Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Vidas de Sofrimento
D.P. 138676/99
I Parte
Naquela tarde cálida de Agosto, o Leonel não tinha pressa de chegar a casa. Ao
contrário do que era habitual, em vez de se dirigir para a paragem do autocarro que
o levaria à freguesia do Imaculado Coração de Maria, onde morava, preferiu ir até à
Avenida do Mar, a meditar no que lhe tinha acontecido.
Vagueava naquela Avenida, como um barco à deriva, sem rumo, sem destino. A sua
agitação era enorme, o rosto parecia um mar de gotas de orvalho, que não conseguia
estancar, apesar de as limpar constantemente. Nem o zéfiro que se fazia sentir com
alguma intensidade, contribuía para o aliviar daquela situação.
Já o sol estava escondido e o céu a passar de purpúreo para plúmbeo, quando se
dirigiu para a paragem do autocarro.
A mulher estava preocupada com a demora, por recear que lhe tivesse acontecido
algo de anormal, porque não era costume chegar tão tarde; já tinha manifestado a
sua preocupação às filhas, mas elas tranquilizaram-na, alegando que era natural que
o pai tivesse encontrado algum amigo e estivesse com ele a beber alguma cerveja,
porque o calor era sufocante e convidava a tomar bebidas frescas.
Quando o Leonel chegou a casa, já as luzes estavam acesas. Ia de semblante
carregado e ar sorumbático, a deixar transparecer a preocupação que o atormentava,
por ter sido despedido do hotel onde trabalhava. A mulher, ao vê-lo entrar na
pequena porta que dá para o quintal, junto ao candeeiro de iluminação pública, um
suspiro de alívio rompeu-lhe do coração e uma onda de alegria estampou-se-lhe no
rosto; mas foi só por um momento, porque, quando se aproximou dele, notou que
estava diferente dos outros dias, com ar triste e cansado, o que a levou a
perguntar-lhe:
O que é que te aconteceu para vires nesse estado?
- Não aconteceu nada. É só uma má disposição.
- Não acredito! Deve ter-se passado alguma coisa contigo e estás a escondê-la
de mim. Mesmo que tentes disfarçar não consegues, porque a tua cara não te deixa
mentir.
- Já te disse que é só uma má disposição e se não te importas vai fazer-me um
pouco de chá para ver se isto passa.
- Está bem, eu vou, mas não creio que seja só isso que me estás a dizer; já te
conheço muito bem. Deus queira que esteja enganada.
A Matilde dirigiu-se para a cozinha para fazer o chá e o marido foi descansar.
Deitado em cima da cama, ia meditando no que seria a sua vida dali em diante:
- Como é que eu vou sustentar a casa e manter as filhas a estudar? - pensava
ele.
Embora estivesse convicto que seria difícil arranjar trabalho noutro hotel, ia
tentar e, se não conseguisse, não teria outra alternativa, senão a de ir trabalhar
para a construção civil, ou para a agricultura.
- Pelo meu lamento? Essa agora tem piada, não me lamentei com ninguém, como é
que podes afirmar uma coisa dessas?
- Não disfarce, pai, eu bem o ouvi a lamentar-se.
- Eu não sabia que agora andavas a espreitar atrás das portas. Olha que isso é
feio...
- Deixe-se de coisas, sabe bem que não é meu hábito andar a espreitar atrás das
portas mas, sem querer, ouvi-o a lamentar-se quando ia à cozinha, ver se a mãe
precisava de ajuda e fiquei preocupada. Foi por isso que entrei, para saber o que é
que se passa consigo.
- Já agora, posso saber qual foi o lamento que ouviste?
- Ouvi perfeitamente o pai perguntar-se como é que ia sustentar a família e
manter as filhas a estudar.
Ao ouvi-la proferir estas palavras, não conseguiu evitar o aparecimento de duas
lágrimas que, a muito custo, conseguiu suster e evitar que outras lhes sucedessem,
o que não passou despercebido à filha.
Quando a Margarida ia para falar, ele impediu-a de o fazer, colocando-lhe com
muita ternura a mão direita na boca:
- Não penses que as lágrimas que viste, no canto dos meus olhos são fruto da
minha preocupação. Nada disso! Elas são, isso sim, um sintoma da minha comoção, por
mais esta prova de carinho e ternura que acabaste de me dar e por isso estou muito
feliz e comovido. Tu e tua irmã, sois as melhores filhas do mundo. Fica descansada
que não aconteceu nada de grave. Agora vai ter com a tua mãe, porque pode precisar
da tua ajuda.
Quando o pai entrou para o quarto, a Margarida voltou de novo para a cozinha.
Quando ali chegou, a irmã que a tinha visto ir atrás dele, não se conteve sem lhe
perguntar:
- Foste ver se conseguias convencer o pai a desabafar?
- Fui, mas não consegui nada.
- Não vale a pena insistirmos, o melhor que temos a fazer é deixar passar mais
algum tempo a ver no que isto vai dar e não devemos pressionar mais, porque assim
ainda é pior.
- Acho bem, o pai nem sequer se despediu de mim, talvez com o receio que lhe
fizéssemos mais perguntas - disse a Carolina.
- Tens razão, filha, ele anda muito preocupado, mas quer carregar a cruz
sozinho, agora vamos para a caminha que já são horas.
A Carolina e a irmã despediram-se da mãe e foram deitar-se. Logo de seguida,
ela fez o mesmo.
Quando se deitou, notou que o lado do marido estava muito molhado de tanto ter
transpirado, o que veio trazer mais algumas achas para a fogueira das preocupações,
por saber que raramente transpirava e quando tal acontecia, era nas noites
demasiado húmidas, o que não era o caso. Embora estivesse ansiosa por saber o que
lhe estava a acontecer, não lhe fez qualquer pergunta para não o perturbar ainda
mais, preferia que fosse ele a tomar a iniciativa. Levantou-se e foi à cómoda
buscar-lhe um pijama, para substituir o que estava molhado. No momento em que o
marido o estava a trocar, e como que a querer justificar toda aquela transpiração,
para não a afligir ainda mais, disse:
- Não fiques preocupada por estar assim a transpirar. Foi devido ao último chá
que me fizeste, por tê-lo bebido muito quente.
- Está bem, homem, agora vê se dormes, porque amanhã tens de te levantar cedo
para ires para o trabalho.
Mais uma vez a mulher lhe tocou na ferida, mas ele não reagiu, apenas lhe deu
um beijo e lhe desejou boa noite.
- Deixa lá, fecharam-te uma porta, hão-de abrir-te outra. Não é caso para te
deixares ir abaixo. Assim ainda é pior. Tens de reagir. Se não conseguires agora,
vais conseguir daqui a mais algum tempo.
- Não vou esperar mais tempo. Amanhã vou tentar arranjar trabalho nas obras
como servente de pedreiro e se não conseguir, vou procurar na agricultura, alguma
coisa se há-de arranjar, nem que seja a cavar bananeiras.
- Olha lá, uma vez que estás na disposição de ires trabalhar para as obras,
porque é que não aproveitas e vais para a França, agora lá é que está a dar. Tenho
um amigo que foi para lá a salto, há pouco mais de um ano e tem ganho muito
dinheiro, já está a pensar em comprar uma casa.
- Mas isso é muito arriscado - disse o Leonel.
- É capaz de ser, mas olha que está a ir para lá muita gente, principalmente do
continente e estão a dar-se muito bem. Às vezes lá há um ou outro que tem azar e é
apanhado na fronteira, mas a grande maioria salva-se.
- És capaz de ter razão, também já ouvi dizer que se ganha lá muito dinheiro.
- Disso não tenho dúvidas Leonel. Ganha-se lá mais num mês, do que aqui em dois
ou três.
- É capaz de ser boa ideia Diogo, vou pensar nisso.
- Pensa e, se resolveres ir, diz-me, que é para entrar em contacto com o meu
amigo, para te dizer como é que hás-de fazer.
- Obrigado, Diogo, tenho o número do teu telefone. Se resolver ir para lá,
entro em contacto contigo.
A hora do Leonel ir para casa aproximava-se e o amigo também não podia ficar
mais tempo, porque ainda tinha de ir para Santana onde residia. Despediram-se e
cada um foi ao seu destino.
Já dentro do autocarro, o Leonel ia pensando na ideia que o amigo lhe
transmitira e tinha a sensação que o pesadelo que o atormentava, desde o dia em que
foi despedido, ia dissipar-se e começava a acreditar que iria vencer a crise,
porque já via uma pequenina luz ao fundo do túnel.
- Não digas isso, estás aí que nem uma rosa acabada de desabrochar.
- Mas que elogio! Onde é que aprendeste essa filosofia?
- Com os turistas do hotel.
- E tu, onde é que foste aprender essa palavra tão elegante?
- Com as nossas filhas, não te esqueças que já temos uma no quinto ano e outra
no sexto. Mas deixemo-nos de brincadeiras. Que bicho te mordeu, para um dia
apareceres em casa com cara de inverno, branco como a cal da parede, sem quereres
falar com ninguém e no outro apareceres com cara de primavera, vermelho como um
pimentão, a falar dessa maneira, como se nada tivesse acontecido?
- São os desgostos e alegrias da vida, como tu dizes.
- Estou a falar a sério, o que é que se passou contigo?
- Um pequeno percalço, mas quando formos jantar conto tudo o que se passou.
- Porque é que não me contas já?
- Prefiro esperar para o jantar, porque quero que as nossas filhas também
saibam.
- Ó homem, assim ainda me deixas mais preocupada, sem saber o que te aconteceu!
- Não te aflijas, não é nada que não possa ser resolvido aliás, já resolvi.
- Por isso é que vens contente. Pelo menos isso deixa-me mais tranquila, já que
não me queres dizer agora, vou acabar de preparar o jantar para contares essa
historia o mais depressa possível.
- Não é ainda cedo para jantar?
- Não, até é tarde, quanto mais cedo jantarmos, mais cedo fico liberta deste
sufoco.
- Vai então, que eu ainda fico por aqui mais um pouco, depois chama-me.
- Está bem, até já.
Quando acabou de proferir estas palavras, a mãe olhou para as filhas com ar de
preocupação e encolheu os ombros, resignada.
Neste momento, ele estava senhor da situação e tinha a firme convicção de que o
primeiro obstáculo estava ultrapassado e os objectivos pretendidos estavam
alcançados.
Quando acabaram de jantar, a Matilde e a Margarida foram para a cozinha lavar a
loiça, enquanto a Carolina ficou a arrumar a mesa.
O Leonel estava visivelmente bem disposto e aproveitou a ocasião para gracejar
um pouco com ela. No dia anterior, tinha-a visto acompanhada com um rapaz que
apresentava ter mais ou menos a idade dela e isso serviu de pretexto para lhe fazer
algumas perguntas e alimentar a sua boa disposição.
- Ontem ias bem acompanhada Carolina. Eu não sabia que já tinhas um galito
arrastar-te a asa...
A Carolina ficou surpreendida e pensativa com aquela conversa e não conseguiu
reagir. Ficou vermelha, sem articular qualquer palavra.
O pai, ao vê-la tão corada, foi em seu auxílio e disse-lhe:
- Não fiques assim, minha jóia. Eu só estava a brincar contigo: Não queria de
maneira nenhuma recriminar-te, podes andar à vontade com os teus amigos, desde que
seja dentro da ética e haja respeito mútuo. E pousou-lhe na testa um beijo cheio de
ternura.
Aquele gesto encheu-a de orgulho filial e deu-lhe a tranquilidade suficiente,
para ultrapassar o rubicão e poder falar à vontade a respeito do rapaz.
- Tem cada uma! Se todos os rapazes com quem falo me andassem a arrastar a asa,
não diria que era só um galito, mas sim uma capoeira de galitos.
O pai sorriu e disse:
- Gostei dessa resposta, mas não podes negar, que ontem ias com um rapaz mais
ou menos da tua idade.
- É verdade! Mas, já agora, para ficar mais sossegado, sempre lhe direi que é
meu colega do liceu: É rico, bom rapaz e gosto dele. Já está satisfeito?
- Já. Mesmo que não dissesses nada, ficava satisfeito na mesma. Podia ter-te
feito outra observação qualquer, mas como ias acompanhada com o rapaz, foi a
primeira que me veio à cabeça. Só disse isto para brincar contigo, porque ainda és
muito nova para namorar, não é verdade?
- Não é bem assim lembre-se que já fiz dezassete anos, tenho colegas da mesma
idade e até mais novas que já namoram, mas, por enquanto não namoro, o que não quer
dizer que não possa acontecer em qualquer altura.
- Fazes bem filha! Primeiro estão os estudos e agora com a minha ida para
França, tenho esperanças de que tu e a tua irmã venham a ser alguém, porque vou ter
possibilidade de vos pôr a estudar, numa universidade no continente.
- Deus queira, pai! É sinal de que tudo irá correr bem.
- Há-de correr se Deus quiser!
Quando terminaram o diálogo, o Leonel estava muito bem disposto, desejou-lhe
uma noite feliz, passou pela cozinha para desejar o mesmo à mulher e à outra filha
e, de seguida, foi deitar-se. Meia hora depois elas fizeram o mesmo.
Já nos respectivos quartos, todos pensavam no que tinha acontecido. Parecia que
a principal tormenta tinha passado e estavam na fase do rescaldo. O receio juntava-
se à esperança, a alegria e a tristeza habitavam na mesma morada. Todos tinham
receio que a tempestade voltasse com mais violência e destruísse a alegria e o bem-
estar daquele lar. Mas havia também a esperança de aparecer a bonança e, com ela,
um futuro mais risonho e ainda mais alegre para toda a família. A decisão estava
tomada; a mulher e as filhas estavam resignadas, agora restava apenas esperar o que
o futuro lhes tinha reservado.
No dia seguinte, o Leonel telefonou para casa do amigo que morava em Santana,
para lhe comunicar a decisão que tomara e para lhe propor um encontro o mais
urgente possível, para poderem falar sobre o assunto: Seria no dia a seguir que era
um Domingo.
No dia anterior ao baile, a irmã do Eduardo tinha-lhe dito que a sua amiga
Mónica também ia e se não se importava que ela fosse com eles. Tinha combinado com
um grupo de amigos do liceu, para se encontrarem lá e gostaria de ficar na mesma
mesa. O irmão não fez qualquer objecção, uma vez que também ia o grupo de amigos
dela e assim já podia divertir-se com eles, deixando-lhe o caminho livre para poder
estar com a Carolina.
Logo que chegaram ao Ateneu, a Sara foi dançar com o namorado e a Mónica
manifestou o desejo de dançar com o Eduardo. Ele aceitou, uma vez que a Carolina
ainda não tinha chegado e convicto, que o grupo da amiga da irmã não tardaria a
chegar. O tempo ia passando, mas os amigos da Mónica não chegavam e começava a
ficar numa situação embaraçosa: se, por um lado, queria ver-se livre dela por
outro, não tinha coragem para a deixar sozinha, sentada à mesa, por achar que não
seria correcto. A Carolina já tinha chegado, mas ele não se tinha apercebido da sua
chegada. Só deu pela sua presença quando a viu dançar com o namorado da irmã.
Ela ia observando os pares que se encontravam a dançar, muitos deles eram seus
colegas. Num dos momentos em que o seu olhar percorria toda a pista, viu, ao fundo,
o Eduardo a dançar com outra rapariga muito agarradinhos.
Naquele momento, um onda de sangue corou-lhe as faces, algumas palavras
brotaram-lhe do coração, mas ficaram retidas na garganta; apenas uma chegou aos
seus lábios que foi pronunciada muito baixinho.
- Mentiroso!
Quando o conjunto terminou a série, todos os pares foram ocupar as suas mesas;
o Eduardo e a companheira dirigiram-se para a sua, onde se encontravam sentados a
irmã e o namorado.
A Carolina não tirava os olhos daquela mesa. Mas, para seu desespero, o Eduardo
sentou-se numa posição, que tornaria difícil olhá-lo de frente. Só quando a irmã
desviava a cabeça, ora para um lado, ora para o outro, é que conseguia pousar o
olhar no rosto dele, de uma forma fugidia, o que não era suficiente para lhe dizer
com os olhos, o que sentia naquele momento Porém, teve tempo suficiente para
observar a conversa que ele mantinha com a companheira de dança e isso ainda lhe
trouxe mais desespero e simultaneamente revolta, por saber que não estava a ser
sincero e que as palavras lindas, cheias de sonhos que lhe dissera na véspera pelo
telefone, não passavam de pura fantasia.
O abalo que sentira naquele momento era notório, o que não passou despercebido
à irmã e ao namorado, o que levou este a perguntar-lhe:
- O que é que a minha futura cunhadinha fez, ou lhe fizeram, para estar com
essas faces tão vermelhas?
- Nada! Disse ela, secamente, ao mesmo tempo que apareciam duas pequeninas
lágrimas a dançar ao canto dos olhos.
- Nada? perguntou a irmã e acrescentou:- esse vermelho nas tuas faces e as
lágrimas ao canto dos olhos, dizem que alguma coisa menos agradável se passou
contigo.
- A tua irmã tem razão. Não coramos nem choramos, sem termos motivos e, para
estares assim, é porque tens motivos. Algum malandreco fez-te alguma partida? Diz-
me que eu puxo-lhe as orelhas.
Quando o Raúl disse estas palavras, um sorriso forçado apareceu-lhe nos lábios
e algumas palavras soltaram-se-lhe da boca, bem elucidativas da revolta que sentia
naquele momento.
- Não devias puxar-lhe as orelhas. Devias era arrancar-lhas, porque era o que
ele merecia.
- Foi o Eduardo que te fez alguma partida?
- Foi, olha para aquela mesa, ali em frente.
- É ele, mais a irmã e o namorado, mas também está outra rapariga com eles.
- Pois está, deve ser a namoradinha dele.
- Tens razão, Carolina. Ele procedeu mal. Se queria vir acompanhado não devia
ter insistido contigo para vires e não andava a fazer-te promessas- disse a irmã.
Aos poucos, o rosto da Carolina ia ficando com a cor normal, mas algumas
lágrimas teimavam em aparecer e só não escorriam pelas faces, porque o esforço para
as suster era enorme e sempre que apareciam, limpava-as logo, com um lenço de
bordado madeira, que o próprio Eduardo lhe oferecera no dia dos anos.
A irmã estava preocupada por vê-la assim, tentou animá-la o mais que pôde e
disse-lhe:
- Olha Carolina, o que tens a fazer, é deitar este episódio para trás das
costas e divertires-te com outros rapazes, como se nada tivesse acontecido e
esperares que o tempo diga o que está reservado para ti.
- Eu tenho uma sugestão a fazer-te,- disse o Raúl.
- Qual é?
- Quando o conjunto começar a tocar outra série, vais dançar comigo e passamos
junto deles, de modo a que ele te veja, para vermos a reacção dele.
- Boa ideia, Raúl . Mas talvez seja melhor dançar com outro rapaz, pretendentes
não me faltam; na série anterior, recusei dois convites e o rapaz que me fez o
último tem estado a olhar muito para mim. Já fez um gesto a convidar-me para a
série seguinte.
- Ainda bem! Vais dançar com ele e depois logo vês qual a reacção do Eduardo-
disse a irmã.
Quando o conjunto começou a tocar, o Eduardo foi novamente dançar com a mesma
rapariga. A Carolina, ao vê-lo, sentiu um atordoamento, mas era preciso não se
deixar abater e reagir com calma e prudência àquela situação. Apesar das suas
dezassete primaveras e ainda na idade dos verdes anos, mantinha a jovialidade de
menina, mas já tinha a compostura da mulher feita, regia a sua conduta pelos
ensinamentos que os pais lhe tinham ensinado e à irmã, ainda no berço, baseados no
respeito para com o próximo, na ética e na moral. Também sabia ser meiga para os
meigos, dura para os que o eram. Sabia agir no momento certo, sem rebuço, nem
hesitação. Foi o que fez naquele momento.
Quando a Margarida se ia levantar para ir dançar com o namorado, a Carolina,
depois de ter reflectido um longo momento, disse para a irmã:
- Tenho outra ideia, Margarida.
- Qual é?
- Vou aceitar a sugestão do Raul. Vou dançar com ele, para evitar que o Eduardo
me atire com poeira aos olhos; era capaz de dizer que também não o respeitei e não
cumpri com o que tínhamos combinado, se me visse a dançar com outro rapaz. Assim,
fica a saber que só dancei com outros rapazes, depois da garotice que ele me fez.
- Óptimo! - disse a irmã.
O Raul e a Carolina foram dançar e logo que se levantaram, um rapaz aproximou-
se da Margarida, a convidá-la, tendo levado de imediato uma tampa. Tanto a
Margarida como a irmã eram muito lindas, ambas de estatura média, mas com uma
grande diferença nos olhos e no cabelo: a Carolina tinha o cabelo loiro e os olhos
azuis, mais parecida com o pai; a Margarida tinha os olhos e o cabelo castanhos,
mais parecida com a mãe. Por isso, não era de admirar que os rapazes as cortejassem
com muita frequência.
À medida que iam dançando, iam-se aproximando do Eduardo e quando chegaram bem
perto dele, fizeram um rodopio de modo a que a Carolina ficasse voltada para ele.
Quando estavam frente a frente, ela lançou-lhe um olhar severo e frio, bem
demonstrativo da indignação que lhe ia na alma. Ele não resistiu ao olhar e, como
que envergonhado, voltou os olhos para o outro lado, fixando o olhar por um momento
num quadro com uma paisagem do Ribeiro Frio, que estava pendurado na parede. A
Carolina e o Raul, ainda permaneceram por mais algum tempo perto dele e da
companheira mas, depois da missão cumprida, foram-se afastando, até chegarem perto
da mesa onde estava a Margarida.
Agora, a Carolina já não tinha necessidade de continuar a dançar com o Raúl e
por isso, pediu-lhe para irem sentar-se e para ir dançar com a irmã. Ele fez-lhe a
vontade e alguns minutos depois, já andava a dançar com a namorada, enquanto a
Carolina permanecia sentada. Alguns minutos depois, o rapaz que lhe tinha feito o
segundo convite foi convidá-la de novo para dançar. Desta vez não recusou.
Depois do Eduardo ter visto a Carolina, formou-se no seu interior uma enorme
tempestade de revolta, que urgia por fim, antes que transbordasse para o exterior e
causasse estragos, principalmente na grande amizade que tinha com a irmã, por ser
ela a principal causadora daquela situação.
À medida que ia dançando, ia-se notando nele uma enorme indiferença para com a
companheira, apesar de esta, se mostrar solicita e atenciosa. Algum tempo depois,
chegou a reflexão a dominar a tempestade interior, ou antes, a alumiar os seus
destroços.
Ele sabia que a Carolina tinha razão e merecia uma explicação mas receava que
ela não a aceitasse, porque o comportamento que tivera para com ela, fora
incorrecto e indigno. Agora, a sua atenção concentrava-se na Carolina. O seu olhar,
sempre que podia, fixava-o nela como que a querer dizer-lhe alguma coisa, mas
quando a viu levantar-se e ir dançar com outro rapaz, o seu coração tumultuava
cheio de amor, ciúme e revolta.
- Para que é que eu fui na conversa da minha irmã? Se ela anda a fazer algum
arranjinho com a sua amiguinha, está muito enganada! - pensava ele.
Quando a série terminou, foram sentar-se; o Eduardo estava um pouco mal
humorado, o que levou a irmã a perguntar-lhe:
- Passa-se alguma coisa contigo?
- Não me sinto bem, vou para casa.
- Porquê? andavas tão bem disposto e de um momento para o outro ficaste com
cara de caso - disse a irmã.
- Se calhar não gostas de dançar comigo, nem da minha companhia- perguntou a
Mónica.
- Não digas isso! Eu que estou um pouco mal disposto, não sei se foi alguma
bebida que me fez mal, ou se foi outra coisa qualquer.
- Se não te sentes bem, o melhor é ires embora e não andares aqui contra a tua
vontade - disse o namorado da irmã, que já se tinha apercebido do olhar
persistente, que o Eduardo pousava na Carolina.
- Tens razão Horácio, não me sinto bem, vou-me já embora.
- Fica descansado! Hoje foi a primeira e última vez que te causei problemas. Só
quero que sejas feliz e escolhas o caminho que achares que é o melhor para ti. Não
ficas zangado comigo?
- Não.
- Ainda bem! Amiguinhos como antes? A nossa amizade não pode ser destruída.
- Está nas tuas mãos, Sara, ou melhor, na tua cabeça- disse o Eduardo, com ar
sisudo.
No dia seguinte, o Leonel levantou-se mais cedo do que era habitual para ir
apanhar a camioneta que ia para Santana.
A manhã estava agradável, o astro-rei ainda não tinha despontado e soprava uma
pequena brisa, quando a camioneta partiu em direcção à costa norte. À medida que se
ia afastando do Funchal, pela estrada serpenteada, o Leonel ia observando o encanto
da cidade. Olhava para baixo - via o mar a beijar-lhe os pés; estendia o olhar até
aos picos - via as nuvens a afagarem-lhe o rosto; descansava os olhos nas encostas
e via as casas pintadas de branco com os seus telhados vermelhos, em conjugação com
o verde das plantas, a oferecerem uma paisagem de beleza inolvidável. Quando chegou
ao Poiso, viam-se algumas aves de rapina, a voar com todo o esplendor a olhar para
as encostas e vales à procura de alguma presa que por ali andasse distraída. No
Ribeiro Frio, a camioneta fez uma pequena paragem. Embora o Leonel já por ali
tivesse passado, nunca tinha tido a oportunidade de ver na sua plenitude aquele
lugar paradisíaco, apertado entre montanhas. Era a primeira vez que observava
aquele sítio com atenção. Dali, podia observar o verde das plantas espalhadas pelas
encostas, ouvir o chilrear dos pássaros e o cantar da água no ribeiro, inalar o
aroma das flores oferecido pela Mãe Natureza. Naquele momento parecia que o tempo
tinha parado. Estava definitivamente rendido àquele cenário. Pensava para consigo
mesmo que afinal há um mundo maravilhoso à nossa volta mas, infelizmente, não o
queremos ver e estamos a destrui-lo aos poucos, sem nos apercebermos que também nós
estamos a ser destruídos. Lembrava-se de uma conversa que um ecologista tivera com
ele, quando o servia à mesa no hotel onde trabalhava.
Embora o Leonel continuasse com a mesma força e determinação, para levar a sua
ideia até ao fim, de vez em quando era atormentado pelo pesadelo que o perseguia,
por não saber se estava no caminho certo ou se estava a trilhar o caminho errado,
que o levaria ao abismo, do qual já não seria capaz de sair. Naquele momento, esse
pesadelo voltou de novo a preocupá-lo e a sua preocupação era tão evidente que
fácilmente se notava no seu rosto, o que levou o amigo a perguntar-lhe:
- Acho-te um pouco pálido Leonel, estás doente?
- Doente não estou, mas confesso que ando preocupado com receio de que me
esteja a meter nalgum sarilho, com consequências imprevisíveis.
- Não penses nisso! Tudo há-de bater certo! O que é preciso é ter pensamentos
positivos e seguir em frente. Eu, se pudesse, também ia para a França, mas tenho
aqui os pedacinhos de terra, sempre vivi deles, e custa-me deixá-los abandonados,
embora reconheça que lá ganhava muito mais dinheiro.
- Não tens quem trate deles?
- Não, a minha mulher não pode acudir a tudo, a minha filha é muito nova e além
disso, não queria vê-la agarrada a isto. É um trabalho muito duro e para se ganhar
alguma coisa, é preciso trabalhar muito. Vou tentar mantê-la a estudar para ver se
lhe consigo dar um curso superior. Se não conseguir, terá de arranjar um emprego de
acordo com os estudos que tiver, mas sempre é melhor do que isto.
- Vais conseguir e a Soraia bem o merece. É muito boa menina e boa aluna. A
melhor coisa que se pode dar aos nossos filhos são os estudos. Eu também gostava de
dar um curso superior às minhas filhas mas nesta situação não sei o que é que o
futuro me reserva.
- Há-de ser um futuro bom se Deus quiser, mas agora vamos pensar só em coisas
boas e arranjar boa disposição e apetite para comer a espetada que eu vou preparar.
Quando chegaram a casa, o Leonel foi cumprimentar a mulher do Diogo e depois
seguiram ambos para o quintal, a preparar o petisco.
Embora fosse hábito naquela casa assarem a espetada no forno, naquele dia não o
puderam utilizar, porque estavam a fazer-lhe umas pequenas reparações e, por esse
motivo, resolveram assá-la em metade de um bidão velho, que, para o efeito, tinha
sido preparado na véspera. As brasas já estavam em condições de receber a carne,
porque o Diogo antes de ir esperar o amigo, tinha acendido o lume e pedido à mulher
que fosse olhando por ele durante a sua ausência. Já com as brasas preparadas, o
Diogo enfiou em quatro paus de louro, os pedacinhos de carne muita tenra, de uma
vaca, que ele próprio criara.
Quando estava em condições de ser servida, a Filomena colocou uma toalha em
cima da mesa que estava no quintal, debaixo de uma frondosa árvore e foi à cozinha
buscar as verduras, as semilhas as batatas fritas e o milho frito, enquanto o
marido se encarregava de ir à adega buscar o vinho.
Depois de estarem bem almoçados e bem regados, sentaram-se numas cadeiras que
estavam debaixo da mesma árvore e ali tomaram o café. O dia estava quente, mas
corria um pequenina brisa e em conjugação com a sombra da árvore, proporcionavam
uma temperatura agradável e uma sensação de bem-estar naquele local.
Agora, o Leonel já estava bem disposto e animado, porque a conversa que tivera
com o amigo e com a mulher dele, durante o almoço o enchera de esperança e já via a
situação com muito mais optimismo. A conversa estava tão animada que nem davam
pelas horas a passar, só quando o Leonel olhou para o relógio é que se apercebeu
que já era tarde e já não podia demorar-se mais, porque a camioneta que vinha de
Ponta Delgada estava quase a passar e só teve tempo de se despedir dos amigos e da
filha deles que acabara de chegar de uma festa de anos de uma amiga. O Diogo foi
com ele até à paragem e pelo caminho voltou a falar-lhe da sua ida para a França e
disse-lhe:
- Ó Leonel, já pensaste que tu até és um felizardo, em relação aos outros
emigrantes que vão para a França?
- Porque é que dizes isso?
- É que tu já não tens problemas com a língua deles, já estás habituado a falar
com os turistas e isso é uma grande vantagem.
Foi neste clima de boa disposição que a Carolina se lembrou de fazer uma
pergunta ao pai, que não pudera ser feita antes por falta de oportunidade.
O pai - nem sempre se dá bem com os passeios por causa do enjoo. O que é que
aconteceu para o passeio ser assim tão agradável?
- Tu, olhinhos de gatinha, nunca deixas passar nada. É verdade: Foi uma viagem
maravilhosa. Senti-me muito bem e deu para pensar muito sem ser só na minha ida
para a França.
- Em que pensava, pai?
- Mas que curiosidade! Pensava em vós, na natureza... Temos cá coisas tão
lindas e nem sempre lhes damos a devida atenção, sempre a correr de um lado para o
outro, como se o mundo acabasse já amanhã.
- É verdade pai. Uns dias antes das férias, numa aula dedicada à natureza, o
professor também alertava para o facto de perdermos imenso tempo com coisas
supérfluas e não nos preocuparmos com coisas essenciais, como é o caso da natureza.
- Não imaginais como me senti quando cheguei ao Ribeiro Frio. Na curta paragem
que ali fizemos, fiquei maravilhado a olhar para aquele cenário, até foi preciso o
motorista ir chamar-me para retomar o meu lugar.
A Margarida, ao ouvir aquele episódio, começou a rir-se:
- O pai correu um enorme risco. Se não fosse a gentileza do motorista,
arriscava-se a ficar lá.
- Ele foi muito simpático. Felizmente tudo correu bem.
Quando acabaram de jantar e depois de terem tudo arrumado, foram para o quintal
apanhar um pouco de ar fresco porque a noite estava quente e a claridade da lua
cheia convidava.
No dia seguinte, já era tarde quando a Margarida e a irmã se levantaram, o que
as impossibilitou de irem até ao Lido e a deleitarem-se com a agradável temperatura
da água.
Nas noites que se seguiram, passaram a deitar-se mais cedo, porque não
prescindiam de ir à praia e gostavam de ir cedo, para apanharem o sol da manhã.
Na Segunda feira da semana seguinte, estavam a sair de casa para irem apanhar o
autocarro que as levaria até ao centro da cidade, para depois seguirem para o Lido,
quando o carteiro se dirigiu à Carolina para lhe entregar uma carta.
Ficou surpreendida porque nunca tinha recebido nenhuma, embora já tivesse
recebido alguns bilhetes de colegas, uns bastante interessantes, outros nem tanto.
Olhava para a carta como o detective olha para um objecto que levanta
suspeitas, porque não trazia endereço, nem nada que pudesse identificar o autor ou
a autora.
A curiosidade de saber de quem era a missiva era enorme e não se conteve sem a
abrir, para matar a curiosidade. Logo que a abriu, os seus olhos percorreram-na de
relance e deram logo com a assinatura do Pedro. Naquele momento, corou, o coração
estremeceu, a ansiedade de a ler aumentou.
A irmã, ao ver aquela transformação momentânea, disse-lhe a sorrir:
- O Eduardo nem sequer esperou para falar contigo pessoalmente, talvez por ter
receio que não fosse bem sucedido devido ao comportamento estranho que teve e por
isso, resolveu escrever-te a dar uma explicação.
- Não é do Eduardo- disse a Carolina com um brilho nos olhos.
- Não é do Eduardo?- perguntou a irmã com cara de espanto.
- Não. É do Pedro, daquele rapaz que dançou comigo no baile do ateneu.
- Olá! Já tens mais um pretendente interessado em ti...
- Mas eu gosto mais do Eduardo, embora não desgoste do Pedro.
- Tens de ter muito cuidado, porque nunca se sabe qual a intenção deles. Muitas
vezes querem andar connosco só para passar tempo e às vezes ainda há os gabarolas
que dizem que fizeram isto e aquilo e nós é que ficamos queimadas.
- Fica descansada que eu não vou em conversa fiada; Para já, e embora goste do
Eduardo, se ele vier ter comigo, não penses que o vou receber como se nada tivesse
acontecido. Não vou dar parte de fraca e hei-de manter a minha personalidade.
- Fazes bem!
Durante a viagem, os pensamentos da Carolina concentravam-se na carta. O desejo
de a ler era enorme mas preferiu esperar mais algum tempo para a ler mais
descansada no Lido.
Logo que chegaram àquele espaço balnear, depois de vestirem o fato de banho,
foram para o lugar habitual apanhar sol; A primeira coisa que a Carolina fez foi
começar a ler a carta. A alguns metros de distância, num lugar bem visível estava o
Eduardo. Já ali tinha estado nos dias anteriores à procura dela, mas em vão.
Naquela manhã teve mais sorte e, assim que a viu, uma onda de alegria invadiu-lhe o
rosto para logo de seguida se transformar em tristeza ao vê-la a ler a carta. Era
uma missiva longa com todas as laudas escritas.
- Será alguma carta amorosa de outro rapaz?- pensava ele.
A Carolina estava sentada no mesmo sítio a lê-la pausadamente com enorme
concentração, a deliciar-se com as palavras doces que a mesma continha.
O Eduardo sentia uma enorme curiosidade em saber o que estaria escrito naquelas
folhas, o que lhe trazia algum despeito, e algum ciúme; A ideia de que a Carolina
poderia repartir o coração com outro rapaz desconsolava-o e ficou ali a pensar no
que lhe perguntar de quem era a carta, mas recuou depois de ter feito uma enorme
reflexão, por achar que seria deselegante da sua parte e até mesmo uma tirania. Ao
fim de um quarto de hora de hesitação foi ter com ela e, depois de a ter
cumprimentado, disse-lhe:
- Hoje tive mais sorte do que nos dias anteriores. Já passei por aqui várias
vezes a ver se te via e nunca consegui encontrar-te.
Estas palavras foram ditas em tom de submissão. A voz era clara, doce e
melodiosa, tinha ainda um misterioso encanto que conseguia entrar no coração da
Carolina e afastar do seu semblante o ar sisudo com que o recebera, mas não
conseguiu evitar o tom frio com que lhe falava.
- Desculpa Eduardo, mas agora não tenho disposição para ouvir as tuas
explicações. Espera mais algum tempo, talvez amanhã, ou um dia destes, mas hoje
não.
- É por causa dessa carta que estiveste a ler?
- Não, não é por causa da carta.
- Então porque é?
- Porque ainda não digeri suficientemente, a partida que me fizeste.
- Tu é que sabes! não quero insistir mais contigo. Quando estiveres preparada
dar-te-ei a explicação que pretendia dar-te agora. Já que não estou aqui a fazer
nada, vou-me embora. Adeus, Carolina.
- Adeus, Eduardo.
Quando ele se afastou, duas teimosas lágrimas, por mais de uma vez tentaram
aparecer-lhe ao canto dos olhos, mas ela limpou-as logo e não deu azo que as mesmas
se soltassem. Naquele momento, vários pensamentos lhe ocorreram, mas o que mais a
preocupava era o receio de que ele já não voltasse, porque não queria de maneira
nenhuma perder a amizade que começava a ser também paixão, que sentiam um pelo
outro. Depois de muito pensar, culpava-se por achar que tinha ido longe de mais e
devia ter-lhe dado oportunidade de se defender.
No meio daquele turbilhão de pensamentos, alguns tentaram culpar o Pedro por
ter escrito a carta, mas logo outros se sobrepunham a defendê-lo porque, se a
missiva não a animou, também a não rejeitou.
