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a liberdade, tornando-se
apto a se construir criti-
ca e responsavelmente: foi este
o noble objetivo ao qual Paulo
Freire se dedicou durante toda
a vida. Mas como altar um voo
tio alto num mundo onde, cada
vez mais, "a pedagogia domi-
nante 6 a pedagogia da classe
dominante"? PEDAGOGIADO
Pedagogia do oprimido, obra
que figura entre as principais de
OPRIMIDO
sua vasta bibliografia, 6 uma das
respostas mais relevantes a essa
pergunta. Aqui, consciente da si-
tuagao em que se encontram os
oprimidos do Brasil e da Ame-
rica Latina, Paulo nos oferece
uma anilise penetrante do fun-
cionamento de nossasclassesso-
ciais e indica os caminhos para
uma pedagogia eficiente, capaz
de suscitar, nos educandos, o
dialogo e o saberdesi.
Nio 6 preciso muito para que
a amplitude do pensamentodesta
obra se revele: do conte6do pro-
gramitico is estruturas opres-
soras da sociedade,asreflex6es
Reirianas se debrugam sobre
todos os fatores que influenciam
Copyright C) Herdciros Paulo Freire
r' CIP
BRASIL.CATALOGAQAONAFONTE
I
SINDICATONACIONAL DOSEDITORESDE LIVROS.N
Bibliografia
ISBN 978 85-7753-164-6
IJ l-03203 CDD-370'1
PRIMEIRAS PALAVRAS
A contradigio opressores-oprimidos
Suasuperagao 4i
3 A dialogicidade:ess6nciada educagao
como pratica daliberdade i07
PEDAGOGIADO OPRIMIDO I I3
12 I PAULOFROM
Um minima de palavras,com a mfxima poliva16nciafo- pouco a pouco se vai abrindo; a consci6ncia passa a escu-
n6mica, 6 o ponte de partida para a conquista do univer- tar os apelos que a convocam sempre mais a16mde seus
se vocabular. Essaypalavras,oriundas do pr6prio universe limites: faz-secritica.
vocabular do alfabetizando,uma vez transfiguradaspda Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencon-
critica, a ele retornam em agro transformadora do mundi. tra-se com os outros e nos outtos, companheirosde seu
Como saem de seu universo e coma a ele voltam? pequeno "circulo de cultura". Encontram-see reencon-
Uma pesquisapr6via investiga o universo das palavras tram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincid6ncia
faladas,no meir cultural do alfabetizando.Dai sio extrai- das inteng6es que o objetivam, ex-surge a comunicagao,
dos os vocfbulos de mais ricas possibilidades fon6micas e de o dialogs que criticiza e promove os participantes do ck-
maior carga semintica -- os que nio s6 permitem rapids culo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundi:
dominio do universe da palavra escrita como, tamb&m, o o que antes os absorvia, agora podem ver ao rev6s. No
mais eficaz engajamento de quem a pronuncia, com a forma circulo de cultura, a rigor, nio se ensina, aprende-seem
pragmatica que instaura e transforma o mundo humana. 'reciprocidade de consci6ncias"; nio hf professor, ha um
Estaspalavrassio chamadasgeradorasporque, atrav6s coordenador, que tem por fungao dar as informag6es soli-
da combinagao de seus elementos bfsicos, propiciam a for- citadas pecos respectivos participantes e propiciar condig6es
magao de outras. Como palavrasdo universo vocabular do favoriveis a dinimica do grupo, reduzindo ao minimo sua
alfabetizando,sio significag6esconstituidasou reconstitui- intervengao direta no curso do dialogo.
das em comportamentosseus,que configuram situag6es A "codificagao" e a "descodificagao"permitem ao alfabe-
existenciaisou, dentro delas,se configuram. Tais significa- tizando integrar a significagao das respectivas palavras gera-
g6essio plasticamente codificadas em quadros, s! des,filmi- doras em seu contexto existencial -- ele a redescobrenum
nas etc., representatives das respectivas situag6es, que, da mundo expressadoem seucomportamento. Conscientizaa
experi6nciavivida do alfabetizando,passampara o mundo palavra como significagao que se constitui em sua intengao
dos objetos. O alfabetizando ganga distincia para ver sua ex- significante, coincidente com inteng6esde outros que sig-
peri6ncia: "admiral". Nesse instance, comega a descodificar. nificam o mesmo mundi. Este -- o fundo -- 6 o lugar do
A descodificagao 6 anflise e consequente reconstitui- encontro de cada um consign mesmo e os demais.
gao da situag5o vivida: reflexo, reflexio e abertura de A essa altura do processo, a respectiva palavra geradora
possibilidades concretas de ultrapassagem. Mediada pda pode ser, ela mesma, objetivada como combinagao de lone-
objetivag5o, a imediatez da experi&ncia lucidifica-se, inte- mas suscetiveis de representagao grffica. O alfabetizando ja
riormente, em reflexio de si mesma e critica animadora de sabe que a lingua tamb6m 6 cultura, que o homem & sujeito:
novos prqetos existenciais.O que antes era fechamento, dente-sedesafiado a desvelar os segredos de sua constituigao,
a partir da construg5o de suaspalavras -- tamb&m constru- certa maneira, tentam reproduzir o movimento de suapr6-
gio de seu mundi. Para esseefeito, como tamb&m para pria experi6ncia; o alfabetizando, ao dar-lhes forma escrita,
a descodificagaodas situag6essignificadaspdas palavras vai assumindo, gradualmente, a consci6ncia de testemunha
geradoras, a que nos referimos, 6 de particular interessea de uma hist6ria de que se sabe 3utor. Na medida em que se
etapa preliminar do m&todo, que nio haviamos ainda men- apercebe coma testemunha de sua hist6ria, sua consci6ncia
cionado. Nessa etapa, sio descodificadas pelo grupo vfrias se faz reflexivamente mais responsaveldessahist6ria.
unidades basicas, codificag6es simples e sugestivas, que, dia- O m&todo Paulo Freire n5o ensina a repetir palavras,nio
logicamente descodificadas,vio redescobrindo o homem se restringe a desenvolver a capacidade de pensa-las segun-
como sujeito de dodoo processohist6rico da cultura e, ob- do as exig6ncias 16gicasdo discurso abstrato; simplesmente
viamente, tamb6m da cultura letrada. O qtle o homem fda coloca o alfabetizando em condig6es de poder re-existenciar
e escreve e como fda e escreve, judo & expressao objetiva de criticamente as palavrasde seu mundo, para, na oportuni-
seu espirito. Por isto, pode o espirito refazer o feith, neste dade devida, saber e poder dizer a sua palavra.
redescobrindo o processo que o faz e refaz. Eis por que, em uma cultura letrada, aprende a ler e
Assim, ao objetivar uma palavra geradora -- integra, escrever,mas a intengao Qltima com que o faz vai al&m da
primeiro, e depois decomposta em seus elementos silfbi- alfabetizagao. Atravessa e amma toda a empresa educati-
cos --, o alfabetizando ja este motivado para nio s6 bus- va, que nio 6 sen5o aprendizagem permanente dessees-
car o mecanismo de sua recomposigao e da composigao forgo de tota]izagao --jamais acabada-- atrav6sdo qual
de novas palavras, mas tamb€1mpara escrever seu pen- o homem tenta abragar-seinteiramente na plenitude de
samento. A palavra geradora, ainda que objetivada em sua forma. f a pr6pria dial&tica em que se existencia o
sua condigao de simples vocfbulo escrito, nio pode mais homem. Mas, para isto, para assumir responsavelmente
libertar-se de seu dinamismo semintico e de sua forma sua missio de homem, ha de aprender a dizer a sua pa-
pragmatica, de que o alfabetizandoja se fizera conscience lavra, pois, com ela, constituia si mesmo e a comunh5o
na repetida descodificagaocritica. humana em que se constitui; instaura o mundi em que
Nio se deixara, pois, aprisionar nos mecanismos de sehumaniza, humanizando-o.
composigaovocabular. E buscarf novas palavras, n5o para Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua
colecionf-las na mem6ria, mas para dizer e escrevero seu palavra, pols, o homem assume conscientemente sua essen-
mundo, o seupensamento,para contar sua hist6ria. Pensar cial condigao humana. E o m&todo que Ihe propicia essa
o mundi &julga-lo; e a experi6nciados circulos de cultura aprendizagemcomensura-seao homem dodo, e seusprin-
mostra que o alfabetizando, ao comegar a escrever livre- cipios fundam toda pedagogia, desde a alfabetizagao at& os
mente, nio copia palavras,mas expressajuizos. Estes,de mais autosniveisdo labor universitirio.
I6 I PAULOFROM
PKOXGOCiA D0 0PRiMi00 1 i7
r
A educagao reproduz, assim, em seu plano pr6prio, a es- A intencionalidade da consci6nciahumana nio morre na
trutura dinimica e o movimento dial&tico do processo hist6- espessurade um envolt6rio sem reverso. Ela tem dimensio
rico de produg5o do homem. Para o homem, produzir-se 6 sempremaior do que os horizontes que a circundam. Per-
conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia passa a16m das coisas que alcanga e, porque as sobrepassa,
&antropologia. pode enfrenti-lascomo objetos.
Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, A objetividade dos objetos & constituida na intenciona-
num circulo de cultura, diante de uma situagaorepresen- lidade da consci6ncia, mas, paradoxalmente, esta atinge,
tada em quadro: "Gosto de discutir sabre isto porque viva no objetivado, o que ainda nio se objetivou: o objetimavel.
assim. Enquanto vivo, por&m, nio vejo. Agora sim, observo Portanto, o objeto nio & s6 objeto, 6, ao mesmo tempo,
como vivo.
problema: o que esteem dente, coma obsticulo e interro-
A consci6ncia 6 essamisteriosa e contradit6ria capacida- gagao. Na dial&tica constituinte da consci6ncia, em que esta
de que tem o homem de distanciar-se das coisas para faze-las se pedaz na medida em que faz o mundo, a interrogagao
presences, imediatamente presentes. E a presenga que tem nunca 6 pergunta exclusivamente especulativa: no processo
o poder de presentificar: nio & representagao,mas condigao de totalizagao da consci6ncia & sempre provocagao que a
de apresentagao. f um comportar-se do homem frente ao incita a totalizar-se.O mundo 6 espetfculo, mas sobretudo
meio que o envolve,transformando-oem mundo huma- convocagao. E, como a consci6ncia se constitui necessaria-
no. Absorvido pele meio natural, responde a estimulos; e mente como consci6nciado mundi, ela 6, pois, simultinea
o 6xito de suasrespostasmede-sepor sua maior ou menor e implicadamente, apresentagaoe elaboragaodo mundo.
adaptagao: naturaliza-se. Despegado de seu meir vital, por A intencionalidadetranscendentalda consci6nciaper-
virtude da consci6ncia, enfrenta as coisas objetivando-as, e mite-the recuar indefinidamente seus horizontes e, dentro
enfrenta-se com das, que deixam de ser simpler estimulos, deles,ultrapassar os mementos e as situag6es,que tentam
para se tornarem desafios.O meio envolvente nio o fecha, ret6-la e enclausurf-la. Liberia pda formade seu impulse
limita-o -- o que sup6e a consci6ncia do a16m-limite. Por transcendentalizante, pode volver reflexivamente sobre tais
isto, porque se proyetaintencionalmente
a16mdo limite situag6ese momentos, para julga-los e julgar-se. Por isto 6
que tenta encerra-la, pode a consci6ncia desprender-sedele, capaz de critica. A reflexividade & a raiz da objetivagao. Se
liberar-se e objetivar, transubstanciandoo meir fisico em a consci6nciase distancia do mundo e o objetiva, & porque
mundi humano. sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde
A "hominizagao" nio & adaptagao:o homem nio se na- o primeiro momento de sua constituigao, ao objetivar seu
turaliza, humaniza o mundo. A "hominizagao" nio & s6 mundo originario, ja 6 virtualmente reflexiva. E presengae
processobio16gico,mastamb6mhist6ria. distincia do mundo: a distincia & a condigao da presenga.
I8 I PAULOFAIRE PEDAGOGIA
DO
OPRIMIDO
I I9
r
Ao distanciar-se do mundi, constituindo-se na objetividade, consci6ncia & sempre, radicalmente, consci6ncia do mun-
surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha do en- do. Seu lugar de encontro necessfrio6 o mundo, que,
tendimento, reflexio e mundo, subjetividade e objetividade se nio for originariamente comum, nio permitira mais
n5o se separam:op6em-se,implicando-sedialeticamente. a comunicagao. Cada um teri seus pr6prios caminhos
A verdadeira reflexio critica origina-se e dialetiza-se na in de entrada nesse mundo comum, mas a converg6ncia
terioridade da "praxis" constitutiva do mundi humano -- & das inteng6es, que o significam, & a condigao de possibi-
tamb&m"praxis' lidade das diverg6nciasdos que, nele, se comunicam. A
Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, nio ser assim, os caminhos seriam paralelos e intranspo-
'descodificando-o"criticamente, no mesmo movimento da niveis. As consci6nciasnio sio comunicantesporque se
consci6nciao homem se redescobrecomo sujeito instaura- comunicam; mas comunicam-se porque comunicantes. A
dor dessemundo de sua experi6ncia. Testemunhando obje- intersubjetivagao das consci6ncias& t5o originaria quanto
tivamente suahist6ria, mesmo a consci6nciaing6nua acaba sua mundanidade ou sua subjetividade. Radicalizando, po-
por despertar criticamente, para identificar-se como perso' deriamos dizer, em linguagem nio mais fenomeno16gica,
nagem que se ignorava e & chamada a assumir seu paper A que a intersubjetivagao das consci6ncias & a progressiva
consci6nciado mundi e a consci6nciade si crescemjuntas conscientizagao,no homem, do "parentescoonto16gico'
e em razio direta; uma & a luz interior da outta, uma com- dos seresno ser. E o mesmo mist6rio que nos invade e nos
prometida com a outra. Evidencia-sea intrinseca correlagao envolve, encobrindo-se e descobrindo-se na ambiguidade
entre conquistar-se, fazer-se maid si mesmo, e conquistar o do nossocorpo consciente.
mundo, faze-lo mais humano. Paulo Freire nio inventou Na constituigaoda consci6ncia,mundo e consci6nciase
o homem; apenaspensae pratica um m&todo pedag6gico poem como consci6nciado mundi ou mundo consciencee,
que procura dar ao homem a oportunidade de re-descobrir-se ao mesmo tempo, se op6em como consci6nciade sie cons-
atrav&s da retomada reflexiva do pr6prio processo em que ci6ncia do mundi. Na intersubjetivagao, as consci6ncias
vai ele se descobrindo, manifestando e configurando -- tamb&m se poem como consci6nciasde um certo mundo
'm&tododeconscientizagao ' comum e, nessemundo, se op6em como consci6nciade si e
Mas ningu&m se conscientiza separadamente dos de- consci6nciado outro. Comunicamo-nos na oposig5o,que &
mais. A consci6nciase constitui como consci6nciado a mica via de encontro para consci6nciasque se constituem
mundi. Se cada consci6ncia tjv'==e o seu mundi, as na mundanidadee na intersubjetividade.
consci6nciasse desencontrariam em mundos diferentes e O mon61ogo,enquanto isolamento, & a negagaodo ho-
separados -- seriam m6nadas incomuniciveis. As consci6n- mem; 6 fechamento da consci6ncia, uma vez que consci6ncia
cias nio se encontramno vazio de si mesmas,pois a & abertura. Na solidao, uma consci6ncia, que & consci&ncia do
O circulo de cultura -- no m&todo Paulo Freire -- re-vi- A pedagogia aceita a sugestao da antropologia: imp6e-se
ve a vida em profundidade critica. A consci6ncia emerge do pensar e viver "a educagao coma pratica da liberdade
mundi vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o Nio foi por acaso que esse m6todo de conscientiza-
como prqeto humana. Em dialogo circular, intersubjetivan- gao originou-se como m&todo de alfabetizagao.A cultu-
do-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo ra letrada nio & invengao caprichosa do espirito; surge no
de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em circulo, e momento em que a cultura, como reflex5o de si mesma,
em colaboragao,re-elaboram o mundo e, ao reconstrui-lo, consegue dizer-se a si mesma, de maneira definida, clara e
apercebem-sede que, embora construido tamb&m por des, permanente. A cultura marca o aparecimento do homem
essemundo nio 6 verdadeiramente para des. Humaniza- no largo processo da evolugao c6smica. A ess6nciahumana
existencia-se, autodesvelando-se como hist6ria. Mas essa
do por des, essemundo ngo os humaniza. As m5os que o
consci6ncia hist6rica, objetivando-se reflexivamente, sur-
fazem n5o sio as que o dominam. Destinado a libero-los
preende-se a si mesma, passa a dizer-se, torna-se consci&n-
como sujeitos, escraviza-oscomo objetos.
cia historiadora: o homem & levado a escrever sua hist6ria.
Reflexivamente, retomam o movimento da consciCncia
Alfabetizar-se & aprender a ler cssa palavra escrita em que a
que os constitui sujeitos, desbordando a estreiteza das situa-
cultura se diz e, dizendo-secriticamente, deixa de ser repe-
g6esvividas; resumem o impulso dial&tico da totalizagao
hist6rica. Presentificadoscomo objetos no mundo da cons- tigao intemporal do que passou, para temporalizar-se, para
ci6ncia dominadora, nio se davam conga de que tamb&m conscientizar sua temporalidade constituinte, que e anQn-
cio e promessa do que ha de vir. O destino, criticamente,
eram presengaque presentificaum mundo que n5o & de
ningu6m, porque originariamente 6 de todos. Restituida recupera-secomo projeto.
Nesse sentido, alfabetizar-se ngo 6 aprender a repetir
em sua amplitude, a consci6nciaabre-separa a "pratica da
liberdade": o processo de "hominizagao", desde suas obscu- palavras,mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura. A
cultura letrada conscientiza a cultura: a consci6nciahisto-
ras profundezas, vai adquirindo a translucidez de um pro'
riadora automanifesta a consci&nciasua condigao essencial
jeto de humanizag5o. Nio 6 crescimento, 6 hist6ria: aspero
de consci6ncia hist6rica. Ensinar a ler as palavras divase
esforgo de superag5o dial&tica das contradig6es que entrete-
ditadas & uma forma de mistificar as consci6ncias, desper-
cem o drama existencialda finitude humana. O m&todo de
sonalizando-asna repetigao -- 6 a t6cnica da propaganda
conscientizagaode Paulo Freire refaz criticamente essepro-
massificadora. Aprender a dizer a sua palavra & toda a peda-
cessodial&ticode historicizagao.Coma todo bom m6todo
gogia, e tamb&m toda a antropologia.
pedag6gico,nio pretende ser m&todo de ensino, mas sim
A "hominizagao" opera-se no moments em que a cons-
de aprendizagem; com ele, o homem nio cria sua possi-
ci6ncia ganha a dimensio da transcendentalidade. Nesse
bilidade de ser livre, mas aprende a efetivi-la e exerc6-la.
PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 25
U I PAULO FREIRE
r'
instante, liberada do meir envolvente, despega-sedele, en- a hist6ria e a cultura. Mas o primeiro instanceda palavra
6enta-o, num comportamento que a constitui como cons- 6 terrivelmente perturbador: presentifica o mundo a cons-
ci6ncia do mundi. Nessecomportamento, as coisas sio ci6ncia c, ao mesmo tempo, distancia-o. O enfrentamen-
objetivadas,into 6, significadase expressadas:o homem to com o mundi 6 ameagae cisco.O homem substitui o
as diz. A palavra instaura o mundi do homem. A palavra, envolt6rio protetor do meir natural por um mundo que
como comportamento humana, significante do mundi, o provoca e desafia.Num comportamento ambiguo, en-
nio designa apenas as coisas, transforma-as; nio 6 s6 pen- quanto ensaiao dominio t&cnico dessemundo, renta voltar
samento, 6 "praxis". Assim considerada, a semintica 6 exis- a seu seio, imergir nell, enleando-se na indistingao entre
t6ncia e a palavra viva plenifica-seno trabalho. palavra e coisa. A palavra, primitivamente, & mito. Interior
Expressar-se,expressando o mundo, implica o comunicar-se. ao mito e condigao sua, o logoshumano vai conquistando
A partir da intersubUetividade
originaria, poderiamos dizer primazia, com a intelig6ncia das mios que transformam
que a palavra,mats que instrumento, 6 origem da comuni- o mundi. Os prim6rdios dessahist6ria ainda sio mitolo-
cagao-- a palavra& essencialmentediflogo. A palavraable a gia: o mito 6 objetivado pda palavraque o diz. A narra-
consci6ncia para o mundi comum das consci6ncias, em dia- gaodo mita, no entanto, objetivandoo mundi mitico e
logo, portanto. Nessalinha de entendimento,a expressaodo entrevendo o seu conteOdo racional, acaba por devolver
mundo consubstancia-seem elaboragaodo mundo e a comu- a consci6ncia a autonomia da palavra, distinta das coisas
nicagao em colaboragao. E o homem s6 se expressa conve- que ela significa e transforma. Nessaambiguidade com que
nientemente quando colabora com todos na construgaodo a consci6ncia faz o seu mundi, afastando-o de si, no dis-
mundo comum -- s6 se humanizano processodia16gicode tanciamento objetivante que o presentifica como mundo
humanizagaodo mundo. A palavra,porque lugar do encontro consciente, a palavra adquire a autonomia que a lorna dis-
e do reconhecimento das consci6ncias, tamb&m o & do reen- ponivel para ser recriada na expressaoescrita. Embora nio
contro e do reconhecimento de si mesmo. A pa]avra pessoa], tenha side um produto arbitrfrio do espirito inventivo do
criadora, pois a palavra repetida & mon61ogo das consci&ncias homem, a cultura letrada 6 um epifen6meno da cultura,
que perderam sua identidade, isoladas,imersas na multidio que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na pa-
an6nima e submissasa um destino que Ices 6 imposto e que lavra escrita uma maneira mais forme e definida de dizer-se,
nio s5o capazesde superar, com a decisis de um projeto. isto &, de existenciar-sediscursivamente na prfxis hist6rica.
f verdade: nem a cultura iletrada 6 a negag5o do ho- Podemos conceber a ultrapassagem da cultura letrada: o
mem, nem a cultura letrada chegou a ser sua plenitude. que, em dodo caso, ficarf & o sentido profundo que ela ma-
Nio ha homem absolutamente inculto: o homem "homi- nifesta: escrevere nio conservar e repetir a paiavra dita,
niza-se" expressando, dizendo o seu mundi. Ai comegam mas diz6-la com a formareflexiva que sua autonomia Ihe
PEOAGOGIA OO OPRIMIDO 1 29
z8 I PAULO FRnRE
r'
Em regime de dominagao de consci6ncias,em que os PRIMEIRAS PALAVRAS
que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e
em que multid6es imensas nem sequer t6m condig6es para
trabalhar, os dominadores mant6m o monop61io da pala-
vra, com que mistificam, massificame dominam. Nessasi-
tuagao, os dominados, para dizerem a sua palavra, t&m que As pAaiNAS
QuuSESEGUEM
e que propomos como uma
lutar para tomb-la. Aprender a tami-la dos que a det&m e a introdug5o a Pedagogiado oprim£dosio o resultado de nos-
recusam aos demais & um dificil, mas imprescindivel apren- sas observag6es nestes cinco anos de exilio. Observag6es
dizado -- & a "pedagogiado oprimido ' que se v6m juntando is que fizemos no Brasil, nos vfrios
setores em que tivemos oportunidade de exercer ativida-
ProfessorErnani Maria Fiori des educativas.
Santiago, Chile, Um dos aspectosque surpreendemos, quer nos curios
dezembro
de] 967 de capacitagaoque damos e em que analisamoso papel da
conscientizagao, quer na aplicagao mesma de uma educa-
gao realmente libertadora, & o "medo da liberdade", a que
faremosrefer6nciano primeiro capitulo denteensaio.
Nio s5o raras as vezes em que participantes destes cur-
ios, numa atitude em que manifestam o seu "medo da
liberdade", se referem ao que chamam de "perigo da cons-
cientizagao". 'H. consci6ncia critica (dizem) & anarquica.'
Ao que outros acrescentam: "Nio poderf a consci6ncia
critica conduzir a desordem?"Ha, contudo, os que t2m-
b&m dizem: "Por que negar?Eu temia a liberdade.Ja nio
a temol
Certa vez, em um dessescurios, de que fazia parte um
homem que fora, durante longo tempo, operario, se estabe-
leceu uma dessasdiscuss6esem que se afirmava a "pericu-
losidade da consci6ncia critica". No meir da discussao, disse
este homem: "Talvez scja eu, entre os senhores, o Qnico de
origem operaria. Nio posse dizer que haja entendido sodas
30 I PAULO FREIRE
as palavrasque foram divasaqui, mas uma coisaposso afir- Rare, por6m, 6 o que manifesta explicitamente estere-
mar: chegueia essecurso {ng?ttKO e, ao descobrir-me ing6-
ceio da liberdade. Sua tend6ncia 6, antes, camufla-lo, num
nuo, comeceia tornar-me crftico.Esta descoberta,contudo,
jogo manhoso, ainda que, is vezes, inconsciente. Jogo ar-
nem me Cazfanatico, nem me df a sensagaode desmorona-
tificioso de palavras em quc apareceou pretende aparecer
mento." Discutia-se, na oportunidade, se a conscientizagao
coho o que defende a liberdade e nio como o que a temp.
de uma situag5o existencial, concreta, de injustiga nio po-
As suas dQvidas e inquietag6es empresta um ar de pro-
deria conduzir os homens deja conscientizados a um "fana-
funda seriedade.Seriedadede quem fosseo zelador da li-
tismo destrutivo" ou a uma "sensagaode desmoronamento
berdade. Liberdade que se confunde com a manutengao do
total do mundo em que estavamesseshomens'
statenquo. Por isto, se a conscientizagaop6e em discussio
A davida, assimexpressa, implicita uma afirmagio nem
este staten qxo, ameaga, entao, a liberdade.
sempreexp]icitada, no que teme a ]iberdade: "Melhor serf
As afirmag6es que fazemos neste ensaio nio sao,de um
que a situagao concreta de injustiga nio se constitua num
dado,auto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de
'percebido' claro para a consci&nciados que a sofrem.'
outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes
Na verdade, por6m, nio 6 a conscientizagao que pode
que das nos denhamsido. Estio sempre ancoradas,como
levar o povo a ''fanatismos destrutivos". Pele contrario, a
sugerimos no inicio destaspfginas, em situag6es concretas.
conscientizagao,que Ihe possibilita inserir-se no processo
Expressam reag6es de proletarios, camponeses ou urbanos,
hist6rico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscrevena
e de homens de classemedia, que vimos observando, dire-
buscade sua afirmagio.
ta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa
'Se a tomada de consci6ncia abre o caminho a express5o
inteng5o 6 continuar com estasobservag6espara retificar
das insatisfag6es sociais, se deve a que estas sio componen-
ou ratificar, em estudosposteriores, pontos afirmados neste
tes reais de uma situagao de opressao.":
ensaio. Ensaio que, provavelmente, irf provocar, em alguns
O medo da liberdade, de que necessariamente nio tem
de seuspossiveisleitores, reag6essectfrias.
consci6nciao seu portador, o faz ver o que nio existe. No Entre estes,havera, talvez, os que nio ultrapassarao suas
funds, o que teme a liberdade se refugia na segurangavital,
primeiras paginas. Uns, por considerarem a nossa posigao,
como dina Hegel,' preferindo-a a liberdade arriscada.
diante do problema da libertagao dos homens, coma uma
: FranciscoWenort, em prefacid a Paulo Frcire, Dlucafao romo prdtica da posigao idealista a maid, quando nio um "blf-bla-bla" rea-
liberdade.
' [...] And it k solely ty risking it#e t tat.Feedom is obtained. [...] The ilzd{ dual, w]to
cionfrio. "Bla-blf-bla" de quem seperde fdando em vocagao
flds Itot staked otis!€1emay, lto doubt, be recognizedm a perxolt; bKt he hm trot attaitted onto16gica,em amor, em diflogo, em esperanga,em humil-
lite truth of tilts recognition an indepmdmt selFcomciomness. Georg W F.Hegel, dade, em simpatia. Outros, por n5o quererem ou nio pode
7'1ze Pltentommot(Ky of A ind. Nova York: Harper and Row, 1967,p. 233.
rem aceitar as criticas e a denincia que fazemos da situagao
32 I PAUL.OFREIRE
PEDAGOGIADO OPRIMIDO 1 33
r'
opressora,situag5oem que os opressoresse "gratificam", Precisamenteporque inscrito, coma radical, num pro-
atrav6s de sua balsagenerosidade. cesso de libertagao, nio pode vicar passivo dianne da vio16n-
Dai que seja este, com sodas as defici6ncias de um ensaio cia do dominador.
puramente aproximativo, um trabalho para homens radi- Por outro lada, jamais serf o radical um subjetivista. E
cais. Cristios ou marxistas, ainda que discordando de nossas que, para ele, o aspectssubjetivo loma corpo numa unida-
posig6es,em grande parte, em parte ou em sua totalidade de dial&tica com a dimensio objetiva da pr6pria ideia, isto
estes, estamos certos, poderao chegar ao fim do texto. &, com os conteQdos concretos da realidade sobre a qual
Na medida, por6m, em que, sectariamente, assumam exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, des-
posig6es fechadas, "irracionais", rechagarao o dialogo que ta forma, se encontram naquela unidade dia16ticade que
pretendemos estabelecerIJ:ravesdeste livro. resulta um conhecer solidfrio com o atuar e este com aque-
E que a sectarizagao& senhprecastradora, pelo fanatismo de le. f exatamente esta unidade dia16ticaque gera um atuar e
que se nutre. A radicalizagadpele contrario, & sempK criadcF um pensar certos na e sabre a realidade para transforms-la.
ra, peta criticidade que a alirhenta. Enquanto a sectarizagao6 O sectfrio, por sua vez, qualquer que seja a opgao de
mitica, por isto ahenante, a radcalizagao & critica, por isto hber- onde parka na sua "irracionalidade" que o cega, nio per-
tadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os cebe ou nio pode perceber a dinimica da realidade, ou a
homens fmem na opgao que fizeram, os engaja cada vez mats percebe equivocadamente
no esiorgo de transformagao da realidade concreta, objedva. At& quando se pensana dial&tica, a sua6 uma "dial&tica
A sectarizagao,porque mitica e irracional, transforma a rea- domesticada
lidade numa fisa realidade, que, assim, n5o pode ser mudada. Esta & a razao, por exemplo, por que o sectfrio de direita,
Parta de quem parka, a sectarizagao& um obstfculo a que, no nosso ensaio anterior, chamamos de "sectfrio de
emancipag5o dos homens. Dai que seja doloroso observar nascenga", pretende frear o processo, "domesticar" o tem-
que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu po e, assim,os homens. Esta 6 a raz5o tamb&m por que o
contrario, isto &, a radicalizag5o do revolucionfrio. homem deesquerda,aosectarizar-se, seequivocatotalmen-
Nio sio raros os revolucionfrios que se tornam reacio- te na suainterpretagao "dia16tica"da realidade,da hist6ria,
nfrios pda sectarizagao em que se deixam cair, ao respon ' deixando-se cair em posig6es fundamentalmente fatalistas.
der a sectarizagaodireitista. Distinguem-se,na medidaem que o primeiro preten-
Nio queremos, por&m, com isto dizer -- e o deixamos de "domesticar" o presente para que o futuro, na melhor
clara no ensaio anterior' -- que o radical se tome d6cil ob- das hip6teses, repita o presence "domesticado", enquanto
jeto da dominag5o. o segundo transforma o futuro em argo preestabelecido,
' Paulo Freire, Ed cafdo comaprdtica da liberdade. uma esp&ciede dado,de sina ou de destino irremedifveis.
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36 I PAULO FREIRE
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JUSTIFICA'nVADA
PEDAGOGIADOOPRIMIDO
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realizar-se,da perman6nciada idustiga. A "ordem" social opressora? Quem sentira, mellor que des, os efeitos da opres-
injusta & a contegeradora,permanente,desta"generosidade
' s5o?Quem, mais que des, para it compreendendoa neces-
que se nutre da morse, do desalento e da mis&iia.' sidade da libertagao? Libertagao a que nio chegarao pelo acaso,
Dado desesperodelta "generosidade"diannede quail mas pda praxis de sua busca; peso conhedmento e reconhecF
quer ameaga,embora t6nuc, a suafonts. Nio pode jamais mento da necessidade de lugar por ela.
engender esta "generosidade" que a verdadeira generosida- Lula que, pda finalidade que Ihe derem os oprimidos,
de esb em ]utar para que desaparegamas raz6es que ali- serf um ato de amor, com o qual se oporao ao desamorcon-
ment2m o falso amor. A balsacaridade, da qual decorre a tido na vio16ncia dos opressores,at6 mesmo quando esta se
m5o estendidado "demitido da vida", medroso e inseguro, revista da balsagenerosidade referida.
esmagadoe vencido.Mio estendidae tr6mula dos esfar- A nossa preocupagao, neste trabalho, 6 apenas apresen'
rapados do mundi, dos "condenados da terra". A grande tar algunsaspectosdo que nos parececonstituir o que vi-
generosidade este em lutar para que, cada vez mais, estas mos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem
maos, sejam de homens ou de povos, se estendam ments de ser forjada comele e nio para ele, enquanto homens ou
em gestos de saplica. Saplica de humildes a poderosos. E se povos, na lula incessante de recuperagao de sua humanida-
vio fazendo, cadavez mais, mios humanas, que trabalhem de. Pedagogia que nagada opressao e de suas causas objeto
e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendi-
da reflexio dos oprimidos, de que resultarf o seu engaja-
zado t6m de partir, por6m, dos "condenadosda terra", dos mento necessfrio na luta por sua libertagao, em que esta
oprimidos, dos esfarrapadosdo mundo e dos que com des
pedagogiasebarf e refari.
realmente se solidarizem. Lutando pda restauragaode sua
O grande problema este em como poder5o os oprimi-
humanidade estarao,sejam homens ou povos, tentando a
dos, que "hospedam" o opressor em si, participar da ela-
restauragaoda generosidadeverdadeira. borag5o, coma seres duplos, inaut6nticos, da pedagogia de
Quem, mellor que os oprimidos,se encontrarf prepa-
sua libertagao. Somente na medida em que se descubram
rado para engender o significado terrivel de uma sociedade
'hospedeiros" do opressor poderao contribuir para o par'
B "Talvez d6s esmolas. Mas, de ondc as bras, sen5o de tuas rapinas cru&is, do tejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam
sofnmento, das lagrimas, dos suspiros?Sc o pobre soubessede onde vem o teu a dualidadena qual ser & parecer e parecer & parecer com
6bolo, ele o recusariaporque teria a impressaode murder a carne de seusir-
o opressor,& impossivel £az6-1o.
A pedagogiado oprimido,
mios e de sugar o langue de seu pr6ximo. Ele te dina estas palavras corajosas:
nio sacies a minha cede com as lagrimas de meus irmios. Nio d6s ao pobre o que n5o pode ser elaborada pelos opressores,& um dos ins-
pao endurecido com os solugos de meus companheiros de mis6ria. Devolve a trumentos para esta descoberta critica -- a dos oprimidos
teu semelhanteaquinoque reclamastee eu te serei muito grata. De que vale
consular um pobre. se tu fazedoutros cem?" S5o Greg6rio de Nissa (330-395),
por si mesmos e a dos opressorespelts oprimidos, coma
'Sermio contra os usurfrios' manifestag6es dadesumanizagio.
48 I PAULOFREIRE PEDAGOGIA
DOOPRIMIDO 1 49
O opressor s6 se solidariza com os oprimidos quando o A objetividade dicotomizada da subjetividade, a nega-
seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de ca- gao desta na anflise da realidade ou na agro sobre ela, &
rfter individual, e passaa ser um ato de amor aqueles.Quan- objetfHsmo.Da mesma forma, a negagao da objetividade,
do, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designagao na anflise como na agro, conduzindo ao subjetivismo que
abstrata e passam a ser os homens concretos, injustigados e se alonga em posig6es solipsistas, nega a agro mesma, por
roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho negar a realidade objetiva, desde que esta passaa ser cria-
comprado, que significa a suapessoavendida. S6 na plenitu- gao da consci6ncia. Nem objetivismo, nem subjetivismo
de deste ato de amal, na sua existenciagao,na sua praxis, se ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em per'
constituia solidariedade verdadeira. Dizer que os homens Hanente dialeticidade.
s5opessoase, como pessoas,sio livres, e nada concretamen- Confundir subjetividadecom subjetivismo,com psico-
te razer para que esta afirmagao se objetive, & uma farsa. logismo, e negar-the a importancia que tem no processo de
Da mesma forma como & em uma situagao concreta -- a transformagaodo mundo, da hist6ria, &cair num simplismo
da opressao -- que se instaura a contradigao opressor-opri- ing&nuo. E admitir o impossivel: um mundo sem homens,
midos, a superagaodesta contradigao s6 se pode verificar tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica
oUet£vammre tamb&m. homens sem mundi.
