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A revolta constitucional na Alemanha contra a União Europeia

Celebrou-se a 10 de maio de 2020 os 70 anos da declaração Schumann que lançou a ideia da


União Europeia que temos hoje.
Robert Schumann acreditava que só um órgão supranacional podia levar os países
desavindos a trabalharem juntos em prol de um interesse comum. Ao contrário dos outros pais
fundadores da Europa, Schumann defendia uma Comunidade de estados nacionais, culturalmente
diferentes, mas unidos por valores comuns. A sua visão assentava numa integração, passo a passo,
das políticas sectoriais, o que levaria a uma solidariedade institucional.
Se muitas políticas são hoje em dia decididas ou coordenadas a nível europeu, mas
solidariedade nem sempre se tem manifestado da forma esperada e visível para os nossos
cidadãos.
É curioso lembrar que a conferência de imprensa de 9 de Maio de 1950 para anunciar a
declaração Schumann foi um fracasso. Convocada à última hora a sala de imprensa tinha mais
funcionários do Quai d’Orsay do que jornalistas. Nenhuma televisão ou rádio cobriu o evento, o
que obrigou Schumann a repetir a sessão para efeitos mediáticos.
Há quem veja neste incidente um símbolo da eterna dificuldade da UE em comunicar o que
faz de bem, por oposição ao sucesso comunicacional daqueles que culpam Bruxelas das suas
incompetências nacionais.
Por coincidência (ou não) foi à margem desta efeméride e no meio da maior crise económica
das nossas vidas que o Tribunal Constitucional Alemão decidiu esta semana um acórdão crítico,
que entrará para a história pelos maus motivos.

Não é exagero afirmar que a 5 de Maio de 2020 rebentou uma “revolta constitucional” na
Alemanha contra a União Europeia. O título do comunicado de imprensa n.º 32/2020 do Tribunal
Constitucional Federal alemão não podia ser mais claro: “As decisões do Banco Central Europeu
(BCE) sobre o programa de compras de dívida do sector público excederam as competências da
UE”.

Os juízes de Karlsruhe criticaram o Banco Central Europeu (BCE) por este ter comprado
dívidas públicas dos países europeus na altura da crise financeira pediram uma justificação da
proporcionalidade das medidas tomadas em 2015. Em termos simples, os juízes não gostaram
daquilo que Mário Draghi celebrizou com a sua celebre frase: “whatever ti takes” dando o sinal de
que o BCE faria tudo o que fosse necessário para estancar a crise.

O Tribunal Constitucional alemão exigiu ao Banco Central Europeu que demonstre, num
prazo de três meses, que o programa de compra da dívida pública "não tem efeitos
desproporcionais na política orçamental". O parecer, que conta mais de 100 páginas, não diz que a
compra de dívida pelo BCE é ilegal, pelo contrário. O que diz é que essa ação tomou uma
proporção e um peso que já sai fora das competências da autoridade monetária.

O Tribunal Constitucional Federal alemão, colocou em causa a atuação de duas instituições


da União Europeia: o Banco Central Europeu (BCE) e o Tribunal de Justiça da União Europeia
(TJUE). A primeira instituição — o BCE — é considerada infratora das competências que lhe
foram atribuídas pelos Tratados da União Europeia, nomeadamente de não ter respeitado o
disposto no artigo 123.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que
dispõe sobre a compra de dívida do sector público. Quanto à segunda — o TJUE — foi por sua
vez acusado de ter efetuado um julgamento ultra vires — frase em latim que significa atuar para
“além dos poderes”. Em causa está o julgamento de 11 de Dezembro de 2018, num processo de
reenvio prejudicial, no qual considerou que a atuação do BCE não tinha infringido a legislação
europeia.
O Presidente do BCE na época, o italiano Mário Draghi, afirmou em 2012 que faria “tudo o
que fosse preciso” para salvar o Euro. Mas, na ótica do Tribunal Constitucional Federal alemão,
independentemente dos méritos económicos da política do BCE, o que o Mário Draghi e o BCE
fizeram foi também uma violação da legalidade europeia. Agora, com o impacto da pandemia da
covid-19 e com o BCE de novo a ser pressionado para compra de dívida pública pelo Sul da
Europa, este acórdão é uma “bomba” que não poderá ser ignorada.

Para além da política de compra de dívida pública pelo BCE, a faceta talvez mais
importante da referido acórdão — e com prováveis repercussões futuras profundas na construção
jurídico-política europeia — é a que coloca a mais elevada e prestigiada instância jurisdicional
alemã (o Tribunal Constitucional) em rota de colisão com a suprema instância jurisdicional
europeia (o TJUE).