A Margarida, depois de ter dado alguns mergulhos e ter permanecido algum tempo
a deliciar-se com a água do mar, começou a estranhar a demora da irmã, o que a
levou a não esperar mais tempo e ir ter com ela. Quando chegou junto dela, os
sinais de preocupação ainda eram visíveis no seu rosto.
- O que é que te aconteceu para estares com essa cara tão triste?
- Fui um bocado dura com ele, falei-lhe secamente e a conta-gotas.
- Mas tu disseste-me que não ias recebê-lo com sorrisos e agora estás assim?
- É verdade, mana, mas depois de ele ter falado comigo com tanta ternura, sinto
que não devia ter procedido assim. Mas o que mais me preocupa, é a maneira como ele
se despediu. É capaz de não voltar mais.
- Não te preocupes, ele há-de voltar! já não é só amizade que sentis um pelo
outro, já há dentro de vós uma paixão embrionária. Eu já passei pelo mesmo.
- E agora o que é que eu faço? Logo agora é que tudo aconteceu. Se não tivesse
recebido a carta do Pedro, talvez lhe tivesse dado uma oportunidade e falado com
ele de outra maneira.
- Agora não fazes nada. A única coisa que tens a fazer é pôr essa cara bonita,
esperares pelos acontecimentos e seguires o caminho que o teu coração te
aconselhar. O que não podes é culpar-te; Mesmo que não volte, foi o mau
comportamento dele que originou a atitude fria que tiveste com ele. Por agora, é
melhor não pensares mais no assunto. Vamos mas é a dar uns mergulhinhos que a água
está uma delícia.
Vamos que hoje ainda estou em branco!- disse a irmã já com a cara mais alegre.
Depois daquela agitação que se verificara nas. Mas era uma calma mais aparente
do que real, porque todos temiam pela sua saída e pelo que pudesse acontecer-lhe;
Embora todos tentassem ser fortes e esconder o mais que podiam, o pesadelo que os
atormentava não podiam fraquejar, porque a decisão estava tomada e era necessário
dar-lhe todo o apoio e mostrarem-se alegres, embora com o coração triste e
amargurado.
O mês de Setembro já ia a meio. À noite já se sentia uma brisa mais fria. O
Leonel esperava que as notícias do Diogo não demorassem a chegar, porque quanto
mais tardavam, mais a ansiedade aumentava por querer ver-se livre o mais depressa
possível da situação em que se encontrava.
Finalmente as tão desejadas notícias chegaram. A Matilde estava a preparar o
almoço para o marido e as filhas que tinham saído logo de manhã, quando o telefone
tocou. Foi atender. Do outro lado da linha, ouviu-se a voz do Diogo.
As filhas também sentiram o choque da notícia, mas conseguiram repelir com mais
facilidade os pensamentos nefastos, para darem lugar aos que lhe traziam a
tranquilidade necessária para enfrentar a situação e ainda para tranquilizarem a
mãe e darem coragem ao pai.
No dia seguinte, à hora marcada, o Leonel foi ter com o amigo ao lugar
combinado. Este ainda não tinha chegado e por esse motivo, resolveu dar uma volta
pelo mercado que ficava perto. Alguns minutos depois, voltou de novo ao local, mas
agora já o Diogo ali se encontrava.
Depois de ter feito as compras, foram até um café que estava muito próximo para
poderem falar à vontade.
O amigo do Diogo já tinha entrado em contacto com o mesmo passador que o
colocara em França, para que fizesse o mesmo em relação ao Leonel que apenas teria
de se apresentar dois ou três dias antes da saída para aquele país, em local ainda
a determinar, para acertarem alguns pormenores. Teria de se fazer acompanhar do
bilhete de identidade e da importância de sete mil escudos, que era quanto levava o
passador para fazer o trabalho. Uma das muitas recomendações era manter sigilo
absoluto: além da mulher e das filhas, ninguém mais podia saber da sua saída, para
evitar que chegasse alguma informação aos ouvidos das autoridades, o que seria
muito perigoso. Recomendou-lhe ainda para estar preparado, porque tanto poderia
demorar duas ou três semanas a comunicação para se apresentar no continente, como
poderia surgir de um momento para o outro.
À medida que ia recebendo as notícias, o Leonel ia ficando animado, porque as
mesmas eram bastante agradáveis.
Depois do Diogo ter feito todas as recomendações, embora o Leonel lhe tivesse
pedido para almoçar na casa dele, e ele próprio desejasse ficar mais algum tempo,
não podia, devido a compromissos assumidos, relacionados com negócios; pediu
desculpa de não poder aceitar o convite mas deixou a promessa que o mesmo se
manteria para outra oportunidade.
O mês de Outubro aproximava-se, e com ele o fim das férias grandes e o início
das aulas. A Margarida e a irmã continuavam a ir à praia, mas agora regressavam
mais cedo a casa, porque era preciso começar a estudar e gostavam de ir à tardinha
à baixa do Funchal, tomar a sua bica.
Numa dessas tardes, quando o ocaso se aproximava, estavam ambas no golden-gate,
quando ali apareceu o Eduardo. Ao vê-las, sentiu uma grande alegria, ofuscada quase
simultaneamente, ao lembrar-se do modo como a Carolina o recebera depois do que
acontecera no baile do Ateneu. Estava receoso que ela continuasse a manter o mesmo
propósito; mas um fluido subtil, percorreu-lhe as fibras e naquele breve instante,
sentiu toda a doçura de uma reconciliação, por ele tão desejada e esperada.
Levantou-se e, sem hesitação, foi ter com ela. Levava nos lábios um sorriso de
alma cândida e nos olhos um enorme brilho, como se levasse estampada nele a
ignorância do mal.
A Carolina ficou feliz por ele se lhe ter dirigido, mas não o demonstrou e
naquele momento, sentiu algum remorso a rondar o seu interior, por ter sido dura
com ele, sem primeiro o ter ouvido. O céu não ficou logo claro, mas o vento
amainou.
A irmã, que era conhecedora do episódio desagradável que se passara entre eles
e sabendo da atracção recíproca que existia entre ambos, para os deixar à vontade,
desculpou-se que tinha assuntos a tratar e retirou-se por algum tempo, deixando a
promessa que voltaria dentro de uma hora.
A irmã e o Eduardo aperceberam-se da intenção, que facilmente se podia ler no
seu semblante feliz. Ambos lhe agradeceram em pensamentos tão oportuno gesto.
Depois de ter enviado a carta, todos os dias o Pedro ia à caixa do correio ver
se tinha alguma carta com a resposta da Carolina. O tempo ia passando, mas a
resposta tardava em chegar. Desesperado de tanto esperar, resolveu nas horas vagas
e nos dias de folga passar a vigiar a casa dela, na convicção de alguma vez a ver
sair ou entrar. Mas debalde. A única alternativa que lhe restava era esperar mais
alguns dias até que se iniciassem as aulas e ir esperá-la à saída e tentar falar
com ela para saber qual a resposta que tinha para lhe dar.
Foi o que aconteceu. Num dos dias que estava de folga, foi para a porta do
liceu, na ânsia de a ver sair quando terminassem as aulas.
Na hora da saída, depois de ter fixado por alguns minutos a porta principal por
onde saiam os alunos, estava quase a desistir por já terem passado quase todos,
quando a viu aparecer a uma esquina. Uma onda de alegria e esperança invadiram-lhe
o coração, mas foi por muito pouco tempo, porque quase a seguir, viu o Eduardo
aproximar-se dela, beijá-la e seguirem lado a lado, de mãos dadas, alegres e
sorridentes.
Naquele momento, o coração do Pedro estremeceu, a esperança esvaiu-se.
- "Já tem outro, cheguei tarde", foram os pensamentos que lhe ocorreram,
naquele momento. Depois pensou em ir-se embora e esquecê-la logo ali, mas antes de
se retirar, preferiu vê-la mais de perto, para lhe poder lançar um olhar de
conformismo. Aproximou-se mais do portão e colocou-se num lugar bem visível, onde
pudesse olhar para ela bem de frente. Quando ia a passar e o viu à sua frente a
olhar para ela com ar cândido e conformado, ficou com as faces tingidas de vermelho
e tentou desviar o olhar, o que não passou despercebido ao namorado, que o levou a
perguntar-lhe, com uma pontinha de ciúme.
Porque ficaste tão vermelha, quando viste aquele rapaz?
- Nada.
- Alguma coisa se passou. Nós não coramos assim sem haver um motivo
- Foi o rapaz com quem dancei no Ateneu, naquele dia de má memória. É capaz de
estar à espera de alguma rapariga.
Essa rapariga eras tu.
Eu? Deves ter visto mal Desde aquele dia nunca mais o vi, nem estou interessada
em vê-lo. Agora só estou interessada em ver-te a ti.
Ele sorriu e aceitou a explicação.
Quando ela chegou a casa, ainda ia a pensar no que tinha acontecido à porta do
liceu, mas depressa esqueceu esse episódio; pois viu a mãe a chorar:
- O que é que a mãe tem para estar a chorar?
- Já chegou a ordem para o teu pai se ir embora., Como é que ele se irá
arranjar, sem ter ninguém que lhe cuide da roupa e faça o comer e o que será de nós
sem ele aqui?
- Deixe lá mãe. Tudo se há-de arranjar. O que é preciso é o pai ter saúde e
arranjar logo trabalho. Quando é que souberam?
O dia e as noites que se seguiram foram muito difíceis para aquela família: a
incerteza do futuro, o receio das coisas não correrem bem, o vazio que o chefe de
família deixava naquele lar, a saudade que já começavam a sentir e o grande pavor
que tinham se surgisse algum problema grave e viesse a ser preso.
Na última noite, os pensamentos entravam e saiam na mente de todos, a um ritmo
veloz, dando azo a que o sono se afastasse para bem longe quando tentava aproximar-
se. Foi uma noite passada em claro. A Margarida e a irmã passaram grande parte dela
à janela. Quando a manhã chegou, ouvia-se o chilrear dos pássaros a voarem de
árvore em árvore e, passado algum tempo, o sol despontava de uma forma esplendorosa
mas, isso não lhes despertou a mínima atenção ao contrário de outras vezes, que
adoravam ver aquele cenário. A tristeza estava bem estampada no rosto de todos,
sendo bem visíveis as marcas da insónia. A hora do embarque aproximava-se e com o
passar dos minutos, o coração começava a bater com mais força, a comoção comprimida
aumentava, prestes a irromper.
Uma hora depois, chegava o táxi que os iria levar até ao barco. Embora tivesse
alguns amigos que tinham carro e que os levariam ao porto, preferiu aquele meio de
transporte para ninguém se aperceber do motivo da sua saída, nem do modo como a
mesma iria ser feita, para não levantar a mínima suspeita, porque nem todos os
amigos são verdadeiros e a situação exigia que se tomassem todas as cautelas.
Quando chegou o momento do embarque, duas grossas lágrimas apareceram a dançar,
nos olhos do Leonel, que a muito custo conseguiu evitar que outras lhes sucedessem,
quando estava a despedir-se da mulher e das filhas. Estas, a chorar copiosamente,
não conseguiam articular palavra. Era o Leonel que tentava animá-las, mas também
ele, tinha imensa dificuldade em reter a comoção que tumultuava no seu coração.
Naquele momento, as lágrimas eram rainhas. Eram elas que reinavam e sufocavam
as palavras que estavam presas na garganta da mulher e das filhas. Só quando se
preparava para as deixar e dirigir-se à escada que o levaria ao interior do navio é
que balbuciaram algumas palavras que conseguiram libertar-se daquela opressão.
- Deus te guie por bom caminho! disse a mulher.
- Deus o proteja! escreva-nos logo!- disse a Margarida.
- Gostamos muito de si pai; Deus o ajude!- disse a Carolina.
A beleza dolorida é das imagens mais pura que a natureza pode oferecer ao ser
humano. Se por ali andasse um Miguel Ângelo, de certo não perderia aquela
oportunidade para transformar aquele quadro de tão grande tristeza na mais bela
obra de arte que os seus olhos jamais contemplaram.
Poucos minutos depois ele apareceu a uma das varandas do navio, a acenar à
mulher e às filhas, que respondiam com lenços brancos mesmo depois do navio já
estar ao largo, ainda continuavam com os lenços no ar, a dizer-lhe adeus.
II
PARTEPARTE
No início, a viagem foi calma. O Leonel apenas sentia uma pequena dor de
cabeça, mas depois do navio ter passado a Ilha do Porto Santo, algumas milhas mais
à frente, o mar começou a ficar mais agitado, ele começou a ficar enjoado, o mesmo
sucedendo com outros passageiros, que se viram forçados a permanecer no camarote
por algum tempo. Mas, passadas mais algumas milhas, o vento amainou o mar voltou a
ficar calmo, a viagem tornou-se mais agradável. Agora, Leonel já não sentia tanto a
dor de cabeça e o enjoo já tinha passado. Apesar de não ter apetite, conseguiu
fazer um esforço enorme e ingerir alguns alimentos na hora das refeições, o que
vieram a contribuir para uma melhor disposição. Depois de ter dormido algumas
horas, ficou completamente restabelecido.
- A merda dos bancos são mais duros do que calhaus, dizia um - quem os fez, não
tinha intenção de sentar-se neles, dizia outro; - para lá vamos em bancos de
madeira, mas quando viermos de férias, vimos instalados nos bancos dos mercedes,
dizia um mais jocoso. Seguiu-se novo silêncio enquanto não apareciam outros buracos
de maiores dimensões a encostá-los novamente. A certa altura do percurso, o caminho
parecia mais suave, dando a sensação que a camioneta estava a andar numa estrada de
asfalto. De repente apareceu um buraco de maior profundidade do que os habituais,
seguido de outros mais pequenos, dando origem a que a camioneta fosse, por alguns
metros, sempre aos saltos levando um passageiro menos paciente a lamentar-se:
- Parece que esta porcaria se parte toda. Se isto assim continua , escavaca-se
pelo caminho antes de chegar a Espanha.
Se calhar, é mais velha do que o norte - observou outro.
- Querias que fosse nova? Assim se for apreendida pela guarda, o prejuízo já
não é tão grande - disse um terceiro.
Quando estavam já perto da fronteira viam-se a alguma distância duas luzes a
deslocarem-se em direcção à camioneta. O passador ao vê-las sentiu um enorme
calafrio, por saber que àquela hora e da maneira que estava a noite chuvosa e fria,
não ia para ali ninguém a não ser a guarda, o que o levou logo a pensar:
- São eles. Cheira-me a denúncia!
Andou mais alguns metros e, no local onde o caminho era mais largo, voltou a
camioneta o mais rápido que pôde, para fugir às luzes que supunha serem as de um
jeep da guarda. No momento em que fazia a manobra, fê-la tão bruscamente, que os
passageiros caíram em cima uns dos outros de forma violenta, ficando alguns deles
com algumas escoriações, gerando-se um grande alvoroço, com alguns deles a tentarem
saltar com a camioneta em andamento por pensarem que aquela manobra poderia ter
sido forçada, devido à presença da guarda e outros mais calmos a segurá-los e a
pedirem-lhes para terem calma e aguardarem que o passador lhes dissesse o que
estava a acontecer.
Depois de este ter invertido a marcha a grande velocidade e após ter saído de
uma curva mais apertada, viu outro jeep que entretanto tinha saído do local a fazer
sinais de luzes mesmo à sua frente.
- Quando se viu entalado entre os dois jeeps, guinou a camioneta para fora do
caminho, parou o motor, apagou as luzes, correu para trás da camioneta e gritou:
- Fujam! Eles vêm aí! Alguém deu com a língua nos dentes, mas eu vou descobrir.
Aquele grito de desespero e de revolta foi como se uma bomba tivesse rebentado
debaixo dos pés daquela gente e tivesse aberto uma cratera de enormes dimensões
arrastando-os para o fundo da mesma. O único pensamento que lhes ocorria naquele
momento era fugir para se verem livres daquele inferno. Apesar do cansaço, fizeram
um apelo a todas as energias que ainda tinham e cada um fugiu para seu lado. Os
momentos que se viviam eram tremendamente cruéis e dramáticos, o cenário era
terrível e medonho. Os elementos da guarda nacional republicana e guarda fiscal
estavam espalhados por vários pontos do terreno munidos de holofotes. De vez em
quando ouviam-se tiros, seguidos de gritos desabridos,- pára, pára, mãos ao ar não
te safas, estás entalado; em alguns pontos estratégicos, ouviam-se cães pastores
alemães a ladrar.
O romper da aurora aproximava-se, mas a noite ainda era muito escura... Não se
via um palmo de terra à frente dos olhos, as únicas vezes que se conseguia ver
alguma coisa, eram quando os holofotes se fixavam nalgum fugitivo. A chuva caía com
alguma intensidade tocada por um vento gélido que lhes batia na cara e infiltrava-
se-lhes no corpo desamparado.
Nem o guarda chuva nem os restantes haveres puderam levar com eles, por não
terem tido tempo para mais nada, senão para fugir.
Durante a correria louca e desenfreada a que foram obrigados, uns caiam no meio
dos silvados; outros pelas ribanceiras; outros conseguiram apanhar terreno mais
plano, só com giestas e estevas e os que conseguiram manter alguma calma
esconderam-se no meio dos arbustos. Dos que foram detectados pelos holofotes,
alguns ainda conseguiram escapar mas os mais desafortunados foram apanhados e
detidos.
O Leonel conseguiu manter a calma e juntamente com outro colega esconderam-se
no meio de umas giestas mais altas, bastante ramalhudas, perto de um ribeiro, sem
se poderem mexer, com o receio de serem interceptados pelos holofotes. Estavam
cheios de frio, só com a roupa que tinham em cima do corpo toda encharcada.
Ambos amaldiçoavam a sua pouca sorte, mas o Leonel era o mais inconformado. Via
já a sua vida destruída, pensava no sofrimento que a mulher e as filhas iriam ter
quando soubessem o que lhe tinha acontecido. Pensava ainda no sarilho em que se
metera e nas consequências que teria de suportar; via já à sua frente um futuro
terrivelmente sombrio e um quadro extremamente negro, no qual apenas conseguia ver
as grades de uma prisão.
Durante mais de uma hora, ali estiveram escondidos como coelhos em tocas.
Entretanto, a manhã começava a clarear e à medida que os minutos iam passando, ia-
se vendo com mais clareza a paisagem que os rodeava. Apesar de tanta aflição e de
tanto sofrimento, davam graças a Deus por terem escapado e por não terem caído em
nenhuma ribanceira, nem no meio de algum silvado.
Agora já não chovia, viam-se algumas abertas no céu e o vento mal se sentia;
não se via nem ouvia vivalma. O silêncio era quebrado pelo murmúrio da água de um
regato, que passava ao fundo da encosta e pelo chilrear dos pássaros no meio das
árvores, espalhadas ao longo do regato.
- Parece que agora já estamos salvos!- Disse o Silvestre.
Era como se chamava o companheiro do Leonel. Era um homem forte, de estatura
baixa, amigo de ajudar o próximo e habituado a enfrentar as intempéries e o rigor
do clima, porque a sua profissão de canteiro a isso o obrigava. No meio de tanta
preocupação e sofrimento, o Leonel, além de ter escapado à guarda, teve ainda a
sorte, de encontrar um verdadeiro amigo naquelas horas tão amargas.
Depois de terem verificado que não havia por ali nenhum guarda, deram início a
uma longa e penosa caminhada, até uma aldeia que ainda ficava muito longe, mas que
o Silvestre pensava ser a mais segura, para dali apanharem a camioneta que os
levaria de regresso até Castelo Branco, onde morava.
Seguiram sempre por entre montes e vales, pelo meio de árvores e mato, passaram
por ribeiras e regatos, evitando sempre a planície, para não correrem o risco de
serem vistos por algum guarda que ainda por ali andasse.
Ambos estavam tristes e abatidos, mas o Leonel era o mais desalentado. O que
sentia naquelas horas excede toda a descrição; parecia que todos os males do mundo
tinham convergido para ele.
- O meu caminho é trágico e cruel; ou me conduz a um rochedo e despedaço-me
nele; ou guia-me em direcção a um abismo do qual não consigo sair e já não vejo
mais a minha querida mulher, nem as minhas adoradas filhas. Neste momento já não
vivo para o mundo, apenas vegeto- pensava ele.
No momento em que lhe ocorriam estes pensamentos, estava sentado numa pedra em
volta da fogueira, com as mãos apoiar o rosto, por entre as quais passavam algumas
lágrimas.
O Silvestre ao vê-lo assim, tentou animá-lo e disse-lhe:
- Ó Leonel não desanime!, O que nos aconteceu foi de facto muito grave, mas se
tivéssemos sido presos era muito pior; agora não podemos baixar os braços, temos de
dar volta a isto.
- Como?
- Ainda não sei, mas temos de fazer alguma coisa, porque se não fizermos nada é
que estamos sujeitos a ser presos. É muito provável que tivessem prendido alguns
colegas e agora vão obrigá-los a descobrir os restantes e quando assim é, passam
logo mandados de captura.
-Ó meu Deus! O dinheiro já não vai dar para muitos dias. Estou sem roupa e tão
longe da família, o que será de mim?
- Não se preocupe, vai para a minha casa, ainda tenho um dinheirinho de
reserva, posso emprestar-lhe algum para se remediar e depois vou falar com uma
pessoa amiga que está bem dentro destes assuntos, a ver o que é que me diz.
- Obrigado Silvestre., Não sei como é que hei-de agradecer tudo o que está a
fazer por mim.
- Não tem nada que agradecer, temos de ser uns para os outros. Hoje é o Leonel
que precisa, amanhã posso ser eu. É nos momentos de aflição que mais precisamos de
ajuda.
Mas olhe que nem toda a gente procede assim. Mesmo com algumas pessoas que
pensamos que são nossos amigos, há muita ingratidão e hipocrisia neste mundo.
- É verdade Leonel. Por isso é que cada vez há mais problemas e desunião entre
as pessoas, mas enquanto Deus não me levar, hei-de proceder sempre assim.
- O que é que teria acontecido para sermos apanhados?- perguntou o Leonel.
- Não sei, mas isto cheira-me a denúncia, porque conheço bem o Mário. É uma
pessoa muito consciente e nunca lhe tinha acontecido uma coisa destas. Por isso é
que eu digo, que deve haver bufo no meio disto tudo.
- Tivemos pouca sorte., A primeira vez que foi apanhado foi logo connosco -
disse o Leonel.
Paciência, agora já não podemos voltar atrás, o que temos a fazer, é descobrir
a maneira de sairmos desta encrenca.
Depois de estarem completamente enxutos e terem limpo o sangue que se
encontrava em volta de alguns arranhões mais profundos, apagaram o lume e
reiniciaram a caminhada, já com outro aspecto.
Ao contrário do que acontecera anteriormente, agora evitavam o terreno com
árvores e matagais e caminhavam em campo aberto, por caminhos e veredas, com menos
receio de serem apanhados, porque já ninguém ia suspeitar que andavam fugidos. Era
meio dia, quando chegaram à aldeia. Logo à entrada, encontraram um agricultor que
regressava do campo, em cima de uma carroça, puxada por um burro. Tinha a cara
cheia de rugas a denunciarem as muitas primaveras que já tinham passado por ele.
- Bom dia,- disse o agricultor ao passar por eles, com voz ressonante.
- Bom dia! Responderam eles quase em uníssono.
O camponês já ia a alguns metros de distância, quando o Silvestre se lembrou de
lhe perguntar se sabia a que horas havia camioneta para Castelo Branco. Apressou um
pouco mais o passo foi ter com ele e, quando estava quase ao lado da carroça,
perguntou-lhe:
- Por favor, diga-me a que horas há camioneta para a cidade?
O agricultor não ouviu e seguiu sempre o seu caminho. O Silvestre deu mais uns
passos de modo a ser visto e quando estava quase ao lado do burro, perguntou-lhe de
novo:
- Diga-me por favor, a que horas há camioneta para Castelo Branco? O agricultor
puxou a rédea ao jumento e gritou-lhe:
- Ó ò! pára aí boneco.
Depois, disse para o Silvestre:
- Passe aqui para este lado da carroça que oiço melhor deste ouvido.
O Leonel deu a volta por trás e colocou-se ao lado dele.
Depois o agricultor disse-lhe:
- Diga lá meu amigo ,em que é que lhe posso ser útil.
Diga-me, por favor; a que horas há camioneta para a cidade?
- Não ouvi, fale um pouco mais alto.
- Sabe a que horas há camioneta para Castelo Branco?
- Há uma às duas horas, depois só amanhã de manhã.
- Obrigado, desculpe tê-lo interrompido.
Não tem de quê! - Disse o aldeão e seguiu o seu caminho.
O Silvestre e o amigo, andaram mais alguns metros e depois dirigiram-se para
uma taberna que estava ali perto, para matarem a fome; pediram duas sanduíches de
chouriço duas de queijo e dois copos de leite. Depois de terem comido e pago a
despesa, dirigiram-se vagarosamente para a paragem que ficava no outro extremo da
aldeia. Dez minutos depois de ali estarem, chegava a camioneta.
Durante a viagem, o Leonel olhava para a paisagem e para os grandes rebanhos de
ovelhas a pastar na planície, mas não lhes dava nenhuma atenção, porque o seu
pensamento concentrava-se, na mulher e nas filhas, no que tinha acontecido e no que
iria acontecer.
Quando chegaram à cidade, à casa do Silvestre, a mulher deste, ao vê-lo e ao
amigo, ficou branca como a cal da parede e exclamou:
Dois dias depois de ter saído foram dois guardas à nossa casa para o prender,
mas felizmente já ia a caminho da França. Mas o problema foi depois, levaram a
minha mãe para a esquadra e queriam à força que ela dissesse quem eram as outras
pessoas que iam com ele. No grupo ia um refractário, que se recusou a ir para a
guerra do ultramar, mas ninguém sabia de nada. Só mais tarde é que ele contou ao
meu pai o motivo da ida para a França e eles estavam convencidos que a minha mãe
sabia e não queria dizer. Felizmente acabaram por se convencer que ela não sabia
nada e deixaram-nos em paz, mas continuaram a vigiar a nossa casa por mais algum
tempo.
- E porque é que eles implicaram logo com os teus pais?
- Não sei, talvez algum bufo invejoso que não gostava de nós, tivesse
denunciado o meu pai.
- Então o grupo onde ele ia também foi interceptado?
- Foi, só que ia também um contrabandista.. Conhecia todos os carreiros e
atalhos e conseguiram escapar por um desses carreiros, porque a guarda tinha a
fronteira bem vigiada e convenceram-se que o grupo tinha voltado para trás.
- Bem feito!- Disse a Paula com um sorriso nos lábios.
- Agora que já sabes o que se passou com o meu pai, temos de resolver
urgentemente o problema do teu pai e do amigo dele. É com muito gosto que empresto
a casa, mas eles têm que ir para lá já, de maneira nenhuma podem ficar na vossa
casa. É muito perigoso porque de um momento para o outro eles podem aparecer lá e o
teu pai e o amigo dele serem presos.
- E os teus pais não vão ficar aborrecidos de emprestares a casa sem falares
com eles?
- Não, eu depois vou-lhes contar e eles até vão ficar muito contentes. Agora
vamos para a vossa casa para saírem de lá o mais depressa possível.
- Obrigada, Sónia, eu já sabia que podia contar contigo.
Quando chegaram, o ambiente que ali se vivia era demasiado triste.
A Maria sentiu em demasia o atordoamento do golpe que recebera quando o marido
e o Leonel chegaram a casa. Embora tentasse esconder a aflição que a atormentava,
não conseguia; a angústia lia-se-lhe no rosto, não vertia lágrimas, mas pareciam
ter-se petrificado nos olhos.
Aquele gesto de ambas e as palavras de ânimo que lhes disseram foi como se
tivessem acendido uma luz no meio das trevas, para os tirar daquela aflição. Eram
um bálsamo, a fazer-lhes renascer a esperança de poderem sair daquela situação.
Para o Leonel, tinham ainda o condão de lhe fazer lembrar as próprias filhas. A
sua bondade, a maneira de agir e a ternura eram predicados comuns aos das filhas e
isso trouxe-lhe ainda mais algum ânimo.
No meio da desgraça aparece sempre alguém no nosso caminho a dar-nos força e a
estender-nos a mão, para que possamos continuar a nossa caminhada. Quem diria que,
no meu caminho, aparecesse gente tão bondosa a dar-me tanta força para não cair no
abismo nem no desânimo,- pensava ele.
Meia hora depois estavam na nova morada. Era uma vivenda bastante espaçosa e
alegre, tinha um pequenino jardim, muito bem tratado, com muitas flores de várias
qualidades e em frente da porta principal havia um pequenino lago com um repuxo de
água e algumas pequenas plantas em volta.
Depois de estarem instalados, o Silvestre, a mulher e o Leonel foram comprar
roupa porque tinham imensa falta, em especial o Leonel, que tinha apenas a que
trazia vestida.
Após terem feito as compras, foram ambos para a vivenda, tendo a Maria ido para
casa preparar o jantar, juntamente com a filha e a amiga. Quando terminaram, a
Paula e a Sónia, foram levá-lo aos foragidos. Era aconselhável serem elas a
encarregarem-se dessa tarefa porque era mais seguro, uma vez que andavam
frequentemente na vivenda e se as vissem entrar ou sair, não levantariam quaisquer
suspeitas.
Quando chegaram à vivenda, cada uma levava um saco, com a refeição. Ao
contrário do que era habitual, não tinham a mesma alegria dos outros dias, porque
também elas sentiam o peso da responsabilidade, apenas mantinham a graça de menina
e a compostura da mulher feita.
No dia seguinte, o Leonel foi ter com um amigo, com muitos conhecimentos que
sabia de casos idênticos para ver se lhe conseguia dar alguma solução para
resolverem o problema. Naquele dia não lhe deu nenhuma pista, mas deixou-lhe a
garantia que a iria encontrar o mais rapidamente possível e depois lhe telefonava.
Ainda no mesmo dia, telefonou-lhe para casa, mas como ele não estava, pediu à
mulher para lhe transmitir o recado o mais urgentemente possível. Ela ainda tentou
que lhe dissesse o que é que se estava a passar, nem que fosse de forma sumária.
Mas debalde. Porém, tentou tranquilizá-la, mas fez-lhe sentir que o assunto não era
insolúvel, mas exigia muita prudência; prudência essa que vedava por completo, a
transmissão de qualquer informação pelo telefone.
Quando o telefonema terminou, a mulher do Silvestre ficou lívida, parecia que
o chão lhe fugira debaixo dos pés, os nervos apoderaram-se dela, não conseguiu
ficar de pé e deixou-se cair numa cadeira que estava mesmo ao lado do telefone.
Enquanto estava sentada e depois de estar mais calma, ia meditando no que estaria
acontecer. Via já uma enorme tempestade a aproximar-se e o seu lar a ficar em
perigo.
- Será que vão prender o meu marido? Não, não pode ser, tem de haver uma
solução. Que seria do meu marido e da nossa vida meu Deus! - Pensava ela.
Quando a filha chegou ainda estava sentada e com os vestígios de preocupação
bem visíveis no seu rosto. Ao vê-la assim, o coração estremeceu-lhe e um pensamento
cruel apoderou-se dela.
- Para a minha mãe estar assim, já prenderam o meu pai e o Sr Leonel, - pensava
ela.
- Mãe, mãe, o que é que aconteceu para estar nesse estado? Prenderam o pai e o
Sr Leonel? Diga-me mãe, senão rebento.
A mãe olhava para a parede como se estivesse a olhar para um quadro de grande
dimensão cuja paisagem era desolada e aterradora, sem ouvir a voz da própria filha.
Só acordou daquela apatia, quando a filha se ajoelhou à frente dela e lhe deu dois
abanões, ao mesmo tempo que dizia em voz alta:
- Mãe, Mãe, olhe para mim, sou eu, aconteceu alguma coisa ao pai e ao Sr
Leonel?
A mãe arregalou os olhos, ficou um pouco a olhar para ela sem dizer nada, como
se tivesse perdido a memória, mas alguns segundos depois, disse-lhe:
- Desculpa minha filha, não sei o que se passou comigo. Telefonou para aqui um
amigo do pai a dizer que queria falar com ele urgentemente e não podia dizer pelo
telefone o que se passava, mas que o problema não era insolúvel e que era preciso
ter muita prudência. Fiquei assustada com o receio que fosse para o prender e
passou-me uma coisa pela cabeça, que nem sei o que foi, mas agora já me sinto
melhor.
A filha ficou mais tranquila, embora bastante preocupada e tentou sossegar a
mãe, dizendo-lhe que o senhor deveria andar à procura de uma solução para resolver
o problema e que o importante naquele momento era ir imediatamente levar a mensagem
ao pai. Foi o que fez: em passo apressado, dirigiu-se para o seu esconderijo.
Quando chegou, ia cansada e anelante
Os foragidos estavam quase sempre dentro de casa, raramente saiam ao quintal e
quando o faziam, era só quando tinham alguma coisa a fazer ali e demoravam o menos
tempo possível. Quando o Silvestre viu a filha tão cansada ficou apreensivo com o
receio de que lhe levasse alguma má notícia e perguntou-lhe:
- Há algum problema, filha, para vires assim tão cansada?
- Telefonou para casa um senhor a dizer que o pai esteve a falar com ele ontem
e precisa de falar urgentemente consigo e está no sítio do costume.
- Está bem, filha. Vou já falar com ele. È capaz de já ter arranjado alguma
solução e isso é muito bom. Agora vai ter com a tua mãe, que anda arrasada dos
nervos e é sempre bom estares ao pé dela, que eu vou já a saber o que se passa.
Depois da filha ter saído, o Leonel foi ao encontro do amigo ao local onde
antes tinham combinado. Este já ali estava à espera. Havia nele uma mistura de
optimismo e de preocupação. Tão depressa saiam dos seu lábios palavras de ânimo e
de confiança, como deixava transparecer alguma apreensão. O que tinha para lhe
dizer não era muito agradável, embora não fosse totalmente desagradável. Ele
soubera que tinham sido presos cinco indivíduos que iam no grupo do Silvestre e um
deles não conseguiu resistir aos vários interrogatórios e acabou por dizer o nome
de alguns companheiros que iam com ele. Entre esses nomes, encontravam-se o do
Silvestre e o do Leonel, contra os quais já tinham sido passados mandados de
captura naquele mesmo dia.
Ambos estavam numa situação bastante delicada. Se ficassem no país, mais cedo
ou mais tarde, seriam presos, a não ser que andassem toda a vida escondidos o que
não era seguro. Ou então tinham de fazer uma segunda tentativa, para ver se
conseguiam dar o salto para a França, o mais depressa possível, para não se
deixarem apanhar pela guarda.
Depois de ter conversado com o amigo, o Silvestre dirigiu-se para casa. Pelo
caminho, ia preocupado e pensativo. A meio do percurso, teve uma ideia que lhe veio
trazer alguma luz e algum alento. Lembrou-se que havia um indivíduo ali perto que
já tinha passado alguns emigrantes para a França e talvez pudesse resolver-lhes a
situação. Não lhe interessava o preço. O que era preciso era saírem do país o mais
depressa possível. Voltou para trás e foi ao encontro dele no café onde costumava
estar; para seu espanto, quando ali chegou, vi-o a falar com dois indivíduos que
tinham sido companheiros dele na viagem anterior a acertar as condições para os
levar para a França.
Não lhe foi difícil encetar a conversa, uma vez que se apercebeu logo dos
motivos por que os companheiros estavam reunidos com o passador. Quando o Silvestre
lhes contou o que o amigo lhe transmitira, ficaram e nervosos, o que levou um deles
a perguntar ao passador:
- E agora? Tínhamos isto combinado para a semana e por aquilo que acabamos de
ouvir, é capaz de ser tarde. Podem deitar-nos a mão de um momento para o outro.
Ele não respondeu logo e por um longo momento houve silêncio. Enquanto
esperavam pela resposta, o passador procurava-a no seu interior; passado aquele
momento, a mesma saiu-lhe enérgica e frontal.
- Temos de sair ainda esta noite, porque amanhã pode ser tarde e hoje é o dia
ideal. Eles estão descansados ainda a saborear o triunfo da vitória, por terem
apanhado os desgraçados e nem lhes passa pela cabeça que possa haver outra
investida tão rápida. E se amanhã forem à procura das pessoas que foram denunciadas
e não as encontrarem pode levantar logo suspeitas e começam apertar muito mais a
vigilância na fronteira. Por isso temos de avançar hoje. Agora vão para as vossas
casas, estejam preparados às três da manhã, que eu hei-de ir lá buscá-los. E muito
cuidado para não levantarem a mínima suspeita.
Se até ali o Silvestre tinha a sensação de estar a atravessar um enorme
pântano de areias movediças, com o risco de se afundar, a partir daquele momento
ficou convicto que o pântano estava vencido e começava a trilhar caminho firme,
embora com muitos obstáculos para ultrapassar, tinha força suficiente para os
vencer. Já era noite escura quando chegou à vivenda.
A mulher e a filha já ali se encontravam há cerca de duas horas, ansiosas para
saberem as notícias; enquanto esperavam, Maria ia passando algumas peças de roupa e
a filha entretinha-se a ler um livro
O Leonel estava sentado numa cadeira, com ar triste, a pensar na mulher e nas
filhas e no que seria a sua vida dali em diante.
Embora receoso pela incerteza dos passos que iria dar devido aos fantasmas que
o perseguiam desde a noite da fuga, o Silvestre deixava transparecer uma alegria
contida.
A filha leu-lhe no rosto a boa disposição e antes que alguém dissesse alguma
coisa, ela antecipou-se e disse-lhe:
- Pela sua cara vejo que o encontro correu bem e que nos traz boas notícias,
não é assim pai?
