De vez em quando fixava o
olhar nela, como que a querer dizer-lhe com os olhos o que não fora capaz quando
dançara com ela.
A Carolina mantinha um ar natural, como se nada estivesse a acontecer, mas no
momento em que os olhares se encontravam, sentia abrir-se uma pequenina brecha no
seu coração, a qual se fechava logo quando pensava no Eduardo.
À medida que os minutos iam passando, os olhares do Pedro começavam a ser mais
frequentes, porque sentia que não eram totalmente desprezados.
Logo que o conjunto terminou a série, a Margarida e o Raúl foram ocupar os seus
lugares e alguns minutos depois, foram todos embora.
Quando a Sara chegou a casa, já o irmão estava à sua espera, com um enorme
conflito interior, por não saber como agir entre a amizade e a dignidade. Era como
se estivesse num tribunal doméstico, sem saber como haveria de preparar o libelo
que iria apresentar à irmã. Se por um lado tinha fortes motivos para a censurar
pelo comportamento indigno que tivera com ele, por outro, a grande amizade que lhe
tinha desmotivava-o agir de forma mais dura.

Depois de muito reflectir, conseguiu finalmente concluir o libelo: não era


agressivo de forma a comprometer o bom relacionamento com a irmã, mas era
suficientemente claro para lhe demonstrar o seu repúdio pela forma como ela o
tratara.
Estava ainda a reflectir no assunto quando ouviu duas pancadinhas na porta do
quarto.
- Posso entrar? - perguntou a irmã.
- Entra, já estava à tua espera.
- Estás zangado comigo?
- Não, zangado não estou, mas estou sentido, porque o que tu me fizeste é muito
feio e não esperava um golpe tão baixo da tua parte.
- Também não é assim! Tudo tem uma explicação. Embora agora reconheça que o meu
comportamento não foi o mais correcto, a verdade é que agi sem intenção de te
magoar; pelo contrario, pensava que estava a agir para teu bem.
- Para meu bem! Não me faças rir Sara. Agora és tu que decides por mim? Tu
sabes bem que os pais não queriam que namorasses com o Horácio e confesso que eu
também não vou muito com a cara dele, mas sempre te defendi e nunca tentei arranjar
nenhum amigo para namorar contigo.
- Posso explicar?
- Explica à vontade. Agora por mais explicações que dês, já não consegues
evitar o mal que fizeste com o teu procedimento.
- Como ela é minha amiga, boa pequena, filha de boa família, rica e está sempre
a falar em ti e por saber que não tinhas nenhuma rapariga na tua vida, quis ser
agradável com ela. Só que não era bem assim. Quando o Horácio me disse que estava
uma rapariga sentada numa mesa que não tirava os olhos de ti e depois do teu
comportamento e da tua saída extemporânea, é que fiquei a saber que há outra
interessada em ti e, pelo que estou a ver, também estás interessado nela.
- Estou. E não te admito que te metas na minha vida e não me arranjes ciladas,
nem complicações. Apesar de ser tua amiguinha e ter essas qualidades todas, eu é
que sei de quem gosto e de quem não gosto.

- Fica descansado! Hoje foi a primeira e última vez que te causei problemas. Só
quero que sejas feliz e escolhas o caminho que achares que é o melhor para ti. Não
ficas zangado comigo?
- Não.
- Ainda bem! Amiguinhos como antes? A nossa amizade não pode ser destruída.
- Está nas tuas mãos, Sara, ou melhor, na tua cabeça- disse o Eduardo, com ar
sisudo.

No dia seguinte, o Leonel levantou-se mais cedo do que era habitual para ir
apanhar a camioneta que ia para Santana.
A manhã estava agradável, o astro-rei ainda não tinha despontado e soprava uma
pequena brisa, quando a camioneta partiu em direcção à costa norte. À medida que se
ia afastando do Funchal, pela estrada serpenteada, o Leonel ia observando o encanto
da cidade. Olhava para baixo - via o mar a beijar-lhe os pés; estendia o olhar até
aos picos - via as nuvens a afagarem-lhe o rosto; descansava os olhos nas encostas
e via as casas pintadas de branco com os seus telhados vermelhos, em conjugação com
o verde das plantas, a oferecerem uma paisagem de beleza inolvidável. Quando chegou
ao Poiso, viam-se algumas aves de rapina, a voar com todo o esplendor a olhar para
as encostas e vales à procura de alguma presa que por ali andasse distraída. No
Ribeiro Frio, a camioneta fez uma pequena paragem. Embora o Leonel já por ali
tivesse passado, nunca tinha tido a oportunidade de ver na sua plenitude aquele
lugar paradisíaco, apertado entre montanhas. Era a primeira vez que observava
aquele sítio com atenção. Dali, podia observar o verde das plantas espalhadas pelas
encostas, ouvir o chilrear dos pássaros e o cantar da água no ribeiro, inalar o
aroma das flores oferecido pela Mãe Natureza. Naquele momento parecia que o tempo
tinha parado. Estava definitivamente rendido àquele cenário. Pensava para consigo
mesmo que afinal há um mundo maravilhoso à nossa volta mas, infelizmente, não o
queremos ver e estamos a destrui-lo aos poucos, sem nos apercebermos que também nós
estamos a ser destruídos. Lembrava-se de uma conversa que um ecologista tivera com
ele, quando o servia à mesa no hotel onde trabalhava.

- Se os homens não acordarem de vez, se os senhores que governam o mundo,


continuarem a dar prioridade às bombas, às armas químicas, às experiências
nucleares e se continuarem a contaminar a atmosfera, cada vez mais estaremos em
perigo. A água que bebemos e o ar que respiramos estarão cada vez mais poluídos; a
desertificação dos solos será cada vez maior; as florestas estarão cada vez mais em
perigo, devido aos incêndios e sem árvores não há chuva e sem chuva não há vida.
- Estava tão absorvido com aqueles pensamentos que não dava pelo tempo a
passar, nem se lembrava que tinha de ir ocupar o seu lugar na camioneta para
continuar a viagem.
Foi preciso o motorista ir ter com ele e dizer-lhe:
- Então, meu amigo, o senhor quer ir a pé para Santana? Os passageiros já estão
todos dentro da camioneta e já estamos um pouco atrasados.
- Desculpe, Sr. Motorista! Estava tão concentrado a ver a paisagem e absorvido
nos meus pensamentos que nem me lembrava que tinha vindo de camioneta.
O Leonel continuou a sua viagem e ia sempre observando a paisagem. Quando a
camioneta começou a descer para o Faial, a mesma voltou de novo a deslumbrá-lo. As
casas espalhadas pelas encostas faziam lembrar os presépios na época do Natal; mais
ao longe, viam-se altos picos com algumas nuvens à sua volta. Já perto de Santana,
via-se a paisagem salpicada com as casas típicas feitas de colmo por mãos
habilidosas.
Quando a camioneta chegou à paragem, já o amigo do Leonel estava à espera.
Depois de se terem cumprimentado, foram até uma taberna que estava ali perto para
provar o vinho afamado que o proprietário costumava ter. Dali foram a pé para casa
do Diogo que ainda ficava um pouco distante. Pelo caminho, iam falando no assunto
que levara o Leonel àquela localidade, mas o Diogo aproveitou a ocasião para o
convidar para comer uma espetada.
O Leonel, ao princípio, estava um pouco renitente, mas acabou por aceitar
devido à insistência do amigo.

Embora o Leonel continuasse com a mesma força e determinação, para levar a sua
ideia até ao fim, de vez em quando era atormentado pelo pesadelo que o perseguia,
por não saber se estava no caminho certo ou se estava a trilhar o caminho errado,
que o levaria ao abismo, do qual já não seria capaz de sair. Naquele momento, esse
pesadelo voltou de novo a preocupá-lo e a sua preocupação era tão evidente que
fácilmente se notava no seu rosto, o que levou o amigo a perguntar-lhe:
- Acho-te um pouco pálido Leonel, estás doente?
- Doente não estou, mas confesso que ando preocupado com receio de que me
esteja a meter nalgum sarilho, com consequências imprevisíveis.
- Não penses nisso! Tudo há-de bater certo! O que é preciso é ter pensamentos
positivos e seguir em frente. Eu, se pudesse, também ia para a França, mas tenho
aqui os pedacinhos de terra, sempre vivi deles, e custa-me deixá-los abandonados,
embora reconheça que lá ganhava muito mais dinheiro.
- Não tens quem trate deles?
- Não, a minha mulher não pode acudir a tudo, a minha filha é muito nova e além
disso, não queria vê-la agarrada a isto. É um trabalho muito duro e para se ganhar
alguma coisa, é preciso trabalhar muito. Vou tentar mantê-la a estudar para ver se
lhe consigo dar um curso superior. Se não conseguir, terá de arranjar um emprego de
acordo com os estudos que tiver, mas sempre é melhor do que isto.
- Vais conseguir e a Soraia bem o merece. É muito boa menina e boa aluna. A
melhor coisa que se pode dar aos nossos filhos são os estudos. Eu também gostava de
dar um curso superior às minhas filhas mas nesta situação não sei o que é que o
futuro me reserva.
- Há-de ser um futuro bom se Deus quiser, mas agora vamos pensar só em coisas
boas e arranjar boa disposição e apetite para comer a espetada que eu vou preparar.
Quando chegaram a casa, o Leonel foi cumprimentar a mulher do Diogo e depois
seguiram ambos para o quintal, a preparar o petisco.

Embora fosse hábito naquela casa assarem a espetada no forno, naquele dia não o
puderam utilizar, porque estavam a fazer-lhe umas pequenas reparações e, por esse
motivo, resolveram assá-la em metade de um bidão velho, que, para o efeito, tinha
sido preparado na véspera. As brasas já estavam em condições de receber a carne,
porque o Diogo antes de ir esperar o amigo, tinha acendido o lume e pedido à mulher
que fosse olhando por ele durante a sua ausência. Já com as brasas preparadas, o
Diogo enfiou em quatro paus de louro, os pedacinhos de carne muita tenra, de uma
vaca, que ele próprio criara.
Quando estava em condições de ser servida, a Filomena colocou uma toalha em
cima da mesa que estava no quintal, debaixo de uma frondosa árvore e foi à cozinha
buscar as verduras, as semilhas as batatas fritas e o milho frito, enquanto o
marido se encarregava de ir à adega buscar o vinho.
Depois de estarem bem almoçados e bem regados, sentaram-se numas cadeiras que
estavam debaixo da mesma árvore e ali tomaram o café. O dia estava quente, mas
corria um pequenina brisa e em conjugação com a sombra da árvore, proporcionavam
uma temperatura agradável e uma sensação de bem-estar naquele local.
Agora, o Leonel já estava bem disposto e animado, porque a conversa que tivera
com o amigo e com a mulher dele, durante o almoço o enchera de esperança e já via a
situação com muito mais optimismo. A conversa estava tão animada que nem davam
pelas horas a passar, só quando o Leonel olhou para o relógio é que se apercebeu
que já era tarde e já não podia demorar-se mais, porque a camioneta que vinha de
Ponta Delgada estava quase a passar e só teve tempo de se despedir dos amigos e da
filha deles que acabara de chegar de uma festa de anos de uma amiga. O Diogo foi
com ele até à paragem e pelo caminho voltou a falar-lhe da sua ida para a França e
disse-lhe:
- Ó Leonel, já pensaste que tu até és um felizardo, em relação aos outros
emigrantes que vão para a França?
- Porque é que dizes isso?
- É que tu já não tens problemas com a língua deles, já estás habituado a falar
com os turistas e isso é uma grande vantagem.

Isso é verdade. Não tenho nenhuma dificuldade em compreender e falar com


franceses, ingleses e até alemães.
- Como já estás habituado a trabalhar em hotéis, vou pedir ao meu amigo para
ver se te arranja trabalho nalgum deles ou em algum restaurante. Ele está muito bem
relacionado com gente que trabalha nesse ramo.
- Isso é que eu agradecia imenso. Se não puder ser num hotel que seja em
qualquer coisa similar. O que é preciso é trabalhar para ganhar algum dinheiro
- Fica descansado. Ele vai fazer tudo o que puder, pois é bom e gosta de ajudar
o próximo. Ainda hoje lhe vou escrever a contar a tua situação e a pedir-lhe para
me escrever o mais urgente possível, a informar como é que deves fazer para ir para
lá.
- Obrigado Diogo. Não sei como é que te hei-de agradecer
- Não tens nada que agradecer. Então os amigos não são para as ocasiões? Vá.
Agora dá cá um abraço que a camioneta já vem aí e logo que tiver notícias telefono-
te.
- Está bem, fico a aguardar o teu telefonema.
- Boa viagem, Leonel.
- Obrigado Diogo.
Durante a viagem de regresso ao Funchal, o Leonel ainda ia observando a
paisagem, mas agora o seu pensamento vagueava por caminhos muito longínquos, entre
vales e montes floridos, pensando no futuro risonho que se aproximava e na
felicidade que iria dar à mulher e às filhas; e mesmo quando o pensamento se
aproximava de obstáculos e abismos, tentava sempre torneá-los e seguir em frente.
Quando chegou a casa, a tarde começava a dar lugar à noite, a cor verde das
bananeiras plantadas no morro que ficava em frente do quintal, ia tomando o aspecto
cinzento escuro que precede a cor fechada da noite.
A mulher e as filhas já estavam ansiosas que chegasse, para saberem como lhe
tinha corrido o encontro.
A Carolina estava à janela e logo que o viu, numa voz ressonante de modo a que
pudesse ser ouvida pela mãe e pela irmã, anunciou-lhes a chegada do pai e que ia
ter com ele.

Quando se aproximaram, o pai pousou-lhe na fronte um beijo paternal e com ar


alegre e sorriso rasgado disse-lhe:
- Hoje tive honras redobradas.
- Porque é que diz isso?
- Porque a minha princezinha veio esperar-me à porta.
- Não gostou da surpresa?
- Gostei e muito,...
No momento em que mantinha esta animada conversa, apareceram também a mulher e
a outra filha e, antes de as cumprimentar, ainda teve tempo para lhes dizer:
- Assim a guarda de honra fica mais completa e eu fico mais vaidoso.
- Os ares de Santana parece que fizeram muito bem ao pai, a mim também já me
fez a mesma observação- afirmou a Carolina.
- Já reparei nisso. Estás mesmo com cara de quem passou um dia em cheio,- disse
a mulher.
- É verdade, venho mesmo satisfeito, não só pelo acolhimento que me foi dado
pelo meu amigo Diogo e pela esposa como também, pelo agradável passeio.
- Ainda bem! Estamos felizes por vê-lo assim tão bem disposto, mas o pai ainda
não nos falou nada do encontro, só disse que foi bom.
- Não foi bom. Foi muito bom! Fizeram questão que almoçasse com eles e
conversamos muito a respeito da minha ida para a França.
- Pelos vistos, o senhor Diogo animou-te muito.- referiu a mulher.
- É verdade, animou-me bastante. Disse que ainda hoje ia escrever ao amigo e
pedir-lhe para ver se me arranjava trabalho num hotel ou nalgum restaurante e como
é que eu hei-de fazer para ir para lá.
- Assim já é melhor. O pai já não vai às escuras. Já tem lá quem o ajude e se
conseguisse ir trabalhar para um hotel ou para um restaurante era muito bom, já se
livrava de ir para as obras.- Comentou a Margarida.

- É verdade! Ele, além de me encorajar, lembrou-me ainda o facto de saber falar


francês, o que já era um privilégio em relação aos emigrantes que vão para lá sem
saberem uma palavra e isso já é muito bom. Agora estou bastante animado - tenho a
possibilidade de ir trabalhar para a minha área, a ganhar muito mais dinheiro do
que ganhava aqui, para poder pôr as minhas princezinhas a estudar numa universidade
do continente, porque quem tem estudos, já é meio caminho andado para triunfar na
vida, como diz o meu amigo Diogo.
- Isso é verdade homem! Mas há um pormenor que me tem andado a mexer com a
cabeça e tu ainda não nos disseste como é que vais resolver a situação.
- Diz lá mulher, o que é que te preocupa, que eu ainda não te tivesse
explicado?
- Se vás para lá clandestinamente, como é que consegues vir cá sem teres a
papelada legal? Por estes anos mais próximos não podes vir cá e se vieres estás
sujeito a ser preso. Já viste bem no que te vais meter?
- Não te preocupes mulher! Depois de estar lá é mais fácil arranjar a papelada.
O governo já não põe muitos obstáculos porque são mais divisas que entram no país;
O Diogo esteve a dizer-me que o amigo dele, um ano depois de ter ido para lá já
tinha a situação regularizada.
A mulher e as filhas estavam satisfeitas porque a conversa que o Leonel tivera
com elas, as tranquilizara imenso, o que levou a Joaquina a gracejar:
- Hoje mereces um bom jantar. Vamos para cima: Já almoçaste há muito tempo e
com a viagem, já deves estar com fome.
- O marido sorriu e disse:
- Vamos então! Venho um pouco maçado da viagem. Vou até ao meu quarto descansar
um pouco.
Logo de seguida a mulher foi acabar de preparar o jantar, enquanto as filhas
foram pôr a mesa. Depois de tudo pronto a Carolina foi chamar o pai.
A boa disposição reinava entre todos. Era como se tivesse sido construída uma
muralha invisível em volta das suas cabeças, para não deixar entrar os maus
pensamentos, para que reinassem só os bons.

Foi neste clima de boa disposição que a Carolina se lembrou de fazer uma
pergunta ao pai, que não pudera ser feita antes por falta de oportunidade.
O pai - nem sempre se dá bem com os passeios por causa do enjoo. O que é que
aconteceu para o passeio ser assim tão agradável?
- Tu, olhinhos de gatinha, nunca deixas passar nada. É verdade: Foi uma viagem
maravilhosa. Senti-me muito bem e deu para pensar muito sem ser só na minha ida
para a França.
- Em que pensava, pai?
- Mas que curiosidade! Pensava em vós, na natureza... Temos cá coisas tão
lindas e nem sempre lhes damos a devida atenção, sempre a correr de um lado para o
outro, como se o mundo acabasse já amanhã.
- É verdade pai. Uns dias antes das férias, numa aula dedicada à natureza, o
professor também alertava para o facto de perdermos imenso tempo com coisas
supérfluas e não nos preocuparmos com coisas essenciais, como é o caso da natureza.
- Não imaginais como me senti quando cheguei ao Ribeiro Frio. Na curta paragem
que ali fizemos, fiquei maravilhado a olhar para aquele cenário, até foi preciso o
motorista ir chamar-me para retomar o meu lugar.
A Margarida, ao ouvir aquele episódio, começou a rir-se:
- O pai correu um enorme risco. Se não fosse a gentileza do motorista,
arriscava-se a ficar lá.
- Ele foi muito simpático. Felizmente tudo correu bem.
Quando acabaram de jantar e depois de terem tudo arrumado, foram para o quintal
apanhar um pouco de ar fresco porque a noite estava quente e a claridade da lua
cheia convidava.
No dia seguinte, já era tarde quando a Margarida e a irmã se levantaram, o que
as impossibilitou de irem até ao Lido e a deleitarem-se com a agradável temperatura
da água.
Nas noites que se seguiram, passaram a deitar-se mais cedo, porque não
prescindiam de ir à praia e gostavam de ir cedo, para apanharem o sol da manhã.
Na Segunda feira da semana seguinte, estavam a sair de casa para irem apanhar o
autocarro que as levaria até ao centro da cidade, para depois seguirem para o Lido,
quando o carteiro se dirigiu à Carolina para lhe entregar uma carta.
Ficou surpreendida porque nunca tinha recebido nenhuma, embora já tivesse
recebido alguns bilhetes de colegas, uns bastante interessantes, outros nem tanto.
Olhava para a carta como o detective olha para um objecto que levanta
suspeitas, porque não trazia endereço, nem nada que pudesse identificar o autor ou
a autora.
A curiosidade de saber de quem era a missiva era enorme e não se conteve sem a
abrir, para matar a curiosidade. Logo que a abriu, os seus olhos percorreram-na de
relance e deram logo com a assinatura do Pedro. Naquele momento, corou, o coração
estremeceu, a ansiedade de a ler aumentou.
A irmã, ao ver aquela transformação momentânea, disse-lhe a sorrir:
- O Eduardo nem sequer esperou para falar contigo pessoalmente, talvez por ter
receio que não fosse bem sucedido devido ao comportamento estranho que teve e por
isso, resolveu escrever-te a dar uma explicação.
- Não é do Eduardo- disse a Carolina com um brilho nos olhos.
- Não é do Eduardo?- perguntou a irmã com cara de espanto.
- Não. É do Pedro, daquele rapaz que dançou comigo no baile do ateneu.
- Olá! Já tens mais um pretendente interessado em ti...
- Mas eu gosto mais do Eduardo, embora não desgoste do Pedro.
- Tens de ter muito cuidado, porque nunca se sabe qual a intenção deles. Muitas
vezes querem andar connosco só para passar tempo e às vezes ainda há os gabarolas
que dizem que fizeram isto e aquilo e nós é que ficamos queimadas.

- Fica descansada que eu não vou em conversa fiada; Para já, e embora goste do
Eduardo, se ele vier ter comigo, não penses que o vou receber como se nada tivesse
acontecido. Não vou dar parte de fraca e hei-de manter a minha personalidade.
- Fazes bem!
Durante a viagem, os pensamentos da Carolina concentravam-se na carta. O desejo
de a ler era enorme mas preferiu esperar mais algum tempo para a ler mais
descansada no Lido.
Logo que chegaram àquele espaço balnear, depois de vestirem o fato de banho,
foram para o lugar habitual apanhar sol; A primeira coisa que a Carolina fez foi
começar a ler a carta. A alguns metros de distância, num lugar bem visível estava o
Eduardo. Já ali tinha estado nos dias anteriores à procura dela, mas em vão.
Naquela manhã teve mais sorte e, assim que a viu, uma onda de alegria invadiu-lhe o
rosto para logo de seguida se transformar em tristeza ao vê-la a ler a carta. Era
uma missiva longa com todas as laudas escritas.
- Será alguma carta amorosa de outro rapaz?- pensava ele.
A Carolina estava sentada no mesmo sítio a lê-la pausadamente com enorme
concentração, a deliciar-se com as palavras doces que a mesma continha.
O Eduardo sentia uma enorme curiosidade em saber o que estaria escrito naquelas
folhas, o que lhe trazia algum despeito, e algum ciúme; A ideia de que a Carolina
poderia repartir o coração com outro rapaz desconsolava-o e ficou ali a pensar no
que lhe perguntar de quem era a carta, mas recuou depois de ter feito uma enorme
reflexão, por achar que seria deselegante da sua parte e até mesmo uma tirania. Ao
fim de um quarto de hora de hesitação foi ter com ela e, depois de a ter
cumprimentado, disse-lhe:
- Hoje tive mais sorte do que nos dias anteriores. Já passei por aqui várias
vezes a ver se te via e nunca consegui encontrar-te.
Estas palavras foram ditas em tom de submissão. A voz era clara, doce e
melodiosa, tinha ainda um misterioso encanto que conseguia entrar no coração da
Carolina e afastar do seu semblante o ar sisudo com que o recebera, mas não
conseguiu evitar o tom frio com que lhe falava.

A Margarida, sabendo do que se passara entre eles e para os deixar mais à


vontade, disse para a irmã:
- Vou dar um mergulho.
- Eu estou só acabar de ler a carta. Já lá vou ter.
- Estás a ler uma carta?- perguntou o Eduardo.
- Estou.
- Segredos de rapariga, ou paixão de rapaz?- perguntou o Eduardo com ar
submisso.
- Isso só a mim diz respeito.
- Desculpa, estás zangada comigo?
- Depois da canalhice que me fizeste, achas que tenho motivos para estar
contente contigo?
- Desculpa mais uma vez. É por isso que estou aqui para te dar uma explicação
do que aconteceu e se não a dei há mais tempo, foi por não ter conseguido ainda
encontrar-te.
- Engraçadinho! já não sabes onde moro e já te esqueceste do número do meu
telefone? É mais uma desculpa de má pagador.
- Não, não me esqueci do número do teu telefone e sei muito bem onde moras, só
que tive receio que não me recebesses, nem de atendesses o telefone.
- Isso é a prova provada de que reconheces a garotice que me fizeste!
- É verdade que não procedi bem, mas foi involuntariamente. É por isso que
quero dar-te uma explicação e tenho a certeza que depois de me ouvires ficas com
outra ideia a meu respeito.
Quando o Eduardo proferia estas palavras, os seus olhos fixavam-se no rosto
plácido da Carolina, que fixava os seus nas palavras românticas, envoltas em sonhos
de felicidade que o Pedro lhe escrevera, o que levava a revolver com mais
intensidade, a pontinha de ciúme que já habitava no coração do Eduardo. Por um
momento, houve silêncio entre ambos, mas como a Carolina manteve a mesma postura e
a mesma serenidade, sem lhe dirigir a palavra, ele voltou a insistir com tom
amorável:
- Então não dizes nada?

- Desculpa Eduardo, mas agora não tenho disposição para ouvir as tuas
explicações. Espera mais algum tempo, talvez amanhã, ou um dia destes, mas hoje
não.
- É por causa dessa carta que estiveste a ler?
- Não, não é por causa da carta.
- Então porque é?
- Porque ainda não digeri suficientemente, a partida que me fizeste.
- Tu é que sabes! não quero insistir mais contigo. Quando estiveres preparada
dar-te-ei a explicação que pretendia dar-te agora. Já que não estou aqui a fazer
nada, vou-me embora. Adeus, Carolina.
- Adeus, Eduardo.
Quando ele se afastou, duas teimosas lágrimas, por mais de uma vez tentaram
aparecer-lhe ao canto dos olhos, mas ela limpou-as logo e não deu azo que as mesmas
se soltassem. Naquele momento, vários pensamentos lhe ocorreram, mas o que mais a
preocupava era o receio de que ele já não voltasse, porque não queria de maneira
nenhuma perder a amizade que começava a ser também paixão, que sentiam um pelo
outro. Depois de muito pensar, culpava-se por achar que tinha ido longe de mais e
devia ter-lhe dado oportunidade de se defender.
No meio daquele turbilhão de pensamentos, alguns tentaram culpar o Pedro por
ter escrito a carta, mas logo outros se sobrepunham a defendê-lo porque, se a
missiva não a animou, também a não rejeitou.
A Margarida, depois de ter dado alguns mergulhos e ter permanecido algum tempo
a deliciar-se com a água do mar, começou a estranhar a demora da irmã, o que a
levou a não esperar mais tempo e ir ter com ela. Quando chegou junto dela, os
sinais de preocupação ainda eram visíveis no seu rosto.
- O que é que te aconteceu para estares com essa cara tão triste?
- Fui um bocado dura com ele, falei-lhe secamente e a conta-gotas.
- Mas tu disseste-me que não ias recebê-lo com sorrisos e agora estás assim?
- É verdade, mana, mas depois de ele ter falado comigo com tanta ternura, sinto
que não devia ter procedido assim. Mas o que mais me preocupa, é a maneira como ele
se despediu. É capaz de não voltar mais.
- Não te preocupes, ele há-de voltar! já não é só amizade que sentis um pelo
outro, já há dentro de vós uma paixão embrionária. Eu já passei pelo mesmo.
- E agora o que é que eu faço? Logo agora é que tudo aconteceu. Se não tivesse
recebido a carta do Pedro, talvez lhe tivesse dado uma oportunidade e falado com
ele de outra maneira.
- Agora não fazes nada. A única coisa que tens a fazer é pôr essa cara bonita,
esperares pelos acontecimentos e seguires o caminho que o teu coração te
aconselhar. O que não podes é culpar-te; Mesmo que não volte, foi o mau
comportamento dele que originou a atitude fria que tiveste com ele. Por agora, é
melhor não pensares mais no assunto. Vamos mas é a dar uns mergulhinhos que a água
está uma delícia.
Vamos que hoje ainda estou em branco!- disse a irmã já com a cara mais alegre.

Depois daquela agitação que se verificara nas. Mas era uma calma mais aparente
do que real, porque todos temiam pela sua saída e pelo que pudesse acontecer-lhe;
Embora todos tentassem ser fortes e esconder o mais que podiam, o pesadelo que os
atormentava não podiam fraquejar, porque a decisão estava tomada e era necessário
dar-lhe todo o apoio e mostrarem-se alegres, embora com o coração triste e
amargurado.
O mês de Setembro já ia a meio. À noite já se sentia uma brisa mais fria. O
Leonel esperava que as notícias do Diogo não demorassem a chegar, porque quanto
mais tardavam, mais a ansiedade aumentava por querer ver-se livre o mais depressa
possível da situação em que se encontrava.
Finalmente as tão desejadas notícias chegaram. A Matilde estava a preparar o
almoço para o marido e as filhas que tinham saído logo de manhã, quando o telefone
tocou. Foi atender. Do outro lado da linha, ouviu-se a voz do Diogo.

- Bom dia, dona Matilde, como tem passado?


- Cá vamos andando como Deus quer. E o Sr. Diogo como tem passado?
- Bem, obrigada, o seu marido não está?
- Não, saiu logo pela manhã mas não deve demorar. Vem almoçar e está quase na
hora.
- Diga-lhe que tenho notícias para ele. Amanhã vou à cidade, comprar uns sacos
de ração para os animais e por volta das onze horas, estarei na Companhia Insular
de Moinhos. Se ele puder estar lá àquela hora, agradecia, para podermos falar.
É sobre a ida dele para o tal sítio?
É, dona Matilde.
- Ele sempre vai.
- Pelo menos está-se a preparar tudo nesse sentido.
- Acha que faz bem, Sr. Diogo?
- Na situação que ele está não tem muito para escolher. Se eu estivesse na
situação dele, fazia a mesma coisa, mas ele é que tem de decidir. De qualquer modo,
estou convencido que tudo irá correr bem.
- Deus o oiça!
- Pronto, dona Matilde, o recado fica entregue. Até amanhã.
- Até amanhã Sr. Diogo e muito obrigado.
A partir daquele momento, os pensamentos agoirentos instalaram-se de novo na
cabeça da Matilde. Embora tentasse repeli-los, não conseguia, o que prefigurava
tempos difíceis para a sua família. Ora de pé, ora sentada, intercalava o silêncio
com exclamações de dor.- Meu Deus, que será da nossa vida se as coisas não correrem
bem! Ela via a felicidade indelével que reinava no seio da família a ficar em
risco. Quando o marido e as filhas chegaram, notava-se-lhe no rosto a agitação
interior mas tentou ser forte e esconder o mais que podia, a tristeza que lhe ia na
alma.
Quando o marido recebeu o recado, embora já estivesse preparado, sentiu uma
sensação de alívio e simultaneamente de receio.

As filhas também sentiram o choque da notícia, mas conseguiram repelir com mais
facilidade os pensamentos nefastos, para darem lugar aos que lhe traziam a
tranquilidade necessária para enfrentar a situação e ainda para tranquilizarem a
mãe e darem coragem ao pai.
No dia seguinte, à hora marcada, o Leonel foi ter com o amigo ao lugar
combinado. Este ainda não tinha chegado e por esse motivo, resolveu dar uma volta
pelo mercado que ficava perto. Alguns minutos depois, voltou de novo ao local, mas
agora já o Diogo ali se encontrava.
Depois de ter feito as compras, foram até um café que estava muito próximo para
poderem falar à vontade.
O amigo do Diogo já tinha entrado em contacto com o mesmo passador que o
colocara em França, para que fizesse o mesmo em relação ao Leonel que apenas teria
de se apresentar dois ou três dias antes da saída para aquele país, em local ainda
a determinar, para acertarem alguns pormenores. Teria de se fazer acompanhar do
bilhete de identidade e da importância de sete mil escudos, que era quanto levava o
passador para fazer o trabalho. Uma das muitas recomendações era manter sigilo
absoluto: além da mulher e das filhas, ninguém mais podia saber da sua saída, para
evitar que chegasse alguma informação aos ouvidos das autoridades, o que seria
muito perigoso. Recomendou-lhe ainda para estar preparado, porque tanto poderia
demorar duas ou três semanas a comunicação para se apresentar no continente, como
poderia surgir de um momento para o outro.
À medida que ia recebendo as notícias, o Leonel ia ficando animado, porque as
mesmas eram bastante agradáveis.
Depois do Diogo ter feito todas as recomendações, embora o Leonel lhe tivesse
pedido para almoçar na casa dele, e ele próprio desejasse ficar mais algum tempo,
não podia, devido a compromissos assumidos, relacionados com negócios; pediu
desculpa de não poder aceitar o convite mas deixou a promessa que o mesmo se
manteria para outra oportunidade.

Agora restava ao Leonel aguardar a comunicação para se apresentar no local que


lhe fosse indicado no continente, para dali seguir para a França. Quando chegou a
casa, ia alegre a cantarolar "casei com uma velha da Ponta do Sol" o que deixou a
mulher e as filhas bastante felizes, ao vê-lo com tão boa disposição:
- O que é que o teu amigo te disse para vires tão alegre?
- Está tudo preparado. Agora é só aguardar que me chamem. Está tudo a andar
sobre rodas.
- O pai não teria bebido algum copito a mais? - Perguntou a Carolina.
- Tu estás doida rapariga, nem lhe toquei. A única coisa que tomei foi um copo
com leite. Já lá vai o tempo em que abusava da bebida, agora a torneira fechou. Uma
pessoa já não pode andar alegre sem ser com o copito?
- Pode e deve, mas com essa alegria toda até dá para desconfiar.
- Também tu, Margarida!
- Deixa lá, homem, não vês que elas querem é palear. Conta mas é mais coisas da
conversa que tiveste com o teu amigo.
- É como já te disse: o amigo dele já entrou em contacto com o passador, eles é
que tratam de tudo, agora é só aguardar. Disse-me ainda que o tal passador já pôs
muita gente na França.
- Já deve ser raposa velha- observou a Carolina.
- Mas as raposas velhas também se deixam apanhar- observou a Margarida.
- Deus queira que não seja quando o vosso pai for e que essa boa estrela se
mantenha sempre. Agora que já matámos a nossa curiosidade, vamos almoçar, que já
está pronto. Só foi pena o Sr. Diogo não poder almoçar connosco.
O encontro fora como uma brisa salutar que dispersou algumas nuvens negras que
ainda pairavam sobre a cabeça do Leonel e teve ainda o condão de lhe transmitir
aquela alegria que contagiou a própria mulher e as filhas.
Os dias que se seguiram foram de normalidade quase absoluta, apenas
contrariada, com a saudade que todos já começavam a sentir mesmo antes do Leonel
ter partido.

O mês de Outubro aproximava-se, e com ele o fim das férias grandes e o início
das aulas. A Margarida e a irmã continuavam a ir à praia, mas agora regressavam
mais cedo a casa, porque era preciso começar a estudar e gostavam de ir à tardinha
à baixa do Funchal, tomar a sua bica.
Numa dessas tardes, quando o ocaso se aproximava, estavam ambas no golden-gate,
quando ali apareceu o Eduardo. Ao vê-las, sentiu uma grande alegria, ofuscada quase
simultaneamente, ao lembrar-se do modo como a Carolina o recebera depois do que
acontecera no baile do Ateneu. Estava receoso que ela continuasse a manter o mesmo
propósito; mas um fluido subtil, percorreu-lhe as fibras e naquele breve instante,
sentiu toda a doçura de uma reconciliação, por ele tão desejada e esperada.
Levantou-se e, sem hesitação, foi ter com ela. Levava nos lábios um sorriso de
alma cândida e nos olhos um enorme brilho, como se levasse estampada nele a
ignorância do mal.
A Carolina ficou feliz por ele se lhe ter dirigido, mas não o demonstrou e
naquele momento, sentiu algum remorso a rondar o seu interior, por ter sido dura
com ele, sem primeiro o ter ouvido. O céu não ficou logo claro, mas o vento
amainou.
A irmã, que era conhecedora do episódio desagradável que se passara entre eles
e sabendo da atracção recíproca que existia entre ambos, para os deixar à vontade,
desculpou-se que tinha assuntos a tratar e retirou-se por algum tempo, deixando a
promessa que voltaria dentro de uma hora.
A irmã e o Eduardo aperceberam-se da intenção, que facilmente se podia ler no
seu semblante feliz. Ambos lhe agradeceram em pensamentos tão oportuno gesto.

Depois de lhe ter contado pormenorizadamente o que acontecera no dia do baile,


a Carolina ficou imensamente feliz. Era como se o sol tivesse rompido as nuvens e
aparecesse a brilhar como nunca no horizonte da esperança. Passado algum tempo e
depois dos olhares se terem encontrado várias vezes, com ar de apaixonados, mesmo
ali, o Eduardo fez-lhe uma declaração de amor, a qual foi aceite pela Carolina,
depois de um longo silêncio e de uma profunda reflexão. Não era uma vulgar
declaração de amor, sujeita às variações do espírito, ou de interesses, mas sim,
verdadeiros esponsais.
Naquela hora que o Eduardo esteve só com a sua amada, sentia uma enorme
felicidade, mas depois de lhe ter feito a declaração de amor, teve ímpetos de a
beijar uma e muitas vezes, sentindo naquele momento o triunfo da hesitação dos
outros dias.
Ela olhava para ele com ar apaixonado e via à sua frente o raiar de uma nova
aurora, o nascer de um novo dia.
Quando ele chegou a casa ia feliz. Ainda pensou em dar a notícia dos
acontecimentos à mãe, mas depois de muito pensar, chegou à conclusão que seria
melhor não dizer nada por ser mais seguro, porque nem ele sabia se estava a viver a
realidade ou se estava a voar nas asas de uma quimera.

Depois de ter enviado a carta, todos os dias o Pedro ia à caixa do correio ver
se tinha alguma carta com a resposta da Carolina. O tempo ia passando, mas a
resposta tardava em chegar. Desesperado de tanto esperar, resolveu nas horas vagas
e nos dias de folga passar a vigiar a casa dela, na convicção de alguma vez a ver
sair ou entrar. Mas debalde. A única alternativa que lhe restava era esperar mais
alguns dias até que se iniciassem as aulas e ir esperá-la à saída e tentar falar
com ela para saber qual a resposta que tinha para lhe dar.
Foi o que aconteceu. Num dos dias que estava de folga, foi para a porta do
liceu, na ânsia de a ver sair quando terminassem as aulas.
Na hora da saída, depois de ter fixado por alguns minutos a porta principal por
onde saiam os alunos, estava quase a desistir por já terem passado quase todos,
quando a viu aparecer a uma esquina. Uma onda de alegria e esperança invadiram-lhe
o coração, mas foi por muito pouco tempo, porque quase a seguir, viu o Eduardo
aproximar-se dela, beijá-la e seguirem lado a lado, de mãos dadas, alegres e
sorridentes.
Naquele momento, o coração do Pedro estremeceu, a esperança esvaiu-se.

- "Já tem outro, cheguei tarde", foram os pensamentos que lhe ocorreram,
naquele momento. Depois pensou em ir-se embora e esquecê-la logo ali, mas antes de
se retirar, preferiu vê-la mais de perto, para lhe poder lançar um olhar de
conformismo. Aproximou-se mais do portão e colocou-se num lugar bem visível, onde
pudesse olhar para ela bem de frente. Quando ia a passar e o viu à sua frente a
olhar para ela com ar cândido e conformado, ficou com as faces tingidas de vermelho
e tentou desviar o olhar, o que não passou despercebido ao namorado, que o levou a
perguntar-lhe, com uma pontinha de ciúme.
Porque ficaste tão vermelha, quando viste aquele rapaz?
- Nada.
- Alguma coisa se passou. Nós não coramos assim sem haver um motivo
- Foi o rapaz com quem dancei no Ateneu, naquele dia de má memória. É capaz de
estar à espera de alguma rapariga.
Essa rapariga eras tu.
Eu? Deves ter visto mal Desde aquele dia nunca mais o vi, nem estou interessada
em vê-lo. Agora só estou interessada em ver-te a ti.
Ele sorriu e aceitou a explicação.

Quando ela chegou a casa, ainda ia a pensar no que tinha acontecido à porta do
liceu, mas depressa esqueceu esse episódio; pois viu a mãe a chorar:
- O que é que a mãe tem para estar a chorar?
- Já chegou a ordem para o teu pai se ir embora., Como é que ele se irá
arranjar, sem ter ninguém que lhe cuide da roupa e faça o comer e o que será de nós
sem ele aqui?
- Deixe lá mãe. Tudo se há-de arranjar. O que é preciso é o pai ter saúde e
arranjar logo trabalho. Quando é que souberam?

- Foi há bocado. Encontrou o Sr. Diogo ao pé do mercado. Era para vir cá a


casa, mas como se encontraram lá em baixo, deu-lhe lá a novidade. O pai ainda o
convidou para vir a jantar connosco, mas ele não pôde.
- Onde é que o pai está agora?
- Foi à agência ver se arranja passagem. O Funchal está aí depois de amanhã e
foi ver se conseguia lugar.
- Assim tão depressa mãe?
- É verdade minha filha., Estas coisas parece que são assim mesmo. Nem me quero
lembrar da falta que vamos sentir dele e ele de nós.
- E a mana ainda não chegou?
- Já. Foi com ele.
Se eu cá estivesse também tinha ido. Quero aproveitar todos os bocadinhos para
estar com o pai.
No momento em que a Carolina pronunciava estas palavras, as lágrimas começaram
a escorrer pelas faces da mãe. A filha também não se conteve e ambas se agarraram
uma à outra a chorar. Quando terminou aquela explosão de choro, ambas foram lavar o
rosto, para destruírem os vestígios da dor e para não darem a perceber o que se
tinha passado, porque seria prejudicial se o Leonel as visse naquele estado. Mas
não conseguiram totalmente porque eram demasiado evidentes.
Quando ele chegou a casa com a Margarida, não estavam tristes nem alegres,
estavam apenas conformados, mas todos se esforçavam imenso para evitar que a
tristeza que sentiam interiormente irrompesse para fora e aparecesse estampada no
rosto de cada um. Embora com o coração fragilizado com o peso da dor, todos
tentavam ser fortes, mas era uma força mais fictícia do que real.
O Leonel ainda pensou em ignorar os vestígios ainda visíveis no rosto da mulher
e da filha, mas mudou de ideias por achar que seria mais útil dizer alguma coisa
para as animar.
- Se continuardes assim, ainda tenho de vos levar ao médico, antes de me ir
embora.
- Porquê?- perguntou a Margarida.
- Não vez como está a cara da tua mãe e da tua irmã?
- Não vejo nada de especial- fingiu a Margarida.

- É da cebola que estivemos a migar para o jantar- disse a Carolina.


- Vamos mas é a falar de outras coisas. Conseguiste viagem para o continente?-
perguntou a Matilde.
- Consegui. Ainda havia alguns lugares.
- Quando é que o navio sai?- perguntou a Carolina.
- Depois de amanhã às dez horas,- respondeu a irmã.
- Então temos de preparar a mala- disse a Matilde com voz triste e duas
lágrimas a dançar ao canto dos olhos.
A Margarida, receosa que a mãe começasse de novo a chorar, tentou desviar a
conversa e perguntou-lhe:
- O jantar está pronto?
- Está. É só pô-lo na mesa.
O Leonel apelava a todas as energias que possuía para o ajudarem a manter a boa
disposição, o que aparentemente ia conseguindo. Era como se já estivesse
convalescido do abalo e deixado as regiões da dúvida, para entrar na atmosfera da
certeza. A boa disposição que ia mantendo era como um bálsamo para todos. Durante o
janta, as recomendações que ia fazendo à mulher e às filhas e estas a ele eram
muitas e todas incidiam com os cuidados que teriam de tomar. A Margarida ainda teve
o ensejo de lhe perguntar:
- Quando o pai chegar a Lisboa, como é que vai contactar o passador ou ele a
si?
- Já lá está um senhor à minha espera Não sei se será ele, mas se não for ele é
alguém que está dentro do esquema.
- O pai já tem algumas referências para o contactar?- perguntou a Carolina.
- Já. Há um restaurante perto do local onde o barco atraca. É só dirigir-me lá
e perguntar pelo Sr. Mário que já está à minha espera.
- E se há mais do que um restaurante?- observou a mulher.
- Há só aquele e já tenho todas as referências.
A mulher e as filhas, depois de ouvirem aquelas respostas, ficaram mais
tranquilas e mais convencidas que tudo iria dar certo.

O dia e as noites que se seguiram foram muito difíceis para aquela família: a
incerteza do futuro, o receio das coisas não correrem bem, o vazio que o chefe de
família deixava naquele lar, a saudade que já começavam a sentir e o grande pavor
que tinham se surgisse algum problema grave e viesse a ser preso.
Na última noite, os pensamentos entravam e saiam na mente de todos, a um ritmo
veloz, dando azo a que o sono se afastasse para bem longe quando tentava aproximar-
se. Foi uma noite passada em claro. A Margarida e a irmã passaram grande parte dela
à janela. Quando a manhã chegou, ouvia-se o chilrear dos pássaros a voarem de
árvore em árvore e, passado algum tempo, o sol despontava de uma forma esplendorosa
mas, isso não lhes despertou a mínima atenção ao contrário de outras vezes, que
adoravam ver aquele cenário. A tristeza estava bem estampada no rosto de todos,
sendo bem visíveis as marcas da insónia. A hora do embarque aproximava-se e com o
passar dos minutos, o coração começava a bater com mais força, a comoção comprimida
aumentava, prestes a irromper.
Uma hora depois, chegava o táxi que os iria levar até ao barco. Embora tivesse
alguns amigos que tinham carro e que os levariam ao porto, preferiu aquele meio de
transporte para ninguém se aperceber do motivo da sua saída, nem do modo como a
mesma iria ser feita, para não levantar a mínima suspeita, porque nem todos os
amigos são verdadeiros e a situação exigia que se tomassem todas as cautelas.
Quando chegou o momento do embarque, duas grossas lágrimas apareceram a dançar,
nos olhos do Leonel, que a muito custo conseguiu evitar que outras lhes sucedessem,
quando estava a despedir-se da mulher e das filhas. Estas, a chorar copiosamente,
não conseguiam articular palavra. Era o Leonel que tentava animá-las, mas também
ele, tinha imensa dificuldade em reter a comoção que tumultuava no seu coração.

Naquele momento, as lágrimas eram rainhas. Eram elas que reinavam e sufocavam
as palavras que estavam presas na garganta da mulher e das filhas. Só quando se
preparava para as deixar e dirigir-se à escada que o levaria ao interior do navio é
que balbuciaram algumas palavras que conseguiram libertar-se daquela opressão.
- Deus te guie por bom caminho! disse a mulher.
- Deus o proteja! escreva-nos logo!- disse a Margarida.
- Gostamos muito de si pai; Deus o ajude!- disse a Carolina.
A beleza dolorida é das imagens mais pura que a natureza pode oferecer ao ser
humano. Se por ali andasse um Miguel Ângelo, de certo não perderia aquela
oportunidade para transformar aquele quadro de tão grande tristeza na mais bela
obra de arte que os seus olhos jamais contemplaram.
Poucos minutos depois ele apareceu a uma das varandas do navio, a acenar à
mulher e às filhas, que respondiam com lenços brancos mesmo depois do navio já
estar ao largo, ainda continuavam com os lenços no ar, a dizer-lhe adeus.

II
PARTEPARTE

No início, a viagem foi calma. O Leonel apenas sentia uma pequena dor de
cabeça, mas depois do navio ter passado a Ilha do Porto Santo, algumas milhas mais
à frente, o mar começou a ficar mais agitado, ele começou a ficar enjoado, o mesmo
sucedendo com outros passageiros, que se viram forçados a permanecer no camarote
por algum tempo. Mas, passadas mais algumas milhas, o vento amainou o mar voltou a
ficar calmo, a viagem tornou-se mais agradável. Agora, Leonel já não sentia tanto a
dor de cabeça e o enjoo já tinha passado. Apesar de não ter apetite, conseguiu
fazer um esforço enorme e ingerir alguns alimentos na hora das refeições, o que
vieram a contribuir para uma melhor disposição. Depois de ter dormido algumas
horas, ficou completamente restabelecido.

A partir dali, passava o tempo ora deitado no beliche do camarote, a pensar na


sua vida, ora no convés a admirar a imensidão do mar e o azul do céu. À noite,
depois de jantar, ia de novo até ao convés, onde passava imenso tempo a contemplar
as estrelas e a pensar na obra maravilhosa do Criador.
A meio da viagem, começaram a aparecer algumas nuvens dispersas, mas à medida
que o navio ia avançando, o céu ia ficando cada vez mais cinzento e as nuvens
começavam a ser mais escuras. Já perto de Lisboa, estava todo encoberto, com ameaça
de chuva.
Quando o navio atracou, chovia torrencialmente. Eram as primeiras chuvas do
Outono que acabavam de chegar em força e com elas chegava também uma temperatura
mais fria, própria daquela estação; embora não estivesse muito frio, para quem
estava habituado aquele clima; o mesmo não se passava em relação ao Leonel que o
sentiu bastante, por estar habituado a temperaturas mais amenas.
Logo que o barco atracou e depois de ter passado pela alfândega, dirigiu-se ao
local que lhe tinham indicado, para ir ter com o passador ou com alguém que o
representasse. Quando se dirigia para lá, um enorme receio e uma grande ansiedade
apoderaram-se dele.
- Meu Deus, será que não venho para aqui enganado? Se não estiver ninguém, o
que é que será da minha vida? Não! Não vão falhar, foi tudo tratado com gente
séria.
Estes eram os pensamentos que lhe ocorriam naquele momento. Logo que chegou ao
restaurante, dirigiu-se a um dos empregados, a perguntar pelo Sr. Mário :
- É aquele Sr. que está além ao fundo, sentado na mesa do canto- respondeu o
empregado.
Quando chegou junto do homem, cumprimentou-o e fizeram as respectivas
apresentações, tendo ficado logo a saber que era o próprio passador.
Era um homem que aparentava rondar a casa dos cinquenta anos, de estatura
média, olhar calmo, olhos castanhos, geralmente tristes, mas que também sabiam
rir, quando sorriam os lábios, reflectindo-se neles um brilho intenso, ainda que
passageiro. Era morena a cor, forte a musculatura, tinha cabelo preto espesso,
vestia fato azul escuro, camisa branca e gravata vermelha lisa.

Durante duas horas, ali estiveram sentados a acertar os pormenores da viagem e


a falar de outros assuntos relacionados com a situação do país. Durante o tempo em
que iam falando, aproveitaram aquele período para almoçar mesmo ali.
O Mário não era muito falador, mas falava o suficiente para fazer boa companhia
e criar bons amigos.
À medida que a conversa se ia alongando, o Leonel ia ficando com a sensação de
estar à frente de um homem cumpridor e que sabia do seu ofício.
Quando acabaram de almoçar, o passador pediu logo a conta e impediu que fosse o
Leonel a pagá-la como era seu desejo. Dali seguiram para a estação de Santa
Apolónia, para apanharem o comboio das dezasseis horas que os levaria a Castelo
Branco.
Durante a viagem, os momentos em que o Leonel não conversava com o amigo, ia
observando a beleza do rio Tejo, com a sua enorme largura e água calma que parecia
dormir na planura do seu leito, sempre ladeado pelo encanto das lezírias, nas quais
se viam muitas manadas de vacas, touros e cavalos a pastar. A seguir ao
Entroncamento a paisagem era diferente: os terrenos eram acidentados e o rio corria
apertado entre montes.
Quando chegaram a Castelo Branco, o Leonel ficou hospedado numa pensão a,
aguardar a saída para a França. O Mário despediu-se dele e recomendou-lhe para não
se afastar por muito tempo da pensão porque, de um momento para o outro, podia ser
contactado para partirem.
Apesar do receio que ainda tinha, o Leonel estava agora mais confiante porque a
primeira etapa estava ultrapassada e tudo lhe correra bem até ali. Embora tivesse
saído há pouco tempo da Madeira, já sentia uma enorme saudade da mulher e das
filhas. A primeira coisa que fez, logo que chegou à pensão foi telefonar-lhes. A
mulher e as filhas tinham por hábito passar muito tempo no quintal a cuidar das
flores mas naqueles dias permaneceram quase sempre em casa à espera que o telefone
tocasse.
Eram dez horas, quando o mesmo se fez ouvir. A Carolina foi atender:
- Sim, estou?

- És tu Margarida, então minha jóia, como é que estais?


No momento em que reconheceu a voz do pai, sentiu uma enorme alegria, mas antes
de lhe responder, chamou a mãe e a irmã.
- É o pai! Venham depressa.
- Nós estamos bem pai, graças a Deus. Já com muitas saudades suas. E o pai,
como é que está? Fez boa viagem, está tudo a correr-lhe bem?
- Está tudo a correr bem e fiz boa viagem
- Pronto, pai. A mãe vai falar. Beijinhos e boa sorte
- Também para ti minha jóia.
- Sim? Como é que estás homem? Onde é que estás agora? Já temos tantas saudades
tuas!
- Estou em Castelo Branco e tudo está a correr bem.
- Graças a Deus- disse a mulher.
- Eu também quero falar,- interrompeu a Carolina.
- Pronto homem. A Carolina também quer falar. Agora já sabemos que está tudo a
correr bem, ficamos mais descansadas, mas já estamos cheias de saudades.
- Eu também, mas qualquer dia já estou aí. Tudo há-de correr bem. O primeiro
passo está dado.
- Deus te proteja! Adeus! Beijinhos vai dando notícias.
- Pai, já temos tantas saudades, mas graças a Deus está tudo a correr bem,
beijinhos.
- Também para ti. Adeus, minha gatinha.
Embora todos quisessem estar mais tempo ao telefone, não podiam porque a
chamada era cara e o dinheiro não era muito.
Aquele telefonema foi reconfortante para a mulher e as filhas que já estavam
ansiosas pelas suas notícias e a sentir em demasia o peso da sua ausência.

Depois de ter arrumado a roupa no armário, estendeu-se em cima da cama e ali


ficou a meditar no pequeno mundo que o rodeava. Lembrava-se da paz, da alegria e da
tranquilidade que reinavam no seu lar; do comportamento irrequieto mas salutar e
responsável das filhas à mistura com ternura e carinho que recebia delas, bem como
da sua mulher.
Mas o que mais o preocupava era que lhe acontecesse alguma coisa desagradável e
o receio de não poder continuar a proporcionar-lhes o mesmo bem estar que lhes
vinha dando até ali.
No dia seguinte, levantou-se tarde e depois do almoço foi dar uma volta.
Castelo Branco é uma cidade encantadora, com o seu castelo altaneiro, do qual
se pode observar uma paisagem maravilhosa. Tem ainda a seus pés o jardim episcopal,
famoso pela sua história e pela sua beleza. Apesar de nem sempre ter tido a atenção
nem o carinho que merece, por parte dos senhores mandões do Terreiro do Paço,
Castelo Branco tem sabido vencer obstáculos e ultrapassar barreiras, porque a sua
gente é persistente, rija como o granito, laboriosa e hospitaleira.
Meia hora depois de ter regressado do passeio, uma empregada foi chamá-lo ao
quarto para ir ao telefone, porque tinha uma chamada para ele. Dirigiu-se logo para
lá e foi atender. Era o Mário a comunicar-lhe que iriam partir em breve, para estar
preparado porque no dia seguinte ia lá buscá-lo e podia ser a qualquer hora.
Quando pousou o auscultador, um ai soltou-se do seu interior e disse para
consigo mesmo, em voz muito baixinha:
- Meu Deus, agora é que é a etapa mais difícil!
No dia seguinte, ao cair da tarde, o passador foi buscá-lo e levou-o para o
local onde já se encontravam os outros colegas que também iam fazer a mesma viagem,
prontos para partirem.

