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azer o aluno conhecer

a liberdade, tornando-se
apto a se construir criti-
ca e responsavelmente: foi este
o noble objetivo ao qual Paulo
Freire se dedicou durante toda
a vida. Mas como altar um voo
tio alto num mundo onde, cada
vez mais, "a pedagogia domi-
nante 6 a pedagogia da classe
dominante"? PEDAGOGIADO
Pedagogia do oprimido, obra
que figura entre as principais de
OPRIMIDO
sua vasta bibliografia, 6 uma das
respostas mais relevantes a essa
pergunta. Aqui, consciente da si-
tuagao em que se encontram os
oprimidos do Brasil e da Ame-
rica Latina, Paulo nos oferece
uma anilise penetrante do fun-
cionamento de nossasclassesso-
ciais e indica os caminhos para
uma pedagogia eficiente, capaz
de suscitar, nos educandos, o
dialogo e o saberdesi.
Nio 6 preciso muito para que
a amplitude do pensamentodesta
obra se revele: do conte6do pro-
gramitico is estruturas opres-
soras da sociedade,asreflex6es
Reirianas se debrugam sobre
todos os fatores que influenciam
Copyright C) Herdciros Paulo Freire

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r' CIP
BRASIL.CATALOGAQAONAFONTE
I
SINDICATONACIONAL DOSEDITORESDE LIVROS.N

Frcire. Paulo, 1921-1997 1


Pcdagogiado oprimido/ PauloFrcirc.-
58. cd. nv. c amal. -- Rio dcJaneiro: Pazc Terra, 2014.

Bibliografia
ISBN 978 85-7753-164-6

1. Educagio Z. Frcirc, Paulo, 1921-1997.Pedagogia


do oprimido 3. Pedagogia1.Titulo

IJ l-03203 CDD-370'1

indicespara catflogo sistemitico


1. Frcirc, Paulo : Pcdagogiado oprimido:
Educagio 370.1
Impressono Brasil
2014
Sumfrio

PREFACIO: APRENDER A DIZER A SUA PALAVRA


PROFESSOREIWANI MARIA FION n

PRIMEIRAS PALAVRAS

l Justificativa da pedagogia do oprimido 39

A contradigio opressores-oprimidos
Suasuperagao 4i

A situag5o concreta de opressio e os


opressores 61

A situagio concreta de opress5o e os


oprimidos 67

Ningu&m liberia ningu&m, ningu6m se


liberta sozinho:os homensselibertam
em comunh5o 71

2;! 'FA concepgao "bancfda" da educagio


como instrumento da opressao. Seus
pressupostos, sua critica 79

-tA concepgaoproblematizadora e liberta


dora da educagao.Seuspressupostos 86
A concepgao'bancfl.ia" e a contradigao 4 A peoriada agro antidia16gica i67
educador-educando 87

A peoria da agro antidia16gica e suas


Ningu6meducaningu6m,ningu6meduca caracteHsticas:a conquista, dividir para
a si mesmo, os homens se educam entre si,
manter a opressao, a manipulagao e a
mediatizados
pelomundi 95 invasio cultural i85

O homem coma um ser inconcluso,


Altboriitla aWaDdia16gKlje suas ca-
consciente de sua inconclusao, e seu
racteristicas: a co-laboragao, a uniao, a
permanente movimento de busca do organizagao e a sintese cultural zz6
ser ?naH 101

3 A dialogicidade:ess6nciada educagao
como pratica daliberdade i07

Educagao dia16gica e dialogo 110

O didogo comegana buscado conteQdo


programaticon5
As relag6eshomen$-mundi, os.te04s
geradorese o conteQdoprogramftico
desta educagao n9

A investigag5o dos temas geradores e


sua metodologia l33

A significagao conscientizadora aa inves


tigagao dos temas geradores.
Os vfrios mementos da investigag5o i38
PREF;ACIO
APRENDER A DIZER A SUA PALAVRA

Paulo FRnREf UMPENSADOR comprometido com a vida: nio


pensa ideias, pensa a exist6ncia. f tamb&m educador: exis-
tencia seu pensamento numa pedagogia em que o es6orgo
totalizador da praxis humana busca, na interioridade desta,
retotalizar-se como "prftica da liberdade". Em sociedades
cuja dinimica estrutural conduz a dominagao de consci6n-
cias, "a pedagogia dominance 6 a pedagogia das classes
dominantes". Os m&todos da opressaonio podem, con-
traditoriamente, servir a libertagao do oprimido. Nessas
sociedades, governadas pecos interesses de grupos, classes
e nag6esdominantes,a "educagaocomo prftica da liber-
dade" postula, necessariamente,uma "pedagogia do opri-
mido". Nio pedagogia para ele, mas dele. Os caminhos da
liberagao sio os do oprimido que se libera: ele nio & coisa
que se resgata,& sujeito que se deve autoconfigurar res-
ponsavelmente. A educag5o liberadora & incompativel com
uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada,
tem side pratica de dominagao. A pratica da liberdade s6
encontrarf adequada expressao numa pedagogia em quc
o oprimido tenha condig6esde, reflexivamente, descobrir-
se e conquistar-se coma sujeito de sua pr6pria destinag5o
hist6rica. Uma culture tecida com a drama da dominagao,
por mais generosos que sejam os prop6sitos de seus educa-
dores, 6 barrcira cerrada is possibilidades educacionais dos
que se situam nas subculturas dos proletfrios e marginais. liberdade",o que, em regime de dominagao,s6 sepode
Ao contrario, uma nova pedagogiaenraizadana vida des- produzir e desenvolver na dinfmica de uma "pedagogia
sassubculturas, a partir delase com das, serf um continuo do oprimido '
retomar reflexivo de seuspr6prios caminhos de liberagao; As t&cnicasdo referido m6todo acabampor ser a es-
nio sera simples reflexo, senio reflexiva criagao e recriagao, tilizagao pedag6gica do processo em que o homem
um it adiante nessescaminhos: "m6todo", "prftica de liber- constituie conquista,historicamente,.suapr6pria forma: a
dade" que, por ser tal, este intrinsecamente incapacitada pedagogia faz-se antropologia. Esta conquista nio se pode
para o exercicio da dominagao.A pedagogia do oprimido comparar com o crescimento espontaneodos vegetais:
&, pois, liberadora de ambos, do oprimido e do opressor. participa da ambiguidade da condigao humana e dialetiza-
Hegelianamente, diriamos: a verdade do opressor reside na se nas contradig6es da aventura hist6rica, projeta-se na
consci6nciado oprimido. continua recriagaode um mundo que, ao mesmo tempo,
Assim apreendemosa ideia-contede dois livros' em que obstaculiza e provoca o esforgo de superagao liberadora
Paulo Freire traduz, em forma de IQcido saber sociopeda- da consci6nciahumana.A antropologia acabapor exigir e
g6gico, sua grande e apaixonanteexperi6nciade educador. comandaruma politica.
Experi6ncia e saber que se dialetam, densificando-se, alon- E o que pretendemos insinuar em tr6s relances. Primei-
gando-se e dandy, com nitidez cada vez maior, o contorno e ro: o movimento interno que unifica os elementosdo m6-
o relevo de suaprofunda intuigao central: a do educadorde todo e os excedeem amplitude de humanismo pedag6gico.
vocag5o humanista que, ao inventar suas t&cnicas pedag6gi- Segundo; esse movimento reproduz e manifesta o processo
cas,redescobreatrav6sdegaso processohist6rico em que e hist6rico em que o homem se reconhece.Terceiro: os ru-
por que seconstituia consci6nciahumana.Ou, aproveitan- mos possiveisdesseprocesso s5o possiveisprojetos e, por
do uma sugestaode Ortega, o processo em que a vida coma conseguinte, a conscientizagao nio & apenas conhecimento
biologia passaa ser vida coma biografia. ou reconhecimento, mas opgao, decisis, compromisso.
As t6cnicasdo m6todo de alfabetizagaode Paulo Freire,
Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetizag5o:
embora em si valiosas, tomadas isoladamente nio dizem
aprender a escrever a sua vida como autor e como teste-
munha de sua hist6ria, into &, biografar-se, existenciar-se, nada do m6todo. Tamb&m nio se ajuntaram ecleticamente
historicizar-se. Por into, a pedagogia de Paulo Freire, sen- segundo um crit&rio de simples efici6ncia t6cnico-pedag6-
do m&todode alfabetizagao,tem coma ideia animadora gica. Inventadas ou reinventadas numa s6 diregao de pensa-
coda a amplitude humana da "educagao como pratica da mento, resultam da unidade que transparecena linha axial
do m&todo e assinalao sentido e o alcancede seu humanis-
I Paulo Frcire, Educafdoromo prdtica da Zfbnr dc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, mo: alfabetizar & conscientizar.
1967;e Pe(Zag(Ibid
do opr£mido.Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1967.

PEDAGOGIADO OPRIMIDO I I3
12 I PAULOFROM
Um minima de palavras,com a mfxima poliva16nciafo- pouco a pouco se vai abrindo; a consci6ncia passa a escu-
n6mica, 6 o ponte de partida para a conquista do univer- tar os apelos que a convocam sempre mais a16mde seus
se vocabular. Essaypalavras,oriundas do pr6prio universe limites: faz-secritica.
vocabular do alfabetizando,uma vez transfiguradaspda Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencon-
critica, a ele retornam em agro transformadora do mundi. tra-se com os outros e nos outtos, companheirosde seu
Como saem de seu universo e coma a ele voltam? pequeno "circulo de cultura". Encontram-see reencon-
Uma pesquisapr6via investiga o universo das palavras tram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincid6ncia
faladas,no meir cultural do alfabetizando.Dai sio extrai- das inteng6es que o objetivam, ex-surge a comunicagao,
dos os vocfbulos de mais ricas possibilidades fon6micas e de o dialogs que criticiza e promove os participantes do ck-
maior carga semintica -- os que nio s6 permitem rapids culo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundi:
dominio do universe da palavra escrita como, tamb&m, o o que antes os absorvia, agora podem ver ao rev6s. No
mais eficaz engajamento de quem a pronuncia, com a forma circulo de cultura, a rigor, nio se ensina, aprende-seem
pragmatica que instaura e transforma o mundo humana. 'reciprocidade de consci6ncias"; nio hf professor, ha um
Estaspalavrassio chamadasgeradorasporque, atrav6s coordenador, que tem por fungao dar as informag6es soli-
da combinagao de seus elementos bfsicos, propiciam a for- citadas pecos respectivos participantes e propiciar condig6es
magao de outras. Como palavrasdo universo vocabular do favoriveis a dinimica do grupo, reduzindo ao minimo sua
alfabetizando,sio significag6esconstituidasou reconstitui- intervengao direta no curso do dialogo.
das em comportamentosseus,que configuram situag6es A "codificagao" e a "descodificagao"permitem ao alfabe-
existenciaisou, dentro delas,se configuram. Tais significa- tizando integrar a significagao das respectivas palavras gera-
g6essio plasticamente codificadas em quadros, s! des,filmi- doras em seu contexto existencial -- ele a redescobrenum
nas etc., representatives das respectivas situag6es, que, da mundo expressadoem seucomportamento. Conscientizaa
experi6nciavivida do alfabetizando,passampara o mundo palavra como significagao que se constitui em sua intengao
dos objetos. O alfabetizando ganga distincia para ver sua ex- significante, coincidente com inteng6esde outros que sig-
peri6ncia: "admiral". Nesse instance, comega a descodificar. nificam o mesmo mundi. Este -- o fundo -- 6 o lugar do
A descodificagao 6 anflise e consequente reconstitui- encontro de cada um consign mesmo e os demais.
gao da situag5o vivida: reflexo, reflexio e abertura de A essa altura do processo, a respectiva palavra geradora
possibilidades concretas de ultrapassagem. Mediada pda pode ser, ela mesma, objetivada como combinagao de lone-
objetivag5o, a imediatez da experi&ncia lucidifica-se, inte- mas suscetiveis de representagao grffica. O alfabetizando ja
riormente, em reflexio de si mesma e critica animadora de sabe que a lingua tamb6m 6 cultura, que o homem & sujeito:
novos prqetos existenciais.O que antes era fechamento, dente-sedesafiado a desvelar os segredos de sua constituigao,

U I PAULO FREIm PEOAGOGIA DO OPRIMIDO I T5


r

a partir da construg5o de suaspalavras -- tamb&m constru- certa maneira, tentam reproduzir o movimento de suapr6-
gio de seu mundi. Para esseefeito, como tamb&m para pria experi6ncia; o alfabetizando, ao dar-lhes forma escrita,
a descodificagaodas situag6essignificadaspdas palavras vai assumindo, gradualmente, a consci6ncia de testemunha
geradoras, a que nos referimos, 6 de particular interessea de uma hist6ria de que se sabe 3utor. Na medida em que se
etapa preliminar do m&todo, que nio haviamos ainda men- apercebe coma testemunha de sua hist6ria, sua consci6ncia
cionado. Nessa etapa, sio descodificadas pelo grupo vfrias se faz reflexivamente mais responsaveldessahist6ria.
unidades basicas, codificag6es simples e sugestivas, que, dia- O m&todo Paulo Freire n5o ensina a repetir palavras,nio
logicamente descodificadas,vio redescobrindo o homem se restringe a desenvolver a capacidade de pensa-las segun-
como sujeito de dodoo processohist6rico da cultura e, ob- do as exig6ncias 16gicasdo discurso abstrato; simplesmente
viamente, tamb6m da cultura letrada. O qtle o homem fda coloca o alfabetizando em condig6es de poder re-existenciar
e escreve e como fda e escreve, judo & expressao objetiva de criticamente as palavrasde seu mundo, para, na oportuni-
seu espirito. Por isto, pode o espirito refazer o feith, neste dade devida, saber e poder dizer a sua palavra.
redescobrindo o processo que o faz e refaz. Eis por que, em uma cultura letrada, aprende a ler e
Assim, ao objetivar uma palavra geradora -- integra, escrever,mas a intengao Qltima com que o faz vai al&m da
primeiro, e depois decomposta em seus elementos silfbi- alfabetizagao. Atravessa e amma toda a empresa educati-
cos --, o alfabetizando ja este motivado para nio s6 bus- va, que nio 6 sen5o aprendizagem permanente dessees-
car o mecanismo de sua recomposigao e da composigao forgo de tota]izagao --jamais acabada-- atrav6sdo qual
de novas palavras, mas tamb€1mpara escrever seu pen- o homem tenta abragar-seinteiramente na plenitude de
samento. A palavra geradora, ainda que objetivada em sua forma. f a pr6pria dial&tica em que se existencia o
sua condigao de simples vocfbulo escrito, nio pode mais homem. Mas, para isto, para assumir responsavelmente
libertar-se de seu dinamismo semintico e de sua forma sua missio de homem, ha de aprender a dizer a sua pa-
pragmatica, de que o alfabetizandoja se fizera conscience lavra, pois, com ela, constituia si mesmo e a comunh5o
na repetida descodificagaocritica. humana em que se constitui; instaura o mundi em que
Nio se deixara, pois, aprisionar nos mecanismos de sehumaniza, humanizando-o.
composigaovocabular. E buscarf novas palavras, n5o para Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua
colecionf-las na mem6ria, mas para dizer e escrevero seu palavra, pols, o homem assume conscientemente sua essen-
mundo, o seupensamento,para contar sua hist6ria. Pensar cial condigao humana. E o m&todo que Ihe propicia essa
o mundi &julga-lo; e a experi6nciados circulos de cultura aprendizagemcomensura-seao homem dodo, e seusprin-
mostra que o alfabetizando, ao comegar a escrever livre- cipios fundam toda pedagogia, desde a alfabetizagao at& os
mente, nio copia palavras,mas expressajuizos. Estes,de mais autosniveisdo labor universitirio.