Dai esta exig6ncia radical, tanto para o opressor que se des- Nio ha um sem os outros, mas ambos em permanente
cobre opressor,quandopara os oprimidos que, reconhecen- integragao.
do-se contradigao daquele, desvelam o mundo da opressao Em Marx, como em nenhum pensadorcdtico, realista,
e percebem os mites que o alimentam -- a radical exig6ncia jamais se encontrarf astadicotomia. O que Marx criticou,
da transformagao da situagao concreta que gera a opressao. e cientificamente destruiu, nio foia subjetividade, mas o
Parece-nosmuito claro, nio apenas neste, mas noutros subjetivismo,o psicologismo.
momentos do ensaio, que, ao apresentarmos esta radical A realidade social, objetiva, que n5o existe por acaso,
exig6ncia -- a da transformagao objetiva da situagao opres- mas como produto da agro dos homens, tamb6m nio se
sora --, combatendo um imobilismo subjetivista que transforma por acaso. Se os homens s5o os produtores desta
transformasse o ter consci6ncia da opressao numa esp&cie realidade e se esta, na "invers5o da praxis", se volta sobre
de espera paciente de que um dia a opress5o desapareceria des e os condiciona,transformar a realidadeopressora&
por si mesma, nio estamos negando o papel da subjetivida- tarefa hist6rica, & tarefa dos homens.
de na luta pda modificagao das estruturas. Ao fazer-seopressora, a realidade implica a exist6ncia
Nio se pode pensar em objetividade sem subjetividade. dos que oprimem e dos que sio oprimidos. Estes,a queen
Nio ha uma sem a outra, que nio podem ser dicotomizadas. caberealmente lutar por sualibertagaojuntamente com os
s6 atrav6sda praxis aut6ntica que, nio sendo "bla-bla-bla", mente subjetivista, que & antes o resultado da arbitrariedade
nem ativismo, mas aWaDe reflexao, 6 possivel £az6-1o. do subjetivista,o qual, fugindo da realidadeobjetiva,cria
Hay elie }tacer h opres67treal to(bda mh opresivaatiadten- uma balsarealidade "em si mesmo". E nio 6 possiveltrans-
do a aq elh la conscfmdade h opresi6tt,Itacimdo Za{t!#amia formar a realidade concreta na realidade imaginfria.
to(hHa mds i71#amante,a! p7t;gottarla.is
E o que ocorre, igualmente, quando a modificagao da
Este fazer "a opress5oreal ainda mais opressori, acres- realidadeobjetiva gereos interessesindividuais ou de classe
centando-thea consci6nciada opress5o",a que Mam se de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, nio ha insergao critica na realidade,
revere,correspondea relag5odial&tica subjetividade-objeti-
vidade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo porque esta6 ficticia; no segundo,porque a insergaocontra-
diria os interesses de classe do reconhecedor.
constitui com o objetivo uma unidade dia16tica,& possivela
A tend6ncia deste 6, entao, comportar-se "neurotica-
praxisautCntica.
mente". O faso existe, mas tanto ele quanto o que dele
A praxis, por&m, & reflexio e agro dos homens sobre o
talvez resulte Ihe podem ser adversos. Dai que deja necessa-
mundo para transforms-lo. Sem ela, 6 impossivel a supera'
rio, numa indiscutivel "racionalizagao", n5o propriamente
gao da contradigao opressor-oprimidos.
nega-lo,mas v6-1ode forma diferente. A "racionalizagao",
': 'A agro Libertadora implica um memento necessaliamenteconsciencee voli- como mecanismo de defesa,termina por identificar-secom
dvo, configurando-se coma a prolongag5o e a inserg5o continuadas dente na o subjetivismo. Ao nio negar o cato, mas distorcer suas
hist6ria. A agro dominadora, entretanto. n5o sup6eetta dimensio com a mesma
necessalicdadc, pols a pi6pria fiincionalidade mecinica e inconsciente da estrutura
verdades,a "racionalizag5o" "retira" as basesobjetivas do
6 mantenedora dc si mesma e, portanto, da domina$o." De um trabalho de Jose mesmo. O faso deixa de ser ele concretamente e passa a ser
Luiz Fish, a quem o autor agradece a possibilidade da citagao.
um miro criadopara a defesada classedo que 6ezo reco-
n Karl Marx e FriedrichEngels,La sagrada
jumilia y otrosescritos.
M&xico:
Grijalbo, 1962, p. 6.(O gri£o 6 nosso.) nhecimento,que, assim,se lorna falso. Destaforma, mais
PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 53
S2 I PAULO FREIRE
uma vez, 6 impossivel a "insergao critica", que s6 exlste na f que nio haveria agro humana sc nio houvesseuma
dialeticidade objetividade-subjetividade. realidadeobjetiva, um mundi como "nio cu" do homem,
Ai este uma dasraz6es para a proibigao, para as dificul- capaz de desafia-lo; como tamb&m nio haveria aWaD hu-
dades-- como veremosno Qltimo capitulo desteensaio--, manase o homem nio fosseum "projeto", um mais a16m
no sentido de que asmassaspopularescheguem a "inserir-se", de si, capaz de captar a sua realidade, dc conhec6-lapara
criticamente, na realidade. E que o opressor sabe muito trans6ormf-la.
bem que esta "insergao critica" das massasoprimidas, na Num pensar dia16tico,agro e mundo, mundo e agro,
realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que estio intimamente solidfrios. Mas a agro s6 & humana
Ihe interessa,pesocontrario, & a perman6ncia delasem seu quando, mais que um puro fazer, & quefazcr,isto &,quando
estadode "imersio" em que, de modo gerd, se encontrRm tamb&m nio se dicotomiza da reflexio. Esta, necessfria a
impotentes em faceda realidadeopressora,como "situagao agro, esteimplicita na exig6ncia que faz Lukfcs da "explica-
limite" que Ihespareceintransponivel. gao is massasde sua pr6pria agro" -- coma esteimplicita
E interessante observar a advert6ncia que faz Lukfcs'' ao na finalidade que ele da a essa explicagao, a de "ativar cons-
partido revo]ucionfrio de que [...] iZdoit, pour employsles cientemente o desenvolvimento ulterior da experi6ncia:
mots de Mam, expliqaer dKtx ramses Imrpropre actio?t aon smZe- Para n6s, contudo, a quest5o nio esb propriamente
mmt a0?zd 'asstlrer h conti?tuitd des a?irimces revoZationnaires em explicar is massas,mas em dialogar com das sobre
dK proto arial, mats a ssi d'waiver comciemmmt le d6veloppe- a sua agro. De qualquer forma, o dever que Lukfcs re-
mmt It6rimr de cesexp&fmces. conhece ao partido revolucionfrio de "explicar is mas-
Ao afirmar etta necessidade,Lukfcs coloca, indiscutivel- sasa sua agro" coincide com a exig6ncia que fazemos
mente, a questao da "insergao critica" a que nos referimos. da insergao critica das massas na sua realidade atrav&s da
Expliqaer aiu massesImrp70pre action & esclarecer e ilumi- praxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a
nar a agro, de um lada, quando a sua relagio com os dados si mesma.''
objetivos que a provocam; de outro, no que diz respeito is A pedagogiado oprimido que, no fundo, & a pedagogia
finalidadesdapr6pria agro. dos homens empenhando-se na luta por sua libertagao, tem
Quando mais as massaspopulares desvelam a realidade suasraizesai. E tem que ter nos pr6prios oprimidos, que se
objetiva e desafiadora sobre a qual das devem incidir sua agro
15 la peoria matedalista de qKe Zoshombres son prodmto de Zm circamultcim y dc
transformadora, tanto mais se "inserem" nela criticamente.
ta educacfdit, y de qKe,por [attto, los Itombresmod$cados son products de cirmm-
Desta forma, estario ativando comdemmmt le ddveloppe- taltdas disrintm y de alta educacidndistfnta. oZHfh que I cirrumtancim se bach
mmt uZtdrieurde suas experi6ncias. cambfarprrcbammte por los hombresy que el proprf o educator necesitaser educado.
Karl Mam, 'Tercera Tesis sabre Feuerbach",in Karl Marx e Friedrich Engels,
'' Gy69y Lukacs, Irttiw. Paris:Etudes et Documentation Intemadonalcs, 1965,p 62. Obrm esc(:gidm.Moscou: Editorial Progresso, 1966, v. 11,p. 404.
PEDAGOGIA OO OPNMDO 1 57
56 I PAULO FAIRE
existancia, os constitui nesta dualidade, na qual se encon- Quem inaugura o 6dio nio sio os odiados, mas os que
tram proibidos de ser. Basra,por6m, que homens estejam primeiro odiaram.
sends proibidos de ser mais para que a situagao objetiva Quem inaugura a negagaodos homens nio sio os que
em que tal proibigao se verifica seja, em si mesma, uma tiveram a sua humanidade negada,mas os que a negaram,
vio16ncia.Vio16nciareal, nio importa que, muitas vezes, negandotamb&ma sua.
adocicadapda fisa generosidadea que nos referimos, por' Quem inaugura a formanio sio os que se tornaram tacos
que gerea onto16gica e hist6rica vocagao dos homens -- a sob a robustez dos cortes, mas os cortes que os debilitaram.
do sermats. Para os opressores, por6m, na hipocrisia de sua "generosi-
Dai que, estabelecida a relagao opressora, esteja inaugu- dade", sio sempre os oprimidos, que elesjamais obviamente
rada a vio16ncia,que jamais foi at& hoje, na hist6ria, defla- chamam de oprimidos, mas, conforme se situem, interna
gradapecosopiimidos. ou externamente,de "essagente" ou de "essamassacega
Como poderiam os oprimidos dar inicio a vio16ncia,se e invejosa", ou de "selvagens", ou de "nativos", ou de "sub-
des sio o resultado de uma vio16ncia? versivos", s5o sempre os oprimidos os que desamam.Sio
Coma poderiam ser os promotores de argo que, ao ins- sempredes os "violentos", os 'bfrbaros", os "malvados",os
taurar-seobjetivamente,os constitui? 'ferozes", quando reagem a vio16ncia dos opressores.
Nio haveria oprimidos, se nio houvesse uma relagao de Na verdade, por6m, por paradoxal que possa parecer, na
vio16nciaque os conforma como'violentados, numa situa- resposta dos oprimidos a vio16ncia dos opressores & que va-
gao objetiva de opressao. mos encontrar o gesto de amor. Conscienteou inconscien-
Inauguram alvio16nciaos que oprimem, os que explo- temente, o ato de rebeliio dos oprimidos, que 6 sempretio
ram, os que nio se recbnhecemnos outros; n5o os opriml ' ou quase tio violento quanto a vio16ncia que os chia, este
dos, os explorados, os que nio sio reconhecidos pecosque ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.
os oprimem coma outta. Enquanto a vio16ncia dos opressoresfaz dos oprimidos
Inauguram o desamor, nio os desamados, mas os que homens proibidos de ser, a resposta destes a vio16nciada-
nio amam,porque apenasseamam. queles se encontra infundida do anseio de busca do direito
de ser.
Os que inauguram o terror nio s5o os d&beis, que a
ele sio submetidos, mas os violentos que, com seu poder, Os opressores,violentando e proibindo que os outros
creama situagao concreta em que se geram os "demitidos sejam, n5o podem igualmente ser; os oprimidos, lutando
da vida", os esfarrapadosdo mundo. por ser, ao retirar-shes o podef de oprimir e de esmagar.
Quem inaugura a tirania nio sio os tiranizados, mas shesrestauram a humanidade que haviam perdido no uso
os ttr&nos. da opressao.
PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 59
58 I PAULOFROM
Por into 6 que somente os oprimidos, libertando-se, po- No moments, por6m, em que o novo poder se endyece
dem libertar os opressores.Estes,enquanto dasse que opri- em 'burocracia"'' dominadora, se perde a dimensio huma-
me, nem hbertam, nem se libertam. nista da lula ejf nio se pode falar em libertagao.
O importante, por isto mesmo, 6 que a luta dos oprimidos Data afirmagao anteriormente feita, de que a superagio
se nagapara superar a contradigao em que se acham. Que esta aut&ntica da contradigao opressores-oprimidos nio esb na
superagaosegao surgimento do homem novo --- n5o mats pura troca de lugar, na passagemde um polo a outro. Maid
opressor, n5o mais oprimido, mas homem hbertando-se. Pred- ainda: n5o este em que os oprimidos de hole, em nome de
samenteporque, se sualuta &no sentido de fazer-seHomem, sua libertag5o, passem a ter novos opressores.
que estavamsendo proibidos de ser, nio o conseguirio se
apenasinvertem os termos da contradig5o.lsto &, se apenas
mudam de lugar nos polos da contradigao. A SITUAgAO CONCRETA DE OPRESSAO E OS OPRESSORES
62 I PAULO FREIRE
PEnxcociA nOOPmMinO 1 63
naturalmente,, segundo seu ponto de vista, subverter, c Na medida em que, para dominar, se esforgampor deter
nao ser mats. a india de busca, a inquietagao, o poder de criar, que carac-
Ter mais, na exc]usividade, n5o 6 um privi]6gio desuma- terizam a vida, os opressoresmatam a vida.
nizante e inaut6ntico dos demais e de si mesmos, mas um Dai quc vio se apropriando, cada vez mais, da ci6ncia
direito intocivel. Direito que "conquistaramcom seueslor- tamb&m, como instrumento para suas finalidades. Da tec-
go, com suacoragem de correr risco". Seos outros -- "esses nologia, que usam como formaindiscutivel de manutengao
da "ordem" opressora,com a qual manipulam e esmagam.:'
invejosos" -- nio t&m, e porque sio incapazese preguigo-
sos,a quejuntam aindaum injustificfvel mau agradecimen- Os oprimidos, como objetos, como quase"coisas", nio
t6m finahdades.As suas,sio asfinalidadesque shesprescre-
to a seus"gestosgenerosos".E, porque "mal-agradecidose
invejosos", s5o semprevistos os oprimidos como seusini- vem os opressores.
Em face de tudo isto 6 que se coloca a n6s mais um
migos potenciais a quem t6m de observar e vigiar.
Nio poderia deixar de ser assim.Se a humanizagao dos problema de importancia inegavel a ser observado no cor-
po destas considerag6es,que 6 o da adesio e consequen-
oprimidos & subversao, sua liberdade tamb&m o 6. Data ne-
ce passagemque fazem representantesdo polo opressor
cessidadede seu constancecontrole. E, quanto mais con-
ao polo dos oprimidos. De sua adesio a luta destespor
trolam os oprimidos, mais os transformam em "coisa", em libertar-se,
algo que &como se fosseinanimado.
Cabe a des um paper fundamental, como sempre tem
asta tend6ncia dos opressoresde inanimar judo e todos, cabido na hist6ria delta luta.
que se encontra em sua insia de posse, se identifica, indis- Acontece, por6m, que, ao passarem de exploradores ou
cutivelmente, com a tend6ncia sadista. EZphca deZdomittjo de espectadoresindiferentes ou de herdeiros da explorag5o
compZetosobre okra persotta (o sabre atta creat ru attimadaJ, diz -- o que & uma coniv6ncia com ela -- ao polo dos explo-
Fromm, es h esmda misma del mp ko sddico. Okra ma era de rados, quase sempre levam consigo, condicionados pda
jormaZar h misma idea esdear qKeel.Plt deZsadismo es cottvertir 'cultura do si16ncio",:'coda a marca de sua origem. Seus
an Itombre m cosa, argo attimado m argo {Ka?timado, ya qtle me- preconceitos. Suasdeformag6es, entre estas,a desconfianga
dfante eZcontrol compZeto y absoZKto eZHdr pierce ttQ c aZfdad
esettcial de h da: h i bHtdd.19 " A prop6sito das "formas dominantes de controle social", cf. Herbert Marcuse,.
I,'Homme undfmmsionel e Eros et Cidllsa fait. ,Paris: Editions de Minuit; 1968-1961,
O sadismo aparece, assim, coma uma das caracteristicas
obras ja traduzidas para o portugu6s.
da consci6ncia opressora, na sua visio necr6fila do mundi. :' A prop6silo de "culture do si16ncio", cf. "Paulo Faire: aWaDcu]tura] para li-
Por isto 6 que o seuamor & um amor is avessas-- um Amor bertagio", Cambridge, Massachusetts,Center for the Study of Development and
a morse e nio a vida. Social Change, 1970. Este ensaio apareceu primeiramente em Harvard Educatio Z
Renew, nos seus ndmeros de maid e agosto de 1970; 6 publicado no Brasil em
ip Fromm, op cit., p. 30.(Os grifos sio nossos.) 1976, pda Paz e Terra, no livro Aldo mlturalpann a libe71iadee OKtrosescri£os.
PEDAGOGIADO OPRIMIOO 1 65
64 I PAULO FREIRE
do povo. Desconfiangade que o povo seja capazde pensar de estersends;ja n5o podem atuar como atuavam;ji nio
certo. Dg querer. De saber. podempermanecercoma estavam smdo.
Deste modo, estio sempre correndo o risco de cair num
outro tips de generosidade,tio funesto quandoo que criti-
camos nos dorhinadores. A SITUAgAO CONCRETA DE OPRESSAOE OS OPRIMIDOS
tional anflise da "consci6ncia colonizada", se reverea sua mteiy? rl tooJtlt this admiration, diz Memmi, in spite of mosey).Albert Memmi,
TateCoZottizerald the Colottized.Boston: Beacon Press,1967,p. X. Em portugues,
:s Cf Cindido Mendes, Afemmto dos dvds; a esqaerda cat61{catto Broil. Rio de Retrato do colonizacZoprcccdido polo retraro do colonizador, 2' ed. Rio de Janeiro:
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. Paze Terra, 1977.
z' Frantz canon, I,os coTdmados
de Za t ezra. M&xico: Fonda de Cultura
z' "0 campon6s se sante inferior ao patr5o porque este Ine parece coma o que
Econ6mica, 1965:[,..] e] coZonizado lto dga de Zibaarse mire Z n eve de Za }tocltey tem o m6ritode sabere dirigir."(Entrevista do autor com um campon&s)
las sek de h }ntafhata.Esa agresil'Madsedtmmta(h m s mhmZos vu a mant#estarZa zz Cf. a este respeito o livro citado de Albert Memmi.
al coZottizado
pdmero contra los sunos.(p. 46) 'Por que o senhor(disse certa vez um camponds participante de um 'circuto
25 How co Zdlite coZonfzerlook a#cr his workers wh ZcpedodicalZy guttning dowlt a dc cultura ' ao educador)n5o explica primeiramente os quadros(referia-seis
crowd of rite coZolttzed?How could tke colorized deny ;titttseg ' so crKeZZyyet 7 ke s ch codificag6es)? Assim(concluiu) nos custard ments e n5o nos d6ia cabega.'
PEnxaocix DOOPRiMiDOI n
7o I Paul.o FREIRE
Somentequando os oprimidos descobrem, nitidamente, pretendendoum jogo divertido em navelpuramentein-
o opressor, e se engajam na lula organizada por sua liberta- telectual. Estamos convencidos, peso contrario, de que a
gao, comegam a crer em si mesmos, superando, assim, sua reflexio, serealmentereflexio, conduz a prftica.
"conviv6ncia" com o regime opressor. Se esta descoberta Por outro lada, se o momentoja & o da agate,estase barf
nio pode ser feita em navelpuramente intelectual, mas da aut6ntica praxis se o saber dela resultante se faz objeto da
agro, o que nos parece fundamental & que estan5o se cinja reflexio critica. E neste sentido que a praxis constituia ra-
a mero advismo, mas estejaassociadaa s&rio empenho de zio nova da consci6ncia oprimida e que a revolugao, que
reflex5o,para que sejapraxis. inaugura o momento hist6rico desta razao, nio pode en-
O dialogs critico e libertador, por isto mesmo que sup6e contrar viabilidade fora dos niveis da consci6ncia oprimida.
a agro, tem de serfrito com os oprimidos, qualquer que seja A nio ser assim, a agro & puro ativismo.
o grau em que estejaa luta por sualibertagao. N5o um dif- Desta forma, nem um diletante jogs de palavras va-
logo is escancaras, que provoca a furia e a repressao maior zias -- quebra-cabega intelectual -- que, por nio ser
do opressor. reflex5o verdadeira, nio conduz a agro, nem agro pda
O que pode e devevariar, em fungao das condig6eshis- aWaD.