Depois de estarem todos reunidos e terem esperado que a noite avançasse


bastante para poderem partir, já dentro da camioneta que os levaria até à Espanha,
para depois seguirem numa outra com matrícula espanhola, o Mário deu os últimos
conselhos e fez as últimas recomendações. Quase todos estavam nervosos, mas durante
a prelecção que fez, havia um jovem que aparentava ter uns vinte e três anos. Fazia
muitas perguntas e parecia estar mais nervoso do que os outros colegas, o que levou
o passador a perguntar-lhe:
O senhor parece que está demasiado nervoso, mas não há motivo para isso.
Primeiro, porque já passei muita gente para a França e nunca houve problemas e hoje
também não vai haver; depois, porque é muito novo e com umas pernas como as suas,
não há guarda que lhe deite a mão.
Isso é verdade, mas se me apanham, vou comer a dobrar.
Esteja descansado, que tudo irá correr bem.
Já a noite ia avançada quando partiram em direcção à fronteira por caminhos de
terra batida. A noite estava escura como breu, corria uma brisa gélida, chovia com
abundância. Era uma noite propícia para aquele tipo de aventura, porque obrigava as
pessoas a estarem recolhidas em casa e não havia tanta possibilidade de serem
vistos nem denunciados, mas aumentava o sofrimento de quem participava nela. Iam
trinta emigrantes, muito apertados, sentados em bancos de madeira, colocados ao
longo da caixa da camioneta, a qual estava protegida com uma cobertura de lona.
Ninguém falava, porque o passador tinha-lhes recomendado para falarem o menos
possível e quando o fizessem, devia ser em voz baixa. Era como se não fosse ali
ninguém. Só de vez em quando é que o silêncio era quebrado quando a camioneta
apanhava algumas poças mais fundas, dando origem a que os saltos fossem maiores,
obrigando os passageiros a encostarem-se, ora para um lado, ora para o outro.
Muitas vezes tinham de se agarrar bem aos bancos para não serem atirados para fora
do lugar, dando azo a que se ouvissem de vez em quando alguns lamentos:

- A merda dos bancos são mais duros do que calhaus, dizia um - quem os fez, não
tinha intenção de sentar-se neles, dizia outro; - para lá vamos em bancos de
madeira, mas quando viermos de férias, vimos instalados nos bancos dos mercedes,
dizia um mais jocoso. Seguiu-se novo silêncio enquanto não apareciam outros buracos
de maiores dimensões a encostá-los novamente. A certa altura do percurso, o caminho
parecia mais suave, dando a sensação que a camioneta estava a andar numa estrada de
asfalto. De repente apareceu um buraco de maior profundidade do que os habituais,
seguido de outros mais pequenos, dando origem a que a camioneta fosse, por alguns
metros, sempre aos saltos levando um passageiro menos paciente a lamentar-se:
- Parece que esta porcaria se parte toda. Se isto assim continua , escavaca-se
pelo caminho antes de chegar a Espanha.
Se calhar, é mais velha do que o norte - observou outro.
- Querias que fosse nova? Assim se for apreendida pela guarda, o prejuízo já
não é tão grande - disse um terceiro.
Quando estavam já perto da fronteira viam-se a alguma distância duas luzes a
deslocarem-se em direcção à camioneta. O passador ao vê-las sentiu um enorme
calafrio, por saber que àquela hora e da maneira que estava a noite chuvosa e fria,
não ia para ali ninguém a não ser a guarda, o que o levou logo a pensar:
- São eles. Cheira-me a denúncia!
Andou mais alguns metros e, no local onde o caminho era mais largo, voltou a
camioneta o mais rápido que pôde, para fugir às luzes que supunha serem as de um
jeep da guarda. No momento em que fazia a manobra, fê-la tão bruscamente, que os
passageiros caíram em cima uns dos outros de forma violenta, ficando alguns deles
com algumas escoriações, gerando-se um grande alvoroço, com alguns deles a tentarem
saltar com a camioneta em andamento por pensarem que aquela manobra poderia ter
sido forçada, devido à presença da guarda e outros mais calmos a segurá-los e a
pedirem-lhes para terem calma e aguardarem que o passador lhes dissesse o que
estava a acontecer.
Depois de este ter invertido a marcha a grande velocidade e após ter saído de
uma curva mais apertada, viu outro jeep que entretanto tinha saído do local a fazer
sinais de luzes mesmo à sua frente.
- Quando se viu entalado entre os dois jeeps, guinou a camioneta para fora do
caminho, parou o motor, apagou as luzes, correu para trás da camioneta e gritou:

- Fujam! Eles vêm aí! Alguém deu com a língua nos dentes, mas eu vou descobrir.
Aquele grito de desespero e de revolta foi como se uma bomba tivesse rebentado
debaixo dos pés daquela gente e tivesse aberto uma cratera de enormes dimensões
arrastando-os para o fundo da mesma. O único pensamento que lhes ocorria naquele
momento era fugir para se verem livres daquele inferno. Apesar do cansaço, fizeram
um apelo a todas as energias que ainda tinham e cada um fugiu para seu lado. Os
momentos que se viviam eram tremendamente cruéis e dramáticos, o cenário era
terrível e medonho. Os elementos da guarda nacional republicana e guarda fiscal
estavam espalhados por vários pontos do terreno munidos de holofotes. De vez em
quando ouviam-se tiros, seguidos de gritos desabridos,- pára, pára, mãos ao ar não
te safas, estás entalado; em alguns pontos estratégicos, ouviam-se cães pastores
alemães a ladrar.
O romper da aurora aproximava-se, mas a noite ainda era muito escura... Não se
via um palmo de terra à frente dos olhos, as únicas vezes que se conseguia ver
alguma coisa, eram quando os holofotes se fixavam nalgum fugitivo. A chuva caía com
alguma intensidade tocada por um vento gélido que lhes batia na cara e infiltrava-
se-lhes no corpo desamparado.
Nem o guarda chuva nem os restantes haveres puderam levar com eles, por não
terem tido tempo para mais nada, senão para fugir.
Durante a correria louca e desenfreada a que foram obrigados, uns caiam no meio
dos silvados; outros pelas ribanceiras; outros conseguiram apanhar terreno mais
plano, só com giestas e estevas e os que conseguiram manter alguma calma
esconderam-se no meio dos arbustos. Dos que foram detectados pelos holofotes,
alguns ainda conseguiram escapar mas os mais desafortunados foram apanhados e
detidos.
O Leonel conseguiu manter a calma e juntamente com outro colega esconderam-se
no meio de umas giestas mais altas, bastante ramalhudas, perto de um ribeiro, sem
se poderem mexer, com o receio de serem interceptados pelos holofotes. Estavam
cheios de frio, só com a roupa que tinham em cima do corpo toda encharcada.

Ambos amaldiçoavam a sua pouca sorte, mas o Leonel era o mais inconformado. Via
já a sua vida destruída, pensava no sofrimento que a mulher e as filhas iriam ter
quando soubessem o que lhe tinha acontecido. Pensava ainda no sarilho em que se
metera e nas consequências que teria de suportar; via já à sua frente um futuro
terrivelmente sombrio e um quadro extremamente negro, no qual apenas conseguia ver
as grades de uma prisão.
Durante mais de uma hora, ali estiveram escondidos como coelhos em tocas.
Entretanto, a manhã começava a clarear e à medida que os minutos iam passando, ia-
se vendo com mais clareza a paisagem que os rodeava. Apesar de tanta aflição e de
tanto sofrimento, davam graças a Deus por terem escapado e por não terem caído em
nenhuma ribanceira, nem no meio de algum silvado.
Agora já não chovia, viam-se algumas abertas no céu e o vento mal se sentia;
não se via nem ouvia vivalma. O silêncio era quebrado pelo murmúrio da água de um
regato, que passava ao fundo da encosta e pelo chilrear dos pássaros no meio das
árvores, espalhadas ao longo do regato.
- Parece que agora já estamos salvos!- Disse o Silvestre.
Era como se chamava o companheiro do Leonel. Era um homem forte, de estatura
baixa, amigo de ajudar o próximo e habituado a enfrentar as intempéries e o rigor
do clima, porque a sua profissão de canteiro a isso o obrigava. No meio de tanta
preocupação e sofrimento, o Leonel, além de ter escapado à guarda, teve ainda a
sorte, de encontrar um verdadeiro amigo naquelas horas tão amargas.
Depois de terem verificado que não havia por ali nenhum guarda, deram início a
uma longa e penosa caminhada, até uma aldeia que ainda ficava muito longe, mas que
o Silvestre pensava ser a mais segura, para dali apanharem a camioneta que os
levaria de regresso até Castelo Branco, onde morava.
Seguiram sempre por entre montes e vales, pelo meio de árvores e mato, passaram
por ribeiras e regatos, evitando sempre a planície, para não correrem o risco de
serem vistos por algum guarda que ainda por ali andasse.

Depois de muito calcorrearem, já a uma grande distância do local onde tinham


sido interceptados, encontraram uma casa desabitada no meio de umas árvores, já
muito perto da planície.
Era uma casa velha, sem portas, com aspecto de ter sido habitada por algum
pastor e de ter servido de queijeira; a caliça das paredes em muitas partes dos
compartimentos estava no chão, com as pedras à vista. O sol que já ia alto,
aparecia de vez em quando a espreitar pelos buracos que existiam no tecto, quando
as nuvens lhe abriam o caminho. Aqui e acolá, viam-se alguns tufos de erva,
principalmente nos locais onde o sol incidia com mais frequência. Junto à lareira
de granito, estava uma caixa de papelão em bom estado, a denunciar a passagem de
alguém por ali, talvez algum contrabandista durante alguma das suas incursões a
Espanha. Num outro compartimento, havia duas prateleiras de madeira fixadas à
parede, gretadas pelo tempo, dando todo o aspecto de terem servido para colocarem
os queijos.
O Silvestre pegou na caixa, cortou-a em pedacinhos, foi arrancar alguns tojos
que existiam em abundância em volta da casa e com alguns galhos secos que esnocou
das árvores, acendeu uma fogueira, com o isqueiro que trazia sempre consigo.
O Leonel que nunca tinha passado por uma situação assim, estava nervoso e
receoso que aparecesse por ali o dono da casa e tivessem ainda mais complicações,
por lhe terem invadido a propriedade:
E se aparecer aqui o dono, o que é que fazemos?
- Não se preocupe, Leonel! Esta gente daqui é boa. Eu depois arranjava uma
desculpa e de certeza que não ia acontecer nada.
- Que desculpa é que lhe dava?
- Dizia-lhe que somos canteiros e íamos trabalhar para uma pedreira, mas
tivemos de voltar para trás, porque tinha muita água e não podíamos trabalhar.
- Há por aqui muita pedreira?
- Não há muitas, mas há algumas, não se preocupe. Agora temos de nos aquecer e
enxugar a roupa, senão ainda arranjamos alguma doença que nem os ossos se
aproveitam.

Ambos estavam tristes e abatidos, mas o Leonel era o mais desalentado. O que
sentia naquelas horas excede toda a descrição; parecia que todos os males do mundo
tinham convergido para ele.
- O meu caminho é trágico e cruel; ou me conduz a um rochedo e despedaço-me
nele; ou guia-me em direcção a um abismo do qual não consigo sair e já não vejo
mais a minha querida mulher, nem as minhas adoradas filhas. Neste momento já não
vivo para o mundo, apenas vegeto- pensava ele.
No momento em que lhe ocorriam estes pensamentos, estava sentado numa pedra em
volta da fogueira, com as mãos apoiar o rosto, por entre as quais passavam algumas
lágrimas.
O Silvestre ao vê-lo assim, tentou animá-lo e disse-lhe:
- Ó Leonel não desanime!, O que nos aconteceu foi de facto muito grave, mas se
tivéssemos sido presos era muito pior; agora não podemos baixar os braços, temos de
dar volta a isto.
- Como?
- Ainda não sei, mas temos de fazer alguma coisa, porque se não fizermos nada é
que estamos sujeitos a ser presos. É muito provável que tivessem prendido alguns
colegas e agora vão obrigá-los a descobrir os restantes e quando assim é, passam
logo mandados de captura.
-Ó meu Deus! O dinheiro já não vai dar para muitos dias. Estou sem roupa e tão
longe da família, o que será de mim?
- Não se preocupe, vai para a minha casa, ainda tenho um dinheirinho de
reserva, posso emprestar-lhe algum para se remediar e depois vou falar com uma
pessoa amiga que está bem dentro destes assuntos, a ver o que é que me diz.
- Obrigado Silvestre., Não sei como é que hei-de agradecer tudo o que está a
fazer por mim.
- Não tem nada que agradecer, temos de ser uns para os outros. Hoje é o Leonel
que precisa, amanhã posso ser eu. É nos momentos de aflição que mais precisamos de
ajuda.

Mas olhe que nem toda a gente procede assim. Mesmo com algumas pessoas que
pensamos que são nossos amigos, há muita ingratidão e hipocrisia neste mundo.
- É verdade Leonel. Por isso é que cada vez há mais problemas e desunião entre
as pessoas, mas enquanto Deus não me levar, hei-de proceder sempre assim.
- O que é que teria acontecido para sermos apanhados?- perguntou o Leonel.
- Não sei, mas isto cheira-me a denúncia, porque conheço bem o Mário. É uma
pessoa muito consciente e nunca lhe tinha acontecido uma coisa destas. Por isso é
que eu digo, que deve haver bufo no meio disto tudo.
- Tivemos pouca sorte., A primeira vez que foi apanhado foi logo connosco -
disse o Leonel.
Paciência, agora já não podemos voltar atrás, o que temos a fazer, é descobrir
a maneira de sairmos desta encrenca.
Depois de estarem completamente enxutos e terem limpo o sangue que se
encontrava em volta de alguns arranhões mais profundos, apagaram o lume e
reiniciaram a caminhada, já com outro aspecto.
Ao contrário do que acontecera anteriormente, agora evitavam o terreno com
árvores e matagais e caminhavam em campo aberto, por caminhos e veredas, com menos
receio de serem apanhados, porque já ninguém ia suspeitar que andavam fugidos. Era
meio dia, quando chegaram à aldeia. Logo à entrada, encontraram um agricultor que
regressava do campo, em cima de uma carroça, puxada por um burro. Tinha a cara
cheia de rugas a denunciarem as muitas primaveras que já tinham passado por ele.
- Bom dia,- disse o agricultor ao passar por eles, com voz ressonante.
- Bom dia! Responderam eles quase em uníssono.
O camponês já ia a alguns metros de distância, quando o Silvestre se lembrou de
lhe perguntar se sabia a que horas havia camioneta para Castelo Branco. Apressou um
pouco mais o passo foi ter com ele e, quando estava quase ao lado da carroça,
perguntou-lhe:
- Por favor, diga-me a que horas há camioneta para a cidade?

O agricultor não ouviu e seguiu sempre o seu caminho. O Silvestre deu mais uns
passos de modo a ser visto e quando estava quase ao lado do burro, perguntou-lhe de
novo:
- Diga-me por favor, a que horas há camioneta para Castelo Branco? O agricultor
puxou a rédea ao jumento e gritou-lhe:
- Ó ò! pára aí boneco.
Depois, disse para o Silvestre:
- Passe aqui para este lado da carroça que oiço melhor deste ouvido.
O Leonel deu a volta por trás e colocou-se ao lado dele.
Depois o agricultor disse-lhe:
- Diga lá meu amigo ,em que é que lhe posso ser útil.
Diga-me, por favor; a que horas há camioneta para a cidade?
- Não ouvi, fale um pouco mais alto.
- Sabe a que horas há camioneta para Castelo Branco?
- Há uma às duas horas, depois só amanhã de manhã.
- Obrigado, desculpe tê-lo interrompido.
Não tem de quê! - Disse o aldeão e seguiu o seu caminho.
O Silvestre e o amigo, andaram mais alguns metros e depois dirigiram-se para
uma taberna que estava ali perto, para matarem a fome; pediram duas sanduíches de
chouriço duas de queijo e dois copos de leite. Depois de terem comido e pago a
despesa, dirigiram-se vagarosamente para a paragem que ficava no outro extremo da
aldeia. Dez minutos depois de ali estarem, chegava a camioneta.
Durante a viagem, o Leonel olhava para a paisagem e para os grandes rebanhos de
ovelhas a pastar na planície, mas não lhes dava nenhuma atenção, porque o seu
pensamento concentrava-se, na mulher e nas filhas, no que tinha acontecido e no que
iria acontecer.
Quando chegaram à cidade, à casa do Silvestre, a mulher deste, ao vê-lo e ao
amigo, ficou branca como a cal da parede e exclamou:

O que é que vos aconteceu homem? Fostes apanhados?


- Alguns devem ter sido, mas eu e aqui o nosso amigo madeirense conseguimos
escapar e ele vem para aqui até resolvermos a situação.
Quando o Silvestre disse estas palavras, o Leonel depois de ter cumprimentado a
mulher dele, com ar triste disse-lhe:
- Desculpe, minha senhora, a maçada que lhe venho dar, mas estou numa situação
desesperada, longe da família, sem roupa e sujeito a ser preso de um momento para o
outro. Já viu o que nos havia de acontecer?
- Não se preocupe, agora também somos a sua família e quanto ao resto tudo se
há-de arranjar. A casa é pequena, mas havemos de caber todos e a panela que coze
para três também coze para quatro. O meu receio é que não estejam aqui seguros. Se
forem denunciados, a guarda vem logo à procura do meu marido.
Não te preocupes, mulher. Isso ainda vai demorar alguns dias e daqui até lá
alguma solução se há-de arranjar, agora o que é preciso é fazeres alguma coisa para
comermos, embora o apetite não seja muito e preparares o quarto para o Leonel,
porque vimos cansados e sem dormir.
A Paula, que entretanto tinha chegado das aulas, ao ver a mãe tão aflita e ao
ouvi-la dizer aquelas palavras, também ficou preocupada mas não o demonstrou para
não aumentar ainda mais a aflição da mãe, a preocupação do pai e a tristeza do
Leonel bem patentes no semblante de todos. Mas, naquele momento, teve uma ideia
maravilhosa que lhe fez sorrir o coração, para resolver aquele grave problema. Era
como se uma luz se acendesse mesmo ali, a indicar-lhe o caminho, que conduziria o
pai e o amigo a um lugar seguro e tranquilo, onde não pudessem ser descobertos.
A Paula era uma rapariga de estatura média, cabelos e olhos castanhos, talhe
elegante. Já tinham passado por ela vinte primaveras, frequentava o sétimo ano do
liceu, era educada e bondosa.

Devido ao seu feitio e à maneira de estar na vida, facilmente arranjava


amizades, mas tinha sempre o cuidado de seleccionar as verdadeiras das falsas e
sabia separar o trigo do joio na devida altura.
Entre essas amizades, tinha uma que lhe era muito especial. Era a da Sónia, uma
colega de turma, com a mesma idade, com a qual partilhava muitas das alegrias e
tristezas da sua vida.. O mesmo se passava em relação à amiga que passava a maior
parte do tempo com ela, devido à ausência dos pais em França e estar a viver na
casa dos avós paternos.
Sem dizer nada aos pais do que pretendia fazer, disse-lhes que ainda tinha de
sair e desculpou-se que tinha combinado com uma amiga, para irem a estudar para a
casa dos avós dela.
Os pais da Sónia tinham comprado uma pequena vivenda num dos bairros da
cidade, só era utilizada no verão, quando vinham de férias. Era a filha e a própria
Paula, que passavam por lá amiúde para abrirem as portas e as janelas e cuidarem do
pequeno jardim. Muitas vezes aproveitavam para estudar lá.
A Paula contou-lhe toda a situação do pai e do amigo e pediu-lhe para emprestar
a casa por dois ou três dias, enquanto não encontravam uma solução. Quando acabou
de descrever todo o drama, estava triste e preocupada.
- Não estejas triste, nem preocupada, tudo se há-de resolver. Pelo que tu estás
a passar também já eu passei, embora reconheça que o problema do teu pai é mais
grave, mas também sofri muito.
- Sou tua amiga, não temos segredos uma para a outra, mas isso nunca me
contaste.
- É verdade, Paula. Há coisas que nos magoam, quando mexemos nelas. O que
aconteceu com o meu pai magoou-me muito e à minha mãe, por isso é que evitamos de
falar nesse assunto. Também não te falei nele na altura própria, porque ainda não
tínhamos a intimidade de hoje.

Dois dias depois de ter saído foram dois guardas à nossa casa para o prender,
mas felizmente já ia a caminho da França. Mas o problema foi depois, levaram a
minha mãe para a esquadra e queriam à força que ela dissesse quem eram as outras
pessoas que iam com ele. No grupo ia um refractário, que se recusou a ir para a
guerra do ultramar, mas ninguém sabia de nada. Só mais tarde é que ele contou ao
meu pai o motivo da ida para a França e eles estavam convencidos que a minha mãe
sabia e não queria dizer. Felizmente acabaram por se convencer que ela não sabia
nada e deixaram-nos em paz, mas continuaram a vigiar a nossa casa por mais algum
tempo.
- E porque é que eles implicaram logo com os teus pais?
- Não sei, talvez algum bufo invejoso que não gostava de nós, tivesse
denunciado o meu pai.
- Então o grupo onde ele ia também foi interceptado?
- Foi, só que ia também um contrabandista.. Conhecia todos os carreiros e
atalhos e conseguiram escapar por um desses carreiros, porque a guarda tinha a
fronteira bem vigiada e convenceram-se que o grupo tinha voltado para trás.
- Bem feito!- Disse a Paula com um sorriso nos lábios.
- Agora que já sabes o que se passou com o meu pai, temos de resolver
urgentemente o problema do teu pai e do amigo dele. É com muito gosto que empresto
a casa, mas eles têm que ir para lá já, de maneira nenhuma podem ficar na vossa
casa. É muito perigoso porque de um momento para o outro eles podem aparecer lá e o
teu pai e o amigo dele serem presos.
- E os teus pais não vão ficar aborrecidos de emprestares a casa sem falares
com eles?
- Não, eu depois vou-lhes contar e eles até vão ficar muito contentes. Agora
vamos para a vossa casa para saírem de lá o mais depressa possível.
- Obrigada, Sónia, eu já sabia que podia contar contigo.
Quando chegaram, o ambiente que ali se vivia era demasiado triste.
A Maria sentiu em demasia o atordoamento do golpe que recebera quando o marido
e o Leonel chegaram a casa. Embora tentasse esconder a aflição que a atormentava,
não conseguia; a angústia lia-se-lhe no rosto, não vertia lágrimas, mas pareciam
ter-se petrificado nos olhos.

O Silvestre andava de um lado para o outro na pequena sala de estar. Às vezes


sentava-se, mas levantava-se logo de seguida. De vez em quando intercalava o
silêncio com algumas expressões de dor e revolta:
- Como é que vou sair desta situação? Que vida irá ser a minha? Quem seria o
filho da puta que nos denunciou? Se fosse marrar com os cornos para outro lado,
tinha feito melhor serviço.
O Leonel estava profundamente abatido pela dor e pelo cansaço e ainda pela
incerteza do dia seguinte. Tinha os olhos húmidos e fazia um esforço enorme para
conter a dor e o desespero que tumultuava no seu interior.
A Sónia, depois de ter cumprimentado os pais da Paula, cumprimentou também o
Leonel e ao vê-lo tão desanimado disse-lhe:
- Não desanime! O que aconteceu consigo e com o Sr. Silvestre foi apenas uma
batalha perdida. O meu pai também teve problemas na fronteira, mas felizmente
conseguiu escapar e agora está bem.
- O seu pai também é emigrante? - Perguntou ele.
- É, também foi a salto e foi a melhor coisa que fez. A minha mãe e eu sofremos
muito, mas valeu a pena e estou convencida que os senhores também hão-de vencer
esta crise e arranjar uma solução para ultrapassarem o obstáculo que agora se lhes
deparou. O que é preciso é não perderem a esperança e saírem já daqui.
- Para onde ?- perguntou o Silvestre.
- Para a nossa casa, lá estão mais seguros.
- Os seus pais são capazes de não gostarem de irmos para lá sem autorização
deles.
- Não se preocupe, Sr. Silvestre, eu sei o que faço e tenho a certeza que irão
ficar muito felizes quando souberem. Estão aqui as chaves, eu vou lá para lhes
dizer onde estão as coisas e podem ficar lá descansadinhos o tempo que for
necessário.
A Sónia era filha única, humilde, muito inteligente e sempre pronta a ajudar o
próximo.

Aquele gesto de ambas e as palavras de ânimo que lhes disseram foi como se
tivessem acendido uma luz no meio das trevas, para os tirar daquela aflição. Eram
um bálsamo, a fazer-lhes renascer a esperança de poderem sair daquela situação.
Para o Leonel, tinham ainda o condão de lhe fazer lembrar as próprias filhas. A
sua bondade, a maneira de agir e a ternura eram predicados comuns aos das filhas e
isso trouxe-lhe ainda mais algum ânimo.
No meio da desgraça aparece sempre alguém no nosso caminho a dar-nos força e a
estender-nos a mão, para que possamos continuar a nossa caminhada. Quem diria que,
no meu caminho, aparecesse gente tão bondosa a dar-me tanta força para não cair no
abismo nem no desânimo,- pensava ele.
Meia hora depois estavam na nova morada. Era uma vivenda bastante espaçosa e
alegre, tinha um pequenino jardim, muito bem tratado, com muitas flores de várias
qualidades e em frente da porta principal havia um pequenino lago com um repuxo de
água e algumas pequenas plantas em volta.
Depois de estarem instalados, o Silvestre, a mulher e o Leonel foram comprar
roupa porque tinham imensa falta, em especial o Leonel, que tinha apenas a que
trazia vestida.
Após terem feito as compras, foram ambos para a vivenda, tendo a Maria ido para
casa preparar o jantar, juntamente com a filha e a amiga. Quando terminaram, a
Paula e a Sónia, foram levá-lo aos foragidos. Era aconselhável serem elas a
encarregarem-se dessa tarefa porque era mais seguro, uma vez que andavam
frequentemente na vivenda e se as vissem entrar ou sair, não levantariam quaisquer
suspeitas.
Quando chegaram à vivenda, cada uma levava um saco, com a refeição. Ao
contrário do que era habitual, não tinham a mesma alegria dos outros dias, porque
também elas sentiam o peso da responsabilidade, apenas mantinham a graça de menina
e a compostura da mulher feita.

No dia seguinte, o Leonel foi ter com um amigo, com muitos conhecimentos que
sabia de casos idênticos para ver se lhe conseguia dar alguma solução para
resolverem o problema. Naquele dia não lhe deu nenhuma pista, mas deixou-lhe a
garantia que a iria encontrar o mais rapidamente possível e depois lhe telefonava.
Ainda no mesmo dia, telefonou-lhe para casa, mas como ele não estava, pediu à
mulher para lhe transmitir o recado o mais urgentemente possível. Ela ainda tentou
que lhe dissesse o que é que se estava a passar, nem que fosse de forma sumária.
Mas debalde. Porém, tentou tranquilizá-la, mas fez-lhe sentir que o assunto não era
insolúvel, mas exigia muita prudência; prudência essa que vedava por completo, a
transmissão de qualquer informação pelo telefone.
Quando o telefonema terminou, a mulher do Silvestre ficou lívida, parecia que
o chão lhe fugira debaixo dos pés, os nervos apoderaram-se dela, não conseguiu
ficar de pé e deixou-se cair numa cadeira que estava mesmo ao lado do telefone.
Enquanto estava sentada e depois de estar mais calma, ia meditando no que estaria
acontecer. Via já uma enorme tempestade a aproximar-se e o seu lar a ficar em
perigo.
- Será que vão prender o meu marido? Não, não pode ser, tem de haver uma
solução. Que seria do meu marido e da nossa vida meu Deus! - Pensava ela.
Quando a filha chegou ainda estava sentada e com os vestígios de preocupação
bem visíveis no seu rosto. Ao vê-la assim, o coração estremeceu-lhe e um pensamento
cruel apoderou-se dela.
- Para a minha mãe estar assim, já prenderam o meu pai e o Sr Leonel, - pensava
ela.
- Mãe, mãe, o que é que aconteceu para estar nesse estado? Prenderam o pai e o
Sr Leonel? Diga-me mãe, senão rebento.
A mãe olhava para a parede como se estivesse a olhar para um quadro de grande
dimensão cuja paisagem era desolada e aterradora, sem ouvir a voz da própria filha.
Só acordou daquela apatia, quando a filha se ajoelhou à frente dela e lhe deu dois
abanões, ao mesmo tempo que dizia em voz alta:
- Mãe, Mãe, olhe para mim, sou eu, aconteceu alguma coisa ao pai e ao Sr
Leonel?

A mãe arregalou os olhos, ficou um pouco a olhar para ela sem dizer nada, como
se tivesse perdido a memória, mas alguns segundos depois, disse-lhe:
- Desculpa minha filha, não sei o que se passou comigo. Telefonou para aqui um
amigo do pai a dizer que queria falar com ele urgentemente e não podia dizer pelo
telefone o que se passava, mas que o problema não era insolúvel e que era preciso
ter muita prudência. Fiquei assustada com o receio que fosse para o prender e
passou-me uma coisa pela cabeça, que nem sei o que foi, mas agora já me sinto
melhor.
A filha ficou mais tranquila, embora bastante preocupada e tentou sossegar a
mãe, dizendo-lhe que o senhor deveria andar à procura de uma solução para resolver
o problema e que o importante naquele momento era ir imediatamente levar a mensagem
ao pai. Foi o que fez: em passo apressado, dirigiu-se para o seu esconderijo.
Quando chegou, ia cansada e anelante
Os foragidos estavam quase sempre dentro de casa, raramente saiam ao quintal e
quando o faziam, era só quando tinham alguma coisa a fazer ali e demoravam o menos
tempo possível. Quando o Silvestre viu a filha tão cansada ficou apreensivo com o
receio de que lhe levasse alguma má notícia e perguntou-lhe:
- Há algum problema, filha, para vires assim tão cansada?
- Telefonou para casa um senhor a dizer que o pai esteve a falar com ele ontem
e precisa de falar urgentemente consigo e está no sítio do costume.
- Está bem, filha. Vou já falar com ele. È capaz de já ter arranjado alguma
solução e isso é muito bom. Agora vai ter com a tua mãe, que anda arrasada dos
nervos e é sempre bom estares ao pé dela, que eu vou já a saber o que se passa.

Depois da filha ter saído, o Leonel foi ao encontro do amigo ao local onde
antes tinham combinado. Este já ali estava à espera. Havia nele uma mistura de
optimismo e de preocupação. Tão depressa saiam dos seu lábios palavras de ânimo e
de confiança, como deixava transparecer alguma apreensão. O que tinha para lhe
dizer não era muito agradável, embora não fosse totalmente desagradável. Ele
soubera que tinham sido presos cinco indivíduos que iam no grupo do Silvestre e um
deles não conseguiu resistir aos vários interrogatórios e acabou por dizer o nome
de alguns companheiros que iam com ele. Entre esses nomes, encontravam-se o do
Silvestre e o do Leonel, contra os quais já tinham sido passados mandados de
captura naquele mesmo dia.
Ambos estavam numa situação bastante delicada. Se ficassem no país, mais cedo
ou mais tarde, seriam presos, a não ser que andassem toda a vida escondidos o que
não era seguro. Ou então tinham de fazer uma segunda tentativa, para ver se
conseguiam dar o salto para a França, o mais depressa possível, para não se
deixarem apanhar pela guarda.
Depois de ter conversado com o amigo, o Silvestre dirigiu-se para casa. Pelo
caminho, ia preocupado e pensativo. A meio do percurso, teve uma ideia que lhe veio
trazer alguma luz e algum alento. Lembrou-se que havia um indivíduo ali perto que
já tinha passado alguns emigrantes para a França e talvez pudesse resolver-lhes a
situação. Não lhe interessava o preço. O que era preciso era saírem do país o mais
depressa possível. Voltou para trás e foi ao encontro dele no café onde costumava
estar; para seu espanto, quando ali chegou, vi-o a falar com dois indivíduos que
tinham sido companheiros dele na viagem anterior a acertar as condições para os
levar para a França.
Não lhe foi difícil encetar a conversa, uma vez que se apercebeu logo dos
motivos por que os companheiros estavam reunidos com o passador. Quando o Silvestre
lhes contou o que o amigo lhe transmitira, ficaram e nervosos, o que levou um deles
a perguntar ao passador:
- E agora? Tínhamos isto combinado para a semana e por aquilo que acabamos de
ouvir, é capaz de ser tarde. Podem deitar-nos a mão de um momento para o outro.
Ele não respondeu logo e por um longo momento houve silêncio. Enquanto
esperavam pela resposta, o passador procurava-a no seu interior; passado aquele
momento, a mesma saiu-lhe enérgica e frontal.

- Temos de sair ainda esta noite, porque amanhã pode ser tarde e hoje é o dia
ideal. Eles estão descansados ainda a saborear o triunfo da vitória, por terem
apanhado os desgraçados e nem lhes passa pela cabeça que possa haver outra
investida tão rápida. E se amanhã forem à procura das pessoas que foram denunciadas
e não as encontrarem pode levantar logo suspeitas e começam apertar muito mais a
vigilância na fronteira. Por isso temos de avançar hoje. Agora vão para as vossas
casas, estejam preparados às três da manhã, que eu hei-de ir lá buscá-los. E muito
cuidado para não levantarem a mínima suspeita.
Se até ali o Silvestre tinha a sensação de estar a atravessar um enorme
pântano de areias movediças, com o risco de se afundar, a partir daquele momento
ficou convicto que o pântano estava vencido e começava a trilhar caminho firme,
embora com muitos obstáculos para ultrapassar, tinha força suficiente para os
vencer. Já era noite escura quando chegou à vivenda.
A mulher e a filha já ali se encontravam há cerca de duas horas, ansiosas para
saberem as notícias; enquanto esperavam, Maria ia passando algumas peças de roupa e
a filha entretinha-se a ler um livro
O Leonel estava sentado numa cadeira, com ar triste, a pensar na mulher e nas
filhas e no que seria a sua vida dali em diante.
Embora receoso pela incerteza dos passos que iria dar devido aos fantasmas que
o perseguiam desde a noite da fuga, o Silvestre deixava transparecer uma alegria
contida.
A filha leu-lhe no rosto a boa disposição e antes que alguém dissesse alguma
coisa, ela antecipou-se e disse-lhe:
- Pela sua cara vejo que o encontro correu bem e que nos traz boas notícias,
não é assim pai?

- É verdade filha, parece que estamos salvos, mas estamos a correr um grande
risco., Fomos denunciados e já há mandados de captura contra nós, por isso é que
temos de fazer nova tentativa esta noite e, se Deus quiser, vai correr bem porque
eles agora estão mais interessados em cumprir os mandados de captura e não vão
fazer uma vigilância tão apertada. É pelo menos a opinião do homem que nos vai
tirar daqui.
O Leonel continuava triste e um pouco pálido mas ao ouvir aquelas palavras, a
viva luz dos seus olhos renasceu e pareciam comunicar ao seu rosto algum colorido
ausente, embora o seu interior ardesse de angústia e receio.
A mulher e a filha começaram a chorar, sem saberem se era de alegria ou de
tristeza.. Se por um lado tinham motivos para estarem felizes, por verem a
possibilidade de ambos se salvarem daquela situação e verem realizado o sonho que
tanto ambicionavam por outro tinham fortes razões para estarem preocupadas,
atendendo ao que se passara na viagem anterior e ainda ao facto de terem sido
passados mandados da captura contra eles.
O que é isso? Não vos quero ver assim. Agora que temos a situação quase
resolvida é que vos deu para chorar? Afinal, estais contentes ou não?
- Muito, mas também estamos com muito medo que eles vos prendam pelo caminho -
disse a Maria.
- Não te preocupes, mulher. O azar não há-de andar sempre a bater-nos à porta.
Desta vez vamos ter sorte, se Deus quiser.
Mas como é que conseguiu arranjar as coisas assim tão depressa? - perguntou o
Leonel.
- Tinha de ser. Não tínhamos outro caminho a seguir e temos de andar depressa.
Se fosse amanhã podia ser tarde. Não se preocupe com nada, já está tudo arrumado
com o passador.
- Se calhar ficou endividado por minha causa.
- Não se preocupe Leonel "vão-se os anéis, ficam os dedos".
- Obrigado, Silvestre. O primeiro dinheiro que ganhar há-de ser para lhe pagar.
- Não se fala mais nisso. Agora o que temos a fazer é preparar as coisas,
porque, às três da manhã, o passador vem cá buscar-nos.
- Então eu vou já para a nossa casa com a Paula preparar a tua mala e trago a
roupa do Sr. Leonel, uma vez que já está aqui a mala. Eu também vou, há umas coisas
que quero levar e vós não sabeis onde estão.

- E não há perigo tu ires? Se forem lá à tua procura como é que te salvas?


Não tenhas medo, fujo pelas traseiras e venho pelo atalho, mas ide que eu já
vou daqui a pouco.
Alguns minutos depois ele foi também.
O Leonel ficou sozinho e enquanto esperava, ia pensando na sua vida e na nova
aventura que se aproximava. Não lhe saía da cabeça o que acontecera na anterior e
receava que voltasse a suceder o mesmo ou ainda pior. Estava bastante debilitado,
pouco comia e, quando ingeria algum alimento, era à força de muito sacrifício. Não
fora a enorme força de vencer e o apelo que fizera a todas as energias de certo que
não teria resistido a tanta comoção e contrariedade. A cabeça parecia que lhe
rebentava de tanto meditar. Se uns pensamentos lhe traziam receio e derrotismo,
outros traziam-lhe ânimo e esperança; mas eram a mulher e as filhas que mais lhe
ocupavam os pensamentos, fossem eles positivos ou negativos. Quando pensava
negativamente, via a infelicidade no seu lar e a vida destroçada; quando pensava
positivamente, via a felicidade na sua casa e o nascer de um novo dia.
Era como se o seu cérebro estivesse a ser disputado pelas forças do bem e do
mal, cada uma a querer introduzir os seus pensamentos, jogando os seus trunfos e
contrariando-se uma à outra. Quando a força do mal o amedrontava com um novo
insucesso e lançava o fantasma de ser preso na fronteira, a força do bem
contraponha com o exemplo dos pais da Sónia.
Estava nesta meditação, quando o Silvestre chegou com a mulher e a filha.
Apesar de terem feito algum barulho quando abriram a porta, nem deu por eles e
manteve-se a olhar para o tecto, dividido entre aqueles pensamentos. Só acordou
daquela cogitação quando o Silvestre lhe colocou as mãos nos ombros e disse:
- Então, Leonel, estamos quase salvos! Desta vai ser de vez.
- Deus o oiça.

Durante as horas que se seguiram não pregaram olho. Foram falando de diversos
temas e apesar de terem dormido muito pouco nos dias anteriores, o sono andava
arredio.
Finalmente chegou a hora mais desejada, mas também a mais receada e com ela
chegou também o passador com a camioneta que os iria transportar, na qual já
estavam os outros emigrantes, prontos para seguirem viagem faltando apenas eles.
Primeiro foi o Leonel, com os olhos rasos de lágrimas a despedir-se da mulher
do Silvestre e da filha. Agradeceu-lhes por tudo o que tinham feito por ele, e
deixou-lhes a promessa, que nunca se esqueceria delas e iriam ser compensadas na
Ilha da Madeira. Pediu-lhes ainda, para transmitirem à Sónia o seu agradecimento,
pelo nobre gesto que tivera.
Depois foi o Silvestre, também com algumas lágrimas a rolarem pelas faces a
despedir-se da filha. Ela abraçou-o com toda a sua força e dos seus olhos caíam
lágrimas em abundância que iam molhando os ombros do pai. Depois ergueu para ele os
olhos tristes e chorosos e disse:
- Deus os ajude!
Depois foi a vez de se despedir da mulher. Estava demasiado nervosa, com as
lágrimas a escorrerem em abundância pelas faces, mas quando o marido se lhe
dirigiu, não conseguiu resistir à comoção e só não caiu desamparada no sofá que
estava mesmo atrás, porque o marido e o Leonel foram em seu auxílio e conseguiram
amolecer-lhe a queda. Felizmente, o delíquio foi breve e recuperou logo os
sentidos. Quando abriu os olhos ainda ficou um pouco como que atordoada, mas depois
foi-se recompondo e quando viu a aflição estampada no rosto de todos, fez um
esforço enorme, levantou-se, embora um pouco combalida e tentou tranquilizá-los,
fazendo-lhes sentir que era apenas uma má disposição e que já tinha passado.
Depois, abraçou-se a ele dizendo-lhe:
- Deus vos proteja! Escreve logo! Nós não descansamos enquanto não tivermos
notícias.

Sem dizerem mais palavras, pegaram nas malas e foram muito silenciosamente
para a camioneta que estava à espera. Não havia estrelas no céu. A noite estava
escura como breu e a única luz que se via era a de um candeeiro de iluminação
pública que estava ali perto, a fazer lembrar a luz das velas em noite de vigília.
Estava frio e caía uma chuva miudinha.
No dia seguinte, ao cair da tarde, apresentaram-se na casa do Silvestre dois
guardas republicanos, com um mandado de captura para o prenderem. Quando tocaram a
campainha, a Paula foi observar por entre as cortinas do seu quarto e quando viu
que era uma patrulha da guarda nacional republicana, correu para a cozinha e disse
à mãe:
- São dois guardas.
Quando a filha lhe disse quem era, ficou branca como a cal da parede e as
pernas tremiam-lhe como duas varas verdes.
- Meu Deus! Se calhar, prenderam o teu pai e o senhor Leonel na fronteira. Eu
vou lá falar com eles.
- Não! A mãe está muito nervosa. Eu vou lá. Pode ser que venham só à procura do
pai, porque se o tivessem prendido, não vinham cá.
- Não sei, filha. Vai lá, mas tem cuidado!
Alguns minutos depois, voltou com ar feliz e com a certeza de que nada de mal
tinha acontecido ao pai pelas perguntas que os guardas lhe tinham feito.
A mãe respirou de alívio e ambas ficaram convictas que o pior estava passado.
Mesmo que tivessem de prestar algumas declarações à guarda, não estavam muito
preocupadas, porque estavam bem ensaiadas do que haviam de dizer. A única
preocupação que as atormentava era se o pai e o Leonel não conseguissem salvar-se.
Os guardas ainda foram mais algumas vezes à procura dele, mas acabaram por
desistir quando tiveram conhecimento, de que já estava em França.

A viagem correu sem sobressaltos com as autoridades por onde passaram. O mesmo
já não se passou em relação ao tempo que se fazia sentir. Já perto da fronteira, a
chuva começou a cair com intensidade e o vento a soprar com tanta força que às
vezes parecia que levava pelo ar a cobertura de lona que tapava a camioneta; a
neve, em algumas partes do percurso, caía em abundância; o gelo aparecia de vez em
quando na estrada; o sol, quando tentava aparecer, era logo escondido pelas nuvens;
a temperatura era gélida e muito difícil de suportar. O rigor do tempo, a
ansiedade, a insónia e a diferença de clima contribuíram para que muitos dos
emigrantes chegassem a França debilitados e doentes. Entre eles ia o Leonel com o
seu estado de saúde a merecer muita atenção e muito cuidado. Parecia que ardia em
febre, tinha as faces pálidas, não comia e por vezes dizia coisas sem nexo,
próprias de quem não está no uso total das suas faculdades mentais.
O Silvestre estava aflito e num dilema terrível: se levava o amigo para um
hospital, podia ter problemas com as autoridades que, em muitos aspectos, quando
colocadas perante algumas situações mais complicadas, tinham de agir, e poderiam
prejudicá-lo. Mas também tinha de actuar o mais rápido possível porque o estado de
saúde do amigo se agravava hora a hora e necessitava urgentemente de assistência
médica para evitar o pior. Mas não sabia a quem se dirigir para o ajudar a procurar
um médico e a sair daquela aflição. Ainda pensou em pedir ajuda ao empreiteiro para
quem ia a trabalhar mas, depois de muito pensar, chegou à conclusão que não iria
adiantar nada porque estava sujeito a envolver-se em conflito com as autoridades e
isso ele não queria de maneira nenhuma, porque fugia às regras legais, para poder
obter mão de obra mais barata e um lucro mais fácil; e essa mão de obra ia buscá-la
aos emigrantes clandestinos, que não podiam reivindicar qualquer direito, tinham de
se manter sempre calados porque se o fizessem eram logo despedidos e ameaçados de
serem denunciados.
Estava nesta meditação, quando uma luz de esperança veio em seu auxílio,
rasgando-lhe a nuvem que lhe entenebrecia a fronte. Lembrou-se dos pais da Sónia e
de um cartão com a direcção e o telefone deles que ela lhe entregara na véspera da
partida, no caso de precisar de alguma ajuda. Abriu a carteira com sofreguidão e no
meio dos documentos, lá estava o cartão.

A morada não era muito longe do local onde estavam. Telefonou-lhes logo, mas o
telefone dava sempre sinal de impedido. Resolveu, então, ir procurá-los a casa mas,
como não conhecia nada, pediu ajuda a um outro emigrante que já lá estava há alguns
anos e conhecia razoavelmente Paris e quase todos os seus arredores.
O Luís - era como se chamava o emigrante - também ficou preocupado, quando o
Silvestre lhe contou o que se passava e prontificou-se logo a ir com ele e ajudá-lo
em tudo o que estivesse ao seu alcance, para que fosse dada assistência necessária
ao doente e ajudá-lo a sair daquela situação. Mas havia um senão: já era muito
tarde e o transporte para o local onde moravam os pais da Sónia ainda ia demorar
muito tempo mas no estado em que se encontrava o Leonel era muito perigoso passar a
noite sem ser assistido.
Estavam naquele dilema, quando o Luís se lembrou de um médico, também
português, que ele conhecia bem, ao qual já tinha recorrido algumas vezes, para
tratar outros emigrantes clandestinos que necessitavam de cuidados médicos.
O Silvestre ficou imensamente agradecido com a solidariedade manifestada pelo
seu compatriota, sentiu algum alívio e alguma tranquilidade e viu acender-se a luz
da esperança, que estava quase apagar-se.
Embora frequentasse de vez em quando a igreja, o seu coração não conhecia o
fervor religioso, mas o estado de saúde em que o Leonel se encontrava fê-lo mais do
que uma vez, olhar para o céu e levar o pensamento a Deus, pedindo-lhe para curar o
seu amigo e ajudá-lo a ultrapassar um momento tão difícil.
Duas horas depois, chegava o Luís acompanhado do médico.
Era um jovem que também tinha ido para a França clandestinamente, para não
cumprir o serviço militar, por entender que a solução para a guerra do ultramar
deveria ser política e não militar. Mas, apesar dos seus direitos serem limitados
naquele país, prestava um precioso serviço junto da enorme comunidade portuguesa.
O Dr. Sérgio, gozava de uma enorme estima junto da comunidade devido à sua
dedicação, ao seu saber e à sua boa disposição, sempre pronto para atender as
pessoas a qualquer hora do dia ou da noite.

O mesmo se passava em relação a muitos médicos franceses, que o admiravam


imenso pela sua maneira de agir e, sempre que surgia algum caso mais melindroso,
ajudavam-no sempre e ponham à sua disposição os meios necessários para tratar o
doente.
Depois de ter observado o Leonel, disse para o Luís :
- O doente tem várias complicações. Precisa de ser internado imediatamente.
- Mas, Sr. Dr., ele veio clandestinamente de Portugal... Não haverá outra
maneira de ser tratado sem ir para um hospital? Perguntou o Silvestre.
- Eu compreendo o seu receio, também vim clandestinamente, mas não se preocupe
que não vai haver nenhum problema. Ele vai ser internado, mas não é em nenhum
hospital e não vai ser incomodado por ninguém. Deixe comigo que eu vou resolver o
problema. Vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para curar o nosso
doente. Vou já medicá-lo e depois vou telefonar para um colega, que é director de
uma clínica privada para o internarmos já.
Uma hora depois, era transportado para a clínica no carro do próprio médico.
Durante o percurso, o Silvestre tentava animá-lo com palavras de esperança mas
quando o Leonel tentava agradecer, a voz morria-lhe às primeiras expressões.
O rosto parecia uma nascente de orvalho: à medida que o Silvestre ia limpando
as gotas espalhadas pelas faces e pela testa, apareciam logo outras ainda em mais
abundância.
Durante três dias, ficou internado e quando teve alta foi para o mesmo quarto
onde morava o Luís porque o seu tratamento requeria muito cuidado e muito sossego e
o lugar onde ficou o Silvestre, não tinha essas condições.

Oito dias depois do Leonel ter saído, a mulher passou a aguardar com mais
ansiedade a chegada do carteiro, sempre com a esperança que lhe levasse alguma
carta Às vezes ainda vinha longe e já lhe estava a perguntar se trazia alguma
missiva para ela, mas a resposta amável do carteiro era sempre negativa.
- Não, dona Matilde, não trago nada para si.
A Margarida, ao ver a preocupação da mãe por não receber notícias, ia-a
tranquilizando, servindo-se, para o efeito, do exemplo do pai de uma colega de
turma que também tinha ido para a França nas mesmas condições e que só escreveu um
mês depois de ter saído da Madeira porque, muitas vezes, devido a problemas
inesperados, têm de esperar algum tempo no continente para seguirem viagem. A mãe
compreendia os argumentos mas não os aceitava na sua totalidade. Porém, iam
servindo de bálsamo para a deixar um pouco mais sossegada.
Num desses dias em que andava mais tranquila, a Carolina chegou a casa com ar
triste e ao contrário do que era habitual, não cantarolava nenhuma canção do Max em
voga na altura.
A mãe estranhou aquele comportamento. Foi ter com ela e perguntou-lhe:
- O que é que te aconteceu hoje ,para vires com essa cara de Inverno, algum
arrufo de namorados?
A filha não respondeu mas as lágrimas substituíram as palavras.
A mãe voltou a insistir. Então não me queres contar?
A Carolina manteve-se em silêncio.
- Está bem, mas à hora de jantar, tens de me dizer para não ficar preocupada e
para te poder ajudar. Está bem?
- Está, respondeu a filha.
Alguns minutos depois, a mãe começou a meditar mais profundamente no assunto e
as conclusões que tirava, enquadravam-se no campo dos pensamentos negativos que já
há alguns dias a vinham assolando e aquele comportamento da filha trazia-lhe mais
preocupações, a juntar às que já tinha.
- O que é que lhe teria acontecido? Será que algum malandro lhe fez alguma
partida e tentou abusar dela? Tem de me dizer já o que se passou, senão não aguento
com tanta preocupação, - pensava ela.

Foi ao encontro da filha que se encontrava no quarto, estendida em cima da


cama, com os olhos vermelhos de tanto ter chorado e disse-lhe:
- Eu preciso que me digas já o que se passou contigo para sair deste sufoco.
Como se já não bastassem as preocupações que tenho por não saber o que é que se
está a passar com o teu pai, agora apareces tu com mais problemas. O que é que se
passa Carolina?
Ela não respondeu logo e manteve-se em silêncio por um momento. A mãe aguardava
ansiosamente pela resposta e olhava para ela maternalmente.
Durante o tempo em que a Matilde estava no quarto com a filha mais nova, chegou
a Margarida, que se dirigiu logo para lá. Ao ver aquele quadro, ficou preocupada e
perguntou:
O que é que aconteceu para estares assim com essa cara, Carolina?
- Isso também eu quero saber. Estou aqui à espera que a tua irmã diga o que é
que se passou.
- Tiveste algum problema com o Eduardo?
- Com ele não, mas tive com a bruxa da Mónica e com a fingida da irmã dele.
Quando a Carolina disse estas palavras, a mãe suspirou de alívio e sentiu uma
enorme sensação de tranquilidade.
- Eu logo vi. Enquanto não o afastarem de ti, não descansam. O que é que elas
te fizeram?- perguntou a irmã.
- Meteram-se comigo. Já não é a primeira vez, mas hoje passaram dos limites:
quando saí do liceu, foram atrás de mim sempre às piadas -" ó bolinho de leite,
quando quiseres ir a casa dos pais do Eduardo, diz-me que é para eu te mudar esse
visual de sonsinha; fica descansada Mónica, ela só vai à minha casa quando as
galinhas tiverem dentes." - Mas que pena! Ó Sara, intercede lá por ela junto dos
teus pais para não estar assim tanto tempo à espera.
- Mas que desaforo! Quem diria! "Parece que não partem um prato mas se lhes
derem tempo são capaz de partir uma cantareira." E tu o que é que fizeste filha?

- Não fiz nada! Não que não me apetecesse, mas vinham algumas colegas atrás e
havia muita gente no passeio. Tentei evitar o escândalo! Mas isto não vai ficar
assim! No momento certo vão ter a resposta adequada.
- Deixa lá, filha. O melhor é esqueceres e o Eduardo quando souber vai chamar a
irmã atenção.
- Não sei se fará isso. Ele deixa-se influenciar muito facilmente por ela e vai
fazer tudo para o voltar para a amiguinha. - disse a Margarida.
- Mas se ele não gosta dela, o que é que podem fazer? - respondeu a mãe.
- A mãe nunca ouviu dizer, que "água mole em pedra dura tanto bate até que
fura"?- disse de novo a Margarida.
- Bem bem, Carolina! Vê o que andas a fazer! Ouviste o que a tua irmã disse: se
é para andares já a sofrer por causa desse namoro, o melhor é acabares já com ele.
Pelo que estou a saber, elas vão fazer-te a vida num inferno e ele não te vai
defender porque se deixa influenciar pela irmã e assim também não quero, há mais
rapazes que gostem de ti, ainda és muito nova e não me interessa que sejam pobres
ou ricos. O que eu quero é que sejam bons e te façam feliz.
A Carolina não disse mais nada, mas começou a meditar nas palavras que a irmã e
a mãe tinham dito. Embora gostasse muito do Eduardo, havia já imensos obstáculos à
sua frente a tentarem separá-la dele e isso preocupava-a imenso. Via já à sua
frente os desesperos de ocasião, os problemas do dia seguinte e a incerteza de um
futuro feliz. Ela sabia que o amor que o Eduardo tinha por ela era puro e sincero,
mas também sabia que a irmã tinha uma enorme influência sobre ele e era amiga da
Mónica e esta não olhava a meios para atingir os fins. Era capaz de recorrer à
calúnia, à mentira e a outros truques baixos, só para ficar com o Eduardo porque
tinha uma paixão doentia por ele.
Estava ansiosa por que chegasse o dia seguinte para ver qual seria a reacção do
namorado a respeito daquele episódio. Durante a noite, voltava-se para um lado,
voltava-se para o outro mas não conseguia dormir. A irmã já tinha dormido o
primeiro sono e ela ainda continuava às voltas na cama.

- Não dormes, Carolina? - perguntou a irmã com voz sonolenta, quando acordou do
primeiro sono.
- Não tenho sono. Tenho estado a pensar na minha vida. A minha cabeça está numa
confusão total.
- Faz um esforço! Vê se dormes, para as ideias assentarem na tua cabecinha.
As horas iam passando, mas o sono andava arredio. Já era quase de madrugada quando
conseguiu adormecer.
Na manhã seguinte, os vestígios da insónia eram bem patentes no seu rosto mas
depois de ter tomado banho ficou diferente como se tivesse dormido bem a noite e
nada tivesse acontecido. Quando saiu da casa de banho, já estava um pouco atrasada
e começava a fazer-se tarde para chegar a tempo de assistir à primeira aula.
Vestiu-se o mais rápido que pôde, tomou o pequeno almoço à pressa e foi para o
liceu.
Aquela manhã tinha-a toda ocupada com as aulas mas mantinha a esperança de ver
o namorado no intervalo de alguma delas, como era habitual. Os intervalos iam
passando mas ele não aparecia, o que a levara a fazer imensas conjecturas:
- Será que a irmã contou as coisas à maneira dela como é costume e deu-lhe a
volta? Teria acreditado nela sem ao menos falar comigo? Não! Não pode ser. Deve ter
tido algum feriado e nem chegou a vir. Estará doente? É capaz de me telefonar logo
à noite - pensava ela.
Aquele dia pareceu-lhe mais longo do que os outros. Olhava várias vezes para o
relógio mas parecia-lhe que os ponteiros não andavam e o aproveitamento das aulas
foi bastante prejudicado porque o seu pensamento dividia-se entre o que o professor
ensinava e os motivos que levariam o namorado a não comparecer. Quando as aulas
terminaram, nem esperou pelas colegas com as quais costumava ir ao café, para não
perder tempo.
Quando chegou a casa, perguntou logo à mãe se alguém lhe tinha telefonado

- Não! Ninguém telefonou. Tens é aí uma carta da Soraia, para ires a Santana
aos anos dela. A tua irmã também recebeu uma. A tua deve ser igual. Não calculas a
alegria que senti quando o carteiro me entregou as cartas, pensei que fosse alguma
do teu pai ou até ambas mas, infelizmente, não era nenhuma. Depois de ver que eram
ambas para vós, fiquei desolada. Ando sempre a pensar nele. Será que as coisas não
lhe estão a correr bem? Estou tão preocupada filha.
- Ainda não é tarde mãe! Um dia destes recebe uma cartinha dele. Eu também
penso muito nele.
Embora a Carolina tivesse tranquilizado a mãe, também ela sentia imenso a falta
do pai e começava a ficar preocupada com a demora das notícia, porque o seu
interior dizia-lhe que alguma coisa se estava a passar com ele. Já havia tempo
suficiente, para que as notícias chegassem.
A ansiedade começava a aumentar naquela casa e apesar de deixar transparecer
para o exterior o mesmo aspecto, a mesma vida como antes do Leonel ter partido, a
verdade porém é que tudo era diferente. Havia um enorme vazio naquele lar: a
ausência do chefe de família tornara-o mais frio, mais frágil.
O Leonel sabia que as suas filhas eram responsáveis e por isso mesmo pouco
interferia na vida delas. Quando o fazia, procurava sempre as palavras adequadas,
para lhes manifestar a sua concordância ou discordância por algum acontecimento
mais transcendente nas suas vidas e transmitir-lhes os seus conselhos nos momentos
em que achasse necessária a sua intervenção.
Elas sentiam nele um enorme abrigo onde se iam refugiar sempre que aparecia
alguma tempestade mais forte nas suas vidas, quando o refugio da mãe não conseguia
aguentar sozinho o ímpeto da tempestade.
A Margarida tinha ido a casa da Fernanda, uma vizinha amiga que era enfermeira
e confidenciavam uma à outra as alegrias e tristezas da sua vida. Quando chegou a
casa e viu a irmã sentada ao pé do telefone a ler um livro, causou-lhe imensa
estranheza por não ser hábito, o que a levou a perguntar-lhe:
- Em vez de estares no quarto, estás a ler aí? Esperas alguma chamada do teu
apaixonado?
- Não.
- Então porque é?