- É verdade filha, parece que estamos salvos, mas estamos a correr um grande
risco., Fomos denunciados e já há mandados de captura contra nós, por isso é que
temos de fazer nova tentativa esta noite e, se Deus quiser, vai correr bem porque
eles agora estão mais interessados em cumprir os mandados de captura e não vão
fazer uma vigilância tão apertada. É pelo menos a opinião do homem que nos vai
tirar daqui.
O Leonel continuava triste e um pouco pálido mas ao ouvir aquelas palavras, a
viva luz dos seus olhos renasceu e pareciam comunicar ao seu rosto algum colorido
ausente, embora o seu interior ardesse de angústia e receio.
A mulher e a filha começaram a chorar, sem saberem se era de alegria ou de
tristeza.. Se por um lado tinham motivos para estarem felizes, por verem a
possibilidade de ambos se salvarem daquela situação e verem realizado o sonho que
tanto ambicionavam por outro tinham fortes razões para estarem preocupadas,
atendendo ao que se passara na viagem anterior e ainda ao facto de terem sido
passados mandados da captura contra eles.
O que é isso? Não vos quero ver assim. Agora que temos a situação quase
resolvida é que vos deu para chorar? Afinal, estais contentes ou não?
- Muito, mas também estamos com muito medo que eles vos prendam pelo caminho -
disse a Maria.
- Não te preocupes, mulher. O azar não há-de andar sempre a bater-nos à porta.
Desta vez vamos ter sorte, se Deus quiser.
Mas como é que conseguiu arranjar as coisas assim tão depressa? - perguntou o
Leonel.
- Tinha de ser. Não tínhamos outro caminho a seguir e temos de andar depressa.
Se fosse amanhã podia ser tarde. Não se preocupe com nada, já está tudo arrumado
com o passador.
- Se calhar ficou endividado por minha causa.
- Não se preocupe Leonel "vão-se os anéis, ficam os dedos".
- Obrigado, Silvestre. O primeiro dinheiro que ganhar há-de ser para lhe pagar.
- Não se fala mais nisso. Agora o que temos a fazer é preparar as coisas,
porque, às três da manhã, o passador vem cá buscar-nos.
- Então eu vou já para a nossa casa com a Paula preparar a tua mala e trago a
roupa do Sr. Leonel, uma vez que já está aqui a mala. Eu também vou, há umas coisas
que quero levar e vós não sabeis onde estão.
Durante as horas que se seguiram não pregaram olho. Foram falando de diversos
temas e apesar de terem dormido muito pouco nos dias anteriores, o sono andava
arredio.
Finalmente chegou a hora mais desejada, mas também a mais receada e com ela
chegou também o passador com a camioneta que os iria transportar, na qual já
estavam os outros emigrantes, prontos para seguirem viagem faltando apenas eles.
Primeiro foi o Leonel, com os olhos rasos de lágrimas a despedir-se da mulher
do Silvestre e da filha. Agradeceu-lhes por tudo o que tinham feito por ele, e
deixou-lhes a promessa, que nunca se esqueceria delas e iriam ser compensadas na
Ilha da Madeira. Pediu-lhes ainda, para transmitirem à Sónia o seu agradecimento,
pelo nobre gesto que tivera.
Depois foi o Silvestre, também com algumas lágrimas a rolarem pelas faces a
despedir-se da filha. Ela abraçou-o com toda a sua força e dos seus olhos caíam
lágrimas em abundância que iam molhando os ombros do pai. Depois ergueu para ele os
olhos tristes e chorosos e disse:
- Deus os ajude!
Depois foi a vez de se despedir da mulher. Estava demasiado nervosa, com as
lágrimas a escorrerem em abundância pelas faces, mas quando o marido se lhe
dirigiu, não conseguiu resistir à comoção e só não caiu desamparada no sofá que
estava mesmo atrás, porque o marido e o Leonel foram em seu auxílio e conseguiram
amolecer-lhe a queda. Felizmente, o delíquio foi breve e recuperou logo os
sentidos. Quando abriu os olhos ainda ficou um pouco como que atordoada, mas depois
foi-se recompondo e quando viu a aflição estampada no rosto de todos, fez um
esforço enorme, levantou-se, embora um pouco combalida e tentou tranquilizá-los,
fazendo-lhes sentir que era apenas uma má disposição e que já tinha passado.
Depois, abraçou-se a ele dizendo-lhe:
- Deus vos proteja! Escreve logo! Nós não descansamos enquanto não tivermos
notícias.
Sem dizerem mais palavras, pegaram nas malas e foram muito silenciosamente
para a camioneta que estava à espera. Não havia estrelas no céu. A noite estava
escura como breu e a única luz que se via era a de um candeeiro de iluminação
pública que estava ali perto, a fazer lembrar a luz das velas em noite de vigília.
Estava frio e caía uma chuva miudinha.
No dia seguinte, ao cair da tarde, apresentaram-se na casa do Silvestre dois
guardas republicanos, com um mandado de captura para o prenderem. Quando tocaram a
campainha, a Paula foi observar por entre as cortinas do seu quarto e quando viu
que era uma patrulha da guarda nacional republicana, correu para a cozinha e disse
à mãe:
- São dois guardas.
Quando a filha lhe disse quem era, ficou branca como a cal da parede e as
pernas tremiam-lhe como duas varas verdes.
- Meu Deus! Se calhar, prenderam o teu pai e o senhor Leonel na fronteira. Eu
vou lá falar com eles.
- Não! A mãe está muito nervosa. Eu vou lá. Pode ser que venham só à procura do
pai, porque se o tivessem prendido, não vinham cá.
- Não sei, filha. Vai lá, mas tem cuidado!
Alguns minutos depois, voltou com ar feliz e com a certeza de que nada de mal
tinha acontecido ao pai pelas perguntas que os guardas lhe tinham feito.
A mãe respirou de alívio e ambas ficaram convictas que o pior estava passado.
Mesmo que tivessem de prestar algumas declarações à guarda, não estavam muito
preocupadas, porque estavam bem ensaiadas do que haviam de dizer. A única
preocupação que as atormentava era se o pai e o Leonel não conseguissem salvar-se.
Os guardas ainda foram mais algumas vezes à procura dele, mas acabaram por
desistir quando tiveram conhecimento, de que já estava em França.
A viagem correu sem sobressaltos com as autoridades por onde passaram. O mesmo
já não se passou em relação ao tempo que se fazia sentir. Já perto da fronteira, a
chuva começou a cair com intensidade e o vento a soprar com tanta força que às
vezes parecia que levava pelo ar a cobertura de lona que tapava a camioneta; a
neve, em algumas partes do percurso, caía em abundância; o gelo aparecia de vez em
quando na estrada; o sol, quando tentava aparecer, era logo escondido pelas nuvens;
a temperatura era gélida e muito difícil de suportar. O rigor do tempo, a
ansiedade, a insónia e a diferença de clima contribuíram para que muitos dos
emigrantes chegassem a França debilitados e doentes. Entre eles ia o Leonel com o
seu estado de saúde a merecer muita atenção e muito cuidado. Parecia que ardia em
febre, tinha as faces pálidas, não comia e por vezes dizia coisas sem nexo,
próprias de quem não está no uso total das suas faculdades mentais.
O Silvestre estava aflito e num dilema terrível: se levava o amigo para um
hospital, podia ter problemas com as autoridades que, em muitos aspectos, quando
colocadas perante algumas situações mais complicadas, tinham de agir, e poderiam
prejudicá-lo. Mas também tinha de actuar o mais rápido possível porque o estado de
saúde do amigo se agravava hora a hora e necessitava urgentemente de assistência
médica para evitar o pior. Mas não sabia a quem se dirigir para o ajudar a procurar
um médico e a sair daquela aflição. Ainda pensou em pedir ajuda ao empreiteiro para
quem ia a trabalhar mas, depois de muito pensar, chegou à conclusão que não iria
adiantar nada porque estava sujeito a envolver-se em conflito com as autoridades e
isso ele não queria de maneira nenhuma, porque fugia às regras legais, para poder
obter mão de obra mais barata e um lucro mais fácil; e essa mão de obra ia buscá-la
aos emigrantes clandestinos, que não podiam reivindicar qualquer direito, tinham de
se manter sempre calados porque se o fizessem eram logo despedidos e ameaçados de
serem denunciados.
Estava nesta meditação, quando uma luz de esperança veio em seu auxílio,
rasgando-lhe a nuvem que lhe entenebrecia a fronte. Lembrou-se dos pais da Sónia e
de um cartão com a direcção e o telefone deles que ela lhe entregara na véspera da
partida, no caso de precisar de alguma ajuda. Abriu a carteira com sofreguidão e no
meio dos documentos, lá estava o cartão.
A morada não era muito longe do local onde estavam. Telefonou-lhes logo, mas o
telefone dava sempre sinal de impedido. Resolveu, então, ir procurá-los a casa mas,
como não conhecia nada, pediu ajuda a um outro emigrante que já lá estava há alguns
anos e conhecia razoavelmente Paris e quase todos os seus arredores.
O Luís - era como se chamava o emigrante - também ficou preocupado, quando o
Silvestre lhe contou o que se passava e prontificou-se logo a ir com ele e ajudá-lo
em tudo o que estivesse ao seu alcance, para que fosse dada assistência necessária
ao doente e ajudá-lo a sair daquela situação. Mas havia um senão: já era muito
tarde e o transporte para o local onde moravam os pais da Sónia ainda ia demorar
muito tempo mas no estado em que se encontrava o Leonel era muito perigoso passar a
noite sem ser assistido.
Estavam naquele dilema, quando o Luís se lembrou de um médico, também
português, que ele conhecia bem, ao qual já tinha recorrido algumas vezes, para
tratar outros emigrantes clandestinos que necessitavam de cuidados médicos.
O Silvestre ficou imensamente agradecido com a solidariedade manifestada pelo
seu compatriota, sentiu algum alívio e alguma tranquilidade e viu acender-se a luz
da esperança, que estava quase apagar-se.
Embora frequentasse de vez em quando a igreja, o seu coração não conhecia o
fervor religioso, mas o estado de saúde em que o Leonel se encontrava fê-lo mais do
que uma vez, olhar para o céu e levar o pensamento a Deus, pedindo-lhe para curar o
seu amigo e ajudá-lo a ultrapassar um momento tão difícil.
Duas horas depois, chegava o Luís acompanhado do médico.
Era um jovem que também tinha ido para a França clandestinamente, para não
cumprir o serviço militar, por entender que a solução para a guerra do ultramar
deveria ser política e não militar. Mas, apesar dos seus direitos serem limitados
naquele país, prestava um precioso serviço junto da enorme comunidade portuguesa.
O Dr. Sérgio, gozava de uma enorme estima junto da comunidade devido à sua
dedicação, ao seu saber e à sua boa disposição, sempre pronto para atender as
pessoas a qualquer hora do dia ou da noite.
Oito dias depois do Leonel ter saído, a mulher passou a aguardar com mais
ansiedade a chegada do carteiro, sempre com a esperança que lhe levasse alguma
carta Às vezes ainda vinha longe e já lhe estava a perguntar se trazia alguma
missiva para ela, mas a resposta amável do carteiro era sempre negativa.
- Não, dona Matilde, não trago nada para si.
A Margarida, ao ver a preocupação da mãe por não receber notícias, ia-a
tranquilizando, servindo-se, para o efeito, do exemplo do pai de uma colega de
turma que também tinha ido para a França nas mesmas condições e que só escreveu um
mês depois de ter saído da Madeira porque, muitas vezes, devido a problemas
inesperados, têm de esperar algum tempo no continente para seguirem viagem. A mãe
compreendia os argumentos mas não os aceitava na sua totalidade. Porém, iam
servindo de bálsamo para a deixar um pouco mais sossegada.
Num desses dias em que andava mais tranquila, a Carolina chegou a casa com ar
triste e ao contrário do que era habitual, não cantarolava nenhuma canção do Max em
voga na altura.
A mãe estranhou aquele comportamento. Foi ter com ela e perguntou-lhe:
- O que é que te aconteceu hoje ,para vires com essa cara de Inverno, algum
arrufo de namorados?
A filha não respondeu mas as lágrimas substituíram as palavras.
A mãe voltou a insistir. Então não me queres contar?
A Carolina manteve-se em silêncio.
- Está bem, mas à hora de jantar, tens de me dizer para não ficar preocupada e
para te poder ajudar. Está bem?
- Está, respondeu a filha.
Alguns minutos depois, a mãe começou a meditar mais profundamente no assunto e
as conclusões que tirava, enquadravam-se no campo dos pensamentos negativos que já
há alguns dias a vinham assolando e aquele comportamento da filha trazia-lhe mais
preocupações, a juntar às que já tinha.
- O que é que lhe teria acontecido? Será que algum malandro lhe fez alguma
partida e tentou abusar dela? Tem de me dizer já o que se passou, senão não aguento
com tanta preocupação, - pensava ela.
- Não fiz nada! Não que não me apetecesse, mas vinham algumas colegas atrás e
havia muita gente no passeio. Tentei evitar o escândalo! Mas isto não vai ficar
assim! No momento certo vão ter a resposta adequada.
- Deixa lá, filha. O melhor é esqueceres e o Eduardo quando souber vai chamar a
irmã atenção.
- Não sei se fará isso. Ele deixa-se influenciar muito facilmente por ela e vai
fazer tudo para o voltar para a amiguinha. - disse a Margarida.
- Mas se ele não gosta dela, o que é que podem fazer? - respondeu a mãe.
- A mãe nunca ouviu dizer, que "água mole em pedra dura tanto bate até que
fura"?- disse de novo a Margarida.
- Bem bem, Carolina! Vê o que andas a fazer! Ouviste o que a tua irmã disse: se
é para andares já a sofrer por causa desse namoro, o melhor é acabares já com ele.
Pelo que estou a saber, elas vão fazer-te a vida num inferno e ele não te vai
defender porque se deixa influenciar pela irmã e assim também não quero, há mais
rapazes que gostem de ti, ainda és muito nova e não me interessa que sejam pobres
ou ricos. O que eu quero é que sejam bons e te façam feliz.
A Carolina não disse mais nada, mas começou a meditar nas palavras que a irmã e
a mãe tinham dito. Embora gostasse muito do Eduardo, havia já imensos obstáculos à
sua frente a tentarem separá-la dele e isso preocupava-a imenso. Via já à sua
frente os desesperos de ocasião, os problemas do dia seguinte e a incerteza de um
futuro feliz. Ela sabia que o amor que o Eduardo tinha por ela era puro e sincero,
mas também sabia que a irmã tinha uma enorme influência sobre ele e era amiga da
Mónica e esta não olhava a meios para atingir os fins. Era capaz de recorrer à
calúnia, à mentira e a outros truques baixos, só para ficar com o Eduardo porque
tinha uma paixão doentia por ele.
Estava ansiosa por que chegasse o dia seguinte para ver qual seria a reacção do
namorado a respeito daquele episódio. Durante a noite, voltava-se para um lado,
voltava-se para o outro mas não conseguia dormir. A irmã já tinha dormido o
primeiro sono e ela ainda continuava às voltas na cama.
- Não dormes, Carolina? - perguntou a irmã com voz sonolenta, quando acordou do
primeiro sono.
- Não tenho sono. Tenho estado a pensar na minha vida. A minha cabeça está numa
confusão total.
- Faz um esforço! Vê se dormes, para as ideias assentarem na tua cabecinha.
As horas iam passando, mas o sono andava arredio. Já era quase de madrugada quando
conseguiu adormecer.
Na manhã seguinte, os vestígios da insónia eram bem patentes no seu rosto mas
depois de ter tomado banho ficou diferente como se tivesse dormido bem a noite e
nada tivesse acontecido. Quando saiu da casa de banho, já estava um pouco atrasada
e começava a fazer-se tarde para chegar a tempo de assistir à primeira aula.
Vestiu-se o mais rápido que pôde, tomou o pequeno almoço à pressa e foi para o
liceu.
Aquela manhã tinha-a toda ocupada com as aulas mas mantinha a esperança de ver
o namorado no intervalo de alguma delas, como era habitual. Os intervalos iam
passando mas ele não aparecia, o que a levara a fazer imensas conjecturas:
- Será que a irmã contou as coisas à maneira dela como é costume e deu-lhe a
volta? Teria acreditado nela sem ao menos falar comigo? Não! Não pode ser. Deve ter
tido algum feriado e nem chegou a vir. Estará doente? É capaz de me telefonar logo
à noite - pensava ela.
Aquele dia pareceu-lhe mais longo do que os outros. Olhava várias vezes para o
relógio mas parecia-lhe que os ponteiros não andavam e o aproveitamento das aulas
foi bastante prejudicado porque o seu pensamento dividia-se entre o que o professor
ensinava e os motivos que levariam o namorado a não comparecer. Quando as aulas
terminaram, nem esperou pelas colegas com as quais costumava ir ao café, para não
perder tempo.
Quando chegou a casa, perguntou logo à mãe se alguém lhe tinha telefonado
- Não! Ninguém telefonou. Tens é aí uma carta da Soraia, para ires a Santana
aos anos dela. A tua irmã também recebeu uma. A tua deve ser igual. Não calculas a
alegria que senti quando o carteiro me entregou as cartas, pensei que fosse alguma
do teu pai ou até ambas mas, infelizmente, não era nenhuma. Depois de ver que eram
ambas para vós, fiquei desolada. Ando sempre a pensar nele. Será que as coisas não
lhe estão a correr bem? Estou tão preocupada filha.
- Ainda não é tarde mãe! Um dia destes recebe uma cartinha dele. Eu também
penso muito nele.
Embora a Carolina tivesse tranquilizado a mãe, também ela sentia imenso a falta
do pai e começava a ficar preocupada com a demora das notícia, porque o seu
interior dizia-lhe que alguma coisa se estava a passar com ele. Já havia tempo
suficiente, para que as notícias chegassem.
A ansiedade começava a aumentar naquela casa e apesar de deixar transparecer
para o exterior o mesmo aspecto, a mesma vida como antes do Leonel ter partido, a
verdade porém é que tudo era diferente. Havia um enorme vazio naquele lar: a
ausência do chefe de família tornara-o mais frio, mais frágil.
O Leonel sabia que as suas filhas eram responsáveis e por isso mesmo pouco
interferia na vida delas. Quando o fazia, procurava sempre as palavras adequadas,
para lhes manifestar a sua concordância ou discordância por algum acontecimento
mais transcendente nas suas vidas e transmitir-lhes os seus conselhos nos momentos
em que achasse necessária a sua intervenção.
Elas sentiam nele um enorme abrigo onde se iam refugiar sempre que aparecia
alguma tempestade mais forte nas suas vidas, quando o refugio da mãe não conseguia
aguentar sozinho o ímpeto da tempestade.
A Margarida tinha ido a casa da Fernanda, uma vizinha amiga que era enfermeira
e confidenciavam uma à outra as alegrias e tristezas da sua vida. Quando chegou a
casa e viu a irmã sentada ao pé do telefone a ler um livro, causou-lhe imensa
estranheza por não ser hábito, o que a levou a perguntar-lhe:
- Em vez de estares no quarto, estás a ler aí? Esperas alguma chamada do teu
apaixonado?
- Não.
- Então porque é?
- Deu-me para estar sentada aqui. Só estou aqui há três ou quatro minutos.
- A mim não me enganas, Carolina. São os ditames do coração a falarem mais
alto!
- Tonta. - disse a Carolina com um sorriso nos lábios,
- Agora chamas-me tonta. É a mesma coisa que quereres tapar o sol com uma
peneira.
-Tens razão! O Eduardo hoje não apareceu no recreio e convenci-me que era capaz
de telefonar e como tu não estavas, deu-me para me sentar aqui.
- Vá! Vamos estudar! Se o telefone tocar nós ouvimos no quarto e a mãe também
vem atender.
O tempo ia passando, mas o telefonema não chegava e à medida que as horas
passavam, a Carolina ia ficando cada vez mais nervosa e preocupada.
- O que se estará a passar com ele? Depois do que se passou com a irmã e com a
amiguinha dela, nunca mais apareceu, até parece que anda fugido; se até aqui tinha
toda a confiança nele e não duvidava do amor que tinha por mim, agora começo a
duvidar, - pensava ela.
A noite já ia avançada. A hora de se deitar já tinha passado para além do
normal. Ela não tinha a certeza do que estava acontecer, mas sabia que alguma coisa
de errado se estava a passar.
Durante a noite, tentou esquecer os problemas que a preocupavam e refugiar-se
no sono, mas este andava longe e já era tarde quando apareceu.
Na manhã seguinte, levantou-se atordoada mas não abatida. Preparou-se, tomou o
pequeno almoço e foi juntamente com a irmã para o liceu, mas já não esperou pelo
Eduardo. Naquele dia, ambas tinham o mesmo horário, dando azo a que pudessem sair à
mesma hora.
Quando saiam juntas, tinham por hábito passar pelo café, antes de irem para
casa. Foi o que aconteceu naquele dia. Estavam sentadas numa mesa do Golden-Gate a
tomar a bica, quando ali apareceu o Eduardo. A namorada assim que o viu, disse para
a irmã:
- Ele vem ali.
- Ainda bem! Assim já pões tudo em pratos limpos e acabas de vez com esse
nervoso miudinho.
A irmã acabava de dizer estas palavras, quando ele se aproximou da mesa,
cumprimentou-as, não com o cumprimento aberto e jovial como era seu hábito, mas com
um cumprimento um pouco tímido e envergonhado.
A Margarida sabendo do que se passava, para os deixar à vontade levantou-se,
alegando que tinha de ir à papelaria, deixando a promessa que voltaria dentro de
meia hora. Ambos perceberam o alcance da sua saída e aceitaram-na com naturalidade.
A Carolina não deixava transparecer qualquer sinal de inconformismo, apesar da
indignação e da revolta que iam no seu interior. Ao contrário dela, os sinais de
agitação e insegurança eram bem visíveis no rosto do namorado.
- O que é que se passa contigo, para não apareceres ultimamente?- perguntou a
namorada.
- Comigo não se passa nada, mas tu assim o quiseste...
- Essa está boa! Agora sou eu a culpada de não teres aparecido. Já agora
gostava de saber o que é que eu fiz assim de tão grave, para fazeres uma afirmação
dessas.
- Tu sabes bem pelo que foi e tens de me dar uma explicação para as teres
tratado tão mal e à minha família.
- Pelo que estou a ouvir, já não precisas de nenhuma explicação, porque a tua
querida irmã e a amiguinha dela já a deram à maneira delas que já te voltaram bem a
cabeça. Tu é que tens de me dar várias explicações e pedires à tua mãe para dar
muito chá à tua querida irmã e à amiga dela quando for lá a casa porque estão muito
carenciadas desse precioso líquido.
- Tu não estás boa da cabeça Carolina! Insultaste a minha irmã, a Mónica e
ofendeste a minha família e por cima ainda queres que seja eu a dar-te explicações.
- Porque é que a tua irmã não veio contigo? Hoje é o dia que tendes o mesmo
horário e costumais vir sempre juntas. Estou achar tudo isto muito esquisito. Tu
estás a esconder-me alguma coisa, Carolina! Será que houve algum desentendimento
com a tua irmã?
- Mas que disparate, mãe! Até parece que andamos sempre a brigar e não nos
damos bem uma com a outra.
- Eu sei, filha, mas o facto de não teres tido nenhum problema com o teu
namorado e não teres vindo com a tua irmã, levaram-me a pensar assim.
- Fique sossegada! Foi só a história do ponto e nada mais. Agora se a mãe não
se importa, vou descansar um bocadinho que me dói a cabeça.
- Está bem, filha, vai lá descansar, mas olha que eu não fico muito convencida.
A Carolina arranjou o pretexto de estar cansada para sossegar a mãe, mas a
verdadeira razão de querer ir para o quarto era para descarregar a carga emocional
que tinha dentro dela e para poder chorar à vontade. Logo que entrou no quarto,
fechou a porta e atirou-se para cima da cama a chorar. Voltava-se para um lado,
voltava-se para o outro, torcia-se no leite, como se os ventos do infortúnio
tivessem lançado sobre ela toda a sua ira. Depois de muito ter chorado, os soluços
começaram a ser mais compassados e os vagidos da dor começaram a calar-se aos
poucos, até se extinguirem por completo.
Quando a tempestade amainou e a reflexão surgiu, ficou preocupada com a irmã e
recriminava-se pelo acto irreflectido que tivera por não ter esperado por ela, nem
que fosse à porta do café ou num sítio que a pudesse ver entrar.
A Margarida, depois de ter dado uma volta e ter calculado o tempo que lhe
pareceu suficiente para a irmã e o namorado resolverem os seus problemas, foi de
novo até ao café ao encontro dela. Mas, quando ali chegou, a mesa que antes estava
ocupada por elas estava vazia e ficou surpreendida por não vê-los ali, mas pensou
que talvez tivessem ido a algum lado e voltariam logo. Ocupou por isso a mesma
mesa. Foi esperando, mas a irmã e o namorado não apareciam:
- Deve ter acontecido alguma coisa à minha irmã. Ela não se ia embora sem
esperar por mim. Isto cheira-me a esturro. Ele deve tê-la provocado e não resistiu
à provocação, deve ter ido para casa. Vou-me também embora, já não estou aqui a
fazer nada,- pensava ela.
Quando chegou a casa, a mãe ainda estava no quintal e a primeira coisa que fez
foi perguntar-lhe se a irmã já tinha chegado.
- Chegou há bocado, mas vinha um pouco transtornada. Deve ter tido algum
problema. Ela tentou disfarçar, arranjou uma desculpa esfarrapada, mas eu não
acreditei e quando lhe perguntei porque é que tu não vieste com ela, respondeu-me
que saiu mais tarde por causa dum ponto que lhe correu mal, por isso é que vinha
assim. Afinal, o que é que se passou?
- De concreto, não sei, mas deve ter tido alguma discussão com o namorado.
Quando os deixei no Golden estava tudo bem, mas depois quando voltei, já lá não
estavam. Ainda esperei um bocado a ver se ela aparecia mas quando vi que a demora
era muita vim embora.
- Eu logo vi que ela não estava a falar a verdade, via-se-lhe na cara.
- Onde é que ela está agora?
- Disse que lhe doía a cabeça e foi para o quarto.
- Vamos até lá saber o que se passa com ela - disse a filha.
Quando chegaram ao quarto, a mãe deu duas pancadinhas na porta, mas ela não
respondeu. Ainda receou que estivesse fechada à chave por dentro, mas a Margarida
abriu-a com muito cuidado.
A irmã estava a dormir com o corpo quase enrolado, com a cabeça fora do
travesseiro, que estava ensopado. A irmã ia para lhe dar um pequeno abanão para a
acordar mas a mãe pediu-lhe que a deixasse descansar e tentasse apenas tirar-lhe o
travesseiro para o substituir por outro enxuto mas, no momento em que estava a
tentar fazê-lo, a irmã abriu os olhos, que pareciam falar de revolta e, vergonha e
com a voz quase inaudível, disse para a mãe:
- Desculpe, mãe, por não lhe ter dito a verdade, mas vinha desesperada e não
queria que se afligisse ainda mais do que já anda. Depois, voltou o olhar para a
irmã e pediu-lhe também desculpa por lhe ter feito aquela partida, justificando-se
que estava desesperada por causa do safado do Eduardo.
Tanto a mãe como a irmã aceitaram e compreenderam as explicações e facilmente a
desculparam com um leve sorriso e pediram-lhe para lhes contar o que se passara.
Com os olhos ainda húmidos, começou a contar o que se tinha passado. À medida
que ia narrando os factos, as lágrimas iam aparecendo ao canto dos olhos, mas
quando terminou a narração corriam com abundância. Parecia que toda a paixão
sufocada e rebelde tinha convergido para o seu semblante. A sua mágoa era tão
profunda e os factos tão evidentes que levaram ao aparecimento de uma ou outra
lágrima tanto nos olhos da mãe como da irmã.
- Mas que safado! Diz que te ama, mas vai sempre na conversa da irmã. Em vez de
tentar averiguar como se passaram as coisas, tomou logo partido a favor dela e da
outra, nem sequer te ouviu para saber onde estava a verdade. Ele não te ama porque
quando se ama verdadeiramente não se tomam atitudes como as que ele tem tomado e
não têm sido poucas. És constantemente hostilizada pela irmã e pela outra e ele
nunca te defendeu. Está sempre ao lado da irmã, mesmo sem ela ter razão. Ele não
namora contigo, namorica,o que é bem diferente e quando assim é o melhor que há a
fazer é cortar o mal pela raiz. É o que tens a fazer, - disse a irmã.
- Fica descansada! Agora cheguei a essa conclusão. Andava muito enganada, ele
que fique lá com a amiguinha da irmã que eu não sirvo de capacho.
- Fazes bem filha, rapazes não te hão-de faltar. Agora tens de o esquecer o
mais depressa possível que um novo dia virá e com ele a tua felicidade - disse a
mãe.
- Então já não vais ao baile dos finalistas? - perguntou a irmã.
- Não, não tenho disposição, fico em casa a estudar. Para a semana o professor
já disse que talvez tivéssemos um ponto de português e aproveito para rever a
matéria. E tu vais?
- Também não! Não tenho pachorra. Eu só ia se tu fosses, mas assim não, vou dar
uma volta com o Raúl.
A mãe e a irmã saíram ao mesmo tempo do quarto e foram preparar o jantar. Dez
minutos depois, saiu a Carolina e foi ter com elas. Quando chegou à cozinha, já não
levava sinais de lágrima nem de tristeza; também não ia alegre mas ia serena.
Estava um pouco pálida mas a viva luz dos seus olhos parecia levar ao rosto um
pouco do colorido que andava arredio. A força e os conselhos que a mãe e a irmã lhe
deram, serviram de bálsamo para a ajudar a vencer a crise.
Na segunda feira seguinte, já não foi para o mesmo local onde costumava falar
com o Eduardo nos intervalos das aulas, para não se encontrar com ele. Preferiu ir
com outros colegas, para outro local do liceu. Quando o intervalo estava mesmo a
terminar, foi ter com ela uma amiga que andava noutra turma e disse-lhe:
- Olá, Carolina! Hoje não apareceste. Andava lá o teu apaixonado e perguntou-me
se sabia onde estavas e eu disse-lhe que não sabia. Mas olha que ele andava com
cara de chateado. Se me perguntar outra vez por ti, o que é que queres que lhe
diga?.
- Diz-lhe que vá para o inferno.
- Oh! Isso anda mau, parece que houve tempestade.
- Houve, mas já não há.
Entretanto a campainha tocou e não puderam continuar a conversa. Cada uma foi
para a sua sala.
Quando terminaram as aulas, a Carolina esperou pela irmã e foram à papelaria
Condessa comprar algum material escolar. Estavam a ser atendidas, quando ali entrou
o Pedro. Ao ver a Carolina, sentiu uma sensação de felicidade e pensou logo em
dirigir-se-lhe, para lhe perguntar se não tinha recebido a carta dele, mas a
reflexão fê-lo recuar por saber que ela namorava com outro.
Ele levantou-se um pouco da cadeira e curvou-se para lhe dar um beijo, mas ela
voltou a cara para o lado e não se deixou beijar.
- Nem sequer te posso dar um beijo! Disse ele com ar de resignação.
- Guarda-o para a tua queridinha Mónica, que a mim não me faz falta.
Ele pensava que aquela atitude era uma reacção momentânea para manifestar a sua
indignação por causa da irmã e da amiga porque se já não gostasse dele não teria
ido. Tentou beijá-la de novo mas debalde. Ela fez-lhe a mesma cena; tentou pegar-
lhe nas mãos para as acariciar, mas ela retirou os braços de cima da mesa e
colocou-as no regaço.
- Pensava que já não estavas zangada comigo e este encontro era para fazermos
as pazes, mas pelos vistos parece que ainda estás ofendida. Eu compreendo que
devia ter falado contigo mas precipitei-me. Desculpa! Prometo-te que já não volta
acontecer.
- Agora já é tarde. Estou farta de te desculpar e servir de capacho, mas
acabou-se, perdi toda a confiança que tinha em ti. Agora já não acredito em nada do
que dizes.
- Mas eu amo-te Carolina.
- Tretas! Já te ouvi dizer isso vezes sem fim, mas nos momentos em que devias
ter demonstrado esse grande amor que dizes ter por mim, nunca o fizeste. Pelo
contrário, hostilizaste-me sempre, nunca acreditaste em mim, estiveste sempre ao
lado da mentirosa da tua irmã e da fingida da amiguinha dela. A patifaria que me
fizeste depois de ter sido tão ofendida por elas não é próprio de quem ama. O amor
que tu dizes que me tens é um amor fingido, porque se fosse verdadeiro não
permitias que a tua irmã andasse sempre a meter-se na tua vida, só para te afastar
de mim e aproximar-te da amiguinha, mas podes ficar com ela à vontade. Bom proveito
te faça porque já não te amo. Quando casar, há-de ser com um homem que me ame
verdadeiramente e não seja marioneta de ninguém.
- Tu estás nervosa, Carolina! Deixa-me explicar-te! Juro-te que a minha irmã
não voltará a meter-se mais na nossa vida.
- É preciso teres lata! Quantas vezes já me disseste isso? "Quanto mais juras,
mais mentes", mas de uma coisa podes ter a certeza ela vai continuar a meter-se na
tua vida, mas na minha "tire o cavalinho da chuva" porque não lhe vou dar mais
oportunidades.
- Pensa bem! Daqui em diante vais ver que tudo vai mudar. Eu sei que estás
magoada mas não vão ser estes precalços que vão desfazer o nosso amor.
- Não insistas mais! Já te disse o que tinha a dizer. Eu se aceitei estar aqui
contigo, foi apenas para ficares a saber que foi a tua querida irmã e a tua
queridinha Mónica que se meteram comigo de uma forma própria de quem nunca tomou
chá.
- Não estás a ser justa! - interrompeu o Eduardo.
- Não me interrompas! Deixa-me acabar. Foram elas que foram atrás de mim a
provocarem-me, sempre com piadas de mau gosto, a chamarem-me sonsinha, oportunista,
bolinho de leite. A tua adorada irmã até chegou a dizer, que eu só entrava na vossa
casa quando as galinhas tiverem dentes. Pelo que se vê, ela é que é mandante lá de
casa. Eu nem sequer lhes respondi porque ia descer ao mesmo nível delas e o nível
que elas demonstraram ter é próprio de arruaceiras e bilhardeiras. Eu sei que elas
te contaram tudo ao contrário e acreditaste nelas mesmo sem me ouvires. Agora já
sabes muito sumariamente o que elas fizeram. Era só isto que tinha para te dizer.
Adeus!
Quando acabou de dizer a última palavra levantou-se de supetão e foi-se embora.
O Eduardo ainda foi atrás dela para tentar convencê-la, mas em vão.
Os dias iam passando mas as notícias do Leonel não chegavam, embora houvesse
tempo mais que suficiente para que as mesmas chegassem. A ausência de notícias
começava a preocupar seriamente a mulher e as filhas. A Matilde, todos os dias ia
esperar o carteiro na ânsia de que lhe levasse alguma missiva; as filhas, quando
regressavam das aulas, a primeira coisa que faziam era perguntar-lhe se havia
alguma novidade do pai, mas a resposta era dada sempre em voz baixa e triste:
- Não, infelizmente ainda não!
À medida que o tempo passava, a preocupação aumentava e ia dando lugar à
angústia. Os argumentos que serviam de suporte para manterem a esperança começavam
a perder a eficácia. A Matilde era a mais inconformada.
- O que teria acontecido ao meu marido, para não escrever nem dar notícias.
Será que as coisas não lhe correram bem e está preso? Estará doente? Não aguento
mais continuar nesta ansiedade! Protegei-o, meu Deus! O que será das minhas filhas?
Onde é que eu vou arranjar dinheiro para pagar a renda da casa, para comprar
alimentos e fazer face às outras despesas? - pensava ela.
No momento em que lhe ocorriam estes pensamentos, lembrou-se de telefonar para
casa do Diogo, na esperança de que o amigo dele já lhe tivesse transmitido alguma
notícia do marido. Correu para o telefone, ligou para a casa dele, mas ninguém
atendeu.
- Devem estar para a fazenda. Vou tentar logo à noite.
A cabeça parecia que lhe rebentava de tanto pensar no marido e nas
consequências nefastas que adviriam da sua prisão. O desânimo começava apoderar-se
dela. A crise estava instalada. Agora pairavam nuvens negras sobre aquele lar a
ameaçar tempestade.
Naquele dia em que a crise tomou maiores dimensões, quando as filhas chegaram a
casa, a mãe estava triste e abatida, o que era bem visível no seu rosto. Ao vê-la
assim, sentiram o chão fugir-lhes debaixo dos pés e uma onda de medo levantou-se
dentro delas, tingiu-lhes as faces de vermelho e quase de seguida de um branco
pálido, por terem pensado que alguma coisa de grave teria acontecido.
- Tem más notícias do pai? - perguntou a Margarida com ar triste.
- Nem más nem boas filhas. Mas já é de mais. Já lá vai mais de um mês, estamos
quase no Natal e sem termos notícias dele. Deve ter-lhe acontecido alguma coisa má.
- Credo! Tive um sonho terrível. Sonhei que uma figura de homem deu-me um beijo
muito frio e atirou-me para o fundo do abismo. Ainda estou fria. Tocai aqui nas
minhas mãos?
- Parece que estão geladas! - disse a Carolina.
- Isto é mau presságio, filhas.
- É agora mau presságio mãe? Foi um desses sonhos desgraçados que às vezes nos
batem à porta. Ainda não há muito tempo, sonhei que ia a passar à beira de um
enorme poço ,escorregou-me um pé e caí para dentro, mas consegui agarrar-me a uma
pedra que estava mais saliente e fiquei pendurada a fazer um esforço enorme para
não cair para o fundo. Depois consegui subir um pouco, agarrada aos buracos da
parede mas quando estava quase a chegar ao cimo, começaram a sair imensas cobras de
todo o tamanho debaixo da água, e a subirem pelas paredes na minha direcção e
quanto mais lutava para sair de lá, mais as cobras se aproximavam de mim. Não
imaginam a minha aflição quando estava quase a ser apanhada por elas. Mas depois
passou um cavalo branco com umas grandes asas, voou até onde eu estava, agarrei-me
ao pescoço dele e ele tirou-me de lá. Quando acordei transpirava por todos os
cantos - disse a Margarida.