O Tribunal Constitucional Federal alemão foi inequívoco nas suas críticas à decisão no já
referido caso de 11 de Dezembro de 2018, onde o TJUE optou por dar cobertura jurídica à atuação
do BCE. “A análise realizada pelo TJUE sobre se as decisões do BCE relativas ao PSPP (Public
Sector Purchase Programme), atendem ao princípio da proporcionalidade não é compreensível;
nessa medida, o julgamento proferido foi ultra vires.” Acrescentam ainda os juízes alemães:
“Aplicado desta maneira, o princípio da proporcionalidade (artigo 5.º n.º 1, segundo período, e
artigo 5, n.º 4 do TUE) não pode cumprir a sua função corretiva com o objetivo de salvaguardar as
competências dos Estados-Membros, o que torna sem sentido o princípio da proporcionalidade”.

Isabel Schnabel, membro do comité executivo do BCE, veio garantir que a autoridade
monetária vai continuar a comprar dívida pública da zona euro, sublinhando que se trata de "uma
instituição europeia, o que significa que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem jurisdição
exclusiva sobre o BCE e as suas ações" - e o tribunal europeu já se pronunciou sobre a mesma
questão, em 2018, determinando então que a compra de dívida pública é legal.

Agora a benevolência que a União Europeia teve ao longo de várias décadas da parte dos
órgãos jurisdicionais nacionais — e dos juristas em geral, usualmente muito compreensivos ou até
entusiastas abertos do federalismo jurídico que impregnava os juízes do TJUE —, parece dar lugar
a uma reação crítica e de forte contestação. No caso da Alemanha, a revolta constitucional não
podia ser mais nítida como pode ver por este excerto: “À luz das considerações acima
mencionadas, o Tribunal Constitucional Federal não está vinculado à decisão do TJUE, mas deve
realizar sua própria revisão para determinar se as decisões do Eurosistema sobre a adoção e
implementação do PSPP permanecem dentro das competências que lhe são conferidas pela lei
primária da UE.”

Importante a reter é o facto de alguns juristas considerarem que esta decisão alemã ignora
deliberadamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE que já tinha reconhecido a
legalidade da ação do BCE. Assim é posto em causa o princípio da primazia do direito europeu
sobre o direito nacional, reconhecido nas constituições dos países da UE. Abre-se assim uma
caixa de Pandora para outros tribunais nacionais ignorarem oportunamente o direito europeu, um
cenário facilmente imaginável hoje em dia na Hungria ou na Polónia.
No entanto, outros entendem que o Tribunal Constitucional alemão não pôs em causa o
princípio do primado, ou da primazia, do Direito da União Europeia sobre o Direito dos Estados-
Membros (outra criação jurisprudencial do TJUE nos anos 1960, imbuída de federalismo jurídico).
Tal como é referido no seu acórdão de 5 de Maio, “Se um Estado-Membro pudesse prontamente
invocar a sua autoridade para decidir, através dos seus próprios tribunais, sobre a validade dos
atos da UE, isso poderia prejudicar a precedência da aplicação concedida ao Direito da União
Europeia e comprometer a sua aplicação uniforme.” Só que o Tribunal Constitucional
acrescentou — e aqui está o aspeto a reter pelas suas potenciais consequências jurídico-políticas,
dentro e fora da Alemanha — a seguinte consideração: “Contudo, se os Estados-Membros se
abstivessem completamente de realizar qualquer tipo de revisão ultra vires, concederiam aos
órgãos da UE autoridade exclusiva sobre os Tratados, mesmo nos casos em que a União Europeia
adote uma interpretação legal que equivaleria essencialmente a uma emenda a um tratado ou a
uma expansão das suas competências”.

Para o Tribunal Constitucional Federal alemão o que o TJUE fez, na prática, assemelha-se
a uma (inadmissível) emenda de um tratado ou uma expansão das suas competências. A ser
assim está naturalmente para além dos seus poderes, daí a acusação feita aos juízes europeus de
terem efetuado um julgamento ultrapassando os poderes de interpretação de que estão
incumbidos.

Para alguns juristas o BCE teve a coragem de aprovar recentemente um esquema similar
de compra de dívida pública de 750 mil milhões para poder estancar a crise atual. Nesse contexto,
esta decisão do Tribunal alemão não deixa de ser vista como uma forma pouco subtil de
pressionar o BCE, através do banco central alemão, a limitar o seu ímpeto de intervencionismo
monetário. Representa a linha dura daqueles que acreditam que se o BCE está sempre disponível
para comprar dívida pública os governos ficam sem incentivos para manter as contas públicas em
ordem.

Dificilmente poderia haver pior momento para o Tribunal tomar esta decisão, cujos efeitos
jurídicos, mas sobretudo políticos, podem pôr em perigo a própria União Europeia. A justiça
dever ser cega e independente, mas não pode viver alheada do contexto e dos timings em que
toma as suas decisões.

Nas palavras de Schumann: “A paz mundial não poderá ser salvaguardada sem esforços
criativos que estejam à altura dos perigos que a ameaçam”. Se Schumann estivesse vivo e tivesse
passado por Karlsruhe teria certamente relembrado aos juízes que alguma criatividade e bom
senso pode ser a única maneira de salvaguardar o nosso futuro.

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