I6 I PAULOFROM
PKOXGOCiA D0 0PRiMi00 1 i7
r

A educagao reproduz, assim, em seu plano pr6prio, a es- A intencionalidade da consci6nciahumana nio morre na
trutura dinimica e o movimento dial&tico do processo hist6- espessurade um envolt6rio sem reverso. Ela tem dimensio
rico de produg5o do homem. Para o homem, produzir-se 6 sempremaior do que os horizontes que a circundam. Per-
conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia passa a16m das coisas que alcanga e, porque as sobrepassa,
&antropologia. pode enfrenti-lascomo objetos.
Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, A objetividade dos objetos & constituida na intenciona-
num circulo de cultura, diante de uma situagaorepresen- lidade da consci6ncia, mas, paradoxalmente, esta atinge,
tada em quadro: "Gosto de discutir sabre isto porque viva no objetivado, o que ainda nio se objetivou: o objetimavel.
assim. Enquanto vivo, por&m, nio vejo. Agora sim, observo Portanto, o objeto nio & s6 objeto, 6, ao mesmo tempo,
como vivo.
problema: o que esteem dente, coma obsticulo e interro-
A consci6ncia 6 essamisteriosa e contradit6ria capacida- gagao. Na dial&tica constituinte da consci6ncia, em que esta
de que tem o homem de distanciar-se das coisas para faze-las se pedaz na medida em que faz o mundo, a interrogagao
presences, imediatamente presentes. E a presenga que tem nunca 6 pergunta exclusivamente especulativa: no processo
o poder de presentificar: nio & representagao,mas condigao de totalizagao da consci6ncia & sempre provocagao que a
de apresentagao. f um comportar-se do homem frente ao incita a totalizar-se.O mundo 6 espetfculo, mas sobretudo
meio que o envolve,transformando-oem mundo huma- convocagao. E, como a consci6ncia se constitui necessaria-
no. Absorvido pele meio natural, responde a estimulos; e mente como consci6nciado mundi, ela 6, pois, simultinea
o 6xito de suasrespostasmede-sepor sua maior ou menor e implicadamente, apresentagaoe elaboragaodo mundo.
adaptagao: naturaliza-se. Despegado de seu meir vital, por A intencionalidadetranscendentalda consci6nciaper-
virtude da consci6ncia, enfrenta as coisas objetivando-as, e mite-the recuar indefinidamente seus horizontes e, dentro
enfrenta-se com das, que deixam de ser simpler estimulos, deles,ultrapassar os mementos e as situag6es,que tentam
para se tornarem desafios.O meio envolvente nio o fecha, ret6-la e enclausurf-la. Liberia pda formade seu impulse
limita-o -- o que sup6e a consci6ncia do a16m-limite. Por transcendentalizante, pode volver reflexivamente sobre tais
isto, porque se proyetaintencionalmente
a16mdo limite situag6ese momentos, para julga-los e julgar-se. Por isto 6
que tenta encerra-la, pode a consci6ncia desprender-sedele, capaz de critica. A reflexividade & a raiz da objetivagao. Se
liberar-se e objetivar, transubstanciandoo meir fisico em a consci6nciase distancia do mundo e o objetiva, & porque
mundi humano. sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde
A "hominizagao" nio & adaptagao:o homem nio se na- o primeiro momento de sua constituigao, ao objetivar seu
turaliza, humaniza o mundo. A "hominizagao" nio & s6 mundo originario, ja 6 virtualmente reflexiva. E presengae
processobio16gico,mastamb6mhist6ria. distincia do mundo: a distincia & a condigao da presenga.

I8 I PAULOFAIRE PEDAGOGIA
DO
OPRIMIDO
I I9
r

Ao distanciar-se do mundi, constituindo-se na objetividade, consci6ncia & sempre, radicalmente, consci6ncia do mun-
surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha do en- do. Seu lugar de encontro necessfrio6 o mundo, que,
tendimento, reflexio e mundo, subjetividade e objetividade se nio for originariamente comum, nio permitira mais
n5o se separam:op6em-se,implicando-sedialeticamente. a comunicagao. Cada um teri seus pr6prios caminhos
A verdadeira reflexio critica origina-se e dialetiza-se na in de entrada nesse mundo comum, mas a converg6ncia
terioridade da "praxis" constitutiva do mundi humano -- & das inteng6es, que o significam, & a condigao de possibi-
tamb&m"praxis' lidade das diverg6nciasdos que, nele, se comunicam. A
Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, nio ser assim, os caminhos seriam paralelos e intranspo-
'descodificando-o"criticamente, no mesmo movimento da niveis. As consci6nciasnio sio comunicantesporque se
consci6nciao homem se redescobrecomo sujeito instaura- comunicam; mas comunicam-se porque comunicantes. A
dor dessemundo de sua experi6ncia. Testemunhando obje- intersubjetivagao das consci6ncias& t5o originaria quanto
tivamente suahist6ria, mesmo a consci6nciaing6nua acaba sua mundanidade ou sua subjetividade. Radicalizando, po-
por despertar criticamente, para identificar-se como perso' deriamos dizer, em linguagem nio mais fenomeno16gica,
nagem que se ignorava e & chamada a assumir seu paper A que a intersubjetivagao das consci6ncias & a progressiva
consci6nciado mundi e a consci6nciade si crescemjuntas conscientizagao,no homem, do "parentescoonto16gico'
e em razio direta; uma & a luz interior da outta, uma com- dos seresno ser. E o mesmo mist6rio que nos invade e nos
prometida com a outra. Evidencia-sea intrinseca correlagao envolve, encobrindo-se e descobrindo-se na ambiguidade
entre conquistar-se, fazer-se maid si mesmo, e conquistar o do nossocorpo consciente.
mundo, faze-lo mais humano. Paulo Freire nio inventou Na constituigaoda consci6ncia,mundo e consci6nciase
o homem; apenaspensae pratica um m&todo pedag6gico poem como consci6nciado mundi ou mundo consciencee,
que procura dar ao homem a oportunidade de re-descobrir-se ao mesmo tempo, se op6em como consci6nciade sie cons-
atrav&s da retomada reflexiva do pr6prio processo em que ci6ncia do mundi. Na intersubjetivagao, as consci6ncias
vai ele se descobrindo, manifestando e configurando -- tamb&m se poem como consci6nciasde um certo mundo
'm&tododeconscientizagao ' comum e, nessemundo, se op6em como consci6nciade si e
Mas ningu&m se conscientiza separadamente dos de- consci6nciado outro. Comunicamo-nos na oposig5o,que &
mais. A consci6nciase constitui como consci6nciado a mica via de encontro para consci6nciasque se constituem
mundi. Se cada consci6ncia tjv'==e o seu mundi, as na mundanidadee na intersubjetividade.
consci6nciasse desencontrariam em mundos diferentes e O mon61ogo,enquanto isolamento, & a negagaodo ho-
separados -- seriam m6nadas incomuniciveis. As consci6n- mem; 6 fechamento da consci6ncia, uma vez que consci6ncia
cias nio se encontramno vazio de si mesmas,pois a & abertura. Na solidao, uma consci6ncia, que & consci&ncia do

20 I PAULO FREIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 21


r'
mundo, adentra-seem si, adentrando-semais em seu mun- movimento que a constitui como consci6nciahumana.A
do, que, reflexivamente, faz-semais IQcidamediagao da ime- consci6ncia & consci&ncia do mundo: o mundi e a consci6n-
diatez intersubjetiva das consci6ncias.A solidio -- n5o o cia, juntos, coma consci6ncia do mundo, constituem-se
isolamento -- s6 se mant&m enquanto renova e revigora as dialeticamente num mesmo movimento -- puma mesma
condig6esdodialogo. hist6ria. Em outros termos: objetivar o mundi 6 historici-
O dialogo fenomeniza e historiciza a essencialinter- zf-lo, humanize-lo. Entao, o mundo da consci6ncia nio 6
subjetividade humana; ele 6 relacional e, neue, ningu6m criagao,mas,sim, elaboragaohumana. Essemundi nio se
tem iniciativa absoluta.Os dialogantes"admiram" um constitui na contemplagao,mas no trabalho.
mesmo mundo; afastam-sedele e com ele coincidem; Na objedvag5o transparece, pois, a responsabilidade his-
neuepoem-see op6em-se.Vimos que, assim, a consci6ncia t6rica do sujeito: ao reproduzi-la criticamente, o homem
se existencia e busca perfazer-se. O dialogo nio & um se reconhece coma sujeito que elabora o mundo; nele, no
produto hist6rico, 6 a pr6pria historicizagao. E ele, pois, o mundi, efetua-sea necessfria mediagao do autorreconheci-
movimentoconstitutivodaconsci6nciaque, abrindo-separa mento que o personaliza e o conscientiza coma autor res-
a infinitude, venceintencionalmente as fronteiras da fi- ponsavel de sua pr6pria hist6ria. O mundo conscientiza-se
nitude e, incessantemente, busca reencontrar-se al&m de coma projeto humana: o homem faz-selivre. O que parece-
si mesma. Consci6ncia do mundi, busca-se ela a si mes- ria ser apenasvisio &, efetivamente, "provocag5o";o espeta-
ma num mundo que 6 comum; porque & comum esse culo, em verdade, 6 compromisso.
mundi, buscar-se a si mesma & comunicar-se com o ou- Se o mundo 6 o mundo dasconsci6nciasintersubjetiva-
tro. O isolamento n5o personaliza porque nio socializa. das, sua elaboragao forgosamente hf de ser colaboragao.
Intersubjetivando-se mais, mais densidadesubjetiva ga- O mundo comum mediatizaa originfria intersubjetivagao
nha o sujeito. das consci6ncias: o autorreconhecimento plenifica-se no
A consci6ncia e o mundo nio se cstruturam sincro- reconhecimento do outro; no isolamento, a consci6ncia
nicamente numa estftica consci6ncia do mundi: visio e modifica-se. A intersubjetividade, em que as consci6ncias
espetfculo. Essa estrutur8 funcionaliza-se diacronicamente se enfrentam, dialetizam-se, promovem-se, & a tessitura il-
numa hist6ria. A consci6ncia humana busca comensurar-se tima do processohist6rico de humanizagao.Este.nasori-
a si mesma num movimento que transgride, continuamen- gens da "hominizagao" e anuncia as exig6ncias61timasda
te, todos os seuslimites. Totalizando-sea16mde si mesma, humanizagio. Reencontrar-secoma sujeito, e liberar-se,6
nunca chega a totalizar-se inteiramente, pois sempre se dodo o sentido do compromisso hist6rico. Ja a antropolo-
transcende a si mesma. Nio 6 a consci6ncia vazia do mun- gia sugcre que a "praxis", se humana e humanizadora, & a
di que se dinamiza, nem o mundo 6 simples projegao do "pratica da liberdade

22 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 23


r'

O circulo de cultura -- no m&todo Paulo Freire -- re-vi- A pedagogia aceita a sugestao da antropologia: imp6e-se
ve a vida em profundidade critica. A consci6ncia emerge do pensar e viver "a educagao coma pratica da liberdade
mundi vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o Nio foi por acaso que esse m6todo de conscientiza-
como prqeto humana. Em dialogo circular, intersubjetivan- gao originou-se como m&todo de alfabetizagao.A cultu-
do-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo ra letrada nio & invengao caprichosa do espirito; surge no
de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em circulo, e momento em que a cultura, como reflex5o de si mesma,
em colaboragao,re-elaboram o mundo e, ao reconstrui-lo, consegue dizer-se a si mesma, de maneira definida, clara e

apercebem-sede que, embora construido tamb&m por des, permanente. A cultura marca o aparecimento do homem
essemundo nio 6 verdadeiramente para des. Humaniza- no largo processo da evolugao c6smica. A ess6nciahumana
existencia-se, autodesvelando-se como hist6ria. Mas essa
do por des, essemundo ngo os humaniza. As m5os que o
consci6ncia hist6rica, objetivando-se reflexivamente, sur-
fazem n5o sio as que o dominam. Destinado a libero-los
preende-se a si mesma, passa a dizer-se, torna-se consci&n-
como sujeitos, escraviza-oscomo objetos.
cia historiadora: o homem & levado a escrever sua hist6ria.
Reflexivamente, retomam o movimento da consciCncia
Alfabetizar-se & aprender a ler cssa palavra escrita em que a
que os constitui sujeitos, desbordando a estreiteza das situa-
cultura se diz e, dizendo-secriticamente, deixa de ser repe-
g6esvividas; resumem o impulso dial&tico da totalizagao
hist6rica. Presentificadoscomo objetos no mundo da cons- tigao intemporal do que passou, para temporalizar-se, para
ci6ncia dominadora, nio se davam conga de que tamb&m conscientizar sua temporalidade constituinte, que e anQn-
cio e promessa do que ha de vir. O destino, criticamente,
eram presengaque presentificaum mundo que n5o & de
ningu6m, porque originariamente 6 de todos. Restituida recupera-secomo projeto.
Nesse sentido, alfabetizar-se ngo 6 aprender a repetir
em sua amplitude, a consci6nciaabre-separa a "pratica da
liberdade": o processo de "hominizagao", desde suas obscu- palavras,mas a dizer a sua palavra, criadora de cultura. A
cultura letrada conscientiza a cultura: a consci6nciahisto-
ras profundezas, vai adquirindo a translucidez de um pro'
riadora automanifesta a consci&nciasua condigao essencial
jeto de humanizag5o. Nio 6 crescimento, 6 hist6ria: aspero
de consci6ncia hist6rica. Ensinar a ler as palavras divase
esforgo de superag5o dial&tica das contradig6es que entrete-
ditadas & uma forma de mistificar as consci6ncias, desper-
cem o drama existencialda finitude humana. O m&todo de
sonalizando-asna repetigao -- 6 a t6cnica da propaganda
conscientizagaode Paulo Freire refaz criticamente essepro-
massificadora. Aprender a dizer a sua palavra & toda a peda-
cessodial&ticode historicizagao.Coma todo bom m6todo
gogia, e tamb&m toda a antropologia.
pedag6gico,nio pretende ser m&todo de ensino, mas sim
A "hominizagao" opera-se no moments em que a cons-
de aprendizagem; com ele, o homem nio cria sua possi-
ci6ncia ganha a dimensio da transcendentalidade. Nesse
bilidade de ser livre, mas aprende a efetivi-la e exerc6-la.

PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 25
U I PAULO FREIRE
r'
instante, liberada do meir envolvente, despega-sedele, en- a hist6ria e a cultura. Mas o primeiro instanceda palavra
6enta-o, num comportamento que a constitui como cons- 6 terrivelmente perturbador: presentifica o mundo a cons-
ci6ncia do mundi. Nessecomportamento, as coisas sio ci6ncia c, ao mesmo tempo, distancia-o. O enfrentamen-
objetivadas,into 6, significadase expressadas:o homem to com o mundi 6 ameagae cisco.O homem substitui o
as diz. A palavra instaura o mundi do homem. A palavra, envolt6rio protetor do meir natural por um mundo que
como comportamento humana, significante do mundi, o provoca e desafia.Num comportamento ambiguo, en-
nio designa apenas as coisas, transforma-as; nio 6 s6 pen- quanto ensaiao dominio t&cnico dessemundo, renta voltar
samento, 6 "praxis". Assim considerada, a semintica 6 exis- a seu seio, imergir nell, enleando-se na indistingao entre
t6ncia e a palavra viva plenifica-seno trabalho. palavra e coisa. A palavra, primitivamente, & mito. Interior
Expressar-se,expressando o mundo, implica o comunicar-se. ao mito e condigao sua, o logoshumano vai conquistando
A partir da intersubUetividade
originaria, poderiamos dizer primazia, com a intelig6ncia das mios que transformam
que a palavra,mats que instrumento, 6 origem da comuni- o mundi. Os prim6rdios dessahist6ria ainda sio mitolo-
cagao-- a palavra& essencialmentediflogo. A palavraable a gia: o mito 6 objetivado pda palavraque o diz. A narra-
consci6ncia para o mundi comum das consci6ncias, em dia- gaodo mita, no entanto, objetivandoo mundi mitico e
logo, portanto. Nessalinha de entendimento,a expressaodo entrevendo o seu conteOdo racional, acaba por devolver
mundo consubstancia-seem elaboragaodo mundo e a comu- a consci6ncia a autonomia da palavra, distinta das coisas
nicagao em colaboragao. E o homem s6 se expressa conve- que ela significa e transforma. Nessaambiguidade com que
nientemente quando colabora com todos na construgaodo a consci6ncia faz o seu mundi, afastando-o de si, no dis-
mundo comum -- s6 se humanizano processodia16gicode tanciamento objetivante que o presentifica como mundo
humanizagaodo mundo. A palavra,porque lugar do encontro consciente, a palavra adquire a autonomia que a lorna dis-
e do reconhecimento das consci6ncias, tamb&m o & do reen- ponivel para ser recriada na expressaoescrita. Embora nio
contro e do reconhecimento de si mesmo. A pa]avra pessoa], tenha side um produto arbitrfrio do espirito inventivo do
criadora, pois a palavra repetida & mon61ogo das consci&ncias homem, a cultura letrada 6 um epifen6meno da cultura,
que perderam sua identidade, isoladas,imersas na multidio que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na pa-
an6nima e submissasa um destino que Ices 6 imposto e que lavra escrita uma maneira mais forme e definida de dizer-se,
nio s5o capazesde superar, com a decisis de um projeto. isto &, de existenciar-sediscursivamente na prfxis hist6rica.
f verdade: nem a cultura iletrada 6 a negag5o do ho- Podemos conceber a ultrapassagem da cultura letrada: o
mem, nem a cultura letrada chegou a ser sua plenitude. que, em dodo caso, ficarf & o sentido profundo que ela ma-
Nio ha homem absolutamente inculto: o homem "homi- nifesta: escrevere nio conservar e repetir a paiavra dita,
niza-se" expressando, dizendo o seu mundi. Ai comegam mas diz6-la com a formareflexiva que sua autonomia Ihe