- Mas às vezes também temos sonhos bonitos - disse a Carolina.
- É verdade, filha! Mas que é um grande mistério lá isso é. Deixemos agora
isso. Não se estará a fazer tarde para irem para as aulas?
- Ainda não é tarde, mas já está na hora de nos apressarmos para não chegarmos
atrasadas - disse a Margarida.
- Vá! Ide, filhas, que eu já lá vou ter convosco. Quem costuma levantar-se cedo
estar ainda na cama a esta hora até é uma vergonha.
Na tarde daquele dia o Pedro descia a Rua Fernão Ornelas, quando viu a Carolina
a andar em sentido contrário no outro lado do passeio. Ao vê-la, a primeira reacção
que teve, foi ir ter com ela mas, depois de ter reflectido, chegou à conclusão que
não tinha o direito de ir a intrometer-se na vida dela e continuou o seu caminho.
Mas quando ia a passar em frente do Mercado dos Lavradores, viu passar o Eduardo em
direcção à mesma rua, com outra rapariga ao lado. Ao vê-lo com outra rapariga foi
como se uma aurora súbita mas rutilante e límpida, tivesse nascido ali mesmo.
- Aqui há qualquer coisa que não bate certo! A Carolina passou sozinha, agora
ele vai com outra ao lado. Devem ter acabado com o namoro. Vou ver se ainda a
apanho. É capaz de ter ido para a paragem do autocarro. Vou ter com ela - pensava
ele.
Voltou para trás, esqueceu-se do que ia fazer e, num passo apressado foi no seu
encalço. Quando chegou à paragem ela já estava na fila a aguardar a sua vez para
entrar no autocarro que a levaria a casa.
Ele não queria dar a perceber que tinha ido atrás dela, o que o levou a vestir
a pele de autor e encenar uma pequenina peça, para fazer crer que o encontro fora
casual e não premeditado.
Depois de ter feito a sua representação e de a ter cumprimentado, tentou
convencê-la a não ir naquele autocarro e esperar pelo seguinte, para terem tempo
para falarem mais um pouco. Ao princípio ela não estava muito receptiva à ideia,
alegando que ficaria para a outra vez, mas ele tanto insistiu que acabou por
convencê-la. Embora aparentemente ela demonstrasse sempre muita relutância em ceder
aos seus apelos, no fundo do seu interior também desejava ficar.
O sol estava quase a esconder-se, a tarde já trajava as suas vestes de púrpura
a anunciar o crepúsculo que não tardaria a chegar. Por isso mesmo, resolveram ir
até à ponta do cais para não ficarem muito longe da paragem.
Ele mostrava-se atencioso e solícito, ela nem tanto, mas o suficiente para não
o repelir nem desiludir. Mas à medida que iam conversando, os olhos dele iam-se
fixando nos dela, cada vez com mais insistência. Embora ela desviasse os seus,
quando se encontravam ora na direcção dos barcos que estavam atracados no porto ora
para a imensidão do mar; não os desviava logo e, por alguns segundos, deixava que
os do Pedro substituíssem as palavras e lhes dissessem o que sentia o coração.
Num dos momentos em que os olhares se encontraram por mais tempo, ela estava
apoiada nos varões que servem de protecção a olhar para o mar. Ele foi-se
aproximando até ficar bem juntinho a ela e, num impulso que lhe rompeu do coração e
que não conseguiu conter, pousou-lhe na testa, no meio de alguns cabelos, que uma
forte brisa para ali atirara, o mais puro e fugitivo dos beijos.
A Carolina enrubesceu e estremeceu, mas não esboçou o mais leve gesto de
desagrado e deixou-se ficar serena e feliz.
Naquele momento, os olhos de ambos fulgiram de enorme satisfação. Era como um
clarão interior a desvendar à alma os horizontes infinitos da esperança. Ali mesmo
ele fez-lhe uma declaração de amor aceite por ela depois de alguma hesitação.
O dia já estava a dar lugar à noite e a Carolina não podia ficar mais tempo,
embora o seu coração o desejasse, porque não queria afligir a mãe ainda mais do que
já andava. Dirigiram-se até à paragem onde o autocarro já estava parado a receber
os passageiros e ali se despediram, com o coração a trasbordar de alegria.
Quando a Carolina chegou a casa, ia com ar feliz deixando transparecer a
alegria que sentia. A mãe ao vê-la, leu-lhe logo nos olhos a voz do coração e
disse-lhe:
- Hoje vens diferente, vens mais alegre, Carolina. O que é que te aconteceu
para vires assim mais feliz?
- O dia correu-me muito bem.
- Encontraste o Pedro? - perguntou a irmã.
- Encontrei e pediu-me namoro.
- E tu aceitaste? - perguntou a mãe.
- Aceitei.
-- Vê no que te vais meter! Tem cuidado para depois não te arrependeres: a
gente vê caras e não vê corações. Já conhecias o rapaz?
- Já há algum tempo ele andava atrás de mim e simpatizei com ele desde o
primeiro dia que o vi, mas gostava mais do Eduardo. Por isso não lhe dei
oportunidade mas agora que tudo acabou com o outro safado e ele voltou a insistir,
aceitei.
- Ele parece que é bom rapaz - disse a irmã.
- Deus queira que não haja problemas. Para preocupações, já chegam as que temos
por não sabermos o que está acontecer ao vosso pai para não escrever.
- Tudo há-de correr bem, se Deus quiser! - disse a Carolina.
- Deus te oiça, filha.
Depois de terem jantado, a Margarida e a mãe ficaram arrumar a cozinha,
enquanto a Carolina foi para o quarto, abriu a janela e ali ficou a meditar.
Estava uma noite calma e uma temperatura agradável. As estrelas tinham uma
cintilação viva, fazendo-as parecer mais alegres. Olhava para elas como se
estivesse a comungar da mesma alegria, mas às vezes essa alegria transformava-se em
tristeza quando se lembrava do pai e do que lhe estaria acontecer. Naqueles
momentos mais tristes, fixava o olhar nas estrelas, como que a implorar-lhes que
lhes trouxessem boas notícias do pai. Quando a irmã chegou ao quarto, ainda estava
naquela meditação.
- Ainda não te deitaste, Carolina? Estás a exteriorizar a tua alegria com as
estrelas?
- E a tristeza também. O pai não me sai da cabeça. O que é que lhe teria
acontecido para não mandar notícias? Peço tanto a Deus para o proteger.
- Também eu Carolina. ,Embora às vezes me faça forte à frente da mãe para não a
desanimar, a verdade é que ando muito preocupada. Mas temos de fazer um esforço
muito grande para ver se ela se vai aguentar, senão não sei como é que vai resistir
da maneira que ela anda...
Logo a seguir a Carolina fechou a janela e ambas se foram deitar. Foram falando
de diversos temas e já era tarde quando o sono lhes bateu à porta.
O Pedro ia inventariando pelo caminho tudo o que se passara naquela tarde. Às
vezes não sabia se tudo o que acontecera era a realidade ou se estava a voar nas
asas de uma quimera. Era como se uma fada lhe tivesse aparecido, transformando-lhe
vida e a indicar-lhe o caminho da felicidade. Já era quase de madrugada quando
conseguiu adormecer.
Depois de muito cogitar, chegou à conclusão que seria melhor falar com o
senhorio, porque era uma pessoa muito boa e amiga de ajudar o próximo; embora o
merceeiro também fosse muito bom, a mulher tinha um grande defeito. E era amante da
bilhardice e não tinha o menor pejo em devassar a vida das pessoas que compravam
fiado na sua mercearia e, juntamente com as amigas da mesma laia, encarregavam-se
de levar para a praça pública o nome de muitas dessas pessoas, principalmente
daquelas com quem simpatizava menos e isso a Matilde não queria que acontecesse.
Além de detestar a alcovitice, não queria que o nome do marido e das filhas fossem
denegridos publicamente. Depois de pesar os prós e os contra, optou por ir falar
com o senhorio.
Alguns dias depois foi à casa deste contar-lhe a situação e pedir-lhe para
esperar mais algum tempo pela renda. Quando foi ao seu encontro e apesar de saber
que era uma pessoa boa e educada, ia muito preocupada e acanhada. Parecia que
levava um enorme peso às suas costas e o caminho parecia-lhe demasiado escuro e
sombrio.
Depois de ter falado com ele, sentiu um grande alívio. O peso que sentira em cima
de si desapareceu por completo e o caminho que antes lhe parecera escuro e sombrio,
via-o agora mais claro e com menos nuvens negras.
- Graças a Deus! Por agora este problema está resolvido, graças ao Sr. Artur.
Ainda há gente boa neste mundo, disposta ajudar o próximo - pensava ela.
O Artur era um homem bom, culto e reservado. Tinha sempre uma palavra amiga e
de conforto para todos e dava imensa atenção aos problemas dos inquilinos. Evitava
o protagonismo, amava o recato e cultivava a humildade. Possuía uma educação
esmerada que herdara do berço e, pela actividade que exercia, a sociedade tinha por
ele enorme estima e admiração. Conhecia a lei do decoro pessoal e ignorava a
ciência das nugas.
Um mês depois da Matilde ter ido a falar com o senhorio, andava no quintal a
estender a roupa num pequeno estendal que ficava ao lado da casa, quando ali
apareceu a Joaquina com o jornal na mão. Assim que a viu, o seu coração estremeceu
por pensar que trazia alguma notícia relacionada com o marido e antes que a vizinha
dissesse alguma coisa, antecipou-se e perguntou-lhe:
- A vizinha vem com o jornal na mão. Traz alguma notícia má?
- Boa não é, vizinha.
Ao ouvir aquela resposta, a Matilde começou a ficar pálida, soltou um suspiro
de aflição e disse:
- Meu Deus, alguma coisa de grave aconteceu ao meu marido e vem aí a notícia no
jornal.
- Credo vizinha, não tem nada a ver com o seu marido, não se preocupe.
Quando a Joaquina disse estas palavras, a Matilde já não respondeu, sentiu-se mal,
sentou-se em cima de um saco de terra que ali estava para deitar nas flores,
amparada pela Joaquina. Esta, muito aflita, gritou pelas filhas para que levassem
água.
A Carolina correu logo com o copo de água para junto da mãe e a irmã foi chamar
a Fernanda para a socorrer. Mas esta estava de serviço no hospital. A Margarida
voltou para casa, com a intenção de chamar os bombeiros para levarem uma
ambulância, mas no momento em que ia a subir as escadas a irmã, com a voz trémula
mas ressonante disse-lhe que já não era preciso porque a mãe já tinha recuperado os
sentidos e já estava melhor.
A Joaquina estava aflita e culpava-se por não ter tido mais cuidado com a
resposta que dera à vizinha. Pediu-lhe desculpa por ter dito aquilo sem ter medido
as consequências das palavras que dissera.
A Matilde compreendeu-a, tentou sossegá-la e disse-lhe:
- A vizinha falou-me qualquer coisa sobre uma notícia, mas eu não consegui
perceber. O que é que me disse?
- Disse-lhe que a notícia não se referia ao seu marido.
O Hugo era como se chamava o filho do Artur era um rapaz culto, estudioso
,educado; mas depois que a mãe faleceu começou a andar com más companhias e
depressa se esqueceu das boas maneiras e dos bons conselhos que lhes tinham sido
transmitidos pelos pais, para se tornar num estroina da pior espécie. Andava sempre
metido em sarilhos, os quais lhe traziam de vez em quando grandes dissabores e
desgostos ao pai que já não sabia o que havia de fazer para o tirar daquela vida
boémia.
Agora com o falecimento do pai e sem o seu travão, ainda que frágil, ficava com
a rédea larga para fazer o que muito bem lhe apetecesse.
A Matilde estava indecisa por não saber se seria melhor ir falar com ele ou se
deveria deixar ficar as coisas como estavam, até aparecer alguma saída para a
situação. Depois de muito ter reflectido e ter falado com as filhas, chegou à
conclusão que seria melhor ir falar com o novo senhorio.
Na semana seguinte, dirigiu-se ao escritório da firma situado no mesmo edifício
onde eram vendidos os materiais de construção civil, agora pertencente ao Hugo.
Pediu a uma das empregadas para falar com ele. Alguns minutos depois da empregada
ter telefonado, chegou a resposta a mandá-la subir para o gabinete onde o pai
costumava trabalhar.
Quando a Matilde subia as escadas que dão acesso ao escritório, parecia que
levava todo o edifício às costas, e quando o viu sentado numa poltrona a fumar com
volúpia um enorme charuto e a olhar para ela com ar altivo, quase de desdém, sentiu
o peso ainda com mais violência. Por um longo momento, ficou em pé à frente dele e
só depois lhe disse para se sentar numa cadeira que estava mesmo em frente ao mesmo
tempo que lhe perguntava o motivo que a levara a procurá-lo.
Ela começou a descrever os mesmos motivos que anteriormente dissera ao pai. Ele
ia escutando com ar de importante o que ela ia dizendo mas quando a interrompia
para lhe fazer alguma pergunta ou observação, ela ficava com a sensação que ele
estava a ser meio sincero e meio fingido, o que se lhe tornava difícil saber onde
terminava a sinceridade e começava o fingimento. Depois de ela ter feito a sua
narração e lhe ter pedido mais algum tempo para efectuar o pagamento das rendas,
ele disse-lhe:
- Vou pensar no assunto, depois digo-lhe alguma coisa.
- Quando é que posso passar por aqui, para saber a resposta?
- Para a semana mande aqui a sua filha Carolina a buscá-la.
- Não posso ser eu ou ambas?
- Não. Diga-lhe para vir cá.
A Matilde ficou surpreendida com aquela resposta, mas depois de ter reflectido,
compreendeu perfeitamente o alcance da mesma. Ainda pensou responder adequadamente
à exigência dele mas depois de pensar achou por bem não dizer nada naquele momento.
Sem dar azo a que ele fizesse mais alguma pergunta ou mais exigências, levantou-se
bruscamente e disse-lhe:
- Boa tarde.!
- Boa tarde e não se esqueça de mandar a sua filha saber da resposta.
Quando a Matilde saiu dali, era como se fosse atravessar um campo minado onde
os perigos se sucediam uns atrás dos outros. Apesar do rufar da chuva na folhagem
das árvores e do barulho do vento que soprava com alguma intensidade, o único som
que conseguia ouvir era o sibilar das palavras que o Hugo lhe dissera. Não chorava
lágrimas de desespero nem de indignação mas a dor seca que sentia era tão profunda
que parecia que lhe tinha arrancado o coração.
Quando chegou a casa, ia demasiado abatida e triste. Era como se levasse
petrificadas no rosto as lágrimas que não chorara.
As filhas, ao vê-la assim, adivinharam logo as causas daquela tristeza e
temeram os efeitos. Foram ao seu encontro e, num gesto de ternura, ajudaram-na a
subir as escadas, devido ao desânimo e ao estado débil em que se encontrava. Já no
seu quarto, deitou-se em cima da cama a descansar, com as filhas ao lado.
- O Sr. Hugo não aceitou esperar mais algum tempo pelas rendas? - perguntou a
Margarida.
- Espera, mas com uma condição desonesta, suja, que eu nunca pensei ouvir na
minha vida. Embora não o dissesse directamente, disse-o nas entrelinhas.
-Ó mãe, diga lá o que é que ele disse? Já estamos a ficar assustadas - disse a
Carolina.
- Quando lhe pedi para esperar mais algum tempo pelo pagamento das rendas,
disse-me que ia pensar no assunto e para tu ires lá buscar a resposta. Ainda lhe
disse porque é que não podia ser eu ou irmos ambas. Disse-me secamente que só a ti
é que dava a resposta. Está-se mesmo a ver o que é que ele pretende.
- Ai o porco, chantagista, não queria mais nada! Se eu fosse lá era para lhe
dar um par de bofetadas nas ventas - disse a Carolina.
- É mesmo um safado! Aproveitar-se de uma situação de aflição, para conseguir
os seus intentos. Quando souber que a mana não põe lá os pés é capaz de se vingar e
pôr alguma acção de despejo contra nós - disse a Margarida.
- Não me importa! É preferível irmos viver para uma furna ou para qualquer
outro sítio do que cedermos à chantagem dele. Se ao menos soubéssemos o que é feito
do vosso pai i ,sempre nos dava alguma esperança, mas assim andamos para aqui às
escuras sem sabermos o que lhe aconteceu e sem sabermos o que é que havemos de
fazer. Agora que já sabeis o que se passou, deixai-me ficar sozinha. Preciso de
descansar. Cada vez me dói mais a cabeça.
- Quer que lhe vá a fazer um chá? - perguntou a Carolina.
- Não filha, deixa para mais logo.
A Margarida e a irmã retiraram-se para o seu quarto, preocupadas com mais
aquela situação e receosas do que viria acontecer.
Na semana seguinte, ao contrário do que era habitual, o Hugo todos os dias ia
para o escritório logo pela manhã e só saía ao fim do dia, depois dos empregados
terem terminado o trabalho na esperança de aparecer por ali a Carolina à procura da
resposta.
Os dias iam passando, mas ela não aparecia, o que dava azo a que ele ficasse
mais irritado. Quem pagava eram os empregados pois implicava com eles por tudo e
por nada, o que levou um deles a comentar para uma colega:
- Esta semana ele tem andado mal humorado e peganhento. É mais fácil "aturar um
saco de pulgas" do que suportá-lo.
- Deve haver alguma saia metida nisto, alguma o contrariou e ficou assim.
- Como é que sabes? Para dizeres isso, já tentou deitar-te a escada Beatriz...
- Já, Sr. Silva, mas levou que contar. Levou um par de bofetadas naquelas
ventas que nem sabia de onde é que elas vieram e depois o meu irmão leu-lhe o
responso.
- Por isso é que ele não te pôs na rua, nem pega muito contigo. Depois que o
pai dele faleceu, isto levou uma volta como do dia para a noite. Parece que tem o
rei na barriga e a firma já não é o que era.
- Qualquer dia dá com isto tudo em pantana. Da maneira como ele está a orientar
a firma e estroina como é, não há dinheiro que resista e, quem vai pagar a factura
somos nós - disse a Beatriz.
- Disso é que eu tenho medo, que daqui por mais algum tempo tenhamos de andar
por aí à procura de trabalho.
- Disso não tenho dúvidas, Sr. Silva, mas o melhor é não pensarmos nisso agora.
Na semana seguinte, como a Carolina não apareceu para saber da resposta, ele
resolveu escrever uma pequenina carta à mãe, com a seguinte mensagem:
"Se a sua filha não vier saber da resposta dentro de dois dias, levar-me-à a
pensar que não está interessada e por esse motivo, ver-me-ei forçado a pôr-lhe uma
acção de despejo em Tribunal. - Hugo."
- Devia, mas não está. Depois conto-te mais coisas, mas agora temos de ir lá
socorrer a vítima.
- Ó Beatriz, eu vou contigo de boa vontade, mas se ele me põe na rua... Sou
órfã, preciso deste emprego para ajudar a minha mãe, mas se tiver de ser vou lá
também.
- Tens razão! É melhor ficares aqui. Se eu precisar de ajuda chamo-te.
- Está bem, eu vou até à sala que está ao lado, escondo-me lá e se precisares
de mim, chama-me logo.
A Beatriz correu para o gabinete do Hugo e quando ali chegou, os gritos de
socorro e de aflição continuavam a ouvir-se, agora com mais clareza. Ele continuava
a usar a violência para conseguir os seus intentos. A Margarida defendia-se como
podia, com todos os meios ao seu alcance; mas agora as forças dela já começavam a
faltar e ele estava cada mais perto de atingir os fins pretendidos.
A Beatriz deu duas fortes pancadas na porta e gritou. Abra já a porta senão
chamo a polícia.
Ao ouvir aquela ameaça, absteve-se dos seus intentos e atirou a Margarida para
cima do sofá que estava mesmo ao lado. Depois foi para o pé da porta, mas não a
abriu. Estava receoso do que pudesse acontecer, porque já pesavam sobre ele muitas
ameaças e tinha medo que alguma delas se concretizasse naquele momento.
Recriminava-se por não ter tido mais cuidado. Deveria ter ido ver se os empregados
já tinham saído todos, mas agora já não podia fazer nada para remediar a sua falta
de cuidado e só pensava sair dali o mais rápido possível, antes que as coisas
começassem a aquecer. Tinha medo de abrir a porta porque reconheceu logo a voz da
Beatriz e sabia do que ela era capaz. Ainda tinha bem vivas na sua memória as
palavras que o irmão dela lhe dissera e ainda se lembrava das bofetadas e do
pontapé que ela lhe dera nas partes fracas.
- Abra a porta, seu porco, seu ordinário. Quer fazer à rapariga que tem aí
fechada o mesmo que me quis fazer a mim, seu nojento. Desta vez não escapa seu
tarado - insistiu a Beatriz.
Ele abriu a porta, olhou para todos os lados, com receio de que estivesse mais
alguém além da Beatriz, depois foi-se embora, não a correr, mas em passo apressado.
Porém, a Beatriz ainda teve tempo de lhe lançar um olhar que fulminava e de lhe
dizer:
- Você é indigno de viver em sociedade. Com esse comportamento nojento, ainda
há-de apodrecer ao canto de uma estrumeira sem ninguém olhar para si; ou ainda
encontra algum filho de uma velha, que lhe trata da saúde.
Depois correu para junto da Margarida, sentou-se ao lado dela e com muita
ternura limpou-lhe o rosto húmido e triste de tantas lágrimas ter chorado. Uniu-lhe
as partes da blusa que estavam rasgadas no sítio que serviam de protecção ao
soutien, com alguns clips que tirara de cima da secretária e animou-a o mais que
pôde, com palavras de conforto e de esperança.
A Margarida estava pálida. Os gemidos que lhe rompiam do coração mostravam bem
a dor que sentia naquele momento. Nos primeiros minutos não conseguiu ouvir as
palavras que a Beatriz lhe dissera porque o golpe ensurdeceu-lhe a alma e só algum
tempo depois é que conseguiu dizer as primeiras palavras.
- Obrigada por me ter salvo. Se não tivesse aparecido não sei o que seria de
mim. Ele desgraçava-me.
- Não tem nada que agradecer. Não fiz mais do que o meu dever. Como é que se
sente?
- Agora sinto-me aliviada. É como se tivesse fugido das garras de um abutre.
- Eu sei o que isso é. Também já senti o mesmo, ele não presta.
- Também já tentou abusar de si?
- Já! Ele não tem vergonha, mas deu-se mal...
- Mas no meu caso a grande culpada fui eu. A minha mãe e a minha irmã bem me
avisaram mas como estamos numa situação muito aflitiva, pensei que estavam a
exagerar. Resolvi vir falar com ele, a ver se conseguia tirar-lhe a ideia da cabeça
de ir com a acção de despejo para a frente, mas nunca pensei que ele fosse
assim e que me pudesse acontecer uma desgraça destas.
- Mas ele não lhe fez nada? - perguntou a Beatriz com ar de preocupada.
- Não! Eu resisti sempre. A única coisa que ele fez, quando já estava a perder
as forças foi meter as mãos entre a blusa e o soutien, rebentou com os botões da
blusa, mas dei-lhe uma dentada e foi nessa altura que ele a rasgou, quando tirou a
mão de repente.
A Beatriz continuava a animá-la com uma linguagem pura, ungida de ternura e de
esperança. Às vezes para lhe levantar o ânimo e quando achava oportuno, dizia
algumas palavras mais brejeiras relacionadas com o sedutor impaciente e arrogante,
quando tentou conquistá-la à força para curar a sua paixão doentia e saciar os seus
apetites lascivos.
A Margarida escutava-a com ar triste, mas quando ouvia as palavras brejeiras,
ditas com imensa graça pela Beatriz, um sorriso descorado e sem convicção
entreabria-lhe os lábios e os olhos doridos e murchos pareciam reviver o seu brilho
natural.
A Rosa, assim que se apercebeu que o patrão estava abrir a porta, correu para o
seu posto de trabalho, com receio que ele a visse, mas passados alguns minutos foi
ter com a colega e com a Margarida. Estava bastante nervosa, mas quando se
aproximou delas e viu a Margarida com a blusa rasgada, presa com clips, ainda mais
nervosa ficou:
- O que é que o estupor do patrão lhe teria feito para estar naquele estado? -
pensou ela.
Depois foi para junto da Margarida e também tentou animá-la, com palavras de
ternura e carinho.
Embora as partes rasgadas da blusa estivessem unidas, a Margarida não podia
sair dali naquele estado, porque se notava imenso o rasgão e havia ainda o perigo
dos clipes se desprenderem e ficar com o soutien à mostra, o que seria extremamente
desagradável com as consequências prejudiciais que tal situação traria para a
Margarida tanto na via pública como dentro do autocarro.
Por esse motivo, a Beatriz pediu à colega que morava perto para ir a casa
buscar uma agulha e linhas para coserem a blusa.
Dez minutos depois, a Rosa regressava com a agulha e as linhas e fez questão de
ser ela a fazer o trabalho.
Agora, a Margarida estava mais calma. embora com algumas lágrimas a dançarem ao
canto dos olhos e com alguns suspiros de dor, dava graças a Deus por aquelas amigas
estarem perto e a terem salvo e dizia palavras de agradecimento, principalmente a
Beatriz, pela forma enérgica e frontal como enfrentara o patrão. Se não tivesse
sido socorrida naquele momento, seria bem pior, porque as forças já estavam quase a
esgotarem-se e a ficar com o seu corpo à mercê do Hugo.
Depois da Rosa lhe ter cosido a blusa abraçou-a e disse-lhe:
- Obrigada, querida amiga, nunca a esquecerei. Tenha muito cuidado! Só eu e
Deus é que sabemos o que sofri nas mãos daquele desavergonhado. Deus a ajude!
- Obrigada, já estou prevenida. A Beatriz já me pôs ao corrente do tarado que
ele é.
- Depois caiu nos braços da Beatriz, mas não disse nada. Somente as lágrimas
corriam em bica pela blusa da amiga. Esta comungava da mesma dor e não conseguiu
resistir sem deixar cair algumas lágrimas, que corriam pelas faces e caiam nos
ombros da Margarida, em cima da blusa de cambraia que tinha vestida. Só algum tempo
depois é que a Margarida conseguiu dizer as primeiras palavras:
- Obrigada, querida amiga, por tudo o que fez por mim. Nunca a esquecerei, Deus
a ajude!
Quando as lágrimas passaram a ser mais compassadas, pediu para ir à casa de
banho a lavar a cara. A Beatriz foi com ela e aproveitou para lavar a sua. Quando
regressaram, a Margarida pediu-lhes os números de telefone, para estar em contacto
com elas porque já as considerava como se fossem da sua família. Depois fez um
esforço enorme para não chorar e despediu-se com mais um abraço.
Quando chegou a casa, espreitou primeiro para o quintal e quando viu que não
estava ninguém subiu muito silenciosamente as escadas, empurrou com muito cuidado a
porta que apenas estava encostada e foi para o seu quarto sem que a mãe e a irmã
dessem pela chegada.
Já dentro do quarto, despiu a blusa, vestiu um roupão e atirou-se para cima da
cama mas não resistiu à dor; torcia-se no leito como se estivesse a proteger-se de
uma enorme tempestade de infelicidade que se abatera sobre ela. Tentava abafar os
soluços, cravando os dentes no travesseiro, para que elas não se apercebessem; mas
debalde. O coração tumultuava cheio de angústia acumulada, que extravasou, dando
origem a um choro solto que não conseguiu suster, nem evitar que vagidos de dor,
saíssem do quarto e percorressem toda a casa, chegando sem dificuldade à cozinha,
onde se encontravam a mãe e a irmã. Esta foi a primeira a ouvir e disse:
- Parece que a Margarida já chegou e está a chorar.
- Meu Deus! O que lhe teria acontecido? Mais algum problema a juntar aos que já
temos, vamos filha, ver o que se está a passar.
Correram para o quarto e quando ali chegaram ,viram-na estendida em cima da
cama, encharcada em lágrimas, com o travesseiro todo molhado. Os primeiros
pensamentos que tiveram foram direito para o Leonel.
- Alguma desgraça deve ter acontecido ao meu querido marido e não teve coragem
de nos dizer - pensava a Matilde.
- Para estar neste estado, deve ter acontecido alguma coisa má ao meu pai e
está com receio de nos dizer - pensava a Carolina.
Ambas começaram a chorar. A mãe num acto de desespero, aproximou-se da filha,
e disse-lhe:
- Filha, diz-nos o que aconteceu? É por causa do pai que estás assim? Aconteceu
alguma desgraça? Diz filha, eu já não aguento mais, parece que vou morrer sufocada.
- Diz, mana, o que é que aconteceu ao pai? Diz depressa.
- Não diga isso dona Matilde, "não há bem que sempre dure, nem mal que sempre
ature". Ainda há-de recuperar esses anos perdidos, a vida ainda lhe há-de sorrir de
novo tal como sorria, ou ainda mais.
Quando a Matilde chegou a casa, as filhas foram ao seu encontro,
cumprimentaram-na, perguntaram-lhe como se sentia, mas deixaram-na surpreendida por
não terem ido às aulas, o que a levou a perguntar-lhes:
- Não foste às aulas?
- Não - disse a Carolina.
- Porquê?
- Não valia a pena porque não íamos aprender nada da maneira como andamos, com
estas preocupações todas. Aliás, eu e a mana já estivemos a conversar e chegamos à
conclusão, que seria melhor eu arranjar um emprego uma vez que já estou no sexto
ano. Sempre é mais fácil e a Carolina continua a estudar de dia e eu estudo à noite
para tirar o sétimo. - disse a Margarida.
- Não filha. Tu vais continuar a estudar. É preferível ser eu a arranjar um
trabalho do que deixares de estudar.
- óh mãe nem pense nisso! Doente como anda, como é que vai poder trabalhar,
além disso, onde é que ia arranjar trabalho? E nós não queremos - disse a Carolina.
- Não te preocupes, filha. Hei-de arranjar forças para trabalhar e quanto a
arranjar trabalho, alguma coisa hei-de conseguir, nem que seja a passar a ferro
numa casa de bordados ou a trabalhar numa lavandaria e, se não conseguir, ainda há-
de haver por aí alguma casa que precise de uma mulher a dias. Felizmente não tenho
receio de fazer seja que trabalho for da vida doméstica.
- Ninguém diz que não mãe, mas nós é que não queremos. Em primeiro lugar porque
não pode e em segundo porque não é necessário - disse a Margarida.
A ansiedade permanente, os problemas extremamente graves do dia a dia, os
sacrifícios de toda a hora e a incerteza do amanhã eram demasiadas adversidades que
não seriam vencidas se não fosse a união que existia entre todos, fortalecida por
um amor puro e sadio que reinava naquela família.
- Está, mas isto cheira-me a esturro. Tens de me contar tudo direitinho o que
se passou. Não estou a gostar muito desta conversa.
- Afinal acreditas em mim ou não?
- Acredito, mas parece-me que a história está mal contada.
- Olha, Raúl, agora quem não está a gostar nada da conversa sou eu. Amanhã
conto-te em pormenor o que se passou, depois tiras as tuas ilações e fazes o que
entenderes. Agora já não tenho mais paciência para te dar mais explicações. Até
amanhã - disse a Margarida com voz seca.
- Agora já percebo porque é que não vais às aulas. Bem me parecia que havia
mais alguma coisa por trás dessa história que me contaste.
- Não sejas tonto! Diz a que horas amanhã podemos falar?
- Pode ser por volta das dezassete, depois de sair do banco.
- Onde?
- No Apolo.
- Está bem, lá estarei a essa hora.
A Margarida ficou surpreendida com a atitude do namorado, sabia que era
ciumento mas não se conformava com a falta de confiança que tinha em si.
No dia seguinte, à hora do encontro, quando a Margarida chegou ao Apolo já o
namorado ali estava, sentado na mesa que costumavam ocupar. Não levava o sorriso
habitual, nem o ar jovial dos outros dias. Os seus olhos não choravam mas luziam e,
em seu redor, ainda eram bem visíveis os sintomas de terem exprimido em lágrimas a
dor que sentia o seu coração, o que não passou despercebido ao namorado que depois
de a ter beijado, perguntou-lhe:
- Estiveste a chorar?
- Estive. Achas que não tenho razão? Depois de teres falado comigo da maneira
como falaste... pensei que já te conhecia mas afinal andava enganada, porque
cheguei à conclusão que não tens confiança em mim.
- Disseste-me que tiveste um problema com o outro palerma, que poderia ser
grave se não te tivesses defendido com a ajuda de uma amiga depois disseste que já
não ias às aulas e nem sequer me deste um telefonema a contar o que se tinha
passado e por cima ainda tens o descaramento de dizeres que ainda não me conheces e
que não tenho confiança em ti. Pelo que estou a saber, podes fazer o que quiseres,
andares com quem muito bem entenderes e eu apenas sirvo de bibelô.
- Afinal, queres ou não saber o que se passou?
- Quero, mas já devias ter explicado mais cedo.
- Puxa pela cabeça! Não sejas tonto! Querias que deixasses a minha mãe
abandonada naquele estado ,para vir a correr dizer-te o que se tinha passado. Por
favor, deixa-me explicar, se quiseres, senão levanto-me e vou-me embora.
- Explica, mas evita de me chamares tonto, porque não gosto dessa linguagem,
nem tens o direito de a utilizar.
- Estás ofendido? Mais ofendida estou eu, mas tudo bem, eu explico tudo o que
se passou.
A Margarida, num tom calmo e ar triste, começou a descrever o que lhe
acontecera naquela negra tarde, sem omitir fosse o que fosse. A descrição e a
lealdade eram tão completas que se recriminava por não ter seguido os conselhos da
mãe e da irmã e culpabilizara-se por tudo o que tinha acontecido. Quando terminou a
narração, algumas lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e escorreram pelas faces.
O namorado compreendeu a situação e o seu comportamento, em parte, mas não lhe
perdoou, o facto de ter ido ao encontro do senhorio, avisada como estava. Ele ia do
elogio hiperbólico até ao silêncio prolongado. Foi o que fez naquele momento,
optando pelo silêncio.
Após um longo momento de silêncio, a Margarida ainda lhe perguntou:
- Não dizes nada? Ficaste mudo?
Ele não respondeu, mas tentava lutar contra o sentimento que o dominava a fim
de conseguir a necessária independência de espírito para poder julgar
imparcialmente os factos saídos da narração da namorada. Mas por mais que lutasse,
as armas do ciúme eram muito poderosas e acabavam sempre por vencer.
Não era difícil adivinhar o porquê daquele silêncio. Ela já lhe tinha lido no
rosto e entendido por algumas palavras que se lhe foram soltando da boca, o motivo
daquele amuo.
- Ele não me vai perdoar o facto de ter ido falar com o outro ordinário. Mas
não me importa. Estou de consciência tranquila. Faça o que quiser. Pelo menos
fiquei a saber que o ciúme dele não é um ciúme vulgar como eu pensava. É muito mais
do que isso, é um ciúme doentio e se é para viver numa redoma sem poder olhar para
ninguém, nem ninguém poder olhar para mim, o melhor é cortar o mal pela raiz antes
que seja tarde - pensava ela.
Há pessoas tão desditosas que mesmo aquelas que as rodeiam e querem fazer
felizes algumas vezes sem querer provocam-lhes feridas tão profundas, que muitas
vezes custam a cicatrizar e algumas delas nem o chegam a ser na sua totalidade,
ficando com fissuras para toda a vida.
Depois de mais algum silêncio, num tom mais calmo e moderado ainda lhe disse:
- Não te compreendo! Dizias-me tantas vezes que me ias fazer feliz, mas o teu
comportamento com o outro canalha negaram-me essa felicidade.
- O meu ou o teu? Interrompeu a Margarida, com a voz um pouco alterada.
- Já te disse que é o teu. Se não tivesses ido falar com o sujeitinho nada se
teria dado.
- Já vi que não estou aqui a fazer nada. Por mais que te explique tu não queres
compreender; ou melhor, queres, mas esse maldito ciúme não te deixa. Segue o teu
caminho que eu seguirei o meu. Não posso viver com um homem que não tem confiança
em mim.
Quando acabou de dizer estas palavras, a Margarida levantou-se e foi-se embora.
Ele ainda a chamou.
- Margarida, Margarida, espera aí.
Ela não esperou, embora as palavras tivessem a ressonância suficiente para
chegarem até ela, ignorou-as. Ele ainda foi atrás tentar demovê-la daquela tomada
de posição, mas debalde. A única coisa que conseguiu obter dela, foi um olhar de
indiferença.
Ele estava numa situação bastante difícil. Amava a Margarida, mas o ciúme
corroía-lhe o coração e não o deixava ver com clareza nem isenção nos momentos em
que era necessário manter a calma e o equilíbrio. Só quando a crise passava e o
ciúme lhe dava tréguas, é que conseguia raciocinar com mais lucidez e ver com mais
clareza os destroços da tempestade o que o levava muitas vezes a recriminar-se. Mas
não podia fazer mais nada porque estava prisioneiro do ciúme e este era mais forte
do que ele.
As palavras que a Margarida lhe dissera sibilavam-lhe agora no ouvido e rugiam-
lhe no coração. Mas no momento em que as ouviu, a cólera que sentira, era superior
à reflexão.
Quando a Margarida chegou a casa, correu logo para o seu quarto para não dar a
perceber à mãe o que acontecera, porque não queria causar-lhe mais aborrecimentos.