Masambas,aWaD
e reflexio, como unidadequenio
t6ricas, em fungao do navelde percepgao da realidade que deve ser dicotomizada.
denhamos oprimidos, 6 o conteQdodo diflogo. Substitui-lo Para isto, contudo, &preciso que creiamos nos homens
pelo antidialogo,pda sloganizagao,pda verticalidade,pe- oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo
los comunicados 6 pretender a libertagao dos oprimidos tamb6m.
com instrumentos da "domesticagao". Pretender a liber- Se esta crenga nos falha, abandonamosa ideia, ou nio
tagao deles sem a sua reflex5o no ato desta libertagao 6 a temos, do diflogo, da reflex5o, da comunicag5o e caimos
transforms-los em objeto que se devessesalvar de um in- nos slogan, nos comunicados, nos dep6sitos, no dirigismo.
c&ndio.E £az6-1oscarrno engodo populista e transforms-los asta 6 uma ameagacontida nasinaut6nticasades6esa causa
em massade manobra. da libertagao dos homens.
Os oprimidos, nos vfrios momentos de sua libertagaol A aWaD politica junta aosoprimidos tem de ser,no funds,
precisam reconhecer-se coma homens, na sua vocagao on- 'agro cultural" para a liberdade,por into mesmo, agro com
to16gica e hist6rica de sa' mats.A reflexio e a agro se im- des. A sua depend6ncia emocional, auto da situagao concreta
p6em, quando nio sepretende, erroneamente, dicotomizar de dominagao em que se acham e que gera tamb6m a suavi-
o conteQdoda forma hist6rica de ser do homem. sio inaut&ntica do mundo, nio pode ser aproveitada a n5o ser
Ao defendermos um permanente esforgo de reflexio peso opressor. Este & que se serve desta depend&ncia para criar
dos oprimidos sobre suas condig6es concretas, nio estamos mais depend6ncia.
PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 75
24 I pAUlOFAIRE
III
Desde o comego mesmo da luta pda humanizagao, peta su.I Nio ha outro caminho senio o da pratica de uma pe
peragao da contradigao opressor-oprimidos, 6 pKciso que des dagogiahumanizadora, em que a lideranga revolucionaria,
se convengam de que estaluta exige deles, a partir do momen- em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar manten-
do-os como quase "coisas", com des estabelece uma rela-
ts em que a aceitam, a sua responsabihdade total. E que este
luta nio sejustifica apenasem que passema ter hberdadepara gao dia16gica permanente.
comer, mas 'liberdade para criar e construiE para admirar e Prftica pedag6gicaem que o m&todo deixa de ser,como
salientamos no nosso trabalho anterior, instrumento do
3ventur2r-se".Tbl liberdaderequerque o individuo sqa ativo
e responsfvel, nio um escravo nem uma penabem-alimentada educador (no caso, a lideranga revolucionfria), com o qual
da mfquina. Nio basta que os homens n5o sejam escravos;se manipula os educandos (no caso os oprimidos) porque & jf a
as condig6es sociais fomentam a exist6ncia de aut6matos, o pr6pria consciCncia.
resultado n5o 6 o amor a vida, :mas o amor a mortc.'s Os opri- '0 m6todo&,na verdade(dizo professorAlvaro VieiraPin-
midos que se "formam" no amor a morte, que caracteiiza o to), a forma exteHor e materializada em atos, que assumea
propriedade fundamental da consci6ncia: a sua intencionahda-
clima da opressao,devem encontrar, na sua lutajo caminho do
de. O pr6prio da consci6ncia & estar com o mundi e este pro-
amor a vida, que nio este apenasno comer mats, se bem que o
cedimento 6 permanente e irrecusfvel. Portanto, a consci6ncia
implique tamb6m e dele n5o possaprescindin
f como homens que os oprimidos t6m de lugar e n5o &,em suaess6ncia,um 'caminho para' algoque n5o & ela,que
estelora dela, que a circunda e que ela apreende por sua capa-
homo "coisas". f precisamente porque reduzidos a quase
cidade ideativa. Por definigao, a consci6ncia 6, pois, m&todo,
'coisas",na relag5o de opressaoem que estate,que se en-
entendido este no seu sentido de mfxima generahdade. Ta] 6
contram destruidos. Para reconstruir-se & importante que
a raiz do m&todo, assim como ta16 a ess6nciada consci6ncia,
ultrapassem o estado de quake "coisas". N5o podem Compa:
que s6 existe enquanto faculdade abstrata e met6dica.""
recer a luta como quase "coisas" para depois serem homens.
Porque assim 6, a educagao a ser praticada pda lideranga
f radical esta exig6ncia. A ultrapassagem dente estado, em revolucionfria se faz cointencionalidade.
que sedestroem, para o de homens, em que se reconstroem, Educador e educandos (lideranga e massas),cointen-
nio 6 a posterior. A luta por esta reconstrugao comegano cionados a realidade, se encontram numa tarefa em que
autorreconhecimento de homens destruidos.
ambos s5o sujeitos no ato, n5o s6 de desvelf-la e, assim,
A propaganda,o dirigismo, a manipulag5o,como ar-
mas da dominagao, nio podem ser instrumentos para esta }' Alvaro Vieira Pinto, Cflncia e exisr&tcia,2' ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986.Deixamos aquio nosso agradecimento ao mestre brasileiro por nos hager
reconstrugao.' permitido cite-lo antes da publicagao de sua obra. Consideramos o trecho cita-
ss Fromm,op-cite,p. 54-5. do de grande importancia para a compreensao de uma pedagogia da problema-
tizagao,que estudaremosno capitulo seguinte
3' No Capitulo IV voltaremos pormenorizadamente a este fema.
QuxNTO MAAS
AnAUSAMOSas relag6es educador-educandos, na
escola, em qualquer de seus niveis (ou fora dela), parece que
mais nos podemos convencer de que estasrelag6esapresen'
tam um carfter especiale marcante -- o de serem relag6es
fundamentalmentenarradorm,dissatadorm.
Narragao de conteQdosque, por isto mesmo, tendem a
petrificar-se ou a fazer-se argo quase mono, sejam valores
ou dimens6es concretas da realidade. yarragio ou disserta-
£4g.qpeimplica um sujeito -- o narrado!.::.e.objetos pa-
cientes,ouvintes -- os educandg$.
Hf uma quase enfermidade da narragao. A t6nica da edu-
cagao& preponderantemente esta-- narrar, semprenarrar.
Falar da realidade coma algo parade, estatico, comparti-
mentado e bem-comportado, quando nio falar ou dissertar
sobre algo completamente alheio a experi6ncia existencial
dos educandos, vem sends, realmente, a suprema inquieta-
gaod€!fa educagao.A suairrefreada3psiall.fqela,o educador
aparece como seu indiscutivel agence, como seu real sujeito,
cujatarefa indeclinivel & "encher" os educandosdos contei-
dos de sua narragao.\Conteidos que sio retalhos da rea-
lidade desconectadosda totalidade em que se engendram
78 I PAULO FREIRE
e em cuja visio ganhariam significagao.A palavra, nestas guards-los e arquiva-los. Margem para serem colecionadores
dissertag6es,se esvazia da dimensio concreta que devia ter ou fichadores das coisasque arquivam. No funds,.por&m, os
ou se transforma em palavra oca, em verbosidadealienada grandes arquivados sio os homens, nesta(na melhor das hi-
e alienante. Dai que seja mais som que significagao e, assim!. p6teses)equivocadaconcepgao"bancfria" da educagao.Ar-
melhor serianio diz€:1a.f
quivados,porque, lora da busca, fora da praxis, os homens
Por into mesmo 6 que uma das caracteristicas.delta fdW nio podemser.Egggdor el$ducandg!!eyquiv991nanledi-
gagggdisserladp11g..+..a..sonoridad!:f..da
palavra.f nio sua da em que, nesta distorcida visio da educagao, n5o ha criati-
volga.l:!ansformadora.
Quatro vezesquatro, dezesseis; Pa;i, ;bade, nio hi'i;;iiifblglggao,.p5q..h4 .$abqf SQ,existe.saber
capital Bel&m,que o educandoaxa, memoriza, repete, sem D4.invengao, na reinveng5o, na busca inquieta:.impaciente.:
perceber o que realmente significa quatro vezesquatro. O pe!!p1991%.que os homens.fazemno.mundi:.com QmuQ.'
que verdadeiramente significa capital, na afirmagao, Para, do e com osfutros. Busca esperangosa tamb&m.
capital Be16m. Bel&m para o Para e Para para o Brasil." Na visio 'bancfria" da educagao,o "saber" &uma doagao
A narragio, de que o educador & o sujeito, conduz os dos que se julgam sfbios aos que julgam nada saber. Doa-
educandosa memorizagao mecinica do conte6do narrado. gaoque se funda numa das mani6estag6es instrumentais da
Mats ainda, a narragaoos transforma em "vasilhas.., em re- ifleologi£l4Lgpre$s5o -- a absolutizagao da ignorancia, que
cipientes a serem "enchidos" pelo educador. Quando mais constituio que chamamos de aljenagao.da.}gnorancia, segun-
va "enchendo" os recipientes com seus "dep6sitos", tanto do a qual era se encontr8 semplE.pgoutrg..
mellor educador serf. Quanto mais se deixem docilmente '0 educador,que aliena a ignorancia, se mant&m em pol
;encher", tanto melhores educandos se.rio.
I sig6esfixas, invarifveis. Serf sempre o que sabe,enquantol
Desta maneira, a educagao se lorna um ato de depositar,'''\ os educandosservo sempre os que nio sabem. A rlgidezl
:em que os educandos sio os depositarios e o educador, o destasposig6esnega a educagaoe o conhecimento comp
depositante. processosde busca.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz "comunicados' O educadorsep6e frente aos educandoscomo sua an-
e dep6sitos que os educandos,meras incid6ncias,recebem tinomia necessfria. Reconhece na absolutizagaoda igno-
pacientemente,memorizam e repetem. Eis aia concepg5o rincia daqueles a raz5o de sua exist6ncia. Os educandos,
'bancfria" da educag5o, em que a Qnica margem de agate alienados,por sua vez, a maneira do escravona dial&ti-
que se oferece aos educandos 6 a de receberem os dep6sitos, ca hegeliana, reconhecem em sua ignorancia a razio da
3' Poderf diner-seque casoscoma estesja nio sucedem nas escolasbrasileiras. exist6nciado educador, mas nio chegam, nem sequer ao
Se realmentc estesn5o ocorrem, continua, contudo, preponderantemente,o modo do escravo naquela dial&tica, a descobrir-se educa-
carfrer narrador que estamoscriticando. doresdoeducador.
82 I PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 83
qualquer tentativa de uma educagaoestimulante do pensar oprimc, mas em transforms-la para que possam faber-se
)
aut6ntico, que nio se deixa emaranhar pdas vis6es parciais "serespara si
da realidade,buscando sempreos nexos que prendem um Este n5o pode ser, obviamente, o objetivo dos opres'
panto a outro, ou um problemaa outro. sores.Dai que a "educagaobancaria", que a des serve,ja-
Na verdade, o que pretendem os opressores "& transfor- mais possa orientar-se no sentido da conscientizagaodos
mar a mentalidade dos oprimidos e nio a situagao que os educandos.
oprime",'P e isto para que, mellor adaptando-os a estasitua- Na educagaode adultos, por exemplo, nio interessaa
gao,melhor os dominem. estavisio 'rbancfria" proper aos educandos o desvelamento
Para into seservem da gpncepgao&da prgticz-;'bancgdg!. do mundi, mas,pesocontrfrio, perguntar-lhesse'Ada deu
d4.edygag4ga quejuntam codauma agro social de carfter o dedo ao urubu", para depois diner-lhes,enfaticamente,
paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpa- que n50, que 'Ada deu o dedo a aura '
tico de "assistidos".Sio casonindividuais, meros "margina- A quest5oeste em qle pensar autenticamente e pengo-
lizados", que discrepam da fisionomia gerd da sociedade. so. O est;l;;lho humanismo desta concepgao"bancfria" se
r 'Esta & boa, organizadae justa. Os oprimidos, coma cason reduz a tentativa de fazer dos homens o seu contrfrio -- o
individuais, sio patologia da sociedadesa, que precisa,por aut6mato, que & a negagao de sua onto16gica vocagao.de
into mesmo, ajustf-los a ela, mudando-lhes a mentalidade ser?naH.
de homens ineptos e preguigosos.' O que n5o percebem os que executam a educagao"ban-
Coma marginalizados, "seres fora de" ou "a margem cfria", deliberadamenteou nio (porque ha um sem-nime-
de", a solugaopara des estaria em que fossem "integrados", ro de educadoresde boa vontade, que apenasnio se sabem
"incorporados" a sociedadesadia de onde um dia "parti- a servigo da desumanizagaoao praticarem o "bancarismo"),
ram", renunciando, como transfugas, a uma vida feliz. 6 que nos pr6prios "dep6sitos" se encontram as contradi-
Sua solugao estaria em deixarem a condigao de ser "seres g6es,apenasrevestidaspor uma exterioridadeque asoculta.
lora de" e assumirem a de "seres dentro de' E que, cede ou tarde, os pr6pt-ios "dep6sitos" podem provo '
Na verdade, por&m, os chamados marginalizados, car um conn'onto com a realidade em devenir e despertar os
que sio os oprimidos, jamais estiveramBornde. Sempre educandos, at6 entio passivos, contra a sua "domesticagao '
estiveramdmtro de. Dentro da estrutura que os transfor- A sua "domesticagao" e a da realidade, da qual se shes
ma em "cerespara outro". Sua solugao, pris, ngo este em fda como algo estatico,pode despertf-los coma contra-
"integrar-se", em "incorporar-se" a asta estrutura que os digao de si mesmos e da realidade. De si mesmos, ao se
]9 Simone dc Beauvoir, EI pe amiettto politico de la dereclu. Buenos Aires:
descobrirem, por experi6ncia existencial, em um modo
Ediciones Siglo Veinte/S.R.L., 1963,:p.34. de ser inconcilifvel com a sua vocagao de humanizar-se.
ciliag5o educador-educandos, rechaga este companhei- mundi e este, um eterno cagadordaqueles,que tivessepor
rismo. E & 16gicoque seja assim. No momento em que distragao "ench6-1os" de pedagos seus.
o educador "bancfrio" vivesse a superagao da contradi- Para .testa equivocada concepgao dos homens, no me-
gao ja n5o seria "bancirio". Jf nio maria dep6sitos. Ja n5o mento mesmo em que escrevo, estariam "dentro" de mim,
tentaria domesticar.Ja n5o prescreveria.Saber com os como pedagosdo mundo que me circunda, a mesaem que
educandos, enquanto estessoubessem com ele, seria sua escrevo,os livros, a xicara de cali, os objetos todos que aqua
cstao, exatamente como dentro deste quarts estou agora.
{o N5o fazemosestaafirmagaoingenuamente.Ja temps afirmado que a edu- Desta forma, nio distingue presentificagaoa cons-
cagio repletea estrutura do poder, data di6culdade que tcm um educador
dia16gicode atuar coerentemente numa estrumra que megao dialogs. Argo fun-
ci&ncia de entrada na consci6ncia. A mesa em que escre-
damental, poem, pods ser frito: dialogar sobre a negagaodo proprio dialogo. vo;'os livros, a xicara de cafe, os objetos que me cercam
E porque os homens, nestavisio, ao receberem o mun- presenga, o educador "bancfrio" escolhe a segunda hip6-
do que neles entra, ja sio serespassivos,cabe a educagao tese.Nio pode engenderque p.erman;cQFi,busca{ se!,.com
apassiva-losmaid ainda e adapts-los ao mundi. Qyanllo os QBtrol!:.E.g.pnl:jy%.simpatua!:D.unga jobrepgCse,..peQ
mais adaptados:papa a concepgao."bancaria !.!anto mais sequer justapor-se aos educandos, des:sim-patizar:.$a(2..hg
"educados",porque adeguado$.aQ mundi. perman6pcia ni!.bipertrofi4:
Esta& uma concepgaoque, implicand6 uma pratica, so- Mas, em nada disto pode o educador 'bancfrio" crer.
mente pode interessar aos opressores,que estario tio maid Conviver, simpatizar implicam comunicar-se, o que a con-
em paz, quanto mais adequadosestejam os homens ao cepgao que informa sua pratica rechaga e teme.
mundi. E tio mais preocupados, quando mais questionan- Nio pode perceber que somente na comunicagao tem
do o mundo estejamos homens.. sentido a vida humana..Que o oensl1.4g.fduc.ado{.jg-
Quando mais se adaptam asgrandes maiorias is 6nalida- mente ganha .autenticidade na autenticidadg.do penlgr
des que shessejam prescritas pdas minorias dominadoras, dos.Sdu caq.do$,.Jm$.dializados #rnbos pda !$g!,!4adfz.PQ!-
de tal modo que caregamaquelasdo direito de ter finalida- talk%. na intercomunjgagao:...poi=istQI.gpensar. daquele
des pr6prias, mais poderao estas minorias prescrever. .paQpods..serum.peBsar para estes nem a estesjmposto-
4iA concepgaodo saber,da concepg3o"bancaria", 6, no fimdo, o que Sartre(EI Dai que n5o deva ser um pensar no isolamento, na torre
liolMey Zascosa. Buenos Aims: Losada S.A., 1965,p. 25'6.) chamatia de concepgao
': Ha professoresque, ao indicar uma relagao bibliogrffica, determinam a lei
'digestiva"ou "alimendcia" do saber.Este6 coma se fosseo "alimento" que o edu-
aurade um livro da pagina 10a pagina 15,e fazem into para ajudar os alunos.
cador vai intmduzindo nos educandos, numa esp&ciede tratamento de engoKla...
PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 89
'i8DI P«ummm:«.
de marfim, mas na e pda comunicagao, em torno, repita- A concepgao "banciria", que a ela serve, tamb&m o
mos, de uma realidade. 6. No moments mesmo em que se funda num concei-
E, se o pensar s6 assim tem sentido, se tem sua conte to mecanico, estftico, espacializado da consci&nciae em
geradora na agro sobre o mundo, o qual mediatiza ascons- que transforma, por isto mesmo, os educandosem rea-.
ci6ncias em comunicag5o, nio seri possivel a sUperposigao pientes, em quase coisas, nio pode esconder sua marca
dos homensaoshomens. necr6fila. Nio se deixa mover, peso inimo .de libertar o
asta superposig5o, que & uma das notas fundamentais da pensamento pda agatedos homens uns com outros na ta-
concepgao "educativa" que estamos criticando, mais uma refa comum de refazerem o mundo e de tornf-lo mais e
vez a situa como pr!!!alda dominagag.# mais humano.