H I PAULO FREIM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 27


r'
di -- a formaing6nita que a iaz instauradora do mundo da Em linguagem direta: os homens humanizam-se,traba-
consci6ncia,criadora da cultura. Ihandojuntos para fazer do mundo, sempremais, a media-
Com o m&todo de Paulo Freire, os alfabetizandos par- gao de consci6nciasque se coexistenciam em liberdade. Aos
tem de algumas poucas palavras que Ihes servem para ge- que constroemjuntos o mundo humano, compete assumi-
rem a responsabilidade de dar-the diregao. Dizer a sua pala-
rar seu universe vocabular. Antes, por6m, conscientizam
o poder criador dessaspalavras: sio das que geram o seu vra equivale a assumir conscientemente, coma trabalhador,
mundi. Sio significag6esque se constituem em compor- a fungao de sujeito de sua hist6ria, em colaboragaocom os
tamentos seus; portanto, significag6esdo mundo, mas demaistrabalhadores-- o povo
suastamb&m. Assim, ao visualizarem a palavra escrita, em Ao Pbvo cabe dizer a palavra de comando no processo
sua ambigua autonomia, ja estio consciencesda dignidade hist6rico-cultural. Sea diregao racional de tal processoj£ 6
de que ela 6 portadora -- a alfabetizagao nio & umjogo de politica, entio conscientizar & politizar. E a cultura popular
palavras, & a consci6nciareflexiva da cultura, a reconstru- se traduz por politica popular; n5o ha cultura do Povo sem
gao critica do mundo humana, a abertura de novos cami- politicado Povo.
O m&todo de Paulo Freire 6, fundamentalmente, um
nhos, o projeto hist6rico de um mundo comum. a bravura
de dizer a sua palavra. m6todo de cultura popular: conscientiza e politiza. Nio ab-
A alfabetizagao,portanto, 6 toda a pedagogia: aprender sorve o politico no pedag6gico, mas tamb6m nio p6e ini-
a ler 6 aprender a dizer a sua palavra. E a palavra humana mizade entre educagao e politica. Distingue-as, sim, mas na
imita a palavra divina: 6 criadora. unidade do mesmo movimento em que o homem se histo-
riciza e busca reencontrar-se, isto 6, busca ser livre. Nio tem
A palavra 6 entendida, aqui, como palavra e aWaD;nio 6
o termo que assinalaarbitrariamente um pensamento que, a ingenuidade de supor que a educagao, s6 ela, decidirf dos
por sua vez, discorre separado da exist6ncia. E significagao rumos da hist6ria, mas tem, contudo, a coragem suficien-
produzida pda prfxis, palavra cqa discursividade flui da te para afirmar que a educagaoverdadeira conscientiza as
historicidade -- palavra viva e dinamica, nio categoria iner- contradig6es do mundo humana, sejam estruturais, supe-
te, exinime. Palavraque diz e transforma o mundo. restruturais ou interestruturais, contradig6esque impelem
o homem a it adiante. As contradig6es conscientizadas n5o
A palavra viva & diflogo existencial.Expressae elaborao
mundo, em comunicagao e colaboragao.O dialogo aut6ntico Ihe dio maid descanso, tornam insuportfvel a acomodagao.
-- reconhecimento do outro e reconhecimento de si, no ou- Um m6todo pedag6gico de conscientizagaoalcangaas al-
tro -- & decisis e compromisso de colaborar na construgao timas fronteiras do humano. E como o homem sempre se
do mundo comum. Nio ha consci&nciasvazias;por isto os excede,o m&todo tamb6m o acompanha. E "a educag5o
homens nio se humanizam, senio humanizando o mundo. como pratica daliberdade

PEOAGOGIA OO OPRIMIDO 1 29
z8 I PAULO FRnRE
r'
Em regime de dominagao de consci6ncias,em que os PRIMEIRAS PALAVRAS
que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e
em que multid6es imensas nem sequer t6m condig6es para
trabalhar, os dominadores mant6m o monop61io da pala-
vra, com que mistificam, massificame dominam. Nessasi-
tuagao, os dominados, para dizerem a sua palavra, t&m que As pAaiNAS
QuuSESEGUEM
e que propomos como uma
lutar para tomb-la. Aprender a tami-la dos que a det&m e a introdug5o a Pedagogiado oprim£dosio o resultado de nos-
recusam aos demais & um dificil, mas imprescindivel apren- sas observag6es nestes cinco anos de exilio. Observag6es
dizado -- & a "pedagogiado oprimido ' que se v6m juntando is que fizemos no Brasil, nos vfrios
setores em que tivemos oportunidade de exercer ativida-
ProfessorErnani Maria Fiori des educativas.
Santiago, Chile, Um dos aspectosque surpreendemos, quer nos curios
dezembro
de] 967 de capacitagaoque damos e em que analisamoso papel da
conscientizagao, quer na aplicagao mesma de uma educa-
gao realmente libertadora, & o "medo da liberdade", a que
faremosrefer6nciano primeiro capitulo denteensaio.
Nio s5o raras as vezes em que participantes destes cur-
ios, numa atitude em que manifestam o seu "medo da
liberdade", se referem ao que chamam de "perigo da cons-
cientizagao". 'H. consci6ncia critica (dizem) & anarquica.'
Ao que outros acrescentam: "Nio poderf a consci6ncia
critica conduzir a desordem?"Ha, contudo, os que t2m-
b&m dizem: "Por que negar?Eu temia a liberdade.Ja nio
a temol
Certa vez, em um dessescurios, de que fazia parte um
homem que fora, durante longo tempo, operario, se estabe-
leceu uma dessasdiscuss6esem que se afirmava a "pericu-
losidade da consci6ncia critica". No meir da discussao, disse
este homem: "Talvez scja eu, entre os senhores, o Qnico de
origem operaria. Nio posse dizer que haja entendido sodas

30 I PAULO FREIRE
as palavrasque foram divasaqui, mas uma coisaposso afir- Rare, por6m, 6 o que manifesta explicitamente estere-
mar: chegueia essecurso {ng?ttKO e, ao descobrir-me ing6-
ceio da liberdade. Sua tend6ncia 6, antes, camufla-lo, num
nuo, comeceia tornar-me crftico.Esta descoberta,contudo,
jogo manhoso, ainda que, is vezes, inconsciente. Jogo ar-
nem me Cazfanatico, nem me df a sensagaode desmorona-
tificioso de palavras em quc apareceou pretende aparecer
mento." Discutia-se, na oportunidade, se a conscientizagao
coho o que defende a liberdade e nio como o que a temp.
de uma situag5o existencial, concreta, de injustiga nio po-
As suas dQvidas e inquietag6es empresta um ar de pro-
deria conduzir os homens deja conscientizados a um "fana-
funda seriedade.Seriedadede quem fosseo zelador da li-
tismo destrutivo" ou a uma "sensagaode desmoronamento
berdade. Liberdade que se confunde com a manutengao do
total do mundo em que estavamesseshomens'
statenquo. Por isto, se a conscientizagaop6e em discussio
A davida, assimexpressa, implicita uma afirmagio nem
este staten qxo, ameaga, entao, a liberdade.
sempreexp]icitada, no que teme a ]iberdade: "Melhor serf
As afirmag6es que fazemos neste ensaio nio sao,de um
que a situagao concreta de injustiga nio se constitua num
dado,auto de devaneios intelectuais nem, tampouco, de
'percebido' claro para a consci&nciados que a sofrem.'
outro, resultam apenas de leituras, por mais importantes
Na verdade, por6m, nio 6 a conscientizagao que pode
que das nos denhamsido. Estio sempre ancoradas,como
levar o povo a ''fanatismos destrutivos". Pele contrario, a
sugerimos no inicio destaspfginas, em situag6es concretas.
conscientizagao,que Ihe possibilita inserir-se no processo
Expressam reag6es de proletarios, camponeses ou urbanos,
hist6rico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscrevena
e de homens de classemedia, que vimos observando, dire-
buscade sua afirmagio.
ta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa
'Se a tomada de consci6ncia abre o caminho a express5o
inteng5o 6 continuar com estasobservag6espara retificar
das insatisfag6es sociais, se deve a que estas sio componen-
ou ratificar, em estudosposteriores, pontos afirmados neste
tes reais de uma situagao de opressao.":
ensaio. Ensaio que, provavelmente, irf provocar, em alguns
O medo da liberdade, de que necessariamente nio tem
de seuspossiveisleitores, reag6essectfrias.
consci6nciao seu portador, o faz ver o que nio existe. No Entre estes,havera, talvez, os que nio ultrapassarao suas
funds, o que teme a liberdade se refugia na segurangavital,
primeiras paginas. Uns, por considerarem a nossa posigao,
como dina Hegel,' preferindo-a a liberdade arriscada.
diante do problema da libertagao dos homens, coma uma
: FranciscoWenort, em prefacid a Paulo Frcire, Dlucafao romo prdtica da posigao idealista a maid, quando nio um "blf-bla-bla" rea-
liberdade.
' [...] And it k solely ty risking it#e t tat.Feedom is obtained. [...] The ilzd{ dual, w]to
cionfrio. "Bla-blf-bla" de quem seperde fdando em vocagao
flds Itot staked otis!€1emay, lto doubt, be recognizedm a perxolt; bKt he hm trot attaitted onto16gica,em amor, em diflogo, em esperanga,em humil-
lite truth of tilts recognition an indepmdmt selFcomciomness. Georg W F.Hegel, dade, em simpatia. Outros, por n5o quererem ou nio pode
7'1ze Pltentommot(Ky of A ind. Nova York: Harper and Row, 1967,p. 233.
rem aceitar as criticas e a denincia que fazemos da situagao

32 I PAUL.OFREIRE
PEDAGOGIADO OPRIMIDO 1 33
r'
opressora,situag5oem que os opressoresse "gratificam", Precisamenteporque inscrito, coma radical, num pro-
atrav6s de sua balsagenerosidade. cesso de libertagao, nio pode vicar passivo dianne da vio16n-
Dai que seja este, com sodas as defici6ncias de um ensaio cia do dominador.
puramente aproximativo, um trabalho para homens radi- Por outro lada, jamais serf o radical um subjetivista. E
cais. Cristios ou marxistas, ainda que discordando de nossas que, para ele, o aspectssubjetivo loma corpo numa unida-
posig6es,em grande parte, em parte ou em sua totalidade de dial&tica com a dimensio objetiva da pr6pria ideia, isto
estes, estamos certos, poderao chegar ao fim do texto. &, com os conteQdos concretos da realidade sobre a qual
Na medida, por6m, em que, sectariamente, assumam exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, des-
posig6es fechadas, "irracionais", rechagarao o dialogo que ta forma, se encontram naquela unidade dia16ticade que
pretendemos estabelecerIJ:ravesdeste livro. resulta um conhecer solidfrio com o atuar e este com aque-
E que a sectarizagao& senhprecastradora, pelo fanatismo de le. f exatamente esta unidade dia16ticaque gera um atuar e
que se nutre. A radicalizagadpele contrario, & sempK criadcF um pensar certos na e sabre a realidade para transforms-la.
ra, peta criticidade que a alirhenta. Enquanto a sectarizagao6 O sectfrio, por sua vez, qualquer que seja a opgao de
mitica, por isto ahenante, a radcalizagao & critica, por isto hber- onde parka na sua "irracionalidade" que o cega, nio per-
tadora. Libertadora porque, implicando o enraizamento que os cebe ou nio pode perceber a dinimica da realidade, ou a
homens fmem na opgao que fizeram, os engaja cada vez mats percebe equivocadamente
no esiorgo de transformagao da realidade concreta, objedva. At& quando se pensana dial&tica, a sua6 uma "dial&tica
A sectarizagao,porque mitica e irracional, transforma a rea- domesticada
lidade numa fisa realidade, que, assim, n5o pode ser mudada. Esta & a razao, por exemplo, por que o sectfrio de direita,
Parta de quem parka, a sectarizagao& um obstfculo a que, no nosso ensaio anterior, chamamos de "sectfrio de
emancipag5o dos homens. Dai que seja doloroso observar nascenga", pretende frear o processo, "domesticar" o tem-
que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu po e, assim,os homens. Esta 6 a raz5o tamb&m por que o
contrario, isto &, a radicalizag5o do revolucionfrio. homem deesquerda,aosectarizar-se, seequivocatotalmen-
Nio sio raros os revolucionfrios que se tornam reacio- te na suainterpretagao "dia16tica"da realidade,da hist6ria,
nfrios pda sectarizagao em que se deixam cair, ao respon ' deixando-se cair em posig6es fundamentalmente fatalistas.
der a sectarizagaodireitista. Distinguem-se,na medidaem que o primeiro preten-
Nio queremos, por&m, com isto dizer -- e o deixamos de "domesticar" o presente para que o futuro, na melhor
clara no ensaio anterior' -- que o radical se tome d6cil ob- das hip6teses, repita o presence "domesticado", enquanto
jeto da dominag5o. o segundo transforma o futuro em argo preestabelecido,
' Paulo Freire, Ed cafdo comaprdtica da liberdade. uma esp&ciede dado,de sina ou de destino irremedifveis.

H I PAUL.OFREIM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO t 35


r'
necessfrio considerar coma mentira tudo o que nio sejaa
Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado& algo
sua verdade. "So6'em ambos da feta de dQvida."s
dado e imutivel, para o segundo, o amanhi & argo pr6-dado,
O radical, comprometido com a libertagao doshomens,
prefixado inexoravelmente. Amboy se fazem reacionfrios
n5o se deixa prender em "circulos de seguranga",nos quais
porque, a partir de sua falsa visio da hist6ria, desenvolvem
um e outro formas de agro negadoras da liberdade. E que aprisione tamb&m a realidade. Tio mais radical quanto
mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor,
o tata de um conceber o presente 'bem-comportado" e o
melhor poder transforms-la.
outro, o futuro como predeterminado, nio significa que se
Nio hemeenRentar,n5o hemeouvir, n5o teme o desve-
tornem espectadores,que cruzem os brazos, o primeiro,
lamento do mundi. Nio hemeo encontro com o povo.Nio
esperando a manutengio do presence, uma esp6cie de volta hemeo dialogo com ele, de que resulta o crescentesaberde
ao passado; o segundo, a esperade que o futuro ja "conhe- ambos.'Nio se sensedono do tempo, nem dono dos ho-
cido" seinstate. mens,nem libertador dos oprimidos. Com des secompro-
Pele contrario, fechando-seem um "circulo de seguran- mete, dentro do tempo, para com des lutar.
ga", do qual nio podem sair,estabelecemambos a suaver- Sea sectarizagao,
comoafhmamos,6 o pr6priodoreacionf-
dade. E esta nio 6 a dos homens na luta para construir o rio, a radicalizagao6 o pr6prio do revolucionirio. Dai que a pe-
futuro, correndo o ciscodestapr6pria construg5o.Nio 6 dagogiado oprimido, que implica uma tarefaradical,cujasli-
a dos homens lutando e aprendendo,uns com os outros, a nhasintrodut6riaspretendemosapresentarnesteensaio,e apr6'
edificar este futuro, que ainda nio este dado, como se fosse pda leitura deste texts nio possam ser realizadaspor sectfiios.
destino, coma se devesseser recebido pelts homens 6 nio Queremos expressaraquio nosso agradecimento a Elba, de
criado poreles. modo gerd nossaprimeira leitora, por suacompreensaoe es-
dmulos constantes a nosso trabalho, que tamb&m 6 seu.Agra-
A sectarizag5o,em ambos os castes,6 reacionfria porque,
dedmento que estendemos a todos quangosleram os originais
um e outro, apropriando-sedo tempo, de cujo saberse sen-
deste ensaio pdas criticas que nos fizeram, o que nio nos retira
tem igualmente proprietarios, terminam sem o povo, uma
ou diminuia responsabihdadepdas anmag6es neuefeitas.
forma de estar contra ele.
PauloFreire
Enquantoo sectfrio de direita, fechando-seem "sua'
verdade,nio faz mais do que o que Ihe 6 pr6prio, o ho- Santiago, CltiZe,
oatonode1968
mem de esquerda,que se sectarizae tamb6m se encerra, &
5 Mfrcio Moreira Alves, em conversa com o actor.
a negagao do si mesmo.
Enquantoo conhecimentote6rico permanecercomo privil&gio de uns
Um, na posigaoque Ihe & pr6pria; o outro, na que o nega, quangos 'acad6micos' dentro do Partido, este se cncontrari em grande peri-
ambos girando em torno de "sua" verdade, sentem-se abala- no de it ao ftacasso." Rosa Luxemburgo, "ZReforma o Revoluci6n?", in Wright
Mills, I,oslntarxistw. Mexico: Ed. Era S.A., 1964,p. 171.
dos na sua seguranga,se algu&m a discute. Dai que shesseja

PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 37
36 I PAULO FREIRE
l
JUSTIFICA'nVADA
PEDAGOGIADOOPRIMIDO

RKcoNHECEMos A AMPUTUnE do fema que nos propomos


tratar neste ensaio,com o qual pretendemos,em certo
aspects,aprofundar alguns pontos discutidos em nosso
trabalho anterior, Edticafaocoho prdtica da Ziberdade.
Dai
que o consideremoscomo mera introdugao, coma dim-
ples aproximagao a assunto que nos parece de importan-
cia fundamental.
Mais uma vez os homens, desafiadospda dramaticidade
da hora atual, seprop6em a si mesmos coma problema. Des-
cobrem que pouco sabem de si, dc seu "poscono cosmos", e
se inquietam por saber mais. Estara, alias, no reconhecimento
do seu pouco saber de si uma das raz6es desta procura. Ao se
instalarem na quase, sen5o tragica, descoberta do seu pouch
saber de si, se fazem problema a des mesmos. Indagam. Res-
pondem, e suasrespostasos levam a novas perguntas.
O problema de sua humanizagao, apesar de sempre dever
haver side, de um ponto de vista axio16gico, o seu problems
central, assume,h(!je, carater de preocupagaoiniludivel.'
' Os movimcntos de rebeliio, sobretudo de jovens, no mundi atual, que nc-
cessariamenterevelam peculiaridades dos cspagosonde se dio, mani6cstam,em
suaprofundidade, etta preocupagao em porno do homem e dos homens, coma
sexesno mundi e com o mundi. Em torno do qac e de romo cstio sends.Ao
questionarem a "civilizagao do consume"; ao denunciarem as "burocracias" dc
r'
Constatar esta preocupagao implica, indiscutivelmente, de total desespero.A luta pda humanizag5o,pele trabalho
reconhecer a desumanizagio, nio apenas como viabilidade livre, pda desalienagao,pda afirmagao dos homens como
onto16gica,mascomo realidadehist6rica. E tamb6m, e tal- pessoas,coma "serespara si", n5o celia significagao.Esta
vez sobretudo, a partir desta dolorosa constatag5o que os somente 6 possivel porque a desumanizagao,mesmo que
homens se perguntam sobre a outra viabilidade -- a de sua um fate concreto na hist6ria, n5o 6, por6m, desti?to(hdo,
humanizagao. Ambas, na raiz de sua inconclusio, os inscre-l mas resultado de uma "ordem" injusta que gera a vio16ncia
vem num permanente movimento de busca.Humanizagao dos opressorese etta, o serramos.
e desumanizagao,dentro da hist6ria, num contexto real,
concrete, objetivo, sio possibilidades dos homens como se-
resinconclusose consciences de suainconclusio. A CONTItADIgAO OPRESSORES-OPRIMIOOS. SUA SUPERAgAO

Mas, se ambas sio possibilidades, s6 a primeira nos pa-


rece ser o que chamamos de vocagao dos homens. Vocagao A vio16nciados opressores,que os faz tamb6m desumaniza-
dos,nio instaura uma outra vocagao-- a do ser menos. Como
negada,mas tamb&m afirmada na pr6pria negagao.Voca-
g5o negada na injustiga, na exploragao, na opressao, na vio- distorgao do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cede ou
16nciados opressores.Mas afirmada no anseio de liberdade, garde, a lugar contra quem os fez menos. E esta lula somen-
de justiga, de luta dos oprimidos, pda recuperagao de sua te tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar
humanidade roubada. sua humanidade, que 6 uma forma de crib-la, nio se sentem
A desumanizagao, que nio se verifica apenas nos que idealistamenteopressores,nem se tornam, de cato,opressores
t6m sua humanidade roubada, mas tamb&m, ainda que de dos opressores,mas restauradores da humanidade em ambos.
forma diferente, nos que a roubam, 6 distorgao da voca- E ai este a grande tarefa humanista e hist6i.icados oprimi-
gao do sa mats. f distorgao possivel na hist6ria, mas ngo dos -- libertar-se a sie aos opressores. Estes, que oprimem,
vocagao hist6rica. Na verdade, se admitissemos que a de- exploram e violentam, em razio de seu poder, n5o podem
sumanizagao6 vocagao hist6rica dos homens, nada mais ter, neste poder, a formade libertagao dos oprimidos nem de
reriamos que fazed,a n5o ser adotar uma atitude cinica ou si mesmos.S6 o poder que nasgada debibdadedos oprimi-
dos sera suficientemente forte para libertar a ambos. Por isto
lodos os matizes; ao exigipem a transformagao das universidades, de que resul-
& que o poder dos opressores,quando se pretende amenizar
tem, de um lada, o desaparecimento da rigidez nas relag6es professor-aluno; de
outro, a insergao delay na realidade; ao proporem a transformagao da realidade ante a debihdadedos oprimidos, nio apenasquasesempre
mesma para quc as universidades possum renovar-se; ao rechagarem velhas or- se expressaem fisa generosidade, como jamais a ultrapassa.
dens e instituig6es estabelecidas, buscando a afirmag5o dos homens coma sujei-
Os opressores, fdsamente generosos, t6m necessidade, para
tos de decisis, todos estesmovimentos refletem o sentido mais antropo16gico
do que antropoc6ntrico de nossa6poca. que a sua "generosidade"continue tendo oportunidade de

PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 41
40 I PAULO FRnRE
r'
realizar-se,da perman6nciada idustiga. A "ordem" social opressora? Quem sentira, mellor que des, os efeitos da opres-
injusta & a contegeradora,permanente,desta"generosidade
' s5o?Quem, mais que des, para it compreendendoa neces-
que se nutre da morse, do desalento e da mis&iia.' sidade da libertagao? Libertagao a que nio chegarao pelo acaso,
Dado desesperodelta "generosidade"diannede quail mas pda praxis de sua busca; peso conhedmento e reconhecF
quer ameaga,embora t6nuc, a suafonts. Nio pode jamais mento da necessidade de lugar por ela.
engender esta "generosidade" que a verdadeira generosida- Lula que, pda finalidade que Ihe derem os oprimidos,
de esb em ]utar para que desaparegamas raz6es que ali- serf um ato de amor, com o qual se oporao ao desamorcon-
ment2m o falso amor. A balsacaridade, da qual decorre a tido na vio16ncia dos opressores,at6 mesmo quando esta se
m5o estendidado "demitido da vida", medroso e inseguro, revista da balsagenerosidade referida.
esmagadoe vencido.Mio estendidae tr6mula dos esfar- A nossa preocupagao, neste trabalho, 6 apenas apresen'
rapados do mundi, dos "condenados da terra". A grande tar algunsaspectosdo que nos parececonstituir o que vi-
generosidade este em lutar para que, cada vez mais, estas mos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem
maos, sejam de homens ou de povos, se estendam ments de ser forjada comele e nio para ele, enquanto homens ou
em gestos de saplica. Saplica de humildes a poderosos. E se povos, na lula incessante de recuperagao de sua humanida-
vio fazendo, cadavez mais, mios humanas, que trabalhem de. Pedagogia que nagada opressao e de suas causas objeto
e transformem o mundo. Este ensinamento e este aprendi-
da reflexio dos oprimidos, de que resultarf o seu engaja-
zado t6m de partir, por6m, dos "condenadosda terra", dos mento necessfrio na luta por sua libertagao, em que esta
oprimidos, dos esfarrapadosdo mundo e dos que com des
pedagogiasebarf e refari.
realmente se solidarizem. Lutando pda restauragaode sua
O grande problema este em como poder5o os oprimi-
humanidade estarao,sejam homens ou povos, tentando a
dos, que "hospedam" o opressor em si, participar da ela-
restauragaoda generosidadeverdadeira. borag5o, coma seres duplos, inaut6nticos, da pedagogia de
Quem, mellor que os oprimidos,se encontrarf prepa-
sua libertagao. Somente na medida em que se descubram
rado para engender o significado terrivel de uma sociedade
'hospedeiros" do opressor poderao contribuir para o par'
B "Talvez d6s esmolas. Mas, de ondc as bras, sen5o de tuas rapinas cru&is, do tejamento de sua pedagogia libertadora. Enquanto vivam
sofnmento, das lagrimas, dos suspiros?Sc o pobre soubessede onde vem o teu a dualidadena qual ser & parecer e parecer & parecer com
6bolo, ele o recusariaporque teria a impressaode murder a carne de seusir-
o opressor,& impossivel £az6-1o.
A pedagogiado oprimido,
mios e de sugar o langue de seu pr6ximo. Ele te dina estas palavras corajosas:
nio sacies a minha cede com as lagrimas de meus irmios. Nio d6s ao pobre o que n5o pode ser elaborada pelos opressores,& um dos ins-
pao endurecido com os solugos de meus companheiros de mis6ria. Devolve a trumentos para esta descoberta critica -- a dos oprimidos
teu semelhanteaquinoque reclamastee eu te serei muito grata. De que vale
consular um pobre. se tu fazedoutros cem?" S5o Greg6rio de Nissa (330-395),
por si mesmos e a dos opressorespelts oprimidos, coma
'Sermio contra os usurfrios' manifestag6es dadesumanizagio.

42 I PAULO FREIRE PEI)AGOGIA DO OPRIMIDO 1 43


r
Ha argo,por6m, a considerar nestadescoberta,que este A suavisio do homem novo 6 uma visio individualista. A
diretamente ligado a pedagogia libertadora. E que, quase sua ader6ncia ao opressor nio Ihes possibilita a consci6ncia
semprc,num primeiro memento destedescobrimento,os de si como pessoa, nem a consci6ncia de classe oprimida.
oprimidos, em vez de buscar a libertagao na luta e por ela, Destaforma, por exemplo, querem a reforma agraria,
tendem a ser opressorestamb6m, ou subopressores.A es- nio para se libertarem, mas para passarema ter terra c,
trutura de seu pensar se encontra condicionada peta con- com etta, tornar-se proprietfrios ou, maid precisamente,
tradigao vivida na situagaoconcreta, existencial, em que se patr6es de novos empregados.
'formam". O seu ideal 6, realmente, ser homens, mas, para Raros s5o os camponeses que, ao serem "promovidos" a
des, ser homens, na contradigao em que sempre estiveram capatazes, nio se tornam maid duros opressores de deus anti-
e cuba superagao nio sheseste clara, & ser opressores. Estes gos companheiros do que o patrao mesmo. Poder-se-i dizer
sio o seu testemunho de humanidade. -- e com razio -- que isto se deveao catode que a situagio
lsto decorre, coma analisaremosmais adiahte, com mais concreta, vigente, de opressao, n5o foi transformada. E que,
vagar, do faso de que, em certo memento de sua experi6n- nesta hip6tese, o capataz, para assegurar seu posto, tem de
cia existencial, os oprimidos assumem uma postura que encarnar, com mais dureza ainda, a dureza do patrao. Ta] afir-
chamamos de "ader6ncia" ao opressor. Nestas circunstin- magao nio nega a nossa -- a de que, nestas circunstancias, os
cias,nio chegam a "admire-lo", o que os levaria a objedva-lo, a opHmidost6m no opressoro seutestemunho de "homem '
descobri-lo fora de si. At6 as revolug6es, que transformam a situagao concreta
Ao Cazermos esta afirmagao, n5o queremos dizer que os de opressio em uma nova, em que a libertagao se instaura
oprimidos, neste casa,nio sesaibamoprimidos. O seu conhe- como processo, enfrentam esta manifestagao da consci6n-
cimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra, contu- cia oprimida. Muitos dos oprimidos que, direta ou indire-
do, piqudicado pda "imers5o" em que se acham na reahdade tamente, participaram da revolugao, marcados pecosvelhos
opressora. "Reconhecerem-se", a este navel, contrfrios ao ou- mites da estrutura anterior, pretendem fazer da revolugao
tro nio signMca ainda lugar pda superagao da contradigao. Dai a sua revolugao privada. Perdura neles, de certo modo, a
csta quase aberragao: um dos polos da contradigao pretenden- sombra testemunhal do opressor antigo. Este continua a ser
do nio a hbertagao, mas a identincagao com o seu contrilio. o seu testemunhode "humanidade
O "homem novo", em tal caso, para os oprimidos, nio O "medo da liberdade",9de que se fmem objeto os opi.imi-
6 o homem a nascer da superagaoda contradigao, com a dos, meds da liberdade que tanto pode conduzi-los a pretender
trans6ormagao da velha situagio concreta opressora, que
' Este medo da liberdade tamb6m se instala nos opressores,mas, obviamente
cedeseulugar a uma nova, de libertagao. Para des, o novo de maneira diierente. Nos oprimidos, o medo da libetdade 6 o modo dc assumi-la
homem sio des mesmos,tornando-seopressoresde outros. Nos opressores, 6 o medo de perder a "liberdade" de oprimir.

H I PAULOFKnnE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 45


ser opressores tamb&m, quanto pode mant6-1os atados ao Si-
r No moments, por&m, em que se comece a aut6ntica luta
tu.sde oprimidos, 6 outro aspecto que merece igualmente nos- para criar a situagao que nascerf da superagao da velha, ja
sa reflexio. se este lutando pelo sa mats. E, se a situag5o opressora gera
Um dos elementos bfsicos na mediagao opressores-opri- uma totalidade desumanizadae desumanizante,que atinge
midos & a prescnfdo. coda prescrigao 6 a imposigao da op- os que oprimem e os oprimidos, nio vai caber, comoja afir-
gao de uma consci6ncia a outra. Dado sentido alienador das mamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados
prescrig6esque transformam a consci6ncia recebedora no s6 peso motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu
que vimos chamando de consci6ncia "hospedeira" da cons- serramosa buscado sermai.sde todos.
ci6ncia opressora. Por isto, o comportamento dos oprimi- Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados,
dos & um comportamento prescrito. Faz-se a base de pautas "imersos" na pr6pria engrenagemda estrutura dominado-
estranhas a des -- as pautas dos opressores. ra, temem a liberdade, enquanto nio se sentem capazesde
Os oprimidos, que introjetam a "sombra" dos opresso- correr o ciscode assumi-la. E a temem, tamb&m, na medida
res e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que lugar por ela significa uma ameaga,nio s6 aosque
em que esta,implicando a expulsao desta sombra, exigiria a usam para oprimir, como seus "proprietfrios" exclusivos,
delesque "preenchessem"o "vazio" deixado pda expulsao mas aos companheirosoprimidos, que se assustamcom
com outro "conteQdo" -- o de sua autonomia. O de sua maiores repressoes.
responsabilidade, sem o que ngo seriam livres. A liberdade, Quandodescobremem sio anseiopor libertar-se,perce'
que & uma conquista, e nio uma doagao, exige uma per- bem que este anseiosomente se faz concretude na concre-
manente busca. Busca permanente que s6 existe no ato res- tude de outros anseios.
ponsavel de quem a faz. Ningu6m tem liberdade para ser Enquanto tocados peso medo da liberdade, se negam a
livre: pelo contrario, lucapor ela precisamente porque n5o apelar a outros e a escutar o apelo que se Ihes nagaou que
a tem. N5o & tamb€1ma liberdade um panto ideal, fora dos se tenham feith a si mesmos, preferindo a gregarizagaoa
homens, ao qual inclusive des se alienam. Nio & ideia que se conviv&nciaaut6ntica. Preferindo a adaptagaoem que sua
nagamite. f condigao indispensavel ao movimento de busca nio liberdade os mant&m a comunhio criadora a que a ]i-
em que estio inscritos os homens como seresinconclusos. berdade leva, at& mesmo quando ainda somente buscada.
Data necessidade que se imp6e de superar a situagao Sofrem uma dualidade que se instala na "interioridade '
opressora.lsto implica o reconhecimento critics, a "razio ' do seu ser. Descobrem que, nio sendo livres, nio chegam a
destasituagao,para que, atrav&sde uma agro transformado- ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. Sio des e
ra que incida sobre ela, seinstaure uma outra, que possibibte ao mesmo tempo sio o outro introjetado neles,como cons-
aquelabuscado sermats. ci6ncia opressora. Sua luta se trava entre serem des mesmos

46 I PAULO FAIRE PEDAGOGIADO OPRIMIDO 1 47


ou seremduplos.Entre expulsaremou nio o opressorde
r' verdade,como disseHegel,'' somente superam a contradi-
dentro" de si. Entre se desalienarem ou se manterem alie- gao em que seacham quando o reconhecerem-se oprimidos
nados. Entre seguirem prescrig6es ou terem opg6es. Entre os engajana luta por libertar-se.
serem espectadoresou adores.Entre atuarem ou terem a Nio basta saberem-senuma relag5o dial&tica com o
ilus5o de que atuam na atuagao dos opressores. Entre dize- opressor -- seu contrfrio antag6nico --, descobrindo, por
rem a palavra ou nio terem voz, castradosno seupoder de exemplo, que sem des o opressor nio existiria (Hegel), para
criar e recriar, no seupoder de transformar o mundo. estaremde fate libertados. E precise, enfatizemos, que se
Este 6 o trfgico dilema dos oprimidos, que a sua pedago- entreguem a praxis libertadora.
gia tem de enfrentar. O mesmo se pode dizer ou afirmar com relagaoao
A libertag5o,por into,& um panto.E um pardodoloroso.O opressor, tomado individualmente, coma pessoa. Desco-
homem que nascedeste pardo 6 um homem novo que s6 & vif- brir-se na posigio de opressor, mesmo que safra por este
vel na e peta superagaoda contradigaoopressores-oprimidos, cato, nio & ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidari-
que & a libertagao de todos. zar-se com estes & argo mais que prestar assist&ncia a trinta
A superagio da contradigao & o parto que graz ao mundo ou a cem, mantendo-os atados,contudo, a mesma posigao
este homem novo nio mais opressor; nio mais oprimido, de depend6ncia. Solidarizar-se nio 6 ter a consci6ncia de
mas homem libertando-se. que explora e "racionalizar" sua culpa paternalistamente.
Este superag5o nio pode dar-se, por6m, em termos pu- A solidariedade,exigindo de quem se solidariza que "assu-
ramente idealistas. Se se faz indispensfvel aos oprimidos, ma" a situagaode com quem se solidarizou, & uma atitu-
para a luta por sua libertagao, que a realidade concreta de de radical.
opressaoja n5o seja para des uma esp&ciede "mundo fe- Se o que caracterizaos oprimidos, como "consci6ncia
chado" (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual servil" em relag5o a consci&ncia do senhor, 6 fazer-se quase
nio pudessemsail, mas uma situagaoque apenasos limita 'coisa" e transformar-se, como salienta Hegel,'' em "cons-
e que des podem transformar, 6 fundamental, entao, que, ci6ncia para outro", a solidariedade verdadeira com des
ao reconheceremo limite que a realidadeopressorashes este em comdes lutar para a transformagao da realidade
imp6e, denham, ncste reconhecimento, o motor de sua objetiva que os faz ser este "ser para outro '
agaolibertadora.
10The [ru h of the itzdelendmt co cio nessis (accordingZYJ
hecomciomwssof lite
Vale dizer, pris, que reconhecerem-se limitados pda si- boniisman. Hegel, op. cit., p. 237
11 Referindo-sea consci6ncia senhorial e a consci6nciaservil, diz Hegel: theom
tuagao concreta de opressio, de que o falso sujeito, o falso
is indepmdmt, and its essentialntdtureis to bejor itself lite other is depmdmt and {ts
'serpara si", 6 o opressor,nio significa ainda a sua liberta- essence is l€#for cxisimcejur anotltn Thejormer is the Mmtcb or h)rd, lite latter tlu
gio. Coma contradigaodo opressor,que tem neles a sua Bottdsmatt.
Op.cit..p. 234.