Atirou-se para cima da cama e ali ficou a meditar nas palavras injustas que o Raúl
lhe dissera, mas o seu efeito era atenuado, pelas muitas e boas qualidades que ele
também possuía. Havia uma mistura de amor e ódio a coabitar na mesma morada.
Faltava apenas saber qual deles triunfaria; mas isso só o tempo poderia dizer.
Estava naquela meditação, quando a irmã entrou e ao vê-la tão concentrada a
olhar para o tecto, ficou surpreendida e disse-lhe:
- Que bicho te mordeu, para vires logo para aqui? Nem sequer passaste pela
cozinha, tens algum problema?
- Acabei o namoro com o Raúl - disse a irmã com algumas lágrimas a rolarem
pelas faces.
- Ai sim? Disse a irmã e acrescentou: - ele não gostou que tivesses ido a falar
com o outro tarado.
- Não. Ele tem uns ciúmes desgraçados. Começaram a dar-lhe volta à cabeça,
duvidou da minha honestidade e, quando assim acontece já não há nada a fazer; ou
melhor há é cada um seguir o seu caminho e suportar os desgostos e as mágoas que
estas situações acarretam.
- Deixa lá. É melhor assim, é preferível tomarmos certas decisões, embora
difíceis, no momento certo do que andarmos a sofrer toda a vida. O tempo tudo
apaga.
- Não é bem assim, Carolina, há coisas que o tempo não consegue apagar e marca-
nos para sempre.
- Isso também é verdade. Há acontecimentos que o tempo não pode apagar na
totalidade mas consegue adormecê-los, verás que as lágrimas de hoje, hão-de
enxugar-se, com um raio de sol amanhã, quando aparecer no teu caminho outro
apaixonado a fazer esquecer o Raúl. Eu sei o que isso é, o que se está a passar
contigo, já se passou comigo; ao princípio custou-me muito a esquecer o Eduardo,
mas agora já ultrapassei essa fase e só me lembro do meu Pedrinho.
- Vamos ver o que é que está reservado para mim, o futuro a Deus pertence.
No momento em que a Margarida dizia estas palavras, a mãe bateu à porta a
chamá-las para o jantar; a Margarida tentou logo compor o visual, para que não se
apercebesse do que se tinha passado. Mas, ao contrário do que era habitual, a mãe
depois de ter batido, retirou-se de novo para a cozinha, dando oportunidade à filha
de passar pela casa de banho, sem ser vista por ela.
Quando ali chegaram, a Carolina sentou-se num banco do jardim e dali lançou um
olhar pela cidade, espalhada pelas encostas verdejantes de onde sobressaíam o
branco das casas em conjugação com o vermelho dos telhados e o verde das árvores
dando-lhe uma beleza deslumbrante.
Depois desceu os olhos até à baixa, observou o casario e estendeu o olhar pelo
mar dentro e ali ficou a meditar na sua grandeza. Já se preparava para iniciar nova
viagem pela paisagem, quando foi interrompida pelo Pedro e obrigada a desviar o
olhar para ele.
- O que é que tu tens minha querida? Parece que estavas tão distante!
- Estava a observar a nossa cidade, já reparaste como é linda.
- É verdade, bem nos podemos orgulhar dela.
No momento em que o namorado dizia estas palavras, levantou-se e dirigiu-se
para um canteiro de flores de diversas matizes que estava ali mesmo ao lado. Ele
foi logo atrás dela. Embora se mostrasse solícita e meiga, não tinha o mesmo
entusiasmo nem mostrava a mesma chama dos outros dias o que não passou despercebido
ao Pedro que lhe perguntou:
- O que é que tu tens, meu amor? Acho-te diferente dos outros dias, sinto que
tens algo a preocupar-te. Se puder ajudar e compartilhar contigo essa preocupação,
não tenhas receio de desabafar. Sabes que te amo e não gosto de te ver sofrer.
A Carolina susteve o passo, olhou para ele com ar de ternura como que a querer
dizer-lhe com o olhar o que não desejava dizer-lhe por palavras; mas, naquele
momento, apoderou-se dela uma estranha comoção e dos seus olhos soltaram-se duas
lágrimas de reconhecimento pelo gesto que ele tivera e pela confiança que lhe
transmitira.
Era a primeira vez que ele a via com aquele aspecto dolorido e tentava ler-lhe
no rosto a mágoa que sentia no coração. Procurava animá-la, pedindo-lhe para lhe
contar o motivo daquele sofrimento, mas ela resistia como podia. Algumas vezes
fazia-o de forma verosímil, o que vinha ainda a aumentar mais o desejo que ele
tinha de a ajudar.
Ela não queria envolvê-lo nas preocupações que a atormentavam, por entender que
deveria ser ela, em conjunto com sua mãe e com a sua irmã, a suportarem a cruz do
infortúnio. Mas ele tanto insistiu que ela acabou por lhe contar todo o drama que a
sua família estava a viver.
Depois de ter narrado tudo desde que o pai fora para França, ele estava
visivelmente comovido e logo ali se prontificou a ajudá-las no que fosse possível e
pediu-lhe que transmitisse à mãe e à irmã, que não se preocupassem e que não
contactassem nenhum jurisconsulto porque ele mesmo se encarregaria de o fazer,
visto ter um bastante seu amigo e que o iria contactar com muito gosto.
A Carolina ficou mais animada e sentiu dentro de si algo de diferente, que a
tornava feliz, por mais aquela prova de carinho e amor que o Pedro lhe demonstrara.
Aquelas palavras que ouvira do namorado foram como um raio de esperança que
veio rasgar-lhe a nuvem que entenebrecia a sua fronte. Depois estendeu-lhe a mão e
ambos passearam pelo parque, de mãos dadas, procurando cada um no dicionário da
imaginação, as mais belas palavras de felicidade para trocarem entre si.
Quando o astro-rei se escondeu e o céu estava a ficar com a cor púrpura,
desceram até à Avenida Arriaga e foram para a paragem, onde a Carolina apanhou o
autocarro que passava perto da sua casa.
Depois de se terem despedido, o Pedro ficou ainda mais algum tempo na baixa da
cidade e foi até ao cais, a rememorar tudo o que acontecera naquela tarde em que se
declarara à namorada. Embora estivesse preocupado com o que lhe estava acontecer e
à família, às vezes sentia-se como um cavaleiro medieval, pronto a defender a sua
formosa dama e o castelo onde habitava.
Quando chegou a casa, a Carolina não ia alegre nem triste; conservava o ar
natural que as circunstâncias permitiam. A mãe estava na cozinha e foi para lá que
se dirigiu.
- Hoje aproveitaste bem o tempo. Foste a dar alguma volta com o Pedro?
- Fui e não imagina como me sinto aliviada. No meio da desgraça há sempre uma
mão amiga a ajudar-nos a ultrapassar os obstáculos e uma luzinha a acender-se no
fundo do túnel.
- O que é que aconteceu, minha filha? Não me digas que lhe contaste a nossa
situação?
- Contei. Eu não queria, mas ele notou que eu estava diferente dos outros dias
e enquanto não lhe disse porque é que estava triste não descansou.
- Se assim foi, talvez tivesse sido melhor. É preferível sermos nós a contar às
pessoas de que gostamos e nos oferecem confiança, do que virem a saber por
estranhos - disse a irmã.
- Mas afinal o que é que ele te disse para afirmares que há sempre uma mão
amiga para nos ajudar? Perguntou a mãe.
- Pediu-me para lhes transmitir para não contactarem nenhum advogado que ainda
hoje ia falar com um que é amigo dele.
- Isso é bom filha. Mas não deixa de ser aborrecido estar já a carregar com os
nossos problemas e isso eu não queria, mas temos de reconhecer, que foi um gesto
muito lindo e generoso que teve para connosco.
- Mas, não é só isso. É também a prova real de que ama a Carolina. É nestas
ocasiões. que podemos distinguir o trigo do joio. Se fosse como alguns, não se
preocupavam que estivéssemos com problemas ou não. Queriam era passar o tempo e não
se preocupavam como se preocupou - acrescentou a Margarida.
- Gostei de ouvir essa! - respondeu a irmã.
- Agora vamos jantar e aguardar pelos acontecimentos - disse a mãe.
Era uma situação muito preocupante. Elas, que estavam habituadas a viver em
paz, sem sobressaltos, a não ser os habituais inerentes à sua idade, viam-se agora
confrontadas com um mundo cruel, cheio de obstáculos e armadilhas. Eram como duas
aves fora do ninho, sem protecção dos pais e sem estarem preparadas para voar,
facilmente vulneráveis, aos apetites vorazes de algozes e abutres. Mas a vida é
feita de altos e baixos, de horas boas e más, de tristezas e de alegrias, de ânimos
e desânimos. São estas diferenças que nos caldeiam para melhor podermos enfrentar
as suas vicissitudes.
Quando iam a passar ao pé da Sé, o Pedro ia na motorizada para o escritório do
advogado, em sentido contrário, e viu-as no outro lado do passeio. Já não continuou
a viagem, andou mais uns metros, mudou de direcção e foi ao encontro delas.
Depois de as ter cumprimentado, perguntou-lhes como correra a reunião com o
advogado e se havia boas perspectivas para ganharem a acção. Perante tal ensejo,
convidou-as a irem até um dos cafés, situados ali mesmo na baixa da cidade. A
Carolina aceitou logo o convite com imenso agrado, mas a irmã manifestou o desejo
de ir para casa, desculpando-se que tinha dores de cabeça e não estava com
disposição. A irmã e o namorado foram para o café e ela foi para a paragem.
Quando ali se encontrava à espera do autocarro passou a Beatriz e ao virar o
olhar para a fila, viu a Margarida e como era natural foi logo ao seu encontro.
Esta ao vê-la, ficou surpreendida, mas ao mesmo tempo alegre por vê-la:
- Olá Margarida, mas que surpresa, por onde é que tens andado, já há algumas
semanas que não te via, como é que vai a tua vida?
- Problemas e mais problemas, Beatriz.
- Ainda é por causa do outro tarado?
- Uns são, outros não. A maior parte deles são por causa da situação do meu pai
como tu sabes.
- Ainda não tendes notícias dele?
- Infelizmente não, Beatriz.
- O que é que o outro desenvergonhado fez para estares com mais problemas?
- Vingou-se, não conseguiu o que queria, pôs uma acção de despejo aos meus
pais. Venho agora do advogado, fui lá com a minha irmã.
- Mas que nojento! E se fossemos até ao café conversar um pouco sempre
estávamos mais à vontade ou estás com pressa?
- Não, talvez até me faça bem para desanuviar esta pressão que trago em cima de
mim.
A Margarida saiu da fila e foram ambas até ao Golden-Gate. Quando chegaram, a
mesa preferida da Margarida estava vaga, o que lhe causou alguma satisfação por ser
mais recatada, podendo assim falar mais à vontade.
Embora a Margarida tivesse manifestado o desejo de desanuviar a pressão, depois
de ter reflectido com mais profundidade ficou hesitante. era como se a chama
interior tivesse receio de subir até ao cimo da cratera para não fazer estragos à
sua volta. Perante aquela hesitação, acabou por dizer à amiga:
- Não sei se deva contar as minhas angústias e anseios. Parece-me que não tenho
o direito de te arranjar preocupações. Já bastam aquelas que te arranjei quando o
outro ordinário quis abusar de mim.
- Ó Margarida, não digas isso, afinal somos amigas ou não?
- Somos. É por isso mesmo que não quero abusar da tua bondade, nem aproveitar-
me da tua amizade, por entender que já te causei demasiadas preocupações e, quem
sabe, se não te teria arranjado problemas com o outro safado. Ele é teu patrão e
vingativo como é pode vingar-se de ti de um momento para o outro.
- Não te preocupes, se fosse para se vingar já o tinha feito há muito tempo.
Mas ele tem receio porque o meu irmão leu-lhe bem o sermão e o meu pai também teve
uma conversa muito interessante com ele.
Quando a Beatriz falou do pai, a Margarida sentiu uma grande dor e uma enorme
ansiedade de chorar, mas a dor trancou-lhe as lágrimas e quando estas se soltaram,
conseguiu vertê-las em silêncio e sufocar os soluços mas não conseguiu evitar que
os seus olhos humedecessem.
A Beatriz leu-lhe nos olhos o que lhe ia na alma, mas manteve-se calada por um
longo momento, a pensar no que haveria de lhe dizer para a animar. Enquanto se
mantinha este silêncio, a Margarida tinha os olhos fixos na mesa, para não
denunciarem a agitação interior. Terminado o interregno, a Beatriz pegou-lhe nas
mãos, fixou o olhar nela e disse-lhe:
- Desabafa, minha amiga. Não tenhas receio de dizer o que sentes. É nestes
momentos que mais precisamos de ajuda, mas se não me disseres o que se está a
passar não posso ajudar-te e vou ficar triste e preocupada.
Se até ali era difícil à Margarida suster a comoção, com aquele gesto da amiga,
ainda mais dificuldades sentiu e não conseguiu que algumas lágrimas se soltassem e
só não rolaram pelas faces porque ela as limpou logo.
- Vá, Margarida, conta lá tudo o que te atormenta. Sou toda ouvidos.
Depois da amiga muito insistir, a Margarida começou a contar todo o drama que se
vivia na sua casa, a ansiedade que as atormentava por não saberem o que teria
acontecido ao pai, os problemas que a sua ausência trouxera, a saúde da sua mãe e o
receio de surgir a qualquer momento um desenlace fatal na sua família.
Quando terminou a descrição já não conseguia suster as lágrimas. Quanto mais as
limpava, mais outras se lhes sucediam.
A Beatriz estava comovida com o que acabara de ouvir e também ela não conseguiu
disfarçar a teimosia de algumas lágrimas que lhe apareceram ao canto dos olhos.
Passado aquele momento difícil, ambas se foram recompondo aos poucos da comoção e
algum tempo depois já estavam diferentes, embora preocupadas.
A Beatriz estava preocupada e triste por tudo o que tinha acontecido e estava
acontecer à amiga e à sua família; mas a tristeza era contrabalançada por alguma
felicidade por a poder ajudar. Depois de a ter tranquilizada com palavras de
esperança, fez questão de ser ela a resolver o problema do dinheiro para o
pagamento das rendas em atraso e seus acréscimos legais.
A Margarida não queria de maneira alguma que a amiga suportasse aquele peso e
se sacrificasse tanto por causa dela, mas a Beatriz insistiu, alegando que sentia
uma grande alegria em poder ajudá-la e que não era sacrifício nenhum porque tinha
as suas economias e o que faltasse pedia ao irmão que era contabilista e também
tinha o seu pecúlio.
A Margarida comoveu-se de novo e agradeceu-lhe mais aquele nobre gesto.
Embora ambas pretendessem continuar a conversar, não podiam porque a hora já ia
avançada e não queriam chegar tarde a casa, para não causar preocupações à família,
deixando ambas a promessa de que iriam encontrar-se mais vezes e com mais
frequência. Despediram-se e cada uma foi ao seu destino.
A Margarida ia mais animada, as palavras amigas que a Beatriz lhe dissera, a
sua abertura e franqueza foram como bálsamo para lhe levantar o ânimo e dar-lhe
mais força para continuar a lutar. Apesar de tanta adversidade, nos momentos mais
críticos das crises, aparecia sempre alguém a estender-lhes a mão para não caírem
no abismo.
Quando chegou a casa, a mãe encontrava-se deitada em cima da cama, ansiosa por
que as filhas chegassem para lhes levarem as notícias que o advogado lhes
transmitira. A irmã ainda não tinha chegado e não queria dizer nada à mãe sem que
ela chegasse para combinarem o que lhes iriam dizer para não lhes falarem no
dinheiro. A Margarida, depois de ter cumprimentado a mãe e lhe ter perguntado como
se sentia, saiu de novo do quarto, alegando que ia à casa de banho e depois voltava
para lhe dar as notícias. Mas tranquilizou-a logo, dizendo-lhe que as mesmas eram
boas e pediu-lhe paciência para esperar mais um pouco porque o serviço que tinha
para fazer, ninguém mais podia fazer por ela. A mãe compreendeu, achou graça e
esboçou um leve sorriso e disse-lhe:
- Vai, filha, antes que faças o serviço nas calcinhas. A Margarida também achou
piada à resposta e não resistiu sem se rir, deixando estampada no rosto a marca
dessa graça, a qual foi facilmente notada pela irmã, que naquele momento estava a
chegar, o que a deixou espectante e feliz, por pensar que tivesse chegado alguma
notícia do pai.
- O que é que tu tens, Margarida, para vires com esse ar tão alegre, chegou
alguma boa notícia do pai?
- Infelizmente não, mas no meio das desgraças que nos têm acontecido e estão a
acontecer, de vez em quando acende-se uma luzinha no nosso caminho, que eu chamaria
a luz da esperança.
- Afinal o que é que aconteceu, para ficares com esse ar mais alegre?
- Não aconteceu nada, foi só um desses episódios, que às vezes aparecem para
nos levantarem o ânimo. Eu estava à espera que tu chegasses, para combinarmos o que
havíamos de dizer à mãe e para evitar que ela me fizesse perguntas, disse-lhe que
estava aflita e tinha de ir à casa de banho, foi quando me respondeu, que fosse
depressa, antes que fizesse nas calcinhas.
A irmã também achou imensa piada, bem visível no sorriso que deu e disse-lhe:
- Ainda bem que a mãe disse isso, sempre alivia um pouco a tensão e é sinal de
que está melhor.
- Não sei, Carolina, já pensei que talvez tivesse dito aquilo só para me
animar, porque ela não está bem. Talvez seja melhor falar com a Fernanda, para ver
se a convencemos a ir outra vez ao médico, mas agora temos de lhe dizer o que o
advogado disse, mas não falamos no dinheiro, para não a afligir, felizmente esse
assunto já está resolvido.
- Como? - perguntou a irmã com cara de espanto.
- Depois conto-te, agora vamos lá dentro sossegar a mãe, senão daqui a pouco
começa a pensar que caí dentro da sanita.
- Vamos então.
Antes do Leonel ser despedido do hotel, as filhas viam a vida como um oásis,
onde corria o leite e o mel, onde as roseiras cresciam em abundância, das quais
nasciam as mais belas rosas, que embelezavam o cenário e perfumavam o ambiente.
Quando se magoavam com algum espinho, os pais acudiam-lhes logo, a tratar das
feridas e aliviar-lhes a dor. Mas depois do pai ter deixado a Madeira e os
problemas e aflições passarem a morar com elas, começaram a ver a vida de uma forma
diferente e viam desfazer-se em fumo a sua quimera e aceitavam conformadas a
realidade dos factos e a dureza da vida.
Quando entraram no quarto, a mãe estava com um ar mais animador do que na parte
de manhã parecia que o sono e o descanso tinha reposto algumas das suas forças. Mas
pura ilusão; era mais aparente do que real, porque o sofrimento que sentia no seu
interior era enorme, mas tentava escondê-lo das filhas quando podia, para não lhes
causar mais preocupações.
- Então, filhas, o que é que o advogado vos disse, deu-vos esperanças?
- Muitas - disse a Carolina com ar natural e um leve sorriso forçado para a
animar. . Na opinião dele, o outro desavergonhado não tem hipóteses de ganhar a
acção, mas a decisão cabe ao Tribunal. Disse, que, além da falta de pagamento das
rendas, veio ainda alegar que fizemos a arrecadação sem autorização.
- Mas que malandro, foi o pai dele que sugeriu e autorizou que a fizéssemos,
até nos ofereceu os materiais. Já passou tanto tempo, tu ainda não tinhas nascido,
Carolina, lembro-me que ele até passou um bilhete ao teu pai, que deve estar para
aí, para podermos levantar tudo o que fosse preciso e agora vem aquele traste dizer
um disparate destes, nem sequer respeitou a memória do pai, um homem tão bom como
era, que gostava de ver toda a gente bem, a esta hora está no céu, muito triste,
ver as maldades que o filho aqui anda a fazer.
- Foi vingança, mãe, se eu tivesse cedido ao que ele queria, nada disto se
dava, até era capaz de nos ter oferecido a casa, mas como não conseguiu o que
queria e ainda por cima foi enxovalhado não nos perdoa, nem a mim, nem à Beatriz,
pelo facto de o termos enfrentado.
- Malandro, se não te defendesses e fosses na conversa dele, a estas horas
estavas desgraçada, mas Deus não dorme.
- Só há um pequeno problema - disse a Carolina.
- Que problema é esse, filha?
O Diogo, depois da Matilde lhe ter telefonado para saber se tinha notícias do
marido, apesar de a ter tranquilizado também ele ficou preocupado, o que o levou a
contactar várias vezes o amigo que tinha em França, para saber se já tinha notícias
do Leonel. Todas as vezes que o contactou sempre obteve respostas, mas as notícias
não eram nada animadoras, porque ainda não tinha conseguido entrar em contacto com
ele, apesar de já ter feito várias tentativas nesse sentido. Mas deixava sempre a
esperança de o encontrar, porque iria continuar a procurá-lo e também se poderia
dar o caso de ser o Leonel a contactá-lo, porque tinha a direcção dele.
No dia que chegou a carta, o Diogo tinha ido muito cedo para a fazenda e só
regressou à noite. Quando chegou a casa a mulher entregou-lha, abriu-a logo com
sofreguidão e começou a lê-la. A mulher perguntou-lhe se trazia boas notícias, mas
ele não respondeu. Quando terminou, deu um longo suspiro e disse-lhe:
- Felizmente as notícias são boas; o Leonel já está em França, mas sofreu muito
para chegar lá. Esteve quase a ser preso na fronteira com a Espanha e esteve à
beira da morte, mas agora já está bem.
- Credo! O que é que lhe aconteceu? - perguntou a mulher
- Daqui a pouco conto-te tudo em pormenor, mas agora vou telefonar à dona
Matilde para a tranquilizar e às filhas.
- Vai depressa, homem, elas estão a sofrer muito, mas tem cuidado com o que lhe
vais dizer. Não lhe digas que esteve quase a ser preso e que esteve à beira da
morte, suaviza as coisas, porque o marido depois vai-lhe contar tudo em pormenor,
mas nessa altura já estão preparadas.
- Fica descansada, eu sei como lhe hei-de dar a notícia.
O Diogo dirigiu-se para o telefone, discou o número da casa do Leonel.
- Sim, estou?
- Viva, dona Matilde, como tem passado?
- Muito mal, senhor Diogo, não sei se conseguirei resistir por mais tempo a
tanto sofrimento, nunca mais chegam notícias do meu marido. Também não sabe nada
dele?
- Sei e tenho boas notícias para si e para as suas filhas, por isso é que lhe
telefonei
- Diga, diga, senhor Diogo, ele está bem? Onde é que ele está?
- Fique descansada, dona Matilde, ele está bem. Já está em França e manda um
abraço e muitos beijinhos para si e para as suas filhas e também manda dizer que
está cheio de saudades vossas.
- Mas porque é que ele não telefonou ou escreveu a dar notícias?
- Ele teve problemas na fronteira. Alguns colegas que iam com ele foram
apanhados, mas ele conseguiu escapar. Quando ia a fugir, era de noite, caiu e
partiu o braço direito. Por isso é que ainda não escreveu e também não tinha
dinheiro para telefonar. O meu amigo já lhe arranjou um emprego num restaurante de
um emigrante português. Dentro de dias já começa a trabalhar. Qualquer dia tem aí à
porta uma cartinha dele a explicar-lhe tudo com mais pormenor.
- Obrigado senhor Diogo, foi a melhor notícia que recebi em toda a minha a
vida. Não faz ideia da angústia que tirou dentro de mim e das minhas filhas.
Obrigado, mais uma vez, dê muitos cumprimentos à sua esposa.
- Serão entregues. Boa noite, dona Matilde.
- Boa noite, senhor Diogo e mil vezes obrigado.
Embora o Diogo soubesse que o Leonel tinha partido o braço em França, arranjou
aquela desculpa, dizendo-lhe que foi na fronteira quando ia a fugir, para não a
deixar a pensar que lhe estava a esconder alguma coisa, tendo ficado muito feliz
com a ideia e pelo modo como cumpriu a missão.
Quando a Matilde ouviu aquela notícia, chamou a Margarida para lhe transmitir a
boa nova, mas no momento em que pretendia fazê-lo, as palavras ficaram presas na
garganta e as únicas que se conseguiram soltar, foi para lhe dizer:
- Graças a Deus, o pai está salvo.
Logo a seguir a comoção apoderou-se dela e não conseguiu dizer mais nada.
Abraçou-se à filha com toda a força que ainda tinha e abraçadas uma à outra,
começaram a chorar lágrimas de alegria, há tanto tempo arredada delas.
Após terem dado largas ao choro, um sorriso animou os lábios sem cor da
Matilde, os olhos doridos e murchos voltaram a brilhar, como duas estrelas
cintilantes, a ferida que se lhe abrira no coração começou a cicatrizar, um novo
dia nasceu ali e com ele a esperança de um futuro mais feliz e risonho.
Depois da mãe ter dado a notícia, embora ainda incompleta, a Margarida correu
para o seu quarto, abriu a janela de par em par, chamou o siroco e o pampeiro, para
que levassem dali a tristeza, para entrar a alegria. Depois olhou para as estrelas,
viu-as mais vivas que nunca, pareciam saudá-la e comungar com ela a mesma
felicidade que sentia naquele momento.
A alegria que sentiam era imensa, chegou mesmo a ultrapassar os limites
habituais, para se tornar quase infantil, ambas não cabiam em si de contentes.
Já mais calmas, a Margarida pediu à mãe, para lhe contar com mais pormenor o
que o Diogo lhe dissera. Sem embargo na voz e com as palavras a saírem
fluentemente, a Matilde começou a contar-lhe toda a conversa que tivera com ele,
mas quando lhe contou que o pai partira o braço, quando fugia da guarda para não
ser preso, as lágrimas voltaram de novo aos olhos de ambas.
Naquela tarde, a Carolina saiu mais cedo das aulas, mas já tinha combinado com
o namorado, para darem uma volta pela baixa do Funchal. Por isso não estava
presente quando a mãe recebeu a notícia.
Logo que entrou em casa, dirigiu-se ao quarto, mas para seu espanto, a mãe
também lá estava, ambas com os olhos vermelhos de tanto terem chorado. Ao vê-las
assim, nem deu oportunidade a que a mãe, ou a irmã lhe dessem a boa nova.
Repentinamente, o seu coração estremeceu, as faces descoraram, o seu semblante
empalideceu, mas quase simultaneamente a mãe tranquilizou-a:
- Não fiques triste, minha filha, o pai está salvo.
Ao ouvir aquelas palavras, um enorme suspiro de alívio rompeu-lhe do coração,
atirou-se para os ombros da mãe e ali ficou um longo momento, a derramar toda a
alegria que sentia, arrastando também a mãe e a irmã, que não conseguiram conter as
lágrimas que brotaram dos seus olhos.
Quando a explosão de choro terminou e a comoção deu lugar à placidez, a mãe
pôde contar toda a notícia à filha. depois de ter descrito tudo o que o Diogo lhe
dissera, nem pareciam as mesmas. Estavam risonhas e felizes, repartindo entre si o
pão da alegria, como já haviam repartido o pão da tristeza.
III
Parte
A partir daquele dia, a luz passou a ser diferente naquela casa. Era uma casa
mais clara, mais viva, mais brilhante, coada através de uma atmosfera mais calma,
mais serena; a notícia veio tranquilizá-las e afastar a suspeita que as tinha
oprimido durante alguns meses, por pensarem que o Leonel estivesse preso ou até já
tivesse morrido.
A Matilde chegou a desistir de esperar todos os dias pelo carteiro, como o
vinha fazendo há várias semanas por ter desanimado e pensado que a tão ansiada
carta já não chegava.
Depois de ter recebido aquela notícia, começou de novo a esperar por ele, com
muita ansiedade, mas também mais tranquila e com a certeza de que a tão desejada
missiva não tardaria a chegar.
Esse dia finalmente chegou. Quando o carteiro lhe disse que trazia uma carta do
marido, os seus olhos brilharam de alegria e um longo sorriso brotou-lhe dos
lábios, a felicidade estampou-se-lhe no rosto e um olhar insistente fixou-se no
maço das cartas que o carteiro tinha nas mãos, quando procurava a do marido, no
meio das outras; quando a encontrou e lha entregou, ela apertou-a contra o peito,
depois beijou-a. O mensageiro das boas e más notícias assistia àquela cena, com
alguma comoção e simultaneamente feliz por lhe ter levado a tão desejada carta, por
saber da ansiedade como a esperava e da tristeza em que ficava quando lhe
comunicava que não tinha chegado nada.
O carteiro despediu-se e seguiu o seu caminho distribuindo mais alegrias e
tristezas.
A Matilde, com enorme sofreguidão, abriu logo ali a carta e sentou-se a lê-la
num banco de madeira que estava debaixo de uma frondosa laranjeira onde a família
costumava passaras horas de ócio, principalmente nos dias mais acalorados e onde a
Margarida e a irmã costumavam estudar muitas vezes.
Era uma carta cheia de ternura à mistura com muita tristeza e alegria, mas
também com imensa saudade. Nela descrevia o sofrimento, as aflições, as incertezas,
as contrariedades, a saudade e o desespero que tivera de suportar para chegar a
França, desde que saíra da sua terra. Falava também dos verdadeiros amigos que
encontrara, das puras amizades que fizera; salientou ainda que, sem eles, não teria
resistido a tanto sofrimento e a tanta adversidade; manifestava também a sua
alegria pelo facto de já se encontrar curado, tanto psicologicamente, como
fisicamente e ter conseguido arranjar trabalho no ramo a que estava habituado.
Terminava-a da seguinte maneira:
- Deus vos proteja! Recebei um forte abraço, com muitos beijinhos à mistura,
deste que vos traz sempre no pensamento e muito vos ama, Leonel.
Quando a Matilde acabou de ler a carta, ergueu os olhos ao céu e chorou. Chorou
muito, a agradecer a Deus por ter salvo o marido; chorou lágrimas de tristeza e
simultaneamente de alegria: eram de tristeza pelo sofrimento que o marido tivera de
suportar; eram de alegria por estar salvo e pelas notícias animadoras que acabava
de receber. Depois foi para casa, sentou-se numa cadeira de vimes que estava na
varanda e ali ficou a inventariar tudo o que acontecera, desde que saíra da sua
terra. Estava também ansiosa, por que chegassem as filhas para lhes dar as
notícias.
Durante aqueles tristes meses, ela sentira que a esperança de ter notícias do
marido ia caindo aos poucos, como caem as folhas secas ao mais fraco sopro do vento
e sentia-se a envelhecer antes do tempo. Aquela carta trouxe-lhe de novo o alento e
rejuvenescimento. Era como se uma flor estivesse a brotar de entre as ruínas.
Quando as filhas chegaram, continuava sentada na cadeira, mas com a cabeça
encostada, com os olhos fechados e ar feliz, mas ainda com sintomas de ter chorado.
- Parece que a mãe está a dormir? - disse a Margarida.
- Já reparaste como está estranha? Parece que está a sorrir, mas tem os olhos
vermelhos, com aspecto de ter estado a chorar - observou a Carolina.
- Não estou a dormir, minhas filhas, estou só com os olhos fechados a meditar
nas notícias que o vosso pai mandou.
- Já recebeu carta do pai? Mas que bom! Manda boas notícias? - perguntou a
Margarida.
- Manda, mas sofreu muito, está aqui a carta. Podeis lê-la. Toma, Margarida.
A Margarida pegou nela e disse para a irmã:
- Toma, lê.
- Já que estás com ela na mão lê tu - respondeu a Carolina.
A Margarida sentou-se numa outra cadeira que estava ao lado e começou a ler. A
irmã ficou de pé, atrás dela e ia também acompanhando a leitura da carta.
Quando terminou, seguiu-se um longo silêncio, como que a reflectirem nas
palavras que o pai mandara dizer.
- Sofreu tanto o nosso querido pai, mas felizmente as coisas agora já estão a
correr bem. Deus ajudou-o - disse a Margarida.
- Graças a Deus! Parece que a paz e a tranquilidade voltaram de novo ao nosso
lar - disse a mãe.
Depois de terem falado sobre vários assuntos relacionados com os últimos
acontecimentos, a mãe foi para a cozinha fazer o jantar, enquanto as filhas foram
até ao quarto delas para estudar, mas acabaram por passar a maior parte do tempo a
falar de amores e desamores.
Quando a mãe acabou de confeccionar o jantar, preparou a mesa e quando estava
tudo pronto chamou-as. Elas dirigiram-se para a cozinha, mas encontraram-na
completamente arrumada e a mãe ausente dali.
- Hoje vamos comer na sala? - disse a Carolina.
- Deve ser para festejar as boas notícias do pai.
A suspeita caía numa senhora chamada Adelaide, que aparentava andar na casa
dos cinquenta anos, muito bem falante, sempre bem vestida a condizer com a moda,
que todos os dias, na parte da tarde, ia buscar a neta e falava muitas vezes com as
colegas que mais friamente a tratavam.
Era o início de uma pista que a Margarida iria seguir em silêncio, para não
levantar suspeitas, mas com a sagacidade necessária para atingir os objectivos
pretendidos. Com os elementos que já possuía e com o calejamento que a vida lhe
trouxera, não lhe era difícil engendrar uma artimanha para descobrir se estava na
pista certa ou errada.
Numa das tardes em que a senhora foi buscar a Joana, era como se chamava a neta
dela, estava com a Margarida. Embora já tivessem terminado as aulas, que
propositadamente, ficou com ela mais algum tempo a ensinar-lhe a fazer um desenho.
Uma das colegas que costumava falar com a avó, logo que a viu entrar, foi à sala
para a levar, mas a Margarida alegou que estava só acabar de fazer o desenho e que
a Joana mostrara interesse em levá-lo à avó. Eram só mais dois ou três minutos, ela
mesmo se encarregaria de a levar. A Dolores ainda insistiu em levá-la, mas perante
os argumentos da colega, nada mais poderia fazer, senão resignar-se. No entanto
ainda lhe disse:
- Eu só queria ajudar-te. Não é preciso? Tudo bem!
- Registo o teu gesto e a tua preocupação, mas hoje prefiro assim.
À medida que o tempo ia passando, o ambiente ia-se tornando cada vez mais
pesado na creche. Os boatos começaram a ser mais comentados e as conversas em
surdina nas costas da Margarida passaram a ser mais frequentes. A Dolores que antes
apenas comentava com as colegas da sua laia e mantinha uma certa frieza e um certo
afastamento em relação à Margarida, tinha agora uma atitude mais hostil.
Apresentava um ar sarcástico, mas de um sarcasmo benévolo e anódino, que sabe
misturar espinhos com rosas.
Essa mudança de atitude, levara a Margarida a pensar que era motivada pelo
facto de não a ter deixado levar a Joana à avó ou então que esta já lhe tivesse
injectado mais veneno para criar ainda mais confusão, porque o método que agora
estava a utilizar, embora aparentemente mais inofensivo, era na realidade mais
requintado e mais mordaz; mas a Margarida agora já tinha encontrado o fio à meada.
Era só uma questão de tempo para desenlear a teia.
No sábado da semana seguinte, estava com a irmã a tomar a bica no Golden-Gate,
quando viram entrar a Adelaide e a Dolores, mas desta vez sem a Joana. Iam com os
olhos fixos numa mesa que estava vazia ao fundo da sala, mas quando voltaram o
olhar e viram a Margarida, pararam, cochicharam e depois foram sentar-se numa mesa
que estava vazia mesmo ao lado da Margarida e da Carolina. Esta que já sabia tudo o
que estava acontecer com a irmã, logo que as viu mudar de rumo e dirigirem-se para
a mesa que estava vazia, mesmo ao lado, disse para a irmã:
- Elas iam sentar-se lá ao fundo, mas assim que nos viram, desistiram e vieram
logo a ocupar esta, isto cheira-me a provocação.
- É o mais certo. Elas não sabem fazer outra coisa.
No dia anterior, tinha saído uma notícia num jornal do continente, relacionada
com um caso amoroso. A mesma referia-se a uma mulher que tinha apanhado o marido
com uma das empregadas, completamente nus, num sofá do escritório. Não lhes disse
nada, mas teve a ligeireza suficiente para se apoderar da roupa deles e deixá-los
só com a que Deus os trouxe ao mundo; depois deixou-os fechados no escritório e
chamou dois empregados para arrombarem a porta fazendo-lhes crer, que o marido
queria sair mas não conseguia porque a fechadura estava encravada.
Os empregados eram dois rapazes fortes e assim que chegaram ,meteram os ombros
à porta e arrombaram-na, dando com o patrão e a colega completamente nus e
envergonhados; os empregados aperceberam-se no momento que tinham sido enganados,
mas já não podiam voltar atrás.
Depois de se terem sentado e pedido um garoto e uma bica, com uma voz
suficientemente audível, de modo a que pudesse ser ouvida facilmente pela Margarida
e pela irmã, a Dolores disse para a avó da Joana:
- A dona Adelaide já ouviu falar daquela notícia amorosa que veio num jornal do
continente, a dos pombinhos que ficaram sem a roupa?
- Sim, sim! Essa foi boa, estavam lá muito felizes no sofá, mas a mulher
estragou-lhes o arranjinho e pregou-lhes uma valente partida. Agora já não se vão
meter noutra tão cedo.
- Nunca se sabe, dona Adelaide, agora está a ficar tudo diferente, às vezes são
elas que os provocam e depois eles não resistem.
- Tem razão, Dolores. Agora até há quem queira trocar o corpo pela renda de
casa.