- Deu-me para estar sentada aqui. Só estou aqui há três ou quatro minutos.
- A mim não me enganas, Carolina. São os ditames do coração a falarem mais
alto!
- Tonta. - disse a Carolina com um sorriso nos lábios,
- Agora chamas-me tonta. É a mesma coisa que quereres tapar o sol com uma
peneira.
-Tens razão! O Eduardo hoje não apareceu no recreio e convenci-me que era capaz
de telefonar e como tu não estavas, deu-me para me sentar aqui.
- Vá! Vamos estudar! Se o telefone tocar nós ouvimos no quarto e a mãe também
vem atender.
O tempo ia passando, mas o telefonema não chegava e à medida que as horas
passavam, a Carolina ia ficando cada vez mais nervosa e preocupada.
- O que se estará a passar com ele? Depois do que se passou com a irmã e com a
amiguinha dela, nunca mais apareceu, até parece que anda fugido; se até aqui tinha
toda a confiança nele e não duvidava do amor que tinha por mim, agora começo a
duvidar, - pensava ela.
A noite já ia avançada. A hora de se deitar já tinha passado para além do
normal. Ela não tinha a certeza do que estava acontecer, mas sabia que alguma coisa
de errado se estava a passar.
Durante a noite, tentou esquecer os problemas que a preocupavam e refugiar-se
no sono, mas este andava longe e já era tarde quando apareceu.
Na manhã seguinte, levantou-se atordoada mas não abatida. Preparou-se, tomou o
pequeno almoço e foi juntamente com a irmã para o liceu, mas já não esperou pelo
Eduardo. Naquele dia, ambas tinham o mesmo horário, dando azo a que pudessem sair à
mesma hora.
Quando saiam juntas, tinham por hábito passar pelo café, antes de irem para
casa. Foi o que aconteceu naquele dia. Estavam sentadas numa mesa do Golden-Gate a
tomar a bica, quando ali apareceu o Eduardo. A namorada assim que o viu, disse para
a irmã:
- Ele vem ali.

- Ainda bem! Assim já pões tudo em pratos limpos e acabas de vez com esse
nervoso miudinho.
A irmã acabava de dizer estas palavras, quando ele se aproximou da mesa,
cumprimentou-as, não com o cumprimento aberto e jovial como era seu hábito, mas com
um cumprimento um pouco tímido e envergonhado.
A Margarida sabendo do que se passava, para os deixar à vontade levantou-se,
alegando que tinha de ir à papelaria, deixando a promessa que voltaria dentro de
meia hora. Ambos perceberam o alcance da sua saída e aceitaram-na com naturalidade.
A Carolina não deixava transparecer qualquer sinal de inconformismo, apesar da
indignação e da revolta que iam no seu interior. Ao contrário dela, os sinais de
agitação e insegurança eram bem visíveis no rosto do namorado.
- O que é que se passa contigo, para não apareceres ultimamente?- perguntou a
namorada.
- Comigo não se passa nada, mas tu assim o quiseste...
- Essa está boa! Agora sou eu a culpada de não teres aparecido. Já agora
gostava de saber o que é que eu fiz assim de tão grave, para fazeres uma afirmação
dessas.
- Tu sabes bem pelo que foi e tens de me dar uma explicação para as teres
tratado tão mal e à minha família.
- Pelo que estou a ouvir, já não precisas de nenhuma explicação, porque a tua
querida irmã e a amiguinha dela já a deram à maneira delas que já te voltaram bem a
cabeça. Tu é que tens de me dar várias explicações e pedires à tua mãe para dar
muito chá à tua querida irmã e à amiga dela quando for lá a casa porque estão muito
carenciadas desse precioso líquido.
- Tu não estás boa da cabeça Carolina! Insultaste a minha irmã, a Mónica e
ofendeste a minha família e por cima ainda queres que seja eu a dar-te explicações.

Ao ouvir aquela afronta, a Carolina ficou atónita. O seu rosto tingiu-se de


vermelho e ficou pálida quase simultaneamente; um enorme suspiro de dor e revolta
rompeu-lhe do coração; as palavras adequadas que lhe queria dizer naquele momento
ficaram presas na garganta, duas lágrimas responderam por elas e rolaram pelas
faces.
Durante um longo momento houve silêncio entre ambos; depois a Carolina
levantou-se e foi à casa de banho, sem pronunciar qualquer palavra.
O Eduardo ficou na mesa, mas seguiu com o olhar o seu trajecto. Quando a viu
entrar para a casa de banho, ficou convencido que depois voltaria de novo ao seu
lugar para continuarem a conversa.
Após ter tido tão grande abalo, ela foi lavar o rosto e compor o visual,
depois foi-se embora e nem esperou pela irmã.
Ele não se apercebeu da saída dela e foi esperando até se convencer que tinha
ido embora. Por fim, já estava arrependido de ter procedido daquela maneira,
sentira que a língua rebelde não obedecera à intenção, mas tentava arranjar
atenuantes para o seu comportamento.
- Eu devia ter mais cuidado com o que lhe disse, mas ela é que provocou; se não
tivesse dito que os meus pais não souberam educar a minha irmã, nada teria
acontecido. Mas agora já não posso recolher as palavras, já prejudicaram imenso as
nossas relações e quem sabe se não contribuíram para acabar com o namoro mas não
tenho outro remédio senão aguardar para ver no que isto irá bater,- pensava ele.
Quando a Carolina chegou a casa, entrou pela porta do quintal, onde estava a
mãe a cuidar do canteiro de flores que estava logo à entrada. No seu rosto eram
ainda visíveis os vestígios da tempestade mas tentou dissimulá-los o mais que pôde
de forma verosímil, o que deu origem a que a mãe lhe perguntasse:
- Tiveste algum aborrecimento, filha?
- Fiz um ponto e não me correu bem e estou um pouco aborrecida.
- Se é por isso, não vale a pena estares assim. Este correu-te mal não foi o
primeiro, nem há-de ser o último. Os outros hão-de correr melhor, se Deus quiser;
ou não haverá por aí algum arrufo de namorados?
- Não mãe, estou só aborrecida por causa do ponto.
- Há ainda outra coisa que me está a fazer pensar.
- O que é?

- Porque é que a tua irmã não veio contigo? Hoje é o dia que tendes o mesmo
horário e costumais vir sempre juntas. Estou achar tudo isto muito esquisito. Tu
estás a esconder-me alguma coisa, Carolina! Será que houve algum desentendimento
com a tua irmã?
- Mas que disparate, mãe! Até parece que andamos sempre a brigar e não nos
damos bem uma com a outra.
- Eu sei, filha, mas o facto de não teres tido nenhum problema com o teu
namorado e não teres vindo com a tua irmã, levaram-me a pensar assim.
- Fique sossegada! Foi só a história do ponto e nada mais. Agora se a mãe não
se importa, vou descansar um bocadinho que me dói a cabeça.
- Está bem, filha, vai lá descansar, mas olha que eu não fico muito convencida.
A Carolina arranjou o pretexto de estar cansada para sossegar a mãe, mas a
verdadeira razão de querer ir para o quarto era para descarregar a carga emocional
que tinha dentro dela e para poder chorar à vontade. Logo que entrou no quarto,
fechou a porta e atirou-se para cima da cama a chorar. Voltava-se para um lado,
voltava-se para o outro, torcia-se no leite, como se os ventos do infortúnio
tivessem lançado sobre ela toda a sua ira. Depois de muito ter chorado, os soluços
começaram a ser mais compassados e os vagidos da dor começaram a calar-se aos
poucos, até se extinguirem por completo.
Quando a tempestade amainou e a reflexão surgiu, ficou preocupada com a irmã e
recriminava-se pelo acto irreflectido que tivera por não ter esperado por ela, nem
que fosse à porta do café ou num sítio que a pudesse ver entrar.

A Margarida, depois de ter dado uma volta e ter calculado o tempo que lhe
pareceu suficiente para a irmã e o namorado resolverem os seus problemas, foi de
novo até ao café ao encontro dela. Mas, quando ali chegou, a mesa que antes estava
ocupada por elas estava vazia e ficou surpreendida por não vê-los ali, mas pensou
que talvez tivessem ido a algum lado e voltariam logo. Ocupou por isso a mesma
mesa. Foi esperando, mas a irmã e o namorado não apareciam:
- Deve ter acontecido alguma coisa à minha irmã. Ela não se ia embora sem
esperar por mim. Isto cheira-me a esturro. Ele deve tê-la provocado e não resistiu
à provocação, deve ter ido para casa. Vou-me também embora, já não estou aqui a
fazer nada,- pensava ela.
Quando chegou a casa, a mãe ainda estava no quintal e a primeira coisa que fez
foi perguntar-lhe se a irmã já tinha chegado.
- Chegou há bocado, mas vinha um pouco transtornada. Deve ter tido algum
problema. Ela tentou disfarçar, arranjou uma desculpa esfarrapada, mas eu não
acreditei e quando lhe perguntei porque é que tu não vieste com ela, respondeu-me
que saiu mais tarde por causa dum ponto que lhe correu mal, por isso é que vinha
assim. Afinal, o que é que se passou?
- De concreto, não sei, mas deve ter tido alguma discussão com o namorado.
Quando os deixei no Golden estava tudo bem, mas depois quando voltei, já lá não
estavam. Ainda esperei um bocado a ver se ela aparecia mas quando vi que a demora
era muita vim embora.
- Eu logo vi que ela não estava a falar a verdade, via-se-lhe na cara.
- Onde é que ela está agora?
- Disse que lhe doía a cabeça e foi para o quarto.
- Vamos até lá saber o que se passa com ela - disse a filha.
Quando chegaram ao quarto, a mãe deu duas pancadinhas na porta, mas ela não
respondeu. Ainda receou que estivesse fechada à chave por dentro, mas a Margarida
abriu-a com muito cuidado.
A irmã estava a dormir com o corpo quase enrolado, com a cabeça fora do
travesseiro, que estava ensopado. A irmã ia para lhe dar um pequeno abanão para a
acordar mas a mãe pediu-lhe que a deixasse descansar e tentasse apenas tirar-lhe o
travesseiro para o substituir por outro enxuto mas, no momento em que estava a
tentar fazê-lo, a irmã abriu os olhos, que pareciam falar de revolta e, vergonha e
com a voz quase inaudível, disse para a mãe:

- Desculpe, mãe, por não lhe ter dito a verdade, mas vinha desesperada e não
queria que se afligisse ainda mais do que já anda. Depois, voltou o olhar para a
irmã e pediu-lhe também desculpa por lhe ter feito aquela partida, justificando-se
que estava desesperada por causa do safado do Eduardo.
Tanto a mãe como a irmã aceitaram e compreenderam as explicações e facilmente a
desculparam com um leve sorriso e pediram-lhe para lhes contar o que se passara.
Com os olhos ainda húmidos, começou a contar o que se tinha passado. À medida
que ia narrando os factos, as lágrimas iam aparecendo ao canto dos olhos, mas
quando terminou a narração corriam com abundância. Parecia que toda a paixão
sufocada e rebelde tinha convergido para o seu semblante. A sua mágoa era tão
profunda e os factos tão evidentes que levaram ao aparecimento de uma ou outra
lágrima tanto nos olhos da mãe como da irmã.
- Mas que safado! Diz que te ama, mas vai sempre na conversa da irmã. Em vez de
tentar averiguar como se passaram as coisas, tomou logo partido a favor dela e da
outra, nem sequer te ouviu para saber onde estava a verdade. Ele não te ama porque
quando se ama verdadeiramente não se tomam atitudes como as que ele tem tomado e
não têm sido poucas. És constantemente hostilizada pela irmã e pela outra e ele
nunca te defendeu. Está sempre ao lado da irmã, mesmo sem ela ter razão. Ele não
namora contigo, namorica,o que é bem diferente e quando assim é o melhor que há a
fazer é cortar o mal pela raiz. É o que tens a fazer, - disse a irmã.
- Fica descansada! Agora cheguei a essa conclusão. Andava muito enganada, ele
que fique lá com a amiguinha da irmã que eu não sirvo de capacho.
- Fazes bem filha, rapazes não te hão-de faltar. Agora tens de o esquecer o
mais depressa possível que um novo dia virá e com ele a tua felicidade - disse a
mãe.
- Então já não vais ao baile dos finalistas? - perguntou a irmã.

- Não, não tenho disposição, fico em casa a estudar. Para a semana o professor
já disse que talvez tivéssemos um ponto de português e aproveito para rever a
matéria. E tu vais?
- Também não! Não tenho pachorra. Eu só ia se tu fosses, mas assim não, vou dar
uma volta com o Raúl.
A mãe e a irmã saíram ao mesmo tempo do quarto e foram preparar o jantar. Dez
minutos depois, saiu a Carolina e foi ter com elas. Quando chegou à cozinha, já não
levava sinais de lágrima nem de tristeza; também não ia alegre mas ia serena.
Estava um pouco pálida mas a viva luz dos seus olhos parecia levar ao rosto um
pouco do colorido que andava arredio. A força e os conselhos que a mãe e a irmã lhe
deram, serviram de bálsamo para a ajudar a vencer a crise.
Na segunda feira seguinte, já não foi para o mesmo local onde costumava falar
com o Eduardo nos intervalos das aulas, para não se encontrar com ele. Preferiu ir
com outros colegas, para outro local do liceu. Quando o intervalo estava mesmo a
terminar, foi ter com ela uma amiga que andava noutra turma e disse-lhe:
- Olá, Carolina! Hoje não apareceste. Andava lá o teu apaixonado e perguntou-me
se sabia onde estavas e eu disse-lhe que não sabia. Mas olha que ele andava com
cara de chateado. Se me perguntar outra vez por ti, o que é que queres que lhe
diga?.
- Diz-lhe que vá para o inferno.
- Oh! Isso anda mau, parece que houve tempestade.
- Houve, mas já não há.
Entretanto a campainha tocou e não puderam continuar a conversa. Cada uma foi
para a sua sala.
Quando terminaram as aulas, a Carolina esperou pela irmã e foram à papelaria
Condessa comprar algum material escolar. Estavam a ser atendidas, quando ali entrou
o Pedro. Ao ver a Carolina, sentiu uma sensação de felicidade e pensou logo em
dirigir-se-lhe, para lhe perguntar se não tinha recebido a carta dele, mas a
reflexão fê-lo recuar por saber que ela namorava com outro.

A Carolina estava de costas ao lado da irmã mas quando se voltou, o Pedro


pousou logo o olhar nela. Ela não o animou, mas também não o desconsolou e sentiu
reabrir-se a pequenina brecha que já tinha no seu coração. Quando saíram, ele ainda
lhe disse:
- Olá, Carolina.
- Olá, Pedro.- respondeu ela.
O Eduardo fez várias tentativas para se aproximar dela, mas poucas vezes o
conseguiu e nessas vezes era logo rechaçado com palavras de motejo. Ele não podia
culpá-la por ter aquela atitude, nem responder-lhe por não ter moral, nem
argumentos válidos para o fazer porque o único culpado era ele, por se deixar levar
mais pelas aparências do que pela realidade. Dava menos apreço às qualidades
sólidas do coração do que às frívolas da irmã.
A Carolina contava à Margarida alguns dos artifícios que o Eduardo utilizava
para se aproximar dela e as súplicas que lhe fazia quando tinha tempo para lhe
dizer algumas palavras. Ela já não sentia quase nada por ele e tentava esquecê-lo o
mais depressa possível, porque o seu pensamento já estava mais voltado para o
Pedro. Porém, a irmã fez-lhe sentir que deveria dar-lhe uma oportunidade para lhe
dizer o que não conseguira no dia do encontro em que o deixara no Golden-Gate. Ao
princípio, não estava muito receptiva à ideia mas depois de ter reflectido, acabou
por aceitar a sugestão.
Logo no dia seguinte, foi de propósito para o local onde costumava encontrar-se
com ele no intervalo das aulas. Assim que a viu, dirigiu-se-lhe logo a meter
conversa mas sempre receoso que lhe acontecesse o mesmo das vezes anteriores. Desta
vez teve mais sorte, não o mandou embora, também não falou muito com ele mas falou
o tempo suficiente para marcarem um encontro para um café que havia ali próximo.
Assim que as aulas terminaram, o Eduardo dirigiu-se logo para lá, enquanto a
Carolina ainda demorou alguns minutos. Quando chegou, já ele tinha ocupado uma
mesa, a um canto do café. Assim que a viu entrar, ficou radiante por estar
convencido que ela não iria aparecer e seria uma partida que lhe iria pregar.
Sentou-se com ar frígido e cumprimentou-o secamente.
- Boa tarde.

Ele levantou-se um pouco da cadeira e curvou-se para lhe dar um beijo, mas ela
voltou a cara para o lado e não se deixou beijar.
- Nem sequer te posso dar um beijo! Disse ele com ar de resignação.
- Guarda-o para a tua queridinha Mónica, que a mim não me faz falta.
Ele pensava que aquela atitude era uma reacção momentânea para manifestar a sua
indignação por causa da irmã e da amiga porque se já não gostasse dele não teria
ido. Tentou beijá-la de novo mas debalde. Ela fez-lhe a mesma cena; tentou pegar-
lhe nas mãos para as acariciar, mas ela retirou os braços de cima da mesa e
colocou-as no regaço.
- Pensava que já não estavas zangada comigo e este encontro era para fazermos
as pazes, mas pelos vistos parece que ainda estás ofendida. Eu compreendo que
devia ter falado contigo mas precipitei-me. Desculpa! Prometo-te que já não volta
acontecer.
- Agora já é tarde. Estou farta de te desculpar e servir de capacho, mas
acabou-se, perdi toda a confiança que tinha em ti. Agora já não acredito em nada do
que dizes.
- Mas eu amo-te Carolina.
- Tretas! Já te ouvi dizer isso vezes sem fim, mas nos momentos em que devias
ter demonstrado esse grande amor que dizes ter por mim, nunca o fizeste. Pelo
contrário, hostilizaste-me sempre, nunca acreditaste em mim, estiveste sempre ao
lado da mentirosa da tua irmã e da fingida da amiguinha dela. A patifaria que me
fizeste depois de ter sido tão ofendida por elas não é próprio de quem ama. O amor
que tu dizes que me tens é um amor fingido, porque se fosse verdadeiro não
permitias que a tua irmã andasse sempre a meter-se na tua vida, só para te afastar
de mim e aproximar-te da amiguinha, mas podes ficar com ela à vontade. Bom proveito
te faça porque já não te amo. Quando casar, há-de ser com um homem que me ame
verdadeiramente e não seja marioneta de ninguém.
- Tu estás nervosa, Carolina! Deixa-me explicar-te! Juro-te que a minha irmã
não voltará a meter-se mais na nossa vida.

- É preciso teres lata! Quantas vezes já me disseste isso? "Quanto mais juras,
mais mentes", mas de uma coisa podes ter a certeza ela vai continuar a meter-se na
tua vida, mas na minha "tire o cavalinho da chuva" porque não lhe vou dar mais
oportunidades.
- Pensa bem! Daqui em diante vais ver que tudo vai mudar. Eu sei que estás
magoada mas não vão ser estes precalços que vão desfazer o nosso amor.
- Não insistas mais! Já te disse o que tinha a dizer. Eu se aceitei estar aqui
contigo, foi apenas para ficares a saber que foi a tua querida irmã e a tua
queridinha Mónica que se meteram comigo de uma forma própria de quem nunca tomou
chá.
- Não estás a ser justa! - interrompeu o Eduardo.
- Não me interrompas! Deixa-me acabar. Foram elas que foram atrás de mim a
provocarem-me, sempre com piadas de mau gosto, a chamarem-me sonsinha, oportunista,
bolinho de leite. A tua adorada irmã até chegou a dizer, que eu só entrava na vossa
casa quando as galinhas tiverem dentes. Pelo que se vê, ela é que é mandante lá de
casa. Eu nem sequer lhes respondi porque ia descer ao mesmo nível delas e o nível
que elas demonstraram ter é próprio de arruaceiras e bilhardeiras. Eu sei que elas
te contaram tudo ao contrário e acreditaste nelas mesmo sem me ouvires. Agora já
sabes muito sumariamente o que elas fizeram. Era só isto que tinha para te dizer.
Adeus!
Quando acabou de dizer a última palavra levantou-se de supetão e foi-se embora.
O Eduardo ainda foi atrás dela para tentar convencê-la, mas em vão.

Os dias iam passando mas as notícias do Leonel não chegavam, embora houvesse
tempo mais que suficiente para que as mesmas chegassem. A ausência de notícias
começava a preocupar seriamente a mulher e as filhas. A Matilde, todos os dias ia
esperar o carteiro na ânsia de que lhe levasse alguma missiva; as filhas, quando
regressavam das aulas, a primeira coisa que faziam era perguntar-lhe se havia
alguma novidade do pai, mas a resposta era dada sempre em voz baixa e triste:
- Não, infelizmente ainda não!
À medida que o tempo passava, a preocupação aumentava e ia dando lugar à
angústia. Os argumentos que serviam de suporte para manterem a esperança começavam
a perder a eficácia. A Matilde era a mais inconformada.
- O que teria acontecido ao meu marido, para não escrever nem dar notícias.
Será que as coisas não lhe correram bem e está preso? Estará doente? Não aguento
mais continuar nesta ansiedade! Protegei-o, meu Deus! O que será das minhas filhas?
Onde é que eu vou arranjar dinheiro para pagar a renda da casa, para comprar
alimentos e fazer face às outras despesas? - pensava ela.
No momento em que lhe ocorriam estes pensamentos, lembrou-se de telefonar para
casa do Diogo, na esperança de que o amigo dele já lhe tivesse transmitido alguma
notícia do marido. Correu para o telefone, ligou para a casa dele, mas ninguém
atendeu.
- Devem estar para a fazenda. Vou tentar logo à noite.
A cabeça parecia que lhe rebentava de tanto pensar no marido e nas
consequências nefastas que adviriam da sua prisão. O desânimo começava apoderar-se
dela. A crise estava instalada. Agora pairavam nuvens negras sobre aquele lar a
ameaçar tempestade.
Naquele dia em que a crise tomou maiores dimensões, quando as filhas chegaram a
casa, a mãe estava triste e abatida, o que era bem visível no seu rosto. Ao vê-la
assim, sentiram o chão fugir-lhes debaixo dos pés e uma onda de medo levantou-se
dentro delas, tingiu-lhes as faces de vermelho e quase de seguida de um branco
pálido, por terem pensado que alguma coisa de grave teria acontecido.
- Tem más notícias do pai? - perguntou a Margarida com ar triste.
- Nem más nem boas filhas. Mas já é de mais. Já lá vai mais de um mês, estamos
quase no Natal e sem termos notícias dele. Deve ter-lhe acontecido alguma coisa má.

Naquele momento, a Margarida lembrou a conversa que tivera com a amiga a


respeito do pai dela quando fora clandestinamente para a França tendo também
demorado mais de um mês a escrever, o que veio trazer alguma tranquilidade e
atenuar um pouco os maus pensamentos.
- Telefone ao Sr. Diogo! Pode ser que o amigo dele já lhe tivesse dado alguma
notícia a respeito do pai - disse a Carolina.
- Boa ideia, acrescentou a irmã.
- Já telefonei para lá mas ninguém atendeu. Devem andar para a fazenda. Mais
logo vou tentar.
Duas horas depois, a Matilde voltou a telefonar mas ele, também ainda não tinha
tido notícias e tentou tranquilizá-la, fazendo-lhe sentir que às vezes as notícias
tardam em chegar, dando-lhe como exemplo um vizinho que também foi clandestinamente
para a França e já passava mais de um mês quando escreveu, porque às vezes surgem
problemas e têm de os resolver primeiro.
A Matilde ficou um pouco mais conformada mas os maus pensamentos continuaram a
povoar-lhe a cabeça.
Naquela noite teve um sonho terrível. Aproximou-se dela uma figura de homem
com um olhar assustador e um sorriso triunfante, ao mesmo tempo que proferia frases
truncadas que ela não conseguia perceber.
Quanto mais se esforçava para fugir dela, mais os pés se agarravam ao chão. No
momento em que a figura estava junto dela, ela esboçou um grito de dor mas não o
conseguiu, porque no momento em que pretendia fazê-lo, a figura tapou-lhe a boca
com uma mão e com a outra segurou-a; depois sacudiu a cabeça com um gesto trágico e
deu-lhe um beijo convulso e frio na boca. No momento em que a Matilde recebeu o
beijo, sentiu desfalecer e rolar pelo abismo abaixo.
Acordou agitada e quando abriu os olhos, viu as filhas ao pé da cama a olharem
para ela. Depois perguntou-lhes:
- Ouvistes os meus gritos?
- Ouvimos, mãe! Por isso é que viemos logo a ver o que é que lhe tinha
acontecido - disse a Margarida.

- Credo! Tive um sonho terrível. Sonhei que uma figura de homem deu-me um beijo
muito frio e atirou-me para o fundo do abismo. Ainda estou fria. Tocai aqui nas
minhas mãos?
- Parece que estão geladas! - disse a Carolina.
- Isto é mau presságio, filhas.
- É agora mau presságio mãe? Foi um desses sonhos desgraçados que às vezes nos
batem à porta. Ainda não há muito tempo, sonhei que ia a passar à beira de um
enorme poço ,escorregou-me um pé e caí para dentro, mas consegui agarrar-me a uma
pedra que estava mais saliente e fiquei pendurada a fazer um esforço enorme para
não cair para o fundo. Depois consegui subir um pouco, agarrada aos buracos da
parede mas quando estava quase a chegar ao cimo, começaram a sair imensas cobras de
todo o tamanho debaixo da água, e a subirem pelas paredes na minha direcção e
quanto mais lutava para sair de lá, mais as cobras se aproximavam de mim. Não
imaginam a minha aflição quando estava quase a ser apanhada por elas. Mas depois
passou um cavalo branco com umas grandes asas, voou até onde eu estava, agarrei-me
ao pescoço dele e ele tirou-me de lá. Quando acordei transpirava por todos os
cantos - disse a Margarida.
- Mas às vezes também temos sonhos bonitos - disse a Carolina.
- É verdade, filha! Mas que é um grande mistério lá isso é. Deixemos agora
isso. Não se estará a fazer tarde para irem para as aulas?
- Ainda não é tarde, mas já está na hora de nos apressarmos para não chegarmos
atrasadas - disse a Margarida.
- Vá! Ide, filhas, que eu já lá vou ter convosco. Quem costuma levantar-se cedo
estar ainda na cama a esta hora até é uma vergonha.

Na tarde daquele dia o Pedro descia a Rua Fernão Ornelas, quando viu a Carolina
a andar em sentido contrário no outro lado do passeio. Ao vê-la, a primeira reacção
que teve, foi ir ter com ela mas, depois de ter reflectido, chegou à conclusão que
não tinha o direito de ir a intrometer-se na vida dela e continuou o seu caminho.
Mas quando ia a passar em frente do Mercado dos Lavradores, viu passar o Eduardo em
direcção à mesma rua, com outra rapariga ao lado. Ao vê-lo com outra rapariga foi
como se uma aurora súbita mas rutilante e límpida, tivesse nascido ali mesmo.
- Aqui há qualquer coisa que não bate certo! A Carolina passou sozinha, agora
ele vai com outra ao lado. Devem ter acabado com o namoro. Vou ver se ainda a
apanho. É capaz de ter ido para a paragem do autocarro. Vou ter com ela - pensava
ele.
Voltou para trás, esqueceu-se do que ia fazer e, num passo apressado foi no seu
encalço. Quando chegou à paragem ela já estava na fila a aguardar a sua vez para
entrar no autocarro que a levaria a casa.
Ele não queria dar a perceber que tinha ido atrás dela, o que o levou a vestir
a pele de autor e encenar uma pequenina peça, para fazer crer que o encontro fora
casual e não premeditado.
Depois de ter feito a sua representação e de a ter cumprimentado, tentou
convencê-la a não ir naquele autocarro e esperar pelo seguinte, para terem tempo
para falarem mais um pouco. Ao princípio ela não estava muito receptiva à ideia,
alegando que ficaria para a outra vez, mas ele tanto insistiu que acabou por
convencê-la. Embora aparentemente ela demonstrasse sempre muita relutância em ceder
aos seus apelos, no fundo do seu interior também desejava ficar.
O sol estava quase a esconder-se, a tarde já trajava as suas vestes de púrpura
a anunciar o crepúsculo que não tardaria a chegar. Por isso mesmo, resolveram ir
até à ponta do cais para não ficarem muito longe da paragem.
Ele mostrava-se atencioso e solícito, ela nem tanto, mas o suficiente para não
o repelir nem desiludir. Mas à medida que iam conversando, os olhos dele iam-se
fixando nos dela, cada vez com mais insistência. Embora ela desviasse os seus,
quando se encontravam ora na direcção dos barcos que estavam atracados no porto ora
para a imensidão do mar; não os desviava logo e, por alguns segundos, deixava que
os do Pedro substituíssem as palavras e lhes dissessem o que sentia o coração.

Num dos momentos em que os olhares se encontraram por mais tempo, ela estava
apoiada nos varões que servem de protecção a olhar para o mar. Ele foi-se
aproximando até ficar bem juntinho a ela e, num impulso que lhe rompeu do coração e
que não conseguiu conter, pousou-lhe na testa, no meio de alguns cabelos, que uma
forte brisa para ali atirara, o mais puro e fugitivo dos beijos.
A Carolina enrubesceu e estremeceu, mas não esboçou o mais leve gesto de
desagrado e deixou-se ficar serena e feliz.
Naquele momento, os olhos de ambos fulgiram de enorme satisfação. Era como um
clarão interior a desvendar à alma os horizontes infinitos da esperança. Ali mesmo
ele fez-lhe uma declaração de amor aceite por ela depois de alguma hesitação.
O dia já estava a dar lugar à noite e a Carolina não podia ficar mais tempo,
embora o seu coração o desejasse, porque não queria afligir a mãe ainda mais do que
já andava. Dirigiram-se até à paragem onde o autocarro já estava parado a receber
os passageiros e ali se despediram, com o coração a trasbordar de alegria.
Quando a Carolina chegou a casa, ia com ar feliz deixando transparecer a
alegria que sentia. A mãe ao vê-la, leu-lhe logo nos olhos a voz do coração e
disse-lhe:
- Hoje vens diferente, vens mais alegre, Carolina. O que é que te aconteceu
para vires assim mais feliz?
- O dia correu-me muito bem.
- Encontraste o Pedro? - perguntou a irmã.
- Encontrei e pediu-me namoro.
- E tu aceitaste? - perguntou a mãe.
- Aceitei.
-- Vê no que te vais meter! Tem cuidado para depois não te arrependeres: a
gente vê caras e não vê corações. Já conhecias o rapaz?
- Já há algum tempo ele andava atrás de mim e simpatizei com ele desde o
primeiro dia que o vi, mas gostava mais do Eduardo. Por isso não lhe dei
oportunidade mas agora que tudo acabou com o outro safado e ele voltou a insistir,
aceitei.
- Ele parece que é bom rapaz - disse a irmã.

- Deus queira que não haja problemas. Para preocupações, já chegam as que temos
por não sabermos o que está acontecer ao vosso pai para não escrever.
- Tudo há-de correr bem, se Deus quiser! - disse a Carolina.
- Deus te oiça, filha.
Depois de terem jantado, a Margarida e a mãe ficaram arrumar a cozinha,
enquanto a Carolina foi para o quarto, abriu a janela e ali ficou a meditar.
Estava uma noite calma e uma temperatura agradável. As estrelas tinham uma
cintilação viva, fazendo-as parecer mais alegres. Olhava para elas como se
estivesse a comungar da mesma alegria, mas às vezes essa alegria transformava-se em
tristeza quando se lembrava do pai e do que lhe estaria acontecer. Naqueles
momentos mais tristes, fixava o olhar nas estrelas, como que a implorar-lhes que
lhes trouxessem boas notícias do pai. Quando a irmã chegou ao quarto, ainda estava
naquela meditação.
- Ainda não te deitaste, Carolina? Estás a exteriorizar a tua alegria com as
estrelas?
- E a tristeza também. O pai não me sai da cabeça. O que é que lhe teria
acontecido para não mandar notícias? Peço tanto a Deus para o proteger.
- Também eu Carolina. ,Embora às vezes me faça forte à frente da mãe para não a
desanimar, a verdade é que ando muito preocupada. Mas temos de fazer um esforço
muito grande para ver se ela se vai aguentar, senão não sei como é que vai resistir
da maneira que ela anda...
Logo a seguir a Carolina fechou a janela e ambas se foram deitar. Foram falando
de diversos temas e já era tarde quando o sono lhes bateu à porta.
O Pedro ia inventariando pelo caminho tudo o que se passara naquela tarde. Às
vezes não sabia se tudo o que acontecera era a realidade ou se estava a voar nas
asas de uma quimera. Era como se uma fada lhe tivesse aparecido, transformando-lhe
vida e a indicar-lhe o caminho da felicidade. Já era quase de madrugada quando
conseguiu adormecer.

O mês de Dezembro estava à porta, mas as notícias referentes ao Leonel


continuavam ausentes. Agora já não havia mais atenuantes para justificarem tão
grande ausência das mesmas. A dor e o desespero começavam a manifestar-se de forma
violenta e preocupante no semblante da Matilde. Além do sofrimento que sentia por
não saber o que se estava a passar com o marido, juntavam-se agora outros problemas
bastante complicados e de difícil solução. O dinheiro que o marido lhe deixara para
fazer face às despesas correntes estava a esgotar. Já não chegava para tudo. Se
comprava alimentos para o seu sustento e para o das filhas, faltava para pagar a
renda da casa; se pagava a renda da casa, faltava para os alimentos e para fazer
face a outras despesas.
Enquanto se confrontava com este dilema, as filhas iam tentando confortá-la o
mais que podiam e sugeriam-lhe soluções para a resolução dos problemas. Entre essas
soluções, já lhe tinham alvitrado para trabalharem durante o dia e estudarem à
noite, para ganharem algum dinheiro enquanto não aparecesse outra solução. A mãe
aceitou a ideia de bom grado, mas pediu-lhes para esperarem mais algum tempo, a ver
se aparecia outra solução porque a maior riqueza que ela e o pai lhes podiam deixar
eram os estudos.
Ela estava disposta a sacrificar-se e a procurar outras alternativas, sem ser
necessário tirar as filhas do liceu. Entre as soluções que se lhe ofereciam, podia
falar com o senhorio e pedir-lhe para esperar um mês ou dois pela renda da casa,
enquanto não tivesse notícias do marido. Ou então pedir ao merceeiro que ficava
perto da sua casa para lhe vender fiado por algum tempo, como fazia a muita gente
do sítio.

Depois de muito cogitar, chegou à conclusão que seria melhor falar com o
senhorio, porque era uma pessoa muito boa e amiga de ajudar o próximo; embora o
merceeiro também fosse muito bom, a mulher tinha um grande defeito. E era amante da
bilhardice e não tinha o menor pejo em devassar a vida das pessoas que compravam
fiado na sua mercearia e, juntamente com as amigas da mesma laia, encarregavam-se
de levar para a praça pública o nome de muitas dessas pessoas, principalmente
daquelas com quem simpatizava menos e isso a Matilde não queria que acontecesse.
Além de detestar a alcovitice, não queria que o nome do marido e das filhas fossem
denegridos publicamente. Depois de pesar os prós e os contra, optou por ir falar
com o senhorio.
Alguns dias depois foi à casa deste contar-lhe a situação e pedir-lhe para
esperar mais algum tempo pela renda. Quando foi ao seu encontro e apesar de saber
que era uma pessoa boa e educada, ia muito preocupada e acanhada. Parecia que
levava um enorme peso às suas costas e o caminho parecia-lhe demasiado escuro e
sombrio.
Depois de ter falado com ele, sentiu um grande alívio. O peso que sentira em cima
de si desapareceu por completo e o caminho que antes lhe parecera escuro e sombrio,
via-o agora mais claro e com menos nuvens negras.
- Graças a Deus! Por agora este problema está resolvido, graças ao Sr. Artur.
Ainda há gente boa neste mundo, disposta ajudar o próximo - pensava ela.
O Artur era um homem bom, culto e reservado. Tinha sempre uma palavra amiga e
de conforto para todos e dava imensa atenção aos problemas dos inquilinos. Evitava
o protagonismo, amava o recato e cultivava a humildade. Possuía uma educação
esmerada que herdara do berço e, pela actividade que exercia, a sociedade tinha por
ele enorme estima e admiração. Conhecia a lei do decoro pessoal e ignorava a
ciência das nugas.

A Matilde passava imenso tempo junto do telefone e à espera que chegasse o


carteiro, na ânsia de receber alguma notícia do marido a qualquer momento. De vez
em quando soltavam-se-lhe ais de aflição, ao mesmo tempo que se culpava por não ter
feito tudo o que estava ao seu alcance para o desviar da ideia de ir para a França.
As filhas também estavam a sentir imenso a situação, que estava a ter uma
influencia bastante negativa nos seus estudos, por pensarem imenso no pai e na
situação criada devido à sua ausência.

Um mês depois da Matilde ter ido a falar com o senhorio, andava no quintal a
estender a roupa num pequeno estendal que ficava ao lado da casa, quando ali
apareceu a Joaquina com o jornal na mão. Assim que a viu, o seu coração estremeceu
por pensar que trazia alguma notícia relacionada com o marido e antes que a vizinha
dissesse alguma coisa, antecipou-se e perguntou-lhe:
- A vizinha vem com o jornal na mão. Traz alguma notícia má?
- Boa não é, vizinha.
Ao ouvir aquela resposta, a Matilde começou a ficar pálida, soltou um suspiro
de aflição e disse:
- Meu Deus, alguma coisa de grave aconteceu ao meu marido e vem aí a notícia no
jornal.
- Credo vizinha, não tem nada a ver com o seu marido, não se preocupe.
Quando a Joaquina disse estas palavras, a Matilde já não respondeu, sentiu-se mal,
sentou-se em cima de um saco de terra que ali estava para deitar nas flores,
amparada pela Joaquina. Esta, muito aflita, gritou pelas filhas para que levassem
água.
A Carolina correu logo com o copo de água para junto da mãe e a irmã foi chamar
a Fernanda para a socorrer. Mas esta estava de serviço no hospital. A Margarida
voltou para casa, com a intenção de chamar os bombeiros para levarem uma
ambulância, mas no momento em que ia a subir as escadas a irmã, com a voz trémula
mas ressonante disse-lhe que já não era preciso porque a mãe já tinha recuperado os
sentidos e já estava melhor.
A Joaquina estava aflita e culpava-se por não ter tido mais cuidado com a
resposta que dera à vizinha. Pediu-lhe desculpa por ter dito aquilo sem ter medido
as consequências das palavras que dissera.
A Matilde compreendeu-a, tentou sossegá-la e disse-lhe:
- A vizinha falou-me qualquer coisa sobre uma notícia, mas eu não consegui
perceber. O que é que me disse?
- Disse-lhe que a notícia não se referia ao seu marido.

- Então que notícia é essa?


Quando a Matilde lhe fez aquela pergunta, a vizinha ficou pensativa a procurar
a melhor maneira de o fazer por ter medo da reacção dela. Depois de muito pensar, a
resposta saiu-lhe um pouco atabalhoada, mas tentou tranquilizá-la o mais que pôde e
disse-lhe:
- Às vezes ponho-me a pensar para que é tanta luta, tanta maldade, tanto
sofrimento por tão pouco tempo que andamos neste mundo. A vida é uma passagem.
Faleceu alguém nosso conhecido? - perguntou Carolina.
- Foi o nosso senhorio, um homem tão bom, fazia bem a tanta gente, vai fazer
muita falta.
- Mas parecia que era tão saudável! - disse a Carolina.
- Diz aqui no jornal que morreu de repente. Para morrermos basta estarmos
vivos, ela não escolhe nem avisa - disse a vizinha.
- É capaz de ter tido algum problema grave.- disse a Margarida que já estava ao
pé da mãe.
- Meu Deus, só faltava mais esta. Ainda há cerca de um mês estive a falar com
ele, estava tão bem disposto, parecia tão saudável e agora recebemos assim uma
notícia destas.
A Joaquina, embora soubesse que o filho do Artur era um vadio e dava imensos
desgostos ao pai, não fez qualquer alusão ao procedimento dele para não criar ainda
mais complicações à Matilde visto ser ele agora o senhorio.
Alguns minutos depois, a Joaquina foi para casa e a Matilde ficou a falar com
as filhas no assunto.
- Será que o filho do Sr. Artur que Deus tem, não vai ter o mesmo procedimento
do pai e vai exigir-nos já o pagamento das rendas? - perguntou a mãe.
- Penso que não! Como o Sr. Artur que Deus tem, fez o favor de esperar, penso
que ele não vai contra a vontade do pai, - disse a Margarida.
- Deus te oiça, filha! Agora vamos para cima que eu quero descansar um pouco.
Dói-me muito a cabeça.
- Vamos mãe, - disse a Carolina.

O Hugo era como se chamava o filho do Artur era um rapaz culto, estudioso
,educado; mas depois que a mãe faleceu começou a andar com más companhias e
depressa se esqueceu das boas maneiras e dos bons conselhos que lhes tinham sido
transmitidos pelos pais, para se tornar num estroina da pior espécie. Andava sempre
metido em sarilhos, os quais lhe traziam de vez em quando grandes dissabores e
desgostos ao pai que já não sabia o que havia de fazer para o tirar daquela vida
boémia.
Agora com o falecimento do pai e sem o seu travão, ainda que frágil, ficava com
a rédea larga para fazer o que muito bem lhe apetecesse.
A Matilde estava indecisa por não saber se seria melhor ir falar com ele ou se
deveria deixar ficar as coisas como estavam, até aparecer alguma saída para a
situação. Depois de muito ter reflectido e ter falado com as filhas, chegou à
conclusão que seria melhor ir falar com o novo senhorio.
Na semana seguinte, dirigiu-se ao escritório da firma situado no mesmo edifício
onde eram vendidos os materiais de construção civil, agora pertencente ao Hugo.
Pediu a uma das empregadas para falar com ele. Alguns minutos depois da empregada
ter telefonado, chegou a resposta a mandá-la subir para o gabinete onde o pai
costumava trabalhar.
Quando a Matilde subia as escadas que dão acesso ao escritório, parecia que
levava todo o edifício às costas, e quando o viu sentado numa poltrona a fumar com
volúpia um enorme charuto e a olhar para ela com ar altivo, quase de desdém, sentiu
o peso ainda com mais violência. Por um longo momento, ficou em pé à frente dele e
só depois lhe disse para se sentar numa cadeira que estava mesmo em frente ao mesmo
tempo que lhe perguntava o motivo que a levara a procurá-lo.

Ela começou a descrever os mesmos motivos que anteriormente dissera ao pai. Ele
ia escutando com ar de importante o que ela ia dizendo mas quando a interrompia
para lhe fazer alguma pergunta ou observação, ela ficava com a sensação que ele
estava a ser meio sincero e meio fingido, o que se lhe tornava difícil saber onde
terminava a sinceridade e começava o fingimento. Depois de ela ter feito a sua
narração e lhe ter pedido mais algum tempo para efectuar o pagamento das rendas,
ele disse-lhe:
- Vou pensar no assunto, depois digo-lhe alguma coisa.
- Quando é que posso passar por aqui, para saber a resposta?
- Para a semana mande aqui a sua filha Carolina a buscá-la.
- Não posso ser eu ou ambas?
- Não. Diga-lhe para vir cá.
A Matilde ficou surpreendida com aquela resposta, mas depois de ter reflectido,
compreendeu perfeitamente o alcance da mesma. Ainda pensou responder adequadamente
à exigência dele mas depois de pensar achou por bem não dizer nada naquele momento.
Sem dar azo a que ele fizesse mais alguma pergunta ou mais exigências, levantou-se
bruscamente e disse-lhe:
- Boa tarde.!
- Boa tarde e não se esqueça de mandar a sua filha saber da resposta.
Quando a Matilde saiu dali, era como se fosse atravessar um campo minado onde
os perigos se sucediam uns atrás dos outros. Apesar do rufar da chuva na folhagem
das árvores e do barulho do vento que soprava com alguma intensidade, o único som
que conseguia ouvir era o sibilar das palavras que o Hugo lhe dissera. Não chorava
lágrimas de desespero nem de indignação mas a dor seca que sentia era tão profunda
que parecia que lhe tinha arrancado o coração.
Quando chegou a casa, ia demasiado abatida e triste. Era como se levasse
petrificadas no rosto as lágrimas que não chorara.
As filhas, ao vê-la assim, adivinharam logo as causas daquela tristeza e
temeram os efeitos. Foram ao seu encontro e, num gesto de ternura, ajudaram-na a
subir as escadas, devido ao desânimo e ao estado débil em que se encontrava. Já no
seu quarto, deitou-se em cima da cama a descansar, com as filhas ao lado.

- O Sr. Hugo não aceitou esperar mais algum tempo pelas rendas? - perguntou a
Margarida.
- Espera, mas com uma condição desonesta, suja, que eu nunca pensei ouvir na
minha vida. Embora não o dissesse directamente, disse-o nas entrelinhas.
-Ó mãe, diga lá o que é que ele disse? Já estamos a ficar assustadas - disse a
Carolina.
- Quando lhe pedi para esperar mais algum tempo pelo pagamento das rendas,
disse-me que ia pensar no assunto e para tu ires lá buscar a resposta. Ainda lhe
disse porque é que não podia ser eu ou irmos ambas. Disse-me secamente que só a ti
é que dava a resposta. Está-se mesmo a ver o que é que ele pretende.
- Ai o porco, chantagista, não queria mais nada! Se eu fosse lá era para lhe
dar um par de bofetadas nas ventas - disse a Carolina.
- É mesmo um safado! Aproveitar-se de uma situação de aflição, para conseguir
os seus intentos. Quando souber que a mana não põe lá os pés é capaz de se vingar e
pôr alguma acção de despejo contra nós - disse a Margarida.
- Não me importa! É preferível irmos viver para uma furna ou para qualquer
outro sítio do que cedermos à chantagem dele. Se ao menos soubéssemos o que é feito
do vosso pai i ,sempre nos dava alguma esperança, mas assim andamos para aqui às
escuras sem sabermos o que lhe aconteceu e sem sabermos o que é que havemos de
fazer. Agora que já sabeis o que se passou, deixai-me ficar sozinha. Preciso de
descansar. Cada vez me dói mais a cabeça.
- Quer que lhe vá a fazer um chá? - perguntou a Carolina.
- Não filha, deixa para mais logo.
A Margarida e a irmã retiraram-se para o seu quarto, preocupadas com mais
aquela situação e receosas do que viria acontecer.
Na semana seguinte, ao contrário do que era habitual, o Hugo todos os dias ia
para o escritório logo pela manhã e só saía ao fim do dia, depois dos empregados
terem terminado o trabalho na esperança de aparecer por ali a Carolina à procura da
resposta.

Os dias iam passando, mas ela não aparecia, o que dava azo a que ele ficasse
mais irritado. Quem pagava eram os empregados pois implicava com eles por tudo e
por nada, o que levou um deles a comentar para uma colega:
- Esta semana ele tem andado mal humorado e peganhento. É mais fácil "aturar um
saco de pulgas" do que suportá-lo.
- Deve haver alguma saia metida nisto, alguma o contrariou e ficou assim.
- Como é que sabes? Para dizeres isso, já tentou deitar-te a escada Beatriz...
- Já, Sr. Silva, mas levou que contar. Levou um par de bofetadas naquelas
ventas que nem sabia de onde é que elas vieram e depois o meu irmão leu-lhe o
responso.
- Por isso é que ele não te pôs na rua, nem pega muito contigo. Depois que o
pai dele faleceu, isto levou uma volta como do dia para a noite. Parece que tem o
rei na barriga e a firma já não é o que era.
- Qualquer dia dá com isto tudo em pantana. Da maneira como ele está a orientar
a firma e estroina como é, não há dinheiro que resista e, quem vai pagar a factura
somos nós - disse a Beatriz.
- Disso é que eu tenho medo, que daqui por mais algum tempo tenhamos de andar
por aí à procura de trabalho.
- Disso não tenho dúvidas, Sr. Silva, mas o melhor é não pensarmos nisso agora.
Na semana seguinte, como a Carolina não apareceu para saber da resposta, ele
resolveu escrever uma pequenina carta à mãe, com a seguinte mensagem:
"Se a sua filha não vier saber da resposta dentro de dois dias, levar-me-à a
pensar que não está interessada e por esse motivo, ver-me-ei forçado a pôr-lhe uma
acção de despejo em Tribunal. - Hugo."

A Matilde, depois de ter lido a carta, sentiu um calafrio a percorrer-lhe o


corpo e uma onda de revolta com a malvadez do senhorio. Foi para o seu quarto,
deitou-se na cama e ali esteve imenso tempo a meditar na sua vida e a implorar a
Deus que protegesse o marido e lhe trouxesse notícias dele. Pedia-lhe também, para
proteger as filhas e para lhe dar forças e saúde para suportar tantas e tão grandes
aflições. No momento que a maldade do Hugo mais a atormentava, pensava para
consigo:
- Não e não! Ele que ponha a acção de despejo, faça o que quiser porque a honra
da minha filha é muito mais importante não tem preço, não se compra nem se vende,
não sou nenhuma mãe desnaturada para atirar com as minhas queridas filhas para os
lodaçais da desgraça.
Quando as filhas chegaram a casa, ainda tinha no rosto os sinais bem visíveis
de ter chorado. A Carolina assim que a viu, disse logo para a irmã:
- Mais algum problema, a mãe esteve outra vez a chorar.
- Talvez não! Ela agora passa mais tempo com as lágrimas ao canto dos olhos do
que sem elas.
Quando as filhas se aproximaram dela, a Carolina perguntou-lhe:
- Mais algum problema, mãe?
- Agora são uns atrás dos outros. Lê esta carta que o malvado do senhorio
enviou.
A Carolina, depois de a ter lido, passou-a à irmã e disse:
- Daquele traste não esperava outra coisa.
- E se fossemos lá as duas? - disse a irmã, depois de ter lido a carta.
- Nem penses nisso Margarida! Nem tu, nem a tua irmã vão lá. Gente sem
escrúpulos é capaz de tudo; ele até podia arranjar-vos para lá alguma armadilha e
chamar alguns amigos da laia dele.
- Mas que ideia, mãe, nós também nos sabemos defender - disse a Margarida.
- Já disse que não! Além disso, o vosso pai esteja onde estiver, também não ia
permitir uma coisa destas. O outro moina só faz isto porque ele não está cá. Como
somos só mulheres, ele quer aproveitar-se da nossa fraqueza portanto assunto
encerrado. Há-de ser o que Deus quiser.

A Margarida estava agitada e inquieta, recapitulava as palavras do Hugo e


tentava fazer uma leitura mais benévola. Não via tantos riscos, nem descortinava
tantas intenções maldosas como a mãe e a irmã. Por esse motivo, começou a pensar
fortemente em ir sozinha falar com ele, por entender que se deveria fazer mais
alguma coisa para evitar a acção despejo. Embora reconhecesse existirem alguns
riscos, os mesmos seriam torneados se tomasse as devidas precauções.
Depois de muito conjecturar, entrou no campo das probabilidades até atingir os
limites da certeza.
No dia seguinte, depois de terminadas as aulas, passou pela firma do Hugo, com
a intenção de falar com ele. Quando ali chegou ele não estava, mas foi informada
por uma empregada que não tardaria a chegar, porque lhe recomendara, que se alguém
chegasse para falar com ele, que esperasse um pouco, que não se demorava.
A Margarida estava nervosa. Olhava de vez em quando de soslaio para as
empregadas e pensava para consigo:
- Com as empregadas aqui, estou mais descansada; se houver perigo, grito logo e
elas vão em meu auxílio.
Os minutos iam passando e ela ia ficando cada vez mais nervosa e preocupada
porque a hora de saída das empregadas ia-se aproximando e o Hugo não aparecia. Meia
hora depois ele chegou e dirigiu-se logo para o seu gabinete. Quando lhe anunciaram
que a Margarida estava à espera pediu para lhe comunicarem para esperar mais um
pouco porque tinha uns assuntos urgentes a tratar.
A desculpa que dera era tão somente para ganhar algum tempo, até chegar a hora
de saírem os empregados para ficar mais descansado só com ela. Quando estava quase
na hora dos empregados saírem, mandou-a subir para o seu gabinete que ficava no
segundo andar do edifício. Quando ela ia a subir as escadas, olhou para o relógio e
pensou que os cinco minutos que faltavam seriam suficientes para o senhorio lhe
transmitir o que tinha para lhe dizer.
Quando entrou no gabinete, ele já tinha tirado a roupagem de lobo e vestido a
de cordeiro, dando-lhe uma impressão falaciosa para melhor a poder seduzir.
Cumprimentou-a, pediu-lhe para se sentar, falou-lhe com cordialidade e esboçou um
sorriso mentiroso mas aparentemente real e disse-lhe:

- Desculpe a minha observação. Já a tinha visto ao longe mas nunca imaginei


que fosse assim tão bonita.
- Obrigado pelo elogio. Desculpe ter vindo no lugar da minha irmã, mas ela
infelizmente não pôde vir, porque hoje e amanhã tem aulas até mais tarde.
- Não faz mal, veio a Margarida está tudo bem.
No momento em que dizia estas palavras, os seus olhos procuravam os dela com
ar de apaixonados e, simultaneamente, as suas mãos deslizavam muito lentamente na
direcção das da Margarida que as tinha pousadas em cima da secretária. Apercebendo-
se das intenções dele, deixou deslizar as suas até caírem em cima do seu regaço.
Depois, para não dar oportunidade que continuasse na mesma sedução, levantou-se e
foi encostar-se ao parapeito da janela que dava para o armazém onde guardavam os
materiais da firma. Ele levantou-se logo de seguida e foi puxar a persiana,
alegando que estava demasiado claro e ficou de pé, encostado à secretária, de
frente para a Margarida.
Ela sabendo da teia que ele estava a urdir para a apanhar, depois de o ver
puxar a persiana, ficou amedrontada e só pensava em sair dali o mais depressa
possível. Por isso mesmo apressou-se a dizer-lhe:
- O Sr. Hugo já sabe a finalidade da minha vinda aqui. Já tem alguma resposta
para me dar?
- Já.
- Diga, diga Sr. Hugo, estou ansiosa por saber.
- Saiba que gosto imenso de si e tudo faria para a fazer feliz a meu lado e tê-
la por companheira por toda a minha vida.
- Já estou comprometida, agora só me interessa saber qual a resposta que tem
para me dar a respeito das rendas - disse a Margarida, sem azedume, mas com ar
sério.
Ele, apercebendo-se que não conseguiria os objectivos pretendidos, perdeu o
decoro, vestiu de novo a pele de lobo, fechou a porta, aproximou-se da vítima,
agarrou-a pelos braços e tentou beijá-la na boca.
Ela resistiu com lágrimas e súplicas, mas também com muita revolta e
indignação à mistura.