48 I PAULOFREIRE PEDAGOGIA
DOOPRIMIDO 1 49
O opressor s6 se solidariza com os oprimidos quando o A objetividade dicotomizada da subjetividade, a nega-
seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de ca- gao desta na anflise da realidade ou na agro sobre ela, &
rfter individual, e passaa ser um ato de amor aqueles.Quan- objetfHsmo.Da mesma forma, a negagao da objetividade,
do, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designagao na anflise como na agro, conduzindo ao subjetivismo que
abstrata e passam a ser os homens concretos, injustigados e se alonga em posig6es solipsistas, nega a agro mesma, por
roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho negar a realidade objetiva, desde que esta passaa ser cria-
comprado, que significa a suapessoavendida. S6 na plenitu- gao da consci6ncia. Nem objetivismo, nem subjetivismo
de deste ato de amal, na sua existenciagao,na sua praxis, se ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em per'
constituia solidariedade verdadeira. Dizer que os homens Hanente dialeticidade.
s5opessoase, como pessoas,sio livres, e nada concretamen- Confundir subjetividadecom subjetivismo,com psico-
te razer para que esta afirmagao se objetive, & uma farsa. logismo, e negar-the a importancia que tem no processo de
Da mesma forma como & em uma situagao concreta -- a transformagaodo mundo, da hist6ria, &cair num simplismo
da opressao -- que se instaura a contradigao opressor-opri- ing&nuo. E admitir o impossivel: um mundo sem homens,
midos, a superagaodesta contradigao s6 se pode verificar tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica
oUet£vammre tamb&m. homens sem mundi.
Dai esta exig6ncia radical, tanto para o opressor que se des- Nio ha um sem os outros, mas ambos em permanente
cobre opressor,quandopara os oprimidos que, reconhecen- integragao.
do-se contradigao daquele, desvelam o mundo da opressao Em Marx, como em nenhum pensadorcdtico, realista,
e percebem os mites que o alimentam -- a radical exig6ncia jamais se encontrarf astadicotomia. O que Marx criticou,
da transformagao da situagao concreta que gera a opressao. e cientificamente destruiu, nio foia subjetividade, mas o
Parece-nosmuito claro, nio apenas neste, mas noutros subjetivismo,o psicologismo.
momentos do ensaio, que, ao apresentarmos esta radical A realidade social, objetiva, que n5o existe por acaso,
exig6ncia -- a da transformagao objetiva da situagao opres- mas como produto da agro dos homens, tamb6m nio se
sora --, combatendo um imobilismo subjetivista que transforma por acaso. Se os homens s5o os produtores desta
transformasse o ter consci6ncia da opressao numa esp&cie realidade e se esta, na "invers5o da praxis", se volta sobre
de espera paciente de que um dia a opress5o desapareceria des e os condiciona,transformar a realidadeopressora&
por si mesma, nio estamos negando o papel da subjetivida- tarefa hist6rica, & tarefa dos homens.
de na luta pda modificagao das estruturas. Ao fazer-seopressora, a realidade implica a exist6ncia
Nio se pode pensar em objetividade sem subjetividade. dos que oprimem e dos que sio oprimidos. Estes,a queen
Nio ha uma sem a outra, que nio podem ser dicotomizadas. caberealmente lutar por sualibertagaojuntamente com os

50 I PAULO FLIM PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 51


que com des em verdadese solidarizam, precisam ganhar a Delta forma, esta superagao exige a insergao critica dos
consci6ncia critica da opressao, na prfxis desta busca. oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a,
Este 6 um dos problemas mais graves que se poem a liber- simultaneamente atuam sobre ela.
tag5o. f que a realidade opressora, ao constituir-se coma um Por isto, insergao critica e agaoja sio a mesma coisa. Por
quase mecanismo de absorgao dos que nela se encontram, isto tamb&m6 que o mero reconhecimento de uma realida-
funciona coma uma formade imersio das consci6ncias.'' de que nio leve a esta insergao critica (agaoja) nio conduz a
Neste sentido, em si mesma, etta realidade 6 funcional- nenhuma transformagao da realidade objetiva, precisamen-
mente domesticadora. Libertar-se de sua forma exide, indiscu- te porque n5o 6 reconhecimento verdadeiro.
tivelmente, a emersio dela, a volta sobre ela. E por isso que Este & o caso de um "reconhecimento" de carfter pura-

s6 atrav6sda praxis aut6ntica que, nio sendo "bla-bla-bla", mente subjetivista, que & antes o resultado da arbitrariedade
nem ativismo, mas aWaDe reflexao, 6 possivel £az6-1o. do subjetivista,o qual, fugindo da realidadeobjetiva,cria
Hay elie }tacer h opres67treal to(bda mh opresivaatiadten- uma balsarealidade "em si mesmo". E nio 6 possiveltrans-
do a aq elh la conscfmdade h opresi6tt,Itacimdo Za{t!#amia formar a realidade concreta na realidade imaginfria.
to(hHa mds i71#amante,a! p7t;gottarla.is
E o que ocorre, igualmente, quando a modificagao da
Este fazer "a opress5oreal ainda mais opressori, acres- realidadeobjetiva gereos interessesindividuais ou de classe
centando-thea consci6nciada opress5o",a que Mam se de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, nio ha insergao critica na realidade,
revere,correspondea relag5odial&tica subjetividade-objeti-
vidade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo porque esta6 ficticia; no segundo,porque a insergaocontra-
diria os interesses de classe do reconhecedor.
constitui com o objetivo uma unidade dia16tica,& possivela
A tend6ncia deste 6, entao, comportar-se "neurotica-
praxisautCntica.
mente". O faso existe, mas tanto ele quanto o que dele
A praxis, por&m, & reflexio e agro dos homens sobre o
talvez resulte Ihe podem ser adversos. Dai que deja necessa-
mundo para transforms-lo. Sem ela, 6 impossivel a supera'
rio, numa indiscutivel "racionalizagao", n5o propriamente
gao da contradigao opressor-oprimidos.
nega-lo,mas v6-1ode forma diferente. A "racionalizagao",
': 'A agro Libertadora implica um memento necessaliamenteconsciencee voli- como mecanismo de defesa,termina por identificar-secom
dvo, configurando-se coma a prolongag5o e a inserg5o continuadas dente na o subjetivismo. Ao nio negar o cato, mas distorcer suas
hist6ria. A agro dominadora, entretanto. n5o sup6eetta dimensio com a mesma
necessalicdadc, pols a pi6pria fiincionalidade mecinica e inconsciente da estrutura
verdades,a "racionalizag5o" "retira" as basesobjetivas do
6 mantenedora dc si mesma e, portanto, da domina$o." De um trabalho de Jose mesmo. O faso deixa de ser ele concretamente e passa a ser
Luiz Fish, a quem o autor agradece a possibilidade da citagao.
um miro criadopara a defesada classedo que 6ezo reco-
n Karl Marx e FriedrichEngels,La sagrada
jumilia y otrosescritos.
M&xico:
Grijalbo, 1962, p. 6.(O gri£o 6 nosso.) nhecimento,que, assim,se lorna falso. Destaforma, mais

PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 53
S2 I PAULO FREIRE
uma vez, 6 impossivel a "insergao critica", que s6 exlste na f que nio haveria agro humana sc nio houvesseuma
dialeticidade objetividade-subjetividade. realidadeobjetiva, um mundi como "nio cu" do homem,
Ai este uma dasraz6es para a proibigao, para as dificul- capaz de desafia-lo; como tamb&m nio haveria aWaD hu-
dades-- como veremosno Qltimo capitulo desteensaio--, manase o homem nio fosseum "projeto", um mais a16m
no sentido de que asmassaspopularescheguem a "inserir-se", de si, capaz de captar a sua realidade, dc conhec6-lapara
criticamente, na realidade. E que o opressor sabe muito trans6ormf-la.
bem que esta "insergao critica" das massasoprimidas, na Num pensar dia16tico,agro e mundo, mundo e agro,
realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que estio intimamente solidfrios. Mas a agro s6 & humana
Ihe interessa,pesocontrario, & a perman6ncia delasem seu quando, mais que um puro fazer, & quefazcr,isto &,quando
estadode "imersio" em que, de modo gerd, se encontrRm tamb&m nio se dicotomiza da reflexio. Esta, necessfria a
impotentes em faceda realidadeopressora,como "situagao agro, esteimplicita na exig6ncia que faz Lukfcs da "explica-
limite" que Ihespareceintransponivel. gao is massasde sua pr6pria agro" -- coma esteimplicita
E interessante observar a advert6ncia que faz Lukfcs'' ao na finalidade que ele da a essa explicagao, a de "ativar cons-
partido revo]ucionfrio de que [...] iZdoit, pour employsles cientemente o desenvolvimento ulterior da experi6ncia:
mots de Mam, expliqaer dKtx ramses Imrpropre actio?t aon smZe- Para n6s, contudo, a quest5o nio esb propriamente
mmt a0?zd 'asstlrer h conti?tuitd des a?irimces revoZationnaires em explicar is massas,mas em dialogar com das sobre
dK proto arial, mats a ssi d'waiver comciemmmt le d6veloppe- a sua agro. De qualquer forma, o dever que Lukfcs re-
mmt It6rimr de cesexp&fmces. conhece ao partido revolucionfrio de "explicar is mas-
Ao afirmar etta necessidade,Lukfcs coloca, indiscutivel- sasa sua agro" coincide com a exig6ncia que fazemos
mente, a questao da "insergao critica" a que nos referimos. da insergao critica das massas na sua realidade atrav&s da
Expliqaer aiu massesImrp70pre action & esclarecer e ilumi- praxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a
nar a agro, de um lada, quando a sua relagio com os dados si mesma.''
objetivos que a provocam; de outro, no que diz respeito is A pedagogiado oprimido que, no fundo, & a pedagogia
finalidadesdapr6pria agro. dos homens empenhando-se na luta por sua libertagao, tem
Quando mais as massaspopulares desvelam a realidade suasraizesai. E tem que ter nos pr6prios oprimidos, que se
objetiva e desafiadora sobre a qual das devem incidir sua agro
15 la peoria matedalista de qKe Zoshombres son prodmto de Zm circamultcim y dc
transformadora, tanto mais se "inserem" nela criticamente.
ta educacfdit, y de qKe,por [attto, los Itombresmod$cados son products de cirmm-
Desta forma, estario ativando comdemmmt le ddveloppe- taltdas disrintm y de alta educacidndistfnta. oZHfh que I cirrumtancim se bach
mmt uZtdrieurde suas experi6ncias. cambfarprrcbammte por los hombresy que el proprf o educator necesitaser educado.
Karl Mam, 'Tercera Tesis sabre Feuerbach",in Karl Marx e Friedrich Engels,
'' Gy69y Lukacs, Irttiw. Paris:Etudes et Documentation Intemadonalcs, 1965,p 62. Obrm esc(:gidm.Moscou: Editorial Progresso, 1966, v. 11,p. 404.

54 I PAUL.OFREIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 55


saibam ou comecemcriticamente a saber-seoprimidos, um se encontra na distingao entre edKcafdosktemdtica,a que
dos deus sujeitos. s6 pode ser mudada com o poder, e os trabaZltos edticattvos,
Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode fi- que devem ser realizados com os oprimidos, no processo de
car distancedos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles sua organmagao.
seresdesditados, objetos de um "tratamento" humanita- A pedagogiado oprimido, coma pedagogiahumanista
rista, para tentar, atrav&sde exemplos retirados de entre e libertadora; teri dois momentos distintos. O primeiro,
os opressores, modelos para a sua "promogao". Os opri- em que os oprimidos v5o desvelando o mundi da opres'
midos hio de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sio e vio comprometendo-se, na prfxis, com a sua trans-
sua redengao. formag5o; o segundo, em que, transformada a realidade
A pedagogia do oprimido, que busca a restauragao da opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e pasha
intersubjetividade, se apresentacomo pedagogiado Ho- a ser a pedagogia dos homens em processo de permanen-
mem. Somente ela, que se amma de generosidade aut6n- te libertag5o.
tica, humanista e nio "humanitarista", pode alcangar este Em qualquer destesmomentos, serf semprea agro pro-
objetivo. Pelo contrario, a pedagogia que, partihdo dos funda, atrav6s da qual se enfrentarfj;culturalmente, a cul-
interesses egoistas dos opressores, egoismo camuflado tura da dominagao.'' No primeiro momento, por meio da
de balsagenerosidade,faz dos oprimidos objetos de seu mudanga da percepg5odo mundo opressor por parte dos
humanitarismo, mant&m e encarna a pr6pria opressao.E oprimidos; no segundo, pda expulsao dos milos criados e
instrumento de desumanizagao. desenvolvidosna estrutura opressora e que se preservam
Esta 6 a raz5o pda qual, comoja afirmamos, etta pedago- .como espectrosmiticos, na estrutura nova que surge da
transformagao revolucionfria.
gia nio pode ser elaborada nem praticada pecosopressores.
Serra uma contradigio se os opressores n5o s6 defendes- No primeiro momento, o da pedagogiado oprimido,
objeto da anflise deste capitulo, estamos em face do pro-
sem,maspraticassemuma educagaolibertadora.
blema da consci6ncia oprimida e daconsci&ncia opressora;
Se,por6m, a pratica delta educagaoimplica o poder po-
dos homens opressorese dos homens oprimidos, em uma
litico e se os oprimidos nio o t6m, coma entio realizar a
situagaoconcretade opressao.Em racedo problemade
pedagogia do oprimido antes da revolugao?
seu comportamento, de sua visio do mundo, de sua &tica.
Esta &, sem davida, uma indagagaoda mais alta impor-
Da dualidadedos oprimidos. E & como seresduais,con-
tancia, cubarespostanos parece encontrar-se mais ou me- tradit6rios, divididos, que temps de encarf-los. A situag5o
nos clara no Qltimo capitulo desteensaio. de opressaoem que se "formam", em que "realizam" sua
Ainda que nio queiramos antecipar-nos,poderemos,
la Este nos parece scr o aspects fundamental da "revolugao culmral '
contudo, afirmar que um primciro aspecto desta indagagao