A Margarida, ao ouvir aquelas palavras cínicas e cruéis, sabia que eram
dirigidas a ela. O seu semblante tingiu-se de vermelho, o seu coração estremeceu e
uma enorme onda de indignação apoderou-se dela. Ainda pensou responder à letra e
dizer-lhes tudo o que sentia mas a irmã, também ela indignada, fez-lhe sentir que
não era o lugar próprio nem o momento ideal, porque iria causar escândalo e era o
que elas queriam. A Margarida reflectiu e seguiu os conselhos da irmã. Era como se
estivesse no meio de uma emboscada sem poder reagir nem defender-se. A única coisa
que conseguiu fazer foi lançar-lhes um olhar de revolta e indignação e suportar a
dor em silêncio.
A Carolina que antes estava calma, embora indignada, depois de ter meditado
profundamente nas palavras provocatórias que ouvira, começou a ficar revoltada e
sem calma, com imensa dificuldade de se controlar. Agora valeu-lhe a irmã que já
tinha suportado a provocação e conseguiu evitar que ela dissesse ali ,à Dolores e à
amiga aquilo que concerteza não iriam gostar de ouvir. Logo de seguida levantaram-
se e foram-se embora; mas, antes de saírem, a Carolina aproximou-se delas e disse-
lhes:
- Vocês não prestam mesmo para nada. Passam a vida a chafurdar na imundice para
saciarem os vossos apetites imundos.
A irmã foi logo atrás dela e disse:
- Vamos embora, Carolina, não discutas com essa gente. Já viste alguém tirar
água limpa dum poço sujo? No momento oportuno elas vão ter que explicar muita
coisa.
A Adelaide ainda tentou responder, mas debalde, porque a Margarida e a irmã
voltaram-lhes as costas e foram-se embora. Ficou furiosa e a barafustar por não ter
tido tempo de ripostar.
- Mas que desaforo, que falta de educação. Nunca na minha vida fui tão
ofendida. Ah!, mas isto não fica assim, elas não sabem com quem se meteram. Ainda
vão engolir em seco o que disseram. segunda-feira já vou falar com a directora da
creche para ficar a saber quem é que tem lá dentro, a desavergonhada, anda por aí a
oferecer o corpo a uns e a outros e ainda tem a lata de se armar em pudica. Como é
que uma criatura destas pode estar numa creche?
A Dolores mantinha-se aparentemente mais calma, mas estava aturdida com a
reacção da Margarida e da irmã, embora fosse apoiando sempre a amiga, mas no seu
interior começava a sentir alguma preocupação, principalmente quando viu formarem-
se ali mesmo ao seu pé, enormes nuvens negras, a anunciarem tempestade, a qual não
tardaria a eclodir e de certo, também a arrastaria, temendo agora não poder sair-se
tão bem como das outras vezes em que estivera envolvida.
Quando a Adelaide chegou a casa, ia mal humorada e desesperada, ansiosa por
descarregar a sua ira. A primeira vítima foi a empregada que logo que a viu foi ao
seu encontro, para lhe perguntar o que deveria fazer para o jantar, tendo ouvido
como resposta uma forte reprimenda.
- Você é uma incompetente, uma inútil! Não sabe o que é que costuma fazer ao
Sábado?
- Não é sempre a mesma coisa, minha senhora - respondeu a empregada cheia de
medo.
- Cale-se sua imbecil, sua bilhardeira, sua refilona! Vá já para a cozinha,
desapareça da minha frente.
De seguida, pegou numa jarra de porcelana cheia de flores, que estava numa
pequena mesa à entrada da sala e atirou-a para o chão, a qual ficou logo em cacos,
a água e as flores espalhadas por todo o lado.
Depois de ter saciado toda a ira, foi para o quarto, fechou a porta e atirou-se
para cima da cama, a pensar na melhor forma de tramar a Margarida.
A empregada ficou aterrorizada e magoada com a atitude que a patroa tivera com
ela. As lágrimas corriam em abundância pelas faces e pensava para consigo:
Que bicho lhe teria mordido, para me tratar assim? Nunca lhe fiz mal, coitada
de mim, trabalho aqui que nem uma escrava, nem tempo tenho para me coçar e ainda
por cima recebo esta paga. Até bilhardeira me chamou... Bilhardeira é ela que passa
a vida ao telefone a falar com as amiguinhas da mesma laia, a dizer mal de toda a
gente. Ah, mas se ela voltar a fazer-me o que me fez hoje, vou-me embora, ela que
faça o serviço com a ponta da língua que a tem grande. e serviço não me há-de
faltar, se Deus quiser.
Meia hora depois chegou a Sara, chamou pela mãe, mas ela não respondeu,
dirigiu-se para a cozinha e viu a empregada ainda com sintomas de ter chorado o que
a levou a perguntar-lhe:
- O que é que te aconteceu Ilda, estiveste a chorar?
- Foi a sua mãezinha que me ofendeu. Se voltar a tratar-me como me tratou hoje
vou-me embora. Cumpro com as minhas obrigações, faço o meu trabalho o melhor que
posso e sei, tento ser o mais educada possível para todos e ninguém tem o direito
de fazer de mim capacho - disse a Ilda levantando o tom de voz, mas educadamente.
- Mas o que é que a minha mãe te fez?
- Pergunte-lhe que ela sabe muito bem.
- Também não é preciso ficares assim. Onde é que ela está?
- Penso que está no quarto dela.
A Sara foi ter com a mãe e a empregada ficou a preparar o jantar, igual ao que
fizera no sábado anterior, mas sempre receosa que depois de estar pronto, a patroa
viesse dizer que não era aquele jantar que ela queria, mas estava preparada para
enfrentar a situação.
Quando a Sara entrou no quarto, a mãe estava encostada à cabeceira da cama, a
olhar para o tecto, com o penteado desfeito e os cabelos em desalinho a caírem
sobre a espádua como os da pecadora evangélica.
Assim que a viu, ficou um pouco assustada, embora soubesse que a mãe, de vez em
quando, tinha as suas crises passageiras, principalmente quando era contrariada,
mas nunca a vira como naquela situação. Sentou-se na beira da cama ao lado da mãe e
pediu que lhe contasse o que se passara com ela, para estar naquele estado.
A Adelaide começou a descrever à sua maneira o episódio que acontecera naquela
tarde. Algum tempo depois, estavam ambas envolvidas numa animada cavaqueira de
bilhardices, tendo como alvo principal a Margarida e a irmã.
Na segunda feira seguinte, a Margarida logo que chegou à creche, foi ter com a
Amélia, com quem tinha mais confiança pois era quem mais a defendia, quando diziam
mal dela nas suas costas e teve uma longa conversa com ela, a respeito dos boatos e
calúnias que andavam a levantar-lhe. Depois de ter tido a conversa com a colega,
ficou a saber tudo em pormenor e o motivo que levara a Amélia a não lhe dar
conhecimento mais cedo do que sabia; a Margarida achou a explicação correcta e a
atitude sensata, o que viria a reforçar ainda mais a estima e a amizade que tinha
para com ela.
Meia hora depois, a Adelaide entrou na creche para falar com a directora. Tinha
um ar sobranceiro e um sorriso triunfante. Era como se os seus caprichos e o seu
sadismo já estivessem satisfeitos e a sua malvadez saciada, antes de falar com a
directora.
A Margarida, ao vê-la entrar com aquele ar superior e irritante, sentiu um
fluido a percorrer-lhe as fibras e naquele rápido momento, teve uma sensação de paz
e tranquilidade, como que anunciar-lhe o fim do sofrimento e a chegada do
esclarecimento e da verdade. Agora já tinha em seu poder os elementos que lhe
faltavam e já tinha arquitectado a maneira de se defender e desmascarar, sem apelo
nem agravo, os seus detractores.
O mesmo já não se passava com a Dolores que vivia agora na incerteza, escudada
apenas naquilo que a Adelaide lhe dissera e nas artimanhas que imaginava para sair
de situações complicadas, tão ao estilo dos amantes da bilhardice.
A directora era uma senhora a rondar as quarenta primaveras, chamava-se Lurdes.
Era bondosa e humana, mas também era dura quando necessário e não tolerava a
mentira nem a hipocrisia. Quando lhe foram anunciar que a avó da Joana queria falar
com ela, mandou-a logo entrar para uma pequenina sala onde a iria receber.
Quando a Adelaide entrou, tinha o mesmo ar altivo e arrogante e olhou para a
empregada que lhe indicara a sala, com ar de patroa mandona, como se estivesse na
sua própria casa.
- Quer dizer que não acredita no que eu lhe estou a dizer? Vem uma pessoa para
aqui para defender as crianças e a própria creche e ainda é tida como mentirosa.
- De maneira nenhuma estou a pôr em causa o que me disse, dona Adelaide. É de
facto muito grave o que me disse, e garanto-lhe que vamos tomar todas as
providências que a situação impõe, mas não pode ser de um momento para o outro.
- A senhora directora está é do lado dela, por isso é que não quer tomar já
agora essas medidas.
- Eu não estou do lado de ninguém. ,Estou do lado onde estiver a verdade.
A directora depois de dizer estas palavras, manteve-se em silêncio por alguns
segundos e depois de ter reflectido, retomou a conversa e disse-lhe:
- Já agora, para adiantarmos este caso, a dona Adelaide seria capaz de dizer,
por escrito, o que me está a dizer verbalmente.
- Era o que faltava! Já não basta a minha palavra e a minha preocupação, ainda
ter de escrever, isso não faço.
- Sabe, dona Adelaide, eu fiz-lhe esta pergunta porque a senhora diz que consta
e, constar é uma coisa e ter a certeza é outra, mas fique descansada que iremos
tomar as medidas urgentes que se impõem e ela terá a punição que merecer de acordo
com o que vier a ser apurado.
Depois de ouvir a directora, a consciência da Adelaide tacteou nas trevas e
ficou apavorada, por ver apagar-se subitamente o clarão que lhe iluminava o caminho
da maldade.
A amiga dela, que estava de atalaia, quando a viu sair, foi logo ao seu
encontro para saber como tinha corrido a reunião. Quando se aproximou e a viu de
semblante de Inverno como que anunciar o aproximar de uma enorme tempestade o olhar
desvairado e incônscio que parecia mais de loucura do que de indignação, ficou
estupefacta. O coração estremeceu e o corpo tremeu como varas verdes. Ela via o
muro onde costumava resguardar-se a ruir e, pela primeira vez, começava a
pressentir que os ventos que ela ajudara a semear se estavam a virar contra ela e
arrastá-la para os lodaçais da infâmia e da desgraça, nos quais tanto gostava de
ver os outros a sofrer, mesmo inocentemente, mas dos quais se salvava sempre.
- Então como é que correu o encontro? - perguntou a amiga.
- Não valeu a pena vir falar com ela. É "farinha do mesmo saco", mas isto não
fica assim, não é com atitudes destas que se defendem as crianças e a creche. Se
calhar vai acabar por ir também para a rua a fazer companhia à outra - disse a
Adelaide, irritada, mas já sem grande convicção. Apenas queria salvaguardar as
aparências perante a amiga.
- Mas o que é que ela lhe disse? - perguntou a Dolores.
- Agora não tenho paciência nem disposição para falar neste assunto. Aguarde
mais algum tempo para ver no que isto vai dar. Adeus, Dolores.
- Adeus, dona Adelaide.
A Margarida agora estava agitada e inquieta. Ia recapitulando tudo o que se
passara com ela, desde o dia negro em que estivera no escritório do senhorio.
Estava também ansiosa que a directora a chamasse para dar a sua versão dos factos
e, embora estivesse de consciência tranquila, estava inquieta e indignada com toda
aquela situação. Depois da Adelaide ter saído do gabinete da directora, ficou mais
calma porque a sua principal amiga lhe dissera que ela saíra de lá com cara de
aborrecida. Embora estivesse à espera de ser chamada nesse dia não o foi, mas ficou
convencida que não tardaria a sê-lo.
Depois da Adelaide ter saído, a directora sentou-se no sofá que estava ao lado
da sua secretária e ali ficou a meditar no que acabara de ouvir . A reflexão foi
enorme e veio finalmente dominar a tempestade que se levantara no seu interior.
Embora estivesse ciente que a denúncia era extremamente grave e delicada, a merecer
uma intervenção rápida mas cuidadosa, apercebeu-se também que havia muita sede de
vingança por parte da avó da Joana e o firme propósito de prejudicar a Margarida.
No dia seguinte, mandou chamá-la ao seu gabinete, para ficar a conhecer a sua
versão. Logo que entrou, os seus olhos pousaram no rosto plácido da Margarida, mas
facilmente se apercebeu do sofrimento que morava com ela. Depois mandou-a sentar e,
com ar escrutador - disse-lhe:
- Já deve calcular o motivo porque a mandei chamar.
- Infelizmente já, senhora directora. Faço ideia do que lhe têm dito a meu
respeito e como deve estar magoada comigo por pensar que traí a sua confiança. Eu
não me esqueço que foi com a ajuda da senhora directora que as portas desta creche
se me abriram, num momento em que eu tanto precisava de um emprego, para ajudar a
minha família.
- Não pense nisso. O que me disseram é bastante grave, mas seria injusto e não
ficaria bem com a minha consciência estar a condená-la sem primeiro se provar, ou
não a sua culpabilidade. É por isso que a chamei para me dizer o que se passou ou
está a passar consigo. Conte lá, estou aqui para a ouvir.
A Margarida não respondeu. Sentiu o coração oprimido e também não conseguiu
ficar sentada: ora de pé, ora sentada, intercalava o silêncio com exclamações de
dor e de mágoa.
A directora ao vê-la assim, falou-lhe com ternura e disse-lhe palavras de ânimo
e ficou ainda mais convencida que haveria muita bilhardice e muita maldade no meio
daquela história.
Ao ouvir as palavras da directora, uma enorme explosão de choro ,irrompeu do
seu interior e começou a chorar copiosamente todas as mágoas de tristeza e de
revolta que trazia dentro de si. Depois de muito ter chorado e de ter dado azo à
sua indignação e revolta, já mais calma, limpou as lágrimas e começou a descrever
tudo o que acontecera com o senhorio e o motivo que a levara a falar com ele. O
relato era tão circunstanciado e os factos tão evidentes que a directora apenas
ouvia sem fazer qualquer pergunta ou observação, limitando-se abanar a cabeça de
vez em quando em sinal de convencimento. Mas se alguma dúvida ainda persistisse,
ela dissipar-se-ia, quando a Margarida lhe pediu para que a Beatriz e a colega de
trabalho fossem ouvidas para confirmarem o que acabara de descrever.
O apelo feito pela Margarida foi feito com tanta serenidade e com tanta
convicção que fortaleceu ainda mais o espírito da directora em não acreditar na
história conforme lha tinham contado.
Quando a Margarida saiu do gabinete da directora, um longo suspiro de alívio
rompeu-lhe do coração e viu um enorme rasgão azul no céu tempestuoso daqueles dias.
Via já as águas que antes eram turvas a ficaram mais claras e estava na disposição
de tudo fazer, para que ficassem completamente límpidas, para pode calar as línguas
viperinas.
Ainda naquele dia, telefonou às amigas, a marcar um encontro para as pôr ao
corrente da nova situação e dar-lhes uma justificação por as ter indicado para
darem o seu testemunho, sem antes ter falado com elas.
No dia seguinte foi ao encontro delas para lhes falar mais pormenorizadamente
nos últimos acontecimentos. Depois de terem saído do trabalho, foram até um café
que estava próximo e ali ficaram imenso tempo a conversar. Quando a Margarida
terminou a sua narração, as amigas estavam estupefactas e simultaneamente
revoltadas por verem a pouca vergonha e a malvadez de algumas pessoas que não olham
a meios para atingir os fins, para denegrir o próximo. Mas, sentiam também alguma
felicidade por poderem ser úteis mais uma vez à sua amiga.
Agora a tempestade começava a amainar e a dar lugar à bonança. Restava apenas
esperar que a directora as chamasse, mas não tardou muito que isso viesse
acontecer. No dia seguinte, chamou a Margarida ao seu gabinete para lhe comunicar
que iria receber as suas amigas no sábado seguinte, se não houvesse qualquer
inconveniente por parte delas e para lhes dizer que estivessem na creche à melhor
hora que pudessem daquele dia.
A Margarida ,sabia que tanto a Beatriz como a colega estavam disponíveis a
qualquer hora, porque elas já lhe tinham manifestado essa disponibilidade e por
esse motivo pediu à directora para fixar a hora que achasse mais conveniente. Face
à disponibilidade das amigas da Margarida e atendendo que a hora que teria mais
disponível seriam as quinze horas, marcou para essa hora o encontro.
Todos sabemos o que por aí se diz da Margarida à boca pequena e é por esse
motivo que pedi a estas testemunhas para dizerem, na vossa frente, tudo o que já me
disseram, para se acabar de uma vez por todas com as coscuvilhices, as calúnias e
as suspeições, para que reine a harmonia entre todos e um bom ambiente de trabalho,
porque é isso que eu quero e penso também que é o que todos queremos. Mas se houver
alguém que não esteja de acordo só tem duas coisas a fazer: ou arrepiar caminho, ou
ir desestabilizar para outro lado, porque aqui não tem lugar.
Depois num tom sereno mas firme, pediu à Beatriz e à colega, para contarem
novamente tudo o que se passara entre a Margarida e o patrão delas.
A Beatriz começou a descrever todo o drama porque passou a Margarida e, à
medida que ia descrevendo os factos, o semblante da Dolores, ia deixando
transparecer uma enorme inquietação interior. Embora tentasse disfarçar o mais que
podia essa inquietação não o conseguia na totalidade, o que deu azo a que os
olhares se voltassem para ela de vez em quando, alguns de soslaio, mas outros,
principalmente o das colegas defensoras da Margarida, eram frontais, com ar de
revolta. A certa altura da narração, quando a Rosa foi em auxílio da colega
corroborar o que dissera e a lembrar alguns pormenores que não tinham sido
descritos, uma amiga da Margarida não se conteve sem dizer:
- Há certas pessoas que têm a língua suja de mais. Se a pusessem uma semana de
molho, fazia-lhes muito bem. Assim já não manchavam a vida de muita gente, com a
sua sujidade.
- Uma semana é pouco. Devia ser era um mês e a água devia ser à mistura com
lixívia, para ficar mais bem lavada - disse a Amélia que estava mesmo ao lado.
Houve sorrisos, uns amarelos outros sarcásticos.
A directora, embora também tivesse vontade de rir, fez um enorme esforço para
não exteriorizar o que sentira interiormente, manteve a mesma postura, exigiu
silêncio e pediu à narradora para continuar a descrever os factos.
Quando a Beatriz terminou a narração, os olhares cruzaram-se, uns mais altivos,
outros mais cabisbaixos. O relato dos acontecimentos era tão pormenorizado e os
factos tão evidentes, que não deixaram a menor dúvida, fosse a quem fosse, da
inocência da Margarida.
A Dolores apercebendo-se da acusação que lhe era dirigida, não por palavras,
mas por olhares, sentiu necessidade de se justificar para "sacudir a água do
capote" e disse:
- Há colegas que olham para mim como se eu fosse a causadora de tudo o que
aconteceu à Margarida, mas eu não sou culpada de nada. Pelo contrário, até tenho
andado bastante preocupada e com pena dela, por tudo o que lhe aconteceu, porque
não merecia ser assim tratada.
Quando a Dolores disse estas palavras," o caldo entornou-se", a Margarida
lançou-lhe um olhar de repúdio e indignação e quase todas as colegas queriam falar
ao mesmo tempo.
- Coitadinha! Agora estás com muita pena da Margarida. Não foste tu a causadora
do que lhe aconteceu, mas contribuíste imenso ,para que a calúnia se propagasse. Em
vez de deitares água na fogueira, deitaste gasolina para a incendiares ainda mais.
Quem não te conhece que te compre - disse a Amélia.
- Óh Amélia, ela é tão boazinha que só falta lavarem-lhe os pés e colocá-la no
altar! - disse a colega que estava em frente.
- E a língua - disse outra colega que estava ao canto da sala, até então muito
sossegadinha.
- Pronto! Vamos acabar com isso - disse a directora.
Embora não concordasse com aquele tipo de linguagem, entre colegas, apercebeu-
se que naquele momento seria bastante útil porque servia para dar uma lição às
caluniadoras por estarem a ouvir a mesma linguagem que elas tanto gostavam de
utilizar, para denegrir vítimas inocentes e ao mesmo tempo servia de dissuasão, por
pensar que futuramente iriam ter mais cuidado com o que diziam.
Depois de esgotadas as piadas e com um ambiente mais sereno, voltou-se para a
Dolores e muito calmamente perguntou-lhe:
- Como é que a Dolores soube essas coisas que andaram a dizer da Margarida? Foi
a avó da Joana que lhe contou?
- Se Deus quiser, já não vão aparecer mais," não há mal que sempre dure, nem
bem que sempre ature" - disse a Beatriz.
Dali foram até ao café Apolo, onde passaram o resto da tarde a conversar.
Quando foram para casa já o dia estava a dar lugar à noite. A Carolina estava
nervosa e ansiosa que a irmã chegasse, para saber como tinha corrido a reunião, mas
tentava disfarçar o mais que podia para que a mãe não se apercebesse de nada. Ao
contrário do que era costume, desde que o pai partira para França, passou a tarde a
cantarolar e a fazer partidas à mãe.
Naquele dia, cabia-lhe passar a roupa e nos intervalos em que não estava a
passar, entretinha-se a fazer partidas: umas vezes escondia-lhe objectos de cozinha
outras, puxava-lhe o laço do avental, o qual caiu ao chão algumas vezes, o que
levara a mãe a discordar, mas sempre a gracejar, com as partidas que lhe fazia.
- Não tens mais nada que fazer, senão andares a desatar-me o avental?
- Não. É para ver se arranjo trabalho, assim o avental de tanto cair ao chão
fica sujo e depois vou lavá-lo e assim já não perco o emprego.
- Brincalhona, vai mas é passar a ferro, senão daqui a pouco chega a tua irmã e
ainda tens muita roupa por passar e vai ficar admirada por demorares muito mais
tempo do que ela a passar a mesma roupa - disse a mãe a sorrir.
A Carolina foi de novo a passar ferro, mas voltava de vez em quando para fazer
partidas. Quando a irmã chegou, sorridente e com um ar jovial, disse para a mãe.
- Ora viva quem é a flor mais linda da Madeira?
A mãe sorriu e respondeu:
- Hoje é do dia. A tua irmã passou a tarde a atentar-me e a imitar a cigarra,
agora vens tu com a tua poesia a completar a parodia. "Quando a esmola é muita, o
pobre desconfia". O que é que se passa convosco para estardes assim?
- Ora o que é que se passa? Não se passa nada, mas agora que já sabemos que o
pai está bem e a vida a correr-nos melhor, o nosso estado de espírito também se
alterou.
- Tens razão! não fazes ideia como eu me sinto feliz, por vos ver assim alegres
e por saber que a vida já nos começou a sorrir outra vez. Felizmente que já estamos
fora dos pesadelos e a ultrapassar os problemas.
A Carolina, que entretanto ouvira a irmã na cozinha, dirigiu-se para lá e sem
que a mãe se apercebesse, fez-lhe sinal e como estava ansiosa por falar com ela,
piscou-lhe o olho sem a mãe ver e depois disse-lhe:
- Ó Margarida, bem podias ir ajudar-me a passar o resto da roupa que falta. Já
estou farta de passar e ainda não cheguei ao fim.
- Hoje, a tua irmã em vez de fazer como a formiga, passou a tarde a imitar a
cigarra, a puxar-me o laço do avental e agora vem pedir-te ajuda. Até é uma
vergonha demorar tanto tempo a passar tão pouca roupa e nem sequer a passou toda.
- Ó mãe, hoje não estava nos melhores dias para trabalhar.
- Era só para asneira, mas ide lá acabar de passar o resto da roupa! - disse a
mãe a sorrir e com uma enorme alegria interior por ver as filhas tão bem dispostas.
Foi o que elas queriam ouvir. Assim já podiam estar mais à vontade para falar
da reunião. Depois da Margarida ter contado o que se passara e depois de terem
passado a roupa que faltava, foram de novo ter com a mãe, sempre alegres e
brincalhonas, como se nada tivesse acontecido. Sentiam também uma grande felicidade
por a terem poupado a mais um desgosto.
Aos poucos, a paz e a tranquilidade iam-se instalando na casa do Leonel. As
nuvens negras que ali costumavam pairar, afastaram-se por completo, para darem
lugar a um céu límpido e a um horizonte mais claro; os golpes e as aflições que ali
se instalavam com frequência deixaram de existir e deram lugar ao sossego e à
felicidade. A Matilde, que se deixara abater pela angústia e pelo desespero,
reergueu-se quase das cinzas com enorme vigor.
As filhas que traziam com elas um ar de tristeza e de sofrimento, voltaram a
sorrir e a exteriorizar a sua alegria.
O pai, que tanto sofrera para chegar a França, via agora o sonho a realizar-se;
do fruto do seu trabalho e da vida apertada que fazia, já estava a pagar as dívidas
e a enviar algum dinheiro para a família. É certo que ainda não chegava, mas já era
suficiente para fazer face às principais despesas da casa. A par destes
acontecimentos, havia um que lhe causava bastante receio, mas também lhe trazia
alguma alegria por fazer aumentar a esperança de poder ir a Portugal, mais cedo do
que esperava.
Corriam rumores entre a comunidade portuguesa que o regime implantado já não
iria durar muito tempo, porque começava a ser contestado mais abertamente pelos
opositores do governo e que a instabilidade dentro de alguns quartéis começava a
fazer-se sentir. Dizia-se também que já havia um grupo de oficiais descontentes com
a situação que reunia secretamente, para modificar o rumo dos acontecimentos.
O Leonel tinha receio que o país fosse arrastado para uma guerra civil e
houvesse algum banho de sangue entre a população; mas também sentia alguma alegria,
porque se dizia que os opositores do governo, logo que tomassem o poder, iriam
arquivar os processos que tinham sido instaurados contra os emigrantes clandestinos
e iriam legalizar todos os que se encontravam em situação ilegal, o que lhes
permitiria irem à sua terra quando quisessem, sem estarem sujeitos a quaisquer
sanções e sem barreiras nem obstáculos.
- Foi mesmo bom a mãe não ter sabido da história da creche. De certeza que se o
soubesse, não andava tão bem disposta.
- Era capaz de ter ido para o hospital, mas agora mesmo que o venha a saber, já
é diferente, já não tem aquele impacto como se fosse ao princípio e além disso
agora estamos mais preparadas para a esclarecer e tirar-lhe qualquer dúvida que
possa subsistir - disse a Margarida.
- Mas vais contar-lhe? - perguntou a irmã.
- Vou, mas por agora ainda é cedo, não achas?
- Penso que fazes bem esperar mais algum tempo até as águas assentarem
completamente. O pior é se a mãe vem a saber por outra pessoa...
- Acho que não vai saber e se alguém lhe disser também não faz mal. Eu explico-
lhe o motivo por que não lhe disse logo e estou convicta que ela vai aceitar bem.
- Tens razão, Margarida
Depois de relembrarem mais alguns episódios que se passaram, durante a ausência
do pai, já a noite ia bastante avançada, quando o sono as obrigou a interromperem o
diálogo.
Os dias iam passando e com eles voltava a normalidade. Para que isso
acontecesse, muito contribuiu o procedimento da directora que logo a seguir à
reunião, chamou ao seu gabinete a Dolores e fez-lhe sentir que o ambiente da creche
tinha de ser puro, como a pureza das crianças e que quem não comungasse dessa ideia
devia arrepiar caminho para não perturbar a paz, a tranquilidade e para não poluir
o ambiente, com atoardas e maledicências. Fez-lhe ainda sentir que a partir daquele
momento passava a ter sobre a sua cabeça a espada de Dâmocles, pronta agir à mais
leve perturbação causada por ela.
A Margarida embora gostasse imenso do seu trabalho e apesar de tudo ter voltado
à normalidade não sentia a mesma alegria do tempo anterior aos acontecimentos.
Falava com as colegas, como se nada se tivesse passado, mas a ferida que se abrira
no seu coração era profunda e o contacto com uma das principais caluniadoras, nada
contribuía para que a mesma cicatrizasse mais depressa. Por esse motivo, começou a
pensar em tirar o magistério primário para seguir a carreira de professora, porque
era essa a profissão que mais a seduzia depois de ter tomado o gosto pelo ensino e
ter desistido da ideia de ir para a universidade. Se bem o pensou, bem o fez.
Depois de se ter aconselhado com os pais e ter feito uma longa exposição verbal à
directora a esclarecendo os motivos que a tinham levado a tomar aquela atitude,
matriculou-se na escola do magistério primário.
Algum tempo depois, estava a frequentar aquele estabelecimento de ensino e não
lhe foi difícil adaptar-se aos novos métodos de ensino, nem assimilar a matéria que
ali era ministrada, porque estudava com entusiasmo e aprendia com amor.
Com a sua maneira de estar na vida, com o sorriso puro e jovial, longe da
frivolidade e do tédio, não lhe foi difícil arranjar um grupo de amigos.
Entre esses amigos, havia um colega que começou a simpatizar com ela, embora
dentro do grupo houvesse outra rapariga que gostava imenso dele. Saiam muitas vezes
juntos. Ele não a repelia nem a animava, mas ia-lhe criando a convicção de que não
tardaria muito a fazer-lhe a declaração de amor.
O Carlos era um rapaz de estatura média, olhos castanhos, pele fina, vestia com
elegância, era sociável sem mundanidade e tolerante sem fraqueza; a sua
adolescência passara-a num seminário e isso contribuiu para que ainda se lhe
notasse, às vezes, algum retraimento monacal. Ouvia as confidências de uns e
animava as esperanças de outros, mas nunca abria o coração à curiosidade dos
alcaiotes.
Depois de muito pensar, resolveu convidá-la para almoçar num restaurante que
ficava próximo da escola. Se bem o pensou, bem actuou. Ainda naquele dia resolveu
convidá-la para o dia seguinte, convite esse que ela aceitou com muito agrado.
No dia e hora marcada, quando chegaram ao restaurante, foram ocupar uma mesa
mais recatada que ficava ao fundo da sala, conhecida pela mesa dos pombinhos, a
qual estava reservada para eles porque o Carlos já tinha entrado em contacto com o
gerente para lha reservar.
A Margarida ia formosa como ele nunca a vira: as faces, levemente rosadas,
tinham aquele macio que os olhos entendem antes das mãos se tocarem; levava um
vestido encantador que lhe assentava muito bem, o qual desenhava com naturalidade
os contornos delicados e graciosos do busto.
Logo que se sentaram, o Carlos com ar apaixonado disse-lhe:
- Vens linda como nunca te vi!
- Obrigado pelo elogio, mas sinto que não o mereço.
- Mereces e muito mais. Não calculas como estou feliz.
- Porquê?
- Pela tua companhia.
- Mas já a tens tido mais vezes.
- É verdade, mas em comum com os nossos colegas o que é bem diferente.
Entretanto chegou o empregado com a ementa, o que os levou a interromper o
diálogo. Depois de terem escolhido o prato favorito e quando o empregado se
retirou, o Carlos olhava para ela com um olhar doce a anunciar-lhe a voz do
coração.
Naquele momento, os olhares substituíram as palavras e por um longo momento
houve silêncio entre ambos, durante o qual, ele tentava o contacto com as mãos dela
e quando o conseguiu, ela inclinou-se um pouco para trás, ao mesmo tempo que lhe
dizia:
- Porque é que há bocadinho disseste que estares sozinho na minha companhia é
diferente do que quando estamos com colegas?
- É porque te amo e estou pronto para te fazer feliz por toda a vida, se
aceitares o meu amor e a minha estima.
- Boa ideia! Mas não podemos ir para muito longe, porque a minha irmã ficou de
se encontrar comigo às dezasseis horas e não quero que ela chegue e não me
encontre.
- Está bem, vamos devagar até lá.
Quando saíram do restaurante, a tarde estava escura ameaçar chuva, mas eles
viram-na viva e clara, como se o sol estivesse a brilhar sem nenhuma nuvem pela
frente. Sempre de mãos dadas, percorreram algumas ruas e travessas, a té chegarem à
escola.
Quando ali chegaram, levavam estampada no rosto a alegria que lhes ia no
coração. Os colegas estavam a sair da aula e quando os viram ficaram admirados por
terem faltado e por os verem de mãos dadas, apaixonados.
Quem não gostou nada de os ver assim, foi a Conceição que estava convencida que
o coração do Carlos, quando se abrisse, seria só para ela e para mais ninguém.
Embora tentasse disfarçar a sua indignação à mistura com uma enorme onda de ciúme,
não o conseguiu totalmente. Apesar do seu semblante não deixar transparecer
qualquer sinal da revolta que tumultuava no seu interior, o mesmo já não se passava
em relação à urbanidade do seu comportamento, que se tornara mais agressivo, sem no
entanto atingir a raia da indecência ou da má educação. Agora via a Margarida como
uma inimiga e uma intrusa que aparecera no seu caminho, a roubar-lhe o amor da sua
vida.
Naquele momento, o pensamento perdera a habitual placidez, o coração começava a
bater com mais celeridade. Eram as energias latentes de um amor comprimido mas
intenso, a manifestarem-se e a provocarem um grito de rebelião no seu interior
contra a Margarida.
Quando deixou os colegas e se dirigiu para casa, ia aterrada, tacteava nas
sombras e desviava o olhar quando algum clarão da realidade se acendia ao longe,
para lhe iluminar o espírito e desviá-la daquela obsessão doentia de se vingar da
Margarida.
Logo que entrou em casa, correu para o seu quarto e atirou-se para cima da
cama. Ia colérica e inconformada. Puxou o fecho do vestido até ao fundo, dando azo
a que o jovem seio ficasse livre da casta prisão e pudesse desafogar-se dos
suspiros que o enchiam. Depois chorou. Chorou muito. Chorou lágrimas de dor, mas
também de indignação e de vingança.
Quando as lágrimas secaram e os suspiros começaram a ser mais compassados,
algumas palavras de revolta e de ciúme soltaram-se-lhe dos lábios e ecoaram pela
casa, mas ninguém as ouviu, porque a mãe e o irmão ainda não tinham chegado e o pai
estava na Venezuela.
- Hás-de pagar o que me fizeste! Não vais ficar com ele, custe o que custar.
Perdi esta batalha, mas não hei-de perder a guerra.
A Margarida, embora se tivesse apercebido da indiferença como a Conceição lhe
falara e do sorriso irónico que se lhe desenhara nos lábios, estava com a
consciência tranquila, por saber que não tinha feito nada para a prejudicar,
limitando-se aceitar o amor livre e espontâneo do Carlos.
A Carolina quando os viu, não ficou surpreendida, porque a irmã já tinha
levantado um pouco a ponta do véu a respeito do novo amor e já suspeitava que o
enlace poderia dar-se a qualquer momento. Depois da irmã lhe ter apresentado o
namorado, ela apercebendo-se que a sua companhia não era oportuna, disse que o
Pedro lhe tinha telefonado e que ia encontrar-se com ele. A irmã compreendeu o
alcance da desculpa e aceitou-a de bom grado.
A Carolina despediu-se e foi para casa, enquanto a irmã e o namorado foram
passear até à Avenida do Mar, com o coração a transbordar de alegria, procurando
entre si as mais belas palavras ditadas pelo coração, para as dizerem um ao outro.
Até a tarde que antes estava nublada e escura, afastou as nuvens para que pudessem
observar o ocaso, no seu máximo esplendor. Depois, quando o céu já estava a ficar
plúmbeo, dirigiram-se para a paragem do autocarro que levaria a Margarida a casa.
- O pai diz que correm lá notícias nada favoráveis para o governo; dizem que a
situação em Portugal está a piorar de dia para dia por causa da guerra do ultramar
e pode haver um golpe de estado de um momento para o outro e é disso que eu tenho
medo porque pode dar-se uma guerra civil.
- Isso são boatos! Não se nota agitação nenhuma - disse a Carolina.
- Não é bem assim, Carolina, a agitação não se nota, mas existe. O Carlos anda
sempre atento a essas coisas e hoje esteve a dizer que estamos a viver uma paz
podre.
- Quem é esse Carlos? - perguntou a mãe.
- É um colega que faz parte do nosso grupo de amigos.
A Carolina, ao ouvir a irmã pronunciar estas palavras, esboçou um leve sorriso
e, para desviar a conversa, disse para a mãe:
- Ainda não disse à mana as boas notícias que o pai manda.
- O pai diz que o patrão está muito satisfeito com ele. Este mês já pagou as
dívidas todas e para o mês que vem já envia mais dinheiro. Também diz que os
políticos que estão exilados lá em França já disseram que assim que o regime cair,
as leis da emigração são logo revogadas e os processos contra os emigrantes
clandestinos são logo arquivados e podem vir a Portugal quando quiserem.
- Isso é muito bom! O pai até pode vir mais cedo - disse a Carolina
- É bom, Carolina. Se tudo correr bem... Mas isto está tremido... Deus queira
que tudo corra bem. Se as coisas derem para o torto até pode haver um banho de
sangue muito grande.
- Deus vai ajudar-nos e tudo há-de correr bem e sem haver sangue - disse a
irmã.
- Deus queira! Mas olha que a história está cheia de exemplos desses. Por isso
é que devíamos dar mais atenção. Há assuntos que nos passam ao lado, dos quais nos
alheamos por pensarmos que só dizem respeito aos políticos, mas não é bem assim. A
realidade é bem diferente, também nos diz respeito directamente, porque é o povo
que sofre com as más políticas e beneficia com as boas. Agora só nos resta esperar
e pedir a Deus que não haja derramamento de sangue - disse a Margarida.
- Pareces o meu professor de História a falar, mas concordo contigo - disse a
irmã.