Dela, que parte de uma compreensaobalsados homens Seu inimo & justamente o contrfrio -- o de £gntrolar
-- reduzidos a meras coisas --, nio se posseesperar que pro- o pqn$!r..g.,a .g949:.levandQ.ps bomens go.ajustamento..gQ
voque o desenvolvimento do quetF£gm@ chama de .bil26b!:... .muildp. E inibir o poder df..criaq..de atuar. Mas, ao iazer
mas o desenvolvimento de seu contrario, a necrofUia. into, ao obstaculizar a atuagaodos homens, como sqeitos
Mimtms h Hda(diz Fromm) se camctehza por eZ credmfm- de sua agro, como seres de opg5o, hustra-os.
to de atta maltera estractarada,.AttdonaZ, el india o ttecr($Zo Quando, por6m, por um motivo qualquer, os homens se
ama todd Zo que HOcroce,togo Zo que es mecdttico. I,a persona sentemproibidos de atuar, quando se descobremincapazes
de usar suas faculdades, softem.
necrl$Za es moHda por ult deseode converter ZoorXdnico m mor-
gdnico, do.mirar Zavida mecd7tfcammte,
coho si todd Zaspn- Este sofrimento prov6m "do cato de se haver pertur-
bado o equilibriafhumano" (Fromm).. Mas, o nio po-
sonm dHmtes ./itezm cosa. .Togo!.los Wocesos,smtimimtos y
der atuar, que provoca o .sofrimento, provoca tamb&m
pemamimtos de Hda se tran loTHaRm cosa. I,a memonay tto h
nos homens o sentimento de recusa a sua impot6ncia.
ea?edmda; emery no ser es lo qae mata. EZittdiHdtio necK$1o
Tentam, entao, "restabelecer a sua capacidade de atuar'
pttede reaZ£zarsecolt ult objeto -- Kna.For o una persona -- dttica-
(Fromm).
mmte si h posed;m comemmda na ammaza a SHposes6n es 'Pode, por&m, £az6-1o?E como?", pergunta Fromm. "Um
wild ammaza a dZpismo, si pierce Zaposes{6n,pierce eZcontacts modo, responde:& submeter-sea uma pessoaou a um gru-
con el Wanda. E, mats adiante: 4ma el control y etl eZwto {Ze. po que tenha poder e identi6car-se com des. Por esta parti-
controla6 m(ztfi.Zatodd.4s cipagao simb61ica na vida de outra pessoa, o homem tem a
A opressao, que 6 um controle esmagador, & necr6fila. ilusio de que aqua,quando, em realidade, nio faz mais que
Nutre-se do amor a morte e nio do amor a vida. submeter-se aos que atuam e converter-se em parte deles."'4
Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que 6 ameaga Disco,.infelizmente, parece que nem sempre estlo con-
vencidos os que se inquietam pda causa da libertagao. b
a das, tem o seurem6dio em mais dominagao -- na repres-
sio feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabeleci- que, envolvidos pelo clima gerador da concepgao"banci-
ria" e softendo sua influ6ncia, nio chegam a perceber o seu
mento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo,
significado ou a sua formadesumanizadora. Paradoxalmen-
nio & outra senio a paz privada dos dominadores.
te, entao, usam o mesmo instrumento alienador, num es-
Por into mesmo &que podem considerar -- logicamente,
do seu panto de vista -- um absurdo }te oZmceof a strike forgo que pretendem libertador. E hf at& os que, usandoo
mesmo instrumento alienador, chamam aosque divergem
Zy workers atta (cant) call upon Ellestate itt t te same breath to me
desta prftica de ing6nuos ou sonhadores, quando n5o de
ldoZence iK p tt ng down the strike.4s.
reacionanos.
A educagao coma pratica da dominag5o, que vem sendo
O que nos pareceindiscutivel 6 que, se pretendemosa
objeto desta critica, mantendo a ingenuidade dos educan-
libertagao dos homens, nio podemos comegar por aliens-los
dos, Qgy€.prftlend!, em seu marcgldfQbglco(nem sempre
ou mant6-1osalienados..A libertagao aut6ntiga, que e a bu-
11 percebido por muitos dos que a realizam), 6 indoutrin4::los.
manizagao em processo, n5o. e..uma coisa que SQdeposita
nq.sentido de suaacomodagaoao mundo .daopressaQ. .
Ao denuncia-la, n5o esperamos que as elites domina- .nolhomen$.Nao 6 uma palavra a maisloca,,mitificante=.E
doras renunciem a sua pratica. Serra demasiado ing6nuo -$" 1'PT'aHS,:
que implica a agatee a reflex5o doshomeD&sobreQ.
mundo oaratransforms-lo.
espera-lo.
Nosso objetivo 6 chamar a atengao dos verdadeiros hu- Exatamente porque nio podemos aceitar a concepgao
mecinica da consci6ncia, que a v& como argo vazio a ser en-
manistas para o faso de que des nio podem, na busca da
chido, um dos fundamentos implicitos na visio "bancfria '
libertagao, servir-seda concepgao"bancfria", sob pena de
se contradizerem em suabusca. Assim como tamb6m n5o criticada, 6 que n5o podemos aceitar, tamb&m, que a agate
libertadora se sirva das mesmas armas da dominagao, isto &,
45 Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Sodety. Nova York: Charles
Scribner'sSons,1960,p.130. da propaganda dos slogan, dos "dep6sitos'
96 I PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 97
!.i.pftsao; a segunda, pele contrario. busca a anersdodas Por isto 6 que. certa vez, num dos "circulos de culture"
consci6ncias, de que resulte. sua iTtsnfao cdtfca na realidade. do trabalho que se realiza no Chile, um campon6s,a quem
Quando mais se problematizam os educandos,'coma a concepgaobancfria classificariade "ignorance absolute",
sexesno mundi e com o mundol tanto mais se sentir5o declarou, enquanto discutia, atrav6sde uma "codificagao"
desafiados. Tio mais desafiados, quanto mais obrigados a o conceito antropo16gicode cultura: "Descubro agora que
responder ao desafio. Desafiados,':compreendem o desa- n5o hf mundi sem homem." E quando o educador Ihe dis-
fio na pr6pria agro de captf-lo. Mas, precisamente porque se: 'Admitamos, absurdamente, que todos os homens do
captam o desafio coma um problema em suas conex6es mundi morressem, mas ficasse a.terra, ficassem as arvores,
com outros, num plano de totalidade e nio como algo pe- os passaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, nio serra
trificado, a compreensao resultante tende a tornar-se cres- judo isto mundi?'
centemente critica, por isto, cada vez mais desalienada. 'Naol", respondeu enfatico, "faltaria quem dissesselsto
Atrav&sdela, que provoca novas compreens6es de novos d mKndo".O campon&s quis diner, exatamente, que faltaria
desafios,que vio surgindo no processoda resposta,se v5o a consci6nciado mundi que, necessariamente,
implica o
mundo da consci6ncia.
reconhecendo,mais e mais, como compromisso. Assim 6
que se dao reconhecimentoque engaja. Na verdade, nio ha eu que se constitua sem um ttdo
m. Por sua vez,o lidom constituintedo m seconstituina
A gqucagiti..iS)Qgpeatca da.iiberdade,ao contrfrio da-
constituigao do m comtitufdo. Desta forma, o mundi consti-
quela que 6 pralFq.da dominagao,implica a,negagaodo
homem abstrato, isolado, soho, desligado do mundo,'assim tuinte da consci6ncia,um percebido objetivo seu,ao qual se
in mdona. Dai, a afirmagaode Sartre, anteriormente cicada:
coma tamb6m a negagaQ.dgmundi coma uma realidade
11 ausentedos homens. 'consci6nciae mundi sedio ao mesmotempo.
Na medida em que os homens, simultaneamente refle-
A reflexio que prop6e, por ser aut6ntica, n5o 6 sobre tindo sobresie sobre o mundi, vio aumentandoo cam-
este homem abstrag5o nem sobre este mundo sem homens,
po"ai sua percepgao,vio tamb6m dirigindo sua "mirada'
mas sobre os homcns em suas relag6es com o mundi! a "percebidos" que, at6 entao, ainda que presentesao que
Relag6es em que consci6ncia e mundo se d5o simultanea- Husserl chama de "vis6es de funds"," nio se destacavam,
mentq: Nio ha uma .consci6nciaantese um mundo depois nio estavam postos por si
e vice-versa. Desta forma, nas suas "vis6es de fundo", vio destacando
;A consci6nciae o mundi", diz Sartre,"se d5o ao mesmo percebidos e voltando sua reflexio sabre des.
tempo:exteriorpor ess6ncia
a consci6ncia,
o mundi 6, por es-
s6ncia, reladvo a ela".4z 48 Edmund Husserl, Jdem Pertaining !o 4 Parr Pltettomettolo©Pand to A
Pltmommolcgical Philosophy; General httrodmtloPt to .I ParePhmommoloW, 3' ed.
" J.-P Saraie, op. cit., p 25'6. Londres: Collier Books, 1969, p. 103-6.
percebido em suasimplicag6es mais profundas e, is vezes, .£ duas praticas que estamos analisando. A.jbanc£rig", por 6b-
nem sequer era percebido, se "destaca" e assume o carater vios motivos, insiste em manter ocultas certasraz6esque
# explicam a maneira coma estdosada os homens no mundi
de problemas, portanto, de desafio.
A partir deste memento, o "percebido destacado" j£ 6 #
\
e, para into, mistifica a realidade.4problematizadora, com-
objeto da "admiragao" dos homens, e, como tal, de sua agro
$
permanente 8trav&s do qual os homens v5o percebendo, INCONCLUSAO,E SEU PERMANENTE MOVIMENTO DE BUSCA
criticamente, como estdosendsno mundi comqaee em qae DO SER A4AIS
se acham.
Se,de faso, n5o 6 possivel entend6-1osfora de suasrelag6es A concepgao e a prftica 'rbancfrias", imobilistas, "fixistas",
dia16ticascom o mundi, se estasexistem independentemente terminam por desconhecer os homens coma seres hist6-
de se des aspercebem ou nao, e independentemente de coma / ricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do
as percebem,6 verdadetamb&m que a sua form!.gf-a!!!gb. / carater hist6rico e da historicidade dos homens. Por into
sendo etta ou aquela, €&99o, em grande parte, 4g£gmo.se../ mesmo & que os reconhececomo sexesque estdosada,
como sores inacabados, inconclusos em e com uma realida-
pelllSbamQOm!!!!dg
li Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1967[33' edigao, Sio Pau]o: Paze Terra, 2011].
5z Palavra (aWaD) ; Prixis.
(reflexio)
s,..U.i. .£113S:9= palavreria, verbalismo, bla-bla-bla
(de ren
flexao) = ativismo
5' No Capitulo IV analisamosdetidamcnte esteaspecto,ao discutirmos astccF 5' Algumas deltas Kflex6es nos ioram motivadas em nossos dialogos com o
das antidia16gica e dia16gica da aWaD.
prof Ernani Maria Fiori.
126 I PAULO
FREIO
PEOAGOGIAI)O OPRIMIDO I 127
Com efeito, enquanto a atividade animal, realizadasem destesvalores, destasconcepções e esperanças,como tam-
pfáxis, não implica criação, a transformação exercida pelos bém os obstáculos ao ser mais dos homens, constituem os
homens a implica. temas da época.
E é como serestransformadores e criadores que os ho- Estes não somente implicam outros que são seuscon-
mens, em suaspermanentes relações com a realidade, pro- trários, às vezesantagónicos, mas também indicam tarefas
duzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, a serem realizadas e cumpridas. Desta forma, não há como
os objetos,'mas também as instituições sociais, suas ideias, surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconec-
suasconcepções." tados, coisificados, parados, mas em relação diabética com
Através de suapermanente ação transformadora da rea- outros, seus opostos. Como também não há outro lugar
lidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a histó- para encontra-los que não seja nas relações homens-mun-
ria e se fazem sereshistórico-sociais. do, O conjunto dos temasem interação constitui o "univer-
Porque, ao contrário do animal, os homens podem tridi- so temático" da época.
mensionar o tempo (passado-presente-futuro)que, contudo, Frente a este;"universo"ade temas que dialeticamente
não são departamentos estaques,sua história, em função de se contradizem, os homens tomam suasposições também
suasmesmas criações,vai sedesenvolvendo em permanente contraditórias, realizando tarefas em favor, uns, da manu-
devenir, em que se concretizam suas unidades epocais. Estas, tenção das estruturas, outros, da mudança.
como o ontem, o hoje e o amanhã,não sãocomo se fossem
Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os
pedaços estanques de tempo que ficassem petrificados e nos
temas que são a expressão da realidade, há uma tendência
quais os homens estivessemenclausurados. Se assim fosse,
para a mitificação da temática e da realidade mesma, o que,
desapareceria uma condição fundamental da história: sua
de modo geral, instaura um clima de "irracionalismo" e de
continuidade. As unidades epocais,pelo contrário, estão em
sectarismo.
relação umas com as outras" na dinâmica da continuidade
histórica. Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação
Uma unidadeepocal se caracterizapelo conjunto de mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes a conota-
ideias, de concepções,esperanças,dúvidas, valores, desa- ção dinâmica que os caracteriza.
fios, em interação dialética com seuscontrários, buscando No momento em que uma sociedadevive uma épocaas-
plenitude. A representação concreta de muitas destas ideias, sim, o próprio irracionalismo mitificador passaa constituir
um de seustemas fundamentais, que terá, como seu opos-
M A propósito deite aspecto, cf Karel Kosik, Diabéticado cottcreto,3' ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985. to combatente, a visão crítica e dinâmica da realidadeque,
ó' Em torno dc épocas históricas, cf: Hans Freyer. Teoria de Za (boca acrKíal. empenhando-se em favor do seu desvelamento, desmascara
México: Findo de Cultura Económica, 1958.
sua mitiâcação e busca a plena realização da tarefa humana:
I34 I PAULO
FMIRE PEOAcociA oo OPRIUinO l i35
Como, porém, a codificação é a representação de uma si- A metodologia que dependemosexige, por isto mesmo,
tuação existencial, a tendência dos indivíduos é dar o passo que, no fluxo da investigação, se façam ambos sujeitos da
da representação da situação (codificação) à situação con-
mesma -- os investigadores e os homens do povo que, apa-
creta mesma em que e com que se encontram. rentemente, seriam seu objeto.
Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem Quanto mais assumamos homens uma postura atavana
a comportar-se em face de sua realidade objetiva da mesma investigação de sua temática, tanto mais aprofundam a sua
forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem tomada de consciência em torno da realidade e, explicitan-
saídapara ser o que em verdade é: um desafio ao qual os do sua temática significativa, se apropriam dela.
homens têm que responder. Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo,
Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens tanto quanto.os investigadores, sujeitos da busca de sua te-
exteriorizando sua visão do mundo, sua forma de pensá- mática significativa, sacrifica a obÜetividadeda investigação.
lo, sua percepção fatalista das "situações-limite", sua per- Que os achadosjá não serão "puros" porque terão sofHdo
cepção estática ou dinâmica da realidade. E, nesta forma uma interferênciaintrusa. No caso,em última análise,da-
expressadade pensar o mundo fatalistamente, de pensa-lo queles que são os maiores interessados -- ou devem ser --
dinâmica ou estaticamente, na maneira como realizam seu em sua própria educação.
enfrentamento com o mundo, se encontram envolvidos
Isto revela uma consciência ingênua da investigação te.
seus "temas geradores' mática, para a qual os temas existiriam em sua pureza ob-
Ainda quando um grupo de indivíduos não cheguea ex- jetiva e original, fora dos homens, como se fossem coisa.s.
pressar concretamente uma temática geradora, o que pode Os temas, em verdade, existem nos homens, em suasrela-
parecer inexistênciade temassugere,pelo contrário; a exis- çõescom o mundo, referidosa fatos concretos.Um mesmo
tência de um tema dramático: o temado sílêttdo.Sugereuma fato objetivo pode provocar, numa subunidadeepocal, um
estrutura constituinte do mutismo ante a corça esmagadora conjunto de temas geradores, e, noutra, não os mesmos, ne-
de "situações-limite", em face dasquais o óbvio é a adaptação. cessariamente.
Há, pois, uma relaçãoentre o fato objetivo, a
Ê importante reenfatizar que o tema gerador não se en- percepção que dele tenham os homens e os temas geradores.
contra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na E através dos homens que se expressa a temática signMcaüva
realidade separadados homens. SÓpode ser compreendido e,ao expressar-se,
num certo momento, podejá não ser,exata-
nas relações homens-mundo.
mente, o que antes era, desde que haja mudado sua percepção
Investigar o tema gerador é investigar, reputamos,o pen- dos dados objeüvos aos quais os temas se acham referidos.
sar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar Do ponto de vista do investigador importam na análise
sobre a realidade, que é sua praxis. que faz no processo da investigação,detectar o ponto de
I38 I PAULO
FRnm PEDAGOGIA OOOPNMIDO I I39
Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve pensarpelosoutros nem para os outros, nem semos outros
tem de ser uma operaçãosimpática;'no sentido etimoló- A investigaçãodo pensardo povo não pode ser deitasem
gico da expressão.Isto é, tem de constituir-se na comuni- o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar.E se seu
H
cação,no sentir comum uma realidadeque não pode ser pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar,
vista mecanicistamente compartimentada, simplistamen- na ação, que ele mesmo se superara. E a superação não se
te bem-"comportada", mas, na complexidade de seu per- fm no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de
manente vir a ser. transforma-las na ação e na comunicação.
Sendo os homens seres em "situação", se encontram en-
Investigadores profissionais e povo, nesta operação sim-
pática, que é a investigação do tema gerador, são ambos su- raizados em condições tempo-espaciais que os marcam e
jeitos deste processo. a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir so-
O investigador da temática significativa que, em nome bre sua própria sit acíoHaZídade,
na medida em que, desafia-
da objetividadei;'científica, transforma o :orgânico em dos por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto
inorgânico,o que estásendono que é, o vivo no morto, mesmo, algo mais que estar em sÍtHacionalídade,que é a sua
teme a mudança. Teme a transformação. Vê nesta, que posição fundamental. Os homens sãoporque estãoem situa-
não nega, mas que não quer, não um anúncio de vida, ção. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente
mas um anúncio de morte, de deterioração. Quer conhe- sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a
cer a mudança, não para estimula-la, para aprofunda-la, situação em que estão.
mas para freá-la. Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a
Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, própria condição de existir. Um pensar crítico atravésdo
ao reduzi-la a esquemasrígidos, ao fazer do povo objeto qual os homens se descobrem em "situação". SÓna me-
passivo de sua ação investigadora, ao ver na mudança o dida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade
anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua espessaque os envolve, algo mais ou menos nublado em
marca necr661a. que e sob que se acham, um beco sem saída que os angus-
A investigação da temática, reputamos,envolve a investi- tia e a captam como a situação objetivo-problemática em
gação do próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora que estão, é que existe o engajamento. Da imersãoem que
dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos se achavam, emergem,capacitando-se para se ínsedrem na
homens e entre os homens, e sempre referido à realidade. realidade que se vai desvelando.