PEDAGOGIA OO OPNMDO 1 57
56 I PAULO FAIRE
existancia, os constitui nesta dualidade, na qual se encon- Quem inaugura o 6dio nio sio os odiados, mas os que
tram proibidos de ser. Basra,por6m, que homens estejam primeiro odiaram.
sends proibidos de ser mais para que a situagao objetiva Quem inaugura a negagaodos homens nio sio os que
em que tal proibigao se verifica seja, em si mesma, uma tiveram a sua humanidade negada,mas os que a negaram,
vio16ncia.Vio16nciareal, nio importa que, muitas vezes, negandotamb&ma sua.
adocicadapda fisa generosidadea que nos referimos, por' Quem inaugura a formanio sio os que se tornaram tacos
que gerea onto16gica e hist6rica vocagao dos homens -- a sob a robustez dos cortes, mas os cortes que os debilitaram.
do sermats. Para os opressores, por6m, na hipocrisia de sua "generosi-

Dai que, estabelecida a relagao opressora, esteja inaugu- dade", sio sempre os oprimidos, que elesjamais obviamente
rada a vio16ncia,que jamais foi at& hoje, na hist6ria, defla- chamam de oprimidos, mas, conforme se situem, interna
gradapecosopiimidos. ou externamente,de "essagente" ou de "essamassacega
Como poderiam os oprimidos dar inicio a vio16ncia,se e invejosa", ou de "selvagens", ou de "nativos", ou de "sub-
des sio o resultado de uma vio16ncia? versivos", s5o sempre os oprimidos os que desamam.Sio
Coma poderiam ser os promotores de argo que, ao ins- sempredes os "violentos", os 'bfrbaros", os "malvados",os
taurar-seobjetivamente,os constitui? 'ferozes", quando reagem a vio16ncia dos opressores.
Nio haveria oprimidos, se nio houvesse uma relagao de Na verdade, por6m, por paradoxal que possa parecer, na
vio16nciaque os conforma como'violentados, numa situa- resposta dos oprimidos a vio16ncia dos opressores & que va-
gao objetiva de opressao. mos encontrar o gesto de amor. Conscienteou inconscien-
Inauguram alvio16nciaos que oprimem, os que explo- temente, o ato de rebeliio dos oprimidos, que 6 sempretio
ram, os que nio se recbnhecemnos outros; n5o os opriml ' ou quase tio violento quanto a vio16ncia que os chia, este
dos, os explorados, os que nio sio reconhecidos pecosque ato dos oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.
os oprimem coma outta. Enquanto a vio16ncia dos opressoresfaz dos oprimidos
Inauguram o desamor, nio os desamados, mas os que homens proibidos de ser, a resposta destes a vio16nciada-
nio amam,porque apenasseamam. queles se encontra infundida do anseio de busca do direito
de ser.
Os que inauguram o terror nio s5o os d&beis, que a
ele sio submetidos, mas os violentos que, com seu poder, Os opressores,violentando e proibindo que os outros
creama situagao concreta em que se geram os "demitidos sejam, n5o podem igualmente ser; os oprimidos, lutando
da vida", os esfarrapadosdo mundo. por ser, ao retirar-shes o podef de oprimir e de esmagar.
Quem inaugura a tirania nio sio os tiranizados, mas shesrestauram a humanidade que haviam perdido no uso
os ttr&nos. da opressao.

PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 59
58 I PAULOFROM
Por into 6 que somente os oprimidos, libertando-se, po- No moments, por6m, em que o novo poder se endyece
dem libertar os opressores.Estes,enquanto dasse que opri- em 'burocracia"'' dominadora, se perde a dimensio huma-
me, nem hbertam, nem se libertam. nista da lula ejf nio se pode falar em libertagao.
O importante, por isto mesmo, 6 que a luta dos oprimidos Data afirmagao anteriormente feita, de que a superagio
se nagapara superar a contradigao em que se acham. Que esta aut&ntica da contradigao opressores-oprimidos nio esb na
superagaosegao surgimento do homem novo --- n5o mats pura troca de lugar, na passagemde um polo a outro. Maid
opressor, n5o mais oprimido, mas homem hbertando-se. Pred- ainda: n5o este em que os oprimidos de hole, em nome de
samenteporque, se sualuta &no sentido de fazer-seHomem, sua libertag5o, passem a ter novos opressores.
que estavamsendo proibidos de ser, nio o conseguirio se
apenasinvertem os termos da contradig5o.lsto &, se apenas
mudam de lugar nos polos da contradigao. A SITUAgAO CONCRETA DE OPRESSAO E OS OPRESSORES

Etta afirmagao pode parecer ing6nua. Na verdade, n5o o &.


Reconhecemosque, na superagao'.'da contradigao Mas o que ocorre, ainda quando a superagaoda contradi-
opressores-oprimidos,:;quesomente pode ser tentada e gaose nagaem termos aut6nticos, com a instalagaode uma
realizadapor estes,esteimplicito o desaparecimentodos nova situagao concreta, de uma nova realidAde inaugura-
primeiros, enquanto classeque oprime:Os freios que os da pelts oprimidos que se libertam, & que os opressores
antigos oprimidos devem impor aos antigos opressores de ontem nio se reconhegam em libertagao. Pele con-
para que nio voltem a oprimir n5o s5oopressdodaqueles a trfrio, vio sentir-secomo se realmente estivessemsends
estes.A opressaos6 existe quando se constitui em um ato oprimidos. f que, para des, "formados" na experi6ncia
proibitivo do ser mats dos homens. Por esta razao, estes de opressores,rudd o que n5o seja o seu direito antigo de
freios, que sio necessarios,n5o significam, em si mesmos, oprimir significa opressao a des. V5o sentir-se, agora, na
que os oprimidos de ontem se denham transformado nos nova situagao, como oprimidos porque, se antes podiam
opressoresde h(2je. comer, vestir, calgar, educar-se, passear, ouvir Beethoven,
Os oprimidos de ontem, que det6m os antigos opresso- enquanto milh6es nio comiam, nio calgavam,n5o ves-
res na sua india de oprimir, estario gerando, com seu ato, tiam, nio estudavamnem tampouco passeavam,quando
liberdade, na medida em que, com ele,'evitam a volta do re- i7 Este enrijecimen;to nio se confunde, pris, com os &cios referidos anteiior-
gime opressor.Um ato que proibe a restauragaodesteregi: mente e que t6m de ser impostos aos antigos opressores,para que nio res-
taurem a ordem dominadora. f de outra natureza. Implica a revolugio que,
me n5o pode ser comparado com o que o cria e o mant&m;
estagnando-se,volta-se contra o povo, usando o mesmo aparato burocrftico
nio pode ser comparado com aquele atrav6s do qual alguns Kpressivo do Estado, que devia ter side radicalmente suplimido, coma tantas
homens negam is maiorias o direito de ser. vezessalientouMarx.

60 I PKuu) FAIRE PEDAGOGIADO OPRIMIDO 1,61


mais podiam ouvir Beethoven, qualquer restrigao a tudo mundo e dos homens. Fora da possedireta, concreta, mate-
isto, em nome do direito de todos, Ihesparece uma pro- rial, do mundo e dos homens, os opressoresnio se podem
funda vio16ncia a seu direito de pessoa. Direito de pessoa entender asi mesmos. Nio podem ser. Deles como consci6n-
que, na situagaoanterior, nio respeitavamnos milh6es cias necr6Has, dina Fromm que, sem esta posse, perderian el
de pessoasque softiam e morriam de tome, de dor, de cotttactocolt el m ndo.'' Dai que tendam a transformar judo
tristeza, de desesperanga. o que os cercaem objetos de seudomingo.A terra, os bens,
E que, para des, pessoahumana sio apenasdes. Os ou- a produgao, a criagao dos homens, os homers mesmos,o
tros, estessio "coisas". Para des, hfum s6 direito -- o seu tempo em que estio os homens, judo se reduz a obyetodc
direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, seucomando.
que talvez nem sequer reconhegam, mas somente admi- Nesta india irrefleada de posse, desenvolveih em si a
t8m aos oprimidos. E isto ainda porque, afinal, 6 precise convicgao de que Ihes 6 possivel transformar tudo a seu po-
que os oprimidos existam, para que des existam e sejam der de compra. Data sua concepgaoestritamente materia-
C

generosos lista da exist6ncia.O dinheiro & a medida de ladas as coisas.


asta maneira de proceder, de compreender o mundi e os E olucro,seu objetivo principal.
homens (que necessariamenteos faz reagir a instalagaode Por isto 6 que, para os opressores, o que vale 6 ta amis e
um novo poder), explica-se,comoja dissemos,na experi6n- cadavez luis, a custa, inclusive, do ta tttmos ou do ?ta£hkr
cia em que se constituem comodasse dominadora. dos oprimidos. Ser,para des, & ter e ter coma dasse que tem.
Em verdade,instauradauma situag5ode vio16ncia,de Nio podem perceber. na situag5o opressora em que es-
opress5o,ela gera toda uma forma de ser e comportar-se t5o, como usuRutufrios, que, se ta ' 6 condig5o para ser,etta
nos que estio envolvidos nela. Nos opressorese nos oprimi- 6 uma condigao necessfria a todos os homens. Nio podem
dos. Uns e outros, porque concretamente banhados nesta perceber que, na busca egoista do ter como dasse que tem,
situagao, refletem a opress5o.que os marca. se afogam na posse e ja n5o sio. Ja n5o podem ser.
Na anflise da situagao concreta, existencial, de opress5o, Por isto tudo 6 que a sua generosidade,como salienta-
n5o podemosdeixar de surpreender o seunascimento num mos, & balsa.
ato de violQncia que 6 inaugurado, repetimos, pelos quc Por isto tudo & que a humanizagao 6 uma "coisa" que
t6m poder. possuemcomo direito exclusivo,como atributo herda-
Esta vio16ncia, coma um processo, passa de geragao a do. A humanizagao 6 apenas sua. A dos outros, dos seus
geragao de opressores,que se v5o fazendo legatarios dela e contrarios, se apresentacomo subversio. Humanizar &,
foraando-se no seu clima gerd. Este clima cria nos opres-
n Erich Fromm, EZcoruz6ltdet }tomhe,breviario.Mexico: R)ndo de Cultura
sores uma consci6ncia fortemente possessiva. Possessiva do l Econ6mica, 1967, p. 41.

62 I PAULO FREIRE
PEnxcociA nOOPmMinO 1 63
naturalmente,, segundo seu ponto de vista, subverter, c Na medida em que, para dominar, se esforgampor deter
nao ser mats. a india de busca, a inquietagao, o poder de criar, que carac-
Ter mais, na exc]usividade, n5o 6 um privi]6gio desuma- terizam a vida, os opressoresmatam a vida.
nizante e inaut6ntico dos demais e de si mesmos, mas um Dai quc vio se apropriando, cada vez mais, da ci6ncia
direito intocivel. Direito que "conquistaramcom seueslor- tamb&m, como instrumento para suas finalidades. Da tec-
go, com suacoragem de correr risco". Seos outros -- "esses nologia, que usam como formaindiscutivel de manutengao
da "ordem" opressora,com a qual manipulam e esmagam.:'
invejosos" -- nio t&m, e porque sio incapazese preguigo-
sos,a quejuntam aindaum injustificfvel mau agradecimen- Os oprimidos, como objetos, como quase"coisas", nio
t6m finahdades.As suas,sio asfinalidadesque shesprescre-
to a seus"gestosgenerosos".E, porque "mal-agradecidose
invejosos", s5o semprevistos os oprimidos como seusini- vem os opressores.
Em face de tudo isto 6 que se coloca a n6s mais um
migos potenciais a quem t6m de observar e vigiar.
Nio poderia deixar de ser assim.Se a humanizagao dos problema de importancia inegavel a ser observado no cor-
po destas considerag6es,que 6 o da adesio e consequen-
oprimidos & subversao, sua liberdade tamb&m o 6. Data ne-
ce passagemque fazem representantesdo polo opressor
cessidadede seu constancecontrole. E, quanto mais con-
ao polo dos oprimidos. De sua adesio a luta destespor
trolam os oprimidos, mais os transformam em "coisa", em libertar-se,
algo que &como se fosseinanimado.
Cabe a des um paper fundamental, como sempre tem
asta tend6ncia dos opressoresde inanimar judo e todos, cabido na hist6ria delta luta.
que se encontra em sua insia de posse, se identifica, indis- Acontece, por6m, que, ao passarem de exploradores ou
cutivelmente, com a tend6ncia sadista. EZphca deZdomittjo de espectadoresindiferentes ou de herdeiros da explorag5o
compZetosobre okra persotta (o sabre atta creat ru attimadaJ, diz -- o que & uma coniv6ncia com ela -- ao polo dos explo-
Fromm, es h esmda misma del mp ko sddico. Okra ma era de rados, quase sempre levam consigo, condicionados pda
jormaZar h misma idea esdear qKeel.Plt deZsadismo es cottvertir 'cultura do si16ncio",:'coda a marca de sua origem. Seus
an Itombre m cosa, argo attimado m argo {Ka?timado, ya qtle me- preconceitos. Suasdeformag6es, entre estas,a desconfianga
dfante eZcontrol compZeto y absoZKto eZHdr pierce ttQ c aZfdad
esettcial de h da: h i bHtdd.19 " A prop6sito das "formas dominantes de controle social", cf. Herbert Marcuse,.
I,'Homme undfmmsionel e Eros et Cidllsa fait. ,Paris: Editions de Minuit; 1968-1961,
O sadismo aparece, assim, coma uma das caracteristicas
obras ja traduzidas para o portugu6s.
da consci6ncia opressora, na sua visio necr6fila do mundi. :' A prop6silo de "culture do si16ncio", cf. "Paulo Faire: aWaDcu]tura] para li-
Por isto 6 que o seuamor & um amor is avessas-- um Amor bertagio", Cambridge, Massachusetts,Center for the Study of Development and
a morse e nio a vida. Social Change, 1970. Este ensaio apareceu primeiramente em Harvard Educatio Z
Renew, nos seus ndmeros de maid e agosto de 1970; 6 publicado no Brasil em

ip Fromm, op cit., p. 30.(Os grifos sio nossos.) 1976, pda Paz e Terra, no livro Aldo mlturalpann a libe71iadee OKtrosescri£os.

PEDAGOGIADO OPRIMIOO 1 65
64 I PAULO FREIRE
do povo. Desconfiangade que o povo seja capazde pensar de estersends;ja n5o podem atuar como atuavam;ji nio
certo. Dg querer. De saber. podempermanecercoma estavam smdo.
Deste modo, estio sempre correndo o risco de cair num
outro tips de generosidade,tio funesto quandoo que criti-
camos nos dorhinadores. A SITUAgAO CONCRETA DE OPRESSAOE OS OPRIMIDOS

Se esta generosidadcnio se nutre, como no caso dos


opressores,da ordem injusta que precisa ser mantida para Serf na sua conviv6ncia com os oprimidos, sabendo-setam-
justifica-la; se querem realmente transforms-la, na sua de- b6m um deles-- somente a um naveldiferente de percepgao
6oimagao,contudo, acreditam que devem ser os fazedores da realidade--, que podera compreender as fornlas de ser e
da trans6ormagao. comportar-sedos oprimidos, que refletem, em mementos
Comportam-se, assim, coma quem n5o cr6 no povo, ain- diversos,a estrutura da dominag5o.
da que nele salem.E crer no povo & a condigao pr&via, indis- Uma destas,de que ja falamos rapidamente, 6 a duali-
pensavel,a mudangarevolucionfria. Um revolucionfrio se dade existencialdos oprimidos que, "hospedando" o opres-
reconhece mais por esta crenga no povo, que o engaja, do sor, cuba"sombra" des "introjetam", sio des e ao mesmo
que por mil agnessemela. tempo s5o o outro. Dai que, quase sempre, enquanto n5o
Aqueles que se comprometem autenticamente com o chegam a localizar o opressor concretamente, como {am-
b6m enquanto n5o cheguem a ser "consci6nciapara si",
povo 6 indispensfvel que se revejam constantemente. Esta
assumamatitudes fatalistas em face da situagao concreta
adesio 6 de tal forma radical que nio permite a quem a iaz
deopressaoem que estio.::
comportamentosambiguos.
Este fatalismo, is vezes, df a impressao, em anflises su-
Fazer esta adesio e considerar-se proprietfrio do saber
perficiais, de docilidade, como carfter nacional, o que & um
revolucionario, que deve,desta maneira, ser doado ou im-
engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, & fruto de
posto ao povo, &manter-secomo era antes.
uma situagao hist6rica e socio16gica e nio um trago essen-
Dizer-se comprometido com a libertag5o e n5o ser capaz cial da forma de ser do povo.
de comKngarcom o povo, a quem continua considerando Quase sempre este fatalismo este referido ao poder do
absolutamenteignorante,6 um dolorosoequivoco. destino ou da sina ou do fade -- pot6ncias irremoviveis
Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passe,a cada divi- . -- ou a uma distorcida visio de Deus. Dentro do mundo
da, a cada expressao sua, uma esp6cie de susto, e pretender
22 "0 campon6s, que 6 um dependence, comega a ter inimo para superar sua
impor o seu swatHS,
6 manter-se nostflgico de sua origem. depend6ncia quando se da conga de sua depend6ncia. Antes disco, segue o pa-
Dai que esta passagemdeva ter o sentido profundo do trio e diz quake sempre: 'Que posso fazer, se sou um campon6s?"' -- Palavras
renascer. Os que passam t6m de assumir uma forma nova de um campon6s durante entrevista com o actor, no Chile:

66 I PAULO FREIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 67


magico ou mistico em que se encontra, a consci6nciaopri- repulsa de colonizado ao colonizador mesclada,contudo,
mida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza,:' de "apaixonada"atragaopor ele.
encontrano sofhmento,produto da exploragaoem que A autodesvalia& outra caracteristicados oprimidos. Re-
este, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta sulta da introjegao que fazem des da visio que deles t6m os
'desordem organizada ' opressores.'
Na "imersio" em que se encontram, nio podem os De tanto ouvirem de si mesmos que sio incapazes,que
oprimidos divisar, claramente, a "ordem" que serve aos nio sabem nada, que n5o podem saber, que sio enfermos,
opressores que, de certa forma, "vivem" neles.. "Ordem ' indolentes, que nio produzem em virtude de tudo isto, ter-
que, frustrando-os no seu atuar, muitas vezes os leva a exer- minam por se convencerde sua "incapacidade".z' Falam de
cer um lipo de vio16nciahorizontal com que agridem os si coma os que ngo sabem e do "doutor" coma o que sabe
pr6prios companheiros.:' E possivelque, ao agirem assim, e a quem devem escutar. Os crit&rios de saber que Ihe sio
mais uma vez explicitem sua dualidade. Ao agredirem seus impostor sio os convencionais.
companheiros oprimidos estario agredindo neles, indireta- Nio se percebem, quase sempre, conhecendo, nas rela-
mente, o opressor tamb&m "hospedado" neles e nos outros.
g6esque estabelecemcom o mundi e com os outros ho-
Agridem, coma opressores,o opressornos oprimidos. mens, ainda que um conhecimento ao nigel da pura Zola.
Ha, por outro lado, em cerro momento da experi6nciaexis- Dentro dos marcos concretos em que se fazem duais &
tencia[ dos oprimidos, uma irresistive] atragao peso opressor.
natural que descreiam de si mcsmos.a
Pelts seus padr6es de vida. Participar destes padr6es constitui
Nio sio poucos os camponesesque conhecemosem
uma incontida aspiragao. Na sua alienag5o querem, a todo cus-
nossaexperi6ncia educativa que, ap6s alguns momentos de
to, parecer com o opressor. Imitf-lo. Segui-lo. lsto se verMca, discussio viva em torno de um tema que shes6 problemfti-
sobretudo, nos oprjmidos de "dassemedia", cujo anseio 6 se-
co, param de repente e dizem ao educador: "Desculpe,n6s
rum iguais ao "homem ilustre" da chamada dasse "superior '
E interessanteobservarcomo Memmi,:s em uma excep- excessive demands? How noah he Irate rite coZottizerx atd yet admire them so pmsio-

tional anflise da "consci6ncia colonizada", se reverea sua mteiy? rl tooJtlt this admiration, diz Memmi, in spite of mosey).Albert Memmi,
TateCoZottizerald the Colottized.Boston: Beacon Press,1967,p. X. Em portugues,
:s Cf Cindido Mendes, Afemmto dos dvds; a esqaerda cat61{catto Broil. Rio de Retrato do colonizacZoprcccdido polo retraro do colonizador, 2' ed. Rio de Janeiro:
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. Paze Terra, 1977.
z' Frantz canon, I,os coTdmados
de Za t ezra. M&xico: Fonda de Cultura
z' "0 campon6s se sante inferior ao patr5o porque este Ine parece coma o que
Econ6mica, 1965:[,..] e] coZonizado lto dga de Zibaarse mire Z n eve de Za }tocltey tem o m6ritode sabere dirigir."(Entrevista do autor com um campon&s)
las sek de h }ntafhata.Esa agresil'Madsedtmmta(h m s mhmZos vu a mant#estarZa zz Cf. a este respeito o livro citado de Albert Memmi.
al coZottizado
pdmero contra los sunos.(p. 46) 'Por que o senhor(disse certa vez um camponds participante de um 'circuto
25 How co Zdlite coZonfzerlook a#cr his workers wh ZcpedodicalZy guttning dowlt a dc cultura ' ao educador)n5o explica primeiramente os quadros(referia-seis
crowd of rite coZolttzed?How could tke colorized deny ;titttseg ' so crKeZZyyet 7 ke s ch codificag6es)? Assim(concluiu) nos custard ments e n5o nos d6ia cabega.'

68 I PAuLo FREIRE PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 69


deviamos estar calados e o senhor falando. O senhor 6 o que At& o moments em que os oprimidos n5o tomem cons-
sabe; n6s, os que nio sabemos.' ci6ncia das raz6es de seu estado de opressao, "aceitam" fa-
Muitas vezesinsistem em que nenhuma diferenga exis- talistamente a sua exploragao. Mais ainda, provavelmente
te entre des e o animal e, quando reconhecem alguma, & assumam posig6es passivasj alheadas, com relagao a neces-
em vantagem do animal. "E mais livre do que n6s", dizem. sidade de sua pr6pria luta pda conquista da liberdade e de
f impressionante, contudo, observar como,' com as sua afirmag5o no mundo. Nisto reside sua "conviv&ncia'
primeiras alterag6es numa situagao opressora, se verifica com o regime opressor.
uma transformagao fiesta autodesvalia. Escutamos, certa Pouco a pouco, por&m, a tend6ncia & assumir formas de
vez, um cider campon6sdizer, em reuniao, numa das uni- aWaD rebelde.Num quefazer libertador, nio se pode perder
dades de produgao (asetttamiettto)da experi6ncia chilena de vista esta maneira de ser dos oprimidos, nem esquecer
de reforma agrfria: "Diziam de n6s que nio produziamos estemomento de despertar.
porque 6ramos borrachos, preguigosos. Tudo mentira. Dentro delta visio inaut6ntica de sie do mundi os opri-
Agora, que estamos sends respeitados como homens, va- midos se sentem coma se fossemuma quase"coisa" possui-
mos mostrar a todos que nunca fomos borrachos,nem pre- da pelo opressor. Enquanto, no seu afa de possuir, para este,
guigosos. Eramos explorados, isto sim", concluiu enf atico. coma afirmamos, ser& ta ' a custa quase sempre dos que n5o
Enquanto se encontra nitida sua ambiguidade, os opri- t6m, para os oprimidos, num memento de sua experi&ncia
midos dificilmente lutam, nem sequer confiam em si mes- existencial, ser nem sequer & ainda pareca"com o opressor,
mos. T6m uma crengadifusa, magica, na invulnerabilidade mas 6 estar sobele. B depender. Dai que os oprimidos sejam
do opressor.:' No seu poder de que sempre da testemunho. dependentesemocionais.':
Nos campos,sobretudo,seobservaa formamfgica do poder
do senhor." f preciso que comecem a ver exemplos da vul-
NINGU£M LIBER:I'A NINGU£M, NINGUEM SE LIBERTA SOZINHO
nerabilidade do opressor para que, em si, va,operandi-se
os HOMENS SE LIBERTAM EM COMUNnAO
convicgao oposta a anterior. Enquanto isto nio se verifica,
continuario abatidos, medrosos, esmagados.':
f este carfter de.depend6ncia emocional e total dos oprimi-
29"0 campon6s tem um meds quake instindvo do patrao "(Entrevista com dos que os pode levar is manifestag6esque Fromm chama
um campon6s.) de necr6filas. De destruigao da vida. Da sua ou da do outro,
J' Recentemente,num pals latino-americano,segundodepoimcnto que nos ioi
oprimido tamb&m.
dado por soci61ogo amigo, um grupo de camponeses, armados, se apoderou do
latitiindio. Por motives deordem tadca,sepensou em mangero proprietaiio coma
3:E"O campon&s 6 um dependence, Nio pode expressar o seu querer. Antes dc
refEm. Nenhum campon6s, contudo, conseguiu dar guarda a ele. S6 sua presenga
descobrir sua depend6ncia, softy. Desabafa sua 'pena ' em casa, onde grata com
ja os assustava.Possive]menre tamb6m a aWaD mesma de ]ular contra o patrio Ihcs
provocassesentimcnto dc culpa. O patrao, na verdade, cstava "dentro" delis... os filhos, bare, desespera-se.Reclama da mulhcr. Acha judo mal. N5o desabafa
I' Neste sentido, cf. Regis Debray. RevoZi4dontarevolafao. Sio Paulo: Centro Ed. sua 'pena ' com o patrao porque considera um ser superior. Em muilos cases, o
Latino-americano, ,1967. campon6sdesabaEa
sua 'pena' bebendo."(Entrevisla.)

PEnxaocix DOOPRiMiDOI n
7o I Paul.o FREIRE
Somentequando os oprimidos descobrem, nitidamente, pretendendoum jogo divertido em navelpuramentein-
o opressor, e se engajam na lula organizada por sua liberta- telectual. Estamos convencidos, peso contrario, de que a
gao, comegam a crer em si mesmos, superando, assim, sua reflexio, serealmentereflexio, conduz a prftica.
"conviv6ncia" com o regime opressor. Se esta descoberta Por outro lada, se o momentoja & o da agate,estase barf
nio pode ser feita em navelpuramente intelectual, mas da aut6ntica praxis se o saber dela resultante se faz objeto da
agro, o que nos parece fundamental & que estan5o se cinja reflexio critica. E neste sentido que a praxis constituia ra-
a mero advismo, mas estejaassociadaa s&rio empenho de zio nova da consci6ncia oprimida e que a revolugao, que
reflex5o,para que sejapraxis. inaugura o momento hist6rico desta razao, nio pode en-
O dialogs critico e libertador, por isto mesmo que sup6e contrar viabilidade fora dos niveis da consci6ncia oprimida.
a agro, tem de serfrito com os oprimidos, qualquer que seja A nio ser assim, a agro & puro ativismo.
o grau em que estejaa luta por sualibertagao. N5o um dif- Desta forma, nem um diletante jogs de palavras va-
logo is escancaras, que provoca a furia e a repressao maior zias -- quebra-cabega intelectual -- que, por nio ser
do opressor. reflex5o verdadeira, nio conduz a agro, nem agro pda
O que pode e devevariar, em fungao das condig6eshis- aWaD.
Masambas,aWaD
e reflexio, como unidadequenio
t6ricas, em fungao do navelde percepgao da realidade que deve ser dicotomizada.
denhamos oprimidos, 6 o conteQdodo diflogo. Substitui-lo Para isto, contudo, &preciso que creiamos nos homens
pelo antidialogo,pda sloganizagao,pda verticalidade,pe- oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo
los comunicados 6 pretender a libertagao dos oprimidos tamb6m.
com instrumentos da "domesticagao". Pretender a liber- Se esta crenga nos falha, abandonamosa ideia, ou nio
tagao deles sem a sua reflex5o no ato desta libertagao 6 a temos, do diflogo, da reflex5o, da comunicag5o e caimos
transforms-los em objeto que se devessesalvar de um in- nos slogan, nos comunicados, nos dep6sitos, no dirigismo.
c&ndio.E £az6-1oscarrno engodo populista e transforms-los asta 6 uma ameagacontida nasinaut6nticasades6esa causa
em massade manobra. da libertagao dos homens.
Os oprimidos, nos vfrios momentos de sua libertagaol A aWaD politica junta aosoprimidos tem de ser,no funds,
precisam reconhecer-se coma homens, na sua vocagao on- 'agro cultural" para a liberdade,por into mesmo, agro com
to16gica e hist6rica de sa' mats.A reflexio e a agro se im- des. A sua depend6ncia emocional, auto da situagao concreta
p6em, quando nio sepretende, erroneamente, dicotomizar de dominagao em que se acham e que gera tamb6m a suavi-
o conteQdoda forma hist6rica de ser do homem. sio inaut&ntica do mundo, nio pode ser aproveitada a n5o ser
Ao defendermos um permanente esforgo de reflexio peso opressor. Este & que se serve desta depend&ncia para criar
dos oprimidos sobre suas condig6es concretas, nio estamos mais depend6ncia.

n I Paulo FKEim PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 73


A agro libertadora, pelo contrario, reconhecendo esta Chegou a estesaber,que nio 6 argo parade ou possivelde
depend6ncia dos oprimidos coma ponto vulnerfvel, deve ser transformado em conteQdo a ser depositado nos outros,
tentar, atrav&sda reflexio e da aWaD,transforms-la em inde- por um ato total, de reflexio e de aWaD.
pend6ncia. Esta, por6m, n5o 6 doagao que uma lideranga, Foia sua insergao IQcida na realidade, na situag5o hist6-
por mais bem-intencionada que seja, shes raga. Nio pode- rica, que a levou a critica destamesma situagaoe ao impeto
mos esquecerque a libertagaodos oprimidos 6 libertagao de transforms-la.
de homens e nio de "coisas".Por isto, se n5o 6 autoliberta- Assim tamb&m 6 necessfrio que os oprimidos, que n5o sc
gao -- ningu6m se liberta sozinho--, tamb&m nio & liber- engajam na lula sem estar convencidos e, se nio se engajam,
tagao de uns feita por outros. retiram ascondig6espara ela, cheguem, coma sujeitos, e n5o
Nio se pode realizar com os homens pda "metade".s3E, coma objetos, a este convencimento. f precise que tamb&m
quando o tentamos, realizamos a sua deformagao. ;Mas, de- se insiram criticamente na situagaoem que se encontram e
formados jf estando,enquanto oprimidos, nio Rodea agro de que se achammarcados.E isto a propagandanio faz. Se
de sua libertagao usar o mesmo procedimento empregado esteconvencimento, sem o qual, repitamos, nio & possivela
para suadeformagao. luta, 6 indispensivela liderangarevolucionfria, que se cons-
O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de liber- tituia partir dele, o & tamb6m aosoprimidos. A n5o ser quc
tag5oa serrealizado
pda lideranga
revolucionfria
nio 6 a se pretenda fazer para des a transformagao,e n5o comdes
"propaganda libertadora". Nio esteno mere ato de "depo- .L somente como nos parece verdadeira esta transformagao.'4
sitar" a crenga da liberdade nos oprimidos, pensando con- Ao fazermos estas considerag6es, outra coisa nio esta-
quistar a suaconfianga,mas no dialogar com des. mos tentando senio defender o carater eminentemente pe-
Precisamosestar convencidosde que o convencimento dag6gico darevolug o.
Seos lideres revolucionfrios de todos os tempos afirmam
dos oprimidos de que devem lutar por sua libertagao nio 6
a necessidadedo convencimento dasmassasoprimidas para
doag5o que Ihes nagaa lideranga revolucionfria, mas resul-
tado de sua conscientizagao. que aceitem a luta pda libertagao -- o que de rests 6 6b-
vio --, reconhecem implicitamente o sentido pedag6gico
E necessfrio que a lideranga revolucionfria descubra esta
destaluta. Muitos, por6m, talvcz por preconceitosnaturais
obviedade: que seu convencimento da necessidadede lutar,
e explicgveis contra a pedagogia, terminam usando, na sua
que constitui uma dimensio indispensavel do saber revo-
aWaD, m6todos que sio empregadosna "educagao"que ser-
lucionfrio, nio Ihe foi doado por ningu6m, se & aut&ntico.
ve ao opressor.Negam a agro pedag6gica no processode
IJ Referimo-nos i redugao dosoprimidos i condigio de memosobjetos da aWaD libertag5o, mas usam a propaganda para convencer...
liberladora que, assim,6 realizadamaissobree parades do que comdes, coma
dove ser. s' No capitulo IV voltaremos detidamentea estespontos

PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 75
24 I pAUlOFAIRE
III

Desde o comego mesmo da luta pda humanizagao, peta su.I Nio ha outro caminho senio o da pratica de uma pe
peragao da contradigao opressor-oprimidos, 6 pKciso que des dagogiahumanizadora, em que a lideranga revolucionaria,
se convengam de que estaluta exige deles, a partir do momen- em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar manten-
do-os como quase "coisas", com des estabelece uma rela-
ts em que a aceitam, a sua responsabihdade total. E que este
luta nio sejustifica apenasem que passema ter hberdadepara gao dia16gica permanente.

comer, mas 'liberdade para criar e construiE para admirar e Prftica pedag6gicaem que o m&todo deixa de ser,como
salientamos no nosso trabalho anterior, instrumento do
3ventur2r-se".Tbl liberdaderequerque o individuo sqa ativo
e responsfvel, nio um escravo nem uma penabem-alimentada educador (no caso, a lideranga revolucionfria), com o qual
da mfquina. Nio basta que os homens n5o sejam escravos;se manipula os educandos (no caso os oprimidos) porque & jf a
as condig6es sociais fomentam a exist6ncia de aut6matos, o pr6pria consciCncia.
resultado n5o 6 o amor a vida, :mas o amor a mortc.'s Os opri- '0 m6todo&,na verdade(dizo professorAlvaro VieiraPin-
midos que se "formam" no amor a morte, que caracteiiza o to), a forma exteHor e materializada em atos, que assumea
propriedade fundamental da consci6ncia: a sua intencionahda-
clima da opressao,devem encontrar, na sua lutajo caminho do
de. O pr6prio da consci6ncia & estar com o mundi e este pro-
amor a vida, que nio este apenasno comer mats, se bem que o
cedimento 6 permanente e irrecusfvel. Portanto, a consci6ncia
implique tamb6m e dele n5o possaprescindin
f como homens que os oprimidos t6m de lugar e n5o &,em suaess6ncia,um 'caminho para' algoque n5o & ela,que
estelora dela, que a circunda e que ela apreende por sua capa-
homo "coisas". f precisamente porque reduzidos a quase
cidade ideativa. Por definigao, a consci6ncia 6, pois, m&todo,
'coisas",na relag5o de opressaoem que estate,que se en-
entendido este no seu sentido de mfxima generahdade. Ta] 6
contram destruidos. Para reconstruir-se & importante que
a raiz do m&todo, assim como ta16 a ess6nciada consci6ncia,
ultrapassem o estado de quake "coisas". N5o podem Compa:
que s6 existe enquanto faculdade abstrata e met6dica.""
recer a luta como quase "coisas" para depois serem homens.
Porque assim 6, a educagao a ser praticada pda lideranga
f radical esta exig6ncia. A ultrapassagem dente estado, em revolucionfria se faz cointencionalidade.
que sedestroem, para o de homens, em que se reconstroem, Educador e educandos (lideranga e massas),cointen-
nio 6 a posterior. A luta por esta reconstrugao comegano cionados a realidade, se encontram numa tarefa em que
autorreconhecimento de homens destruidos.
ambos s5o sujeitos no ato, n5o s6 de desvelf-la e, assim,
A propaganda,o dirigismo, a manipulag5o,como ar-
mas da dominagao, nio podem ser instrumentos para esta }' Alvaro Vieira Pinto, Cflncia e exisr&tcia,2' ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1986.Deixamos aquio nosso agradecimento ao mestre brasileiro por nos hager
reconstrugao.' permitido cite-lo antes da publicagao de sua obra. Consideramos o trecho cita-
ss Fromm,op-cite,p. 54-5. do de grande importancia para a compreensao de uma pedagogia da problema-
tizagao,que estudaremosno capitulo seguinte
3' No Capitulo IV voltaremos pormenorizadamente a este fema.