Tanto a Matilde como as filhas tinham razão para estarem preocupadas. Portugal
estava a atravessar um período bastante difícil. O professor, Marcelo Caetano,
presidente do governo, empenhara-se em dar uma maior abertura ao regime e tinha
feito algumas reformas a melhorar as condições de vida do povo, designadamente a
que alargou a previdência às classes rurais e a que deu uma maior abertura
económica ao exterior. Porém, essas medidas eram insuficientes para acalmar os
opositores do regime, cada vez em maior número e cada vez mais descontentes com o
impasse colonial, com o imobilismo político e o isolamento externo do país.
O descontentamento começava a alastrar um pouco por todo o lado. No campo
estudantil, no laboral, no seio das forças armadas a tensão entre renovadores e
conservadores dentro do próximo regime, deram azo a que a opinião pública seguisse,
com mais atenção e com maior curiosidade as atitudes dos deputados da chamada
assembleia nacional.
De todo o lado se levantavam vozes a pedir uma solução política para a guerra
colonial e a legitimação do poder político. O aparecimento do livro do general
Spínola "Portugal e o Futuro", veio ainda lançar mais achas para a fogueira da
contestação e agitar a opinião pública. Com um cenário destes, não era difícil
adivinhar que alguma coisa estaria para acontecer em Portugal.
O tempo ia passando, até que chegou o dia do julgamento. Logo pelas nove horas,
a Matilde e as filhas compareceram no Tribunal, ao qual estavam também a chegar as
testemunhas. Estas, passados alguns minutos, depois de ter sido feita a chamada,
foram conduzidas à sala de testemunhas, enquanto a Matilde e as filhas ficaram
sentadas num dos bancos do Tribunal. Alguns minutos depois, chegavam o Pedro e o
advogado. Este, depois de as ter cumprimentado, dirigiu-se para a sala de
audiências, ficando as pessoas que queriam assistir ao julgamento à espera que a
porta da sala se abrisse.
Logo que o advogado se retirou, a Carolina, que tinha ficado surpreendida com a
presença do namorado, não se conteve sem lhe dizer:
- Estavas de serviço, como é que conseguiste vir.?
- Troquei com outro colega. Ele fez hoje o serviço por mim e eu faço por ele no
sábado que é o meu dia de folga.
- Não era preciso te teres preocupado e alterar o serviço para estares aqui. Já
basta o que nos tens ajudado - disse a Carolina.
- Não me faz diferença nenhuma. Se não conseguisse vir é que ficava aborrecido
comigo mesmo, por não poder vir trazer-vos a minha solidariedade.
- És um amor, obrigado Pedro - disse a namorada.
A Matilde, quando ouviu aquela resposta, duas lágrimas brotaram-lhe dos olhos
tão rapidamente que não teve tempo de as dissimular. Surpreendida com a rapidez da
manifestação de sensibilidade, tentou gracejar e rir para disfarçar, mas o riso
parecia uma cristalização das lágrimas e o gracejo não tinha o ar da
espontaneidade.
As filhas perceberam perfeitamente o alcance daquelas lágrimas, mas preferiram
ignorá-las e desviar a conversa para outro assunto, para ajudarem a mãe a sair
daquela situação. Passados alguns minutos, abriram a porta da sala de audiências e
foram todos assistir ao julgamento.
Depois das testemunhas terem sido ouvidas e os advogados terem feito as
alegações, o juiz informou-os que as respostas aos quesitos seriam dadas no dia
seguinte. Logo que saíram da sala, o advogado tranquilizou as clientes, dizendo-
lhes que o julgamento correra muito bem e estava convencido que a acção estava
ganha, mas a última palavra pertencia ao juiz.
Depois de se terem despedido, foi para casa juntamente com as filhas e duas
vizinhas que foram suas testemunhas. Embora o advogado a tivesse tranquilizado e
estivesse satisfeita com o depoimento das testemunhas e pela forma como correra o
julgamento, sentia uma enorme ansiedade e as noites que se seguiram passou-as quase
em claro.
Dois dias depois, o causídico foi notificado da sentença, a qual era favorável
aos seus constituintes. Telefonou-lhes logo a dar a boa nova, a qual foi recebida,
com enorme alegria e um suspiro de alívio.
A Matilde sentiu de novo a alegria a florir no seu rosto, as reminiscências do
infortúnio que ainda a acompanhavam fragilizaram-se com aquela notícia. Ela que
chegara a ver a flor da alegria a definhar-se lentamente e a recear que o vento da
noite a atirasse para o chão, via-a agora rejuvenescer com todo o vigor, como se
estivesse a caminhar para a mais linda primavera da sua vida.
Também no campo amoroso, o futuro parecia risonho tanto para a Margarida como
para a irmã. Depois do amor e desamor que a Carolina tivera, respirava agora
felicidade por estar convencida de ter encontrado o companheiro ideal, merecedor do
seu amor e capaz de retribuir da mesma maneira e de a fazer feliz. Também a
Margarida comungava da mesma felicidade e, embora tivesse conhecido o novo namorado
mais tarde do que a irmã, sentia que o seu coração estava definitivamente rendido,
sem reservas, às qualidades e encantos do Carlos.
A Margarida voltou a corar, mas agora com mais intensidade e não respondeu.
Seguiu-se um momento de silêncio, enquanto ela procurava no seu interior as
palavras adequadas para lhe responder. Depois de quebrado o silêncio, o namorado
insistiu pela resposta.
- Continuo à espera da resposta. Agora com o teu silêncio, ainda fico mais
apreensivo.
- Tens razão, aquele sujeito é o meu antigo namorado.
- Mas porque é que me deste aquela resposta, o que é que se passou? - disse o
namorado levantando um pouco o tom de voz.
- Deixa-me acabar de explicar. Tenho a certeza que vais compreender a minha
situação e a atitude que tomei.
- Vá, acaba lá então a conversa e explica.
- Eu não te disse logo para evitar confusões.
- Mas que confusões? Agora já não namoras com ele, namoras comigo, o que é que
ele tem a ver com isso?
- È verdade, só que ele é demasiado ciumento e tu sabes disso, porque já te
contei e tive receio que ele nos provocasse e tive medo da tua reacção. Tu não te
apercebeste mas pelo olhar que ele me atirou e pelo gesto que fez com a cabeça, vi
logo que estava disposto a provocar-nos, porque já o conheço bem, principalmente
quando está na fase do ciúme agudo.
- Mas devias ter-me dito. Assim cortava-se logo o mal pela raiz, porque ia
chamá-lo a atenção e assim estamos sujeitos a ser incomodados qualquer dia.
- Foi melhor assim, estou convencida que foi por ser a primeira vez que nos
viu. agora vai reflectir e não vai incomodar-nos mais.
- A ver vamos disse o namorado com voz seca.
- Larga já a rapariga, seu ordinário. Pensas por ela não ter cá o pai que já
não tem quem a defenda, mas enganas-te!
O Raúl ficou assustado, largou-a logo e quando o viu de foice na mão ainda mais
assustado ficou
A Margarida respirou de alívio.
O Raúl tentou fugir, mas o Jaime colocou-se à frente dele e em tom de ameaça
disse-lhe:
- Se voltares a meter-te com a Margarida, corto-te o pescoço. Depois afastou-se
e olhou para ele com ar ameaçador e deixou-o ir embora.
- Obrigado, senhor Jaime. Não sei o que seria de mim, se não viesse em meu
auxílio, ele estava completamente desvairado, capaz de tudo.
- Não tem nada que agradecer, menina Margarida. Não fiz mais do que o meu dever
e se ele voltar a meter-se consigo, diga-me que eu meto-o na ordem.
- Obrigado mais uma vez, senhor Jaime, e já agora queria pedir-lhe um favor.
- Diga, menina Margarida.
- Não diga nada à minha mãe do que se passou aqui, para ela não se afligir.
- Fique descansada, pela minha boca ninguém virá a saber.
Despediram-se e cada um foi ao seu destino.
O Jaime era um homem alto, forte, a rondar os cinquenta anos, calejado pelo
sol, pela chuva e pela própria natureza.
A Margarida assim que chegou a casa, dirigiu-se logo para o quarto, mas no
momento em que o fazia, a mãe apercebeu-se da sua chegada e foi ao seu encontro. A
filha tentou esconder os vestígios da tempestade, mas não o conseguiu, porque o
descolorido das faces e o vermelhão que se notava ao canto dos olhos não lho
permitiram.
- O que é que se passou contigo, minha filha? - perguntou a mãe muito
preocupada.
- Não se passou nada.
- Não digas isso, a tua cara não mente, já te viste ao espelho?
Era um rapaz alegre, bondoso, trabalhador, filho de gente boa e remediada. Mas
o infortúnio bateu-lhe à porta muito cedo. Ainda estava na idade dos verdes anos, a
frequentar o liceu, quando perdeu o pai num acidente de viação e viu-se forçado a
deixar de estudar para ir trabalhar no amanho das terras, agora único meio de
sobrevivência da família. Mas, à medida que o tempo ia passando, a vida no campo
tornava-se cada vez mais difícil. As pessoas em condições de trabalhar iam
abandonando as aldeias para irem clandestinamente para a França, à procura de um
futuro melhor. Foi o que aconteceu ao Francisco; a agricultura já não dava para
sustentar a família e para manter as duas irmãs a estudar e, por esse motivo,
resolveu ir para aquele país, para tentar modificar a situação, ficando a mãe a
tratar das terras conforme podia, com a ajuda das filhas, principalmente quando
estavam de férias.
Apesar de não ter podido continuar a frequentar o liceu, nunca se deixou cair
na obscuridade que é a principal barreira ao desenvolvimento do ser humano; todo o
tempo disponível, aproveitava-o para estudar, principalmente a língua francesa, o
que lhe deu uma enorme ajuda, para poder singrar naquele país.
Finalmente o tão desejado dia chegou. Era o primeiro dia de Julho. Apesar de já
ser Verão, o tempo apresentava-se com cara de Inverno. Fazia frio e caía uma chuva
miudinha, o que lhes veio a aumentar ainda mais a ansiedade de chegarem a Portugal
para também poderem desfrutar do seu clima e do seu radioso sol.
A viagem correu bem, com muita alegria e sem sobressaltos, a contrastar com a
que tinham feito em sentido contrário. Logo que entraram em Portugal, já perto do
local onde foram interceptados, o Silvestre sentiu algo que não sabia descrever,
quando reconheceu o sítio e a casa de onde saíam os holofotes naquele triste noite
em direcção aos menos afortunados e não se conteve sem dizer:
- A vida de vez em quando prega-nos partidas inimagináveis; quem diria, que
alguns anos depois, voltaríamos ao local do crime?
O Francisco ia concentrado na condução, mas ao ouvir aquelas palavras
perguntou-lhe:
- Mataram aqui alguém?
- Não, mas iam matando, foram cometidas aqui, nesta zona, atrocidades contra
pessoas inocentes, cujo crime que cometeram, foi procurarem melhores condições de
vida.
- Explique-se melhor, não estou a entender nada - disse o Francisco.
- Estão a ver além aqueles montes e aquela casa? Foi além que se ia dando a
nossa desgraça, mas felizmente Deus protegeu-nos. Eu conheço bem esta zona. Era de
noite, mas quando se começou a ver, fixei bem a casa. Ao lado há um caminho de
terra batida. Era por lá que nós vínhamos naquela negra noite.
- E se fossemos até lá para vermos melhor? É capaz de haver aqui perto algum
caminho para lá. É só uma questão de perguntar a alguém - disse o Francisco.
- Boa ideia, temos pressa de chegar mas vale a pena dar lá um saltinho, para
ficarmos com uma ideia mais concreta dos perigos que corremos - disse o Silvestre.
Alguns metros mais à frente, encontraram um senhor que lhes indicou um caminho
muito estreito, mas suficiente, para poderem chegar lá. Quando chegaram junto à
casa, deixaram ali o carro e foram a pé alguns metros, até ao local onde ficara
imobilizada a camioneta e onde começara a debandada.
Tanto o Leonel como o Silvestre sentiam algo inexplicável, era como se ainda
estivessem a viver a tragédia daquela noite, mas simultaneamente, sentiam uma
sensação de alívio e liberdade.
O terreno onde se tinham dado os terríveis acontecimentos tinha duas partes
distintas. Uma era bastante acidentada, com algumas árvores, muitas silvas e alguns
socalcos aqui e além; a outra era mais plana, não tinha árvores, mas tinha muito
mato e alguns andanhos pelo meio, feitos por contrabandistas. Foi nesta parte do
terreno que alguns companheiros de viagem do Silvestre e do amigo, principalmente
os mais frágeis foram apanhados, por ser mais descampada e mais conhecida da
guarda. Felizmente o Leonel e o companheiro fugiram para o lado certo onde era mais
difícil serem interceptados, devido ao acidentado do terreno.
Depois de terem saciado a curiosidade, o Francisco e o primo dirigiram-se para
o carro, enquanto o Leonel ficou a admirar a magnificência do Céu. O dia estava
lindo, a temperatura agradável, o sol brilhava com todo o seu esplendor. Ao longe
viam-se algumas nuvens brancas e transparentes a destacarem-se no azul do céu. Mais
perto, duas aves de rapina voavam em círculo, com os seus pios estridentes, à
procura de alguma presa que por ali andasse.
O Leonel embebeu os olhos naquele cenário e ali estava imóvel e absorto, como
se estivesse a revolver o passado e a interrogar o futuro.
Quando os amigos acharam que a demora era demasiada, o Francisco foi ao seu
encontro e com um largo sorriso disse-lhe:
- Está um dia tão bonito, que nem apetece sair daqui.
O Leonel era como se estivesse a sonhar com os olhos abertos e, quando ouviu o
colega, olhou para ele estremunhado, como se tivesse acordado de uma noite cheia de
sonhos escuros e coloridos.
- Desculpe, Sr. Francisco, estava tão absorvido nos meus pensamentos e a
observar este maravilhoso cenário, que nem dei pela sua presença nem pelo tempo a
passar.
Não tem importância, Sr. Leonel. Eu sei o que isso é. Já passei pelo mesmo, às
vezes há momentos na nossa vida que nos obrigam a parar, a observar e a reflectir.
Este deve ter sido um deles.
- Tem razão. Este foi um desses momentos, além de meditar imenso, fiquei com a
firme certeza, que o céu do nosso Portugal é o mais lindo, não há outro igual.
- É muito bonito o que acaba de dizer, até rima, e concordo plenamente consigo.
Alguns minutos depois, retomaram a viagem em direcção a Castelo Branco. Felizes
e ansiosos por chegar, numa animada cavaqueira. Nos momentos em que havia algum
silêncio, o Leonel aproveitava-os para olhar para a paisagem com enormes rebanhos
de ovelhas a pastar, a qual não pudera ver antes devido à situação em que efectuou
a primeira viagem e continuava a meditar e a sentir uma sensação de alívio.
- A nossa vida às vezes dá voltas que nem sonhamos. Quem diria o que me iria
acontecer, mas graças a Deus estou são e salvo, com a vida a sorrir-me - pensava
ele.
- É melhor ficar para outro dia. Hoje não é muito aconselhável, precisas de
estar com a família, rever os amigos e todo o tempo é pouco.
- Há tempo para tudo, vá, vamos embora.
Face à insistência do Francisco, não tiveram outra alternativa senão a de
aceitarem o convite.
A aldeia de Freixial do Campo fica situada a poente de Castelo Branco, a quinze
quilómetros de distância. É uma aldeia muito fácil de servir, situada em terreno
quase plano, com leves declives. A sua gente é boa, trabalhadora e hospitaleira,
onde a solidariedade para com o próximo não é palavra vã. Gente de têmpera rija,
caldeada pelo sol, pela chuva, pelo vento e perfumada com o aroma das flores do
campo.
Quando chegaram, já a mãe do Francisco e as irmãs estavam à espera e para
alegria e surpresa de todos, a Sónia também lá estava. Tinha chegado naquele dia de
Coimbra e feliz por ter passado para o quarto ano de medicina e ia passar ali as
férias na casa dos avós maternos.
Era como se o destino os tivesse reunido, para em conjunto comemorarem os
êxitos alcançados, conforme já os unira nos dias tristes, de aflição e de
incerteza.
Depois de terem conversado algum tempo sobre diversos assuntos, o Francisco e
os amigos foram dar uma volta pela aldeia, enquanto a mãe, as irmãs e a Sónia
ficaram a preparar o jantar. Já o astro-rei se tinha escondido quando regressaram a
casa.
As irmãs e a Sónia já tinham colocado a toalha de linho bordada, própria para
aquelas ocasiões e posto os talheres, enquanto a mãe ultimava o jantar. Alguns
minutos depois, o mesmo era servido. Era composto por sopa de verduras, o primeiro
prato, e o segundo de febras assadas na brasa, com batatas e salada de alface e de
tomate a acompanhá-las. Para beber foi servido um saboroso vinho tinto e sumo de
laranja. e para a sobremesa, uma saborosa tigelada e fruta da época, tudo da lavra
da casa.
I
Na ramagem das árvores,
Ouve-se o vento a passar,
Umas vezes fala baixinho,
Outras põe-se a gritar.
II
Às vezes passa calmo,
Alegre e sorridente,
Repousa no regaço das árvores,
Mal se ouve, mas se sente.
III
Outras passa irado,
Zangado e descontente,
Bate em tudo o que aparece,
Leva tudo pela frente.
IV
Na sua longa caminhada,
Que palavras dirão ao vento,
Para ser tão inconstante,
Para ser tão diferente.
II
Na sua maneira de ser,
No seu jeito de andar,
Leva sempre uma palavra angélica,
Um sorriso para dar.
III
Nas costas leva a sacola,
Um ramo de flores na mão,
Leva ternura no olhar,
Pureza no coração.
IV
Leva no rosto estampada,
A vida cheia de alegria e esperança,
Como é lindo e puro,
O mundo da Criança.
Na manhã seguinte, logo pelas sete horas, embarcou no comboio, com destino à
capital. Agora, ao contrário da viagem anterior, ia com outra paz de espírito, mais
calmo, sem preocupações que o afligissem a apreciar a paisagem com mais pormenor e
atenção. Quando chegou a Vila Velha de Ródão, começou a viajar ao lado do rio Tejo,
o qual corria apertado entre barreiras, como se tivesse muita pressa de chegar a
Lisboa. Depois de ter passado o castelo de Almourol, situado no meio dele, alguns
quilómetros mais à frente, começou a espraiar-se como que a repousar do esforço
que fizera de tanto correr. Quando chegou a Lisboa, já sem correrias, parecia que o
mar tinha estendido um braço para o ir buscar, tal era a sua imponência e grandeza.
Já em Lisboa, o Leonel dirigiu-se para a baixa, onde almoçou calmamente,
desejoso por que as horas passassem depressa, para chegar à sua terra. Depois de
ter almoçado, dirigiu-se à estação dos correios mais próxima para telefonar à
família, mas em vão, porque as ligações para a Ilha da Madeira estavam
interrompidas, devido a uma avaria. Quando chegou ao aeroporto ainda tentou
telefonar, mas debalde, porque as ligações continuavam na mesma. Às vinte e duas
horas, entrou no avião que o levaria à Madeira. Quando chegou ao aeroporto, depois
de ter recolhido a bagagem, meteu-se num táxi e seguiu para o Funchal.
Quando entrou em casa, o quintal estava iluminado pela lua, que se encontrava
na fase de lua cheia, como se estivesse à sua espera para lhe dar as boas vindas.
A mulher e a filha mais velha ainda estavam de pé. A Margarida tinha acabado de
chegar da casa da Fernanda e a mãe estava à espera dela. O mesmo já não acontecia
com a Carolina, que não conseguiu resistir ao sono quando lhe bateu à porta e não
teve outro remédio senão o de ir deitar-se.
O Leonel bateu três pancadinhas na porta, muito suaves, depois ficou em
silêncio.
- Estão a bater à porta - disse a Margarida.
- Meu Deus, quem será a uma hora destas? Já passa da uma - disse a mãe um pouco
assustada.
- Será o pai?
- Deus te ouvisse, filha, mas o pai não vinha sem telefonar. Será algum ladrão
ou alguém que sabe que somos só mulheres nesta casa e quer fazer-nos mal? O melhor
é não abrirmos a porta sem sabermos quem é.
- Eu também estava cheio de saudades vossas e cheguei a recear que nunca mais
vos tornava a ver, sofri muito, mas felizmente já tudo passou. Agora o que
interessa e o mais importante é que estou outra vez ao pé de vós.
Agora tanto a Margarida como a mãe choravam copiosamente. O Leonel também
estava visivelmente comovido e não conseguiu evitar o aparecimento de algumas
lágrimas, que limpava logo e fazia um enorme esforço para se controlar. Apesar da
firmeza que tentava dar às palavras, muito dificilmente saíam e, às vezes, a voz
parecia morrer na garganta. Por um momento houve silêncio e quando foi quebrado foi
para o Leonel perguntar pela Carolina.
- Ela está a dormir. Estava a cair de sono e deitou-se à bocado, eu vou acordá-
la disse a mulher.
- Não, eu vou lá ao quarto vê-la.
Quando entrou no quarto, abriu muito ao de leve o cortinado e viu a filha a dormir
profundamente. Contemplou-a com imensa ternura e com o coração a transbordar de
alegria; duas lágrimas preguiçosas soltaram-se-lhes dos olhos e algumas palavras
quase silenciosas ,saíram-lhe dos lábios.
- Minha querida filha, como também estás linda! Que saudades, meu Deus. Também
tens sofrido imenso, mas já não vais sofrer mais. Se Deus quiser agora já estou
junto a vós.
A Carolina tinha os olhos cerrados, o rosto sereno e risonho, os lábios
semiabertos, como se estivesse a murmurar as mais lindas palavras de amor. Tinha os
cabelos esparsos a contribuírem para a formosura angélica do seu semblante.
Depois puxou a cadeira para junto da cama e muito carinhosamente pegou-lhe na
mão que estava fora da roupa. No momento em que o fazia, a filha abriu muito
levemente os olhos e assim que se apercebeu que estava ali alguém abriu-os
rapidamente; porém, quando viu que era o pai, arregalou-os e soltou um grito de
alegria e simultaneamente de saudade.
- Pai!
- Sou eu, minha querida filha, estou aqui a teu lado.
A Carolina levantou-se num ápice, atirou-se para os ombros do pai e ali ficaram
um longo momento abraçados com as lágrimas a substituírem as palavras e só quando a
mãe e a irmã entraram no quarto é que o silêncio foi interrompido.
- Desta não esperavas tu, Carolina - disse a mãe, já sem lágrimas, mas com os
olhos ainda bastante vermelhos.
- É verdade mãe, foi a surpresa mais agradável que tive em toda a minha vida.
A Margarida sentou-se na beira da cama, a mãe puxou a outra cadeira que estava
disponível para junto do marido e ali ficaram imenso tempo, a inventariar tudo o
que lhes acontecera; os desgostos, as aflições, a dor que suportaram, as tristezas
e alegrias que tiveram, as saudades que sentiram. A felicidade estava estampada no
rosto de todos e nem mesmo quando tiveram de lembrar os momentos mais cruéis que
lhes aconteceram, a mesma foi manchada. Era já madrugada quando se deitaram com o
coração cheio de alegria.
O dia seguinte era sábado e por esse motivo puderam dormir até mais tarde,
principalmente a Margarida e a irmã que só se levantaram, quando a mãe as foi
chamar para almoçarem.
Os dias que se seguiram, o Leonel aproveitou-os para visitar os amigos e ajudar
a mulher e as filhas nos preparativos para o casamento.
Finalmente, o tão desejado dia chegou. Logo pela manhã, a Margarida começou
arrumar a mala que iria levar para a lua de mel, enquanto a mãe e a irmã preparavam
o pequeno almoço para os familiares e convidados. De vez em quando ia até à janela,
observar as flores que ela tanto gostava de cuidar, juntamente com a mãe e a irmã e
pela qual entrava o sol, como a querer associar-se ao evento e a desejar-lhe
felicidades. De vez em quando, lançava o olhar para o horizonte, que se apresenta
límpido, como que a tentar adivinhar o que estaria para além dele, onde os seus
olhos não conseguiam ver.
IV
PARTEPARTE
O Bruno, era como se chamava o rapaz, namorava com uma jovem chamada Rute,
muito ciumenta e que não gostava que o namorado se aproximasse de outras
raparigas, mesmo em sã convivência, com receio que se voltasse para alguma delas.
Entre essas raparigas, havia uma com a qual ele convivia mais, mas a namorada
convencera-se que não era apenas amizade que existia entre eles. Além de amizade,
havia também paixão e isso preocupava-a imenso e dava origem a que houvesse grandes
amuos entre eles.
Na altura em que o namorado resolveu emigrar, andavam na fase em que as
relações eram doces como o mel e os sonhos cor de rosa.
Levado pelo estado de graça em que se encontravam, ele não resistiu à tentação
de lhe dizer, na semana anterior à sua saída, tudo o que se estava a passar. A
Rute, quando teve conhecimento da notícia, sentiu o atordoamento de um grande golpe
e uma onda de ciúme apoderara-se da lucidez do seu espírito; ela via naquela tomada
de posição do namorado uma artimanha para se ver livre dela e ficar com a outra.
Embora ele tentasse convencê-la dos reais motivos que o tinha levado a tomar
aquela decisão, ela não se convencia, nem se conformava. O egoísmo latente de o
querer só para ela eram uma acha poderosa a arder na fogueira do ciúme e a
alimentar o desejo de vingança.
Após ter travado uma luta terrível com ela própria para não o denunciar, não o
conseguiu, porque a rapariga com quem ele andava mais nos períodos de tempestade,
não lhe saía da cabeça. O ciúme tornava-se mais poderoso e não conseguiu resistir
sem o denunciar às autoridades através de uma amiga com familiares na guarda.
Depois do mal estar feito e da chegada da reflexão alumiar os destroços da
tempestade, não pôde evitar um sentimento de terror e um peso na consciência por
ter feito aquela maldade.
O Mário depois de ter conhecimento de toda a situação e saber que o Bruno
passava a vida em esconderijos para não ser preso, prontificou-se a passá-lo para a
França, sem qualquer pagamento, o que viria acontecer, alguns dias depois.
Num desses dias, estava o Carlos com o filho, a ver as trutas no Ribeiro Frio,
quando ali apareceu a Conceição, premeditadamente. Ele assim que a viu o seu
coração estremeceu ao contrário do dela, que se encheu de alegria, quando o viu sem
a companhia da mulher.
- Olá, Carlos, que saudade eu tinha de te ver. Hoje a Margarida não veio?
- Não, ficou em casa teve que fazer - disse ele secamente.
- Ainda bem.
- Ainda bem porquê?
- Porque nunca deixei de te amar, assim estamos mais à vontade.
- Olha, Conceição, não te metas onde não és chamada, sou feliz com a minha
mulher e não tens o direito de te meteres no nosso caminho.
- Estás enganado, Carlos. Ela é que se meteu no nosso.
- Ninguém se meteu no caminho de ninguém, tu é que pensas o contrário.
- Não finjas, Carlos, eu sei que as palavras que te saem da boca não são
ditadas pelo coração, eu sei que também me amas e só não me manifestaste esse amor
abertamente porque a Margarida se meteu no meio e não tinha o direito de nos roubar
a felicidade, porque ninguém é capaz de te fazer mais feliz do que eu.
No momento em que ela dizia estas palavras, ele chamou o filho que se
encontrava um pouco afastado a brincar na relva e foi-se embora, sem dizer mais
nada, porque sentia que não estava ausente de culpa e o seu coração não se lhe
tinha fechado completamente.
Antes de se ir embora, ela ainda teve tempo para lhe lançar um olhar. Dizia-lhe
com os olhos a paixão que o seu coração sentia. Embora ele a tivesse recebido com
alguma severidade ao princípio, por fim, já estava diferente: não estava risonho, é
certo, mas também já não se lhe notava nenhum azedume e isso deixava-a confiante,
por pensar que era só uma questão de tempo, para conseguir os objectivos
pretendidos.
Naquele momento, o único pensamento que influía nela era reconquistá-lo, levá-
lo para bem longe e despedaçar o laço que supunha atá-lo ao coração da Margarida.
Durante a viagem para o Funchal, o Carlos já não falava tanto com o filho como
era habitual porque, de vez em quando, o pensamento voltava-se para ela, embora
tentasse esquecê-la. Quando chegou a casa, conseguiu manter a mesma postura, como
se nada tivesse acontecido; embora, de vez em quando, ela se intrometesse nos seus
pensamentos, conseguia rechaça-los e disfarçar, sem o mínimo indício de suspeição.
A vida naquele lar, continuou com a mesma harmonia e felicidade, mas agora o
perigo começava a rondar a porta.
Deixou-se conduzir por ela, sem fazer qualquer comentário ou objecção, mesmo
quando conduzia a viatura por estradas e caminhos menos utilizados.
Meia hora depois, num lugar recôndito, estavam envolvidos numa cena amorosa.
Ele sentiu de súbito, toda a violência do amor que ela trazia acumulado no seu
coração para ser derramado no momento próprio.
Depois do facto consumado, o Carlos procurava no seu interior arranjar motivos
para atenuarem o seu comportamento e tentava arranjar explicações, para aliviar o
peso da consciência e convencer-se de que tudo não passara de uma aventura que ele
não procurara, nem desejara.
Passada a aventura, a vida continuou a sorrir no lar mas agora o perigo era
real e começava a pôr em perigo a felicidade do casal e a lançar a incerteza num
futuro que ambos ambicionavam e previam ser sólido e feliz, porque o Carlos
começava agora a sentir pela Conceição, uma atracção como nunca sentira antes e o
desejo de se encontrar com ela também ia aumentando. À medida que o tempo passava,
os telefonemas que antes da aventura eram rejeitados, passaram a ser desejados e os
encontros mais apetecidos.
Passado algum tempo, a Margarida começou a pressentir que algo de anormal se
estava a passar com o marido; chegava mais tarde a casa; aos fins de semana já não
ia com tanta assiduidade ao campo e arranjava desculpas nem sempre convincentes,
embora tentasse ser carinhoso com ela e dar-lhe a mesma atenção; mas, muitas vezes,
ela sentia que a ternura que ele lhe dava não tinha o mesmo calor de antes e às
vezes chegava a convencer-se que era mais fictício do que real.
Por algum tempo, foi sofrendo em silêncio, mas mantinha a mesma dedicação e a
mesma ternura para com o marido, apesar de saber que alguma coisa de anormal se
estava a passar com ele, mas não tinha a certeza do que seria; por esse motivo,
estava na disposição de continuar a sofrer em silêncio e procurar alguma pista que
a levasse a descobrir o motivo de tão grande mudança de comportamento.
A amiga tentava confortá-la o mais que podia e quando a Carolina lhe falou na
máquina fotográfica, lembrou-se que o pai costumava trazer uma no carro, era só uma
questão de irem ver, porque o mesmo encontrava-se estacionado ali perto. Quando
aquela ideia lhe ocorreu disse para a Carolina:
- Parece que o problema da máquina está resolvido.
- Como? Perguntou a Carolina com uma enorme ansiedade.
- O meu pai costuma trazer uma no carro. Mesmo que não tenha rolo, compramos
aqui um que os há à venda.
- Óptimo! Isso seria o ideal.
- Vamos lá depressa ver se temos sorte, antes que os pombinhos batam a asa.
Em passo apressado, foram até ao carro, a Irene procurou no lugar onde o pai
costumava guardar a máquina e, para satisfação de ambas, deu logo com ela.
Regressaram ao Lido, sempre apressadas, passaram pela loja onde vendiam os rolos,
compraram um e introduziram-no na máquina. A seguir, a Carolina foi indicar à amiga
o local onde se encontravam os pombinhos, pediu-lhe para ser ela a tirar as
fotografias, porque se fosse vista com a máquina na mão não iriam suspeitar porque
não a conheciam.
A Irene armou-se em turista, escondeu-se num local de modo a ver sem ser vista
e muito disfarçadamente, tirou-lhes algumas fotografias muito comprometedoras, umas
a beijarem-se, outras bem agarradinhos. Depois da missão cumprida, foi ao encontro
da Carolina, a qual estava sentada com a cara entre os joelhos, apoiada nas mãos.
Assim que viu a Irene, a primeira coisa que fez foi perguntar-lhe:
- Conseguis-te?
- Até quando vais suportar esse sofrimento sozinha? Tu pensas que tanto eu como
a mãe não andamos preocupadas, por andares assim sem nunca nos teres dito nada,
para te podermos ajudar? É por causa do teu marido, não é?
Quando a irmã disse estas palavras, a Margarida sentiu um arrepio, não
respondeu por palavras, mas sim através de duas lágrimas que lhe rolaram pelas
faces, após algum silêncio. Depois perguntou-lhe:
- Ouviste dizer alguma coisa?
- Não, não ouvi dizer nada, mas vi com os meus olhos o que nunca imaginei ver,
por parte do safado do teu marido.
Novo arrepio trespassou o coração da Margarida, quando ouviu a irmã pronunciar
aquelas palavras, ao mesmo tempo que se lhe estampava no rosto, de forma violenta,
toda a dor que trazia acumulada.
A irmã foi em seu auxílio e disse-lhe:
- Agora é preciso coragem, não te deixes abater. É mais uma grave
contrariedade, mas tenho a certeza que irás ultrapassar mais este momento difícil
da tua vida, como tens ultrapassado em outras ocasiões. Agora já não irás sofrer
mais em silêncio, lembra-te que temos uma família, sempre disponível, para te
ajudar. Só foi pena que tivesses chegado a esta situação sem nos dizeres nada, com
uma cruz tão pesada em cima dos teus ombros.
Passado aquele momento e depois de estar mais calma, mas com algumas lágrimas a
escorrem pelas faces, perguntou à irmã:
- Viste-o com outra?
- Vi e de que maneira!
- Com quem era e como é que os vistes?
- Toma, tens a resposta nestas fotografias.
A Margarida pegou nelas com sofreguidão e quando começou a ver a primeira ficou
estupefacta, nem queria acreditar no que estava a ver. Naquele momento, havia dor,
revolta e indignação ao mesmo tempo. Dos seus olhos começavam a sair lágrimas mais
de amiúde; mas à medida que ia vendo as fotografias, iam caindo copiosamente em
cima de blusa que tinha vestida e não conseguiu manter-se de pé, teve de sentar-se
numa cadeira amparada pela irmã.
Passado algum tempo, depois de ter exteriorizado toda a sua dor e indignação,
quando já não tinha mais lágrimas para verter e os soluços começaram a ser mais
compassados, com voz trémula, perguntou à irmã:
- Como é que conseguiste estas fotografias?
A irmã descreveu-lhe tudo o que se passara, desde o motivo que a levara a ir
para o Lido e pela revolta que sentira, até à ânsia de encontrar a máquina
fotográfica.
Quando a Carolina acabou de narrar os factos e de lhe ter incutido força e
ânimo e ter-lhe feito sentir que, no meio daquele desgraça, tivera sorte em
conseguir as fotografias, porque se não fosse assim, estava sujeita a continuar a
sofrer, sem poder provar que o marido a andava a trair. Agora estava um pouco mais
conformada, algumas palavras de revolta, soltaram-se-lhe dos lábios e ecoaram pela
casa:
- Traidor! Se calhar nunca se desligou daquela cabra e eu convencida que o amor
daquele porco era puro e sincero. Como é que eu me deixei enganar por aquele
safado?
- Podia ter sido só uma aventura - disse a irmã, na tentativa de lhe dar algum
alento.
- Não foi, Carolina, uma aventura não é andar meses a chegar tarde a casa,
algumas vezes já de madrugada, faltar aos deveres de pai e de chefe de família, com
o maior descaramento, dando desculpas esfarrapadas e tentando tapar o sol com a
peneira.
- Agora o que é que vais fazer Margarida?
- Vou divorciar-me e pedir-lhe que não ponha aqui mais os pés, com umas provas
destas, não hesito um momento, vá lá para o pé da outra cabra. Felizmente, tenho um
curso que dá para sustentar o meu filho e para me sustentar a mim, sem ser preciso
a ajuda dele para nada. Só tenho pena do meu filho começar a crescer no meio de
pais separados e dos meus sogros que vão apanhar um desgosto muito grande, mas não
tenho culpa nenhuma, o grande culpado é o outro traidor e fingido.
- Deixa lá, Margarida, não és tu a primeira, nem serás a última, vê-se por aí
tanta tristeza, assim é melhor, do que andares a sofrer toda a vida. Cortas logo o
mal pela raiz, ainda és nova, qualquer dia aparece outro rapaz no teu caminho.
- Não me importa! Quero é que ele me deixe em paz, vá lá para o pé da outra,
tenho o meu filho, o resto não me interessa.
- Pronto, Margarida. Tem calma! Agora, temos é de preparar a mãe. Queres que a
vá já preparando, para não receber a notícia de chofre, ou queres ser tu a prepará-
la?
- Não, não Carolina, até te agradeço que o faças tu, sempre é mais uma
preocupação que tiras de cima de mim.
- Bem, agora vou-me embora, porque disse à mãe que não me demorava e como lhe
disse que me doía a cabeça pode estar preocupada.
- Vai Carolina, obrigada por tudo.
Quando a irmã ia a sair, a Margarida chamou-a entregou-lhe algumas fotos e
disse-lhe:
- Porque é que me estás a evitar, Margarida, que mal é que eu te fiz para
estares assim?
A mulher olhou para ele, com um olhar que fulminava e respondeu-lhe:
- Eu não estou a evitar-te, tu é que me tens evitado, com a tua hipocrisia, com
o teu comportamento e com a tua traição.
No momento em que dizia estas palavras, a revolta, a tristeza e a palidez que
lhe iam na alma eram enormes e profundo o abatimento. Algumas lágrimas soltaram-se-
lhe dos olhos, mas para as ocultar, tapou-os com as mãos.
O marido apercebeu-se que ela já tinha conhecimento do romance que vinha
mantendo com a Conceição. Ficou apreensivo sem saber como reagir e sem imaginação
para inventar mais uma das suas desculpas, mesmo esfarrapadas. Por um momento
manteve-se calado, à procura das palavras que lhe havia de dizer.