Não posso investigaro pensar dos outros, referido ao Desta maneira, a í?tserçãoé um estado maior que a emn-
mundo, se não penso Mas, não penso autenticamentese sãoe resulta da conscientizaçãoda situação. Ê a própria
os outros também não pensam. Simplesmente, não posso consciênciahistórica.
problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que teríamos o programa para uma e outra etapasdo plano.
que jamais é "depositado", se organiza e se constitui na vi- Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos temas
são do mundo dos educandos, em que se encontram seus geradoresou da temática significativa."
temas geradores. Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida
Por ta] razão é que este conteúdo há de estar sempre atravésde fontes secundárias, começam os investigadores a
renovando-se e ampliando-se. primeira etapa de investigação.
A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe Esta,como todo começo em qualquer atividade no do-
interdisciplinar esteuniverso temático recolhido na investi- mínio do humano,pode apresentardificuldadese riscos.
gação,devolvê-lo, como problema, não como dissertação, Riscose dificuldades normais, até certo ponto, ainda que
aoshomens de quem recebeu. nem sempre existentes, na aproximação primeira que fa-
Se, na etapa da alfabetização, a educação problema- zem os investigadores aos indivíduos da área.
tizadora e da comunicação busca e investiga a "palavra É que, neste encontro, os investigadores necessitam
geradora"," na pós-alfabetização, busca e investiga o tema obter que um número significativo de pessoasaceite uma
gerador.
" A propósito da investigação e do "tratamento" das palavras geradoras, ct
z; Cf. Paulo Freire, Educaçãocomoprática da líbepzüde.
id.,ibid.
momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um
trabalho no campo; que assistama reuniões de alguma as- segundo momento da "descodificação" ao vivo, que os in-
sociação popular, observando o procedimento de seus par- vestigadores estão realizando da realidade que se lhes apre'
ticipantes, a linguagem usada,as relaçõesentre diretoria e senta como aquela "codificação" sa{ getleds.
sócios; o papel que desempenham asmulheres, os jovens. E Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos
indispensávelque a visitem em horas de lazer; que presen- expondo como perceberam e sentiram este ou aquele
ciem seus habitantes em atividades esportivas; que conver- momento que mais os impressionou, no ensaio "des-
gem com pessoas em suas casas,registrando manifestações codificador", cada exposiçãoparticular, desafiandoa
em torno das relações marido-mulher, pais-61hos; afinal, todos como descodiflcadoresí-ida
mesma realidade,vai
que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para estacom- re-presentificando-lhes a realidade recém-presentificada
à sua consciência intencionada a ela. Neste momento,
preensão primeira da área.
A propósito de cada uma destas visitas de observação "re-admiram" sua admiraçãoanterior no relato da "ad-
compreensiva devem os investigadores redigir um peque- -miração" dos demais.
no relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em Desta forma, a "cisão" que fez cada um da realidade, no
seminário,no qual se vão avaliandoos achados,quer dos processoparticular de sua descodi6cação,os remete, dialogi-
investigadoresprofissionais, quer dos auxiliares da investiga- camente, ao todo "cindido" que seretotaliza e seoferece aos
ção.'representantesdo povo, nestasprimeiras observações investigadores a uma nova análise, à qual se seguirá novo se.
que realizaram. Daí que este seminário de avaliação deva minário avaliativo e crítico, de que participarão, como mem-
bros da equipe investigadora, os representantespopulares.
7z Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo -- e genial exemplo
-- dc como pode um eschtor captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela
Quanto mais andem o todo e o re-totalizam na re-admira-
prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais -- a estrutura de seu pensamento. çãoque fazem de sua ad-miração, mais vão aproximando-se
O educador brasileiro Paujo de Torso escreveu um ensaio, cujo valor e interesse
dos núcleos centrais das contradições principais e secundá-
destacamos, sobre a obra de Guimarães Rosa,onde analisa o papel deste autor
como descobridor dos temas fundamentais do homem dó sertão brasileiro: rias em que estão envolvidos os indivíduos da área.
U6 I PAUta FREIRA
PEDAGOGIA DO OPmMIOO I I47
Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investi- de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, por-
gação, ao se apropriarem, através de suas observações, dos tanto, diversificação programática para o seu desvelamento.
núcleos centrais daquelas contradições, os investigadoresjá Daí que a preocupação básica dos investigadores deva
estariam capacitados para organizar o conteúdo programá- centrar-se no conhecimento do que Goldmann" chama de
tico da ação educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação "consciência real" (e6etiva) e "consciência máxima possível"
reflete as contradições, indiscutivelmente estará constituído Real conscíoasness ís the resí4Zt of rate m Itíple obstacZes
da temática significativa da área. and deüatiotts tltat the dWerentjactors of empírica! reaZíty
Não tememos, indusive, afirmar que a margem de acer- put íttto oppositíon a?td submítjor reaZizatío?tby tais potentiaZ
to para a ação que se desenvolvessea partir destes dados conscioKsness.
Daí que, ao nível da "consciênciareal", os
seria muito mais provável que a dos conteúdos resultantes homens se encontrem limitados na possibilidade de per-
das programações verticais. ceber mais além das "situações-limite", o que chamamos
Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os de "inédito viável
investigadores se deixem seduzir. Por isto é que, para nós, o "inédito viável" [que não pode
Na verdade,o básico,a partir da inicial percepçãodes- ser apreendido no nível da "consciência real" ou eÊetiva] se
te núcleo de contradições, entre as quais estará incluída a concretiza na "ação editanda", cuja viabilidade antes não
'BI
principal da sociedadecomo uma unidade epocal maior, é era percebida. Há uma relação entre o "inédito viável" e a
estudar em que nível de percepçãodelas se encontram os 'consciência real" e entre a "ação editanda" e a "consciência
indivíduos da área. máxima possível
No fundo, estascontradiçõesse encontram constituindo A "consciência possível" (Goldmann) parece poder iden-
'situações-limite", envolvendo temas e apontando tarefas. tificar-se com o que Nicolai'P chama de "soluções praticáveis
Se os indivíduos se encontram aíZehdosa estas "situações- despercebidas" (nosso "inédito viável"), em oposição às "so-
limite", impossibilitadosde "separar"-sedelas,o seutema a luções praticáveis percebidas" e às "soluções e6etivamente
l $
H.
elas referido será necessariamente o dojataZismo e a "tarefa'
a ele associada é a de quase não terem ta?x;Pa.
Por isto é que, embora as "situações-limite" sejam rea-
lidades objetivas e estejam provocando necessidades nos in-
realizadas", que correspondem à "consciência real" (ou e6e-
tiva) de Goldmann.
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na
primeira etapa da investigação, terem chegado à apreensão
divíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que mais ou menos aproximada do conjunto de contradições,
delas tenham.
28 Lucien Goldmann, The HuPntanSdmces alü Philosophy. Londres: The Chancer
Uma "situação-limite", como realidade concreta, pode Press,1969,p.118
provocar eünindivíduos de áreasdiferentes, e até de subáreas 7p Aiidré Nicolaj, Cúmportemmt économque et strttüures socíales. Paras: PUE 1960.
são o abeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, mar-se em codiâcações propagandísticas, em face das quais
se dá à sua análise crítica, sua preparação deve obedecer a os indivíduos não têm outra descodificação a fazer, senão a
certos princípios que são apenasos que norteiam a confec- que se achaimplícita nelas,de forma dirigida. No segundo,o
ção das puras ajudas visuais. risco de fmer-se umjogo de adivinhação ou "quebra-cabeça'
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessa- Na medida em que representam situações existenciais,
riamente, devem representar situações conhecidas pelos as codificações devem ser simples na sua complexidade e
indivíduos cuja temática se busca,o que as faz reconhe- oferecer possibilidades plurais de análises na sua descodifi-
cíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se cação,o que evita o dirigismo massificadorda codificação
reconheçam. propagandística. As codificações não são sZogam,são objetos
Não seria possível, nem no processo da investigação, cognoscíveis, desaâos sobre que deve incidir a reflexão críti-
nem nas primeiras fases do que a ele se segue, o da devo- ca dos sujeitos descodificadores.''
lução da temática significativa como conteúdo progra- Ao oferecerem possibilidades pluraisli de análises,
mático, propor representaçõesde realidades estranhas no processo de sua descodificação, as codificações, na
aosindivíduos.
i' As codificações, de um lado, são a mediação entre o "contexto concreto ou
ooAs codificações também podem ser orais. Consistem, neste caso, na apre- real", em que se dão os fatos, e o "contexto teórico", em que sã;oanalisadas;de
sentação, em poucas palavras, que fazem os investigadores, de um problema outro, são o objeto cognoscível soba o que o educador-educando e os educandos-
existenciale a que se segue sua "descodificação".A equipe do Instituto de educadores, como sujeitos cognoscentesi incidem sua reflexão crítica. Cfl Paulo
Desarrollo Agropecuario, Chile, vem usando-os com resultados positivos em Freire, Áçâb cair ru! para a líbnzlade e Ostras escHtos.Rio de Janeiro: Paz e Terra,
investigações temáticas. 1976]13' edição, São Pau]o: Paz e Terra, 201 1].
Na medida em que operacionalizam estes círculos,84 reaçõesmais significativas ou aparentemente pouco signifi
com a descodificaçãodo material elaboradona etapa cativas dos sujeitos descodificadores.
anterior, vão sendo gravadas as discussões que serão, na No processo da descodi6cação,cabe ao investigador, au-
k
que se segue,analisadaspela equipe interdisciplinar. Nas )aliar desta, não apenas ouvir os indivíduos, mas desafia-los
reuniões de análise deste material, devem estar presen- cada vez mais, problematizando, de um lado, a situação
tes os auxiliares de investigação, representantes do povo, existencial codi6cada e, de outro, as próprias respostas que
e alguns participantes dos "círculos de investigação". O vão dando aqueles no decorrer do diálogo.
seu subsídio, além de ser um direito que lhes cabe, é Desta forma, os participantes do "círculo de investigação
indispensável à análise dos especialistas. Ê que, tão su- temática" vão extrojetando, pela força catártica da metodo-
jeitos quanto os especialistasdo ato do tratamento des- logia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mun-
tes dados, serão ainda, .epor isto mesmo, retificadores e do e dos outros, que possivelmente não extrojetariam 'm
$ ratificadores da interpretação que fazem estesdos acha-
circunstâncias diferentes.
158 I PAULO
FWIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I IS9
O tema do desenvolvimento,por exemplo, ainda que Neste esforço de "redução" da temática significativa, a
situado no domínio da economia, não Ihe é exclusivo. Re- equipe reconhecerá a necessidadede colocar alguns temas
ceberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia, fundamentais que, não obstante, não foram sugeridospelo
como da psicologia social, interessadas na questão do câm- povo,quando dainvestigação.
bio cultural, na mudança de atitudes, nos valores, que inte- A introdução destestemas, de necessidadecomprovada,
ressam,igualmente, a uma filosofia do desenvolvimento. corresponde, inclusive, à dialogicidade da educação, de que
Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas de- tanto temos falado. Sea programação educativa é dialógica,
cisões que envolvem o problema, o enfoque da educação etc. isto signi6ca o direito que também têm os educadores-edu-
Desta forma, os temas que foram captadosdentro de candos de participar dela, incluindo temas não sugeridos. A
uma totalidade jamais serão tratados esquematicamente. estes, por sua função, chamamos "temas dobradiça'
Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois temas
sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao no conjunto da unidade programática, preenchendo:'"um
serem "tratados", perdessem esta riqueza, esvaziando-se de possível vazio entre ambos, ora contêm, em si, as relações a
sua corça, na estreiteza dos especialismos. serem percebidas entre o conteúdo geral da programação e
Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, a visão do mundo que esteja tendo o povo- Daí que um destes
dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o temas possa encontrar-se no "rosto" de unidades temáticas.
projeto de "redução" de seu tema. O conceito antropológico de cultura é um destes "temas
No processo de "redução" deste, o especialista busca os dobradiça", que prendem a concepçãogeral do mundo que
seus núcleos fundamentais que, constituindo-se em unida- o povo esteja tendo ao resto do programa. Esclarece, através
des de aprendizagem e estabelecendo uma sequência entre de sua compreensão, o papel dos homens no mundo e com o
si, dão a visão geral do tema "reduzido' mundo, como seresda transformação e não da adaptação.;'
Na discussão de cada prometo específico, se vão anotando Feita a "redução"" da temática investigada, a etapa que se
as sugestões dos vários especialistas. Estas ora se incorpo- segue, segundo vimos, é a de sua "codificação". A da escolha
ram à "redução" em elaboração, ora constarão dos peque- " A propósito da importância da análise do conceito antropológico de cultura
nos ensaios a serem escritos sobre o tema "reduzido", ora cfl Paulo Freire, Edmaçãocomoprática da liberdade.
uma coisae outra. " Seencaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma cota
cidade cuja autonomia se encontra nas inter-relações de suas unidades que são,
H Estes pequenos ensaios, a que se juntam sugestões bi- também, em si, lota! (ides, ao mesmo tempo em que sãoparcíalídaüs da totali
bliográficas, são subsídios valiosos para a formação dos dademaior. Os temas, sendo cm si totalidades, também sãoparcialidades que,
em interação, constituem as unidades temáticas da totalidade programática.
educadores-educandos que trabalharão nos "círculos de
Na "redução" temática, que é a operação de "cigao" dos temas enquanto tola
cultura
cidades,se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas parcialidades.
dora, e não 'bancária", é que, em qualquer dos casos,os ho- dele e, objetivando-o, podem conhecê-lo e transforma-lo
$ mens sesintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seupensar, com seu trabalho.
suaprópria visão do mundo, manifestadaimplícita ou expli- Os animais, que não trabalham, vivem no seu "supor-
citamente, nas suassugestões e nas de seus companheiros. te" particular, a que não transcendem. Daí que cadaespécie
Porque esta visão da educaçãoparte da convicção de animal viva no "suporte" que Ihe corresponde e que estes
que não pode sequer presentearo seu programa, mas tem suportes" sejam incomunicáveis entre si, enquanto: que
de busca-lo dialogicamente com o povo, é que se inscreve franqueáveis aos homens.
como uma introdução à pedagogiado oprimido, de cuja Mas, se os homens são seres do quefazer é exatamente
elaboração deve ele participar. porque seu fazer é ação e reflexão. É praxis. É transforma-
ção do mundo. E, na razão mesmaem que o quefazeré
praxis, todo fazer do quefazertem de ter uma teoria que
166 I PAULO
FREIO
necessariamenteo ilumine. O quefazer é teoria e prática. É Por isto, na medida em que a liderança nega a praxis
reflexão é ação. Não pode reduzir-se, como salientamos no verdadeira aos oprimidos, se esvazia, consequentemente,
capítulo anterior, ao tratarmos a palavra, nem ao verbalis- nasua;
mo, nem ao atavismo. Tende, desta forma, a impor sxa palavra a eles, tornando-
A tão conhecida afirmação de Lênin:'9 "Sem teoria revo- a, assim, uma Ê)alavrafalsa, de caráter dominador.
lucionária não pode haver movimento revolucionário" sig- Instala, com este proceder, uma contradição entre seu
nifica precisamente que não há revolução com verbaZísmos, modo de atuar e os objetivos que pretende, ao não entender
nem tampouco com atíüsmo,mas com p7üxis,portanto, que, sem o diálogo com os opümidos, não é possívelpraxis
com regerãoe anãoincidindo sobre as estruturas a serem autêntica, nem para estes nem para ela.
transformadas: O seu quefazer, ação e reflexão, não pode dar-se sem a
O esforço revolucionário de transformação radical destas ação e a reflexão dos outros, se seu compromisso é o da
estruturas não pode ter, na liderança, homens do qx(;fazere, libertação.
nas massasoprimidas, homens reduzidos ao purojnza'. A praxis revolucionária somente pode opor-se à praxis
Este é um ponto que deveria estar exigindo de todos daselites dominadoras. E é natural que assim seja, pois são
quantos realmente se comprometem com os oprimidos, quefazeresantagónicos.
com a causa de sua libertação, uma permanente e corajosa O que não se pode realizar,na praxis revolucionária,é
reflexão. a divisão absurda entre a praxis da liderança e a das massas
Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando a oprimidas, de forma que a destas fosse a de apenas seguir as
transformação da realidade em que se acham oprimidos, determinações da liderança.
reclama uma teoria da ação transformadora, esta não pode Esta dicotomia existe, como condição necessária,na si-
deixar de reconhecer-lhes um papel fundamental no proces- tuação de dominação, em que a elite dominadora prescreve
so da transformação. e os dominados seguem as prescrições.
Não é possível à liderança tomar os oprimidos como me- Na praxis revolucionária há uma unidade, em que a lide-
ros fazedoresou executoresde suas determinações; como rança -- sem que isto signiâque diminuição de sua respon-
meros ativistas a quem negue a reflexão sobre o seu próprio sabilidadecoordenadora e, em certos momentos, diretora
fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atua- -- não pode ter nas massasoprimidas o objeto de sua posse.
ção da liderança, continuam manipulados exatamente por Daí que não sejam possíveisa manipulação, a sloganiza-
quem, por suaprópria natureza,não pode fazê-lo. ção, o "depósito", a condução, a prescrição, como consti-
tuintes da praxis revolucionária. Precisamente porque o são
19Vladimir Lenin, "What is to be Dome?",in Henry M. Christman(arg.),
da dominadora.
Esseltcial\Morasof lzttin. Nova York: BanhamBooks, 1966.p- 69.