- Deixe-me, deixe-me, abra a porta, deixe-me ir embora.


Quanto mais pedia para a deixar, mais ele a agarrava e apertava contra o peito,
ao mesmo tempo que procurava insistentemente os lábios dela para a beijar. Ela
continuava a resistir mas agora gritava por socorro
- Socorro! Ajudem-me! Deixe-me, seu nojento. Há-de pagar o que me está a fazer,
seu porco.
- Podes chamar os nomes que quiseres e gritar com toda a força que eu não me
importo. Fica descansada que ninguém ouve os teus gritos. A melhor coisa que tens a
fazer é não resistir. Agora és minha, não me escapas.
Naquele dia, a Beatriz e uma colega, tiveram necessidade de ficar para além do
horário normal, a acabar um trabalho que tinha de ser entregue na manhã do dia
seguinte na Caixa de Previdência. Estavam concentradas no trabalho quando começaram
a ouvir gritos de socorro e de aflição, vindos do lado do gabinete do Hugo, embora
pouco audíveis mas com a clareza suficiente para se aperceberem que eram gritos de
dor e de aflição.
- Não ouves nada, Beatriz? - perguntou a Rosa
- Oiço, parece que são gritos de desespero!
- Escuta agora, Beatriz. Está a ouvir-se melhor. Não ouves uma voz de mulher a
gritar por socorro e a dizer largue-me, largue-me.
- Agora ouve-se bem. É o safado do patrão, a fazer mais uma das patifarias
dele. Temos de fazer alguma coisa senão ainda se pode dar alguma desgraça. Vamos lá
ver o que se está a passar. Já sei a peça que ele é não olha a meios para atingir
os fins.
- Já te fez alguma partida, já tentou abusar de ti?
- Já e de que maneira! Se não me tivesse defendido daquele tarado, já tinha
perdido a minha virgindade, mas levou que contar. Desde que o pai dele faleceu,
tem-se aproveitado da posição de patrão para abusar das empregadas e tentar
satisfazer os seus apetites sexuais, mas já teve vários dissabores por causa das
suas aventuras. E tu põe-te de pé atrás, ainda és nova aqui.
- Esse homem é louco. Devia estar numa casa de doidos.

- Devia, mas não está. Depois conto-te mais coisas, mas agora temos de ir lá
socorrer a vítima.
- Ó Beatriz, eu vou contigo de boa vontade, mas se ele me põe na rua... Sou
órfã, preciso deste emprego para ajudar a minha mãe, mas se tiver de ser vou lá
também.
- Tens razão! É melhor ficares aqui. Se eu precisar de ajuda chamo-te.
- Está bem, eu vou até à sala que está ao lado, escondo-me lá e se precisares
de mim, chama-me logo.
A Beatriz correu para o gabinete do Hugo e quando ali chegou, os gritos de
socorro e de aflição continuavam a ouvir-se, agora com mais clareza. Ele continuava
a usar a violência para conseguir os seus intentos. A Margarida defendia-se como
podia, com todos os meios ao seu alcance; mas agora as forças dela já começavam a
faltar e ele estava cada mais perto de atingir os fins pretendidos.
A Beatriz deu duas fortes pancadas na porta e gritou. Abra já a porta senão
chamo a polícia.
Ao ouvir aquela ameaça, absteve-se dos seus intentos e atirou a Margarida para
cima do sofá que estava mesmo ao lado. Depois foi para o pé da porta, mas não a
abriu. Estava receoso do que pudesse acontecer, porque já pesavam sobre ele muitas
ameaças e tinha medo que alguma delas se concretizasse naquele momento.
Recriminava-se por não ter tido mais cuidado. Deveria ter ido ver se os empregados
já tinham saído todos, mas agora já não podia fazer nada para remediar a sua falta
de cuidado e só pensava sair dali o mais rápido possível, antes que as coisas
começassem a aquecer. Tinha medo de abrir a porta porque reconheceu logo a voz da
Beatriz e sabia do que ela era capaz. Ainda tinha bem vivas na sua memória as
palavras que o irmão dela lhe dissera e ainda se lembrava das bofetadas e do
pontapé que ela lhe dera nas partes fracas.
- Abra a porta, seu porco, seu ordinário. Quer fazer à rapariga que tem aí
fechada o mesmo que me quis fazer a mim, seu nojento. Desta vez não escapa seu
tarado - insistiu a Beatriz.

Ele abriu a porta, olhou para todos os lados, com receio de que estivesse mais
alguém além da Beatriz, depois foi-se embora, não a correr, mas em passo apressado.
Porém, a Beatriz ainda teve tempo de lhe lançar um olhar que fulminava e de lhe
dizer:
- Você é indigno de viver em sociedade. Com esse comportamento nojento, ainda
há-de apodrecer ao canto de uma estrumeira sem ninguém olhar para si; ou ainda
encontra algum filho de uma velha, que lhe trata da saúde.
Depois correu para junto da Margarida, sentou-se ao lado dela e com muita
ternura limpou-lhe o rosto húmido e triste de tantas lágrimas ter chorado. Uniu-lhe
as partes da blusa que estavam rasgadas no sítio que serviam de protecção ao
soutien, com alguns clips que tirara de cima da secretária e animou-a o mais que
pôde, com palavras de conforto e de esperança.
A Margarida estava pálida. Os gemidos que lhe rompiam do coração mostravam bem
a dor que sentia naquele momento. Nos primeiros minutos não conseguiu ouvir as
palavras que a Beatriz lhe dissera porque o golpe ensurdeceu-lhe a alma e só algum
tempo depois é que conseguiu dizer as primeiras palavras.
- Obrigada por me ter salvo. Se não tivesse aparecido não sei o que seria de
mim. Ele desgraçava-me.
- Não tem nada que agradecer. Não fiz mais do que o meu dever. Como é que se
sente?
- Agora sinto-me aliviada. É como se tivesse fugido das garras de um abutre.
- Eu sei o que isso é. Também já senti o mesmo, ele não presta.
- Também já tentou abusar de si?
- Já! Ele não tem vergonha, mas deu-se mal...
- Mas no meu caso a grande culpada fui eu. A minha mãe e a minha irmã bem me
avisaram mas como estamos numa situação muito aflitiva, pensei que estavam a
exagerar. Resolvi vir falar com ele, a ver se conseguia tirar-lhe a ideia da cabeça
de ir com a acção de despejo para a frente, mas nunca pensei que ele fosse
assim e que me pudesse acontecer uma desgraça destas.
- Mas ele não lhe fez nada? - perguntou a Beatriz com ar de preocupada.

- Não! Eu resisti sempre. A única coisa que ele fez, quando já estava a perder
as forças foi meter as mãos entre a blusa e o soutien, rebentou com os botões da
blusa, mas dei-lhe uma dentada e foi nessa altura que ele a rasgou, quando tirou a
mão de repente.
A Beatriz continuava a animá-la com uma linguagem pura, ungida de ternura e de
esperança. Às vezes para lhe levantar o ânimo e quando achava oportuno, dizia
algumas palavras mais brejeiras relacionadas com o sedutor impaciente e arrogante,
quando tentou conquistá-la à força para curar a sua paixão doentia e saciar os seus
apetites lascivos.
A Margarida escutava-a com ar triste, mas quando ouvia as palavras brejeiras,
ditas com imensa graça pela Beatriz, um sorriso descorado e sem convicção
entreabria-lhe os lábios e os olhos doridos e murchos pareciam reviver o seu brilho
natural.
A Rosa, assim que se apercebeu que o patrão estava abrir a porta, correu para o
seu posto de trabalho, com receio que ele a visse, mas passados alguns minutos foi
ter com a colega e com a Margarida. Estava bastante nervosa, mas quando se
aproximou delas e viu a Margarida com a blusa rasgada, presa com clips, ainda mais
nervosa ficou:
- O que é que o estupor do patrão lhe teria feito para estar naquele estado? -
pensou ela.
Depois foi para junto da Margarida e também tentou animá-la, com palavras de
ternura e carinho.
Embora as partes rasgadas da blusa estivessem unidas, a Margarida não podia
sair dali naquele estado, porque se notava imenso o rasgão e havia ainda o perigo
dos clipes se desprenderem e ficar com o soutien à mostra, o que seria extremamente
desagradável com as consequências prejudiciais que tal situação traria para a
Margarida tanto na via pública como dentro do autocarro.
Por esse motivo, a Beatriz pediu à colega que morava perto para ir a casa
buscar uma agulha e linhas para coserem a blusa.
Dez minutos depois, a Rosa regressava com a agulha e as linhas e fez questão de
ser ela a fazer o trabalho.

Agora, a Margarida estava mais calma. embora com algumas lágrimas a dançarem ao
canto dos olhos e com alguns suspiros de dor, dava graças a Deus por aquelas amigas
estarem perto e a terem salvo e dizia palavras de agradecimento, principalmente a
Beatriz, pela forma enérgica e frontal como enfrentara o patrão. Se não tivesse
sido socorrida naquele momento, seria bem pior, porque as forças já estavam quase a
esgotarem-se e a ficar com o seu corpo à mercê do Hugo.
Depois da Rosa lhe ter cosido a blusa abraçou-a e disse-lhe:
- Obrigada, querida amiga, nunca a esquecerei. Tenha muito cuidado! Só eu e
Deus é que sabemos o que sofri nas mãos daquele desavergonhado. Deus a ajude!
- Obrigada, já estou prevenida. A Beatriz já me pôs ao corrente do tarado que
ele é.
- Depois caiu nos braços da Beatriz, mas não disse nada. Somente as lágrimas
corriam em bica pela blusa da amiga. Esta comungava da mesma dor e não conseguiu
resistir sem deixar cair algumas lágrimas, que corriam pelas faces e caiam nos
ombros da Margarida, em cima da blusa de cambraia que tinha vestida. Só algum tempo
depois é que a Margarida conseguiu dizer as primeiras palavras:
- Obrigada, querida amiga, por tudo o que fez por mim. Nunca a esquecerei, Deus
a ajude!
Quando as lágrimas passaram a ser mais compassadas, pediu para ir à casa de
banho a lavar a cara. A Beatriz foi com ela e aproveitou para lavar a sua. Quando
regressaram, a Margarida pediu-lhes os números de telefone, para estar em contacto
com elas porque já as considerava como se fossem da sua família. Depois fez um
esforço enorme para não chorar e despediu-se com mais um abraço.

O dia aproximava-se do fim, havia grossas nuvens negras a ameaçar chuva. A


Margarida não podia demorar-se mais tempo por recear que a mãe e a irmã estivessem
preocupadas por ainda não ter chegado a casa. Mas teria de esperar o tempo
suficiente, para aparecer aos olhos delas como se nada tivesse acontecido. Porém,
seria muito difícil esconder o que se passara, por mais disfarces que tentasse e
por mais imaginação que tivesse, porque o abalo que sofrera fora demasiado profundo
e facilmente se notavam os vestígios da dor estampados no rosto, que o coração não
deixava apagar. Para agravar ainda mais a situação havia ainda o problema da blusa.
embora estivesse muito bem cosida, ao pé notava-se bastante e tanto a mãe como a
irmã assim que a vissem facilmente se iriam aperceber que alguma coisa de anormal
se tinha passado e não ficariam sem a questionar pelo porquê daquela situação.
Pelo caminho ia meditando no que lhe acontecera e não se resignava por ter
criado um grave problema, a juntar a tantos outros que se abateram sobre a família.
Estava aflitíssima por não saber como iriam reagir a mãe e a irmã quando soubessem
da notícia.
- Se ao menos lhes pudesse esconder por algum tempo o que se passou com o outro
safado! Mas é impossível. Por mais que tente esconder o que sinto não consigo
porque o meu coração não deixa. A esta hora, já devem estar preocupadas e de
sentinela à espera que chegue. ,Meu Deus! O que eu fui arranjar! Para tentar
resolver um problema criei ainda mais - pensava ela.
No momento em que estes pensamentos lhe ocorriam, ia já dentro do autocarro com
destino a casa e não conseguiu evitar o aparecimento de duas lágrimas a dançar ao
canto dos olhos, o que levou a companheira de viagem que ia mesmo ao lado a
perguntar-lhe:
- Sente-se mal?
- Não! é apenas uma contrariedade da vida.
- Problemas com o namorado? Alguns são uns bons safados. Eu que o diga.
- Não! Não foi nenhum problema com o namorado, mas há indivíduos que nem deviam
vir à face da terra porque só servem para fazer mal.
Entretanto o autocarro chegou à paragem onde a companheira ia sair e já não
puderam continuar a conversa.
À medida que o autocarro se aproximava da paragem onde iria ficar a Margarida
começava a ficar mais aflita e receosa que a mãe e a irmã a vissem entrar.

Quando chegou a casa, espreitou primeiro para o quintal e quando viu que não
estava ninguém subiu muito silenciosamente as escadas, empurrou com muito cuidado a
porta que apenas estava encostada e foi para o seu quarto sem que a mãe e a irmã
dessem pela chegada.
Já dentro do quarto, despiu a blusa, vestiu um roupão e atirou-se para cima da
cama mas não resistiu à dor; torcia-se no leito como se estivesse a proteger-se de
uma enorme tempestade de infelicidade que se abatera sobre ela. Tentava abafar os
soluços, cravando os dentes no travesseiro, para que elas não se apercebessem; mas
debalde. O coração tumultuava cheio de angústia acumulada, que extravasou, dando
origem a um choro solto que não conseguiu suster, nem evitar que vagidos de dor,
saíssem do quarto e percorressem toda a casa, chegando sem dificuldade à cozinha,
onde se encontravam a mãe e a irmã. Esta foi a primeira a ouvir e disse:
- Parece que a Margarida já chegou e está a chorar.
- Meu Deus! O que lhe teria acontecido? Mais algum problema a juntar aos que já
temos, vamos filha, ver o que se está a passar.
Correram para o quarto e quando ali chegaram ,viram-na estendida em cima da
cama, encharcada em lágrimas, com o travesseiro todo molhado. Os primeiros
pensamentos que tiveram foram direito para o Leonel.
- Alguma desgraça deve ter acontecido ao meu querido marido e não teve coragem
de nos dizer - pensava a Matilde.
- Para estar neste estado, deve ter acontecido alguma coisa má ao meu pai e
está com receio de nos dizer - pensava a Carolina.
Ambas começaram a chorar. A mãe num acto de desespero, aproximou-se da filha,
e disse-lhe:
- Filha, diz-nos o que aconteceu? É por causa do pai que estás assim? Aconteceu
alguma desgraça? Diz filha, eu já não aguento mais, parece que vou morrer sufocada.
- Diz, mana, o que é que aconteceu ao pai? Diz depressa.

A Margarida, apesar da angústia e do sofrimento que sentia naquele momento,


tentou ainda procurar as palavras adequadas para dizer o que tinha acontecido, mas
estava num estado tão lastimoso que não conseguiu raciocinar convenientemente e foi
direita ao assunto.
- Não é nada relacionado com o pai. Foi o nojento do senhorio que quis abusar
de mim.
Naquele momento tanto a mãe como a irmã sentiram um grande alívio por não ter
acontecido nada ao Leonel mas, quase ao mesmo tempo, a Matilde não resistiu ao
choque. Foi mais um desgosto a cair no recipiente das aflições e a fazer trasbordar
a dor que trazia acumulada e caiu inanimada nos braços da Carolina que já se tinha
apercebido do estado em que se encontrava a mãe devido à palidez bastante acentuada
que se verificava nas suas faces.
A Margarida ao ver a mãe naquele estado, fez um apelo a todas as energias que
ainda lhe restavam levantou-se e, a cambalear, foi buscar um copo de água e foi
telefonar à sua amiga Fernanda. A aflição era tão grande que só à terceira
tentativa é que conseguiu marcar o número certo. Felizmente a amiga estava em casa
e dois ou três minutos depois, já estava ao pé da Matilde.
Assim que a viu ,pediu à Carolina para ir telefonar para uma ambulância,
enquanto lhe prestava os primeiros socorros.
Alguns minutos depois, chegou a ambulância. Quando a Matilde era transportada
para a mesma, tanto a Margarida como a irmã começaram a chorar com as lágrimas a
caírem em abundância.
- Que é isso. suas choronas, que ânimo é esse? A vossa mãe logo que seja
observada pelo médico e medicada vai ficar boa.
- Eu também posso ir na ambulância? - perguntou a Carolina.
- Penso que sim. Mas com essa cara de chorona, ponho as minhas dúvidas que os
bombeiros te levem.
- Se não puder ir na ambulância, vou de horário. Aqui é que não fico de maneira
nenhuma. Quero estar ao pé da minha mãe.
- Penso que não vai ser preciso ires no horário - disse a Fernanda.

Alguns minutos depois, a ambulância ia a caminho do hospital com a Fernanda


acompanhar a Matilde e as filhas ao lado. A Matilde foi logo encaminhada para o
médico de serviço, sempre acompanhada pela Fernanda. Depois do médico a ter
observado e medicado, começou a sentir-se melhor.
A Margarida e a irmã esperavam na sala, ansiosas que a amiga chegasse com
notícias. Meia hora depois ela apareceu a levar a boa nova.
- A vossa mãe já está melhor, fala sem dificuldade e já perguntou por vós.
- Podemos ir vê-la? - perguntou a Margarida.
- Podeis, mas só daqui a pouco e não vos podeis demorar muito tempo. Está fora
da hora da visita. Mas como é um caso especial, pedi ao responsável e ele
autorizou; o Sr. Dr. acabou de lhe fazer os exames mas é muito provável que tenha
de ficar internada para observação e por uma questão de precaução, mas quem vai
decidir é o médico. Agora vou até lá e quando estiver tudo pronto venho chamar-vos.
Mas depois temos de conversar, Margarida. A seguir és tu que vais ter de ser
observada pelo médico. Estás aí com uma cara cadavérica, que me deixa preocupada. O
que é que se passa contigo?
- Tive um problema desagradável e foi por causa dele que a minha mãe ficou
assim mas felizmente o pior já passou agora está tudo bem. Depois conto-te.
- Fico a aguardar.
A enfermeira foi de novo para junto da Matilde e meia hora depois voltou com a
notícia de que a mãe tinha ficado internada só por uma questão de precaução e que
podiam ir vê-la, por já se encontrar na enfermaria.
Quando as filhas entraram, esboçaram um ligeiro sorriso, beijaram-na e
sentaram-se na beira da cama e perguntaram-lhe como se sentia:
- Agora sinto-me melhor.

Embora a Matilde se encontrasse melhor, a convalescer do último abalo,


continuava com uma enorme ansiedade sufocada por não saber ainda o que de concreto
teria acontecido à filha, o que não ajudava nada a recuperação. Depois, olhou para
elas, fixou o olhar na Margarida e perguntou-lhe:
- O que é que o outro malandro te fez?
- Não fez nada, mãe porque eu não deixei. Mas foi preciso lutar muito.
- Graças a Deus! Não imaginais a dor que trazia no meu coração porque fiquei
convencida que ele te tinha desflorado. Agora já me sinto mais aliviada. Não
imaginas o peso que tiraste de cima de mim.
- Como é que te livraste dele? - perguntou a irmã.
Quando a Carolina fez esta pergunta, a Fernanda, que também estava presente
,levantou-se alegando que estava quase a entrar de turno para as deixar à vontade a
falar no assunto.
- Nem penses nisso, Fernanda! Eu ia contar-te, faço questão que fiques mais um
pouco, para ficares a saber na encrenca em que me meti e no que me ia acontecendo.
A Margarida começou a descrever em pormenor o que lhe acontecera naquela triste
tarde. À medida que ia narrando os factos, iam ficando revoltadas e interrogavam-se
como era possível haver gente capaz de proceder de forma tão infame como o safado
do senhorio. A mãe ouvia a filha com enorme comoção e apesar de ter sentido ao
princípio o atordoamento que lhe dera o golpe, lá bem no fundo do coração, sentia
uma pontinha de orgulho pelas filhas que tinha.
Quando a Margarida terminou a narração, todas tinham ao canto dos olhos algumas
lágrimas a dançar e todas compreenderam a sua tomada de posição mesmo à revelia da
mãe e da irmã e enalteceram a sua coragem. A amiga, visivelmente comovida, ainda
lhe disse:
- Agora compreendo porque é que estás nesse estado mas felizmente não foi nada
para o que poderia acontecer.
Já estava na hora de iniciar o seu turno e por esse motivo teve de as deixar,
despedindo-se com um "até já" da Matilde e com um "até amanhã" das filhas, dizendo-
lhes ao mesmo tempo para irem descansadas que a mãe ficava bem entregue. Estas,
embora pretendessem ficar mais algum tempo, não podiam porque o mesmo já estava a
expirar; motivo que as levou a despedirem-se da mãe e a irem para casa.

Quando a Matilde as viu sair da enfermaria, um longo suspiro rompeu-lhe do


coração e muito baixinho pronunciou algumas palavras:
- Meu Deus, não deixeis sofrer mais as minhas queridas filhas! Já sofreram
tanto!
Naquele momento não chorou. A dor seca prendeu-lhe as lágrimas por um instante
mas depois soltaram-se e verteu-as em silêncio, sufocando os suspiros para que não
chegassem aos ouvidos dos outros doentes que se encontravam na enfermaria.
Durante o tempo em que estiveram no hospital, o telefone tocou várias vezes em
casa. Era o namorado da Margarida a querer falar com ela porque já há alguns dias
que não a via, nem lhe telefonava ,mas como não estava ninguém para atender acabou
por desistir.
No dia seguinte, logo pela manhã, a Matilde teve alta. Embora a amiga já
tivesse terminado o turno há algum tempo, esperou por ela para a ajudar no que
fosse necessário. Depois de cumpridas todas as formalidades legais foram ambas para
casa.
A Fernanda era uma jovem alegre, estudiosa, de trato fino, sem vaidade. Tinha
uma beleza sem mácula e possuía uma elegância sem espavento; mas o que mais
sobressaia nela era o seu coração bondoso, o sorriso aberto e a disponibilidade
permanente para ajudar o próximo.
Já dentro do autocarro, a Matilde contou à sua companheira de viagem os
desgostos e as aflições que ela e as suas filha já tinham passado e estavam a
passar e a infelicidade que se abatera no seu lar o que a levavam algumas vezes a
proferir palavras de desânimo.
- Já me sinto cansada, minha filha. Desde que o meu marido saiu de cá só tenho
tido desgostos e aflições. Nestes meses parece que já perdi mais de dez anos de
vida: os meus cabelos estão a ficar brancos e já me sinto a navegar na imensidão do
mar polar, em direcção ao porto de descanso que é para onde todos havemos de ir.

- Não diga isso dona Matilde, "não há bem que sempre dure, nem mal que sempre
ature". Ainda há-de recuperar esses anos perdidos, a vida ainda lhe há-de sorrir de
novo tal como sorria, ou ainda mais.
Quando a Matilde chegou a casa, as filhas foram ao seu encontro,
cumprimentaram-na, perguntaram-lhe como se sentia, mas deixaram-na surpreendida por
não terem ido às aulas, o que a levou a perguntar-lhes:
- Não foste às aulas?
- Não - disse a Carolina.
- Porquê?
- Não valia a pena porque não íamos aprender nada da maneira como andamos, com
estas preocupações todas. Aliás, eu e a mana já estivemos a conversar e chegamos à
conclusão, que seria melhor eu arranjar um emprego uma vez que já estou no sexto
ano. Sempre é mais fácil e a Carolina continua a estudar de dia e eu estudo à noite
para tirar o sétimo. - disse a Margarida.
- Não filha. Tu vais continuar a estudar. É preferível ser eu a arranjar um
trabalho do que deixares de estudar.
- óh mãe nem pense nisso! Doente como anda, como é que vai poder trabalhar,
além disso, onde é que ia arranjar trabalho? E nós não queremos - disse a Carolina.
- Não te preocupes, filha. Hei-de arranjar forças para trabalhar e quanto a
arranjar trabalho, alguma coisa hei-de conseguir, nem que seja a passar a ferro
numa casa de bordados ou a trabalhar numa lavandaria e, se não conseguir, ainda há-
de haver por aí alguma casa que precise de uma mulher a dias. Felizmente não tenho
receio de fazer seja que trabalho for da vida doméstica.
- Ninguém diz que não mãe, mas nós é que não queremos. Em primeiro lugar porque
não pode e em segundo porque não é necessário - disse a Margarida.
A ansiedade permanente, os problemas extremamente graves do dia a dia, os
sacrifícios de toda a hora e a incerteza do amanhã eram demasiadas adversidades que
não seriam vencidas se não fosse a união que existia entre todos, fortalecida por
um amor puro e sadio que reinava naquela família.

A Matilde e as filhas encontravam-se agora numa nova encruzilhada da vida, sem


saberem muito bem qual o rumo que teriam a seguir, mas tinham de agir rapidamente
para não se deixarem abater pelo desânimo.
Depois de muito conversarem e reflectirem, chegaram à conclusão que a melhor
alternativa que se lhes oferecia era aquela que já tinha sido ventilada.
A partir daquele dia, a Carolina continuou a frequentar as aulas; a Margarida
foi à procura de emprego e a mãe ficou a cuidar da casa.
No dia seguinte, o Raúl voltou a telefonar. A Margarida foi atender e pensou
logo que fosse o namorado o que a levou a demorar um pouco a levantar o auscultador
para pensar no que lhe iria dizer. Estava indecisa se lhe haveria de contar o que
se tinha passado, ou se deveria deixar para mais tarde. Após um momento de
reflexão, chegou à conclusão que seria melhor dizer-lhe já toda a verdade. Depois
de ter tomado a decisão, levantou o auscultador e disse-lhe:
- Sim? estou? Olá meu amor! És tu!
- Sou, minha jóia. Estava a ver que não conseguia apanhar-te em casa. Já para
aí telefonei várias vezes e ninguém atendeu. Por onde é que tens andado?
- Estive no hospital.
- Estás com algum problema?
- Não. Foi a minha mãe que teve de ser assistida e ficou internada de ontem
para hoje e foi por minha causa. Mas já está em casa e já está melhor.
- Mas afinal o que é que aconteceu para dizeres que a tua mãe foi internada por
tua causa?
- Tive um pequeno problema com o nosso senhorio, mas já está tudo bem.
- Ó Margarida, pequeno problema não deve ter sido para a tua mãe ter ido para o
hospital!
- Está descansado. Houve da facto um problema que poderia ter sido grave, mas
consegui defender-me com a ajuda de uma amiga.
- Que raio de problema foi esse! Não me digas que quis abusar de ti!
- Tentou, mas não conseguiu. Está tudo bem. Fica descansado! Eu depois conto-te
tudo, pelo telefone não dá, está bem?

- Está, mas isto cheira-me a esturro. Tens de me contar tudo direitinho o que
se passou. Não estou a gostar muito desta conversa.
- Afinal acreditas em mim ou não?
- Acredito, mas parece-me que a história está mal contada.
- Olha, Raúl, agora quem não está a gostar nada da conversa sou eu. Amanhã
conto-te em pormenor o que se passou, depois tiras as tuas ilações e fazes o que
entenderes. Agora já não tenho mais paciência para te dar mais explicações. Até
amanhã - disse a Margarida com voz seca.
- Agora já percebo porque é que não vais às aulas. Bem me parecia que havia
mais alguma coisa por trás dessa história que me contaste.
- Não sejas tonto! Diz a que horas amanhã podemos falar?
- Pode ser por volta das dezassete, depois de sair do banco.
- Onde?
- No Apolo.
- Está bem, lá estarei a essa hora.
A Margarida ficou surpreendida com a atitude do namorado, sabia que era
ciumento mas não se conformava com a falta de confiança que tinha em si.
No dia seguinte, à hora do encontro, quando a Margarida chegou ao Apolo já o
namorado ali estava, sentado na mesa que costumavam ocupar. Não levava o sorriso
habitual, nem o ar jovial dos outros dias. Os seus olhos não choravam mas luziam e,
em seu redor, ainda eram bem visíveis os sintomas de terem exprimido em lágrimas a
dor que sentia o seu coração, o que não passou despercebido ao namorado que depois
de a ter beijado, perguntou-lhe:
- Estiveste a chorar?
- Estive. Achas que não tenho razão? Depois de teres falado comigo da maneira
como falaste... pensei que já te conhecia mas afinal andava enganada, porque
cheguei à conclusão que não tens confiança em mim.

- Disseste-me que tiveste um problema com o outro palerma, que poderia ser
grave se não te tivesses defendido com a ajuda de uma amiga depois disseste que já
não ias às aulas e nem sequer me deste um telefonema a contar o que se tinha
passado e por cima ainda tens o descaramento de dizeres que ainda não me conheces e
que não tenho confiança em ti. Pelo que estou a saber, podes fazer o que quiseres,
andares com quem muito bem entenderes e eu apenas sirvo de bibelô.
- Afinal, queres ou não saber o que se passou?
- Quero, mas já devias ter explicado mais cedo.
- Puxa pela cabeça! Não sejas tonto! Querias que deixasses a minha mãe
abandonada naquele estado ,para vir a correr dizer-te o que se tinha passado. Por
favor, deixa-me explicar, se quiseres, senão levanto-me e vou-me embora.
- Explica, mas evita de me chamares tonto, porque não gosto dessa linguagem,
nem tens o direito de a utilizar.
- Estás ofendido? Mais ofendida estou eu, mas tudo bem, eu explico tudo o que
se passou.
A Margarida, num tom calmo e ar triste, começou a descrever o que lhe
acontecera naquela negra tarde, sem omitir fosse o que fosse. A descrição e a
lealdade eram tão completas que se recriminava por não ter seguido os conselhos da
mãe e da irmã e culpabilizara-se por tudo o que tinha acontecido. Quando terminou a
narração, algumas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e escorreram pelas faces.
O namorado compreendeu a situação e o seu comportamento, em parte, mas não lhe
perdoou, o facto de ter ido ao encontro do senhorio, avisada como estava. Ele ia do
elogio hiperbólico até ao silêncio prolongado. Foi o que fez naquele momento,
optando pelo silêncio.
Após um longo momento de silêncio, a Margarida ainda lhe perguntou:
- Não dizes nada? Ficaste mudo?
Ele não respondeu, mas tentava lutar contra o sentimento que o dominava a fim
de conseguir a necessária independência de espírito para poder julgar
imparcialmente os factos saídos da narração da namorada. Mas por mais que lutasse,
as armas do ciúme eram muito poderosas e acabavam sempre por vencer.

Não era difícil adivinhar o porquê daquele silêncio. Ela já lhe tinha lido no
rosto e entendido por algumas palavras que se lhe foram soltando da boca, o motivo
daquele amuo.
- Ele não me vai perdoar o facto de ter ido falar com o outro ordinário. Mas
não me importa. Estou de consciência tranquila. Faça o que quiser. Pelo menos
fiquei a saber que o ciúme dele não é um ciúme vulgar como eu pensava. É muito mais
do que isso, é um ciúme doentio e se é para viver numa redoma sem poder olhar para
ninguém, nem ninguém poder olhar para mim, o melhor é cortar o mal pela raiz antes
que seja tarde - pensava ela.
Há pessoas tão desditosas que mesmo aquelas que as rodeiam e querem fazer
felizes algumas vezes sem querer provocam-lhes feridas tão profundas, que muitas
vezes custam a cicatrizar e algumas delas nem o chegam a ser na sua totalidade,
ficando com fissuras para toda a vida.
Depois de mais algum silêncio, num tom mais calmo e moderado ainda lhe disse:
- Não te compreendo! Dizias-me tantas vezes que me ias fazer feliz, mas o teu
comportamento com o outro canalha negaram-me essa felicidade.
- O meu ou o teu? Interrompeu a Margarida, com a voz um pouco alterada.
- Já te disse que é o teu. Se não tivesses ido falar com o sujeitinho nada se
teria dado.
- Já vi que não estou aqui a fazer nada. Por mais que te explique tu não queres
compreender; ou melhor, queres, mas esse maldito ciúme não te deixa. Segue o teu
caminho que eu seguirei o meu. Não posso viver com um homem que não tem confiança
em mim.
Quando acabou de dizer estas palavras, a Margarida levantou-se e foi-se embora.
Ele ainda a chamou.
- Margarida, Margarida, espera aí.
Ela não esperou, embora as palavras tivessem a ressonância suficiente para
chegarem até ela, ignorou-as. Ele ainda foi atrás tentar demovê-la daquela tomada
de posição, mas debalde. A única coisa que conseguiu obter dela, foi um olhar de
indiferença.
Ele estava numa situação bastante difícil. Amava a Margarida, mas o ciúme
corroía-lhe o coração e não o deixava ver com clareza nem isenção nos momentos em
que era necessário manter a calma e o equilíbrio. Só quando a crise passava e o
ciúme lhe dava tréguas, é que conseguia raciocinar com mais lucidez e ver com mais
clareza os destroços da tempestade o que o levava muitas vezes a recriminar-se. Mas
não podia fazer mais nada porque estava prisioneiro do ciúme e este era mais forte
do que ele.
As palavras que a Margarida lhe dissera sibilavam-lhe agora no ouvido e rugiam-
lhe no coração. Mas no momento em que as ouviu, a cólera que sentira, era superior
à reflexão.
Quando a Margarida chegou a casa, correu logo para o seu quarto para não dar a
perceber à mãe o que acontecera, porque não queria causar-lhe mais aborrecimentos.
Atirou-se para cima da cama e ali ficou a meditar nas palavras injustas que o Raúl
lhe dissera, mas o seu efeito era atenuado, pelas muitas e boas qualidades que ele
também possuía. Havia uma mistura de amor e ódio a coabitar na mesma morada.
Faltava apenas saber qual deles triunfaria; mas isso só o tempo poderia dizer.
Estava naquela meditação, quando a irmã entrou e ao vê-la tão concentrada a
olhar para o tecto, ficou surpreendida e disse-lhe:
- Que bicho te mordeu, para vires logo para aqui? Nem sequer passaste pela
cozinha, tens algum problema?
- Acabei o namoro com o Raúl - disse a irmã com algumas lágrimas a rolarem
pelas faces.
- Ai sim? Disse a irmã e acrescentou: - ele não gostou que tivesses ido a falar
com o outro tarado.
- Não. Ele tem uns ciúmes desgraçados. Começaram a dar-lhe volta à cabeça,
duvidou da minha honestidade e, quando assim acontece já não há nada a fazer; ou
melhor há é cada um seguir o seu caminho e suportar os desgostos e as mágoas que
estas situações acarretam.
- Deixa lá. É melhor assim, é preferível tomarmos certas decisões, embora
difíceis, no momento certo do que andarmos a sofrer toda a vida. O tempo tudo
apaga.

- Não é bem assim, Carolina, há coisas que o tempo não consegue apagar e marca-
nos para sempre.
- Isso também é verdade. Há acontecimentos que o tempo não pode apagar na
totalidade mas consegue adormecê-los, verás que as lágrimas de hoje, hão-de
enxugar-se, com um raio de sol amanhã, quando aparecer no teu caminho outro
apaixonado a fazer esquecer o Raúl. Eu sei o que isso é, o que se está a passar
contigo, já se passou comigo; ao princípio custou-me muito a esquecer o Eduardo,
mas agora já ultrapassei essa fase e só me lembro do meu Pedrinho.
- Vamos ver o que é que está reservado para mim, o futuro a Deus pertence.
No momento em que a Margarida dizia estas palavras, a mãe bateu à porta a
chamá-las para o jantar; a Margarida tentou logo compor o visual, para que não se
apercebesse do que se tinha passado. Mas, ao contrário do que era habitual, a mãe
depois de ter batido, retirou-se de novo para a cozinha, dando oportunidade à filha
de passar pela casa de banho, sem ser vista por ela.

Os dias iam passando, mas as nuvens negras da incerteza e da angústia


continuava a pairar por cima daquele lar. Às vezes surgia uma ou outra notícia mais
agradável, a desanuviar um pouco o ambiente e levar algum alento. Foi o que
aconteceu com a Margarida. Alguns dias depois de ter rompido o namoro com o Raúl,
conseguiu encontrar trabalho numa creche. Era um trabalho que ela gostava imenso.
Além de ganhar algum dinheiro para sustentar a casa e fazer face a algumas despesas
mais urgentes, ia ensinar e cuidar de crianças o que lhe agradava bastante.
O Natal já tinha passado há algum tempo. Foi o Natal mais triste que se viveu
naquele lar. Só a ausência do Leonel era só por si motivo de grande tristeza, mas o
facto de não saberem o que se estava a passar com ele, se era vivo ou morto, se
estava preso ou andava em liberdade, tornou-se ainda mais triste e angustiante. Era
ele que todos os anos fazia a lapinha juntamente com as filhas, mas naquele ano não
a fizeram por não terem ânimo nem alegria, o que veio a trazer mais uma acha para a
fogueira da tristeza.

Um mês depois de ter passado o Natal, apareceu em casa um oficial de


diligências do Tribunal Judicial da comarca do Funchal, para citar a Matilde e o
marido, ou seja, para lhes dar conhecimento, de que o senhorio lhes tinha posto no
Tribunal, uma acção de despejo. A Matilde ficou aflita, mas o funcionário
tranquilizou-a. Depois de ter recebido o duplicado da petição com a competente nota
legal e ter assinado a certidão de citação em relação a ela e a certidão negativa
em relação ao marido, por estar ausente, ficou mais tranquila, embora bastante
preocupada.
Quando as filhas chegaram, estava deitada com ar triste e abatido com o
documento que lhe fora entregue em cima da mesa de cabeceira. A Carolina, ao ver o
papel azul disse logo para a irmã:
Temos mais problemas. Aquele papel que está em cima da mesa de cabeceira deve
ser mais algum problema.
- É o mais certo. Agora são uns atrás dos outros. Não sei quando é que este
inferno vai terminar.
Ambas se aproximaram dela, beijaram-na. A Margarida olhou para o documento e
perguntou-lhe:
- Mais algum problema, mãe?
- É verdade filha, já não temos que cheguem. Só nos faltava mais este.
- O que é que foi agora mãe?
- Esteve aqui um senhor do Tribunal, entregou-me esses papéis que estão aí. O
traste do senhorio pôs-nos uma acção de despejo. Se o senhor do Tribunal não fosse
tão simpático e se não me tivesse explicado tudo tão bem e tranquilizado, a esta
hora não sei o que seria de mim. Talvez já não estivesse aqui a falar convosco,
senti-me tão mal, estive quase a desmaiar, parecia que ia morrer.
- O senhor deve ter ficado aflito - afirmou a Carolina.
- Pobre rapaz! Apanhou um susto que nem calculais. Foi logo buscar um copo de
água, queria chamar uma ambulância, mas eu tranquilizei. Disse-lhe que quando
recebia alguma notícia desagradável ficava assim. Depois passou, mas só Deus e eu é
que sabemos como me senti.

- Vá lá, ao menos tivemos sorte em encontrar assim um funcionário tão


atencioso. Tudo por causa do outro pulha, não conseguiu o que queria vingou-se com
a acção de despejo - disse a Margarida.
- E agora o que é que fazemos? - perguntou a Carolina.
- Temos de procurar um advogado para contestar a acção e para nos aconselhar.
Se a tua irmã ainda namorasse com o Raúl era mais fácil. Ajudava-nos a andar com
estas coisas, mas não pode ser, paciência, de braços cruzados é que não podemos
ficar.
- Não se preocupe mãe. Foi melhor assim. Agora já estou a ganhar. Vou falar com
um advogado para tratar do assunto.
No dia seguinte, o Pedro encontrou-se com a Carolina à saída do liceu, depois
de terminadas as aulas. A tarde era bela, o céu estava azul, apenas manchado a
poente, com algumas nuvens finas e rendilhadas ,que pareciam ter sido bordadas por
mãos de fada. O sol brilhava intensamente e não fora uma brisa fresca que se fazia
sentir, dir-se-ia que estávamos em pleno verão.
O Pedro fazia parte de um grupo, amantes da natureza e sempre que podia aos
fins de semana, juntamente com os outros colegas, davam grandes passeios pelo
campo, principalmente pelo interior da ilha. Mas, do que mais gostavam era passear
ao longo dessa obra gigantesca que são as levadas, das quais se podem observar e
admirar as paisagens maravilhosas que dali se avistam, as quais extasiam os olhos
de quem as observa e obrigam-nos a parar e a pensar mais na natureza.
A Carolina comungava do mesmo gosto e sempre que podiam procuravam os espaços
verdes para estarem juntos. Foi o que aconteceu naquela tarde. Depois de terminadas
as aulas, dirigiram-se até à Avenida do Mar e muito vagarosamente foram andando até
chegar ao parque de Santa Catarina.

Quando ali chegaram, a Carolina sentou-se num banco do jardim e dali lançou um
olhar pela cidade, espalhada pelas encostas verdejantes de onde sobressaíam o
branco das casas em conjugação com o vermelho dos telhados e o verde das árvores
dando-lhe uma beleza deslumbrante.
Depois desceu os olhos até à baixa, observou o casario e estendeu o olhar pelo
mar dentro e ali ficou a meditar na sua grandeza. Já se preparava para iniciar nova
viagem pela paisagem, quando foi interrompida pelo Pedro e obrigada a desviar o
olhar para ele.
- O que é que tu tens minha querida? Parece que estavas tão distante!
- Estava a observar a nossa cidade, já reparaste como é linda.
- É verdade, bem nos podemos orgulhar dela.
No momento em que o namorado dizia estas palavras, levantou-se e dirigiu-se
para um canteiro de flores de diversas matizes que estava ali mesmo ao lado. Ele
foi logo atrás dela. Embora se mostrasse solícita e meiga, não tinha o mesmo
entusiasmo nem mostrava a mesma chama dos outros dias o que não passou despercebido
ao Pedro que lhe perguntou:
- O que é que tu tens, meu amor? Acho-te diferente dos outros dias, sinto que
tens algo a preocupar-te. Se puder ajudar e compartilhar contigo essa preocupação,
não tenhas receio de desabafar. Sabes que te amo e não gosto de te ver sofrer.
A Carolina susteve o passo, olhou para ele com ar de ternura como que a querer
dizer-lhe com o olhar o que não desejava dizer-lhe por palavras; mas, naquele
momento, apoderou-se dela uma estranha comoção e dos seus olhos soltaram-se duas
lágrimas de reconhecimento pelo gesto que ele tivera e pela confiança que lhe
transmitira.
Era a primeira vez que ele a via com aquele aspecto dolorido e tentava ler-lhe
no rosto a mágoa que sentia no coração. Procurava animá-la, pedindo-lhe para lhe
contar o motivo daquele sofrimento, mas ela resistia como podia. Algumas vezes
fazia-o de forma verosímil, o que vinha ainda a aumentar mais o desejo que ele
tinha de a ajudar.

Ela não queria envolvê-lo nas preocupações que a atormentavam, por entender que
deveria ser ela, em conjunto com sua mãe e com a sua irmã, a suportarem a cruz do
infortúnio. Mas ele tanto insistiu que ela acabou por lhe contar todo o drama que a
sua família estava a viver.
Depois de ter narrado tudo desde que o pai fora para França, ele estava
visivelmente comovido e logo ali se prontificou a ajudá-las no que fosse possível e
pediu-lhe que transmitisse à mãe e à irmã, que não se preocupassem e que não
contactassem nenhum jurisconsulto porque ele mesmo se encarregaria de o fazer,
visto ter um bastante seu amigo e que o iria contactar com muito gosto.
A Carolina ficou mais animada e sentiu dentro de si algo de diferente, que a
tornava feliz, por mais aquela prova de carinho e amor que o Pedro lhe demonstrara.
Aquelas palavras que ouvira do namorado foram como um raio de esperança que
veio rasgar-lhe a nuvem que entenebrecia a sua fronte. Depois estendeu-lhe a mão e
ambos passearam pelo parque, de mãos dadas, procurando cada um no dicionário da
imaginação, as mais belas palavras de felicidade para trocarem entre si.
Quando o astro-rei se escondeu e o céu estava a ficar com a cor púrpura,
desceram até à Avenida Arriaga e foram para a paragem, onde a Carolina apanhou o
autocarro que passava perto da sua casa.
Depois de se terem despedido, o Pedro ficou ainda mais algum tempo na baixa da
cidade e foi até ao cais, a rememorar tudo o que acontecera naquela tarde em que se
declarara à namorada. Embora estivesse preocupado com o que lhe estava acontecer e
à família, às vezes sentia-se como um cavaleiro medieval, pronto a defender a sua
formosa dama e o castelo onde habitava.
Quando chegou a casa, a Carolina não ia alegre nem triste; conservava o ar
natural que as circunstâncias permitiam. A mãe estava na cozinha e foi para lá que
se dirigiu.
- Hoje aproveitaste bem o tempo. Foste a dar alguma volta com o Pedro?
- Fui e não imagina como me sinto aliviada. No meio da desgraça há sempre uma
mão amiga a ajudar-nos a ultrapassar os obstáculos e uma luzinha a acender-se no
fundo do túnel.

- O que é que aconteceu, minha filha? Não me digas que lhe contaste a nossa
situação?
- Contei. Eu não queria, mas ele notou que eu estava diferente dos outros dias
e enquanto não lhe disse porque é que estava triste não descansou.
- Se assim foi, talvez tivesse sido melhor. É preferível sermos nós a contar às
pessoas de que gostamos e nos oferecem confiança, do que virem a saber por
estranhos - disse a irmã.
- Mas afinal o que é que ele te disse para afirmares que há sempre uma mão
amiga para nos ajudar? Perguntou a mãe.
- Pediu-me para lhes transmitir para não contactarem nenhum advogado que ainda
hoje ia falar com um que é amigo dele.
- Isso é bom filha. Mas não deixa de ser aborrecido estar já a carregar com os
nossos problemas e isso eu não queria, mas temos de reconhecer, que foi um gesto
muito lindo e generoso que teve para connosco.
- Mas, não é só isso. É também a prova real de que ama a Carolina. É nestas
ocasiões. que podemos distinguir o trigo do joio. Se fosse como alguns, não se
preocupavam que estivéssemos com problemas ou não. Queriam era passar o tempo e não
se preocupavam como se preocupou - acrescentou a Margarida.
- Gostei de ouvir essa! - respondeu a irmã.
- Agora vamos jantar e aguardar pelos acontecimentos - disse a mãe.

Naquela noite, o Pedro teve imensa dificuldade em dormir. As horas passavam


vagarosamente, porque a namorada frequentava-lhe de vez em quando a memória e,
quando não o fazia, eram os casos que lhe contara no dia anterior. Voltava-se para
um lado, voltava-se para o outro, mas não conseguia dormir. Era já madrugada,
quando conseguiu adormecer. Apesar de ter dormido pouco, na manhã seguinte,
levantou-se bem disposto e jovial como se tivesse dormido o mais belo sono da sua
vida. A alegria de se sentir prestável e por ter conseguido falar com o advogado
ainda naquele dia, a oportunidade de poder transmitir uma boa notícia à namorada
trazia-lhe uma responsabilidade de alegria e simultaneamente de amor.
Já era um pouco tarde quando se levantou e, por esse motivo, tomou o pequeno
almoço à pressa, pegou na motorizada e dirigiu-se para o liceu, porque queria
chegar antes da namorada entrar para as aulas. Quando ela chegou, já ele estava à
espera.
- Carolina, Carolina.
Ela reconheceu logo a voz, voltou-se para o lado de onde vinha a mesma e, ao
vê-lo, sorriu e perguntou-lhe:
- Pedro, por aqui a esta hora? O que é que se passa?
- Não me digas que não gostaste de me ver?
- Adorei, meu amor. Se pudesse até te levava comigo para as aulas e ficavas
todo o dia ao meu lado. Mas como já estou habituada a receber más notícias, cheguei
a pensar que tivesse surgido algum problema.
- Nada disso meu amor. Trago, notícias mas não são más. São até muito boas. Já
falei com o advogado.
- És um amor! E o que é que ele disse?
- Vai receber-vos ao fim da tarde e recomendou para levardes os documentos que
o oficial de diligências deixou na vossa casa.
- Óptimo! Gostava imenso de estar aqui contigo, mas a campainha já tocou e se
não me apresso, bato com o nariz na porta. Obrigado por tudo, meu amor.
Despediram-se com um beijo doce e prolongado e cada um foi ao seu destino. A
presença do Pedro àquela hora e a sensação de se sentir protegida derramaram uma
imensa alegria na alma da Carolina e sentiu que as rédeas do seu coração estavam
definitivamente entregues nas mãos dele.
Conforme tinha sido combinado, ao cair da tarde, a Margarida e a irmã
apresentaram-se no escritório do advogado. Embora a mãe estivesse bastante
interessada em ir, não podia porque as forças físicas e anímicas não o permitiam,
por se encontrar doente, passando a maior parte do tempo deitada.

Quando chegaram ao escritório, já quase todos os clientes tinham sido


atendidos, à excepção de um casal de idosos, já com a cara marcada com rugas a
denunciarem os muitos anos que já tinham passado por eles, à espera de serem
atendidos por causa de um inventário. E de uma senhora, que aparentava andar na
casa das cinquenta primaveras, mas muito bem conservada, com uma filha ao lado,
ainda bastante jovem, a deixar transparecer estar ainda a viver a idade dos verdes
anos, também à espera de serem atendidas, por causa de uma denúncia que um
cleptomaníaco fizera contra o filho da senhora, acusando-o de ter furtado um
veículo com o qual nada tinha a ver.
O advogado, logo que soube que a Carolina e a irmã já tinham chegado, foi à
sala de espera, pediu-lhes para esperarem mais um pouco, que as iria receber assim
que atendesse os dois clientes que já estavam à espera.
Quando a senhora e a filha saíram, mandou-as logo entrar, pediu-lhes os
documentos que levavam com elas e depois de ter lido o duplicado da petição e ter
lido os argumentos que fundamentavam a acção de despejo, tranquilizou-as, explicou-
lhes o que teriam de fazer e deixou-lhes a promessa que iria utilizar todos meios
legais que estivessem ao seu alcance para que a acção fosse improcedente.
A Margarida e a irmã saíram animadas, mas simultaneamente preocupadas, porque
teriam de pagar as rendas em atraso e os acréscimos legais e não sabiam onde ir
buscar o dinheiro para satisfazer aquela exigência. Também não queriam dizer nada à
mãe acerca do dinheiro, porque queriam poupá-la a mais aquela aflição, por recearem
que não conseguisse resistir ao choque, por se encontrar doente, quase a entrar na
raia do descontrolo.
Durante o trajecto do escritório do advogado e a paragem do autocarro, não fizeram
outra coisa, senão recorrerem à imaginação para descobrirem a melhor maneira para
arranjarem o dinheiro. Levavam o pensamento até à morada das pessoas amigas, com as
quais tinham mais confiança, mas havia sempre um ou outro pormenor a desaconselhá-
las a bater-lhes à porta.

Era uma situação muito preocupante. Elas, que estavam habituadas a viver em
paz, sem sobressaltos, a não ser os habituais inerentes à sua idade, viam-se agora
confrontadas com um mundo cruel, cheio de obstáculos e armadilhas. Eram como duas
aves fora do ninho, sem protecção dos pais e sem estarem preparadas para voar,
facilmente vulneráveis, aos apetites vorazes de algozes e abutres. Mas a vida é
feita de altos e baixos, de horas boas e más, de tristezas e de alegrias, de ânimos
e desânimos. São estas diferenças que nos caldeiam para melhor podermos enfrentar
as suas vicissitudes.
Quando iam a passar ao pé da Sé, o Pedro ia na motorizada para o escritório do
advogado, em sentido contrário, e viu-as no outro lado do passeio. Já não continuou
a viagem, andou mais uns metros, mudou de direcção e foi ao encontro delas.
Depois de as ter cumprimentado, perguntou-lhes como correra a reunião com o
advogado e se havia boas perspectivas para ganharem a acção. Perante tal ensejo,
convidou-as a irem até um dos cafés, situados ali mesmo na baixa da cidade. A
Carolina aceitou logo o convite com imenso agrado, mas a irmã manifestou o desejo
de ir para casa, desculpando-se que tinha dores de cabeça e não estava com
disposição. A irmã e o namorado foram para o café e ela foi para a paragem.
Quando ali se encontrava à espera do autocarro passou a Beatriz e ao virar o
olhar para a fila, viu a Margarida e como era natural foi logo ao seu encontro.
Esta ao vê-la, ficou surpreendida, mas ao mesmo tempo alegre por vê-la:
- Olá Margarida, mas que surpresa, por onde é que tens andado, já há algumas
semanas que não te via, como é que vai a tua vida?
- Problemas e mais problemas, Beatriz.
- Ainda é por causa do outro tarado?
- Uns são, outros não. A maior parte deles são por causa da situação do meu pai
como tu sabes.
- Ainda não tendes notícias dele?
- Infelizmente não, Beatriz.
- O que é que o outro desenvergonhado fez para estares com mais problemas?

- Vingou-se, não conseguiu o que queria, pôs uma acção de despejo aos meus
pais. Venho agora do advogado, fui lá com a minha irmã.
- Mas que nojento! E se fossemos até ao café conversar um pouco sempre
estávamos mais à vontade ou estás com pressa?
- Não, talvez até me faça bem para desanuviar esta pressão que trago em cima de
mim.
A Margarida saiu da fila e foram ambas até ao Golden-Gate. Quando chegaram, a
mesa preferida da Margarida estava vaga, o que lhe causou alguma satisfação por ser
mais recatada, podendo assim falar mais à vontade.
Embora a Margarida tivesse manifestado o desejo de desanuviar a pressão, depois
de ter reflectido com mais profundidade ficou hesitante. era como se a chama
interior tivesse receio de subir até ao cimo da cratera para não fazer estragos à
sua volta. Perante aquela hesitação, acabou por dizer à amiga:
- Não sei se deva contar as minhas angústias e anseios. Parece-me que não tenho
o direito de te arranjar preocupações. Já bastam aquelas que te arranjei quando o
outro ordinário quis abusar de mim.
- Ó Margarida, não digas isso, afinal somos amigas ou não?
- Somos. É por isso mesmo que não quero abusar da tua bondade, nem aproveitar-
me da tua amizade, por entender que já te causei demasiadas preocupações e, quem
sabe, se não te teria arranjado problemas com o outro safado. Ele é teu patrão e
vingativo como é pode vingar-se de ti de um momento para o outro.
- Não te preocupes, se fosse para se vingar já o tinha feito há muito tempo.
Mas ele tem receio porque o meu irmão leu-lhe bem o sermão e o meu pai também teve
uma conversa muito interessante com ele.
Quando a Beatriz falou do pai, a Margarida sentiu uma grande dor e uma enorme
ansiedade de chorar, mas a dor trancou-lhe as lágrimas e quando estas se soltaram,
conseguiu vertê-las em silêncio e sufocar os soluços mas não conseguiu evitar que
os seus olhos humedecessem.