A Margarida, embora com as lágrimas nos olhos, mantinha-se calma aparentemente
mas com o coração ferido e a revolta a tumultuar no seu interior, prestes a
irromper.
Ele continuava a procurar as palavras adequadas para se defender. Passados
alguns segundos, as mesmas brotaram-lhe sem hesitação e sem pudor, como se uma boa
representação apagasse toda a mágoa, todo o sofrimento e resolvesse a situação de
um momento para o outro.
Aproximou-se dela e com uma ternura desmedida e hipócrita, tentou limpar-lhe as
faces, ao mesmo tempo que lhe dizia:
- Deve haver algum mal entendido meu amor. Devem ter-te dito alguma aldrabice a
meu respeito e tu acreditaste. Não queres dizer-me o que se passa, para eu te poder
dar alguma explicação e para me poder defender?
Quando ele disse estas palavras, ela não aguentou mais e numa voz dolorida mas
enérgica, disse-lhe:
- Basta de hipocrisia e de traição, seu hipócrita, seu traidor! Vai dar os teus
carinhos à cabra com quem andas e deixa-te de ser cínico e farsante.
Ele ficou atónito, completamente desarmado. Era como se lhe tivesse rebentado
ali mesmo aos pés uma bomba de grande potência. Depois de ter obtido algum alento,
voltou a dizer-lhe:
- O que disseste é bastante grave e injusto, alguém andou a dizer-te aldrabices
e a meter macaquinhos na cabeça e tu acreditaste no que te disseram, sem me ouvires
primeiro, para me poder defender.
A mulher olhou para ele com um ar de desdém e num tom agressivo não se conteve
sem lhe dizer:
- És bem ranhoso e bem ordinário! Onde é que está a dignidade que tanto
apregoas? Seu falso, seu traidor e ainda por cima vens armado em vítima.
Depois, tirou as fotografias do bolso, numa das quais ele estava a beijar a
Conceição e outra abraçado a ela e disse-lhe:
Toma, vê essas fotografias, para saberes quem anda a meter-me macaquinhos na
cabeça. Podes rasgá-las se quiseres, porque tenho muito mais e bem guardadas, seu
mentiroso.
Ao ver as fotografias ficou estupefacto. A cor da vergonha tingiu-lhe as faces;
as doces recordações das horas felizes que passara com a Conceição tornaram-se em
pesadelos. Sem dizer mais nada, retirou-se para o quarto mas, no momento em que o
fazia, ela ainda lhe perguntou:
- Então, não tens nada a dizer, não te defendes, onde é que está o teu poder de
argumentação?
Ele não respondeu, quando chegou ao quarto, atirou-se para cima da cama e ali
ficou a meditar, no que seria a sua vida dali em diante.
- Como é que ela descobriu, quem seria que tirou as fotografias sem nos
apercebermos? Deve ter contratado alguém para me perseguir. Isto é obra de algum
profissional, a minha vida está destruída, ela não me vai perdoar. A única coisa
que posso fazer, é tentar recompor as coisas, fazendo-lhe sentir que foi um momento
de infelicidade que me aconteceu - pensava ele.
Estava ansioso que a mulher se fosse deitar, para tentar convencê-la de que
tudo não passara de um acidente de percurso, um momento infeliz que acontecera na
sua vida; mas ela foi para o quarto do filho e dormiu num sofá; ou melhor, tentou
dormir, porque, naquela noite, quase não conseguiu pregar os olhos, porque o sono
andava arredio. Grande parte do tempo, passou-o sentada ao lado do filho a pensar
na sua vida e em tudo o que lhe acontecera.
De vez em quando, contemplava-o com imensa ternura e com algumas lágrimas a
escorrerem-lhe pelas faces:
- Querido filho, tu é que irás sofrer mais, por causa da leviandade do teu pai,
mas não tenho outra solução, senão a de me separar dele; por ti ainda me
sacrificava se ele se emendasse, mas não ia dar resultado, porque ele trocou-me
pela outra cabra e tu ainda ias sofrer mais; é melhor cortar já agora o mal pela
raiz, um dia mais tarde irás compreender - pensava ela.
No dia seguinte, logo pela manhã, o marido foi ter com ela, para deitar água na
fervura e com uma ténue esperança de ainda a convencer a desistir do divórcio e que
tudo não passara de um acto irreflectido que tivera, de uma aventura que não
desejara.
Logo que se aproximou dela, tentou beijá-la, mas debalde, ela desviou a cara e
disse-lhe:
Guarda os teus beijos para a outra; depois levantou-se e foi para a cozinha.
Ele foi atrás dela e suplicou-lhe:
- Por favor, Margarida, deixa-me ao menos dar-te uma explicação da minha
leviandade e do acto irreflectido que tive, mas juro-te que não vai acontecer mais,
foi apenas uma aventura, um momento de fraqueza da minha parte.
- Eu até te perdoava, se fosse só uma aventura, um acto irreflectido como tu
dizes, mas não foi nada disso que se passou. Há meses que andas com a outra,
trocaste-me por ela e o descaramento é tão grande, que já não tens o mínimo pudor
em andares a exibi-la na praça pública, a fazer cenas vergonhosas, como aquelas das
fotografias.
- Não digas isso, Margarida, eu amo-te.
- Amavas, mas depois do que se tem passado, já começo a duvidar se o amor que
me tinhas era verdadeiro. Por isso é que não vale a pena estares com farsas, nem
com súplicas fingidas, porque só tens um caminho a seguir:
- Qual é? - perguntou ele com ar cândido.
- O divórcio para ficares com o caminho livre e ires viver com a outra cabra.
- Pensa bem no que estás a dizer e nas consequências que podem advir do
divórcio, principalmente para o nosso filho e até para os nossos pais.
- É isso que me dói, mas não há nada a fazer, tu é que devias ter pensado antes
nas consequências dos teus actos, mas não te importaste. Agora tens de arcar com as
responsabilidades, porque o único culpado desta situação és tu. Por mais que jures
e mintas, mesmo que eu mudasse de atitude, continuavas ligado à outra e eu apenas
servia para salvar as aparências e servir de criada; por isso não vale a pena
chorares agora lágrimas de crocodilo, porque o único caminho a seguir é o divórcio.
Não posso viver com um homem que não me ama e me trai a toda a hora. Se não me
deres o divórcio por mútuo consentimento, vou tê-lo litigioso, provas não me faltam
e que provas... - disse ela com as lágrimas a escorrerem em bica pelas faces.
Ele ainda tentou com reflexões e súplicas desviá-la da ideia do divórcio, mas
ela resistiu com indignação e lágrimas.
Na tarde daquele dia, ele voltou a pedir-lhe para que desistisse da ideia de
levar para a frente o divórcio, mas em vão.
Quando se lhe esgotaram os argumentos e via a possibilidade de reconciliação
cada vez mais afastada, era como se estivesse a atravessar um pântano de areias
movediças, prestes afundar-se e uma ânsia enorme de falar com os pais, antes da
mulher falar com eles, por recear que ela lhe mostrasse as fotografias e temer a
reacção deles.
Depois de muito reflectir, chegou à conclusão que uma vez que já não havia
possibilidade de reconciliação, o melhor caminho a seguir seria o divórcio por
mútuo consentimento, porque não tinha a mínima hipótese de se defender e assim
suavizava mais o desgosto que iria causar aos pais.
No dia seguinte, logo que se levantou, dirigiu-se ao quarto do filho, onde
estava a mulher e disse-lhe:
- Preciso falar contigo!
- Se é para insistires na mesma conversa não vale a pena, é tempo perdido.
- É sobre isso mas é para resolvermos as coisas pelo bem.
- Está bem, espera na sala que eu já lá vou ter para falarmos no assunto. aqui
não dá, porque o nosso filho pode acordar e além disso, não quero falar desse
assunto no quarto dele.
Alguns minutos depois, foi ter com o marido e disse-lhe:
- Pronto, já estou aqui, diz lá o que é que tens para me dizer?
- Já que não há possibilidade de reconciliação, estou na disposição de
colaborar contigo, para resolvermos o problema do divórcio por mútuo consentimento,
mas gostava que suavizasses a situação e não mostrasses as fotografias aos meus
pais.
- Se calhar ainda queres que lhes diga que fui eu a culpada?
- Não é nada disso. Podes dizer-lhe a verdade, mas atenua a situação o mais que
puderes, não lhe mostres as fotografias, para lhes evitar um desgosto maior.
Ela compreendeu a situação e na altura em que o marido lhe fazia esta conversa,
olhou para ele com alguma compaixão e esqueceu por um momento o sofrimento que lhe
causara e sentia algum amor que ainda lhe tinha a tumultuar no coração.
Depois do marido ter dito que colaborava, ela respirava de alívio, por não ser
necessário recorrer ao divórcio litigioso. Teria de haver um julgamento e queria
evitar que o seu nome andasse na boca das pessoas mal intencionadas, porque já
tivera um experiência amarga nesse campo e quanto menos se propagasse a sua
situação, mais difícil seria chegar ao conhecimento dessas pessoas.
Apesar dos imensos desgostos que a vida já lhe tinha pregado, sabia que a mesma
nem sempre lhe era madrasta e isso dava-lhe algum alento, para a ajudar a vencer as
contrariedades e ultrapassar os obstáculos.
Uma semana depois, estava ultrapassado o primeiro obstáculo, tanto os pais dele
como os dela já estavam ao corrente da situação. Embora tivessem sentido um grande
abalo quando tiveram conhecimento, aceitaram os factos com resignação, porque tanto
a Margarida como o marido, souberam prepará-los muito bem, conseguiram manter a
calma e apelar ao bom senso, para resolverem os problemas num clima de paz,
culpando o destino por tudo o que acontecera.
Um mês depois da acção ter dado entrada no Tribunal, realizou-se a primeira
conferência.
Durante o período em que a Margarida esperava pela segunda conferência, pouco
saía de casa e, quando o fazia, era porque a irmã insistia com ela para sair.
Num desses dias em que a irmã a convenceu a sair, estavam no Café Apolo, quando
ali entrou a Beatriz. A Margarida assim que a viu, chamou-a logo para se sentar na
mesma mesa e sentiu uma grande alegria ao vê-la ali, como se tivesse necessidade de
desabafar com ela em mais aquela fase negra da sua vida. Apesar da sua tristeza, no
momento em que a amiga se sentou, notou-se algum brilho nos olhos, mas não
conseguiu dissimular a tristeza que sentia bem estampada no seu semblante.
A Beatriz, ao vê-la com ar triste e tão abatida, perguntou-lhe logo:
- O que é que tu tens, Margarida, estás com mais algum problema?
- E que problema, querida amiga!
- Até me deixas assustada. O que é que te aconteceu agora? Se eu te puder
ajudar, já sabes como é.
Os olhos doridos e murchos pareciam reviver alguma luz há imenso tempo arredia
e dos seus lábios soltaram-se-lhe alguns sorrisos descorados, principalmente,
quando a Beatriz lhe falava de alguns episódios que se tinham passado, naquela
tarde de má memória em que tiveram de enfrentar o Hugo.
Aquela conversa que a Margarida tivera com a amiga serviu de alento para
continuar a lutar contra todas as adversidade e passados alguns minutos estavam
todas envolvidas numa animada conversa.
Uma hora depois, apareceu ali o irmão da Beatriz à procura dela, para a levar
para casa na sua própria viatura. A irmã apresentou-o às amigas e pediu-lhe para se
sentar e para ficar um pouco. Ele condescendeu e alguns minutos depois, já estava a
participar na conversa.
O Adriano era um rapaz forte, culto, bom conversador, mas sem exagero nem
timidez; sabia ouvir e era escutado com atenção.
A Margarida aproveitou a ocasião para lhe agradecer por a ter ajudado e aos
pais, numa altura em que tanto precisavam. No momento em que lhe agradeceu, ficou
um pouco comovido, ao lembrar-se do que ela passara, porque a irmã já o tinha posto
ao corrente do sofrimento que suportara e da luta que travara, para defender a sua
honra e a sua dignidade; mas quando teve conhecimento da última infelicidade que
lhe batera à porta, a comoção aumentou ainda mais e começava a sentir uma
verdadeira amizade por ela.
Ele procurava as palavras mais adequadas para a animar e seguir em frente,
porque a infelicidade não iria andar sempre a bater-lhe à porta e lamentava as
injustiças deste mundo:
- É verdade que todos nascemos e morremos iguais, mas essa igualdade termina
logo, assim que acabamos de entrar neste mundo; uns nascem em berços de ouro,
outros em berços mais modestos, a grande maioria nem berço tem e muitos começam a
sofrer logo à nascença.
Depois pela vida fora, os mais afortunados são colocados no cimo das montanhas,
já com asas para voar, outros para chegarem lá, têm de lutar muito e a esmagadora
maioria nem sequer consegue atingir o sopé das mesmas. Só depois ao morrer é que
aparece a igualdade, desconhecendo-se, porém, o que irá passar-se daí em diante. É
de facto um grande mistério, que nos leva a perguntar a nós próprios o porquê de
tanta desigualdade, logo à nascença de cada um - dizia ele.
Quando saíram, fez questão de as levar a casa, embora elas alegassem que tinham
a paragem do autocarro ali perto e que não era necessário estar a maçar-se; mas ele
insistiu e a irmã corroborou e acabaram por aceitar.
Os dias ia passando, a Margarida passava a maior parte do tempo na casa dos
pais e só de vez em quando, é que ia à sua residência; o mesmo se passava em
relação ao marido, que adoptou o mesmo sistema e passou a viver com os pais. Alguns
meses depois, era feita a segunda conferência e decretado o divórcio.
Uma hora depois, ia a caminho da igreja. Quando ali entrou, ao lado do seu pai,
com o passo cadenciado, ao som de uma marcha nupcial, cantada por dois tenores, os
olhares de todos os presentes convergiram para ela. Ia formosa e feliz: levava
candura no olhar e um sorriso encantador, a deixar transparecer toda a felicidade
que lhe ia no coração.
Quando chegou ao altar, já o noivo ali estava à sua espera também ele cheio de
felicidade bem estampada no seu semblante.
Terminada a cerimonia e depois de terem assinado o livro de registo, saíram da
igreja, alegres e sorridentes, com o coração a trasbordar de felicidade. Quando
apareceram à porta, um grupo de raparigas abriram alas e à medida que se iam
dirigindo para o carro, iam-lhe lançando flores, com alguns grãos de arroz à
mistura.
Quando entraram na viatura que os levaria ao restaurante onde iriam festejar o
casamento, os familiares e convidados ocuparam as suas e seguiram para o mesmo
local.
Quando ali chegaram, foram ocupar as mesas, para ser servido o jantar. Na mesa
destinada aos noivos ficou a Margarida; mesmo em frente, numa outra, ficou a
Beatriz, o irmão e as amigas mais chegadas da Carolina e da irmã.
O Adriano, de vez em quando, pousava o olhar no rosto da Margarida, tentando
fazer-lhe uma confissão silenciosa.
Ela mantinha o olhar natural mas no momento em que os olhares se encontravam,
sentia o coração abrir-se e uma atracção por ele cada vez maior.
A Beatriz, olhava de soslaio para eles, com enorme alegria, porque conhecia as
qualidades da Margarida e logo que teve conhecimento que a mesma estava divorciada
e livre, tudo fazia para os aproximar, porque a maior alegria que lhe podiam dar,
era ver o irmão casado com a amiga.
Ele sentia que os seus olhares eram bem recebidos, o que lhe acalentava imensas
esperanças e animava o coração.
Quando o jantar estava quase a terminar, começou actuar um conjunto e os noivos
foram abrir o baile. Depois retiraram-se e foram percorrer todas as mesas a falar
um pouco com os convidados.
No momento em que se retiraram, muitos convidados começaram a dançar. O Adriano
dirigiu-se logo à Margarida a convidá-la. Ela aceitou e no momento em que dava a
sua concordância, ele estendeu-lhe a mão e conduziu-a até à pista de dança. O
conjunto tocava uma valsa; assim que começaram a dançar, chamaram logo a atenção:
as ondulações do corpo da Margarida e a segurança dos seus passos adaptavam-se
lindamente aos movimentos do companheiro; dançaram com imensa graça e tanto encanto
que por alguns momentos, os olhares convergiram para eles principalmente os dos
seus familiares. que estavam felizes por os ver juntos.
Seguiu-se um tango; era a música que ambos preferiam, por lhes dar a
oportunidade de poderem falar pausadamente.
- A Margarida dança muito bem.
- Obrigado pelo elogio, mas o Adriano não fica atrás.
- Impressão sua, o mérito é todo seu, eu apenas a acompanho e deixo-me conduzir
pela leveza do seu corpo.
Ela achou graça à resposta e sorriu. Por um longo momento houve silêncio
enquanto continuavam a dançar. Quando a série terminou, ele convidou-a logo para a
seguinte, tendo obtido de novo a concordância da companheira.
Quando o conjunto começou de novo a tocar, outro rapaz antecipou-se e foi
convidá-la. Ela muito educadamente, pediu desculpa por não poder aceitar o convite,
alegando que já estava comprometida.
O Adriano assim que viu o outro rapaz aproximar-se da Margarida, ainda sentiu o
coração estremecer, mas estava convicto que ela não iria aceitar, por saber que
estava comprometida com ele e não iria quebrar o compromisso assumido, por conhecer
bem o seu carácter e quando viu o rapaz retirar-se, sentiu uma sensação de
felicidade e a firme convicção de que não era rejeitado por ela.
Durante o intervalo, ele olhava imenso para ela e quando os olhos se
encontravam, pressentia que a doçura do olhar dela era ditada pela voz do coração e
via os horizontes da felicidade a ficarem cada vez mais claros.
A irmã sempre atenta ao que se estava a passar, segredava-lhe ao ouvido:
- Qualquer dia é o casamento do meu querido mano.
- Ele sorria e respondia-lhe:
- Apenas dancei com ela uma vez e já estás a falar em casamento, deves estar a
sonhar.
- Tens razão! Estou a sonhar e bem, só que, desta vez, estou a sonhar com os
olhos abertos e não se pode esconder o que está à vista.
- Tonta, deves estar a delirar.
- Agora chamas-me tonta. Quem me dera que os meus delírios fossem sempre assim.
Trata bem a minha futura cunhadinha para ela não voar para outro ninho.
Quando a irmã lhe dizia estas palavras, o conjunto começou a tocar outra série.
Ele levantou-se logo, foi ao encontro da Margarida, estendeu-lhe de novo a mão e
ambos foram até à pista de dança. Logo que começaram a dançar, ele disse-lhe:
- Deixou o outro rapaz triste.
- Reparou nisso?
- Reparei.
- Mas deixei-o a si contente.
No momento em que a Margarida lhe disse estas palavras, ele apertou-a um pouco
mais contra o peito e naquele momento, sentiu ímpetos de a beijar uma e muitas
vezes e fazer-lhe a mais linda declaração de amor, baseada em autênticos esponsais,
porque começava a sentir um amor ardente por ela.
Seguiu-se um novo e longo silêncio, como se ambos estivessem à procura das
palavras que iriam dizer um ao outro. Terminado esse interregno, ele voltou de novo
ao diálogo:
- Não imagina como fiquei feliz, quando há bocadinho lhe disse que deixou o
outro rapaz triste e respondeu que me deixou a mim contente.
- Porque é que diz isso?
- Porque a amo e já há muito tempo, desde que a minha irmã começou a falar de
si e a vi pela primeira vez, mas só agora é que tive oportunidade de lhe dizer por
palavras, embora singelas, o que sente o meu coração e não imagina como ficaria
feliz se a pudesse ter por companheira toda a minha vida e dar-lhe a felicidade que
tanto merece.
Ao princípio ele não estava de acordo, por pensar que era uma deslealdade muito
grande e comportava sérios riscos que podiam trazer consequências incalculáveis.
Mas, a saudade de ver o filho era enorme e a persistência da mulher era quase
constante. Depois de muito reflectir, acabou por concordar com a ideia porque se
convencera que não seria muito difícil executar o plano, atendendo à abertura que a
Margarida sempre manifestara para que tivesse o filho consigo, embora dentro das
regras; e como ele antes sempre cumprira, chegou à conclusão de que seria fácil
convencê-la a que ele o tivesse na sua companhia alguns dias durante a semana.
Para que o plano fosse bem sucedido, ele passou a telefonar ainda mais do que o
habitual e alguns dias antes de sair da Venezuela telefonou ao filho e aproveitou a
oportunidade para anunciar à Margarida a sua vinda e pedir-lhe para autorizar que o
pudesse ter também, durante alguns dias de semana, enquanto durassem as férias. Ela
não lhe disse que sim, mas também não disse que não. Disse-lhe que logo se via.
Na noite a seguir ao telefonema, a Margarida teve um pesadelo terrível. Acordou
agitada e deu com a mãe a olhar para ela sentada ao lado da sua cama e perguntou-
lhe:
- O que é que te tens, minha filha, para estares tão pálida e tão agitada?
- Não calcula o sonho horrível que tive, até estou a transpirar por todos os
lados.
- Vai tirar essa roupa que está toda molhada, para depois me contares o que se
passou. Pode ser que eu te possa ajudar, nunca te vi transpirar assim.
A filha foi mudar de roupa, depois já mais calma foi de novo para a cama,
sentou-se colocou um travesseiro atrás das costas e disse para a mãe:
- Toque aqui na minha cara.
- Meu Deus! Está demasiado fria minha filha, não será melhor ires ao médico?
- Não, mãe, isto já passa, foi por causa do maldito sonho.
- Mas conta lá que raio de sonho foi esse?
- Sonhei que ia a passar à beira de um precipício e apareceu-me uma mulher com
ar pálido e olhar desvairado; tinha a boca irónica e de vez em quando sorria; mas
era um sorriso triunfante e mau; às vezes, murmurava algumas frases truncadas que
eu não entendia. Queria fugir mas não podia, tinha os pés agarrados ao chão. Depois
aproximou-se mais de mim e, com um gesto trágico, empurrou-me para o fundo do
precipício e depois apareceu com o meu filho ao colo e desapareceu no momento em
que eu, desesperadamente lhe pedia para mo entregar.
- Não faças caso filha, são dos tais sonhos desgraçados que de vez em quando
nos aparecem, mas infelizmente não os podemos evitar, porque não depende de nós, é
um grande mistério, mas sempre foi assim e há-de continuar a ser.
- Será algum mau presságio, mãe? Confesso que fiquei assustada, será que está
relacionado com o meu filho?
- Não, não penses nisso filha, foi apenas um sonho mau: - disse a mãe para a
sossegar, embora também ela tivesse ficado a meditar no que a filha lhe dissera.
Na segunda-feira da semana seguinte, na parte da manhã, apareceu em casa o ex-
marido para ver o filho e levá-lo consigo a dar uma volta.
Ela ficou assustada, lembrou-se do sonho que tivera e chegou a pensar que ele
ia raptá-lo, mas também pensava que era o pai e tinha o direito de o ver e de estar
com ele. Depois do Carlos tanto ter insistido, acabou por autorizar sem levantar
qualquer objecção, recomendando-lhe apenas que tinha de o levar antes do sol posto.
Assim que o pai levou o filho, ela foi para o seu quarto, abriu a janela e
interrogou o Céu.
- Será que vou ficar sem o meu filho?
O Céu não lhe respondeu e a dúvida continuou a pairar no ar. Olhava de vez em
quando para o relógio, como que a pedir ao ponteiro das horas para se apressar,
para que o dia chegasse o mais urgente possível ao fim, para ter o filho na sua
companhia. Mas o ponteiro também não lhe fez a vontade e seguia a sua marcha
certinha, sem lhe dar ouvidos.
Como não obteve resposta, ergueu o pensamento a Deus, com algumas lágrimas a
escorrerem-lhe pelas faces, fez-lhe uma prece e sentiu um raio de esperança a
entrar no seu coração que parecia dizer-lhe:
- Não, não pode ser, meu Deus, ajudai-me! Não deixeis que me tirem o meu
querido filho, eles não podem fazer isso! O que é que eu vou fazer agora? Onde é
que eu o vou procurar? Se calhar já andam fugidos com ele. Como é que soubeste,
Teresa?
- A Conceição, aquela safada, disse para uma amiga dela, que também é minha,
que o último a rir é sempre o que ri melhor. Além de teres ficado sem o marido,
ainda ias ficar sem o filho e já não ias tê-lo por muito mais tempo.
A amiga achou uma deslealdade muito grande e uma jogada muito suja e veio
comentar comigo. Como ela tem muito influência, pedi-lhe para saber se conseguia
saber mais alguma coisa e conseguiu saber que têm marcada viagem para amanhã às
dezassete horas e o André segue como se fosse filho do casal.
Estupefacta com o golpe que acabara de receber, nem sequer tinhas lágrimas de
desespero, nem de indignação. Há dores secas e cóleras mudas que antes de se
transformarem em lágrimas, destroçam primeiro o coração e só depois é que brotam em
abundância dando azo a um choro solto.
Já com o coração despedaçado e com as lágrimas a correrem em bica, não
conseguiu evitar um pequeno delíquio. A amiga ficou aflita e gritou:
- Dona Matilde, dona Matilde, traga um copo com água por favor. A mãe da
Margarida não respondeu, nem podia levar o copo com água, porque tinha saído cedo
para o mercado e não estava ninguém em casa. Felizmente, um momento depois, a
Margarida recuperou e a amiga respirou de alívio.
Já mais calmas, a Margarida telefonou para a irmã e para o namorado a contar-
lhes a situação. Agora a preocupação era imensa, o alvoroço estava instalado. A
Carolina telefonou logo para o marido e, meia hora depois, estavam todos em casa.
A revolta era total, mas exigia muita calma e muita prudência, principalmente
para não causar nenhum trauma à criança. Quando chegou a Matilde ia com ar feliz,
mas assim que os viu juntos, o coração estremeceu e o rosto ficou pálido.
- Meu Deus, o que teria acontecido para estarem aqui todos juntos com a menina
Teresa.
Quando ia perguntar o que se passara, a Carolina apercebendo-se da angústia
dela, - antecipou-se e disse-lhe:
- Calma, mãe, não se assuste. Houve um problema, mas nós vamos resolve-lo.
- O que é que aconteceu? Dizei-me depressa, senão eu não aguento.
- Não fique nervosa dona, Matilde. Tudo se vai resolver. É por isso que estamos
aqui - disse o Adriano, tentando tranquilizá-la.
Depois a Carolina contou-lhe o que se estava a passar e tentou suavizar a
situação com a ajuda de todos, à excepção da Margarida que apenas chorava e pedia a
Deus que lhe levasse o filho.
Quando todos estavam mais calmos e depois de terem estudado vários cenários
como possíveis de conseguirem localizar o Carlos e obrigá-lo à força a entregar o
filho à mãe, na hipótese da justiça não poder intervir por não haver tempo, devido
à rapidez como os raptores agiram, o Pedro entrou em contacto com o advogado e
contou-lhe toda a situação e para os aconselhar, o melhor caminho a seguir.
Uma hora depois, estavam todos no escritório do jurisconsulto, inclusivamente a
amiga da Margarida, preparada para o que fosse necessário.
A preocupação era bem visível no rosto de todos, mas o advogado tranquilizou-
os, dando-lhes muitas esperanças de que ainda era possível através da justiça,
impedir que o rapto se consumasse.
A Margarida estava desolada, quase a entrar no campo do desespero, e só não
atingiu o estado crítico, devido ao ânimo que o advogado lhe incutia.
- A Margarida tem tido pouca sorte. Primeiro foi o caso do senhorio, agora
este, mas fique descansada, vou já tomar as providências necessárias para ver se
conseguimos resolver mais esta situação.
- Faça tudo o que estiver ao seu alcance, Sr. Dr., para não me levarem o meu
filho, senão eu morro.
- Fique descansada. Vou já preparar a providência cautelar, para entrar no
Tribunal o mais rápido possível e falar com o meritíssimo juiz, para ver se as
testemunhas são logo ouvidas.
Uma hora depois, entrava no Tribunal a providência cautelar e logo quase a
seguir, estavam a Teresa e a amiga que lhe transmitira a notícia, que entretanto
fora contactada, a serem ouvidas na qualidade de testemunhas.
Após a audição das testemunhas, o tribunal ainda fez algumas diligências que
entendeu serem bastante úteis para confirmação da verdade.
Depois de obtidas todas as provas, foi decretada a entrega do menor à mãe e
comunicado às autoridades competentes que prestavam serviço no aeroporto para não
deixarem embarcar o casal em causa.
Quando o advogado teve conhecimento da decisão do juiz e a transmitiu, o
coração da Margarida encheu-se de alegria e os seus olhos brilharam com tanta
intensidade, que pareciam comungar da mesma alegria. Era como se um raio de luz lhe
tivesse iluminado o caminho da esperança no meio da escuridão.
Hora e meia antes do embarque, já estava um oficial de justiça no aeroporto,
munido com os documentos legais, para fazer a entrega do menor.
Quando chegou, já a Margarida ali se encontrava para receber o filho,
juntamente com o namorado, com a irmã e com o cunhado. O oficial de justiça
recomendou-lhes muita calma e fez-lhes sentir que a diligência tinha que ser feita
com muita prudência, de modo a não causar o mínimo trauma para a criança e a evitar
cenas desagradáveis e pediu-lhes para ficarem longe do local onde iria ser feito o
chek-in, devendo ficar perto dele apenas o namorado da Margarida para lhe indicar o
casal por ser desconhecido deles.
Alguns minutos depois, logo que abriu o chek-in, entrou o Carlos com o filho ao
colo e a mulher ao lado. Ainda não estava nenhuma pessoa a ser atendida. Eles foram
os primeiros a chegar, com a finalidade de serem logo atendidos e afastarem-se o
mais rápido possível daquela área, para que ninguém da família da ex-mulher os
visse ali, por temerem que alguém soubesse da saída deles.
Quando se preparavam para fazer o chek-in, o encarregado da diligência dirigiu-
se-lhes, identificou-se e depois disse para o marido:
- Não faça ainda o chek-in, estou aqui para cumprir uma ordem do tribunal, mas
é melhor afastarmo-nos daqui, para falar do assunto e para não perturbar as pessoas
que querem ser atendidas.
Quando o oficial de justiça disse aquelas palavras, apercebeu-se logo, que era
por causa do filho que ele ali estava e nem queria acreditar no que acabara de
ouvir.
- Ela descobriu! Alguém me denunciou, o que é que eu vou fazer agora? - pensava
ele.
Afastou-se um pouco para dar lugar aos passageiros que estavam atrás e
respondeu:
- É por causa do meu filho?
- É.
- Se é para o tirarem do meu poder, é tempo perdido, estou bem informado e não
há nenhuma lei que não me dê razão - disse ele com um ar um pouco agressivo, sem no
entanto ser mal educado.
- Já estou a ver que vai ser um bico de obra convencê-lo a entregar a criança -
pensou o oficial de justiça, depois disse-lhe:
- Eu tenho aqui um mandado do tribunal para entregar o seu filho à mãe dele e
seria bom que resolvêssemos a situação da melhor maneira, para não o traumatizar,
porque já compreende as coisas e para evitar situações desagradáveis porque, se o
senhor teimar em não querer entregar a criança a bem, vai ter que a entregar a mal
e é isso que temos de evitar.
- Não, não entrego! Além disso, ela não está aqui para receber o meu filho, o
que me faz pensar que há aí qualquer coisa de errado.
A mulher que até então estava calada, em vez de ajudar a resolver as coisas
pelo bem ainda as complicou mais num gesto um pouco deselegante e numa voz
autoritária, disse para o marido:
- Não entregues o menino! És o pai dele. Não é só ela que tem direito a tê-lo
na sua companhia, teve-o mais de um ano e tu não o podes ter uns dias, só neste
país é que se passam coisas destas. Que raio de leis são estas?
- São as leis que temos e são para serem cumpridas, quer se goste ou não e
agradecia que a senhora não esteja a incendiar a situação porque ainda piora as
coisas. Já que não quer ajudar, pelo menos esteja calada, porque o assunto é com o
seu marido - disse o oficial de justiça, levantando um pouco o tom de voz.
O marido interrompeu e disse:
- Ainda não me esclareceu, com é que eu vou entregar o filho, se ela não está
aqui?
- Eu ia responder-lhe. A sua mulher está cá e só não está aqui presente porque
lhe pedi e às pessoas que a acompanham para ficarem afastadas, porque a vontade
deles era serem eles a resolver o problema à maneira deles e é isso que eu quero
evitar. Parece-me que fui claro. Por isso, aconselho-o a não levantar mais
problemas, porque se continuar a insistir na sua teimosia, sujeita-se a dissabores
muito desagradáveis e já não segue para a Venezuela.
Quando o oficial de justiça disse estas palavras, ele assustou-se afastou-se um
pouco mais, falou com a mulher, abraçou o filho, e num tom ríspido disse:
- Eu vou entregar o meu filho, mas isto não fica assim, onde é que está a mãe
dele?
O oficial pediu ao Adriano que estava um pouco afastado para ir chamar a
Margarida. Alguns segundos depois ela chegou e foi então que o ex-marido se
apercebeu do risco que estava a correr, quando a viu acompanhada com a família.
Sem fazer mais comentários, nem objecções, mas com o coração dorido e a ira
estampada no rosto, entregou o filho à Margarida, sem no entanto perder a
tramontana. A mãe recebeu-o com o coração cheio de alegria, com alguma indignação e
também com muita comoção à mistura, mas conseguiu que a comoção não se
transformasse em lágrimas e esboçou alguns sorrisos para o filho e dizer-lhe, em
linguagem maternal, algumas palavras próprias para as crianças, fazendo-lhe sentir,
que o pai voltava qualquer dia e depois tornava a brincar com ele. Falava-lhe a
linguagem adequada para o ajudar a suportar a separação, evitando simultaneamente
que as pessoas se apercebessem do que se estava a passar.
Depois, o Carlos dirigiu-se para o balcão juntamente com a mulher para fazerem
o chec-in ambos com a ira estampada no rosto, mas também com alguma vergonha à
mistura, a pensarem em tudo o que acontecera. Depois de terem feito o chek-in,
dirigiram-se logo para a porta de embarque, porque os passageiros do voo em que
eles iam, já estavam a ser dirigidos para o avião.
A Margarida, logo que recebeu o filho, seguiu para o Funchal, na viatura do
namorado, juntamente com a irmã e o cunhado. Agora já com o filho nos braços,
estava muito feliz não só por ter o filho consigo, mas também por mais aquela prova
de amor e solidariedade que o namorado lhe dera. Durante a viagem, já com a
tempestade passada e a navegarem nas águas da bonança, a alegria entre todos era
constante e de vez em quando vinham à baila alguns dos episódios que se passaram
com a Margarida, o que a levou a certa altura da conversa a dizer:
- Que mais me irá acontecer?
- Ora o que é que te irá acontecer? Agora que a tempestade já passou, vem a
bonança e com ela o casamento - disse a irmã com um largo sorriso nos lábios.
- Ao ouvirem aquelas palavras, a Margarida corou, embora gostasse de as ouvir e
o namorado recebeu-as com enorme alegria, porque era o que mais ansiava.
Depois de uma leve pausa, a Margarida respondeu:
- Descarada, quando estás para a brincadeira só dizes asneiras.
- Não disse asneira nenhuma, o que eu disse é uma pura verdade, é ou não é
Pedrinho?
- É, tens toda a razão.
Quando chegaram a casa, a Matilde já estava à espera e assim que viu a filha
com o neto ao colo, uma onda de alegria invadiu-lhe o rosto, ao mesmo tempo que
agradecia a Deus por ter ouvido as suas preces.
Depois das filhas lhe terem contado alguns dos episódios que se passaram no
aeroporto, foi preparar o jantar e embora as filhas a quisessem ajudar, ela não
permitiu, o que levou a Margarida a comentar:
- A mãe pensa que ainda tem dezoito anos, porque é que há-de fazer tudo
sozinha?
- Não te preocupes minha filha, sinto-me bem assim e quanto mais felizes vos
vejo, melhor me sinto e hoje é um desses dias. É verdade que às vezes já me sinto
como uma rosa fanada, mas o que é feito por gosto não cansa.
- Não diga isso dona Matilde, está aí que nem uma rosa bem viva e ainda
conserva o aroma da juventude - disse o Adriano.
- Obrigado, senhor Adriano, mas tenho apanhado muitos desgostos e já por cá
anda muita ferrugem.
- Mas agora que a tempestade já passou, essa ferrugem ainda vai desaparecer.
- Já não desaparece, senhor Adriano, mas se Deus me deixar andar assim, já é
muito bom, o que mais quero na minha vida é ver as minhas filhas felizes, já
sofreram muito e também têm direito a ser felizes.
- Hão-de ser se Deus quiser.
- Deus o oiça, Sr. Adriano.
Depois de terem jantado, o Adriano embora gostasse de ficar mais algum tempo,
ao pé da namorada, não podia, porque ainda tinha de acabar um trabalho para ser
entregue no dia seguinte na caixa de previdência e não teve outro remédio senão ter
de despedir-se e ir para casa.
Pelo caminho, ia feliz por ter ajudado a mulher que tanto amava a ajudar a
resolver mais um grave problema e de vez em quando lembrava-se da conversa que a
Carolina fizera durante a viagem e começava a nascer-lhe a ideia de casar o mais
depressa possível, por estarem criadas as condições para que tal acontecesse.
Alguns dias depois, falou no assunto à namorada, tendo esta aceite a ideia de
bom grado, também ela desejosa que esse dia chegasse o mais depressa possível.
Ambos falaram com os pais, tendo obtido logo a anuência deles e marcaram o
casamento para o mês de Dezembro daquele ano, para que o pai da Margarida pudesse
aproveitar a Quadra Natalícia para a passar na companhia da família.
-FIM-