H ao luxo de não pensar em tonto dela, são as elites domina- os faria rebeldese refratários, como se pâs em evidência
doras, para que, assim pensando, melhor as conheçam e, nos condadosmanufatureiros, habilita-los-ia a ler folhetos
melhor conhecendo-as,melhor asdominem. Daí que o que
sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristan-
poderia parecer um diálogo destascom as massas,uma co-
municação com elas, sejam meros "comunicados", meros dade; torna-los-ia insolentes para com seus superiores e,
'depósitos" de conteúdos domesticadores. A sua teoria da em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir
contra eles o braço forte do poder."9'
p5 Fernando Garcia, hondurenho, aluno nosso, num curso para latino-ameiica
nos em Santiago, Chile, 1967. 9 R. Niebuhr, op. cit., p. 118-9
Pregam a harmonia de classes como se estas fossem Inseguros na sua dualidade de seres "hospedeiros" do
aglomerados fortuitos de indivíduos que olhassem, curio- opressor, de um lado, rechaçando-o; de outro, atraídos por
sos,uma vitrina numa tarde de domingo. ele, em certo momento da confrontação entre ambos, é fácil
A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opres- àquele poder obter resultados positivos de sua ação divisória.
sores entre gi. Estes, mesmo divergentes e, até em certas Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o
ocasiões, em luta por interesses de grupos, se unificam, quanto lhes custa aceitarem o "convite" que recebem para
imediatamente, ante uma ameaça à classe. evitar que se unam entre si. A perda do emprego e o seu nome
Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possí- numa "lista negra",:que signi6ca portas que se fecham a eles
vel entre seusmembros na buscade sua libertação. SÓem para novos empregos, são o mínimo que lhes pode suceder.
casos excepcionais, não s6 é possível; mas até necessária, A sua insegurança vital, por isto mesmo, se encontra di-
a harmonia de ambos para, passadaa emergência que os retamente ligada à escravização de sua pessoa,como subli-
uniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais nhou o bispo Split, anteriormente citado.
desapareceuna emergência desta união. E que, somente na medida em que os homens criam o seu
A necessidadede dividir para facilitar a manutenção do es- mundo, que é mundo humano, e o criam com seu trabalho
tado opressor se manifesta em todas as ações da dasse domi- transformador, eles se realizam. A realização dos homens, en-
nadora. Sua inteúerência nos sindicatosj favorecendo certos quanto homens, está, pois, na realização deste mundo. Desta
'representantes" da dasse dominada que, no fundo, são seus maneira,se seu estar no mundo do trabalho é um estar em
liglül
representantes,e não de seuscompanheiros; a "promoção" de dependênciatotal, em insegurança, em ameaçapermanente,
If
indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam sig- enquanto seu trabalho não ]he pertence, não podem realizar-se.
ni6car ameaça e que, "promovidos", se tomam "amaciados"; a O trabalho não livre deixa de ser um quefazer realizador de
distribuição de benessespara uns e de dureza para outros, tudo sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua "rei6cação'
sãoformas de dividir para manter a "ordem" que lhes inteKssa. Toda união .dos oprimidos entre si, que já sendo ação,
Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, aponta outras ações, implica, cedo ou tarde, que percebendo
sobre um dos pontos débeisdos oprimidos: a sua inseguran' eleso seu estado de despersonalização,descubram que, dividi-
ça vital que, por sua vez, já é fruto da realidade opressora dos, serão sempre presas fáceis do dirigismo e da dominação.
em que se constituem. Unificados e organizados,'oPporém, farão de suadebilida-
demonstrar: 1) que a existênciadas classesvai unida a determinadas faseshistó- de corça transformadora, com que poderão recriar o mun-
ricas de desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classesconduz à ditadura do, tornando-o mais humano.
do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é, por si, mais que o trânsito
até a abolição de todas a$classes,para uma sociedade sem classes." Mam-Engels, lo' Aos camponeses,por isto mesmo, é indispensávelmantê-los olhadosdos
Obra esç(Zgü&u. operários urbanos, como estes e aqueles dos estudantes que. não chegando a
que a verdadeira organização não possa ser estimulada pelos Se as massas associam à sua emersão, à sua presença no
dominadores. Isto é tarefa da liderança revolucionária. processo, sobre sua realidade, então sua ameaça se concre-
Acontece, porém, que grandes frações destasmassaspo- tiza na revolução.
pulares,já agora constituindo um proletariado urbano, so- Chame-se a este pensar certo de "consciência revolucio-
bretudo nos centros mais industrializados do país, ainda que nária" ou de "consciência de classe", é indispensável à revo-
revelando uma ou outra inquietação ameaçadora, carentes, lução, que não se Eazsem ele
contudo, de uma consciênciarevolucionária, se veem a si As elites dominadoras sabem tão bem disto que: em cer-
l mesmas como privilegiadas. tos níveis seus,até instintivamente, usam todos os meios,
l A manipulação, com toda a sua série de engodos e promes- mesmo aviolência física, para proibir que asmassaspensem.
Têm uma profunda intuição da força criticizante do
sas,encontra aí, quase sempre, um bom terreno para vingar.
O antídoto a esta manipulação está na oganização criti- diálogo. Enquanto quem:paraalguns representantes da li-
}'
camente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, derança revolucionária, o diálogo com as massaslhes dá
não estáem depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas a impressão de ser um quefazer "burguês e reacionário",
na p70bZematízação de sua posição no processo. Na probZelnta- para os burgueses, o diálogo entre as massas e a liderança
tização da realidade nacional c da própria manipulação. revolucionária é uma real ameaça,que há de ser evitada.
Bem razãotemWcHorti lzquandodiz: 'Ttxla políücade esquer' Insistindo aselites dominadoras na manipulação, vão ino-
da se apoia nas massaspopulans e depende de sua consciênda. culando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal.
Sevier a confundi-la, perderá as raízes,pairará no ar à esperada Esta manipulação se faz ora diretamente por estaselites,
queda inevitável, ainda quando possa ter, como no caso brasi- ora indiretamente, através dos líderes populistaspEstes lí-
leiro, a alusãode fmer a rwolução pelo simples giro à volta do deres, como salienta Weaort, medeiam as relações entre as
poder" e, esquecendo-se dos seus encontros com as massas para elites oligárquicas e as massaspopulares.
o eúorço de organização, perdem-se num "diálogo" impossível Daí que o populismo se constitua, como estilo de ação
com as elites dominadoras.Daí que também terminem mani- política, exatamente quando se instala o processo de emer-
puladas por estaselites de que nsulta caÜ não raramente, num são das massas em que elas passam a reivindicar sua partici-
jogo puramente de cúpula, que chamam de realismo. pação, mesmo que ingenuamente.
A manipulação, na teoria da açãoantidialógica, tal como O líder populista, que emerge neste processo, é também
a conquista a que serve, tem de anestesiar asmassaspopula- um ser ambíguo. Precisamente porque fica entre as massas
res para que nao pensem. e as oligarquias dominantes, ele é como se fosse um ser an-
H
.}
Enquanto populista, porém, na medida em que simples- está desarmado de leis e de elementos concretos de ação ime-
mente manipula em lugar de lutar pela verdadeira organi- diata para a defesa da economia do povo. É preciso, pois, que
zação popular, este tipo de líder em pouco ou quase nada o povo se orEattíze,não só para defender seus próprios inte-
serve àrevolução. resses,mas também para dar ao governo o ponto de apoio
Somente quando o líder populista supera o seu cará- indispensável à realização dos seus propósitos." E prossegue:
l ter ambíguo e a natureza dual de sua ação e opta decidi- 'Preciso de vossa tlníão, preciso de que vos orgattízeissolida-
l damente pelas massas,deixando assim de ser populista, riamente em sindicatos;predso que Éormeisum bZocojorte e
renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolu- coesoao lado do governo para que este possa dispor de toda
ã
cionário de organização.Neste momento, em lugar de a corça de que necessita para resolver os vossos próprios pro-
E mediador entre massase elites,;é contradição destas,o blemas. Preciso de vossa lÍBido para que possa lutar contra os
que leva as elites a arregimentar-se para freá-lo tão rapi- sabotadotes,
para que não fique lJrísí07tei70
dos interessesdos
damente quanto possam. espemZadotese dosgamttdososem prejuízo dos interessesdo
É interessante observar a dramaticidade com que cargas povo". E, com a mesma ênfase:"Chegou, por isto mesmo,
falou às massasobreiras,num primeiro de maio de suaúlti- a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes:
ma etapa de governo, conclamando-as a unir-se. uni-vos todos nos vossos sindicatos, como corçaslivres e or-
'Quero dizer-vos, todavia (afirmou cargas no célebre ganizadas.Na hora presentenenhum governo poderásabsistír
discurso), que a obra gigantesca de renovação, que o meu otl dispor dejorça st!/icímte para a.ssaa.srealizaçõessetzãocorar
governo está começando a empreender, não pode ser le- com o apoio das alga?tízações operária."in
vada a bom termo sem o apoio dos trabalhadores e a sua Ao apelar veementemente às massas para que se orga-
}
cooperação cotidiana e decidida." Após referir-se aos pri- nizassem, para que se unissem na reivindicação de seus di-
meiros noventa dias de seu governo, ao que chamava "de reitos e ao dizer-lhes, com a autoridade de chefe de Estado,
um balanço das dificuldades e dos obstáculos que, daqui e dos obstáculos, dos freios, das dificuldades inúmeras para
dali, se estão levando contra a ação governamental", dizia realizar um governo com elas, foi indo, daí em diante, o seu
11
em linguagem diretíssima ao povo o quanto ]he calavam governo, aos francos e barrancos até o desfechotrágico de
'na alma o desamparo, a miséria, a carestia de vida, os agosto de 1954.
l salários baixos... os desesperos dos desvalidos da fortuna Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de
e as reivindicações do povo que vive na esperança de me- governo,uma inclinaçãotão ostensivaà organizaçãodas
l lhores dias'
Em seguida,seu apelo se vai fazendo mais dramático e ii3 Getúlio Vergas, em discurso pronunciado no Estádio C.R. Visco da Gama
em I' de maio de 1951,in Ogovemotrabalhistano Brmíl. Rio deJaneiro:Livraria
objetivo: "Venho dizer que, neste momento, o governo ainda José Olympio Editora, p 322-4.(Os grifos são nossos.)
i
massas populares, consequentemente ligada a uma série Invasão cultural
de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses
nacionais, possivelmente aselites reacionárias não tivessem Finalmente'jsurpreendemos na teoria da ação antidialógica
chegado ao extremo a que chegaram. uma outra característica fundamental -- a invasão cultural
Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, que, como as duas anteriores, serve à conquista.
ainda que discretamente, das massaspopulares, não mais Desrespeitando aspotencialidades do ser a que condicio-
como exclusivo mediador das oligarquias, se estasdispõem na, a invasão cu]tura] é a penetração que fazem os invasores
E de força para frei-lo. no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua vi-
Enquanto aaçãodo líder semantém no domínio dasforças sãodo mundo, enquanto lhes leiam a criatividade, ao ini-
paternalistas e sua extensão assistencialista,pode haver diver- birem sua expansão.
gênciasacidentais entre ele e grupos oligárquicos feridos em Neste sentido, a invasão cu]tura], indiscutivelmente alie-
seusinteresses,dificilmente, porém, diferençasprofundas. nante. realizada maciamente ou não, é sempre uma violên-
É'que estas formas assistencialistas,como instru- cia ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade
mento da manipulação, servem à conquista. Funcionam ou se vê ameaçado de perdê-la.
}
como anestésico.Distraem as massaspopulares quan- Por isto é que, na invasão cultural, como de resto em to-
}
K to às causas verdadeiras de seus problemas, bem como das as modahdadcs da ação antidialógica, os invasores são os
quanto à solução concreta destesproblemas. Fracionam autores e os amoresdo processo, seu sujeito; os invadidos, seus
as massaspopulares em grupos de indivíduos com a es- objetos. Os invasoresmodelam; os invadidos são modelados.
perança de receber mais. Os invasons optam; os invadidos seguem sua opção. Pelo me-
Há, contudo, em toda esta assistencializaçãomanipula- nos ê esta a expectativa daqueles. Os invasores atuam; os in-
dora, um momento de positividade. vadidos têm a ilusão de que amuam,na atuação dos invasores.
Ê que os grupos assistidosvão sempre querendo inde- A invasãocu]tura] tem uma dupla face.De um lado, éjá
finidamente mais e os indivíduos não assistidos,vendo o dominação; de outro, é tática de dominação.
exemplo dos que o são,passama inquietar-se por serem as- Na vaidade, toda dominação implica uma invasão,não ape-
sistidos também. nas única, visível, mas às vezescamuflada, em que o invasor se
E, como não podem as elites dominadoras assistencializar apresentacomo se posseo amigo que ajuda. No fundo, invasão é
a todos, terminam por aumentar a inquietação dasmassas. uma forma de dominar económica e culturalmente o invadido.
A liderança revolucionária deveria aproveitar a contradi- Invasão realizada por uma sociedade matriz, metropolita-
ção da manipulação, problematizando-a às massaspopula- na, numa sociedade dependente, ou invasão implícita na do-
res, com o objetivo de sua organização. minação de uma dasse sobre a outra, numa mesma sociedade.
Ê
Como manifestação da conquista, a invasão Cu]tura] cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer
conduz à inautenticidade do ser dos invadidos. O seu pro- com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, fa-
grama responde ao quadro valorativo de seus atorcs, a seus lar a seu modo.
padrões, a suasfinalidades. O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se
Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutu-
antidialógica e ideológica, jamais possa scr deita através da ra, é tão dual quanto o ser da cultura invadida.
problematização da realidade e dos próprios conteúdos pro- É esta dualidade, já várias vezes referida, que explica os
gramáticos dos invadidos. invadidos e dominados, em certo momento de suaexperiên-
Aos invasores,na sua ânsia de dominar, dc amoldar os cia existencial, como um m quase "aderido" ao ta opressor.
invadidos a seus padrões, a seus modos de vida, só interessa É preciso que o eu oprimido rompa estaquase"aderên-
saber como pensam os invadidos seu próprio mundo para cia" ao tK opressor, dele "afastando-se", para obetívá-Zo,so-
domina-los mais.i'4
mente quando se reconhece criticamente em contradição
E importante, na invasãocu]tura], que os invadidos ve- com aquele.
jam a sua realidade com a ética dos invasorese não com Esta mudança qualitativa da percepção do mundo, que
a sua.Quanto mais mimetizados fiquem os invadidos, me-
!
gõnica à formação humanista dos homens, desdeque ciência n9 Cf. L. Althusser, op- cit
n6 I PAULO FMIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 217
'serespara outro" do falso "ser para si" de quem dependem, expressara verdade, bem como os que se centram no es-
os homens também já não se desenvolvem autenticamente. tudo de sua renda bruta. Parece-nosque o critério básico,
E que, assimroubados na sua decisão,que se encontra no primordial, está em sabermos se a sociedade é ou não um
ser dominador, seguem suasprescrições. "ser para si". Se não é, todos estes critérios indicarão sua
Os oprimidos só começam a desenvolver-sequando, supe- modernização, mas não seu desenvolvimento.
rando a contradição em que se acham, se fazem "serespara si' A contradição principal das sociedades duais é, realmen-
Se,agora,analisamosuma sociedadetambém como ser,pa- te, esta -: a das relações de dependência que se estabelecem
rece-nos condudente que, somente como sociedade "ser para entre elas e a sociedade metropolitana. Enquanto não supe-
si", sociedade livre, poderá desenvolver-se. ram esta contradição, não são "seres para si" e, não o sendo,
Não é possívelo desenvolvimento de sociedadesduais, não se desenvolvem.
reflexas, invadidas, dependentes da sociedade metropolita- Superadaa contradição, o que antes era mera transformação
na, pois que são sociedades alienadas, cujo ponto de decisão 'assistencializadora"em beneficio, sobretudo, da matriz, se tor-
política, económica e cultural se encontra cora delas -- na na desenvolvimento verdadeiro, em beneficio do "ser para si'
sociedade metropolitana. Esta é que decide dos destinos, Por tudo isto é que as soluçõespuramentereformistas
em última análise, daquelas, que apenas se transformam. que estassociedadestentam, algumas delas chegandoa as-
Como;'seres para outro", a sua transformação interessa sustar e até mesmo a apavorar a faixas mais reacionárias de
precisamente à metrópole. suas elites, não chegam a resolver suas contradições.
Por tudo isto, é preciso não confundir desenvolvimento Quase sempre, senão sempre, estassoluções reformistas
com modernização. Esta, sempre realizada induzidamente, são induzidas pela própr.ia metrópole, como uma respos-
ainda que alcance certas faixas da população da "sociedade ta nova que o processo histórico Ihe impõe, no sentido dc
satélite", no fundo interessa à sociedade metropolitana. manter sua hegemonia.
A sociedadesimplesmente modernizada, mas não desen- É como se a metrópole dissessee não precisa dizer: "faça-
volvida, continua dependentedo centro externo, mesmo mos as reformas, antes que as sociedades dependentes façam
que assuma, por mera delegação, algumas áreas mínimas a revolução'
de decisão. Isto é o que ocorre e ocorrerá com qualquer E, para logra-lo, a sociedademetropolitana não tem outros
sociedadedependente, enquanto dependente. caminhos senão a conquista, a manipulação, a invasão econó-
Estamos convencidos dcinquc, para aÊerirmos se uma mica e cultural(às vezes,militar) da sociedade dependente.
sociedade se desenvolve ou não, devemos ultrapassar os Invasão económica e cultural em que as elites dirigen-
critérios que se fixam na análisedc seus índicespa' capi- tes da sociedade dominada são, em grande medida, puras
ta de ingresso quc, "estatisticados", não chegam sequer a metástases das elites dirigentes da sociedade metropolitana.
por homens que, desta ou daquela forma, participavam dos É possível,também, em função de certas condiçõeshis-
estratos sociais dos dominadores. tóricas objetivas, que já tenham chegado, senão à visualiza-
Em um dado momento dc sua experiência existen- ção clara de sua opressão, a uma quase "claridade" desta.
cial, em certas condiçõeshistóricas, estes,num ato de Se, no primeiro caso, a sua "aderência" ou "quase aderên-
verdadeira solidariedade (pelo menos assim se deve es- cia" ao opressornão lhes possibilita localiza-lojora delas,'"
perar), renunciam à classeà qual pertencem e aderem no segundo, localizando-o, se reconhecem, em nível crítico,
aos oprimidos. em antagonismo com ele
Seja esta adesão o resultado de uma análise científica da No primeiro, com o opressor "hospedado" nelas, a sua
realidadeou não, ela implicita, quando verdadeira, um ato ambiguidade as faz mais temerosas da liberdade. Apelam
de amor, de real compromisso.':'
para explicaçõesmágicas ou para uma visão falsa de Deus
iz' No capítulo anterior citamos a opinião dc Guevara a este propósito.:Dc
izz Uma coisa são as necessidadesde classe;outra, a "consciência de classe".A
Camelo Torres, disse Germano Guzman: 'IJogou-se inteiro porque entregou
propósito de "consciên;cia d;eclasse", cf G, Lukács, HÍstQireet comcimceíie clmse.
tudo. A cada hora manteve com o povo uma atitude viral dc compromisso,
Paras:Les Éditions de Minuit, 1960.
como sacerdote,como cristão e como revolucionário." Germano Guzman,
!
(estimulada pelos opressores), a quem fatalisticamente porque coirmanadas na mesma representatividade, contra-
transferem a responsabilidade de seu estado de oprimidos.':' dição das elites dominadoras.
Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperança- Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificil-
das,estasmassasdificilmente buscam a sua libertação, em mente se rompe. Continua com a chegada ao poder, em
cujo ato de rebeldia podem ver, inclusive, uma ruptura que as massas realmente sc sentem e sabem que estão.
desobedientecom a vontade de Deus -- uma espéciede Isto não diminui em nada o espírito de luta, a coragem,
F enõentamento indevido com o destino. Daí a necessidade. a capacidadede amar, o arrojo da liderança revolucionária.
que tanto enfatizamos,de problematizá-las
em torno dos A liderança de Fidel Castro e de seuscompanheiros, na épo-
mitos de que a opressão asnutre. ca chamados de "aventuKiros irresponsáveis" por muita gente,
No segundo caso,isto é, quandojá ganharam a "clare- liderança eminentemente dialógica, seidentMcou com asmas-
za" ou uma quase "clareza" da opressão,o que as leva a sassubmetidasa uma brutal violência, a da ditadura de Batista.
localizar o opressorjora delas, aceitam a luta para superar Com isto não queremos aârmar que esta adesãose deu tão
a contradição em que estão. Neste momento, superam a facilmente. Exigiu o testemunho corajoso, a valentia de amar
distância que medeia as objetivas "necessidadesde classe' o povo c por ele sacrificar-se.Exigiu o testemunho da esperan-
da "consciência de classe' ça nunca desfeita de recomeçar após cada desastre, animados
Na primeira hipótese, a liderança revolucionária se pela vitória que, forjada por elescomo povo, não seria apenas
faz, dolorosamente, sem o querer, contradição das massas deles, mas deles e do povo, ou deles enquanto povo.
também. Fidel polarizou pouco a pouco a adesão das massas que,
Na segunda, ao emergir a liderança, recebe a adesão além da objêtiva situação de opressãoem que estavam,já
quase instantânea e simpática das massas,que tende a cres- haviam, de certa maneira, começado, em função da expe-
cer durante o processo da ação revolucionária. riência histórica, a romper sua "aderência" com o opressor.