A Beatriz leu-lhe nos olhos o que lhe ia na alma, mas manteve-se calada por um
longo momento, a pensar no que haveria de lhe dizer para a animar. Enquanto se
mantinha este silêncio, a Margarida tinha os olhos fixos na mesa, para não
denunciarem a agitação interior. Terminado o interregno, a Beatriz pegou-lhe nas
mãos, fixou o olhar nela e disse-lhe:
- Desabafa, minha amiga. Não tenhas receio de dizer o que sentes. É nestes
momentos que mais precisamos de ajuda, mas se não me disseres o que se está a
passar não posso ajudar-te e vou ficar triste e preocupada.
Se até ali era difícil à Margarida suster a comoção, com aquele gesto da amiga,
ainda mais dificuldades sentiu e não conseguiu que algumas lágrimas se soltassem e
só não rolaram pelas faces porque ela as limpou logo.
- Vá, Margarida, conta lá tudo o que te atormenta. Sou toda ouvidos.
Depois da amiga muito insistir, a Margarida começou a contar todo o drama que se
vivia na sua casa, a ansiedade que as atormentava por não saberem o que teria
acontecido ao pai, os problemas que a sua ausência trouxera, a saúde da sua mãe e o
receio de surgir a qualquer momento um desenlace fatal na sua família.
Quando terminou a descrição já não conseguia suster as lágrimas. Quanto mais as
limpava, mais outras se lhes sucediam.
A Beatriz estava comovida com o que acabara de ouvir e também ela não conseguiu
disfarçar a teimosia de algumas lágrimas que lhe apareceram ao canto dos olhos.
Passado aquele momento difícil, ambas se foram recompondo aos poucos da comoção e
algum tempo depois já estavam diferentes, embora preocupadas.
A Beatriz estava preocupada e triste por tudo o que tinha acontecido e estava
acontecer à amiga e à sua família; mas a tristeza era contrabalançada por alguma
felicidade por a poder ajudar. Depois de a ter tranquilizada com palavras de
esperança, fez questão de ser ela a resolver o problema do dinheiro para o
pagamento das rendas em atraso e seus acréscimos legais.
A Margarida não queria de maneira alguma que a amiga suportasse aquele peso e
se sacrificasse tanto por causa dela, mas a Beatriz insistiu, alegando que sentia
uma grande alegria em poder ajudá-la e que não era sacrifício nenhum porque tinha
as suas economias e o que faltasse pedia ao irmão que era contabilista e também
tinha o seu pecúlio.
A Margarida comoveu-se de novo e agradeceu-lhe mais aquele nobre gesto.
Embora ambas pretendessem continuar a conversar, não podiam porque a hora já ia
avançada e não queriam chegar tarde a casa, para não causar preocupações à família,
deixando ambas a promessa de que iriam encontrar-se mais vezes e com mais
frequência. Despediram-se e cada uma foi ao seu destino.
A Margarida ia mais animada, as palavras amigas que a Beatriz lhe dissera, a
sua abertura e franqueza foram como bálsamo para lhe levantar o ânimo e dar-lhe
mais força para continuar a lutar. Apesar de tanta adversidade, nos momentos mais
críticos das crises, aparecia sempre alguém a estender-lhes a mão para não caírem
no abismo.
Quando chegou a casa, a mãe encontrava-se deitada em cima da cama, ansiosa por
que as filhas chegassem para lhes levarem as notícias que o advogado lhes
transmitira. A irmã ainda não tinha chegado e não queria dizer nada à mãe sem que
ela chegasse para combinarem o que lhes iriam dizer para não lhes falarem no
dinheiro. A Margarida, depois de ter cumprimentado a mãe e lhe ter perguntado como
se sentia, saiu de novo do quarto, alegando que ia à casa de banho e depois voltava
para lhe dar as notícias. Mas tranquilizou-a logo, dizendo-lhe que as mesmas eram
boas e pediu-lhe paciência para esperar mais um pouco porque o serviço que tinha
para fazer, ninguém mais podia fazer por ela. A mãe compreendeu, achou graça e
esboçou um leve sorriso e disse-lhe:
- Vai, filha, antes que faças o serviço nas calcinhas. A Margarida também achou
piada à resposta e não resistiu sem se rir, deixando estampada no rosto a marca
dessa graça, a qual foi facilmente notada pela irmã, que naquele momento estava a
chegar, o que a deixou espectante e feliz, por pensar que tivesse chegado alguma
notícia do pai.

- O que é que tu tens, Margarida, para vires com esse ar tão alegre, chegou
alguma boa notícia do pai?
- Infelizmente não, mas no meio das desgraças que nos têm acontecido e estão a
acontecer, de vez em quando acende-se uma luzinha no nosso caminho, que eu chamaria
a luz da esperança.
- Afinal o que é que aconteceu, para ficares com esse ar mais alegre?
- Não aconteceu nada, foi só um desses episódios, que às vezes aparecem para
nos levantarem o ânimo. Eu estava à espera que tu chegasses, para combinarmos o que
havíamos de dizer à mãe e para evitar que ela me fizesse perguntas, disse-lhe que
estava aflita e tinha de ir à casa de banho, foi quando me respondeu, que fosse
depressa, antes que fizesse nas calcinhas.
A irmã também achou imensa piada, bem visível no sorriso que deu e disse-lhe:
- Ainda bem que a mãe disse isso, sempre alivia um pouco a tensão e é sinal de
que está melhor.
- Não sei, Carolina, já pensei que talvez tivesse dito aquilo só para me
animar, porque ela não está bem. Talvez seja melhor falar com a Fernanda, para ver
se a convencemos a ir outra vez ao médico, mas agora temos de lhe dizer o que o
advogado disse, mas não falamos no dinheiro, para não a afligir, felizmente esse
assunto já está resolvido.
- Como? - perguntou a irmã com cara de espanto.
- Depois conto-te, agora vamos lá dentro sossegar a mãe, senão daqui a pouco
começa a pensar que caí dentro da sanita.
- Vamos então.

Antes do Leonel ser despedido do hotel, as filhas viam a vida como um oásis,
onde corria o leite e o mel, onde as roseiras cresciam em abundância, das quais
nasciam as mais belas rosas, que embelezavam o cenário e perfumavam o ambiente.
Quando se magoavam com algum espinho, os pais acudiam-lhes logo, a tratar das
feridas e aliviar-lhes a dor. Mas depois do pai ter deixado a Madeira e os
problemas e aflições passarem a morar com elas, começaram a ver a vida de uma forma
diferente e viam desfazer-se em fumo a sua quimera e aceitavam conformadas a
realidade dos factos e a dureza da vida.
Quando entraram no quarto, a mãe estava com um ar mais animador do que na parte
de manhã parecia que o sono e o descanso tinha reposto algumas das suas forças. Mas
pura ilusão; era mais aparente do que real, porque o sofrimento que sentia no seu
interior era enorme, mas tentava escondê-lo das filhas quando podia, para não lhes
causar mais preocupações.
- Então, filhas, o que é que o advogado vos disse, deu-vos esperanças?
- Muitas - disse a Carolina com ar natural e um leve sorriso forçado para a
animar. . Na opinião dele, o outro desavergonhado não tem hipóteses de ganhar a
acção, mas a decisão cabe ao Tribunal. Disse, que, além da falta de pagamento das
rendas, veio ainda alegar que fizemos a arrecadação sem autorização.
- Mas que malandro, foi o pai dele que sugeriu e autorizou que a fizéssemos,
até nos ofereceu os materiais. Já passou tanto tempo, tu ainda não tinhas nascido,
Carolina, lembro-me que ele até passou um bilhete ao teu pai, que deve estar para
aí, para podermos levantar tudo o que fosse preciso e agora vem aquele traste dizer
um disparate destes, nem sequer respeitou a memória do pai, um homem tão bom como
era, que gostava de ver toda a gente bem, a esta hora está no céu, muito triste,
ver as maldades que o filho aqui anda a fazer.
- Foi vingança, mãe, se eu tivesse cedido ao que ele queria, nada disto se
dava, até era capaz de nos ter oferecido a casa, mas como não conseguiu o que
queria e ainda por cima foi enxovalhado não nos perdoa, nem a mim, nem à Beatriz,
pelo facto de o termos enfrentado.
- Malandro, se não te defendesses e fosses na conversa dele, a estas horas
estavas desgraçada, mas Deus não dorme.
- Só há um pequeno problema - disse a Carolina.
- Que problema é esse, filha?

- Se não conseguirmos arranjar a direcção do pai, saem anúncios no jornal, a


dizer que foi posta uma acção de despejo contra o pai e contra a mãe.
- Mas isso não se pode arranjar sem vir no jornal? Assim toda a gente fica a
saber...
- Fique descansada, o advogado disse que só em último caso e daqui até lá pode
ser que cheguem notícias do pai - disse a Carolina.
- Temos sofrido tanto e apanhado tantos desgostos... Seja o que Deus quiser -
disse a mãe.
A vida estava a tornar-se num fardo demasiado pesado para a Matilde e para as
filhas. A única força que lhes dava algum alento de aparecerem melhores dias,
vinha-lhes da solidariedade e das palavras de ânimo de alguns amigos; era como se
fossem balões de oxigénio alimentar-lhes a esperança e a afastá-las do desespero.
Foi o que aconteceu com mais aquele gesto franco e aberto da Beatriz, que veio
abrir-lhes um enorme rasgão azul, no céu tempestuoso daqueles meses.

O Diogo, depois da Matilde lhe ter telefonado para saber se tinha notícias do
marido, apesar de a ter tranquilizado também ele ficou preocupado, o que o levou a
contactar várias vezes o amigo que tinha em França, para saber se já tinha notícias
do Leonel. Todas as vezes que o contactou sempre obteve respostas, mas as notícias
não eram nada animadoras, porque ainda não tinha conseguido entrar em contacto com
ele, apesar de já ter feito várias tentativas nesse sentido. Mas deixava sempre a
esperança de o encontrar, porque iria continuar a procurá-lo e também se poderia
dar o caso de ser o Leonel a contactá-lo, porque tinha a direcção dele.

Passado algum tempo, e depois de muito o ter procurado, viu finalmente


compensados os seus esforços ao descobri-lo nos arredores de Paris, através do
médico que o estava a tratar. Entrou logo em contacto com o Leonel, mas antes de
falar com ele, ficou a saber, através do médico, o preocupante estado de saúde em
que se encontrava, quando ali chegara. Se não fosse o empenho do médico e dos
amigos, os cuidados que tiveram com ele, a solidariedade e as palavras amigas e de
esperança que lhe diziam, não teria resistido a tantas adversidades e a tanto
sofrimento.
Quando o amigo do Diogo conseguiu falar com ele, ainda se encontrava bastante
debilitado, com o braço direito engessado, por ter caído e tê-lo partido em duas
partes, na altura em que estava atravessar a maior crise da sua doença e isso
trazia-lhe um sofrimento ainda maior, por não poder escrever para a mulher e para
as filhas. Ainda pensara em pedir a um amigo para lhe escrever uma carta para a
enviar à família, mas chegara à conclusão, que seria melhor esperar mais alguns
dias e ser ele a escrever, porque se fosse outra pessoa, tanto a mulher como as
filhas iriam ficar ainda mais preocupadas, porque só o facto de não ser ele a
escrever a carta iria levantar-lhes suspeições e levá-las-ia a pensar no pior. O
mesmo sucedeu em relação aos amigos, que ainda pensaram em escrever à mulher, mas
também chegaram à mesma conclusão, porque ainda lhes iriam causar mais alvoroço e
sofrimento e seria melhor ser ele a dar-lhes a notícia quando já estivesse
recuperado.
Quando o Alfredo lhe disse que era da Madeira, os contactos que mantinha com o
Diogo e as voltas que já tinha dado para o encontrar, uma enorme comoção e uma
grande ansiedade apoderaram-se dele, por querer saber notícias da família e não
conseguiu evitar o aparecimento de alguma humidade ao canto dos olhos, quando o
amigo lhe disse que a família estava bem, mas todos a sofrer muito, por não terem
notícias dele.
O Alfredo tentou tranquilizá-lo, dizendo-lhe que embora a mulher e as filhas
estivessem a sofrer, logo que tivessem notícias a dizer-lhes que estava bem
deixariam de sofrer, tudo seria diferente e ele próprio se encarregaria de lhes
transmitir a boa nova, através do Diogo, para as tranquilizar.
Logo no dia seguinte, o Alfredo escreveu uma carta ao amigo, na qual o
informava das dificuldades que tivera para o encontrar e pedia-lhe que entrasse
logo em contacto com a mulher do Leonel.

No dia que chegou a carta, o Diogo tinha ido muito cedo para a fazenda e só
regressou à noite. Quando chegou a casa a mulher entregou-lha, abriu-a logo com
sofreguidão e começou a lê-la. A mulher perguntou-lhe se trazia boas notícias, mas
ele não respondeu. Quando terminou, deu um longo suspiro e disse-lhe:
- Felizmente as notícias são boas; o Leonel já está em França, mas sofreu muito
para chegar lá. Esteve quase a ser preso na fronteira com a Espanha e esteve à
beira da morte, mas agora já está bem.
- Credo! O que é que lhe aconteceu? - perguntou a mulher
- Daqui a pouco conto-te tudo em pormenor, mas agora vou telefonar à dona
Matilde para a tranquilizar e às filhas.
- Vai depressa, homem, elas estão a sofrer muito, mas tem cuidado com o que lhe
vais dizer. Não lhe digas que esteve quase a ser preso e que esteve à beira da
morte, suaviza as coisas, porque o marido depois vai-lhe contar tudo em pormenor,
mas nessa altura já estão preparadas.
- Fica descansada, eu sei como lhe hei-de dar a notícia.
O Diogo dirigiu-se para o telefone, discou o número da casa do Leonel.
- Sim, estou?
- Viva, dona Matilde, como tem passado?
- Muito mal, senhor Diogo, não sei se conseguirei resistir por mais tempo a
tanto sofrimento, nunca mais chegam notícias do meu marido. Também não sabe nada
dele?
- Sei e tenho boas notícias para si e para as suas filhas, por isso é que lhe
telefonei
- Diga, diga, senhor Diogo, ele está bem? Onde é que ele está?
- Fique descansada, dona Matilde, ele está bem. Já está em França e manda um
abraço e muitos beijinhos para si e para as suas filhas e também manda dizer que
está cheio de saudades vossas.
- Mas porque é que ele não telefonou ou escreveu a dar notícias?

- Ele teve problemas na fronteira. Alguns colegas que iam com ele foram
apanhados, mas ele conseguiu escapar. Quando ia a fugir, era de noite, caiu e
partiu o braço direito. Por isso é que ainda não escreveu e também não tinha
dinheiro para telefonar. O meu amigo já lhe arranjou um emprego num restaurante de
um emigrante português. Dentro de dias já começa a trabalhar. Qualquer dia tem aí à
porta uma cartinha dele a explicar-lhe tudo com mais pormenor.
- Obrigado senhor Diogo, foi a melhor notícia que recebi em toda a minha a
vida. Não faz ideia da angústia que tirou dentro de mim e das minhas filhas.
Obrigado, mais uma vez, dê muitos cumprimentos à sua esposa.
- Serão entregues. Boa noite, dona Matilde.
- Boa noite, senhor Diogo e mil vezes obrigado.
Embora o Diogo soubesse que o Leonel tinha partido o braço em França, arranjou
aquela desculpa, dizendo-lhe que foi na fronteira quando ia a fugir, para não a
deixar a pensar que lhe estava a esconder alguma coisa, tendo ficado muito feliz
com a ideia e pelo modo como cumpriu a missão.
Quando a Matilde ouviu aquela notícia, chamou a Margarida para lhe transmitir a
boa nova, mas no momento em que pretendia fazê-lo, as palavras ficaram presas na
garganta e as únicas que se conseguiram soltar, foi para lhe dizer:
- Graças a Deus, o pai está salvo.
Logo a seguir a comoção apoderou-se dela e não conseguiu dizer mais nada.
Abraçou-se à filha com toda a força que ainda tinha e abraçadas uma à outra,
começaram a chorar lágrimas de alegria, há tanto tempo arredada delas.
Após terem dado largas ao choro, um sorriso animou os lábios sem cor da
Matilde, os olhos doridos e murchos voltaram a brilhar, como duas estrelas
cintilantes, a ferida que se lhe abrira no coração começou a cicatrizar, um novo
dia nasceu ali e com ele a esperança de um futuro mais feliz e risonho.

Depois da mãe ter dado a notícia, embora ainda incompleta, a Margarida correu
para o seu quarto, abriu a janela de par em par, chamou o siroco e o pampeiro, para
que levassem dali a tristeza, para entrar a alegria. Depois olhou para as estrelas,
viu-as mais vivas que nunca, pareciam saudá-la e comungar com ela a mesma
felicidade que sentia naquele momento.
A alegria que sentiam era imensa, chegou mesmo a ultrapassar os limites
habituais, para se tornar quase infantil, ambas não cabiam em si de contentes.
Já mais calmas, a Margarida pediu à mãe, para lhe contar com mais pormenor o
que o Diogo lhe dissera. Sem embargo na voz e com as palavras a saírem
fluentemente, a Matilde começou a contar-lhe toda a conversa que tivera com ele,
mas quando lhe contou que o pai partira o braço, quando fugia da guarda para não
ser preso, as lágrimas voltaram de novo aos olhos de ambas.
Naquela tarde, a Carolina saiu mais cedo das aulas, mas já tinha combinado com
o namorado, para darem uma volta pela baixa do Funchal. Por isso não estava
presente quando a mãe recebeu a notícia.
Logo que entrou em casa, dirigiu-se ao quarto, mas para seu espanto, a mãe
também lá estava, ambas com os olhos vermelhos de tanto terem chorado. Ao vê-las
assim, nem deu oportunidade a que a mãe, ou a irmã lhe dessem a boa nova.
Repentinamente, o seu coração estremeceu, as faces descoraram, o seu semblante
empalideceu, mas quase simultaneamente a mãe tranquilizou-a:
- Não fiques triste, minha filha, o pai está salvo.
Ao ouvir aquelas palavras, um enorme suspiro de alívio rompeu-lhe do coração,
atirou-se para os ombros da mãe e ali ficou um longo momento, a derramar toda a
alegria que sentia, arrastando também a mãe e a irmã, que não conseguiram conter as
lágrimas que brotaram dos seus olhos.
Quando a explosão de choro terminou e a comoção deu lugar à placidez, a mãe
pôde contar toda a notícia à filha. depois de ter descrito tudo o que o Diogo lhe
dissera, nem pareciam as mesmas. Estavam risonhas e felizes, repartindo entre si o
pão da alegria, como já haviam repartido o pão da tristeza.
III

Parte

A partir daquele dia, a luz passou a ser diferente naquela casa. Era uma casa
mais clara, mais viva, mais brilhante, coada através de uma atmosfera mais calma,
mais serena; a notícia veio tranquilizá-las e afastar a suspeita que as tinha
oprimido durante alguns meses, por pensarem que o Leonel estivesse preso ou até já
tivesse morrido.
A Matilde chegou a desistir de esperar todos os dias pelo carteiro, como o
vinha fazendo há várias semanas por ter desanimado e pensado que a tão ansiada
carta já não chegava.
Depois de ter recebido aquela notícia, começou de novo a esperar por ele, com
muita ansiedade, mas também mais tranquila e com a certeza de que a tão desejada
missiva não tardaria a chegar.
Esse dia finalmente chegou. Quando o carteiro lhe disse que trazia uma carta do
marido, os seus olhos brilharam de alegria e um longo sorriso brotou-lhe dos
lábios, a felicidade estampou-se-lhe no rosto e um olhar insistente fixou-se no
maço das cartas que o carteiro tinha nas mãos, quando procurava a do marido, no
meio das outras; quando a encontrou e lha entregou, ela apertou-a contra o peito,
depois beijou-a. O mensageiro das boas e más notícias assistia àquela cena, com
alguma comoção e simultaneamente feliz por lhe ter levado a tão desejada carta, por
saber da ansiedade como a esperava e da tristeza em que ficava quando lhe
comunicava que não tinha chegado nada.
O carteiro despediu-se e seguiu o seu caminho distribuindo mais alegrias e
tristezas.
A Matilde, com enorme sofreguidão, abriu logo ali a carta e sentou-se a lê-la
num banco de madeira que estava debaixo de uma frondosa laranjeira onde a família
costumava passaras horas de ócio, principalmente nos dias mais acalorados e onde a
Margarida e a irmã costumavam estudar muitas vezes.

Era uma carta cheia de ternura à mistura com muita tristeza e alegria, mas
também com imensa saudade. Nela descrevia o sofrimento, as aflições, as incertezas,
as contrariedades, a saudade e o desespero que tivera de suportar para chegar a
França, desde que saíra da sua terra. Falava também dos verdadeiros amigos que
encontrara, das puras amizades que fizera; salientou ainda que, sem eles, não teria
resistido a tanto sofrimento e a tanta adversidade; manifestava também a sua
alegria pelo facto de já se encontrar curado, tanto psicologicamente, como
fisicamente e ter conseguido arranjar trabalho no ramo a que estava habituado.
Terminava-a da seguinte maneira:
- Deus vos proteja! Recebei um forte abraço, com muitos beijinhos à mistura,
deste que vos traz sempre no pensamento e muito vos ama, Leonel.
Quando a Matilde acabou de ler a carta, ergueu os olhos ao céu e chorou. Chorou
muito, a agradecer a Deus por ter salvo o marido; chorou lágrimas de tristeza e
simultaneamente de alegria: eram de tristeza pelo sofrimento que o marido tivera de
suportar; eram de alegria por estar salvo e pelas notícias animadoras que acabava
de receber. Depois foi para casa, sentou-se numa cadeira de vimes que estava na
varanda e ali ficou a inventariar tudo o que acontecera, desde que saíra da sua
terra. Estava também ansiosa, por que chegassem as filhas para lhes dar as
notícias.
Durante aqueles tristes meses, ela sentira que a esperança de ter notícias do
marido ia caindo aos poucos, como caem as folhas secas ao mais fraco sopro do vento
e sentia-se a envelhecer antes do tempo. Aquela carta trouxe-lhe de novo o alento e
rejuvenescimento. Era como se uma flor estivesse a brotar de entre as ruínas.
Quando as filhas chegaram, continuava sentada na cadeira, mas com a cabeça
encostada, com os olhos fechados e ar feliz, mas ainda com sintomas de ter chorado.
- Parece que a mãe está a dormir? - disse a Margarida.
- Já reparaste como está estranha? Parece que está a sorrir, mas tem os olhos
vermelhos, com aspecto de ter estado a chorar - observou a Carolina.

- Não estou a dormir, minhas filhas, estou só com os olhos fechados a meditar
nas notícias que o vosso pai mandou.
- Já recebeu carta do pai? Mas que bom! Manda boas notícias? - perguntou a
Margarida.
- Manda, mas sofreu muito, está aqui a carta. Podeis lê-la. Toma, Margarida.
A Margarida pegou nela e disse para a irmã:
- Toma, lê.
- Já que estás com ela na mão lê tu - respondeu a Carolina.
A Margarida sentou-se numa outra cadeira que estava ao lado e começou a ler. A
irmã ficou de pé, atrás dela e ia também acompanhando a leitura da carta.
Quando terminou, seguiu-se um longo silêncio, como que a reflectirem nas
palavras que o pai mandara dizer.
- Sofreu tanto o nosso querido pai, mas felizmente as coisas agora já estão a
correr bem. Deus ajudou-o - disse a Margarida.
- Graças a Deus! Parece que a paz e a tranquilidade voltaram de novo ao nosso
lar - disse a mãe.
Depois de terem falado sobre vários assuntos relacionados com os últimos
acontecimentos, a mãe foi para a cozinha fazer o jantar, enquanto as filhas foram
até ao quarto delas para estudar, mas acabaram por passar a maior parte do tempo a
falar de amores e desamores.
Quando a mãe acabou de confeccionar o jantar, preparou a mesa e quando estava
tudo pronto chamou-as. Elas dirigiram-se para a cozinha, mas encontraram-na
completamente arrumada e a mãe ausente dali.
- Hoje vamos comer na sala? - disse a Carolina.
- Deve ser para festejar as boas notícias do pai.

Quando chegaram, encontraram uma mesa diferente daquela que imaginavam. Ao


centro, estava um belo arranjo de flores que a mãe fizera, dos quais sobressaiam os
antúrios, as estrelícias e as orquídeas que colhera numa pequenina estufa que
tinham ao lado da casa. Em volta do arranjo estavam quatro velas acesas; os
talheres que só eram utilizados em dias assinalados, estavam devidamente colocados
ao lado dos pratos. Também estes só eram utilizados nos mesmos dias. Perto das
velas estava uma terrina com a canja que iria ser servida; ao lado, estava um bolo
de frutas e logo a seguir um jarro com sumo de laranja natural.
- Olá! Mas que surpresa! Por esta não esperava eu - disse a Margarida.
- Nem eu - acrescentou a irmã.
- A mãe também nos podia ter chamado para a ajudar, fartou-se de trabalhar e
nós lá dentro na conversa - disse a Margarida.
- Não faz mal, filha. Foi com muito gosto. Agora já me sinto com forças e se
vos tivesse chamado não tinha piada.
- Mas a mãe também pôs um talher e acendeu quatro velas - disse a Carolina.
- É verdade, filha. O pai não está presente fisicamente, mas está em pensamento
e esta é a forma de o imaginarmos ali sentado no lugar dele, a comungar da mesma
alegria.
Depois de terem jantado, as filhas deram os parabéns à mãe pelo saboroso e
requintado jantar e fizeram questão de serem elas a lavar a louça, a arrumar a sala
e a cozinha.
A mãe, embora quisesse ajudar, elas não permitiram e tanto insistiram para ela
descansar que acabou por se sentar numa cadeira, enquanto as filhas arrumavam a
sala; depois foi com elas para a cozinha mas já não conseguiu ficar sentada e
começou a colocar alguns utensílios nos lugares próprios embora contra a vontade
das filhas.
Depois de terem tudo arrumado, ficaram mais algum tempo a conversar até que a
hora de se deitarem chegou. Ao contrário das outras noites em que mal conseguiam
dormir, naquela o sono não tardou a chegar. Foi a primeira vez que conseguiram
afastar os fantasmas que as perseguiam e dormir um sono profundo e tranquilo.
Os dias iam passando, mas o ambiente era agora diferente, a vida regressava à
normalidade. A boa disposição e a alegria reinavam em casa mas a alegria que
sentiam era limitada, porque a saudade que sentiam do pai não permitia que a mesma
fosse completa.

O Leonel trabalhava afanosamente para pagar as dívidas e ir mandando algum


dinheiro para fazer face a algumas despesas.
A Matilde cuidava agora da casa com mais alegria. embora ainda fraca, ia dando
conta do recado porque a força de vencer era enorme.
A Carolina estudava agora com mais empenho, porque já não tinha os maus
presságios na cabeça.
A Margarida estava feliz com o seu trabalho, as crianças gostavam imenso dela,
as colegas estimavam-na, embora houvesse uma ou outra que tivesse inveja dela por
ser tão estimada pelas crianças e pelos superiores. Apesar de trabalhar muito
durante o dia, ainda estudava à noite com o mesmo entusiasmo que trabalhava durante
o dia. Porém, passado algum tempo, começou a notar que se passava algo de anormal
com algumas das suas colegas: passaram a tratá-la com mais frieza o que a deixou
intrigada por não encontrar razão aparente para tão grande mudança de
comportamento, sem qualquer explicação.
- O que é que teria acontecido?
Éramos amigas e agora estão a evitar-me sem qualquer explicação. Isto cheira-me
a intriga, deve andar por aí alguém a tramar-me nas minhas costas. Só me faltava
mais esta. Quem será que me anda arranjar problemas e porquê? Não fiz mal a
ninguém. Acho que lhes vou perguntar que mal é que eu lhes fiz, para se porem assim
comigo. Não, não, eu não me desviei do meu caminho, foram elas que se afastaram,
portanto não tenho nada que lhes perguntar - pensava ela.
A Margarida era amorosa, dedicada e meiga para as crianças, leal para as suas
colegas e superiores. Mas também sabia ser enérgica quando necessário e ríspida
para os que cultivavam a hipocrisia, o egoísmo e a perfídia.
A partir daquele dia, o seu pensamento começou a juntar uma série de episódios
esparsos, aparentemente vagos, mas depois de reflectir profundamente, um deles
começava a despertar-lhe mais a atenção. E, se ao princípio o achava irrelevante,
agora começava a conjecturar que não era tão irrelevante como pensara.

A suspeita caía numa senhora chamada Adelaide, que aparentava andar na casa
dos cinquenta anos, muito bem falante, sempre bem vestida a condizer com a moda,
que todos os dias, na parte da tarde, ia buscar a neta e falava muitas vezes com as
colegas que mais friamente a tratavam.
Era o início de uma pista que a Margarida iria seguir em silêncio, para não
levantar suspeitas, mas com a sagacidade necessária para atingir os objectivos
pretendidos. Com os elementos que já possuía e com o calejamento que a vida lhe
trouxera, não lhe era difícil engendrar uma artimanha para descobrir se estava na
pista certa ou errada.
Numa das tardes em que a senhora foi buscar a Joana, era como se chamava a neta
dela, estava com a Margarida. Embora já tivessem terminado as aulas, que
propositadamente, ficou com ela mais algum tempo a ensinar-lhe a fazer um desenho.
Uma das colegas que costumava falar com a avó, logo que a viu entrar, foi à sala
para a levar, mas a Margarida alegou que estava só acabar de fazer o desenho e que
a Joana mostrara interesse em levá-lo à avó. Eram só mais dois ou três minutos, ela
mesmo se encarregaria de a levar. A Dolores ainda insistiu em levá-la, mas perante
os argumentos da colega, nada mais poderia fazer, senão resignar-se. No entanto
ainda lhe disse:
- Eu só queria ajudar-te. Não é preciso? Tudo bem!
- Registo o teu gesto e a tua preocupação, mas hoje prefiro assim.

Depois do desenho estar concluído, a Margarida pegou na mão da Joana e foi


levá-la à avó. Esta, assim que a Margarida lhe entregou a neta, agradeceu-lhe
secamente com um obrigado, foi-se logo embora, sem dar oportunidade a que houvesse
o mínimo diálogo. Se até ali a Margarida só tinha ténues suspeitas, a partir
daquele dia ficou com a convicção de que já não eram só suspeitas, também havia
certezas. Agora era uma questão de tempo e de paciência. Ainda pensou em perguntar
às colegas que mantinham a mesma amizade com ela, se sabiam alguma coisa, mas
desistiu da ideia por recear que lhes poderia trazer problemas. Preferia recorrer a
outros meios e só em último caso é que procuraria a ajuda das amigas... De entre os
outros meios que lhe pareciam mais viáveis, era tentar saber onde morava a
Adelaide, o que não seria difícil, para saber quem eram as pessoas das suas
relações, para depois tirar as suas ilações.
Durante uma semana, imaginou várias formas para descobrir onde morava. Primeiro
pensou segui-la, mas não podia porque ela ia no seu próprio carro. Ainda se lembrou
de a seguir num táxi, mas pôs de lado a ideia por pensar que poderia arranjar
problemas e ia meter estranhos no assunto. Pensou ainda em arranjar uma maneira
muito subtil de perguntar à Joana, mas acabou por desistir, por pensar que poderia,
numa conversa normal, dizê-lo à avó e também por achar não ser muito correcto. A
última ideia que lhe ocorreu e que lhe pareceu com mais hipóteses, era a de ter uma
conversa com a irmã e pedir-lhe para convencer o Pedro a seguir a Adelaide, na sua
própria motorizada, uma vez que ela não andava com muita velocidade e seria fácil
acompanhá-la.
Quinze dias depois, estava a Margarida no café Golden-Gate, quando viu entrar a
Adelaide com a neta pela mão, acompanhada da Mónica e da Sara. Ao vê-las, sentiu um
enorme calafrio e simultaneamente uma grande revolta, conforme demonstravam algumas
palavras que se soltaram dos seus lábios, de forma quase inaudível, mas com
ressonância suficiente para chegarem aos ouvidos da irmã.
- Afinal elas conheciam-se. Só podiam ser aquelas bilhardeiras e intriguistas
que andaram a meter macaquinhos na cabeça das minhas colegas. Devem ter inventado
mais alguma atoarda contra mim e algumas das minhas colegas ainda foram acreditar
nela, sem ao menos falarem comigo. O que é que teria acontecido? Para ficarem tão
frias e tão distantes de mim, mas eu vou descobrir - pensava ela.
- Que conversa é essa, Margarida, que não estou a perceber nada?
A irmã não respondeu logo e ficou em silêncio mas a irmã insistiu.
- O que é que se está a passar contigo?
- É por causa daquelas bruxas que se foram sentar lá ao fundo.

- O que é que elas te fizeram?


- Não é nada de especial. Foi umas intrigas que arranjaram. Agora vejo que
foram elas. Depois conto-te - disse a Margarida tentando desviar a conversa para a
irmã não ficar preocupada.
- Mas como é que tu sabes, Margarida?
- A miudinha que está com elas anda lá na creche. É neta da mais velha. Ainda
bem que ela não me viu, senão já tinha pedido à avó, para virem para aqui e agora
que a vejo com as outras amiguinhas, não é difícil imaginar de onde saiu o veneno.
Vamos embora antes que a Joana nos veja, senão ainda pode haver problemas.
- Está bem, vamos.
Levantaram-se e foram apanhar o autocarro que as levaria a casa.

À medida que o tempo ia passando, o ambiente ia-se tornando cada vez mais
pesado na creche. Os boatos começaram a ser mais comentados e as conversas em
surdina nas costas da Margarida passaram a ser mais frequentes. A Dolores que antes
apenas comentava com as colegas da sua laia e mantinha uma certa frieza e um certo
afastamento em relação à Margarida, tinha agora uma atitude mais hostil.
Apresentava um ar sarcástico, mas de um sarcasmo benévolo e anódino, que sabe
misturar espinhos com rosas.
Essa mudança de atitude, levara a Margarida a pensar que era motivada pelo
facto de não a ter deixado levar a Joana à avó ou então que esta já lhe tivesse
injectado mais veneno para criar ainda mais confusão, porque o método que agora
estava a utilizar, embora aparentemente mais inofensivo, era na realidade mais
requintado e mais mordaz; mas a Margarida agora já tinha encontrado o fio à meada.
Era só uma questão de tempo para desenlear a teia.
No sábado da semana seguinte, estava com a irmã a tomar a bica no Golden-Gate,
quando viram entrar a Adelaide e a Dolores, mas desta vez sem a Joana. Iam com os
olhos fixos numa mesa que estava vazia ao fundo da sala, mas quando voltaram o
olhar e viram a Margarida, pararam, cochicharam e depois foram sentar-se numa mesa
que estava vazia mesmo ao lado da Margarida e da Carolina. Esta que já sabia tudo o
que estava acontecer com a irmã, logo que as viu mudar de rumo e dirigirem-se para
a mesa que estava vazia, mesmo ao lado, disse para a irmã:
- Elas iam sentar-se lá ao fundo, mas assim que nos viram, desistiram e vieram
logo a ocupar esta, isto cheira-me a provocação.
- É o mais certo. Elas não sabem fazer outra coisa.
No dia anterior, tinha saído uma notícia num jornal do continente, relacionada
com um caso amoroso. A mesma referia-se a uma mulher que tinha apanhado o marido
com uma das empregadas, completamente nus, num sofá do escritório. Não lhes disse
nada, mas teve a ligeireza suficiente para se apoderar da roupa deles e deixá-los
só com a que Deus os trouxe ao mundo; depois deixou-os fechados no escritório e
chamou dois empregados para arrombarem a porta fazendo-lhes crer, que o marido
queria sair mas não conseguia porque a fechadura estava encravada.
Os empregados eram dois rapazes fortes e assim que chegaram ,meteram os ombros
à porta e arrombaram-na, dando com o patrão e a colega completamente nus e
envergonhados; os empregados aperceberam-se no momento que tinham sido enganados,
mas já não podiam voltar atrás.
Depois de se terem sentado e pedido um garoto e uma bica, com uma voz
suficientemente audível, de modo a que pudesse ser ouvida facilmente pela Margarida
e pela irmã, a Dolores disse para a avó da Joana:
- A dona Adelaide já ouviu falar daquela notícia amorosa que veio num jornal do
continente, a dos pombinhos que ficaram sem a roupa?
- Sim, sim! Essa foi boa, estavam lá muito felizes no sofá, mas a mulher
estragou-lhes o arranjinho e pregou-lhes uma valente partida. Agora já não se vão
meter noutra tão cedo.
- Nunca se sabe, dona Adelaide, agora está a ficar tudo diferente, às vezes são
elas que os provocam e depois eles não resistem.

- Tem razão, Dolores. Agora até há quem queira trocar o corpo pela renda de
casa.
A Margarida, ao ouvir aquelas palavras cínicas e cruéis, sabia que eram
dirigidas a ela. O seu semblante tingiu-se de vermelho, o seu coração estremeceu e
uma enorme onda de indignação apoderou-se dela. Ainda pensou responder à letra e
dizer-lhes tudo o que sentia mas a irmã, também ela indignada, fez-lhe sentir que
não era o lugar próprio nem o momento ideal, porque iria causar escândalo e era o
que elas queriam. A Margarida reflectiu e seguiu os conselhos da irmã. Era como se
estivesse no meio de uma emboscada sem poder reagir nem defender-se. A única coisa
que conseguiu fazer foi lançar-lhes um olhar de revolta e indignação e suportar a
dor em silêncio.
A Carolina que antes estava calma, embora indignada, depois de ter meditado
profundamente nas palavras provocatórias que ouvira, começou a ficar revoltada e
sem calma, com imensa dificuldade de se controlar. Agora valeu-lhe a irmã que já
tinha suportado a provocação e conseguiu evitar que ela dissesse ali ,à Dolores e à
amiga aquilo que concerteza não iriam gostar de ouvir. Logo de seguida levantaram-
se e foram-se embora; mas, antes de saírem, a Carolina aproximou-se delas e disse-
lhes:
- Vocês não prestam mesmo para nada. Passam a vida a chafurdar na imundice para
saciarem os vossos apetites imundos.
A irmã foi logo atrás dela e disse:
- Vamos embora, Carolina, não discutas com essa gente. Já viste alguém tirar
água limpa dum poço sujo? No momento oportuno elas vão ter que explicar muita
coisa.
A Adelaide ainda tentou responder, mas debalde, porque a Margarida e a irmã
voltaram-lhes as costas e foram-se embora. Ficou furiosa e a barafustar por não ter
tido tempo de ripostar.

- Mas que desaforo, que falta de educação. Nunca na minha vida fui tão
ofendida. Ah!, mas isto não fica assim, elas não sabem com quem se meteram. Ainda
vão engolir em seco o que disseram. segunda-feira já vou falar com a directora da
creche para ficar a saber quem é que tem lá dentro, a desavergonhada, anda por aí a
oferecer o corpo a uns e a outros e ainda tem a lata de se armar em pudica. Como é
que uma criatura destas pode estar numa creche?
A Dolores mantinha-se aparentemente mais calma, mas estava aturdida com a
reacção da Margarida e da irmã, embora fosse apoiando sempre a amiga, mas no seu
interior começava a sentir alguma preocupação, principalmente quando viu formarem-
se ali mesmo ao seu pé, enormes nuvens negras, a anunciarem tempestade, a qual não
tardaria a eclodir e de certo, também a arrastaria, temendo agora não poder sair-se
tão bem como das outras vezes em que estivera envolvida.
Quando a Adelaide chegou a casa, ia mal humorada e desesperada, ansiosa por
descarregar a sua ira. A primeira vítima foi a empregada que logo que a viu foi ao
seu encontro, para lhe perguntar o que deveria fazer para o jantar, tendo ouvido
como resposta uma forte reprimenda.
- Você é uma incompetente, uma inútil! Não sabe o que é que costuma fazer ao
Sábado?
- Não é sempre a mesma coisa, minha senhora - respondeu a empregada cheia de
medo.
- Cale-se sua imbecil, sua bilhardeira, sua refilona! Vá já para a cozinha,
desapareça da minha frente.
De seguida, pegou numa jarra de porcelana cheia de flores, que estava numa
pequena mesa à entrada da sala e atirou-a para o chão, a qual ficou logo em cacos,
a água e as flores espalhadas por todo o lado.
Depois de ter saciado toda a ira, foi para o quarto, fechou a porta e atirou-se
para cima da cama, a pensar na melhor forma de tramar a Margarida.
A empregada ficou aterrorizada e magoada com a atitude que a patroa tivera com
ela. As lágrimas corriam em abundância pelas faces e pensava para consigo:

Que bicho lhe teria mordido, para me tratar assim? Nunca lhe fiz mal, coitada
de mim, trabalho aqui que nem uma escrava, nem tempo tenho para me coçar e ainda
por cima recebo esta paga. Até bilhardeira me chamou... Bilhardeira é ela que passa
a vida ao telefone a falar com as amiguinhas da mesma laia, a dizer mal de toda a
gente. Ah, mas se ela voltar a fazer-me o que me fez hoje, vou-me embora, ela que
faça o serviço com a ponta da língua que a tem grande. e serviço não me há-de
faltar, se Deus quiser.
Meia hora depois chegou a Sara, chamou pela mãe, mas ela não respondeu,
dirigiu-se para a cozinha e viu a empregada ainda com sintomas de ter chorado o que
a levou a perguntar-lhe:
- O que é que te aconteceu Ilda, estiveste a chorar?
- Foi a sua mãezinha que me ofendeu. Se voltar a tratar-me como me tratou hoje
vou-me embora. Cumpro com as minhas obrigações, faço o meu trabalho o melhor que
posso e sei, tento ser o mais educada possível para todos e ninguém tem o direito
de fazer de mim capacho - disse a Ilda levantando o tom de voz, mas educadamente.
- Mas o que é que a minha mãe te fez?
- Pergunte-lhe que ela sabe muito bem.
- Também não é preciso ficares assim. Onde é que ela está?
- Penso que está no quarto dela.
A Sara foi ter com a mãe e a empregada ficou a preparar o jantar, igual ao que
fizera no sábado anterior, mas sempre receosa que depois de estar pronto, a patroa
viesse dizer que não era aquele jantar que ela queria, mas estava preparada para
enfrentar a situação.
Quando a Sara entrou no quarto, a mãe estava encostada à cabeceira da cama, a
olhar para o tecto, com o penteado desfeito e os cabelos em desalinho a caírem
sobre a espádua como os da pecadora evangélica.
Assim que a viu, ficou um pouco assustada, embora soubesse que a mãe, de vez em
quando, tinha as suas crises passageiras, principalmente quando era contrariada,
mas nunca a vira como naquela situação. Sentou-se na beira da cama ao lado da mãe e
pediu que lhe contasse o que se passara com ela, para estar naquele estado.
A Adelaide começou a descrever à sua maneira o episódio que acontecera naquela
tarde. Algum tempo depois, estavam ambas envolvidas numa animada cavaqueira de
bilhardices, tendo como alvo principal a Margarida e a irmã.

Na segunda feira seguinte, a Margarida logo que chegou à creche, foi ter com a
Amélia, com quem tinha mais confiança pois era quem mais a defendia, quando diziam
mal dela nas suas costas e teve uma longa conversa com ela, a respeito dos boatos e
calúnias que andavam a levantar-lhe. Depois de ter tido a conversa com a colega,
ficou a saber tudo em pormenor e o motivo que levara a Amélia a não lhe dar
conhecimento mais cedo do que sabia; a Margarida achou a explicação correcta e a
atitude sensata, o que viria a reforçar ainda mais a estima e a amizade que tinha
para com ela.
Meia hora depois, a Adelaide entrou na creche para falar com a directora. Tinha
um ar sobranceiro e um sorriso triunfante. Era como se os seus caprichos e o seu
sadismo já estivessem satisfeitos e a sua malvadez saciada, antes de falar com a
directora.
A Margarida, ao vê-la entrar com aquele ar superior e irritante, sentiu um
fluido a percorrer-lhe as fibras e naquele rápido momento, teve uma sensação de paz
e tranquilidade, como que anunciar-lhe o fim do sofrimento e a chegada do
esclarecimento e da verdade. Agora já tinha em seu poder os elementos que lhe
faltavam e já tinha arquitectado a maneira de se defender e desmascarar, sem apelo
nem agravo, os seus detractores.
O mesmo já não se passava com a Dolores que vivia agora na incerteza, escudada
apenas naquilo que a Adelaide lhe dissera e nas artimanhas que imaginava para sair
de situações complicadas, tão ao estilo dos amantes da bilhardice.
A directora era uma senhora a rondar as quarenta primaveras, chamava-se Lurdes.
Era bondosa e humana, mas também era dura quando necessário e não tolerava a
mentira nem a hipocrisia. Quando lhe foram anunciar que a avó da Joana queria falar
com ela, mandou-a logo entrar para uma pequenina sala onde a iria receber.
Quando a Adelaide entrou, tinha o mesmo ar altivo e arrogante e olhou para a
empregada que lhe indicara a sala, com ar de patroa mandona, como se estivesse na
sua própria casa.

Enquanto a directora não chegava, ia observando um arranjo de flores que estava


em cima de uma mesa no centro da sala e ia enalando o aroma que delas emanava
Poucos minutos depois, entrou a directora, cumprimentou-a, mas ela ficou
sentada no mesmo sítio, sem esboçar o menor gesto de se levantar, para retribuir o
cumprimento.
A directora sentou-se e embora tivesse reparado na forma deselegante como a
Adelaide se comportara, com muita serenidade - disse-lhe:
- Então, diga lá dona Adelaide o que tem para me dizer?
- O que tenho para lhe dizer é muito grave. A senhora directora tem de tomar
medidas urgentes para evitar que a creche comece a ter má reputação.
- O que me está a dizer assusta-me. O que é que se passa assim de tão grave?
Não tenho conhecimento de qualquer caso que possa criar má reputação à creche, mas
já agora agradecia que me dissesse o que é, para tomar as minhas providências.
- Consta por aí que a educadora Margarida anda transviada dos valores morais.
Até se diz que já foi oferecer o corpo ao senhorio dos pais dela para perdoar a
renda da casa. Já reparou em que situação fica a creche quando os pais das crianças
souberem?
Ao ouvir aquelas palavras, a directora olhou para ela com cara surpreendida,
depois ficou a pensar um pouco e seguiu-se um pequenino interregno. Depois de ter
reflectido - disse -lhe:
- O que me está a dizer é bastante grave. Eu vou averiguar o que se está a
passar e depois em conjunto com a administração, tomaremos as medidas que se
impuserem.
- Mas não a põem já na rua? Vão permitir que ela continue ao serviço?
- Ó dona Adelaide, nesta creche somos muito rigorosos e severos com o nosso
pessoal. Quando nos fazem alguma acusação contra alguém e que essa acusação se
venha a provar, não estamos com contemplações, aplicamos logo as sanções de acordo
com a gravidade dos casos e sempre dentro do quadro legal, mas nunca punimos
ninguém, sem primeiro se provar da sua inocência ou culpabilidade.

- Quer dizer que não acredita no que eu lhe estou a dizer? Vem uma pessoa para
aqui para defender as crianças e a própria creche e ainda é tida como mentirosa.
- De maneira nenhuma estou a pôr em causa o que me disse, dona Adelaide. É de
facto muito grave o que me disse, e garanto-lhe que vamos tomar todas as
providências que a situação impõe, mas não pode ser de um momento para o outro.
- A senhora directora está é do lado dela, por isso é que não quer tomar já
agora essas medidas.
- Eu não estou do lado de ninguém. ,Estou do lado onde estiver a verdade.
A directora depois de dizer estas palavras, manteve-se em silêncio por alguns
segundos e depois de ter reflectido, retomou a conversa e disse-lhe:
- Já agora, para adiantarmos este caso, a dona Adelaide seria capaz de dizer,
por escrito, o que me está a dizer verbalmente.
- Era o que faltava! Já não basta a minha palavra e a minha preocupação, ainda
ter de escrever, isso não faço.
- Sabe, dona Adelaide, eu fiz-lhe esta pergunta porque a senhora diz que consta
e, constar é uma coisa e ter a certeza é outra, mas fique descansada que iremos
tomar as medidas urgentes que se impõem e ela terá a punição que merecer de acordo
com o que vier a ser apurado.
Depois de ouvir a directora, a consciência da Adelaide tacteou nas trevas e
ficou apavorada, por ver apagar-se subitamente o clarão que lhe iluminava o caminho
da maldade.

A amiga dela, que estava de atalaia, quando a viu sair, foi logo ao seu
encontro para saber como tinha corrido a reunião. Quando se aproximou e a viu de
semblante de Inverno como que anunciar o aproximar de uma enorme tempestade o olhar
desvairado e incônscio que parecia mais de loucura do que de indignação, ficou
estupefacta. O coração estremeceu e o corpo tremeu como varas verdes. Ela via o
muro onde costumava resguardar-se a ruir e, pela primeira vez, começava a
pressentir que os ventos que ela ajudara a semear se estavam a virar contra ela e
arrastá-la para os lodaçais da infâmia e da desgraça, nos quais tanto gostava de
ver os outros a sofrer, mesmo inocentemente, mas dos quais se salvava sempre.
- Então como é que correu o encontro? - perguntou a amiga.
- Não valeu a pena vir falar com ela. É "farinha do mesmo saco", mas isto não
fica assim, não é com atitudes destas que se defendem as crianças e a creche. Se
calhar vai acabar por ir também para a rua a fazer companhia à outra - disse a
Adelaide, irritada, mas já sem grande convicção. Apenas queria salvaguardar as
aparências perante a amiga.
- Mas o que é que ela lhe disse? - perguntou a Dolores.
- Agora não tenho paciência nem disposição para falar neste assunto. Aguarde
mais algum tempo para ver no que isto vai dar. Adeus, Dolores.
- Adeus, dona Adelaide.
A Margarida agora estava agitada e inquieta. Ia recapitulando tudo o que se
passara com ela, desde o dia negro em que estivera no escritório do senhorio.
Estava também ansiosa que a directora a chamasse para dar a sua versão dos factos
e, embora estivesse de consciência tranquila, estava inquieta e indignada com toda
aquela situação. Depois da Adelaide ter saído do gabinete da directora, ficou mais
calma porque a sua principal amiga lhe dissera que ela saíra de lá com cara de
aborrecida. Embora estivesse à espera de ser chamada nesse dia não o foi, mas ficou
convencida que não tardaria a sê-lo.
Depois da Adelaide ter saído, a directora sentou-se no sofá que estava ao lado
da sua secretária e ali ficou a meditar no que acabara de ouvir . A reflexão foi
enorme e veio finalmente dominar a tempestade que se levantara no seu interior.
Embora estivesse ciente que a denúncia era extremamente grave e delicada, a merecer
uma intervenção rápida mas cuidadosa, apercebeu-se também que havia muita sede de
vingança por parte da avó da Joana e o firme propósito de prejudicar a Margarida.

No dia seguinte, mandou chamá-la ao seu gabinete, para ficar a conhecer a sua
versão. Logo que entrou, os seus olhos pousaram no rosto plácido da Margarida, mas
facilmente se apercebeu do sofrimento que morava com ela. Depois mandou-a sentar e,
com ar escrutador - disse-lhe:
- Já deve calcular o motivo porque a mandei chamar.
- Infelizmente já, senhora directora. Faço ideia do que lhe têm dito a meu
respeito e como deve estar magoada comigo por pensar que traí a sua confiança. Eu
não me esqueço que foi com a ajuda da senhora directora que as portas desta creche
se me abriram, num momento em que eu tanto precisava de um emprego, para ajudar a
minha família.
- Não pense nisso. O que me disseram é bastante grave, mas seria injusto e não
ficaria bem com a minha consciência estar a condená-la sem primeiro se provar, ou
não a sua culpabilidade. É por isso que a chamei para me dizer o que se passou ou
está a passar consigo. Conte lá, estou aqui para a ouvir.
A Margarida não respondeu. Sentiu o coração oprimido e também não conseguiu
ficar sentada: ora de pé, ora sentada, intercalava o silêncio com exclamações de
dor e de mágoa.
A directora ao vê-la assim, falou-lhe com ternura e disse-lhe palavras de ânimo
e ficou ainda mais convencida que haveria muita bilhardice e muita maldade no meio
daquela história.
Ao ouvir as palavras da directora, uma enorme explosão de choro ,irrompeu do
seu interior e começou a chorar copiosamente todas as mágoas de tristeza e de
revolta que trazia dentro de si. Depois de muito ter chorado e de ter dado azo à
sua indignação e revolta, já mais calma, limpou as lágrimas e começou a descrever
tudo o que acontecera com o senhorio e o motivo que a levara a falar com ele. O
relato era tão circunstanciado e os factos tão evidentes que a directora apenas
ouvia sem fazer qualquer pergunta ou observação, limitando-se abanar a cabeça de
vez em quando em sinal de convencimento. Mas se alguma dúvida ainda persistisse,
ela dissipar-se-ia, quando a Margarida lhe pediu para que a Beatriz e a colega de
trabalho fossem ouvidas para confirmarem o que acabara de descrever.

O apelo feito pela Margarida foi feito com tanta serenidade e com tanta
convicção que fortaleceu ainda mais o espírito da directora em não acreditar na
história conforme lha tinham contado.
Quando a Margarida saiu do gabinete da directora, um longo suspiro de alívio
rompeu-lhe do coração e viu um enorme rasgão azul no céu tempestuoso daqueles dias.
Via já as águas que antes eram turvas a ficaram mais claras e estava na disposição
de tudo fazer, para que ficassem completamente límpidas, para pode calar as línguas
viperinas.
Ainda naquele dia, telefonou às amigas, a marcar um encontro para as pôr ao
corrente da nova situação e dar-lhes uma justificação por as ter indicado para
darem o seu testemunho, sem antes ter falado com elas.
No dia seguinte foi ao encontro delas para lhes falar mais pormenorizadamente
nos últimos acontecimentos. Depois de terem saído do trabalho, foram até um café
que estava próximo e ali ficaram imenso tempo a conversar. Quando a Margarida
terminou a sua narração, as amigas estavam estupefactas e simultaneamente
revoltadas por verem a pouca vergonha e a malvadez de algumas pessoas que não olham
a meios para atingir os fins, para denegrir o próximo. Mas, sentiam também alguma
felicidade por poderem ser úteis mais uma vez à sua amiga.
Agora a tempestade começava a amainar e a dar lugar à bonança. Restava apenas
esperar que a directora as chamasse, mas não tardou muito que isso viesse
acontecer. No dia seguinte, chamou a Margarida ao seu gabinete para lhe comunicar
que iria receber as suas amigas no sábado seguinte, se não houvesse qualquer
inconveniente por parte delas e para lhes dizer que estivessem na creche à melhor
hora que pudessem daquele dia.
A Margarida ,sabia que tanto a Beatriz como a colega estavam disponíveis a
qualquer hora, porque elas já lhe tinham manifestado essa disponibilidade e por
esse motivo pediu à directora para fixar a hora que achasse mais conveniente. Face
à disponibilidade das amigas da Margarida e atendendo que a hora que teria mais
disponível seriam as quinze horas, marcou para essa hora o encontro.

No dia combinado, à hora marcada, a Beatriz e a amiga estavam na creche. A


directora mandou-as entrar logo para o seu gabinete e pediu-lhes para contarem o
que sabiam a respeito do que se tinha passado entre a Margarida e o patrão delas.
A Beatriz, com ar calmo, mas com alguma revolta interior à mistura, pelas
calúnias que levantaram à amiga, começou a contar em pormenor tudo o que se
passara entre eles. À medida que ia descrevendo os factos, os seus olhos iam
ficando cada vez mais húmidos, às vezes apareciam algumas lágrimas ao canto dos
mesmos, principalmente quando se lembrava do que ele também lhe tentara fazer, mas
não chegavam a desprender-se, porque ela as limpava logo à saída da fonte. A Rosa
também intervinha de vez em quando, para corroborar as afirmações da colega e para
lembrar um ou outro pormenor que tivesse escapado.
Depois de terem dado o seu testemunho, a directora estava visivelmente chocada
com o que acabara de ouvir, mas não fez nenhum comentário, apenas se limitou a
perguntar-lhes:
- Estariam na disposição de repetir aquilo que me disseram na presença da
Margarida e de mais algumas colegas dela?
- Repetiremos as vezes que forem necessárias, desde que seja para defender a
verdade a honra e o bom nome da nossa amiga, vamos até onde for preciso, porque se
não se fizer já alguma coisa para travar esses meliantes e as coscuvilheiras que
por aí andam, qualquer dia não se pode sair de casa - disse a Rosa.

A directora, quando perguntou à Beatriz e à colega se estariam na disposição de


repetirem o que disseram, não era que tivesse ficado com alguma dúvida, mas tão
somente, para que as detractoras e defensoras da Margarida ficassem a saber, pelo
depoimento das verdadeiras testemunhas, a verdade dos factos e simultaneamente para
dar uma lição às caluniadoras, para não criarem mau ambiente dentro da creche e
deixarem à porta da mesma os mexericos e as bilhardices. Era uma oportunidade que
ela não queria perder e, por esse motivo, pediu a todas as funcionárias para
estarem presentes na segunda - feira seguinte, logo a seguir à saída das crianças
para as suas casas.
As funcionárias, embora suspeitando do motivo que levara a directora a convocá-
las, não tinham, porém, a certeza o que as levava a cochichar à boca pequena, o que
teria acontecido para serem convocadas todas ao mesmo tempo.
No dia e hora marcados, quando a directora as mandou chamar, pediu-lhes para se
sentarem na salinha de espera. Alguns minutos depois, saiu do gabinete ,juntamente
com a Beatriz e a colega. Ao vê-las sair, as intriguistas ficaram surpreendidas e,
se a curiosidade já era grande de saberem o que se passava, ainda passou a ser
maior, a partir daquele momento. O mesmo já não se passava em relação às defensoras
da Margarida que já as tinha prevenido antecipadamente.
A directora fez um pequeno intróito para justificar o motivo por que as mandara
chamar e depois de ter tecido alguns considerandos relacionados com a reunião,
entrou no assunto que originara aquela tomada de posição.
- Devem ter ficado surpreendidas e feito muitas interrogações a respeito desta
reunião, mas era necessário e urgente que a mesma se realizasse, para acabar com os
boatos e calúnias que por aí andam contra a Margarida e para evitar que ainda se
alastrem mais. Se há coisas que eu detesto são a bilhardice, a calúnia e a
hipocrisia. Elas são causadoras de mal estar nos lares, nas famílias e na
sociedade. Mas, o que é mais grave, muitas vezes são como as mofinas, não têm
autor, vão-se espalhando por todo o lado, alimentadas por gente mal intencionada
que se esconde no anonimato, sem se saber a quem pedir responsabilidades.
No entanto, enquanto a verdade não chega, vão causando sofrimento e muitas
vezes destruição a vítimas inocentes. Essa praga, infelizmente, já conseguiu entrar
no nosso meio e prejudicar o bom ambiente que sempre se viveu nesta creche. Mas
temos de a erradicar o mais urgente possível, para bem da própria creche e de todos
nós.

Todos sabemos o que por aí se diz da Margarida à boca pequena e é por esse
motivo que pedi a estas testemunhas para dizerem, na vossa frente, tudo o que já me
disseram, para se acabar de uma vez por todas com as coscuvilhices, as calúnias e
as suspeições, para que reine a harmonia entre todos e um bom ambiente de trabalho,
porque é isso que eu quero e penso também que é o que todos queremos. Mas se houver
alguém que não esteja de acordo só tem duas coisas a fazer: ou arrepiar caminho, ou
ir desestabilizar para outro lado, porque aqui não tem lugar.
Depois num tom sereno mas firme, pediu à Beatriz e à colega, para contarem
novamente tudo o que se passara entre a Margarida e o patrão delas.
A Beatriz começou a descrever todo o drama porque passou a Margarida e, à
medida que ia descrevendo os factos, o semblante da Dolores, ia deixando
transparecer uma enorme inquietação interior. Embora tentasse disfarçar o mais que
podia essa inquietação não o conseguia na totalidade, o que deu azo a que os
olhares se voltassem para ela de vez em quando, alguns de soslaio, mas outros,
principalmente o das colegas defensoras da Margarida, eram frontais, com ar de
revolta. A certa altura da narração, quando a Rosa foi em auxílio da colega
corroborar o que dissera e a lembrar alguns pormenores que não tinham sido
descritos, uma amiga da Margarida não se conteve sem dizer:
- Há certas pessoas que têm a língua suja de mais. Se a pusessem uma semana de
molho, fazia-lhes muito bem. Assim já não manchavam a vida de muita gente, com a
sua sujidade.
- Uma semana é pouco. Devia ser era um mês e a água devia ser à mistura com
lixívia, para ficar mais bem lavada - disse a Amélia que estava mesmo ao lado.
Houve sorrisos, uns amarelos outros sarcásticos.
A directora, embora também tivesse vontade de rir, fez um enorme esforço para
não exteriorizar o que sentira interiormente, manteve a mesma postura, exigiu
silêncio e pediu à narradora para continuar a descrever os factos.
Quando a Beatriz terminou a narração, os olhares cruzaram-se, uns mais altivos,
outros mais cabisbaixos. O relato dos acontecimentos era tão pormenorizado e os
factos tão evidentes, que não deixaram a menor dúvida, fosse a quem fosse, da
inocência da Margarida.

A Dolores apercebendo-se da acusação que lhe era dirigida, não por palavras,
mas por olhares, sentiu necessidade de se justificar para "sacudir a água do
capote" e disse:
- Há colegas que olham para mim como se eu fosse a causadora de tudo o que
aconteceu à Margarida, mas eu não sou culpada de nada. Pelo contrário, até tenho
andado bastante preocupada e com pena dela, por tudo o que lhe aconteceu, porque
não merecia ser assim tratada.
Quando a Dolores disse estas palavras," o caldo entornou-se", a Margarida
lançou-lhe um olhar de repúdio e indignação e quase todas as colegas queriam falar
ao mesmo tempo.
- Coitadinha! Agora estás com muita pena da Margarida. Não foste tu a causadora
do que lhe aconteceu, mas contribuíste imenso ,para que a calúnia se propagasse. Em
vez de deitares água na fogueira, deitaste gasolina para a incendiares ainda mais.
Quem não te conhece que te compre - disse a Amélia.
- Óh Amélia, ela é tão boazinha que só falta lavarem-lhe os pés e colocá-la no
altar! - disse a colega que estava em frente.
- E a língua - disse outra colega que estava ao canto da sala, até então muito
sossegadinha.
- Pronto! Vamos acabar com isso - disse a directora.
Embora não concordasse com aquele tipo de linguagem, entre colegas, apercebeu-
se que naquele momento seria bastante útil porque servia para dar uma lição às
caluniadoras por estarem a ouvir a mesma linguagem que elas tanto gostavam de
utilizar, para denegrir vítimas inocentes e ao mesmo tempo servia de dissuasão, por
pensar que futuramente iriam ter mais cuidado com o que diziam.
Depois de esgotadas as piadas e com um ambiente mais sereno, voltou-se para a
Dolores e muito calmamente perguntou-lhe:
- Como é que a Dolores soube essas coisas que andaram a dizer da Margarida? Foi
a avó da Joana que lhe contou?

- Foi, senhora directora. Ela disse que o senhorio da Margarida, esteve a


contar à filha.
- À qual? Á casada ou à solteira? - interrompeu a Margarida.
- À solteira, à Sara.
- Continue! O que é que o senhorio lhe contou? - perguntou a directora.
- Contou-lhe que a Margarida foi lá pedir-lhe para que ele perdoasse as rendas
de casa em atraso e só não fez amor com ela porque ele não quis, mas ela estava
disposta a tudo.
A Margarida, ao ouvir aquelas palavras, não se conteve e exclamou:
- Que grande patife! É bem ranhoso! Tudo fez para me desgraçar e ainda
se arma em pudico. Ainda acaba por ir parar à cadeia e mais alguém que tem andado a
espalhar a mentira e a calúnia. Eu logo vi que a menina Sara andava metida nisso,
mas agora tenho a faca e o queijo na mão, posso cortar por onde quiser.
Quando a Margarida proferiu estas palavras, as faces da Dolores ficaram
vermelhas. Os pensamentos que lhe ocorriam eram de medo e a única coisa que
desejava naquele momento era sair dali o mais depressa possível e jurar a si mesma
que já não se metia em mais embrulhadas. Era a consciência a desvendar-lhe a
realidade e a alertá-la para as consequências nefastas que poderiam vir do seu
comportamento.
A Margarida, embora magoada, sentia também alguma felicidade por ver reposta a
verdade e a justiça, depois da dura e cruel luta que travara.
Quando a reunião terminou, a directora, embora mantivesse sempre a mesma
postura, no seu interior reinava uma grande tranquilidade e uma enorme satisfação,
por ver os seus esforços a produzirem os frutos desejados. Ela estava convicta que
o bom ambiente regressaria de novo à creche: os conselhos que dera e os recados que
deixara seriam suficientes para dissuadir as alcoviteiras e os alcaiotes de levarem
ditos e mexericos para dentro da creche. A missão estava cumprida, restava apenas
aguardar pelos acontecimentos.

Na véspera da reunião, a Dolores tinha telefonado à Adelaide a dar-lhe


conhecimento da mesma e a manifestar-lhe a sua preocupação pelo facto de terem sido
convocadas todas as colegas para estarem presentes, o que a levara a pensar que
estaria relacionada com a Margarida e era isso que a preocupava. Embora a Adelaide
a tivesse tranquilizado, também ela ficou apreensiva, por começar a ver a situação
a fugir-lhe do controlo e a recear que tomasse proporções inesperadas e isso
preocupava-a, embora não o demonstrasse, por saber que não tinha grandes hipóteses
de sair ilesa. Além disso, também temia a reacção do marido que já a tinha chamado
à atenção algumas vezes, por não gostar nada que ela andasse sempre com mexericos.
Por esse motivo, estava ansiosa por que a Dolores lhe telefonasse, para saber como
correra a reunião.
Ainda na tarde daquele sábado, a Dolores telefonou-lhe a dar conta como
correra. Depois de ter descrito tudo e ter dito que a Margarida iria apresentar
queixa contra o Hugo e contra elas por difamação, ainda mais preocupada ficou: não
que estivesse arrependida de ter andado a espalhar a infâmia e a mentira contra a
Margarida, mas tão somente por ver já muito perto dela o lume e sem hipóteses de o
controlar sem se queimar. Por mais que tentasse arranjar argumentos para dar volta
à situação, não o conseguia. Em vez disso, sentia-se encurralada e sem saber como
sair daquela encrenca. Era como se uma voz lhe estivesse a segredar constantemente
ao ouvido:
- Tens andado a semear ventos, agora irás colher tempestades, tens uma planta
ruim dentro de ti que braceja os ramos para o coração puro de vítimas inocentes,
para as enlear e muitas vezes para as destruir. Se não a arrancares imediatamente
pela raiz, ver-te-às enleada e destruída por ela.
Naquele momento, sentia um enorme receio por tudo o que viesse a acontecer,
mas não podia fazer mais nada, senão aguardar pelos acontecimentos e ter mais
cuidado com as conversas que fazia e com as palavras que utilizava.

Quando saíram da reunião, a Beatriz estava ansiosa por saber se a Margarida


iria participar de quem a andara a caluniar, conforme ameaçara na reunião e não se
conteve sem lhe perguntar:
- Olha lá Margarida, sempre vais participar do tarado do meu patrão e das
outras bilhardeiras?
- Não, eu só disse aquilo para lhes pregar um susto, porque o que eu pretendia
era demonstrar a minha inocência e deixar a ideia de que poderia participar deles,
mas não deixei a certeza. Felizmente isso consegui e agora estou convicta que o
facto de ter deixado no ar a ameaça de que iria participar, servirá de freio para
terem mais cuidado com a língua em relação a mim.
- Com estas provas todas porque é que não participas? - perguntou a Rosa.
- Eu já reflecti imenso no assunto e cheguei à conclusão que seria mais útil
não participar.
- Porquê? - perguntou de novo a Rosa.
- Infelizmente vivemos numa sociedade injusta que se diz moralista, mas a moral
é só para uns, não é para todos. Quando se trata de avaliar comportamentos
idênticos, utiliza dois pesos e duas medidas e nós somos sempre as prejudicadas.
Mas o que é mais triste, em vez de estarmos unidas para inverter a situação,
estamos sempre umas contra as outras e isso prejudica-nos imenso e nestas coisas de
amor e de honra, temos de ter muito cuidado. Um rapaz pode namorar várias raparigas
ao mesmo tempo e até abusar delas. Nunca é hostilizado e às vezes ainda anda nas
bocas do mundo como um herói e um machão. Mas se for uma rapariga a ter um deslize,
atiram logo com ela para a rua da amargura, apelidando-a de tudo o que é mais
indecoroso. Se eu fosse com a participação para a frente, não tenho dúvidas que
eles eram condenados, mas eu também era capaz de ficar chamuscada.
- Como? Era o que faltava, depois de teres sido tratada da maneira que foste,
como é que é possível seres prejudicada? - disse a Rosa.

- É muito simples, tinha que haver um julgamento. Embora fosse à porta


fechada, mais pessoas iriam ter conhecimento do que se passou e mesmo estando
inocente, aparecia sempre alguém a lançar a suspeição e o boato, mesmo sabendo que
estava inocente, só para satisfazer os seus caprichos de malvadez e quando o boato
e a calúnia se espalham, é difícil estancá-los, porque encontram sempre eco nas
pessoas bilhardeiras e mal intencionadas, sempre prontas a propagá-los e eu estava
sujeita a ver-me de novo envolvida em calúnias e boatos, que só me prejudicariam.
Eu não quero assim. Tenho quase a certeza que o outro tarado e as bilhardeiras
ficaram assustados. Vão ficar caladinhos e o assunto fica encerrado, porque ninguém
mais fala nele.
- Assim, eles ficam a rir-se, fazem o que querem e nunca lhes acontece nada -
disse a Rosa.
- És capaz de ter razão, mas há casos e casos, todos têm histórias diferentes e
têm que ser bem estudados e ponderados. Todas têm resoluções diferentes. Alguns
acabam mesmo em tribunal e era o que aconteceria com o meu se os caluniadores não
fossem desmascarados.
- A Margarida tem razão. Quando o louco tentou abusar de mim, eu e os meus pais
pensámos muito se havíamos de participar dele, mas chegamos à conclusão que não era
a melhor solução. Mais cedo ou mais tarde, tanto os tarados como os caluniadores
acabam sempre por responder pelos seus actos - disse a Beatriz.
Quando a amiga acabou de proferir estas palavras, algumas lágrimas soltaram-se
dos olhos da Margarida, a qual se apressou logo a limpá-las com a mão, de modo a
que as amigas não vissem, mas os vestígios que as mesmas deixaram eram demasiado
evidentes e a Rosa não se conteve sem lhe perguntar:
- O que é isso Margarida. Agora que conseguiste provar a tua inocência e
desmascarar os caluniadores é que estás assim?
- Não é nada! Quando a Beatriz falou do pai dela, senti uma coisa no coração e
lembrei-me do meu por ver a falta que me tem feito, mas agora já está tudo bem, só
espero que não apareçam mais problemas. Para sofrimento já chega.

- Se Deus quiser, já não vão aparecer mais," não há mal que sempre dure, nem
bem que sempre ature" - disse a Beatriz.
Dali foram até ao café Apolo, onde passaram o resto da tarde a conversar.
Quando foram para casa já o dia estava a dar lugar à noite. A Carolina estava
nervosa e ansiosa que a irmã chegasse, para saber como tinha corrido a reunião, mas
tentava disfarçar o mais que podia para que a mãe não se apercebesse de nada. Ao
contrário do que era costume, desde que o pai partira para França, passou a tarde a
cantarolar e a fazer partidas à mãe.
Naquele dia, cabia-lhe passar a roupa e nos intervalos em que não estava a
passar, entretinha-se a fazer partidas: umas vezes escondia-lhe objectos de cozinha
outras, puxava-lhe o laço do avental, o qual caiu ao chão algumas vezes, o que
levara a mãe a discordar, mas sempre a gracejar, com as partidas que lhe fazia.
- Não tens mais nada que fazer, senão andares a desatar-me o avental?
- Não. É para ver se arranjo trabalho, assim o avental de tanto cair ao chão
fica sujo e depois vou lavá-lo e assim já não perco o emprego.
- Brincalhona, vai mas é passar a ferro, senão daqui a pouco chega a tua irmã e
ainda tens muita roupa por passar e vai ficar admirada por demorares muito mais
tempo do que ela a passar a mesma roupa - disse a mãe a sorrir.
A Carolina foi de novo a passar ferro, mas voltava de vez em quando para fazer
partidas. Quando a irmã chegou, sorridente e com um ar jovial, disse para a mãe.
- Ora viva quem é a flor mais linda da Madeira?
A mãe sorriu e respondeu:
- Hoje é do dia. A tua irmã passou a tarde a atentar-me e a imitar a cigarra,
agora vens tu com a tua poesia a completar a parodia. "Quando a esmola é muita, o
pobre desconfia". O que é que se passa convosco para estardes assim?
- Ora o que é que se passa? Não se passa nada, mas agora que já sabemos que o
pai está bem e a vida a correr-nos melhor, o nosso estado de espírito também se
alterou.

- Tens razão! não fazes ideia como eu me sinto feliz, por vos ver assim alegres
e por saber que a vida já nos começou a sorrir outra vez. Felizmente que já estamos
fora dos pesadelos e a ultrapassar os problemas.
A Carolina, que entretanto ouvira a irmã na cozinha, dirigiu-se para lá e sem
que a mãe se apercebesse, fez-lhe sinal e como estava ansiosa por falar com ela,
piscou-lhe o olho sem a mãe ver e depois disse-lhe:
- Ó Margarida, bem podias ir ajudar-me a passar o resto da roupa que falta. Já
estou farta de passar e ainda não cheguei ao fim.
- Hoje, a tua irmã em vez de fazer como a formiga, passou a tarde a imitar a
cigarra, a puxar-me o laço do avental e agora vem pedir-te ajuda. Até é uma
vergonha demorar tanto tempo a passar tão pouca roupa e nem sequer a passou toda.
- Ó mãe, hoje não estava nos melhores dias para trabalhar.
- Era só para asneira, mas ide lá acabar de passar o resto da roupa! - disse a
mãe a sorrir e com uma enorme alegria interior por ver as filhas tão bem dispostas.
Foi o que elas queriam ouvir. Assim já podiam estar mais à vontade para falar
da reunião. Depois da Margarida ter contado o que se passara e depois de terem
passado a roupa que faltava, foram de novo ter com a mãe, sempre alegres e
brincalhonas, como se nada tivesse acontecido. Sentiam também uma grande felicidade
por a terem poupado a mais um desgosto.
Aos poucos, a paz e a tranquilidade iam-se instalando na casa do Leonel. As
nuvens negras que ali costumavam pairar, afastaram-se por completo, para darem
lugar a um céu límpido e a um horizonte mais claro; os golpes e as aflições que ali
se instalavam com frequência deixaram de existir e deram lugar ao sossego e à
felicidade. A Matilde, que se deixara abater pela angústia e pelo desespero,
reergueu-se quase das cinzas com enorme vigor.
As filhas que traziam com elas um ar de tristeza e de sofrimento, voltaram a
sorrir e a exteriorizar a sua alegria.

O pai, que tanto sofrera para chegar a França, via agora o sonho a realizar-se;
do fruto do seu trabalho e da vida apertada que fazia, já estava a pagar as dívidas
e a enviar algum dinheiro para a família. É certo que ainda não chegava, mas já era
suficiente para fazer face às principais despesas da casa. A par destes
acontecimentos, havia um que lhe causava bastante receio, mas também lhe trazia
alguma alegria por fazer aumentar a esperança de poder ir a Portugal, mais cedo do
que esperava.
Corriam rumores entre a comunidade portuguesa que o regime implantado já não
iria durar muito tempo, porque começava a ser contestado mais abertamente pelos
opositores do governo e que a instabilidade dentro de alguns quartéis começava a
fazer-se sentir. Dizia-se também que já havia um grupo de oficiais descontentes com
a situação que reunia secretamente, para modificar o rumo dos acontecimentos.
O Leonel tinha receio que o país fosse arrastado para uma guerra civil e
houvesse algum banho de sangue entre a população; mas também sentia alguma alegria,
porque se dizia que os opositores do governo, logo que tomassem o poder, iriam
arquivar os processos que tinham sido instaurados contra os emigrantes clandestinos
e iriam legalizar todos os que se encontravam em situação ilegal, o que lhes
permitiria irem à sua terra quando quisessem, sem estarem sujeitos a quaisquer
sanções e sem barreiras nem obstáculos.

Logo que a Margarida e a irmã tiveram conhecimento da direcção do pai, foram


logo ao escritório do advogado dar-lhe a notícia. Quando ali entraram, iam com ar
jovial, a deixar transparecer a alegria que morava com elas, em contraste com a
tristeza que levavam no primeiro dia que ali entraram, o que não passou
despercebido ao causídico, o que o levou a dizer-lhes:
- Ainda não me disseram o motivo que as traz por cá, mas pelo vosso semblante,
não é difícil adivinhar que me trazem boas notícias.
- Tem razão, Sr. Dr. trazemos-lhe boas novidades - disse a Carolina.

- Digam-me lá então que novidades são essas?


- Já temos a direcção do meu pai, felizmente já está em França a trabalhar -
respondeu a Margarida.
- Muito bem, fico muito feliz com essa novidade e por saber que já terminou o
vosso sofrimento. Agora, fica afastado o perigo de saírem anúncios no jornal. Ainda
hoje vou fazer um requerimento ao processo, a dar conhecimento da direcção do vosso
pai.
- Agora já ninguém fica a saber da nossa vida e, como o Sr. Dr. sabe, há por aí
muita gente mal intencionada, que só se sente bem com o mal alheio. Tenho a certeza
que se aproveitavam logo da situação, para denegrir a imagem da nossa família -
disse a Margarida.
- Isso é verdade, mas não vão ter oportunidade.
- O Sr. Dr. acha que agora já não há mais problemas?
- Problemas há sempre, menina Carolina, só que agora são mais fáceis de
solucionar. Estou convencido com as provas que temos, a acção irá improceder, mas a
última palavra pertence ao meritíssimo juiz.
Depois de terem ouvido o advogado, tanto a Margarida como a irmã ficaram ainda
mais tranquilas, por terem a certeza que não sairiam no jornal os tão indesejáveis
anúncios. Com o mesmo ar jovial, despediram-se do causídico e foram para casa.
Quando ali chegaram, a mãe já estava à espera delas, ansiosa por saber as notícias
que levavam do advogado, porque receava que já não fosse possível evitar a
publicação dos mesmos e era isso que ela mais temia. Mas quando as filhas lhe deram
a boa notícia, um suspiro de alívio rompeu do seu interior e algumas palavras
soltaram-se-lhes dos lábios:
- Deus seja louvado! Não imaginais como andava aflita, com medo de que já não
fosse possível evitar os anúncios e receava que de um dia para o outro, aparecesse
a notícia no jornal a dizer que tínhamos uma acção de despejo. Graças a Deus, agora
os nossos problemas estão a ficar resolvidos e a nossa vida está outra vez a
sorrir.
Depois de terem jantado e já no quarto, a Carolina disse para a irmã:

- Foi mesmo bom a mãe não ter sabido da história da creche. De certeza que se o
soubesse, não andava tão bem disposta.
- Era capaz de ter ido para o hospital, mas agora mesmo que o venha a saber, já
é diferente, já não tem aquele impacto como se fosse ao princípio e além disso
agora estamos mais preparadas para a esclarecer e tirar-lhe qualquer dúvida que
possa subsistir - disse a Margarida.
- Mas vais contar-lhe? - perguntou a irmã.
- Vou, mas por agora ainda é cedo, não achas?
- Penso que fazes bem esperar mais algum tempo até as águas assentarem
completamente. O pior é se a mãe vem a saber por outra pessoa...
- Acho que não vai saber e se alguém lhe disser também não faz mal. Eu explico-
lhe o motivo por que não lhe disse logo e estou convicta que ela vai aceitar bem.
- Tens razão, Margarida
Depois de relembrarem mais alguns episódios que se passaram, durante a ausência
do pai, já a noite ia bastante avançada, quando o sono as obrigou a interromperem o
diálogo.

Os dias iam passando e com eles voltava a normalidade. Para que isso
acontecesse, muito contribuiu o procedimento da directora que logo a seguir à
reunião, chamou ao seu gabinete a Dolores e fez-lhe sentir que o ambiente da creche
tinha de ser puro, como a pureza das crianças e que quem não comungasse dessa ideia
devia arrepiar caminho para não perturbar a paz, a tranquilidade e para não poluir
o ambiente, com atoardas e maledicências. Fez-lhe ainda sentir que a partir daquele
momento passava a ter sobre a sua cabeça a espada de Dâmocles, pronta agir à mais
leve perturbação causada por ela.

A Margarida embora gostasse imenso do seu trabalho e apesar de tudo ter voltado
à normalidade não sentia a mesma alegria do tempo anterior aos acontecimentos.
Falava com as colegas, como se nada se tivesse passado, mas a ferida que se abrira
no seu coração era profunda e o contacto com uma das principais caluniadoras, nada
contribuía para que a mesma cicatrizasse mais depressa. Por esse motivo, começou a
pensar em tirar o magistério primário para seguir a carreira de professora, porque
era essa a profissão que mais a seduzia depois de ter tomado o gosto pelo ensino e
ter desistido da ideia de ir para a universidade. Se bem o pensou, bem o fez.
Depois de se ter aconselhado com os pais e ter feito uma longa exposição verbal à
directora a esclarecendo os motivos que a tinham levado a tomar aquela atitude,
matriculou-se na escola do magistério primário.
Algum tempo depois, estava a frequentar aquele estabelecimento de ensino e não
lhe foi difícil adaptar-se aos novos métodos de ensino, nem assimilar a matéria que
ali era ministrada, porque estudava com entusiasmo e aprendia com amor.
Com a sua maneira de estar na vida, com o sorriso puro e jovial, longe da
frivolidade e do tédio, não lhe foi difícil arranjar um grupo de amigos.
Entre esses amigos, havia um colega que começou a simpatizar com ela, embora
dentro do grupo houvesse outra rapariga que gostava imenso dele. Saiam muitas vezes
juntos. Ele não a repelia nem a animava, mas ia-lhe criando a convicção de que não
tardaria muito a fazer-lhe a declaração de amor.
O Carlos era um rapaz de estatura média, olhos castanhos, pele fina, vestia com
elegância, era sociável sem mundanidade e tolerante sem fraqueza; a sua
adolescência passara-a num seminário e isso contribuiu para que ainda se lhe
notasse, às vezes, algum retraimento monacal. Ouvia as confidências de uns e
animava as esperanças de outros, mas nunca abria o coração à curiosidade dos
alcaiotes.

À medida que o tempo ia passando, a convivência com a Margarida ia aumentando.


De vez em quando, olhava para ela de modo a que os seus olhos não fossem apanhados
pelos dela e quando contemplava a sua beleza, parecia-lhe ainda mais deslumbrante.
O sorriso aberto e jovial, caldeado com alguma ternura, trazia-lhe um sentir que
nunca sentira antes. O amor platónico que lhe tinha ao princípio começava a dar
lugar a uma paixão ardente.
Ela mantinha o mesmo comportamento de amizade e essa atitude retraia-o
bastante, porque o seu coração não conseguia arranjar coragem suficiente para
sussurrar uma única palavra amorosa, nem para lhe lançar um olhar que a pudesse
fazer corar ou reagir.
Aos poucos, ia-se afastando da Conceição e tentava aproximar-se cada vez mais
da Margarida, mas esse comportamento não passava despercebido à Conceição que
começava a sentir algum ciúme e alguma inimizade contra a colega. Via-a já como uma
intrusa no seu caminho.
Ele passou a ser mais solícito com ela e rodeava-a de atenções. Quando se
sentavam a uma mesa do café, fazia o possível para ficar ao lado dela e quando
havia alguma discordância sobre qualquer assunto em que a Margarida fosse
interveniente directa apoiava a sempre. Esta mudança de comportamento facilmente
lhe chamou a atenção e levou-a a concluir que já não era só amizade que ele sentia
por ela. Embora também gostasse dele, não queria atravessar-se no caminho da
colega, por saber que ela andava interessada nele, mas também sabia que ainda não
tinha conseguido despertar-lhe o coração do sono profundo em que se encontrava.
Os dias iam passando e, começava a notar-se uma diferença de comportamento da
Margarida em relação ao Carlos. Depois de o ver cada vez mais afastado da colega
era mais atenciosa e já não o repelia, como as primeiras vezes em que ele se
aproximara dela, embora timidamente.
Essa mudança de comportamento levou-o a recuperar algum alento perdido e a dar-
lhe a coragem suficiente para levar por diante os seus intentos. A primeira ideia
que lhe ocorreu foi a de lhe escrever uma carta, mas chegou à conclusão que não
seria o ideal, atendendo a que falava com ela quase todos os dias e se tomasse essa
atitude iria demonstrar uma certa fraqueza por não ter tido a coragem de lhe dizer
frontalmente olhos nos olhos, o que lhe ia no coração.

Depois de muito pensar, resolveu convidá-la para almoçar num restaurante que
ficava próximo da escola. Se bem o pensou, bem actuou. Ainda naquele dia resolveu
convidá-la para o dia seguinte, convite esse que ela aceitou com muito agrado.
No dia e hora marcada, quando chegaram ao restaurante, foram ocupar uma mesa
mais recatada que ficava ao fundo da sala, conhecida pela mesa dos pombinhos, a
qual estava reservada para eles porque o Carlos já tinha entrado em contacto com o
gerente para lha reservar.
A Margarida ia formosa como ele nunca a vira: as faces, levemente rosadas,
tinham aquele macio que os olhos entendem antes das mãos se tocarem; levava um
vestido encantador que lhe assentava muito bem, o qual desenhava com naturalidade
os contornos delicados e graciosos do busto.
Logo que se sentaram, o Carlos com ar apaixonado disse-lhe:
- Vens linda como nunca te vi!
- Obrigado pelo elogio, mas sinto que não o mereço.
- Mereces e muito mais. Não calculas como estou feliz.
- Porquê?
- Pela tua companhia.
- Mas já a tens tido mais vezes.
- É verdade, mas em comum com os nossos colegas o que é bem diferente.
Entretanto chegou o empregado com a ementa, o que os levou a interromper o
diálogo. Depois de terem escolhido o prato favorito e quando o empregado se
retirou, o Carlos olhava para ela com um olhar doce a anunciar-lhe a voz do
coração.
Naquele momento, os olhares substituíram as palavras e por um longo momento
houve silêncio entre ambos, durante o qual, ele tentava o contacto com as mãos dela
e quando o conseguiu, ela inclinou-se um pouco para trás, ao mesmo tempo que lhe
dizia:
- Porque é que há bocadinho disseste que estares sozinho na minha companhia é
diferente do que quando estamos com colegas?
- É porque te amo e estou pronto para te fazer feliz por toda a vida, se
aceitares o meu amor e a minha estima.

Quando ouviu aquela palavra, a Margarida manteve-se em silêncio. Ele insistiu:


- Será que sou merecedor de ocupar o teu coração ou já pertence a outro?
Seguiu-se novo silêncio. Depois, ela olhou para ele com ar apaixonado e com voz
doce disse-lhe:
- Não, não pertence a outro. Já pertenceu mas agora está livre, podes ocupá-lo.
Ao ouvir aquelas palavras, ele sentiu uma enorme alegria e uma sensação
estranha. Era como se os anjos tivessem vindo do céu e ali estivessem em seu redor,
com enormes trombetas a anunciar a boa nova, ao mesmo tempo que sentia os lábios a
tremer, desejosos de se colarem aos dela.
Ela comungava da mesma alegria e via-se já de mãos dadas, a passear com ele no
caminho da felicidade.
Um momento depois, ele voltou a inclinar-se para a beijar, mas desta vez foi
diferente. Ao contrário do que acontecera anteriormente, ela em vez de inclinar o
corpo para trás, inclinou-o para a frente e foi ao encontro dos lábios dele. Quando
se tocaram, enlearam-se num profundo e apaixonado beijo.
Depois de trocarem entre eles as mais lindas palavras de amor, foram falando de
diversos temas. A conversa era tão agradável que nem deram pelo tempo. Só se
aperceberam que já era tarde quando notaram que as pessoas que tinha ido a almoçar
já tinham saído todas. Foi então que a Margarida olhou para o relógio e exclamou:
- Meu Deus, já são duas e meia. Lá foi a aula!
- Não te preocupes, o feriado de hoje é o melhor feriado da nossa vida, o tempo
que perdemos hoje recuperamo-lo amanhã.
- Em toda a minha vida de estudante este é o terceiro ou o quarto feriado que
dou, nunca gostei de dar feriados porque quem fica a perder somos nós.
- Eu também, deve ser o quinto ou sexto. É mais uma razão para estarmos
descansados. Não há perigo de chumbarmos por faltas, somos uns alunos responsáveis.
Hoje foi uma excepção e já que não podemos ir à aula podemos dar uma volta - disse
ele com um sorriso nos lábios.

- Boa ideia! Mas não podemos ir para muito longe, porque a minha irmã ficou de
se encontrar comigo às dezasseis horas e não quero que ela chegue e não me
encontre.
- Está bem, vamos devagar até lá.
Quando saíram do restaurante, a tarde estava escura ameaçar chuva, mas eles
viram-na viva e clara, como se o sol estivesse a brilhar sem nenhuma nuvem pela
frente. Sempre de mãos dadas, percorreram algumas ruas e travessas, a té chegarem à
escola.
Quando ali chegaram, levavam estampada no rosto a alegria que lhes ia no
coração. Os colegas estavam a sair da aula e quando os viram ficaram admirados por
terem faltado e por os verem de mãos dadas, apaixonados.
Quem não gostou nada de os ver assim, foi a Conceição que estava convencida que
o coração do Carlos, quando se abrisse, seria só para ela e para mais ninguém.
Embora tentasse disfarçar a sua indignação à mistura com uma enorme onda de ciúme,
não o conseguiu totalmente. Apesar do seu semblante não deixar transparecer
qualquer sinal da revolta que tumultuava no seu interior, o mesmo já não se passava
em relação à urbanidade do seu comportamento, que se tornara mais agressivo, sem no
entanto atingir a raia da indecência ou da má educação. Agora via a Margarida como
uma inimiga e uma intrusa que aparecera no seu caminho, a roubar-lhe o amor da sua
vida.
Naquele momento, o pensamento perdera a habitual placidez, o coração começava a
bater com mais celeridade. Eram as energias latentes de um amor comprimido mas
intenso, a manifestarem-se e a provocarem um grito de rebelião no seu interior
contra a Margarida.
Quando deixou os colegas e se dirigiu para casa, ia aterrada, tacteava nas
sombras e desviava o olhar quando algum clarão da realidade se acendia ao longe,
para lhe iluminar o espírito e desviá-la daquela obsessão doentia de se vingar da
Margarida.

Logo que entrou em casa, correu para o seu quarto e atirou-se para cima da
cama. Ia colérica e inconformada. Puxou o fecho do vestido até ao fundo, dando azo
a que o jovem seio ficasse livre da casta prisão e pudesse desafogar-se dos
suspiros que o enchiam. Depois chorou. Chorou muito. Chorou lágrimas de dor, mas
também de indignação e de vingança.
Quando as lágrimas secaram e os suspiros começaram a ser mais compassados,
algumas palavras de revolta e de ciúme soltaram-se-lhe dos lábios e ecoaram pela
casa, mas ninguém as ouviu, porque a mãe e o irmão ainda não tinham chegado e o pai
estava na Venezuela.
- Hás-de pagar o que me fizeste! Não vais ficar com ele, custe o que custar.
Perdi esta batalha, mas não hei-de perder a guerra.
A Margarida, embora se tivesse apercebido da indiferença como a Conceição lhe
falara e do sorriso irónico que se lhe desenhara nos lábios, estava com a
consciência tranquila, por saber que não tinha feito nada para a prejudicar,
limitando-se aceitar o amor livre e espontâneo do Carlos.
A Carolina quando os viu, não ficou surpreendida, porque a irmã já tinha
levantado um pouco a ponta do véu a respeito do novo amor e já suspeitava que o
enlace poderia dar-se a qualquer momento. Depois da irmã lhe ter apresentado o
namorado, ela apercebendo-se que a sua companhia não era oportuna, disse que o
Pedro lhe tinha telefonado e que ia encontrar-se com ele. A irmã compreendeu o
alcance da desculpa e aceitou-a de bom grado.
A Carolina despediu-se e foi para casa, enquanto a irmã e o namorado foram
passear até à Avenida do Mar, com o coração a transbordar de alegria, procurando
entre si as mais belas palavras ditadas pelo coração, para as dizerem um ao outro.
Até a tarde que antes estava nublada e escura, afastou as nuvens para que pudessem
observar o ocaso, no seu máximo esplendor. Depois, quando o céu já estava a ficar
plúmbeo, dirigiram-se para a paragem do autocarro que levaria a Margarida a casa.

Quando se despediram, com um longo e apaixonado beijo, ambos procuravam fundir


as duas almas num raio de luz.
Assim que a Margarida chegou a casa, foi à cozinha cumprimentar a mãe e logo de
seguida foi para o seu quarto para mudar de roupa, abriu a janela e ali ficou a
pensar no presente e a reflectir no futuro. Não havia luar, também não havia
nuvens, mas as inúmeras estrelas que cintilavam no céu pareciam mais vivas como que
a saudá-la pelo seu novo amor.
Depois de ter dado larga à sua imaginação, foi ter com a mãe e com a irmã à
cozinha, com o coração cheio de felicidade, embora não o exteriorizasse em demasia,
por entender que não seria ainda oportuno dar a novidade à mãe.
A Carolina estava ansiosa por saber se a irmã iria dar à mãe a novidade e não
hesitou em colocar-lhe uma pergunta subtil para saber a opinião dela.
- Hoje aproveitaste bem o dia! Encontraste alguma companhia pelo caminho,
daquelas que fazem derreter o coração?
- Encontrei. Encontrei os meus colegas e estive com eles no café. Já está
satisfeita a tua curiosidade?
- Já, respondeu a irmã com um sorriso malicioso.
- O que é que se passa contigo Carolina? Hoje estás muito curiosa. A
curiosidade é tanta que nem sequer disseste à tua irmã, que o advogado telefonou a
dizer que o julgamento já está marcado para o dia vinte sete do mês que vem e que
chegou uma carta do pai.
- Ainda bem! Está a chegar a hora da verdade e o pai manda boas notícias?
- Manda, são até muito boas, mas há uma que me deixa muito preocupada.
- Que notícia é essa? Perguntou a Margarida.

- O pai diz que correm lá notícias nada favoráveis para o governo; dizem que a
situação em Portugal está a piorar de dia para dia por causa da guerra do ultramar
e pode haver um golpe de estado de um momento para o outro e é disso que eu tenho
medo porque pode dar-se uma guerra civil.
- Isso são boatos! Não se nota agitação nenhuma - disse a Carolina.
- Não é bem assim, Carolina, a agitação não se nota, mas existe. O Carlos anda
sempre atento a essas coisas e hoje esteve a dizer que estamos a viver uma paz
podre.
- Quem é esse Carlos? - perguntou a mãe.
- É um colega que faz parte do nosso grupo de amigos.
A Carolina, ao ouvir a irmã pronunciar estas palavras, esboçou um leve sorriso
e, para desviar a conversa, disse para a mãe:
- Ainda não disse à mana as boas notícias que o pai manda.
- O pai diz que o patrão está muito satisfeito com ele. Este mês já pagou as
dívidas todas e para o mês que vem já envia mais dinheiro. Também diz que os
políticos que estão exilados lá em França já disseram que assim que o regime cair,
as leis da emigração são logo revogadas e os processos contra os emigrantes
clandestinos são logo arquivados e podem vir a Portugal quando quiserem.
- Isso é muito bom! O pai até pode vir mais cedo - disse a Carolina
- É bom, Carolina. Se tudo correr bem... Mas isto está tremido... Deus queira
que tudo corra bem. Se as coisas derem para o torto até pode haver um banho de
sangue muito grande.
- Deus vai ajudar-nos e tudo há-de correr bem e sem haver sangue - disse a
irmã.

- Deus queira! Mas olha que a história está cheia de exemplos desses. Por isso
é que devíamos dar mais atenção. Há assuntos que nos passam ao lado, dos quais nos
alheamos por pensarmos que só dizem respeito aos políticos, mas não é bem assim. A
realidade é bem diferente, também nos diz respeito directamente, porque é o povo
que sofre com as más políticas e beneficia com as boas. Agora só nos resta esperar
e pedir a Deus que não haja derramamento de sangue - disse a Margarida.
- Pareces o meu professor de História a falar, mas concordo contigo - disse a
irmã.
Tanto a Matilde como as filhas tinham razão para estarem preocupadas. Portugal
estava a atravessar um período bastante difícil. O professor, Marcelo Caetano,
presidente do governo, empenhara-se em dar uma maior abertura ao regime e tinha
feito algumas reformas a melhorar as condições de vida do povo, designadamente a
que alargou a previdência às classes rurais e a que deu uma maior abertura
económica ao exterior. Porém, essas medidas eram insuficientes para acalmar os
opositores do regime, cada vez em maior número e cada vez mais descontentes com o
impasse colonial, com o imobilismo político e o isolamento externo do país.
O descontentamento começava a alastrar um pouco por todo o lado. No campo
estudantil, no laboral, no seio das forças armadas a tensão entre renovadores e
conservadores dentro do próximo regime, deram azo a que a opinião pública seguisse,
com mais atenção e com maior curiosidade as atitudes dos deputados da chamada
assembleia nacional.
De todo o lado se levantavam vozes a pedir uma solução política para a guerra
colonial e a legitimação do poder político. O aparecimento do livro do general
Spínola "Portugal e o Futuro", veio ainda lançar mais achas para a fogueira da
contestação e agitar a opinião pública. Com um cenário destes, não era difícil
adivinhar que alguma coisa estaria para acontecer em Portugal.

O tempo ia passando, até que chegou o dia do julgamento. Logo pelas nove horas,
a Matilde e as filhas compareceram no Tribunal, ao qual estavam também a chegar as
testemunhas. Estas, passados alguns minutos, depois de ter sido feita a chamada,
foram conduzidas à sala de testemunhas, enquanto a Matilde e as filhas ficaram
sentadas num dos bancos do Tribunal. Alguns minutos depois, chegavam o Pedro e o
advogado. Este, depois de as ter cumprimentado, dirigiu-se para a sala de
audiências, ficando as pessoas que queriam assistir ao julgamento à espera que a
porta da sala se abrisse.
Logo que o advogado se retirou, a Carolina, que tinha ficado surpreendida com a
presença do namorado, não se conteve sem lhe dizer:
- Estavas de serviço, como é que conseguiste vir.?
- Troquei com outro colega. Ele fez hoje o serviço por mim e eu faço por ele no
sábado que é o meu dia de folga.
- Não era preciso te teres preocupado e alterar o serviço para estares aqui. Já
basta o que nos tens ajudado - disse a Carolina.
- Não me faz diferença nenhuma. Se não conseguisse vir é que ficava aborrecido
comigo mesmo, por não poder vir trazer-vos a minha solidariedade.
- És um amor, obrigado Pedro - disse a namorada.
A Matilde, quando ouviu aquela resposta, duas lágrimas brotaram-lhe dos olhos
tão rapidamente que não teve tempo de as dissimular. Surpreendida com a rapidez da
manifestação de sensibilidade, tentou gracejar e rir para disfarçar, mas o riso
parecia uma cristalização das lágrimas e o gracejo não tinha o ar da
espontaneidade.
As filhas perceberam perfeitamente o alcance daquelas lágrimas, mas preferiram
ignorá-las e desviar a conversa para outro assunto, para ajudarem a mãe a sair
daquela situação. Passados alguns minutos, abriram a porta da sala de audiências e
foram todos assistir ao julgamento.
Depois das testemunhas terem sido ouvidas e os advogados terem feito as
alegações, o juiz informou-os que as respostas aos quesitos seriam dadas no dia
seguinte. Logo que saíram da sala, o advogado tranquilizou as clientes, dizendo-
lhes que o julgamento correra muito bem e estava convencido que a acção estava
ganha, mas a última palavra pertencia ao juiz.

Depois de se terem despedido, foi para casa juntamente com as filhas e duas
vizinhas que foram suas testemunhas. Embora o advogado a tivesse tranquilizado e
estivesse satisfeita com o depoimento das testemunhas e pela forma como correra o
julgamento, sentia uma enorme ansiedade e as noites que se seguiram passou-as quase
em claro.
Dois dias depois, o causídico foi notificado da sentença, a qual era favorável
aos seus constituintes. Telefonou-lhes logo a dar a boa nova, a qual foi recebida,
com enorme alegria e um suspiro de alívio.
A Matilde sentiu de novo a alegria a florir no seu rosto, as reminiscências do
infortúnio que ainda a acompanhavam fragilizaram-se com aquela notícia. Ela que
chegara a ver a flor da alegria a definhar-se lentamente e a recear que o vento da
noite a atirasse para o chão, via-a agora rejuvenescer com todo o vigor, como se
estivesse a caminhar para a mais linda primavera da sua vida.
Também no campo amoroso, o futuro parecia risonho tanto para a Margarida como
para a irmã. Depois do amor e desamor que a Carolina tivera, respirava agora
felicidade por estar convencida de ter encontrado o companheiro ideal, merecedor do
seu amor e capaz de retribuir da mesma maneira e de a fazer feliz. Também a
Margarida comungava da mesma felicidade e, embora tivesse conhecido o novo namorado
mais tarde do que a irmã, sentia que o seu coração estava definitivamente rendido,
sem reservas, às qualidades e encantos do Carlos.

Embora a Margarida já tivesse esquecido o Raúl e já lhe tivesse manifestado o


seu desinteresse, ele ainda alimentava alguma esperança de a reconquistar. Mas essa
esperança esvaiu-se quando, numa tarde cálida de Verão, passeava na avenida a
observar o velho mar que parecia ainda dormir o sono calmo e tranquilo da sesta. Em
frente do cais, desviou o olhar para o mesmo e viu a Margarida de mão dada com o
namorado. Nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Naquele momento, sentiu
um enorme calafrio e a esperança de a reconquistar que ainda morava consigo, a
esvair-se ali mesmo. Ficou titubeante sem saber se havia de desviar-se do seu
caminho ou se havia de continuar. Optou por seguir em frente; mas, já quando tinha
andado alguns metros, uma enorme onda de ciúme apoderou-se dele e obrigou-o a
voltar para trás e ir ao encontro da Margarida, não para fazer escândalo, mas para
fazer sentir a sua presença e ficar a conhecer o namorado da mulher que ainda
amava.
Quando se aproximou, ela estava encostada ao varão a olhar para a imensidão do
mar. Ele também se encostou ao mesmo varão, do lado contrário onde estava o
namorado e não disse nada, mas quando os olhos se encontraram, lançou-lhe um olhar
de desagrado, com um gesto de reprovação à mistura. Ela corou e retribuiu com um
olhar que fulminava, misturado com algum desdém, sem que o namorado se apercebesse.
Depois com ar de preocupada disse-lhe:
- Vamos embora.
- O que é que se passa contigo? Estás corada dizes-me para irmos embora assim
de repente.
- Não se passa nada, estou só um pouco mal disposta.
- Pronto, vamos embora.
Depois de se terem retirado, o Carlos não ficou muito convencido com a desculpa
que a namorada lhe dera e depois de ter meditado, voltou de novo ao assunto.
- Sabes que eu não fiquei convencido com a desculpa que tu me deste, ou seria
por causa daquele sujeito que se encostou ao varão ao pé de nós. Não me digas que é
aquele o teu antigo namorado de quem há dias me falaste.

A Margarida voltou a corar, mas agora com mais intensidade e não respondeu.
Seguiu-se um momento de silêncio, enquanto ela procurava no seu interior as
palavras adequadas para lhe responder. Depois de quebrado o silêncio, o namorado
insistiu pela resposta.
- Continuo à espera da resposta. Agora com o teu silêncio, ainda fico mais
apreensivo.
- Tens razão, aquele sujeito é o meu antigo namorado.
- Mas porque é que me deste aquela resposta, o que é que se passou? - disse o
namorado levantando um pouco o tom de voz.
- Deixa-me acabar de explicar. Tenho a certeza que vais compreender a minha
situação e a atitude que tomei.
- Vá, acaba lá então a conversa e explica.
- Eu não te disse logo para evitar confusões.
- Mas que confusões? Agora já não namoras com ele, namoras comigo, o que é que
ele tem a ver com isso?
- È verdade, só que ele é demasiado ciumento e tu sabes disso, porque já te
contei e tive receio que ele nos provocasse e tive medo da tua reacção. Tu não te
apercebeste mas pelo olhar que ele me atirou e pelo gesto que fez com a cabeça, vi
logo que estava disposto a provocar-nos, porque já o conheço bem, principalmente
quando está na fase do ciúme agudo.
- Mas devias ter-me dito. Assim cortava-se logo o mal pela raiz, porque ia
chamá-lo a atenção e assim estamos sujeitos a ser incomodados qualquer dia.
- Foi melhor assim, estou convencida que foi por ser a primeira vez que nos
viu. agora vai reflectir e não vai incomodar-nos mais.
- A ver vamos disse o namorado com voz seca.

O Raúl ardia na fogueira do ciúme, um só pensamento martelava insistentemente a


cabeça: convencer a sua amada a voltar para ele e cortar de uma vez ,o laço que
supunha atá-la ao coração do intruso. Por esse motivo foi atrás deles, de modo a
não ser visto e na esperança de poder falar com a Margarida quando estivesse só.
Mas para surpresa sua, viu-a ocupar a fila do autocarro que a levaria a casa, o
qual já estava a receber os passageiros. Quando chegou a vez de ir a ocupar o seu
lugar despediram-se com um beijo apaixonado; aí o ciúme transbordou até atingir o
campo do irracional. Num passo apressado, o Raúl foi até à Avenida do Mar, onde
deixara o automóvel estacionado, com a intenção de chegar à paragem onde saltava a
Margarida antes do autocarro.
Numa velocidade desenfreada e irresponsável, dirigiu-se para lá e conseguiu
chegar primeiro. Depois esperou-a alguns metros antes da sua casa no local mais
escondido. A Margarida assim que o viu, estremeceu e pensou:
- Meu Deus, ele não me larga.
O Raúl aproximou-se dela e disse-lhe:
- Preciso falar contigo, Margarida.
- Não temos nada para dizer um ao outro, segue o teu caminho e deixa-me em paz.
Ele tentou aproximar-se mais, mas ela desviou-se para o outro lado da rua com a
intenção de passar. Ele apressou mais o passo, barrou-lhe o caminho e, naquele
momento, uma sombra pairou na frente dos olhos, a impedi-lo de ver o seu decoro e
a dignidade da mulher pela qual estava a sofrer e lançou-lhe um olhar alucinante,
que mais parecia de loucura do que de indignação.
- Deixa-me passar, já disse - implorou ela num tom de voz já com alguma
aflição.
- Tens de me ouvir, Margarida - insistiu ele.
No momento em que ele dizia estas palavras, ela tentou fugir, mas debalde; ele
apanhou-a, segurou-lhe os braços e tentou tapar-lhe a voz com beijos. Mas não
conseguiu, ela desviava a boca e gritava:
- Larga-me, larga-me, deixa-me em paz.
Um vizinho que andava a tratar as bananeiras mesmo ao lado, ao ouvir os gritos,
foi ao encontro deles, com a foice na mão que trazia sempre consigo como objecto de
trabalho e ao ver o Raúl agarrado a ela, gritou:

- Larga já a rapariga, seu ordinário. Pensas por ela não ter cá o pai que já
não tem quem a defenda, mas enganas-te!
O Raúl ficou assustado, largou-a logo e quando o viu de foice na mão ainda mais
assustado ficou
A Margarida respirou de alívio.
O Raúl tentou fugir, mas o Jaime colocou-se à frente dele e em tom de ameaça
disse-lhe:
- Se voltares a meter-te com a Margarida, corto-te o pescoço. Depois afastou-se
e olhou para ele com ar ameaçador e deixou-o ir embora.
- Obrigado, senhor Jaime. Não sei o que seria de mim, se não viesse em meu
auxílio, ele estava completamente desvairado, capaz de tudo.
- Não tem nada que agradecer, menina Margarida. Não fiz mais do que o meu dever
e se ele voltar a meter-se consigo, diga-me que eu meto-o na ordem.
- Obrigado mais uma vez, senhor Jaime, e já agora queria pedir-lhe um favor.
- Diga, menina Margarida.
- Não diga nada à minha mãe do que se passou aqui, para ela não se afligir.
- Fique descansada, pela minha boca ninguém virá a saber.
Despediram-se e cada um foi ao seu destino.
O Jaime era um homem alto, forte, a rondar os cinquenta anos, calejado pelo
sol, pela chuva e pela própria natureza.
A Margarida assim que chegou a casa, dirigiu-se logo para o quarto, mas no
momento em que o fazia, a mãe apercebeu-se da sua chegada e foi ao seu encontro. A
filha tentou esconder os vestígios da tempestade, mas não o conseguiu, porque o
descolorido das faces e o vermelhão que se notava ao canto dos olhos não lho
permitiram.
- O que é que se passou contigo, minha filha? - perguntou a mãe muito
preocupada.
- Não se passou nada.
- Não digas isso, a tua cara não mente, já te viste ao espelho?

No momento em que a mãe dizia estas palavras, algumas lágrimas rebentaram-lhe


dos olhos. Outras se lhes seguiram até que começaram a cair em abundância no ombro
da mãe, que entretanto a abraçara para a confortar.
- Conta-me o que te aconteceu, para eu ficar mais descansada - disse a mãe com
enorme ternura.
A filha tentou explicar, mas não conseguiu, porque as lágrimas e os soluços não
lho permitiram.
A mãe, sempre com a mesma ternura, pediu-lhe para não se esforçar e para chorar
à vontade; só quando as lágrimas passaram a brotar em menos quantidade e os soluços
a fazerem-se sentir mais compassadamente é que começou a contar à mãe o que lhe
acontecera. No momento em que o fazia, chegou a irmã e, ao vê-la assim, sentiu um
enorme calafrio e pensou: - mais algum problema. Depois perguntou-lhe:
- O que é que aconteceu agora, Margarida, para estares nesse estado?
- Espera, filha a tua irmã estava agora a começar a contar, eu também ainda não
sei.
A Carolina sentou-se ao fundo da cama, enquanto a irmã ia descrevendo o que lhe
acontecera. Quando a irmã terminou a narração dos factos, ambas ficaram
estupefactas com o comportamento do Raúl.
- Não esperava dele um comportamento destes - disse a mãe
- Nem eu, mas amanhã vou falar com ele, a ciumeira já lhe deve ter passado e
vai ter que me ouvir - disse a Carolina.
- Não vais nada, ele não vai a importunar-me mais.
- Porque é que dizes isso? - perguntou a mãe.
- O Sr. Jaime pôs-se à frente dele, com a foice em punho e ameaçou-o se
voltasse a meter-se comigo que lhe cortava o pescoço e ele ficou com medo.
- O Sr. Jaime é um bom vizinho e tem-nos no sítio.
- Tem modos, Carolina! Que linguagem é essa? É isso que andas aprender? Ai ai
ai.
- Desculpe mãe, saiu, foi sem querer.
Com aquela desculpa, a mãe sorriu por dentro, mas ficou com ar sério por fora.
Alguns minutos depois, a crise estava debelada e a normalidade estava reinstalada.

Pelo caminho, o Raúl ia pensando no que acontecera e pouca atenção dava à


condução. Mais do que uma vez, teve de desviar a viatura repentinamente, para não
bater de frente com as outras, que circulavam em sentido contrário.
Agora estava convencido, que tinha perdido definitivamente a Margarida e até a
amizade. À medida que o ciúme ia deixando raciocinar com mais lucidez, ia-se
sentindo envergonhado pelo seu comportamento e uma enorme ansiedade para falar com
ela, para lhe pedir desculpa. Quando chegou a casa, dirigiu-se logo para o telefone
e ligou para a Margarida. Ela própria atendeu, mas assim que reconheceu a voz dele
desligou o telefone. Pensou ainda em lhe escrever, mas desistiu da ideia, por ter
chegado à conclusão que não iria resolver nada. O melhor caminho a seguir, seria
tentar esquecê-la e ir a bater à porta de outra rapariga.

O tempo ia passando, a situação no país era cada vez pior; as reivindicações


nos meios estudantil e laboral eram cada vez mais generalizadas, as reuniões entre
os capitães e outras pessoas ligadas ao movimento que se opunha ao regime,
sucediam-se com mais frequência, as forças armadas até então disciplinadas,
começaram a agitar-se.
Chegou o vinte cinco de Abril. Na manhã daquele dia, ainda as estrelas estavam
a esmaecer, quando o telefone tocou na casa da Matilde, a filha mais velha foi
atender.
- Sim, estou?
- És tu, Margarida? Desculpa telefonar a esta hora, vim agora do hospital e
está lá tudo cheio que houve um golpe de estado.
- Não me digas!
- É verdade, Deus queira que não haja mortes e tudo corra bem.
- Obrigada, Fernanda, vou já a dizer à minha mãe e à minha irmã.
- Até logo Margarida. À tarde falamos, estou com pressa, telefonei-te só para
te dar a novidade.