O caminho, então, que a liderança faz até elas é espon- O seu "afastamento" do opressor estava levando-as a "ob-
taneamente dialógico. Há uma empatia quase imediata en- jetivá-lo", reconhecendo-se, assim, como sua contradição an-
tre asmassase a liderançarevolucionária.O compromisso tagânica. Daí que Fidel jamais se haja deito contradição delas.
entre elas se sela quase repentinamente. Sentem-se ambas, Uma ou outra deserção,uma ou outra traição registradaspor
iz' Em conversacom um sacerdotechileno, de alta responsabilidade intelecmal
Guevara no seu Relatosde h GuerraRevoZacio?ária,em que se
e moral, que esteveno Reciteem 1966,ouvimos dele que "ao visitar, com um refere às muitas adesõestambém, eram de ser esperadas.
colega pernambucano, várias famílias residentes em Mocambos, de condições Desta maneira, a caminhada que faz a liderança revo-
de miséria indiscutível, e ao perguntar-lhes como suportavam viver assim, escu-
tava sempre a mesma resposta: 'Que posso fazer? Deus quer assim, só úe resta
lucionária até as massas,em função de certas condições
conformar:me.' históricas, ou sc realiza horizontalmente, constituindo-se
desconfiança, pode tomar esta desconfiança e aquele alhea- qKe molestamalgo, Feto tto se?tmuy rápidos ttí (fícíenres; Zos
mento como se fossem índicesde uma natural incapacida- podremos anKZar. E em outro momento: Falta completa
de delas.Reduz, então, o que é um momento histórico da de incorporacióH campesí a auttqKe tios van perdtettdo el míe-
consciênciapopular ao que seria deficiência intrínseca das do y se logra Zaadmíracíón de Zescampesímos.
Es ana tarda
massas.E, como precisa de sua adesão à luta para que possa le?ztízy pacÍe7tre.':'
haver revolução, mas desconfia das massas desconfiadas. se
':5 Importante a leitura de Erich Fromm. "The Application of Humanist
deixa tentar pelos mesmos procedimentos que a elite domi- Psychoanaiysis [o Marxist Theory", in Socialist HKnultísm. Anchor Books, 1996;
nadora usa para oprimir. e Reuben Osborn, Àfalxísmo ypsícoaltálísls. Barcelona: Ediciones Península.,1967.
izó EI díodo dc CIK m Bolíüa. México: Siglo XXI, p. 131-52.
2« I PAULO FREIO
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 225
Explicando este medo e estapouca eficiência dos campo- dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a transfor-
l
neses,vamos encontrar neles, como consciênciasdomina- mação do mundo em co-laboração.
dasfo seu opressor introjetado. O eu antidialógico, dominador, transforma o ta domina-
As próprias formas comportamentaisdos oprimidos, a do, conquistado, num mero "üto".iz7
sua maneira de estarem sendo, resultante da opressão e que O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o ta
levam o opressor, para mais oprimir, à prática da ação cul- que o constitui. Sabetambém que, constituídopor um ta --
tural que acabamos de analisar, estão a exigir do revolucio- um não eu --, essettl que o constitui seconstitui, por suavez,
nário uma outra teoria da ação. como a, ao ter no seu eu um ta. Desta forma, o m e o tu pas-
O que distingue a liderança revolucionária da elite do- sam a ser, na diabéticadestas relações constitutivas, dois m que
se amem dois eu.
minadora não são apenasseusobjetivos, mas o seu modo
de aduar distinto. Se amuam igualmente os objetivos se Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito
identiâcam. que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lu-
Por esta razão é que afhmamos antes ser tão paradoxal que gar disto, há sujeitos que se encontram para a p70núttcíado
a elite dominadora problematize as relações homens-mundo mundo, para a sua transformação.
aos oprimidos, quanto o é que a liderança revolucionária Se as massas populares dominadas, por todas as con-
não ofaça. siderações já feitas, se acham incapazes, num certo mo-
Entremos, agora, na análise da teoria da ação cultural mento histórico, de atender à sua vocação de ser sujeito,
dialógica, tentando, como no caso anterior, surpreender será pela problematização de sua própria opressão, qae
seus elementos constitutivos. implica sempreKmajorma q aZquerde ardo, que elas pode-
rão fazê-lo.
Isto não significa que, no quefazer dialógico, não haja
A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: lugar para a liderança revolucionária.
A CO-LABORAÇÃO, A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO. E A SÍNTESE Significa, apenas, que a liderança não é proprietária das
CUIIUjtAL massaspopulares, por mais que a ela se tenha de reconhecer
um papel importante, fundamental, indispensável.
Co-laboração A importância de seu papel, contudo, não Ihe dá o direito
de comandar as massaspopulares, cegamente, para a sualiber-
Enquanto na teoria da açãoantidialógica a conquista, como tação. Se assim fosse, esta liderança repetiria o messianismo
sua primeira característica,implica um sujeito que, con-
quistando o outro, o transforma em quase "coisa", na teoria Cf. Martin Buber, Xoy tú. Buenos vires: Nueva Visión, 1969
2H I PAULO
FRnM PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I 235
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dominador nas mesmas proporções em que diâculta a ação um conhecimento Caso de si mesmos e dela. É necessário
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uni6cadora indispensável à prática libertadora.
Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si
mesma, uma situação divisória. Começa por dividir o a
desideologizar.
Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos
não pode ser um trabalho de pura sloganização ideológi-
opr.amidona medida em que, mantendo-o numa posição de
ca. E que este, distorcendo a relação autêntica entre o su-
'aderência" à realidade,que se Ihe afigura como algo todo-
jeito e a realidade objetiva, divide também o colgnoscitívo
poderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, expli- do afetivo e do atívo que, no fiando, são uma totalidade
cadoras deste poder. não dicotomizável.
Parte de seu m se encontra na realidade a que se acha
O fundamental, realmente, na ação dialógico-libertado-
'aderido", parte fora, na ou nas entidades estranhas, às quais ra, não é "desaderir" os oprimidos de uma realidade mitiâ-
responsabiliza pela corçada realidade objetiva, dente à qual
cada em que se acham divididos, para "aderi-los" a outra.
nada Ihe é possível fazer. Daí que sqa este, igualmente, um
O objetivo da ação dialógica está?pelo contrário, em
m dividido entre o passadoe o presenteiguaise o futuro
proporcionar que os oprimidos, reconhecendoo porquêe o
sem esperançaque, no fundo, não existe. Um m que não
comode sua "aderência", exerçam um ato de adesãoà praxis
se reconhece sendo,por isto que não pode ter, no que ainda
verdadeira de transformação da realidade injusta.
vem, a futuridade que deveconstruir na união com outros.
Significando a união dos oprimidos, a relação solidária
Na medida em que seja capas de romper a ',aderên-
entre eles não importam os níveis reais em que se encon-
cia", objetivando em termos críticos a realidade de que as-
trem como oprimidos, implica também, indiscutivelmente,
sim emerge, se vai uniâcando como a, como sujeito, em consciência de classe.
face do objeto. É que, neste momento, rompendo igual-
A "aderência" àrealidade, contudo, em que seencontram,
mente a falsa unidade do seu ser dividido, se indivídua
verdadeiramente. sobretudo os oprimidos que constituem as grandes massas
camponesas da América Latina, está a exigir que a consciên-
Destamaneira, se,para dividir, é necessáriomanter o m
cia de classeoprimida passe, senão antes, pelo menos conco-
dominado "aderido" à realidade opressora, miti6cando-a,
mitantemente, pela consciênciade homem oprimido.
para o esforço de união, o primeiro passo é a desmitificação
da realidade. Propor a um camponêseuropeu, como um problema,
a sua condição de homem, Ihe parecerá, possivelmente,
Se para manter divididos os oprimidos se faz indispensá- algo estranho.
vel uma ideologia da opressão,para a sua união é imprescin-
Já não é o mesmo fazê-lo a camponeses latino-america-
dível uma forma de açãocu]tura] atravésda qual conheçam
nos, cujo mundo, de modo geral, se "acaba" nas Ê'inteiras
o pmquêe o comode sua "aderência"à realidadeque lhes dá
do latifúndio, cujos gestos repetem, de certa maneira, os
«O I PAULO FMIRE
PEOAGOGIA DOOPNMIOO I 241
Um testemunhoque, em certo momento e em certas
condições, não frutificou, não está impossibilitado de, ama-
nhã, vir a &utificar. É que, na medida em que o testemunho
não é um gesto no ar, mas uma ação,um enâentamento,
com o mundo e com os homens, não é estático. .É algo di-
l e coisifica; no segundo, a organização só corresponde à sua
natureza e a seu objetivo se é, em si, prática da liberdade.
Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina in-
dispensávelà organização com a condução pura dasmassas.
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nâmico, que passaa fazer parte da totalidade do contexto É verdade que, sem liderança, sem disciplina, sem or-
da sociedadeem que se deu. E, daí em diante,já não para.'" dem, sem decisão,sem objetivos, sem tarefas a cumprir e
Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, "anes- contas a prestar, não há organização e, sem esta, se dilui a
tesiando" as massaspopulares, facilita sua dominação, na ação revolucionária. Nada disso, contudo, justifica o mane.
ação dia16gica, a manipulação cede seu lugar à verdadeira jo das massas populares, a sua "coisiâcação'
organização. Assim como, na ação antidialógica, a mani- O objetivo da organização, que é libertador, é negado pela
pulação serve à conquista, na dialógica, o testemunho, 'coisificação" das massaspopulares, se a liderança revolucio-
ousado e amoroso, serve à organização. Esta, por sua vez, nária as manipula. "Coisificadas" já estão elas pela opressão.
não apenas está ligada à união das massas populares como Não é como "coisas", já dissemos, e é bom que mais uma
é um desdobramento natural desta união.
vez digamos, que os.oprimidos se libertam, mas como homens.
Por isto é que afirmamos: ao buscar a união, a liderança A organização das massaspopulares em classeé o
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já busca, igualmente, a organização dasmassaspopulares. processono qual a liderança revolucionária, tão proibida
E importante, porém, salientar que, na teoria dialógica quanto estas,de dizer sua palavra,';' instaura o aprendiza-
da ação, a organização jamais será a justaposição de indiví- do da pronúHcíado mundo, aprendizadoverdadeiro,'por
duos que, gregarizados, se relacionem mecanicistamente. isto, dialógico.
Este é um risco de que deve estar sempre advertido o Daí que não possa a liderança dizer sua palavra sozinha,
verdadeiro dialógico. mas com o povo- A liderança que assim não proceda,que
Se,para a elite dominadora, a organização é a de si mes- insista em impor sua palavra de ordem, não organiza, mani-
ma, para a liderança revolucionária, a organização é a dela pula o povo. Não liberta, nem se liberta, oprime.
comas massaspopulares.
iJ4 Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, din-
No primeiro caso, organizando-se, a elite dominadora es- tor da Faculdadede Medicina de uma universidade cubana, disse:'A revolução
trutura cadavez mais o seupoder com que melhor domina implica três 'P' --: Pulava, Povoe lblvota. A explosãoda Pólvora, continuou,
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aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em b:rasca,na
l "' Enquanto processo, o testemunho verdadeiro que, ao ser dado, não íi'u- ação, de sua libertação.
nificou, não tem. neste momento negativo, a absolutização de seu õ'acasso. Pareceu-nosinteressante observar, durante a conversação, como este médico
Conhecidos são os casosde líderes revolucionários cubo testemunho não mor. revolucionário insistia na raiana, no sentido em que a tomamos neste ensaio
reu ao serem mortos pela repressão dos opressores. '\ Isto é, palavra como ação e reflexãc} -- palavra como praxis.
%6 I PAULO FREIO
PEDAGOGIAOO OPRIMIDO I 247
Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de
l Por isto é que os invadidos, qualquer que seja o seu nível,
sér também revoluçãocultural. docilmente ultrapassam os modelos que lhes prescrevem
A investigação dos temas geradores ou da temática sig- os invasores.
nificativa do povo, tendo como objetivo fundamental a Como, na síntese cultural, não há invasores, não há mo-
captação dos seus temas básicos, só a partir de cujo conheci- delos impostos, os atores, fazendo da realidade objeto de
mento é possívela organizaçãodo conteúdo programático sua análise crítica, jamais dicotomizada da ação, se vão inse-
para qualquer açãocom ele, se instaura como ponto de par- rindo no processohistórico, como sujeitos.
tida do processoda ação,como síntesecultural. Em lugar de esquemasprescritos,liderançae povo,
Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos identificados, criam juntos as pautas para sua ação. Uma
desteprocesso:o da ínvestllgação taítáticd e o da anãocomo e outro, na síntese, de certa forma renascem num saber e
síntese mZtaraZ.
numa ação novos, que não são apenas o saber e a ação da
Esta dicotomia implicaria que o primeiro seria todo ele liderança, mas dela e do povo. Saber da cultura alienada
um momento em que o povo estariasendo estudado,ana- que, implicando a açãotransformadora, dará lugar à cultu-
lisado, investigado, como objeto passivo dos investigadores, ra que se desaliena.
o que é próprio da ação antidialógica. O saber mais apurado da liderança se refaz no conheci-
Deste modo, esta separaçãoingênua significaria que a mento empírico que o povo tem, enquanto o desteganha
ação, como síntese, partiria da ação como invasão. mais sentido no daquela.
Precisamenteporque, na teoria dialógica, estadivisão não Isto tudo implica que, na síntese cultural, se resolve -- e
se pode dar. a investigação temática tem como sujeitos de seu somente nela -- a contradição entre a visão do mundo da
processo não apenas os investigadores profissionais, mas tam- liderança e a do povo, com o enriquecimento de ambos.
bém os homens do povo, cujo universo temático se busca. A síntesecultural não nega as diferenças entre uma visão
Neste momento primeiro da ação, como síntesecultu-
e outra, pelo contrário, se funda nelas. O que ela nega é a
ral, que é a investigação,sevai constituindo o clima da cria- invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível
tividade, que já não se deterá, e que tende a desenvolver-se subsídio que uma dá à outra.
nas etapas seguintes da ação. A liderança revolucionária não pode constituir-se cora do
Este clima inexiste na invasão cultural que, alienante, povo, deliberadamente o que a conduz à invasãocultural
amortece o ânimo criador dos invadidos e os deixa, en- inevitável.
quanto não lutam contra ela, desesperançados e temerosos Por isto mesmo é que, ainda quando a liderança, na hi-
de correr o risco de aventurar-se,sem o que não há criati-
pótese referida neste capítulo, por certas condições históri-
vidade autêntica.
cas,aparececomo contradição do povo, seu papel é resolver
«8 I PAULO FREIRA
PEOACOGIA DO OPR]MIOO I 249
esta contradição acidental. Jamais poderá fazê-lo através da ação ao estímulo exdusivo desta reivindicação, ou sobrepor-se
'invasão", que aumentaria a contradição. Não há outro ca- a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. Algo
minho senão a síntese cultural.
que não chegou a ser ainda para o povo um "destacado em si'
Muitos erros e equívocoscomete a liderança ao não levar No primeiro caso,incorreria a liderançarevolucionária
em conta esta coisa tão real, que é a visão do mundo que o povo no que chamamosde adaptaçãoou docilidade à aspiração
tenha ou esteja tendo. Visão do mundo em que se vão encon- popular. No segundo, desrespeitandoa aspiraçãodo povo,
trar explícitos e implícitos os seus anseios, as suas dúvidas, a sua cairia na invasão cultural.
esperança,a sua forma de ver a liderança, a sua percepção de si A solução está na síntese. De um lado, incorporar-se ao
mesmo e do opressor, as suas crenças religiosas, quase sempre povo na aspiraçãoreivindicativa. De outro, plobkmatízaro
sincréticas, o seu fatalismo, a sua reação rebelde. E tudo isto, significado da própria reivindicação.
como já afü'mamos, não pode ser encarado separadamente, Ao íazê-lo, estará problematizando a situação histórica
porque, em interação, se encontra compondo uma totalidade. real, concreta, que, em sua totalidade, tem, na reivindicação
Para o opressor,o conhecimento destatotalidade só Ihe salarial, uma. dimensão.
interessa como ajuda à sua ação invasora, para dominar ou Deste modo, ficará claro que a reivindicação salarial,so-
manter a dominação.Para a liderança revolucionária, o co- zinha, não encarna a solução definitiva. Que esta se encon.
nhecimento desta totalidade Ihe é indispensável à sua ação, tra, como afirmou o bispo Split, no documentojá citado
como síntese cultural.
dos bispos do Terceiro Mundo, em que "se os trabalhadores
Esta, na teoria dialógica da ação, por isto mesmo que não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu
é sílttese,não implica que devem ficar os objetivos da ação trabalho, todas as reformas estruturais serão ineficazes
revolucionária amarrados àsaspiraçõescontidas na visão do O fundamental, por isto, insiste o bispo, é que eles de-
mundo do povo. vem chegar a ser "proprietários e não vendedores de seu
Ao ser assim, em nome do respeito à visão popular do trabalho", porque "toda compra ou venda do trabalho é
mundo, respeito que realmente deve haver, terminaria a li- uma espécie de escravidão'
derança revolucionária apassivada àquela visão. Ter a consciênciacrítica de que é preciso ser o proprie-
Nem invasãoda liderança na visão popular do mundo, tário de seu trabalho e de que "este constitui uma parte da
nem adaptaçãoda liderança às aspirações,muitas vezesin- pessoahumana" e que a "pessoa humana não pode ser ven-
gênuas,dopovo. dida nem vender-se.' é dar um passo mais além das soluções
Concretizemos. Se, em um dado momento histórico, a as- paliativas e enganosas.É inscrever-senuma ação de verda-
piração básicado povo não ultrapassaa reivindicação salarial, a deira transformação da realidade para, humanizando-a, hu-
nossover, aliderança pode cometer dois erros. Restringir sua manizar os homens.
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Este livro foi composto na tipologia
Dante MT Std, em corpo 12/15,
e impresso em papel ofF-whitc no
SistemaCameron da Divisão Gráfica da
Distribuidora Record. Capa: Vector Budon
Fotos: {Stock Ícapa) e Ricardo CaZÍxto,
arquivos de cita Freira (goto do autor)