- Está bem, até logo e obrigada por meteres telefonado.


A notícia depressa se espalhou e o povo estava espectante, a aguardar o rumo
dos acontecimentos. No dia seguinte, era anunciado ao país pela junta de salvação
nacional, presidida pelo general Spínola, o fim do regime e o início de uma nova
era para o povo português.
A partir daquele dia, tudo passou a ser diferente, quer no modo de actuar das
instituições, quer no modo de governar. Os emigrantes clandestinos respiravam de
alívio, por verem à sua frente a possibilidade de poderem ir à sua terra e de verem
os seus processos arquivados.
O Leonel trabalhava agora com redobrada alegria, convicto de não estar longe o
dia de poder ir livremente à sua pátria, abraçar a mulher e as filhas e matar
saudades da sua terra. Quando o trabalho lhe tomava parte da noite, chegava a casa
muito cansado, mas assim que contemplava a fotografia da mulher e das filhas, que
tinha em cima da mesa de cabeceira, parecia adquirir novas forças, mesmo antes de
repousar.
O Carlos já tinha tirado o magistério primário e, naquele ano, concorreu para
várias escolas, tendo vindo a ser colocado numa dos arredores do Funchal. A partir
do momento em que soube que ia ser colocado, começou a nascer-lhe a ideia de casar.
Amava a mulher que escolhera para companheira, tinha o emprego garantido, a vida
estabilizada, o qual lhe dava garantias suficientes para construir o seu lar e
enfrentar os desafios que o esperavam com tranquilidade e optimismo.
A Margarida, ao princípio, não estava muito receptiva à ideia de casar antes de
completar o curso, sendo também essa a opinião dos pais, mas o namorado tanto
insistiu que acabou por convencê-la a mudar de opinião e pôr de parte a ideia de
casar só depois de terminar o curso.
Depois de ter convencido os pais da sua pretensão e da do namorado, começaram a
fazer os preparativos e marcaram o casamento para o último sábado do mês de Julho
do ano seguinte, por ser o mês que o pai dela tinha possibilidade de poder
deslocar-se a Portugal.

À medida que o tempo ia passando e se aproximava a data do casamento, a


ansiedade ia aumentado. A Margarida passou a frequentar com mais assiduidade a casa
dos futuros sogros. Com a sua educação, com o seu coração bondoso, com a sua
maneira de ser e de agir, facilmente lhes conquistou o coração. Quando ali
permanecia, ajudava sempre a Ana nas lides caseiras, numa doce intimidade. A futura
sogra via nela a filha que perdera durante o parto. Era como se a Margarida lhe
tivesse levado alguma da alegria que perdera com a morte da filha. Agora, todos
desejavam e ansiavam que o dia do casamento chegasse o mais depressa possível.
Em casa dos pais dela, vivia-se uma azáfama enorme, mas dentro de um clima de
paz e tranquilidade e tanto a mãe como as filhas já estavam completamente
recompostas dos muitos abalos que tinham sofrido, esperavam agora ansiosamente pela
chegada do chefe de família.
Depois de o Leonel ter acertado com o patrão o mês que iria ter férias, as
semanas passaram a parecer-lhe meses e as horas, dias.
O Silvestre já tinha contactado o seu primo Francisco, natural da aldeia do
Freixial do Campo, com a finalidade de saber qual era o mês que ia gozar férias.
Felizmente coincidiam com as suas e com as do Leonel, o que lhes dava a
possibilidade de poderem viajar juntos na própria viatura do primo, o que viria
acontecer.
O Francisco fora para a França antes do Silvestre. Já tinha a sua situação
legalizada e com parte do pecúlio que juntara nos primeiros anos de trabalho,
conseguira comprar um automóvel, que utilizava sempre, quando se deslocava a
Portugal a visitar a família e os amigos.

Era um rapaz alegre, bondoso, trabalhador, filho de gente boa e remediada. Mas
o infortúnio bateu-lhe à porta muito cedo. Ainda estava na idade dos verdes anos, a
frequentar o liceu, quando perdeu o pai num acidente de viação e viu-se forçado a
deixar de estudar para ir trabalhar no amanho das terras, agora único meio de
sobrevivência da família. Mas, à medida que o tempo ia passando, a vida no campo
tornava-se cada vez mais difícil. As pessoas em condições de trabalhar iam
abandonando as aldeias para irem clandestinamente para a França, à procura de um
futuro melhor. Foi o que aconteceu ao Francisco; a agricultura já não dava para
sustentar a família e para manter as duas irmãs a estudar e, por esse motivo,
resolveu ir para aquele país, para tentar modificar a situação, ficando a mãe a
tratar das terras conforme podia, com a ajuda das filhas, principalmente quando
estavam de férias.
Apesar de não ter podido continuar a frequentar o liceu, nunca se deixou cair
na obscuridade que é a principal barreira ao desenvolvimento do ser humano; todo o
tempo disponível, aproveitava-o para estudar, principalmente a língua francesa, o
que lhe deu uma enorme ajuda, para poder singrar naquele país.
Finalmente o tão desejado dia chegou. Era o primeiro dia de Julho. Apesar de já
ser Verão, o tempo apresentava-se com cara de Inverno. Fazia frio e caía uma chuva
miudinha, o que lhes veio a aumentar ainda mais a ansiedade de chegarem a Portugal
para também poderem desfrutar do seu clima e do seu radioso sol.
A viagem correu bem, com muita alegria e sem sobressaltos, a contrastar com a
que tinham feito em sentido contrário. Logo que entraram em Portugal, já perto do
local onde foram interceptados, o Silvestre sentiu algo que não sabia descrever,
quando reconheceu o sítio e a casa de onde saíam os holofotes naquele triste noite
em direcção aos menos afortunados e não se conteve sem dizer:
- A vida de vez em quando prega-nos partidas inimagináveis; quem diria, que
alguns anos depois, voltaríamos ao local do crime?
O Francisco ia concentrado na condução, mas ao ouvir aquelas palavras
perguntou-lhe:
- Mataram aqui alguém?
- Não, mas iam matando, foram cometidas aqui, nesta zona, atrocidades contra
pessoas inocentes, cujo crime que cometeram, foi procurarem melhores condições de
vida.
- Explique-se melhor, não estou a entender nada - disse o Francisco.

- Estão a ver além aqueles montes e aquela casa? Foi além que se ia dando a
nossa desgraça, mas felizmente Deus protegeu-nos. Eu conheço bem esta zona. Era de
noite, mas quando se começou a ver, fixei bem a casa. Ao lado há um caminho de
terra batida. Era por lá que nós vínhamos naquela negra noite.
- E se fossemos até lá para vermos melhor? É capaz de haver aqui perto algum
caminho para lá. É só uma questão de perguntar a alguém - disse o Francisco.
- Boa ideia, temos pressa de chegar mas vale a pena dar lá um saltinho, para
ficarmos com uma ideia mais concreta dos perigos que corremos - disse o Silvestre.
Alguns metros mais à frente, encontraram um senhor que lhes indicou um caminho
muito estreito, mas suficiente, para poderem chegar lá. Quando chegaram junto à
casa, deixaram ali o carro e foram a pé alguns metros, até ao local onde ficara
imobilizada a camioneta e onde começara a debandada.
Tanto o Leonel como o Silvestre sentiam algo inexplicável, era como se ainda
estivessem a viver a tragédia daquela noite, mas simultaneamente, sentiam uma
sensação de alívio e liberdade.
O terreno onde se tinham dado os terríveis acontecimentos tinha duas partes
distintas. Uma era bastante acidentada, com algumas árvores, muitas silvas e alguns
socalcos aqui e além; a outra era mais plana, não tinha árvores, mas tinha muito
mato e alguns andanhos pelo meio, feitos por contrabandistas. Foi nesta parte do
terreno que alguns companheiros de viagem do Silvestre e do amigo, principalmente
os mais frágeis foram apanhados, por ser mais descampada e mais conhecida da
guarda. Felizmente o Leonel e o companheiro fugiram para o lado certo onde era mais
difícil serem interceptados, devido ao acidentado do terreno.
Depois de terem saciado a curiosidade, o Francisco e o primo dirigiram-se para
o carro, enquanto o Leonel ficou a admirar a magnificência do Céu. O dia estava
lindo, a temperatura agradável, o sol brilhava com todo o seu esplendor. Ao longe
viam-se algumas nuvens brancas e transparentes a destacarem-se no azul do céu. Mais
perto, duas aves de rapina voavam em círculo, com os seus pios estridentes, à
procura de alguma presa que por ali andasse.

O Leonel embebeu os olhos naquele cenário e ali estava imóvel e absorto, como
se estivesse a revolver o passado e a interrogar o futuro.
Quando os amigos acharam que a demora era demasiada, o Francisco foi ao seu
encontro e com um largo sorriso disse-lhe:
- Está um dia tão bonito, que nem apetece sair daqui.
O Leonel era como se estivesse a sonhar com os olhos abertos e, quando ouviu o
colega, olhou para ele estremunhado, como se tivesse acordado de uma noite cheia de
sonhos escuros e coloridos.
- Desculpe, Sr. Francisco, estava tão absorvido nos meus pensamentos e a
observar este maravilhoso cenário, que nem dei pela sua presença nem pelo tempo a
passar.
Não tem importância, Sr. Leonel. Eu sei o que isso é. Já passei pelo mesmo, às
vezes há momentos na nossa vida que nos obrigam a parar, a observar e a reflectir.
Este deve ter sido um deles.
- Tem razão. Este foi um desses momentos, além de meditar imenso, fiquei com a
firme certeza, que o céu do nosso Portugal é o mais lindo, não há outro igual.
- É muito bonito o que acaba de dizer, até rima, e concordo plenamente consigo.
Alguns minutos depois, retomaram a viagem em direcção a Castelo Branco. Felizes
e ansiosos por chegar, numa animada cavaqueira. Nos momentos em que havia algum
silêncio, o Leonel aproveitava-os para olhar para a paisagem com enormes rebanhos
de ovelhas a pastar, a qual não pudera ver antes devido à situação em que efectuou
a primeira viagem e continuava a meditar e a sentir uma sensação de alívio.
- A nossa vida às vezes dá voltas que nem sonhamos. Quem diria o que me iria
acontecer, mas graças a Deus estou são e salvo, com a vida a sorrir-me - pensava
ele.

Quando chegaram a casa, já a mulher e a filha do Silvestre tinham um saboroso e


abundante almoço à espera. Depois de feitos os respectivos cumprimentos e terem
exteriorizado a sua alegria por estarem ali de novo, mas em condições bem
diferentes daquelas que antecederam a ida para a França. O Francisco aproveitou
ainda a oportunidade para telefonar à mãe e depois foram almoçar.
Logo no início, foi servida uma sopa de nabiça e a seguir foram servidas as
batatas com bacalhau e ovos, bem temperadas com azeite puro e regadas com um bom
vinho, ambos da região; para a sobremesa, foi servido um pudim de frutas, que era
uma especialidade da Paula e que ela própria confeccionara.
Durante o almoço, falaram da viagem anterior e das suas atribulações: do
encontro que tiveram com a guarda, na fronteira, nos sustos que apanharam, no
sofrimento que suportaram, para terem uma vida melhor, falaram ainda de política,
de agricultura e de educação. Quando entraram neste tema, Leonel fez um panegírico
a enaltecer as qualidades da filha do Silvestre e da sua amiga Sónia, agora, ambas
a frequentar a universidade em Coimbra. A felicidade estava estampada no rosto de
todos e a conversa estava tão animada que nem deram pelas horas a passar. Embora
tivessem o dia por sua conta, o Francisco estava desejoso de chegar a casa para
abraçar a mãe e as irmãs e para rever os amigos. Eram dezasseis horas quando olhou
para o relógio e com cara de espanto disse:
- Está na hora de irmos indo até ao Freixial do Campo.
- O Francisco falou no plural? - perguntou o primo.
- Falei, faço questão que vamos todos até lá, inclusivamente a prima Maria e a
Paula. Além de ser uma honra recebê-los em minha casa, é também uma oportunidade
para o Sr. Leonel ficar a conhecer a minha aldeia e o primo pode rever os muitos
amigos que tem lá.
- Agradeço imenso, primo, fica para outra ocasião, tenho de arrumar a casa e
lavar a roupa.
- Mas a Paula vai?
- Hoje não dá, preciso de ficar a ajudar a minha mãe, mas prometo que um dia
destes vamos até lá. Já tenho saudade de ver as primas.
- Combinado, mas o teu pai e o Sr. Leonel não têm desculpas.

- É melhor ficar para outro dia. Hoje não é muito aconselhável, precisas de
estar com a família, rever os amigos e todo o tempo é pouco.
- Há tempo para tudo, vá, vamos embora.
Face à insistência do Francisco, não tiveram outra alternativa senão a de
aceitarem o convite.
A aldeia de Freixial do Campo fica situada a poente de Castelo Branco, a quinze
quilómetros de distância. É uma aldeia muito fácil de servir, situada em terreno
quase plano, com leves declives. A sua gente é boa, trabalhadora e hospitaleira,
onde a solidariedade para com o próximo não é palavra vã. Gente de têmpera rija,
caldeada pelo sol, pela chuva, pelo vento e perfumada com o aroma das flores do
campo.
Quando chegaram, já a mãe do Francisco e as irmãs estavam à espera e para
alegria e surpresa de todos, a Sónia também lá estava. Tinha chegado naquele dia de
Coimbra e feliz por ter passado para o quarto ano de medicina e ia passar ali as
férias na casa dos avós maternos.
Era como se o destino os tivesse reunido, para em conjunto comemorarem os
êxitos alcançados, conforme já os unira nos dias tristes, de aflição e de
incerteza.
Depois de terem conversado algum tempo sobre diversos assuntos, o Francisco e
os amigos foram dar uma volta pela aldeia, enquanto a mãe, as irmãs e a Sónia
ficaram a preparar o jantar. Já o astro-rei se tinha escondido quando regressaram a
casa.
As irmãs e a Sónia já tinham colocado a toalha de linho bordada, própria para
aquelas ocasiões e posto os talheres, enquanto a mãe ultimava o jantar. Alguns
minutos depois, o mesmo era servido. Era composto por sopa de verduras, o primeiro
prato, e o segundo de febras assadas na brasa, com batatas e salada de alface e de
tomate a acompanhá-las. Para beber foi servido um saboroso vinho tinto e sumo de
laranja. e para a sobremesa, uma saborosa tigelada e fruta da época, tudo da lavra
da casa.

Durante o jantar, falaram de imensos assuntos, com muito riso, algumas


gargalhadas pelo meio, principalmente quando o tema se prendia com alguns episódios
de quando foram interceptados na fronteira e algumas anedotas mais picantes. A
alegria estava estampada no rosto de todos e se as honras da casa foram feitas pela
Guilhermina, a alma da festa pertencia às filhas e à amiga.
A Leopoldina e a irmã tinha muito jeito para a poesia e declamavam muito bem,
mas só declamava em dias muito especiais e para as pessoas das suas relações. A
Manuela também tocava guitarra e quando a irmã declamava, acompanhava-a sempre. Mas
aquela noite era especial e não podiam passar sem dar o seu contributo, para que o
convívio terminasse em beleza. Chegada a hora que precede à dispersão, o irmão
pediu-lhes para actuarem. Elas fizeram-lhe a vontade, seguiu-se um enorme silêncio
e alguns segundos depois, a Leopoldina estava a declamar o poema intitulado," o
vento" e a irmã acompanhá-la à guitarra:

I
Na ramagem das árvores,
Ouve-se o vento a passar,
Umas vezes fala baixinho,
Outras põe-se a gritar.

II
Às vezes passa calmo,
Alegre e sorridente,
Repousa no regaço das árvores,
Mal se ouve, mas se sente.

III
Outras passa irado,
Zangado e descontente,
Bate em tudo o que aparece,
Leva tudo pela frente.

IV
Na sua longa caminhada,
Que palavras dirão ao vento,
Para ser tão inconstante,
Para ser tão diferente.

Seguiram-se os aplausos e quando estes terminaram, foi a vez da Sónia pedir à


Leopoldina para declamar outro. Ela acedeu e declamou o poema intitulado," a
caminho da escola".
I
Para a escola vai a Inês,
Alegre e sorridente,
Pelo caminho vai semeando,
Sorrisos para toda a gente.

II
Na sua maneira de ser,
No seu jeito de andar,
Leva sempre uma palavra angélica,
Um sorriso para dar.

III
Nas costas leva a sacola,
Um ramo de flores na mão,
Leva ternura no olhar,
Pureza no coração.

IV
Leva no rosto estampada,
A vida cheia de alegria e esperança,
Como é lindo e puro,
O mundo da Criança.

O Leonel com alguma comoção não se conteve sem dizer:


- Já ouvi declamar imensas vezes no hotel onde trabalhava na Madeira, mas
nunca ouvi declamar com tanta alma nem com tanto sentir. Só lhes peço, quando forem
à minha terra, onde terão a minha casa de portas e janelas escancaradas para os
receber, não se esqueçam de levar a guitarra e essa linda voz para podermos ouvir
estes e outros poemas, que encantam em minha casa.
Todos estavam encantados e com pena de não poderem estar ali a noite inteira a
ouvir declamar, mas não podiam, porque já era demasiado tarde e o Leonel tinha de
levantar-se cedo, para seguir no comboio que passava em Castelo Branco às sete
horas, com destino a Lisboa. Já a noite ia bastante avançada, quando o Francisco os
foi levar à cidade.

Na manhã seguinte, logo pelas sete horas, embarcou no comboio, com destino à
capital. Agora, ao contrário da viagem anterior, ia com outra paz de espírito, mais
calmo, sem preocupações que o afligissem a apreciar a paisagem com mais pormenor e
atenção. Quando chegou a Vila Velha de Ródão, começou a viajar ao lado do rio Tejo,
o qual corria apertado entre barreiras, como se tivesse muita pressa de chegar a
Lisboa. Depois de ter passado o castelo de Almourol, situado no meio dele, alguns
quilómetros mais à frente, começou a espraiar-se como que a repousar do esforço
que fizera de tanto correr. Quando chegou a Lisboa, já sem correrias, parecia que o
mar tinha estendido um braço para o ir buscar, tal era a sua imponência e grandeza.
Já em Lisboa, o Leonel dirigiu-se para a baixa, onde almoçou calmamente,
desejoso por que as horas passassem depressa, para chegar à sua terra. Depois de
ter almoçado, dirigiu-se à estação dos correios mais próxima para telefonar à
família, mas em vão, porque as ligações para a Ilha da Madeira estavam
interrompidas, devido a uma avaria. Quando chegou ao aeroporto ainda tentou
telefonar, mas debalde, porque as ligações continuavam na mesma. Às vinte e duas
horas, entrou no avião que o levaria à Madeira. Quando chegou ao aeroporto, depois
de ter recolhido a bagagem, meteu-se num táxi e seguiu para o Funchal.
Quando entrou em casa, o quintal estava iluminado pela lua, que se encontrava
na fase de lua cheia, como se estivesse à sua espera para lhe dar as boas vindas.
A mulher e a filha mais velha ainda estavam de pé. A Margarida tinha acabado de
chegar da casa da Fernanda e a mãe estava à espera dela. O mesmo já não acontecia
com a Carolina, que não conseguiu resistir ao sono quando lhe bateu à porta e não
teve outro remédio senão o de ir deitar-se.
O Leonel bateu três pancadinhas na porta, muito suaves, depois ficou em
silêncio.
- Estão a bater à porta - disse a Margarida.
- Meu Deus, quem será a uma hora destas? Já passa da uma - disse a mãe um pouco
assustada.
- Será o pai?
- Deus te ouvisse, filha, mas o pai não vinha sem telefonar. Será algum ladrão
ou alguém que sabe que somos só mulheres nesta casa e quer fazer-nos mal? O melhor
é não abrirmos a porta sem sabermos quem é.

- Como é que sabemos, mãe? - perguntou a Margarida também ela assustada.


Eu vou ver se consigo descobrir quem é, por entre os tapassóis do meu quarto e
tu vais perguntar quem é, mas não abres a porta.
A Matilde dirigiu-se para o seu quarto cheia de medo, enquanto a filha foi para
junto da porta a tremer como varas verdes e perguntou em voz baixa.
- Quem é?
- Sou eu, minha filha, já não reconheces a minha voz?
A Margarida sentiu uma enorme alegria, mas também algum receio por pensar que
alguém estaria a imitar a voz do pai e lembrou-se do anterior namorado que sabia
imitar vozes muito bem.
- Como é que conseguiu entrar no quintal, e a porta estava fechada? - perguntou
de novo a Margarida.
- Não tenhas medo, minha filha, a chave estava no lugar do costume debaixo da
pedra.
Depois destas palavras, a Margarida não teve a mínima dúvida que era o pai.
Abriu logo a porta e assim que o viu, soltou um grito de alegria.
- É o pai!
No momento em que dizia estas palavras, atirou-se para os braços dele, mas já
não conseguiu dizer mais palavras. Também não havia lágrimas nos seus olhos; havia
apenas soluços e mais soluços, enquanto a comoção não se exteriorizava.
- O que é, isso minha querida filha? Agora estou aqui ao pé de vós, já não ides
sofrer mais - disse o pai, com enorme ternura, enquanto se mantinha abraçado a ela.
A Matilde, logo que ouviu a filha, correu para a porta e assim que chegou junto
dele, abraçou-o com enorme força, mas não conseguiu dizer qualquer palavra e por um
momento ficaram todos abraçados. Passado aquele momento, a mulher conseguiu soltar
as primeiras palavras e com elas as primeiras lágrimas,
- Que saudades, meu querido. Cheguei a pensar que nunca mais te via!

- Eu também estava cheio de saudades vossas e cheguei a recear que nunca mais
vos tornava a ver, sofri muito, mas felizmente já tudo passou. Agora o que
interessa e o mais importante é que estou outra vez ao pé de vós.
Agora tanto a Margarida como a mãe choravam copiosamente. O Leonel também
estava visivelmente comovido e não conseguiu evitar o aparecimento de algumas
lágrimas, que limpava logo e fazia um enorme esforço para se controlar. Apesar da
firmeza que tentava dar às palavras, muito dificilmente saíam e, às vezes, a voz
parecia morrer na garganta. Por um momento houve silêncio e quando foi quebrado foi
para o Leonel perguntar pela Carolina.
- Ela está a dormir. Estava a cair de sono e deitou-se à bocado, eu vou acordá-
la disse a mulher.
- Não, eu vou lá ao quarto vê-la.
Quando entrou no quarto, abriu muito ao de leve o cortinado e viu a filha a dormir
profundamente. Contemplou-a com imensa ternura e com o coração a transbordar de
alegria; duas lágrimas preguiçosas soltaram-se-lhes dos olhos e algumas palavras
quase silenciosas ,saíram-lhe dos lábios.
- Minha querida filha, como também estás linda! Que saudades, meu Deus. Também
tens sofrido imenso, mas já não vais sofrer mais. Se Deus quiser agora já estou
junto a vós.
A Carolina tinha os olhos cerrados, o rosto sereno e risonho, os lábios
semiabertos, como se estivesse a murmurar as mais lindas palavras de amor. Tinha os
cabelos esparsos a contribuírem para a formosura angélica do seu semblante.
Depois puxou a cadeira para junto da cama e muito carinhosamente pegou-lhe na
mão que estava fora da roupa. No momento em que o fazia, a filha abriu muito
levemente os olhos e assim que se apercebeu que estava ali alguém abriu-os
rapidamente; porém, quando viu que era o pai, arregalou-os e soltou um grito de
alegria e simultaneamente de saudade.
- Pai!
- Sou eu, minha querida filha, estou aqui a teu lado.

A Carolina levantou-se num ápice, atirou-se para os ombros do pai e ali ficaram
um longo momento abraçados com as lágrimas a substituírem as palavras e só quando a
mãe e a irmã entraram no quarto é que o silêncio foi interrompido.
- Desta não esperavas tu, Carolina - disse a mãe, já sem lágrimas, mas com os
olhos ainda bastante vermelhos.
- É verdade mãe, foi a surpresa mais agradável que tive em toda a minha vida.
A Margarida sentou-se na beira da cama, a mãe puxou a outra cadeira que estava
disponível para junto do marido e ali ficaram imenso tempo, a inventariar tudo o
que lhes acontecera; os desgostos, as aflições, a dor que suportaram, as tristezas
e alegrias que tiveram, as saudades que sentiram. A felicidade estava estampada no
rosto de todos e nem mesmo quando tiveram de lembrar os momentos mais cruéis que
lhes aconteceram, a mesma foi manchada. Era já madrugada quando se deitaram com o
coração cheio de alegria.
O dia seguinte era sábado e por esse motivo puderam dormir até mais tarde,
principalmente a Margarida e a irmã que só se levantaram, quando a mãe as foi
chamar para almoçarem.
Os dias que se seguiram, o Leonel aproveitou-os para visitar os amigos e ajudar
a mulher e as filhas nos preparativos para o casamento.

Finalmente, o tão desejado dia chegou. Logo pela manhã, a Margarida começou
arrumar a mala que iria levar para a lua de mel, enquanto a mãe e a irmã preparavam
o pequeno almoço para os familiares e convidados. De vez em quando ia até à janela,
observar as flores que ela tanto gostava de cuidar, juntamente com a mãe e a irmã e
pela qual entrava o sol, como a querer associar-se ao evento e a desejar-lhe
felicidades. De vez em quando, lançava o olhar para o horizonte, que se apresenta
límpido, como que a tentar adivinhar o que estaria para além dele, onde os seus
olhos não conseguiam ver.

Depois de realizada a cerimónia, os noivos deixavam transparecer um enorme


felicidade, extensiva a familiares e amigos. No momento em que saiam do registo
civil, foram recebidos com uma enorme chuva de pétalas de rosa, com grãos de arroz
à mistura, por um grupo de raparigas que abriram uma ala à sua frente, dando ainda
mais encanto à cerimónia.
Dali, foram para o restaurante onde iria ser festejado o casamento. Era meia
noite, quando foi partido o bolo da noiva e, meia hora depois, enquanto os
familiares e convidados se divertiam, os noivos no mais absoluto silêncio, foram
para uma pousada no interior da ilha, a passar a lua de mel.
Depois do casamento, a vida voltou à normalidade: um mês depois o Leonel
regressou a França, feliz e tranquilo, já com saudade da mulher e das filhas, e
também com uma pontinha de orgulho, pela forma como elas tinham conseguido vencer
os muitos obstáculos que se lhes tinham deparado durante a sua ausência e pela
forma hábil como tinham sabido contornar a maior parte das contrariedades que foram
aparecendo.
A Carolina continuava a estudar e os noivos já na sua casa iniciaram uma nova
vida; ele foi a dar aulas e ela continuou a estudar para acabar o curso. Fazia as
tarefas da casa e ainda ajudava a sogra sempre que lhe era possível. Às vezes,
depois de regressar da casa dos sogros, ainda se agarrava aos livros a estudar
algumas horas, porque a vontade de vencer era enorme e gostava de estar sempre com
a matéria em dia.
Numa dessas noites, depois de ter estudado tudo o que ainda tinha para estudar,
lembrou-se de fazer o inventário da sua vida de solteira, mas o sono bateu-lhe à
porta e já não o pôde fazer naquela noite. Deixou para o dia seguinte, que era
sábado. Logo pela manhã, o marido levantou-se mais cedo para ir jogar ténis com uns
amigos e ela ficou a dormir até mais tarde. Quando se levantou, puxou a persiana e
viu uma chuva miudinha a cair no peitoril da janela, a qual convidava a estar em
casa. Embora a natureza se apresentasse melancólica, ela via-a de uma forma mais
alegre, porque havia dentro dela uma fonte inesgotável de alegria.

Depois de ter tomado o pequeno almoço, sentou-se à sua escrivaninha e começou a


rasgar com indiferença as cartas dos seus apaixonados e admiradores, que lhe
lembravam afeições extintas ou simples relações passageiras. Quando relia algumas
dessas missivas," folhas caídas de outras estações que passaram" principalmente as
do Raúl, desenhava-se-lhe nos lábios um sorriso irónico mas tranquilo porque a sua
alma já estava transformada e indiferente aos amores e desamores do passado.

IV
PARTEPARTE

Na véspera da saída para a França, o Silvestre foi com a mulher e a filha ao


mercado. Depois de terem feito as compras, quando estavam a sair, encontraram o
Mário, dando azo a que já não fosse para casa naquela hora, para ir com o amigo até
um café que estava ali próximo, para conversarem sobre diversos assuntos e, como
era óbvio, relembrarem os acontecimentos da noite em que tinham sido interceptados
pela guarda. A partir daquele dia, a liberdade do Mário começou a ficar em perigo,
porque na qualidade de passador, era o mais procurado pelas autoridades, as quais
tudo iriam fazer para o capturar. Por esse motivo, ausentou-se para parte incerta,
para não ser preso. Passado algum tempo, depois de se ter convencido, que já
estavam reunidas as condições para retomar a actividade, regressou de novo à sua
terra.
Além de retomar a actividade, tinha também em mente tentar descobrir o porquê
das coisas terem corrido tão mal naquela noite. As suspeitas iam para o jovem
refractário, por lhe ter feito demasiadas perguntas e ter ficado convencido que
havia algo mais do que o natural receio que qualquer emigrante sente naquela
situação.
Ele sabia onde o jovem morava, e não lhe foi difícil entrar em contacto com o
pai dele, para saber o que lhe teria acontecido, se teria sido preso ou se teria
escapado. Foi então que ficou a saber toda a história e o motivo por que foram
apanhados.

O Bruno, era como se chamava o rapaz, namorava com uma jovem chamada Rute,
muito ciumenta e que não gostava que o namorado se aproximasse de outras
raparigas, mesmo em sã convivência, com receio que se voltasse para alguma delas.
Entre essas raparigas, havia uma com a qual ele convivia mais, mas a namorada
convencera-se que não era apenas amizade que existia entre eles. Além de amizade,
havia também paixão e isso preocupava-a imenso e dava origem a que houvesse grandes
amuos entre eles.
Na altura em que o namorado resolveu emigrar, andavam na fase em que as
relações eram doces como o mel e os sonhos cor de rosa.
Levado pelo estado de graça em que se encontravam, ele não resistiu à tentação
de lhe dizer, na semana anterior à sua saída, tudo o que se estava a passar. A
Rute, quando teve conhecimento da notícia, sentiu o atordoamento de um grande golpe
e uma onda de ciúme apoderara-se da lucidez do seu espírito; ela via naquela tomada
de posição do namorado uma artimanha para se ver livre dela e ficar com a outra.
Embora ele tentasse convencê-la dos reais motivos que o tinha levado a tomar
aquela decisão, ela não se convencia, nem se conformava. O egoísmo latente de o
querer só para ela eram uma acha poderosa a arder na fogueira do ciúme e a
alimentar o desejo de vingança.
Após ter travado uma luta terrível com ela própria para não o denunciar, não o
conseguiu, porque a rapariga com quem ele andava mais nos períodos de tempestade,
não lhe saía da cabeça. O ciúme tornava-se mais poderoso e não conseguiu resistir
sem o denunciar às autoridades através de uma amiga com familiares na guarda.
Depois do mal estar feito e da chegada da reflexão alumiar os destroços da
tempestade, não pôde evitar um sentimento de terror e um peso na consciência por
ter feito aquela maldade.
O Mário depois de ter conhecimento de toda a situação e saber que o Bruno
passava a vida em esconderijos para não ser preso, prontificou-se a passá-lo para a
França, sem qualquer pagamento, o que viria acontecer, alguns dias depois.

O Silvestre estava estupefacto a ouvir o amigo e quando terminou a narração


apenas lhe disse:
- Não há dúvida que o ciúme é uma arma de destruição terrível. E o pior, muitas
vezes, não atinge só a pessoa ou pessoas a quem é dirigido também sobra para
vítimas inocentes como foi o nosso caso.
- É verdade, Silvestre, a vida é uma caixa de surpresas, nunca se sabe o que
nos espera o dia de amanhã.
Embora desejassem ficar mais algum tempo a conversar não podiam, porque o Mário
tinha compromissos inadiáveis aos quais não podia faltar e já estava na hora de se
retirar.

O tempo ia passando, sem sobressaltos nem contrariedades, num clima de


felicidade, na casa da Margarida. Para que essa felicidade fosse ainda maior, um
ano após o casamento, nasceu o primeiro filho. O André, era um rapaz robusto,
saudável; enquanto não começou a dar os primeiros passos, ficava na casa dos avós
maternos, durante os dias em que os pais estavam nos seus locais de trabalho.
Quando começou a dar os primeiros passos, a casa dos pais e dos avós começou a
encher-se ainda mais de alegria com a sua vivacidade.
À medida que ia crescendo, ia-se tornando mais gracioso e encantador; quando
entrou no colégio e começou aprender as primeiras letras, todos assistiam à aurora
daquela inteligência, com enorme felicidade.
Aos fins de semana, sempre que podiam, as pais afastavam-se do bulício da
cidade e levavam-no até ao campo, para que pudesse ter um maior contacto com a
natureza.
Era um casal feliz: havia paz e harmonia entre ambos e quando surgia algum
problema, facilmente o resolviam porque havia compreensão mútua.
Quando, algum fim de semana, a Margarida não podia sair, o marido via-se quase
na obrigação de sair com o filho, porque se habituara de tal maneira ao campo que
já era muito difícil convencê-lo a ficar em casa.

Num desses dias, estava o Carlos com o filho, a ver as trutas no Ribeiro Frio,
quando ali apareceu a Conceição, premeditadamente. Ele assim que a viu o seu
coração estremeceu ao contrário do dela, que se encheu de alegria, quando o viu sem
a companhia da mulher.
- Olá, Carlos, que saudade eu tinha de te ver. Hoje a Margarida não veio?
- Não, ficou em casa teve que fazer - disse ele secamente.
- Ainda bem.
- Ainda bem porquê?
- Porque nunca deixei de te amar, assim estamos mais à vontade.
- Olha, Conceição, não te metas onde não és chamada, sou feliz com a minha
mulher e não tens o direito de te meteres no nosso caminho.
- Estás enganado, Carlos. Ela é que se meteu no nosso.
- Ninguém se meteu no caminho de ninguém, tu é que pensas o contrário.
- Não finjas, Carlos, eu sei que as palavras que te saem da boca não são
ditadas pelo coração, eu sei que também me amas e só não me manifestaste esse amor
abertamente porque a Margarida se meteu no meio e não tinha o direito de nos roubar
a felicidade, porque ninguém é capaz de te fazer mais feliz do que eu.
No momento em que ela dizia estas palavras, ele chamou o filho que se
encontrava um pouco afastado a brincar na relva e foi-se embora, sem dizer mais
nada, porque sentia que não estava ausente de culpa e o seu coração não se lhe
tinha fechado completamente.
Antes de se ir embora, ela ainda teve tempo para lhe lançar um olhar. Dizia-lhe
com os olhos a paixão que o seu coração sentia. Embora ele a tivesse recebido com
alguma severidade ao princípio, por fim, já estava diferente: não estava risonho, é
certo, mas também já não se lhe notava nenhum azedume e isso deixava-a confiante,
por pensar que era só uma questão de tempo, para conseguir os objectivos
pretendidos.

Naquele momento, o único pensamento que influía nela era reconquistá-lo, levá-
lo para bem longe e despedaçar o laço que supunha atá-lo ao coração da Margarida.
Durante a viagem para o Funchal, o Carlos já não falava tanto com o filho como
era habitual porque, de vez em quando, o pensamento voltava-se para ela, embora
tentasse esquecê-la. Quando chegou a casa, conseguiu manter a mesma postura, como
se nada tivesse acontecido; embora, de vez em quando, ela se intrometesse nos seus
pensamentos, conseguia rechaça-los e disfarçar, sem o mínimo indício de suspeição.
A vida naquele lar, continuou com a mesma harmonia e felicidade, mas agora o
perigo começava a rondar a porta.

Alguns meses depois, estava o Carlos na paragem do autocarro junto à escola,


quando ali passou a Conceição no seu próprio carro. Naquele dia, deixara o dele à
mulher, para ir ao aeroporto esperar uns familiares.
Assim que o viu, parou imediatamente e ofereceu-lhe boleia; ele ao princípio
não queria aceitar, mas depois de ela tanto insistir e ter notado que já estavam a
chamar a atenção das pessoas que estavam na paragem, acabou por aceitar.
Quando entrou no carro, ela embebeu nele um olhar longo de agradecimento e
felicidade.
Ele sentia-se encurralado, mas com o firme propósito de manter a dignidade e
resistir à provocação e à sedução dela; mas ela estava formosa e com um ar sedutor
como ele nunca a vira.
Naquele momento, baloiçava entre a aventura e a dignidade. Pesava-lhe a
consciência por saber que a Margarida não era merecedora de tão vil traição. Mas a
serpente sedutora estava ali mesmo ao lado, com o seu encanto e com a sua sedução;
por mais que tentasse afastá-la e fazer-lhe sentir a condição de casado e a
felicidade que reinava no seu lar, não o conseguiu, porque a sedução e o encanto da
Conceição eram demasiado fortes e não teve força suficiente para resistir.

Deixou-se conduzir por ela, sem fazer qualquer comentário ou objecção, mesmo
quando conduzia a viatura por estradas e caminhos menos utilizados.
Meia hora depois, num lugar recôndito, estavam envolvidos numa cena amorosa.
Ele sentiu de súbito, toda a violência do amor que ela trazia acumulado no seu
coração para ser derramado no momento próprio.
Depois do facto consumado, o Carlos procurava no seu interior arranjar motivos
para atenuarem o seu comportamento e tentava arranjar explicações, para aliviar o
peso da consciência e convencer-se de que tudo não passara de uma aventura que ele
não procurara, nem desejara.
Passada a aventura, a vida continuou a sorrir no lar mas agora o perigo era
real e começava a pôr em perigo a felicidade do casal e a lançar a incerteza num
futuro que ambos ambicionavam e previam ser sólido e feliz, porque o Carlos
começava agora a sentir pela Conceição, uma atracção como nunca sentira antes e o
desejo de se encontrar com ela também ia aumentando. À medida que o tempo passava,
os telefonemas que antes da aventura eram rejeitados, passaram a ser desejados e os
encontros mais apetecidos.
Passado algum tempo, a Margarida começou a pressentir que algo de anormal se
estava a passar com o marido; chegava mais tarde a casa; aos fins de semana já não
ia com tanta assiduidade ao campo e arranjava desculpas nem sempre convincentes,
embora tentasse ser carinhoso com ela e dar-lhe a mesma atenção; mas, muitas vezes,
ela sentia que a ternura que ele lhe dava não tinha o mesmo calor de antes e às
vezes chegava a convencer-se que era mais fictício do que real.

Por algum tempo, foi sofrendo em silêncio, mas mantinha a mesma dedicação e a
mesma ternura para com o marido, apesar de saber que alguma coisa de anormal se
estava a passar com ele, mas não tinha a certeza do que seria; por esse motivo,
estava na disposição de continuar a sofrer em silêncio e procurar alguma pista que
a levasse a descobrir o motivo de tão grande mudança de comportamento.

Na época estival, a Carolina ia muitas vezes para o Clube Naval do Funchal,


juntamente com uma amiga, que também costumava frequentar aquele espaço balnear.
No Verão daquele ano em que o comportamento do Carlos passou a ser diferente,
num dia de Agosto, a Irene tinha combinado com um rapaz para se encontrarem no
Lido, porque os pais dela também costumavam frequentar o clube e não lhe convinha
que a vissem com o rapaz. Por esse motivo, combinou com a Carolina para irem para
aquele espaço balnear. Quando ali chegaram, já o Alberto estava à espera e alguns
minutos depois, estavam todos a mergulhar e a deliciarem-se com a água do mar.
A Carolina, para os deixar à vontade, foi para outro local dar uns mergulhos,
porque gostava imenso de mergulhar. Quando se dirigia para outra prancha, viu o
cunhado num local mais escondido, deitado ao lado da Conceição, com os lábios a
tocarem-se uns nos outros. Ao ver aquele cenário, ficou atónita, nem queria
acreditar no que os seus olhos viam e nem sabia como havia de reagir; apenas se lhe
soltaram algumas palavras de revolta e indignação:
- Ai o cachorro de merda! Por isso é que a minha irmã anda tão triste. Que
grande ordinário!
Depois, já com o raciocínio mais lúcido escondeu-se e ali ficou a pensar qual
seria a melhor atitude a tomar: se ia lá a ter com eles para os desmascarar, se ia
chamar a Irene e o Alberto para servirem de testemunhas no caso de ser necessário,
ou se havia de retirar-se sem dizer nada, por pensar que não seria conveniente mais
pessoas saberem do assunto o qual deveria ser resolvido só em família.

Depois de muito reflectir, chegou à conclusão que o ideal seria tirar-lhe


algumas fotografias sem eles se aperceberem; mas não tinha máquina fotográfica e
não sabia a quem se dirigir para pedir uma emprestada.
Quando chegou ao local onde tinham as toalhas, levava estampada no rosto a
preocupação que a atormentava, o que não foi difícil aos companheiros que já ali
estavam, aperceberem-se da situação, o que deu azo a que a Irene lhe perguntasse:
- O que é que se passa contigo, Carolina? Estás pálida, sentes-te mal? Parece
que viste um fantasma.
- Não foi um fantasma que eu vi, Irene, foi o diabo que ainda é bem pior.
- Conta lá o que é que te aconteceu. Pode ser que eu te possa ajudar.
A Carolina não respondeu logo, manteve-se em silêncio a meditar no que havia de
dizer, porque não se sentia à vontade com o Alberto ali ao pé, por ser ainda quase
um desconhecido dela e a situação requeria o máximo sigilo.
O Alberto apercebendo-se que ela não estava à vontade talvez por ele estar
ali, inventou uma desculpa e foi dar uma volta, para que ela pudesse desabafar com
a amiga a preocupação que a atormentava. Depois de ele se ter retirado, a Irene
voltou a insistir:
- Agora que estamos sós, diz-me o que é que tu tens Carolina, sabes que sou tua
amiga e talvez te possa ajudar, quando mais não seja com alguma palavra de
conforto.
A Carolina com ar triste e alguma humidade ao canto dos olhos, começou a
descrever o que vira; lamentava a pouca sorte da irmã e lamentava-se também, por
não ter ali uma máquina fotográfica, para lhes tirar algumas fotografias.

A amiga tentava confortá-la o mais que podia e quando a Carolina lhe falou na
máquina fotográfica, lembrou-se que o pai costumava trazer uma no carro, era só uma
questão de irem ver, porque o mesmo encontrava-se estacionado ali perto. Quando
aquela ideia lhe ocorreu disse para a Carolina:
- Parece que o problema da máquina está resolvido.
- Como? Perguntou a Carolina com uma enorme ansiedade.
- O meu pai costuma trazer uma no carro. Mesmo que não tenha rolo, compramos
aqui um que os há à venda.
- Óptimo! Isso seria o ideal.
- Vamos lá depressa ver se temos sorte, antes que os pombinhos batam a asa.
Em passo apressado, foram até ao carro, a Irene procurou no lugar onde o pai
costumava guardar a máquina e, para satisfação de ambas, deu logo com ela.
Regressaram ao Lido, sempre apressadas, passaram pela loja onde vendiam os rolos,
compraram um e introduziram-no na máquina. A seguir, a Carolina foi indicar à amiga
o local onde se encontravam os pombinhos, pediu-lhe para ser ela a tirar as
fotografias, porque se fosse vista com a máquina na mão não iriam suspeitar porque
não a conheciam.
A Irene armou-se em turista, escondeu-se num local de modo a ver sem ser vista
e muito disfarçadamente, tirou-lhes algumas fotografias muito comprometedoras, umas
a beijarem-se, outras bem agarradinhos. Depois da missão cumprida, foi ao encontro
da Carolina, a qual estava sentada com a cara entre os joelhos, apoiada nas mãos.
Assim que viu a Irene, a primeira coisa que fez foi perguntar-lhe:
- Conseguis-te?

- Consegui e de que maneira! Tirei-lhes uma série delas, sem eles se


aperceberem e algumas bastante comprometedoras, consegui apanhá-los a beijarem-se
bem agarradinhos e também consegui tirar-lhe uma de mãos dadas, quando iam para a
água.
- Obrigada, Irene, não calculas como te estou agradecida, assim ele já não tem
hipótese de se defender, nem de me desmentir.
- Não tens nada que agradecer, sinto-me feliz por te ser útil, embora triste
por ser nestas circunstâncias.
- Queria pedir-te mais um favor.
- Pede os que quiseres, diz lá.
- Não digas nada a ninguém do que se passou aqui, porque estas coisas são muito
melindrosas e têm que ser tratadas com muita prudência.
- Fica descansada, Carolina, é como se não se tivesse passado nada.
- Obrigada, sabia que podia contar contigo.
Quando o Alberto regressou, já elas tinham a missão cumprida, sem que ele se
apercebesse. A Carolina estava ansiosa de pôr o rolo a revelar e por esse motivo
manifestou o desejo de se ir embora e disse para a Irene sem que o Alberto se
apercebesse:
- Estou ansiosa por ver as fotografias. Se vires que não há nenhum
inconveniente da tua parte, gostava de me ir já embora pôr o rolo a revelar, uma
vez que estás bem acompanhada com o teu borrachinho.
A Irene sorriu porque pensou que a amiga dissera aquilo mais para a deixar só
com o apaixonado, do que para ir pôr o rolo a revelar; depois disse-lhe:
- Não, não há inconveniente nenhum, depois digo aos meus pais que não foste
comigo para o clube, porque estavas mal disposta e fui levar-te a casa; se eles te
perguntarem confirma, está bem?

- Fica descansada, se eles me perguntarem, não vai haver o mínimo problema,


saberei compor o ramalhete.
- Óptimo, eu vou lá pôr-te. É num instante enquanto vou lá, o Alberto também
pode ir connosco.
- Não Irene, não há necessidade, eu vou de horário, pára mesmo ali à porta.
- Nem penses nisso! Vá vamos embora.
A Carolina não teve outra alternativa senão aceitar e alguns minutos depois já
estavam no centro da cidade; a Irene regressou ao Lido com o Alberto e a amiga
dirigiu-se a uma casa da especialidade, a pôr o rolo a revelar.
Depois de ter entregue o rolo e ter pedido para as revelarem o mais depressa
possível, foi até ao Golden tomar uma bica e fazer tempo para não chegar a casa
muito cedo, para evitar que a mãe lhe perguntasse o motivo da sua chegada mais cedo
e receava que não fosse capaz de resistir, sem deixar transparecer sinais da sua
preocupação.
Quando chegou a casa, não levava a mesma alegria dos outros dias, mas conseguiu
disfarçar a tristeza e evitar que a mãe lhe lesse no rosto a preocupação que
tumultuava no seu interior. Mas receava que a viesse a descobrir porque o seu
estado de espírito estava demasiado frágil e, de um momento para o outro, a revolta
e a indignação podiam transbordar e darem azo a que a mãe lhe fizesse perguntas, às
quais não queria responder. Por esse motivo, desculpou-se que lhe doía a cabeça por
ter apanhado um pouco de sol a mais e que ia deitar-se; a mãe aceitou a explicação,
foi para a cozinha fazer-lhe chá e ela recolheu-se no seu quarto.

Deitada em cima da cama, ia meditando na melhor maneira de dar conhecimento à


irmã daquela triste situação. O caso era bastante grave e melindroso, por isso
tinha de escolher as palavras adequadas para atenuarem a violência do impacto que a
notícia lhe iria causar.
Ainda pensou ter uma conversa com a mãe, contando-lhe tudo o que se passara,
para em conjunto, procurarem a melhor solução, mas colocou a ideia de lado, por ter
chegado à conclusão que ainda iria arranjar problemas, por recear que a mãe não
conseguisse suportar o impacto da notícia.
A noite passou-a quase em claro, a pensar nas cenas que vira e na pouca sorte
da irmã.
- Coitada! Agora percebo porque é que ela tem andado tão triste. O ordinário
deve andar a fazer-lhe a vida negra e ela está a suportar tudo em silêncio -
pensava ela.
No dia seguinte, já era tarde quando se levantou; a mãe ainda lhe perguntou, se
não ia à praia, mas ela desculpou-se que era tarde, já não podia apanhar o sol da
manhã e também não lhe interessava apanhar a maior força do calor.
Depois de ter almoçado, foi até à baixa do Funchal, levantar as fotografias.
Quando chegou ao estabelecimento onde as mesmas foram reveladas, levava uma
ansiedade enorme, para ver como tinham ficado. Assim que lhas entregaram, começou
logo a observá-las e, à medida que as ia observando, a indignação e a revolta,
tumultuavam cada vez mais no seu interior. Havia-as, para todos os gostos e tiradas
de vários ângulos; umas a beijarem-se, outras bem agarradinhos, outras ainda de
mãos dadas; todas de muito boa qualidade, até parecia que tinham sido tiradas por
mãos profissionais.
Dali foi a casa da irmã, com o firme propósito de lhe contar tudo o que vira e
entregar-lhe as fotografias. Quando chegou a casa, notou nela uma tristeza ainda
maior do que a habitual, porque o marido nos últimos dias, tinha chegado a casa já
de madrugada e não se conteve sem lhe dizer:

- Até quando vais suportar esse sofrimento sozinha? Tu pensas que tanto eu como
a mãe não andamos preocupadas, por andares assim sem nunca nos teres dito nada,
para te podermos ajudar? É por causa do teu marido, não é?
Quando a irmã disse estas palavras, a Margarida sentiu um arrepio, não
respondeu por palavras, mas sim através de duas lágrimas que lhe rolaram pelas
faces, após algum silêncio. Depois perguntou-lhe:
- Ouviste dizer alguma coisa?
- Não, não ouvi dizer nada, mas vi com os meus olhos o que nunca imaginei ver,
por parte do safado do teu marido.
Novo arrepio trespassou o coração da Margarida, quando ouviu a irmã pronunciar
aquelas palavras, ao mesmo tempo que se lhe estampava no rosto, de forma violenta,
toda a dor que trazia acumulada.
A irmã foi em seu auxílio e disse-lhe:
- Agora é preciso coragem, não te deixes abater. É mais uma grave
contrariedade, mas tenho a certeza que irás ultrapassar mais este momento difícil
da tua vida, como tens ultrapassado em outras ocasiões. Agora já não irás sofrer
mais em silêncio, lembra-te que temos uma família, sempre disponível, para te
ajudar. Só foi pena que tivesses chegado a esta situação sem nos dizeres nada, com
uma cruz tão pesada em cima dos teus ombros.
Passado aquele momento e depois de estar mais calma, mas com algumas lágrimas a
escorrem pelas faces, perguntou à irmã:
- Viste-o com outra?
- Vi e de que maneira!
- Com quem era e como é que os vistes?
- Toma, tens a resposta nestas fotografias.

A Margarida pegou nelas com sofreguidão e quando começou a ver a primeira ficou
estupefacta, nem queria acreditar no que estava a ver. Naquele momento, havia dor,
revolta e indignação ao mesmo tempo. Dos seus olhos começavam a sair lágrimas mais
de amiúde; mas à medida que ia vendo as fotografias, iam caindo copiosamente em
cima de blusa que tinha vestida e não conseguiu manter-se de pé, teve de sentar-se
numa cadeira amparada pela irmã.
Passado algum tempo, depois de ter exteriorizado toda a sua dor e indignação,
quando já não tinha mais lágrimas para verter e os soluços começaram a ser mais
compassados, com voz trémula, perguntou à irmã:
- Como é que conseguiste estas fotografias?
A irmã descreveu-lhe tudo o que se passara, desde o motivo que a levara a ir
para o Lido e pela revolta que sentira, até à ânsia de encontrar a máquina
fotográfica.
Quando a Carolina acabou de narrar os factos e de lhe ter incutido força e
ânimo e ter-lhe feito sentir que, no meio daquele desgraça, tivera sorte em
conseguir as fotografias, porque se não fosse assim, estava sujeita a continuar a
sofrer, sem poder provar que o marido a andava a trair. Agora estava um pouco mais
conformada, algumas palavras de revolta, soltaram-se-lhe dos lábios e ecoaram pela
casa:
- Traidor! Se calhar nunca se desligou daquela cabra e eu convencida que o amor
daquele porco era puro e sincero. Como é que eu me deixei enganar por aquele
safado?
- Podia ter sido só uma aventura - disse a irmã, na tentativa de lhe dar algum
alento.

- Não foi, Carolina, uma aventura não é andar meses a chegar tarde a casa,
algumas vezes já de madrugada, faltar aos deveres de pai e de chefe de família, com
o maior descaramento, dando desculpas esfarrapadas e tentando tapar o sol com a
peneira.
- Agora o que é que vais fazer Margarida?
- Vou divorciar-me e pedir-lhe que não ponha aqui mais os pés, com umas provas
destas, não hesito um momento, vá lá para o pé da outra cabra. Felizmente, tenho um
curso que dá para sustentar o meu filho e para me sustentar a mim, sem ser preciso
a ajuda dele para nada. Só tenho pena do meu filho começar a crescer no meio de
pais separados e dos meus sogros que vão apanhar um desgosto muito grande, mas não
tenho culpa nenhuma, o grande culpado é o outro traidor e fingido.
- Deixa lá, Margarida, não és tu a primeira, nem serás a última, vê-se por aí
tanta tristeza, assim é melhor, do que andares a sofrer toda a vida. Cortas logo o
mal pela raiz, ainda és nova, qualquer dia aparece outro rapaz no teu caminho.
- Não me importa! Quero é que ele me deixe em paz, vá lá para o pé da outra,
tenho o meu filho, o resto não me interessa.
- Pronto, Margarida. Tem calma! Agora, temos é de preparar a mãe. Queres que a
vá já preparando, para não receber a notícia de chofre, ou queres ser tu a prepará-
la?
- Não, não Carolina, até te agradeço que o faças tu, sempre é mais uma
preocupação que tiras de cima de mim.
- Bem, agora vou-me embora, porque disse à mãe que não me demorava e como lhe
disse que me doía a cabeça pode estar preocupada.
- Vai Carolina, obrigada por tudo.
Quando a irmã ia a sair, a Margarida chamou-a entregou-lhe algumas fotos e
disse-lhe:

- Leva estas fotografias e os negativos. A mim basta-me estas duas para o


desmascarar e assim mesmo que ele as descubra e as destrua, já não há perigo; temos
essas, guarda-as bem guardadas.
- Fica descansada, ficam bem entregues.
A Carolina foi-se embora e a irmã ficou a pensar na traição que o marido lhe
fizera e a meditar no que seria o seu futuro dali em diante.
A suspeita que o tempo devia ter carcomido, aparecia agora transformada em
realidade e o amor que o Carlos lhe tinha, que ela acreditava ser sincero, via-o
agora como um amor fingido.
Quando o marido chegou a casa, ela estava revoltada e indignada a olhar para
uma das fotografias. Assim que ouviu passos, escondeu-as logo no bolso do avental e
ficou sentada, com ar triste, a olhar para um quadro pendurado na parede, a
representar o Outono, com muitas folhas amarelas caídas no chão e outras a
soltarem-se das árvores.
Ele aproximou-se dela e tapou-lhe os olhos; não era preciso grande esforço,
para adivinhar de quem eram as mãos. Ela afastou-as de supetão e manteve o mesmo
olhar e o mesmo silêncio. Ele estranhou aquele comportamento, deu meia volta e
ficou em frente dela e disse-lhe em tom gracioso e com uma pontinha de reproche.
- Tu és má, pagaste-me a carícia que te fiz com um gesto indelicado.
Ela olhou para ele com ar de desprezo e de revolta. Não disse nada, mas pensou:
- Já não preciso das tuas carícias, seu traidor, guarda-as para a outra.
Ele interrogava-se a respeito daquele comportamento e olhava para ela, a tentar
descobrir no seu semblante o enigma que a atormentava. Tentou sentar-se ao lado
dela, mas no momento em que o fazia, ela levantou-se e foi para a cozinha e sentou-
se numa cadeira, ele foi logo atrás e perguntou-lhe:

- Porque é que me estás a evitar, Margarida, que mal é que eu te fiz para
estares assim?
A mulher olhou para ele, com um olhar que fulminava e respondeu-lhe:
- Eu não estou a evitar-te, tu é que me tens evitado, com a tua hipocrisia, com
o teu comportamento e com a tua traição.
No momento em que dizia estas palavras, a revolta, a tristeza e a palidez que
lhe iam na alma eram enormes e profundo o abatimento. Algumas lágrimas soltaram-se-
lhe dos olhos, mas para as ocultar, tapou-os com as mãos.
O marido apercebeu-se que ela já tinha conhecimento do romance que vinha
mantendo com a Conceição. Ficou apreensivo sem saber como reagir e sem imaginação
para inventar mais uma das suas desculpas, mesmo esfarrapadas. Por um momento
manteve-se calado, à procura das palavras que lhe havia de dizer.
A Margarida, embora com as lágrimas nos olhos, mantinha-se calma aparentemente
mas com o coração ferido e a revolta a tumultuar no seu interior, prestes a
irromper.
Ele continuava a procurar as palavras adequadas para se defender. Passados
alguns segundos, as mesmas brotaram-lhe sem hesitação e sem pudor, como se uma boa
representação apagasse toda a mágoa, todo o sofrimento e resolvesse a situação de
um momento para o outro.
Aproximou-se dela e com uma ternura desmedida e hipócrita, tentou limpar-lhe as
faces, ao mesmo tempo que lhe dizia:
- Deve haver algum mal entendido meu amor. Devem ter-te dito alguma aldrabice a
meu respeito e tu acreditaste. Não queres dizer-me o que se passa, para eu te poder
dar alguma explicação e para me poder defender?
Quando ele disse estas palavras, ela não aguentou mais e numa voz dolorida mas
enérgica, disse-lhe:

- Basta de hipocrisia e de traição, seu hipócrita, seu traidor! Vai dar os teus
carinhos à cabra com quem andas e deixa-te de ser cínico e farsante.
Ele ficou atónito, completamente desarmado. Era como se lhe tivesse rebentado
ali mesmo aos pés uma bomba de grande potência. Depois de ter obtido algum alento,
voltou a dizer-lhe:
- O que disseste é bastante grave e injusto, alguém andou a dizer-te aldrabices
e a meter macaquinhos na cabeça e tu acreditaste no que te disseram, sem me ouvires
primeiro, para me poder defender.
A mulher olhou para ele com um ar de desdém e num tom agressivo não se conteve
sem lhe dizer:
- És bem ranhoso e bem ordinário! Onde é que está a dignidade que tanto
apregoas? Seu falso, seu traidor e ainda por cima vens armado em vítima.
Depois, tirou as fotografias do bolso, numa das quais ele estava a beijar a
Conceição e outra abraçado a ela e disse-lhe:
Toma, vê essas fotografias, para saberes quem anda a meter-me macaquinhos na
cabeça. Podes rasgá-las se quiseres, porque tenho muito mais e bem guardadas, seu
mentiroso.
Ao ver as fotografias ficou estupefacto. A cor da vergonha tingiu-lhe as faces;
as doces recordações das horas felizes que passara com a Conceição tornaram-se em
pesadelos. Sem dizer mais nada, retirou-se para o quarto mas, no momento em que o
fazia, ela ainda lhe perguntou:
- Então, não tens nada a dizer, não te defendes, onde é que está o teu poder de
argumentação?
Ele não respondeu, quando chegou ao quarto, atirou-se para cima da cama e ali
ficou a meditar, no que seria a sua vida dali em diante.

- Como é que ela descobriu, quem seria que tirou as fotografias sem nos
apercebermos? Deve ter contratado alguém para me perseguir. Isto é obra de algum
profissional, a minha vida está destruída, ela não me vai perdoar. A única coisa
que posso fazer, é tentar recompor as coisas, fazendo-lhe sentir que foi um momento
de infelicidade que me aconteceu - pensava ele.
Estava ansioso que a mulher se fosse deitar, para tentar convencê-la de que
tudo não passara de um acidente de percurso, um momento infeliz que acontecera na
sua vida; mas ela foi para o quarto do filho e dormiu num sofá; ou melhor, tentou
dormir, porque, naquela noite, quase não conseguiu pregar os olhos, porque o sono
andava arredio. Grande parte do tempo, passou-o sentada ao lado do filho a pensar
na sua vida e em tudo o que lhe acontecera.
De vez em quando, contemplava-o com imensa ternura e com algumas lágrimas a
escorrerem-lhe pelas faces:
- Querido filho, tu é que irás sofrer mais, por causa da leviandade do teu pai,
mas não tenho outra solução, senão a de me separar dele; por ti ainda me
sacrificava se ele se emendasse, mas não ia dar resultado, porque ele trocou-me
pela outra cabra e tu ainda ias sofrer mais; é melhor cortar já agora o mal pela
raiz, um dia mais tarde irás compreender - pensava ela.
No dia seguinte, logo pela manhã, o marido foi ter com ela, para deitar água na
fervura e com uma ténue esperança de ainda a convencer a desistir do divórcio e que
tudo não passara de um acto irreflectido que tivera, de uma aventura que não
desejara.
Logo que se aproximou dela, tentou beijá-la, mas debalde, ela desviou a cara e
disse-lhe:
Guarda os teus beijos para a outra; depois levantou-se e foi para a cozinha.
Ele foi atrás dela e suplicou-lhe:
- Por favor, Margarida, deixa-me ao menos dar-te uma explicação da minha
leviandade e do acto irreflectido que tive, mas juro-te que não vai acontecer mais,
foi apenas uma aventura, um momento de fraqueza da minha parte.
- Eu até te perdoava, se fosse só uma aventura, um acto irreflectido como tu
dizes, mas não foi nada disso que se passou. Há meses que andas com a outra,
trocaste-me por ela e o descaramento é tão grande, que já não tens o mínimo pudor
em andares a exibi-la na praça pública, a fazer cenas vergonhosas, como aquelas das
fotografias.
- Não digas isso, Margarida, eu amo-te.
- Amavas, mas depois do que se tem passado, já começo a duvidar se o amor que
me tinhas era verdadeiro. Por isso é que não vale a pena estares com farsas, nem
com súplicas fingidas, porque só tens um caminho a seguir:
- Qual é? - perguntou ele com ar cândido.
- O divórcio para ficares com o caminho livre e ires viver com a outra cabra.
- Pensa bem no que estás a dizer e nas consequências que podem advir do
divórcio, principalmente para o nosso filho e até para os nossos pais.
- É isso que me dói, mas não há nada a fazer, tu é que devias ter pensado antes
nas consequências dos teus actos, mas não te importaste. Agora tens de arcar com as
responsabilidades, porque o único culpado desta situação és tu. Por mais que jures
e mintas, mesmo que eu mudasse de atitude, continuavas ligado à outra e eu apenas
servia para salvar as aparências e servir de criada; por isso não vale a pena
chorares agora lágrimas de crocodilo, porque o único caminho a seguir é o divórcio.
Não posso viver com um homem que não me ama e me trai a toda a hora. Se não me
deres o divórcio por mútuo consentimento, vou tê-lo litigioso, provas não me faltam
e que provas... - disse ela com as lágrimas a escorrerem em bica pelas faces.
Ele ainda tentou com reflexões e súplicas desviá-la da ideia do divórcio, mas
ela resistiu com indignação e lágrimas.
Na tarde daquele dia, ele voltou a pedir-lhe para que desistisse da ideia de
levar para a frente o divórcio, mas em vão.
Quando se lhe esgotaram os argumentos e via a possibilidade de reconciliação
cada vez mais afastada, era como se estivesse a atravessar um pântano de areias
movediças, prestes afundar-se e uma ânsia enorme de falar com os pais, antes da
mulher falar com eles, por recear que ela lhe mostrasse as fotografias e temer a
reacção deles.

Depois de muito reflectir, chegou à conclusão que uma vez que já não havia
possibilidade de reconciliação, o melhor caminho a seguir seria o divórcio por
mútuo consentimento, porque não tinha a mínima hipótese de se defender e assim
suavizava mais o desgosto que iria causar aos pais.
No dia seguinte, logo que se levantou, dirigiu-se ao quarto do filho, onde
estava a mulher e disse-lhe:
- Preciso falar contigo!
- Se é para insistires na mesma conversa não vale a pena, é tempo perdido.
- É sobre isso mas é para resolvermos as coisas pelo bem.
- Está bem, espera na sala que eu já lá vou ter para falarmos no assunto. aqui
não dá, porque o nosso filho pode acordar e além disso, não quero falar desse
assunto no quarto dele.
Alguns minutos depois, foi ter com o marido e disse-lhe:
- Pronto, já estou aqui, diz lá o que é que tens para me dizer?
- Já que não há possibilidade de reconciliação, estou na disposição de
colaborar contigo, para resolvermos o problema do divórcio por mútuo consentimento,
mas gostava que suavizasses a situação e não mostrasses as fotografias aos meus
pais.
- Se calhar ainda queres que lhes diga que fui eu a culpada?
- Não é nada disso. Podes dizer-lhe a verdade, mas atenua a situação o mais que
puderes, não lhe mostres as fotografias, para lhes evitar um desgosto maior.
Ela compreendeu a situação e na altura em que o marido lhe fazia esta conversa,
olhou para ele com alguma compaixão e esqueceu por um momento o sofrimento que lhe
causara e sentia algum amor que ainda lhe tinha a tumultuar no coração.

Depois do marido ter dito que colaborava, ela respirava de alívio, por não ser
necessário recorrer ao divórcio litigioso. Teria de haver um julgamento e queria
evitar que o seu nome andasse na boca das pessoas mal intencionadas, porque já
tivera um experiência amarga nesse campo e quanto menos se propagasse a sua
situação, mais difícil seria chegar ao conhecimento dessas pessoas.
Apesar dos imensos desgostos que a vida já lhe tinha pregado, sabia que a mesma
nem sempre lhe era madrasta e isso dava-lhe algum alento, para a ajudar a vencer as
contrariedades e ultrapassar os obstáculos.
Uma semana depois, estava ultrapassado o primeiro obstáculo, tanto os pais dele
como os dela já estavam ao corrente da situação. Embora tivessem sentido um grande
abalo quando tiveram conhecimento, aceitaram os factos com resignação, porque tanto
a Margarida como o marido, souberam prepará-los muito bem, conseguiram manter a
calma e apelar ao bom senso, para resolverem os problemas num clima de paz,
culpando o destino por tudo o que acontecera.
Um mês depois da acção ter dado entrada no Tribunal, realizou-se a primeira
conferência.
Durante o período em que a Margarida esperava pela segunda conferência, pouco
saía de casa e, quando o fazia, era porque a irmã insistia com ela para sair.
Num desses dias em que a irmã a convenceu a sair, estavam no Café Apolo, quando
ali entrou a Beatriz. A Margarida assim que a viu, chamou-a logo para se sentar na
mesma mesa e sentiu uma grande alegria ao vê-la ali, como se tivesse necessidade de
desabafar com ela em mais aquela fase negra da sua vida. Apesar da sua tristeza, no
momento em que a amiga se sentou, notou-se algum brilho nos olhos, mas não
conseguiu dissimular a tristeza que sentia bem estampada no seu semblante.
A Beatriz, ao vê-la com ar triste e tão abatida, perguntou-lhe logo:
- O que é que tu tens, Margarida, estás com mais algum problema?
- E que problema, querida amiga!
- Até me deixas assustada. O que é que te aconteceu agora? Se eu te puder
ajudar, já sabes como é.

- Obrigada, parece que fui predestinada a sofrer. Além do que já se passou


comigo, como tu sabes, parece que o meu destino ainda não se conformou com o que já
sofri; agora foi o meu marido que me traiu.
- Não me digas, mas tu eras feliz?
- Era, mas a felicidade não assentava em bases sólidas, como se veio agora a
verificar.
No momento em que a Margarida dizia estas palavras, duas lágrimas apareceram-
lhe ao canto dos olhos. Apesar de as ter limpo logo, a Beatriz apercebeu-se e
apressou-se a dizer-lhe:
- Se não quiseres falar no assunto, para não sofreres mais, não fales. Seja em
que circunstância for, conta sempre com a minha amizade.
- Obrigada, querida amiga, mas não ficaria bem com a minha consciência se não
te contasse. Até me faz muito bem desabafar contigo.
- Se assim é, não hesites Margarida, talvez até te possa ajudar, quando mais
não seja, com uma palavra amiga e com a minha amizade.
A Margarida começou a descrever mais aquele triste episódio da sua vida. À
medida que ia descrevendo os factos, a violência da crise acentuava-se cada vez
mais no seu rosto; o olhar vivo e alegre, o sorriso espontâneo e rasgado que
estavam sempre patentes no seu rosto, andavam bastante arredios.
À medida que ia descrevendo a situação, a Beatriz ia ficando cada vez mais
comovida com a pouca sorte da amiga e a intervalos, tentava animá-la com palavras
amigas e de esperança, lembrando-lhe os dias difíceis que já vivera e a coragem que
tivera para ultrapassar os obstáculos e as contrariedades, sem se deixar abater
pelo desânimo e saberia ultrapassar mais aquela triste situação que agora se
deparara na sua vida.
Quando a Margarida terminou a descrição, sentia-se aliviada, por ter desabafado
com a amiga o que se estava a passar naquela fase negra da sua vida, como já o
fizera noutras ocasiões, quando o infortúnio lhe bateu à porta.

Os olhos doridos e murchos pareciam reviver alguma luz há imenso tempo arredia
e dos seus lábios soltaram-se-lhe alguns sorrisos descorados, principalmente,
quando a Beatriz lhe falava de alguns episódios que se tinham passado, naquela
tarde de má memória em que tiveram de enfrentar o Hugo.
Aquela conversa que a Margarida tivera com a amiga serviu de alento para
continuar a lutar contra todas as adversidade e passados alguns minutos estavam
todas envolvidas numa animada conversa.
Uma hora depois, apareceu ali o irmão da Beatriz à procura dela, para a levar
para casa na sua própria viatura. A irmã apresentou-o às amigas e pediu-lhe para se
sentar e para ficar um pouco. Ele condescendeu e alguns minutos depois, já estava a
participar na conversa.
O Adriano era um rapaz forte, culto, bom conversador, mas sem exagero nem
timidez; sabia ouvir e era escutado com atenção.
A Margarida aproveitou a ocasião para lhe agradecer por a ter ajudado e aos
pais, numa altura em que tanto precisavam. No momento em que lhe agradeceu, ficou
um pouco comovido, ao lembrar-se do que ela passara, porque a irmã já o tinha posto
ao corrente do sofrimento que suportara e da luta que travara, para defender a sua
honra e a sua dignidade; mas quando teve conhecimento da última infelicidade que
lhe batera à porta, a comoção aumentou ainda mais e começava a sentir uma
verdadeira amizade por ela.
Ele procurava as palavras mais adequadas para a animar e seguir em frente,
porque a infelicidade não iria andar sempre a bater-lhe à porta e lamentava as
injustiças deste mundo:
- É verdade que todos nascemos e morremos iguais, mas essa igualdade termina
logo, assim que acabamos de entrar neste mundo; uns nascem em berços de ouro,
outros em berços mais modestos, a grande maioria nem berço tem e muitos começam a
sofrer logo à nascença.

Depois pela vida fora, os mais afortunados são colocados no cimo das montanhas,
já com asas para voar, outros para chegarem lá, têm de lutar muito e a esmagadora
maioria nem sequer consegue atingir o sopé das mesmas. Só depois ao morrer é que
aparece a igualdade, desconhecendo-se, porém, o que irá passar-se daí em diante. É
de facto um grande mistério, que nos leva a perguntar a nós próprios o porquê de
tanta desigualdade, logo à nascença de cada um - dizia ele.
Quando saíram, fez questão de as levar a casa, embora elas alegassem que tinham
a paragem do autocarro ali perto e que não era necessário estar a maçar-se; mas ele
insistiu e a irmã corroborou e acabaram por aceitar.
Os dias ia passando, a Margarida passava a maior parte do tempo na casa dos
pais e só de vez em quando, é que ia à sua residência; o mesmo se passava em
relação ao marido, que adoptou o mesmo sistema e passou a viver com os pais. Alguns
meses depois, era feita a segunda conferência e decretado o divórcio.

A Carolina, depois da irmã ter tirado o Magistério Primário, começou a sentir


inclinação para seguir o mesmo caminho. Incentivada e apoiada pela própria irmã,
começou a frequentar aquele estabelecimento de ensino.
No mesmo ano em que a Margarida se divorciou, ela tirou o curso e começou a
nascer-lhe a ideia de casar, uma vez que já tinha o emprego garantido; o mesmo se
passava em relação ao namorado, que já lhe tinha falado algumas vezes no assunto.
Face a esse desejo mútuo, depois de terem falado com a família, resolveram marcar o
casamento, para o mês de Julho do ano seguinte, que era a altura em que o pai dela
tinha férias.
No dia em que a Matilde recebeu a carta do marido, na qual dava a notícia em
que concordava com o casamento e com a data proposta, a Carolina que se encontrava
em casa no momento em que o carteiro entregou a missiva, estava ansiosa para saber
a opinião do pai a respeito do casamento e da data proposta para a realização do
mesmo. Assim que a mãe lhe disse que o pai concordava, sentiu uma enorme
felicidade, uma onda de alegria nasceu-lhe no seu interior e estampou-se-lhe no
rosto. Ela via-se já vestida de noiva a entrar na igreja, ao lado do seu pai, ao
som de uma marcha nupcial.
- Estás feliz filha? - perguntou a mãe também ela com enorme felicidade.
- Muito, mãe.
- Ainda bem, Deus queira que tenhas mais sorte do que teve a tua irmã. Não
esperava que o Carlos fosse tão falso.
- Porque é que será que ele não quis casar na igreja?
- Essa pergunta também já eu fiz a mim mesma, muitas vezes e, se calhar, ele já
fez aquilo com alguma intenção. Deus me perdoe, posso estar errada, mas depois de
tudo o que se passou, já acredito em tudo. Mas deixemos isso, já não podemos fazer
nada, agora temos de esquecer o passado e ter fé no futuro, que eu espero seja mais
risonho do que até aqui, principalmente para a tua irmã.

O tempo ia passando, embora não tão depressa como os noivos desejavam. A


ansiedade de iniciarem uma nova fase da sua vida, cheia de sonhos e esperança era
enorme e sentiam-se preparados para enfrentar as vicissitudes da mesma.
Finalmente, o tão desejado dia chegou; logo pela manhã, enquanto a noiva
preparava a mala para levar para a lua de mel, a irmã ajudava a mãe a preparar o
pequeno almoço para os convidados.
Depois da refeição estar bastante adiantada e a mala preparada, ambas foram ao
cabeleireiro. Quando dali saíram, era um pouco tarde, já estavam alguns convidados
em casa, prontos para acompanharem a noiva até à igreja.
A Carolina, depois de ter comido alguma coisa (pouco) é certo, porque naquelas
alturas, quem está na situação em que ela estava, nem se lembra de se alimentar,
porque o apetite anda arredio a ansiedade está presente por se aproximar a hora tão
desejada e a preocupação também, por recear que alguma coisa possa correr mal.

Uma hora depois, ia a caminho da igreja. Quando ali entrou, ao lado do seu pai,
com o passo cadenciado, ao som de uma marcha nupcial, cantada por dois tenores, os
olhares de todos os presentes convergiram para ela. Ia formosa e feliz: levava
candura no olhar e um sorriso encantador, a deixar transparecer toda a felicidade
que lhe ia no coração.
Quando chegou ao altar, já o noivo ali estava à sua espera também ele cheio de
felicidade bem estampada no seu semblante.
Terminada a cerimonia e depois de terem assinado o livro de registo, saíram da
igreja, alegres e sorridentes, com o coração a trasbordar de felicidade. Quando
apareceram à porta, um grupo de raparigas abriram alas e à medida que se iam
dirigindo para o carro, iam-lhe lançando flores, com alguns grãos de arroz à
mistura.
Quando entraram na viatura que os levaria ao restaurante onde iriam festejar o
casamento, os familiares e convidados ocuparam as suas e seguiram para o mesmo
local.
Quando ali chegaram, foram ocupar as mesas, para ser servido o jantar. Na mesa
destinada aos noivos ficou a Margarida; mesmo em frente, numa outra, ficou a
Beatriz, o irmão e as amigas mais chegadas da Carolina e da irmã.
O Adriano, de vez em quando, pousava o olhar no rosto da Margarida, tentando
fazer-lhe uma confissão silenciosa.
Ela mantinha o olhar natural mas no momento em que os olhares se encontravam,
sentia o coração abrir-se e uma atracção por ele cada vez maior.
A Beatriz, olhava de soslaio para eles, com enorme alegria, porque conhecia as
qualidades da Margarida e logo que teve conhecimento que a mesma estava divorciada
e livre, tudo fazia para os aproximar, porque a maior alegria que lhe podiam dar,
era ver o irmão casado com a amiga.
Ele sentia que os seus olhares eram bem recebidos, o que lhe acalentava imensas
esperanças e animava o coração.
Quando o jantar estava quase a terminar, começou actuar um conjunto e os noivos
foram abrir o baile. Depois retiraram-se e foram percorrer todas as mesas a falar
um pouco com os convidados.
No momento em que se retiraram, muitos convidados começaram a dançar. O Adriano
dirigiu-se logo à Margarida a convidá-la. Ela aceitou e no momento em que dava a
sua concordância, ele estendeu-lhe a mão e conduziu-a até à pista de dança. O
conjunto tocava uma valsa; assim que começaram a dançar, chamaram logo a atenção:
as ondulações do corpo da Margarida e a segurança dos seus passos adaptavam-se
lindamente aos movimentos do companheiro; dançaram com imensa graça e tanto encanto
que por alguns momentos, os olhares convergiram para eles principalmente os dos
seus familiares. que estavam felizes por os ver juntos.
Seguiu-se um tango; era a música que ambos preferiam, por lhes dar a
oportunidade de poderem falar pausadamente.
- A Margarida dança muito bem.
- Obrigado pelo elogio, mas o Adriano não fica atrás.
- Impressão sua, o mérito é todo seu, eu apenas a acompanho e deixo-me conduzir
pela leveza do seu corpo.
Ela achou graça à resposta e sorriu. Por um longo momento houve silêncio
enquanto continuavam a dançar. Quando a série terminou, ele convidou-a logo para a
seguinte, tendo obtido de novo a concordância da companheira.
Quando o conjunto começou de novo a tocar, outro rapaz antecipou-se e foi
convidá-la. Ela muito educadamente, pediu desculpa por não poder aceitar o convite,
alegando que já estava comprometida.
O Adriano assim que viu o outro rapaz aproximar-se da Margarida, ainda sentiu o
coração estremecer, mas estava convicto que ela não iria aceitar, por saber que
estava comprometida com ele e não iria quebrar o compromisso assumido, por conhecer
bem o seu carácter e quando viu o rapaz retirar-se, sentiu uma sensação de
felicidade e a firme convicção de que não era rejeitado por ela.
Durante o intervalo, ele olhava imenso para ela e quando os olhos se
encontravam, pressentia que a doçura do olhar dela era ditada pela voz do coração e
via os horizontes da felicidade a ficarem cada vez mais claros.
A irmã sempre atenta ao que se estava a passar, segredava-lhe ao ouvido:
- Qualquer dia é o casamento do meu querido mano.
- Ele sorria e respondia-lhe:

- Apenas dancei com ela uma vez e já estás a falar em casamento, deves estar a
sonhar.
- Tens razão! Estou a sonhar e bem, só que, desta vez, estou a sonhar com os
olhos abertos e não se pode esconder o que está à vista.
- Tonta, deves estar a delirar.
- Agora chamas-me tonta. Quem me dera que os meus delírios fossem sempre assim.
Trata bem a minha futura cunhadinha para ela não voar para outro ninho.
Quando a irmã lhe dizia estas palavras, o conjunto começou a tocar outra série.
Ele levantou-se logo, foi ao encontro da Margarida, estendeu-lhe de novo a mão e
ambos foram até à pista de dança. Logo que começaram a dançar, ele disse-lhe:
- Deixou o outro rapaz triste.
- Reparou nisso?
- Reparei.
- Mas deixei-o a si contente.
No momento em que a Margarida lhe disse estas palavras, ele apertou-a um pouco
mais contra o peito e naquele momento, sentiu ímpetos de a beijar uma e muitas
vezes e fazer-lhe a mais linda declaração de amor, baseada em autênticos esponsais,
porque começava a sentir um amor ardente por ela.
Seguiu-se um novo e longo silêncio, como se ambos estivessem à procura das
palavras que iriam dizer um ao outro. Terminado esse interregno, ele voltou de novo
ao diálogo:
- Não imagina como fiquei feliz, quando há bocadinho lhe disse que deixou o
outro rapaz triste e respondeu que me deixou a mim contente.
- Porque é que diz isso?
- Porque a amo e já há muito tempo, desde que a minha irmã começou a falar de
si e a vi pela primeira vez, mas só agora é que tive oportunidade de lhe dizer por
palavras, embora singelas, o que sente o meu coração e não imagina como ficaria
feliz se a pudesse ter por companheira toda a minha vida e dar-lhe a felicidade que
tanto merece.

A Margarida estremeceu e corou imenso, mas sentiu o coração abrir-se por


completo, para que o seu novo amor pudesse ocupar o espaço que já lhe estava
reservado. Por um longo momento, houve silêncio e foi ele que voltou de novo a
quebra-lo:
- Será que sou merecedor de entrar na sua morada?
Depois de mais um longo interregno, ela com um olhar cândido e voz doce disse-
lhe:
- A porta do meu coração já se abriu para si. Pode ocupar o espaço que lhe está
reservado.
Ao ouvir aquela resposta, o coração do Adriano encheu-se de alegria e já se
sentia a percorrer o caminho da felicidade, de mãos dadas com o seu amor.
Ela também sentia uma enorme felicidade e via já à sua frente o raiar de uma
nova aurora, o nascer de um novo dia.
Seguiu-se um longo intervalo, porque ia ser partido o bolo da noiva; era meia
noite quando foi partido e, uma hora depois, os noivos muito silenciosamente,
partiram para a lua de mel, sem ninguém se aperceber da sua saída.
Algum tempo depois, começaram a sair alguns convidados, mas os mais novos e os
familiares dos noivos, ficaram até a festa terminar.
Quando a Margarida chegou a casa, não tinha sono nem cansaço, apesar do
adiantado da hora, nem do esforço despendido, apenas sentia o coração a tumultuar
de felicidade. Já a manhã estava a romper, quando conseguiu adormecer.
O mesmo se passava em relação ao Adriano; quando chegou a casa, ia feliz. Era
como se uma fada lhe tivesse aparecido, a indicar-lhe o caminho da felicidade.
Também já era de madrugada, quando adormeceu.

O tempo ia passando e, com ele, a crise que se instalara na vida do Carlos, ia


desaparecendo aos poucos. Ele passou a viver com a Conceição, embora contra a
vontade dos pais dele, mas não tiveram outra solução, senão a de se resignarem e
aceitarem a situação como facto consumado.

Na regulação do poder paternal, tinha ficado assente, entre outras cláusulas,


que o filho ficaria entregue aos cuidados e guarda da mãe, podendo o pai tê-lo na
sua companhia, aos fins de semana, mas com a condição de o ir buscar a casa da mãe,
só depois do sol nascer e levá-lo, antes do astro-rei se pôr. Mas a Margarida
sabendo da adoração que os pais do Carlos tinham pelo neto, sempre que podia,
passava pela casa deles com o filho, para que eles o pudessem ver, porque nem todos
os fins de semana tinham essa oportunidade, porque o filho nem sempre o levava.
A atitude dela dava azo a que os ex-sogros continuassem a ter uma enorme estima
por ela e simultaneamente tinham um grande desgosto pelo facto de o filho não ter
sabido estimá-la, nem sabido aproveitar as qualidades dela.
Durante o primeiro ano, tudo correu dentro da normalidade, sem reparos, nem
convulsões. Mas algum tempo depois, a Conceição começou a convencer-se, que o facto
da Margarida passar de vez em quando pela casa dos pais do Carlos, podia ter outra
intenção, sem ser aquela de eles verem o neto e talvez estivesse aproveitar-se,
para tentar uma reconciliação com o ex-marido e era isso que ela não queria de
maneira nenhuma. Por esse motivo, começou a nascer-lhe a ideia de o convencer a ir
para a Venezuela, a trabalhar no supermercado do pai e ajudá-lo nos negócios.
Ao princípio estava renitente, por causa do filho, não queria separar-se dele;
mas ela tanto insistiu e com a força dos argumentos que utilizava, acabou por
convencê-lo não só a ir para a Venezuela como também a casarem no registo civil
antes de partirem.
Algum tempo depois, ele deixava de exercer a sua profissão e partia com a
mulher para aquele país.
A Margarida estava feliz, na companhia do filho e da mãe. Agora a vida sorria-
lhe, a felicidade acompanhava-a e quando algum pensamento lhe lembrava algum perigo
que pudesse surgir, sentia-se protegida pelo namorado, o qual amava profundamente e
também se sentia amada por ele.

Continuava a manter o mesmo relacionamento com os ex-sogros e sempre que podia,


passava pela casa deles com o filho, para que eles o vissem e pudessem tê-lo algum
tempo na sua companhia.
Já na Venezuela, o Carlos sentia imensa falta do filho e a enorme saudade que
tinha por ele era atenuada pelos telefonemas que lhe fazia de amiúde. O tempo ia
passando a saudade de o ver ia aumentando e os telefonemas já não eram suficientes.
Ainda pensou em regressar à Madeira e voltar a dar aulas, mas sentia-se lá bem.
Era ele que já dirigia o supermercado do sogro e ajudava-o ainda a realizar outros
negócios. Sempre que surgia a ideia de regressar, a mulher convencia-o sempre a
desistir. Mas depois de tanto insistir, ela aconselhou-o a entrar em contacto com a
Margarida e pedir-lhe para deixar que o André fosse a passar as férias grandes, na
companhia dele na Venezuela, por ser a melhor altura.
Ao princípio ele não concordava muito com a ideia, por saber antecipadamente
que a Margarida não iria permitir, mas depois da mulher lhe ter feito sentir que
não perdia nada se tentasse e assim já não podia culpar-se de não ter tentado.
Passados alguns dias, ele telefonou-lhe, mas ela recusou de forma terminante, o
que o deixou triste, mas conformado, por já esperar aquela resposta.
Depois do ex-marido lhe ter feito aquela proposta, reflectiu imenso e ficou
muito preocupada:
- Meu Deus, será que ele anda com a intenção de ficar com o meu filho e levá-
lo para o pé da outra sujeita? Não! Ele não faria uma coisa dessas, só o quer ver e
tem todo o direito, eu é que devo estar a fazer um juízo errado.
Ele continuou a telefonar ao filho de amiúde, mas os telefonemas já não
conseguiam suplantar a ansiedade de o ver, sempre a aumentar dia a dia. A mulher ao
vê-lo ficar cada vez mais triste e às vezes até desesperado por não poder ver o
filho, sugeriu-lhe um plano maquiavélico que era ir buscá-lo à Madeira, mesmo sem
autorização da mãe e, se necessário fosse, ela também o acompanhava.

Ao princípio ele não estava de acordo, por pensar que era uma deslealdade muito
grande e comportava sérios riscos que podiam trazer consequências incalculáveis.
Mas, a saudade de ver o filho era enorme e a persistência da mulher era quase
constante. Depois de muito reflectir, acabou por concordar com a ideia porque se
convencera que não seria muito difícil executar o plano, atendendo à abertura que a
Margarida sempre manifestara para que tivesse o filho consigo, embora dentro das
regras; e como ele antes sempre cumprira, chegou à conclusão de que seria fácil
convencê-la a que ele o tivesse na sua companhia alguns dias durante a semana.
Para que o plano fosse bem sucedido, ele passou a telefonar ainda mais do que o
habitual e alguns dias antes de sair da Venezuela telefonou ao filho e aproveitou a
oportunidade para anunciar à Margarida a sua vinda e pedir-lhe para autorizar que o
pudesse ter também, durante alguns dias de semana, enquanto durassem as férias. Ela
não lhe disse que sim, mas também não disse que não. Disse-lhe que logo se via.
Na noite a seguir ao telefonema, a Margarida teve um pesadelo terrível. Acordou
agitada e deu com a mãe a olhar para ela sentada ao lado da sua cama e perguntou-
lhe:
- O que é que te tens, minha filha, para estares tão pálida e tão agitada?
- Não calcula o sonho horrível que tive, até estou a transpirar por todos os
lados.
- Vai tirar essa roupa que está toda molhada, para depois me contares o que se
passou. Pode ser que eu te possa ajudar, nunca te vi transpirar assim.
A filha foi mudar de roupa, depois já mais calma foi de novo para a cama,
sentou-se colocou um travesseiro atrás das costas e disse para a mãe:
- Toque aqui na minha cara.
- Meu Deus! Está demasiado fria minha filha, não será melhor ires ao médico?
- Não, mãe, isto já passa, foi por causa do maldito sonho.
- Mas conta lá que raio de sonho foi esse?
- Sonhei que ia a passar à beira de um precipício e apareceu-me uma mulher com
ar pálido e olhar desvairado; tinha a boca irónica e de vez em quando sorria; mas
era um sorriso triunfante e mau; às vezes, murmurava algumas frases truncadas que
eu não entendia. Queria fugir mas não podia, tinha os pés agarrados ao chão. Depois
aproximou-se mais de mim e, com um gesto trágico, empurrou-me para o fundo do
precipício e depois apareceu com o meu filho ao colo e desapareceu no momento em
que eu, desesperadamente lhe pedia para mo entregar.
- Não faças caso filha, são dos tais sonhos desgraçados que de vez em quando
nos aparecem, mas infelizmente não os podemos evitar, porque não depende de nós, é
um grande mistério, mas sempre foi assim e há-de continuar a ser.
- Será algum mau presságio, mãe? Confesso que fiquei assustada, será que está
relacionado com o meu filho?
- Não, não penses nisso filha, foi apenas um sonho mau: - disse a mãe para a
sossegar, embora também ela tivesse ficado a meditar no que a filha lhe dissera.
Na segunda-feira da semana seguinte, na parte da manhã, apareceu em casa o ex-
marido para ver o filho e levá-lo consigo a dar uma volta.
Ela ficou assustada, lembrou-se do sonho que tivera e chegou a pensar que ele
ia raptá-lo, mas também pensava que era o pai e tinha o direito de o ver e de estar
com ele. Depois do Carlos tanto ter insistido, acabou por autorizar sem levantar
qualquer objecção, recomendando-lhe apenas que tinha de o levar antes do sol posto.
Assim que o pai levou o filho, ela foi para o seu quarto, abriu a janela e
interrogou o Céu.
- Será que vou ficar sem o meu filho?
O Céu não lhe respondeu e a dúvida continuou a pairar no ar. Olhava de vez em
quando para o relógio, como que a pedir ao ponteiro das horas para se apressar,
para que o dia chegasse o mais urgente possível ao fim, para ter o filho na sua
companhia. Mas o ponteiro também não lhe fez a vontade e seguia a sua marcha
certinha, sem lhe dar ouvidos.
Como não obteve resposta, ergueu o pensamento a Deus, com algumas lágrimas a
escorrerem-lhe pelas faces, fez-lhe uma prece e sentiu um raio de esperança a
entrar no seu coração que parecia dizer-lhe:

- Não chores, o teu filho irá crescer na tua companhia.


Depois ficou mais tranquila e finalmente a tão desejada hora chegou e com ela
chegou também o filho, pela mão do pai, como de costume, sempre com a mesma
pontualidade. Quando a Margarida viu chegar o filho, respirou de alívio e as
pancadas do coração voltaram ao seu ritmo normal. Assim que o ex-marido lho
entregou, ele aproveitou logo a ocasião, para lhe pedir para que o deixasse sair
com ele no dia seguinte. Embora ela pudesse recusar, não o fez, porque compreendia
o natural desejo de o pai ter o filho consigo o maior tempo possível na sua
companhia, enquanto estivesse de férias e tentava afastar os pensamentos negativos,
dando só guarida aos positivos.
No outro dia, logo pela manhã, o Carlos voltou de novo a casa dos pais da
Margarida, para levar o filho. Ela não fez qualquer objecção, fazendo-lhe apenas a
mesma recomendação que lhe fizera no dia anterior.
Meia hora depois do filho ter saído, bateu à porta uma colega que fazia parte
do grupo no qual a Margarida estava inserida, quando frequentavam o Magistério
Primário. Ela própria foi abrir:
- Teresa, por aqui a estas horas o que é que se passa?
- Tens de tomar providências o mais urgente possível. Não podes perder tempo. A
safada da Conceição veio cá com o marido, para raptarem o teu filho. Desculpa dar-
te a notícia assim desta forma tão violenta, mas não consegui encontrar outra
maneira, eu também ando nervosa desde que soube da safadeza a da traição que te
querem fazer.
Ao ouvir aquelas palavras, a Margarida ficou atónita, as faces tingiram-se-lhe
de vermelho e, quase em acto contínuo, ficou pálida. Depois um suspiro rompeu-lhe
do coração e logo atrás soltaram-se-lhe palavras de dor e de desespero.

- Não, não pode ser, meu Deus, ajudai-me! Não deixeis que me tirem o meu
querido filho, eles não podem fazer isso! O que é que eu vou fazer agora? Onde é
que eu o vou procurar? Se calhar já andam fugidos com ele. Como é que soubeste,
Teresa?
- A Conceição, aquela safada, disse para uma amiga dela, que também é minha,
que o último a rir é sempre o que ri melhor. Além de teres ficado sem o marido,
ainda ias ficar sem o filho e já não ias tê-lo por muito mais tempo.
A amiga achou uma deslealdade muito grande e uma jogada muito suja e veio
comentar comigo. Como ela tem muito influência, pedi-lhe para saber se conseguia
saber mais alguma coisa e conseguiu saber que têm marcada viagem para amanhã às
dezassete horas e o André segue como se fosse filho do casal.
Estupefacta com o golpe que acabara de receber, nem sequer tinhas lágrimas de
desespero, nem de indignação. Há dores secas e cóleras mudas que antes de se
transformarem em lágrimas, destroçam primeiro o coração e só depois é que brotam em
abundância dando azo a um choro solto.
Já com o coração despedaçado e com as lágrimas a correrem em bica, não
conseguiu evitar um pequeno delíquio. A amiga ficou aflita e gritou:
- Dona Matilde, dona Matilde, traga um copo com água por favor. A mãe da
Margarida não respondeu, nem podia levar o copo com água, porque tinha saído cedo
para o mercado e não estava ninguém em casa. Felizmente, um momento depois, a
Margarida recuperou e a amiga respirou de alívio.
Já mais calmas, a Margarida telefonou para a irmã e para o namorado a contar-
lhes a situação. Agora a preocupação era imensa, o alvoroço estava instalado. A
Carolina telefonou logo para o marido e, meia hora depois, estavam todos em casa.
A revolta era total, mas exigia muita calma e muita prudência, principalmente
para não causar nenhum trauma à criança. Quando chegou a Matilde ia com ar feliz,
mas assim que os viu juntos, o coração estremeceu e o rosto ficou pálido.
- Meu Deus, o que teria acontecido para estarem aqui todos juntos com a menina
Teresa.
Quando ia perguntar o que se passara, a Carolina apercebendo-se da angústia
dela, - antecipou-se e disse-lhe:

- Calma, mãe, não se assuste. Houve um problema, mas nós vamos resolve-lo.
- O que é que aconteceu? Dizei-me depressa, senão eu não aguento.
- Não fique nervosa dona, Matilde. Tudo se vai resolver. É por isso que estamos
aqui - disse o Adriano, tentando tranquilizá-la.
Depois a Carolina contou-lhe o que se estava a passar e tentou suavizar a
situação com a ajuda de todos, à excepção da Margarida que apenas chorava e pedia a
Deus que lhe levasse o filho.
Quando todos estavam mais calmos e depois de terem estudado vários cenários
como possíveis de conseguirem localizar o Carlos e obrigá-lo à força a entregar o
filho à mãe, na hipótese da justiça não poder intervir por não haver tempo, devido
à rapidez como os raptores agiram, o Pedro entrou em contacto com o advogado e
contou-lhe toda a situação e para os aconselhar, o melhor caminho a seguir.
Uma hora depois, estavam todos no escritório do jurisconsulto, inclusivamente a
amiga da Margarida, preparada para o que fosse necessário.
A preocupação era bem visível no rosto de todos, mas o advogado tranquilizou-
os, dando-lhes muitas esperanças de que ainda era possível através da justiça,
impedir que o rapto se consumasse.
A Margarida estava desolada, quase a entrar no campo do desespero, e só não
atingiu o estado crítico, devido ao ânimo que o advogado lhe incutia.
- A Margarida tem tido pouca sorte. Primeiro foi o caso do senhorio, agora
este, mas fique descansada, vou já tomar as providências necessárias para ver se
conseguimos resolver mais esta situação.
- Faça tudo o que estiver ao seu alcance, Sr. Dr., para não me levarem o meu
filho, senão eu morro.
- Fique descansada. Vou já preparar a providência cautelar, para entrar no
Tribunal o mais rápido possível e falar com o meritíssimo juiz, para ver se as
testemunhas são logo ouvidas.
Uma hora depois, entrava no Tribunal a providência cautelar e logo quase a
seguir, estavam a Teresa e a amiga que lhe transmitira a notícia, que entretanto
fora contactada, a serem ouvidas na qualidade de testemunhas.
Após a audição das testemunhas, o tribunal ainda fez algumas diligências que
entendeu serem bastante úteis para confirmação da verdade.
Depois de obtidas todas as provas, foi decretada a entrega do menor à mãe e
comunicado às autoridades competentes que prestavam serviço no aeroporto para não
deixarem embarcar o casal em causa.
Quando o advogado teve conhecimento da decisão do juiz e a transmitiu, o
coração da Margarida encheu-se de alegria e os seus olhos brilharam com tanta
intensidade, que pareciam comungar da mesma alegria. Era como se um raio de luz lhe
tivesse iluminado o caminho da esperança no meio da escuridão.
Hora e meia antes do embarque, já estava um oficial de justiça no aeroporto,
munido com os documentos legais, para fazer a entrega do menor.
Quando chegou, já a Margarida ali se encontrava para receber o filho,
juntamente com o namorado, com a irmã e com o cunhado. O oficial de justiça
recomendou-lhes muita calma e fez-lhes sentir que a diligência tinha que ser feita
com muita prudência, de modo a não causar o mínimo trauma para a criança e a evitar
cenas desagradáveis e pediu-lhes para ficarem longe do local onde iria ser feito o
chek-in, devendo ficar perto dele apenas o namorado da Margarida para lhe indicar o
casal por ser desconhecido deles.
Alguns minutos depois, logo que abriu o chek-in, entrou o Carlos com o filho ao
colo e a mulher ao lado. Ainda não estava nenhuma pessoa a ser atendida. Eles foram
os primeiros a chegar, com a finalidade de serem logo atendidos e afastarem-se o
mais rápido possível daquela área, para que ninguém da família da ex-mulher os
visse ali, por temerem que alguém soubesse da saída deles.
Quando se preparavam para fazer o chek-in, o encarregado da diligência dirigiu-
se-lhes, identificou-se e depois disse para o marido:

- Não faça ainda o chek-in, estou aqui para cumprir uma ordem do tribunal, mas
é melhor afastarmo-nos daqui, para falar do assunto e para não perturbar as pessoas
que querem ser atendidas.
Quando o oficial de justiça disse aquelas palavras, apercebeu-se logo, que era
por causa do filho que ele ali estava e nem queria acreditar no que acabara de
ouvir.
- Ela descobriu! Alguém me denunciou, o que é que eu vou fazer agora? - pensava
ele.
Afastou-se um pouco para dar lugar aos passageiros que estavam atrás e
respondeu:
- É por causa do meu filho?
- É.
- Se é para o tirarem do meu poder, é tempo perdido, estou bem informado e não
há nenhuma lei que não me dê razão - disse ele com um ar um pouco agressivo, sem no
entanto ser mal educado.
- Já estou a ver que vai ser um bico de obra convencê-lo a entregar a criança -
pensou o oficial de justiça, depois disse-lhe:
- Eu tenho aqui um mandado do tribunal para entregar o seu filho à mãe dele e
seria bom que resolvêssemos a situação da melhor maneira, para não o traumatizar,
porque já compreende as coisas e para evitar situações desagradáveis porque, se o
senhor teimar em não querer entregar a criança a bem, vai ter que a entregar a mal
e é isso que temos de evitar.
- Não, não entrego! Além disso, ela não está aqui para receber o meu filho, o
que me faz pensar que há aí qualquer coisa de errado.
A mulher que até então estava calada, em vez de ajudar a resolver as coisas
pelo bem ainda as complicou mais num gesto um pouco deselegante e numa voz
autoritária, disse para o marido:
- Não entregues o menino! És o pai dele. Não é só ela que tem direito a tê-lo
na sua companhia, teve-o mais de um ano e tu não o podes ter uns dias, só neste
país é que se passam coisas destas. Que raio de leis são estas?
- São as leis que temos e são para serem cumpridas, quer se goste ou não e
agradecia que a senhora não esteja a incendiar a situação porque ainda piora as
coisas. Já que não quer ajudar, pelo menos esteja calada, porque o assunto é com o
seu marido - disse o oficial de justiça, levantando um pouco o tom de voz.
O marido interrompeu e disse:
- Ainda não me esclareceu, com é que eu vou entregar o filho, se ela não está
aqui?
- Eu ia responder-lhe. A sua mulher está cá e só não está aqui presente porque
lhe pedi e às pessoas que a acompanham para ficarem afastadas, porque a vontade
deles era serem eles a resolver o problema à maneira deles e é isso que eu quero
evitar. Parece-me que fui claro. Por isso, aconselho-o a não levantar mais
problemas, porque se continuar a insistir na sua teimosia, sujeita-se a dissabores
muito desagradáveis e já não segue para a Venezuela.
Quando o oficial de justiça disse estas palavras, ele assustou-se afastou-se um
pouco mais, falou com a mulher, abraçou o filho, e num tom ríspido disse:
- Eu vou entregar o meu filho, mas isto não fica assim, onde é que está a mãe
dele?
O oficial pediu ao Adriano que estava um pouco afastado para ir chamar a
Margarida. Alguns segundos depois ela chegou e foi então que o ex-marido se
apercebeu do risco que estava a correr, quando a viu acompanhada com a família.
Sem fazer mais comentários, nem objecções, mas com o coração dorido e a ira
estampada no rosto, entregou o filho à Margarida, sem no entanto perder a
tramontana. A mãe recebeu-o com o coração cheio de alegria, com alguma indignação e
também com muita comoção à mistura, mas conseguiu que a comoção não se
transformasse em lágrimas e esboçou alguns sorrisos para o filho e dizer-lhe, em
linguagem maternal, algumas palavras próprias para as crianças, fazendo-lhe sentir,
que o pai voltava qualquer dia e depois tornava a brincar com ele. Falava-lhe a
linguagem adequada para o ajudar a suportar a separação, evitando simultaneamente
que as pessoas se apercebessem do que se estava a passar.

Depois, o Carlos dirigiu-se para o balcão juntamente com a mulher para fazerem
o chec-in ambos com a ira estampada no rosto, mas também com alguma vergonha à
mistura, a pensarem em tudo o que acontecera. Depois de terem feito o chek-in,
dirigiram-se logo para a porta de embarque, porque os passageiros do voo em que
eles iam, já estavam a ser dirigidos para o avião.
A Margarida, logo que recebeu o filho, seguiu para o Funchal, na viatura do
namorado, juntamente com a irmã e o cunhado. Agora já com o filho nos braços,
estava muito feliz não só por ter o filho consigo, mas também por mais aquela prova
de amor e solidariedade que o namorado lhe dera. Durante a viagem, já com a
tempestade passada e a navegarem nas águas da bonança, a alegria entre todos era
constante e de vez em quando vinham à baila alguns dos episódios que se passaram
com a Margarida, o que a levou a certa altura da conversa a dizer:
- Que mais me irá acontecer?
- Ora o que é que te irá acontecer? Agora que a tempestade já passou, vem a
bonança e com ela o casamento - disse a irmã com um largo sorriso nos lábios.
- Ao ouvirem aquelas palavras, a Margarida corou, embora gostasse de as ouvir e
o namorado recebeu-as com enorme alegria, porque era o que mais ansiava.
Depois de uma leve pausa, a Margarida respondeu:
- Descarada, quando estás para a brincadeira só dizes asneiras.
- Não disse asneira nenhuma, o que eu disse é uma pura verdade, é ou não é
Pedrinho?
- É, tens toda a razão.
Quando chegaram a casa, a Matilde já estava à espera e assim que viu a filha
com o neto ao colo, uma onda de alegria invadiu-lhe o rosto, ao mesmo tempo que
agradecia a Deus por ter ouvido as suas preces.
Depois das filhas lhe terem contado alguns dos episódios que se passaram no
aeroporto, foi preparar o jantar e embora as filhas a quisessem ajudar, ela não
permitiu, o que levou a Margarida a comentar:
- A mãe pensa que ainda tem dezoito anos, porque é que há-de fazer tudo
sozinha?

- Não te preocupes minha filha, sinto-me bem assim e quanto mais felizes vos
vejo, melhor me sinto e hoje é um desses dias. É verdade que às vezes já me sinto
como uma rosa fanada, mas o que é feito por gosto não cansa.
- Não diga isso dona Matilde, está aí que nem uma rosa bem viva e ainda
conserva o aroma da juventude - disse o Adriano.
- Obrigado, senhor Adriano, mas tenho apanhado muitos desgostos e já por cá
anda muita ferrugem.
- Mas agora que a tempestade já passou, essa ferrugem ainda vai desaparecer.
- Já não desaparece, senhor Adriano, mas se Deus me deixar andar assim, já é
muito bom, o que mais quero na minha vida é ver as minhas filhas felizes, já
sofreram muito e também têm direito a ser felizes.
- Hão-de ser se Deus quiser.
- Deus o oiça, Sr. Adriano.
Depois de terem jantado, o Adriano embora gostasse de ficar mais algum tempo,
ao pé da namorada, não podia, porque ainda tinha de acabar um trabalho para ser
entregue no dia seguinte na caixa de previdência e não teve outro remédio senão ter
de despedir-se e ir para casa.
Pelo caminho, ia feliz por ter ajudado a mulher que tanto amava a ajudar a
resolver mais um grave problema e de vez em quando lembrava-se da conversa que a
Carolina fizera durante a viagem e começava a nascer-lhe a ideia de casar o mais
depressa possível, por estarem criadas as condições para que tal acontecesse.
Alguns dias depois, falou no assunto à namorada, tendo esta aceite a ideia de
bom grado, também ela desejosa que esse dia chegasse o mais depressa possível.
Ambos falaram com os pais, tendo obtido logo a anuência deles e marcaram o
casamento para o mês de Dezembro daquele ano, para que o pai da Margarida pudesse
aproveitar a Quadra Natalícia para a passar na companhia da família.

Os dias iam passando e à medida que a data do casamento se aproximava, havia


cada vez mais que fazer e as preocupações também aumentavam. A noiva e a irmã
andavam quase sempre juntas, a fazer os preparativos para o casamento. Poucos dias
antes da realização do mesmo, estavam a fazer compras num estabelecimento
comercial, na baixa da cidade, quando ali entrou o Raul. Olhou para ela, com ar
triste e apenas lhe disse:
- Olá, Margarida.
- Olá Raul.
- É estranho não ter dito mais nada e acho-o muito triste - disse a irmã.
- Ele tem tido azar. Depois de mim, já teve três namoradas mas não se
entenderam com ele e acabaram por deixá-lo por causa do maldito ciúme; o amor dele
tem um travo de amargura; um sorriso, um gesto, um olhar, a mínima coisa basta para
lhe turbar o espírito; depois de o ter conhecido melhor, até cheguei a pensar que o
meu próprio pensamento lhe causava suspeita.
- Como é que sabes que já teve três namoradas?
- Tenho uma amiga que já namorou com ele e é que me contou estas coisas e tu
tens sabido alguma coisa do Eduardo?
- Tenho, ele tem um prima que trabalha no mesmo hotel onde trabalha o Pedro e
já há alguns meses esteve a contar-lhe que a mãe e a irmã enquanto não os viram
casados com a Mónica não descansaram, mas depois começaram os problemas. As
próprias famílias que eram muito amigas, chegaram ao ponto de cortar relações e
eles acabaram por se divorciar, agora namora com outra.
- Quem diria! Tão amiguinhas como elas eram e acabar tudo assim. Porque é que
não me disseste mais cedo?
- Não calhou, nunca veio à baila, assim como tu também nunca me disseste que o
Raúl já teve três namoradas, são águas passadas de outras estações de que não vale
a pena falar.
- Tens razão Carolina, agora o que conta é o presente.
Depois de terem feito as compras, dirigiram-se logo para casa, porque outras
tarefas esperavam por elas.

Agora, o semblante da Margarida, que tantas vezes se apresentara sorumbático,


permanecia sempre jovial, o horizonte que tantas vezes se lhe apresentara carregado
de nuvens negras, via-o agora mais límpido como nunca o vira; era como se a
felicidade tivesse irrompido do meio da bruma e ali estivesse dentro do seu
coração, para a acompanhar toda a vida.
Finalmente o dia do casamento chegou.
Quando a noiva ia a entrar na igreja do Imaculado Coração de Maria, desviou o
olhar para o lado e viu o Raúl a olhar para ela, com ar sereno, mas com o coração
triste por ter deixado voar para outro ninho a mulher que tanto amava. Naquele
momento, sentia um enorme sofrimento; era como se as dores de todo o mundo tivessem
convergido para o seu coração, mas não podia fazer mais nada, senão conformar-se e
sofrer em silêncio. Depois de ela ter entrado na igreja, retirou-se a pensar na sua
bela amada e a recriminar-se por não ter sabido aproveitar um amor puro que ela tão
desinteressadamente lhe oferecera.
Ela, feliz e serena, continuou a sua caminhada em direcção ao altar,
acompanhada pelo seu pai, ao som da mesma marcha nupcial que tinha sido tocada para
a irmã e cantada pelos mesmos tenores.
Ia formosa e segura, como seguro era o amor que iria dedicar ao futuro marido
que já a esperava no altar, também ele cheio de felicidade, para iniciarem a
caminhada, em direcção ao santo matrimónio.
Depois de realizada a cerimónia, dirigiram-se para o restaurante onde iria ser
festejado o casamento, que era o mesmo onde fora festejado o da Carolina.
Já quase no final do jantar, o advogado que defendera a noiva nos dias difíceis
por que passara fez-lhes um panegírico, ouvido por todos em silêncio devido à sua
eloquência e às palavras que dissera, cheias de esperança, mas também com muitos
alertas, para as vicissitudes da vida.

Depois, os noivos foram abrir o baile e quando se retiraram, foram visitar


todas as mesas dos convidados: quando chegaram à mesa onde estavam os pais, na qual
também estava o advogado, a Margarida, depois de ter pousado o casto ósculo de
filha no rosto do pai, duas lágrimas soltaram-se-lhe dos olhos; mas limpou-as logo,
com a mesma rapidez com que se lhe soltaram. Porém, aquele gesto, não passou
despercebido ao advogado e disse-lhe:
- Sei que tem sofrido muito e tem derramado rios de lágrimas de tristeza, mas
as que apareceram agora no seu rosto eram lágrimas de felicidade, como facilmente
se pode ler no seu semblante.
- Tem razão Sr. Dr. as lágrimas que não consegui evitar eram lágrimas de
alegria. Estou muito feliz!
O pai que assistia ao diálogo com alguma comoção, não se conteve sem dizer:
Temos sofrido muito, a minha vida, a da minha mulher e a das minhas filhas têm
sido VIDAS DE SOFRIMENTO, mas agora somos felizes. Depois de tantos tormentos e
tempestades, conseguimos encontrar finalmente, o verdadeiro caminho da felicidade.
Logo a seguir, foi partido o bolo da noiva e meia hora depois, sem ninguém se
aperceber, os noivos seguiram para a lua de mel com o coração cheio de alegria.

-FIM-

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