76 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA D0 0PRiMID0 1 77


[lFI
[lIF!
I

criticamente conhec6-la, mas tamb&m no de recriar este 2


conhecimento.
Ao alcangarem,na reflex5o e na agro em comum, este A CONCEPgA0 ,"BANCANA" DA EDUCAQAO
saber da realidade, se descobrem como seus refazedores COMO INSTRUMENTO DA OPRESSAO.
SEUSPRESSUPOSTOS,SUA CRITICA
permanentes
Deste modo, a presengados oprimidos na busca de sua
liberta€1ao,mais que pseudoparticipagao,6 o que deve ser:
engajamento.

QuxNTO MAAS
AnAUSAMOSas relag6es educador-educandos, na
escola, em qualquer de seus niveis (ou fora dela), parece que
mais nos podemos convencer de que estasrelag6esapresen'
tam um carfter especiale marcante -- o de serem relag6es
fundamentalmentenarradorm,dissatadorm.
Narragao de conteQdosque, por isto mesmo, tendem a
petrificar-se ou a fazer-se argo quase mono, sejam valores
ou dimens6es concretas da realidade. yarragio ou disserta-
£4g.qpeimplica um sujeito -- o narrado!.::.e.objetos pa-
cientes,ouvintes -- os educandg$.
Hf uma quase enfermidade da narragao. A t6nica da edu-
cagao& preponderantemente esta-- narrar, semprenarrar.
Falar da realidade coma algo parade, estatico, comparti-
mentado e bem-comportado, quando nio falar ou dissertar
sobre algo completamente alheio a experi6ncia existencial
dos educandos, vem sends, realmente, a suprema inquieta-
gaod€!fa educagao.A suairrefreada3psiall.fqela,o educador
aparece como seu indiscutivel agence, como seu real sujeito,
cujatarefa indeclinivel & "encher" os educandosdos contei-
dos de sua narragao.\Conteidos que sio retalhos da rea-
lidade desconectadosda totalidade em que se engendram

78 I PAULO FREIRE
e em cuja visio ganhariam significagao.A palavra, nestas guards-los e arquiva-los. Margem para serem colecionadores
dissertag6es,se esvazia da dimensio concreta que devia ter ou fichadores das coisasque arquivam. No funds,.por&m, os
ou se transforma em palavra oca, em verbosidadealienada grandes arquivados sio os homens, nesta(na melhor das hi-
e alienante. Dai que seja mais som que significagao e, assim!. p6teses)equivocadaconcepgao"bancfria" da educagao.Ar-
melhor serianio diz€:1a.f
quivados,porque, lora da busca, fora da praxis, os homens
Por into mesmo 6 que uma das caracteristicas.delta fdW nio podemser.Egggdor el$ducandg!!eyquiv991nanledi-
gagggdisserladp11g..+..a..sonoridad!:f..da
palavra.f nio sua da em que, nesta distorcida visio da educagao, n5o ha criati-
volga.l:!ansformadora.
Quatro vezesquatro, dezesseis; Pa;i, ;bade, nio hi'i;;iiifblglggao,.p5q..h4 .$abqf SQ,existe.saber
capital Bel&m,que o educandoaxa, memoriza, repete, sem D4.invengao, na reinveng5o, na busca inquieta:.impaciente.:
perceber o que realmente significa quatro vezesquatro. O pe!!p1991%.que os homens.fazemno.mundi:.com QmuQ.'
que verdadeiramente significa capital, na afirmagao, Para, do e com osfutros. Busca esperangosa tamb&m.
capital Be16m. Bel&m para o Para e Para para o Brasil." Na visio 'bancfria" da educagao,o "saber" &uma doagao
A narragio, de que o educador & o sujeito, conduz os dos que se julgam sfbios aos que julgam nada saber. Doa-
educandosa memorizagao mecinica do conte6do narrado. gaoque se funda numa das mani6estag6es instrumentais da
Mats ainda, a narragaoos transforma em "vasilhas.., em re- ifleologi£l4Lgpre$s5o -- a absolutizagao da ignorancia, que
cipientes a serem "enchidos" pelo educador. Quando mais constituio que chamamos de aljenagao.da.}gnorancia, segun-
va "enchendo" os recipientes com seus "dep6sitos", tanto do a qual era se encontr8 semplE.pgoutrg..
mellor educador serf. Quanto mais se deixem docilmente '0 educador,que aliena a ignorancia, se mant&m em pol
;encher", tanto melhores educandos se.rio.
I sig6esfixas, invarifveis. Serf sempre o que sabe,enquantol
Desta maneira, a educagao se lorna um ato de depositar,'''\ os educandosservo sempre os que nio sabem. A rlgidezl
:em que os educandos sio os depositarios e o educador, o destasposig6esnega a educagaoe o conhecimento comp
depositante. processosde busca.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz "comunicados' O educadorsep6e frente aos educandoscomo sua an-
e dep6sitos que os educandos,meras incid6ncias,recebem tinomia necessfria. Reconhece na absolutizagaoda igno-
pacientemente,memorizam e repetem. Eis aia concepg5o rincia daqueles a raz5o de sua exist6ncia. Os educandos,
'bancfria" da educag5o, em que a Qnica margem de agate alienados,por sua vez, a maneira do escravona dial&ti-
que se oferece aos educandos 6 a de receberem os dep6sitos, ca hegeliana, reconhecem em sua ignorancia a razio da
3' Poderf diner-seque casoscoma estesja nio sucedem nas escolasbrasileiras. exist6nciado educador, mas nio chegam, nem sequer ao
Se realmentc estesn5o ocorrem, continua, contudo, preponderantemente,o modo do escravo naquela dial&tica, a descobrir-se educa-
carfrer narrador que estamoscriticando. doresdoeducador.

80 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA DO OPNMIDOH 1 81


Na verdade, coma mais adiante discutiremos, a raz5o i) o educador identifiCa a autoddade do saber com sua
de ser da gdyggqg.libs!!gdpr8 este no seu impllda.ini: autoridade funcional, :que op6e antagonicamente a
glialcongjlja4gr.Dai que tal forma de educagaoimplique a liberdade dos educandos; estes devem adaptar-seis
superag5oda contradig5oeducador-educandos, de tal ma- determinag6esdaquele;
neira que se fagam ambos, simultaneamente, educadores j) o educador,finalmente, & o sujeito do processo;os
e educandos. educandos,merosobjetos.
Na CQncepl;ao"bapc41ia" que estamos criticando, para a
qual g.SgllKqfip €.Qg.tcl.41depositar: dq.!11qnsferir,de trans- Se o educador 6 o que sabe, se os educandos s5o os que
mits!.valoreB f;. CQphefjpl$nto$ nio se verifica nem pode' nada sabem, cape aquele dar, entregar, levar, transmitir o
verificar-seestasuperag5o.Pele contrario, refletindo a so- seu saber aos segundos. Saber que deixa de ser de."experi6n-
ciedadeopressora,sendcLdjglSnsao da cultura.ggsil$nciQ.', cia feith" para ser de experi6ncia narrada ou transmitida.
a "educag5o""bancfria" mant&m e estimula a contradigao. Nio & de estranhar, pris, que nesta visio l:bancfria" da
Dai, entao,que nela: educagao, os homens sejam vistas coma ceres da adaptag5o,
do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos
a) o educador& o que educa;os educandos,os que sio no arquivamento dos dep6sitos que shess5o feitos, tanto
educados; menos desenvolver5o em sia consci6ncia critica de que re-
I IHltllH b) o educador 6 o que sabe;os educandos,os que n5o sultaria a sua insergao no mundo, como transformadores
sabem; dele.Como sujeitos.
c) o educador & o que pensa; os educandos, os pensados; Quanto mais seIhesimponha passividade,tanto mais in-
d) o educador & o que diz a palavra; os educandos,os genuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se
que a escutam docilmente; ao mundo, a realidadeparcializadanos dep6sitosrecebidos.
e) o educador & o que disciplina; os educandos,os Na medida em que esta visio 'rbancfda" anula o poder
disciplinados; criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua in-
f) o educador 6 o que opta e prescreve sua opgao; os genuidade e nio sua criticidade, satisfaz aos interessesdos
educandos, os que seguem a prescrigao; opressores: para estes, o fundamental nio 6 o desnudamen-
g) o educador6 o que atua; os educandos,os que t6m a to do mundo, a suatransformagao.O seu"humanitarismo",
ilusio de que atuam, na atuagao do educador; e nio humanismo, esteem preservar a situagaode que s5o
h) o educador escolhe o conteQdo programatico; os beneficifrios e que Ihes possibilita a manutengao de sua bal-
educandos,jamais ouvidos nesta escolha, se acomo- sa generosidade,a que nos referimos no capitulo anterior.
dam a ele; Por isto mesmo & que reagem, at6 instintivamente, contra

82 I PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 83
qualquer tentativa de uma educagaoestimulante do pensar oprimc, mas em transforms-la para que possam faber-se
)
aut6ntico, que nio se deixa emaranhar pdas vis6es parciais "serespara si
da realidade,buscando sempreos nexos que prendem um Este n5o pode ser, obviamente, o objetivo dos opres'
panto a outro, ou um problemaa outro. sores.Dai que a "educagaobancaria", que a des serve,ja-
Na verdade, o que pretendem os opressores "& transfor- mais possa orientar-se no sentido da conscientizagaodos
mar a mentalidade dos oprimidos e nio a situagao que os educandos.
oprime",'P e isto para que, mellor adaptando-os a estasitua- Na educagaode adultos, por exemplo, nio interessaa
gao,melhor os dominem. estavisio 'rbancfria" proper aos educandos o desvelamento
Para into seservem da gpncepgao&da prgticz-;'bancgdg!. do mundi, mas,pesocontrfrio, perguntar-lhesse'Ada deu
d4.edygag4ga quejuntam codauma agro social de carfter o dedo ao urubu", para depois diner-lhes,enfaticamente,
paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpa- que n50, que 'Ada deu o dedo a aura '
tico de "assistidos".Sio casonindividuais, meros "margina- A quest5oeste em qle pensar autenticamente e pengo-
lizados", que discrepam da fisionomia gerd da sociedade. so. O est;l;;lho humanismo desta concepgao"bancfria" se
r 'Esta & boa, organizadae justa. Os oprimidos, coma cason reduz a tentativa de fazer dos homens o seu contrfrio -- o
individuais, sio patologia da sociedadesa, que precisa,por aut6mato, que & a negagao de sua onto16gica vocagao.de
into mesmo, ajustf-los a ela, mudando-lhes a mentalidade ser?naH.
de homens ineptos e preguigosos.' O que n5o percebem os que executam a educagao"ban-
Coma marginalizados, "seres fora de" ou "a margem cfria", deliberadamenteou nio (porque ha um sem-nime-
de", a solugaopara des estaria em que fossem "integrados", ro de educadoresde boa vontade, que apenasnio se sabem
"incorporados" a sociedadesadia de onde um dia "parti- a servigo da desumanizagaoao praticarem o "bancarismo"),
ram", renunciando, como transfugas, a uma vida feliz. 6 que nos pr6prios "dep6sitos" se encontram as contradi-
Sua solugao estaria em deixarem a condigao de ser "seres g6es,apenasrevestidaspor uma exterioridadeque asoculta.
lora de" e assumirem a de "seres dentro de' E que, cede ou tarde, os pr6pt-ios "dep6sitos" podem provo '
Na verdade, por&m, os chamados marginalizados, car um conn'onto com a realidade em devenir e despertar os
que sio os oprimidos, jamais estiveramBornde. Sempre educandos, at6 entio passivos, contra a sua "domesticagao '
estiveramdmtro de. Dentro da estrutura que os transfor- A sua "domesticagao" e a da realidade, da qual se shes
ma em "cerespara outro". Sua solugao, pris, ngo este em fda como algo estatico,pode despertf-los coma contra-
"integrar-se", em "incorporar-se" a asta estrutura que os digao de si mesmos e da realidade. De si mesmos, ao se
]9 Simone dc Beauvoir, EI pe amiettto politico de la dereclu. Buenos Aires:
descobrirem, por experi6ncia existencial, em um modo
Ediciones Siglo Veinte/S.R.L., 1963,:p.34. de ser inconcilifvel com a sua vocagao de humanizar-se.

84 I pAuLoF I PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 85


Da realidade, ao perceberem-na em suas relag6es com ela, tarefa. Ja n5o estaria a servigo da desumanizagao. A servi-
como devenirconstante. go da opressao,mas a servigo da libertagao.

A CONCEP(:AO "BANCARIA" E A CONTRADIgAO EDUCADOR'


A CONCEPgAO PROBLEMATIZADORA E LIBERTADORA DA EDUCAl\IDO
EDUCAgAO. SOUS PRESSUPOSTOS

Etta concepg5o "bancfria" implica, a16m dos interesses ja


E que, se os homens sio estesseresda busca e se sua voca-
referidos, outros aspectos que envolvem su!:$!:fy!!ag111.os
g5o onto16gica & humanizar-se, modem, cedo ou garde,per-
1lDmen$,Aspectos ora explicitados, ora nao, em sua pratica.
ceber a contradigao em que a "educagao bancfria" pretende
Sugereuma diSotom+a.JmeN$tente.homens
mpndo.
mant&-los e engajar-sena luta por sua libertaga(i.
Um educador humanista, revolucionario, nio hf de es- Homens simplesmente no mundi e n5o com o mundo e
com os outros. yglpen!.!speftqdgre!.E ngq recriqdorQSdo
perar estapossibilidade.40
Suaagate,identificando-se,desde
mundi. Concebe a sua consci6ncia como algo espacializado
logo, com a dos educandos,deve oriental-se no sentido
neles e nio aos homens como "corpos conscientes". A cons-
da bumanizagaode ambos. Do pensar aut6ntico e nio no
ci6ncia coma se fosse alguma segao "dentro" dos homens,
sentido da doagao, da entrega do saber. Sua agar.deye.estar
mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta
infundida .da profunda crenga no$ homens. Crengano seu
ao mundi que a irf "enchendo"de realidade.Uma cons-
poder criador.
lsto tudo exige dele que sejaum companheiro dos edu- ci6ncia continente a receber permanentemente os dep6si-
candos,em suasrelag6escom estes. tos que o mundo Ihe faz: e que se vio transformando em
A educag5o "bancfria", em cuja pratica se da a incon- deus conteidos. Como se os homens fossem uma presa do

ciliag5o educador-educandos, rechaga este companhei- mundi e este, um eterno cagadordaqueles,que tivessepor
rismo. E & 16gicoque seja assim. No momento em que distragao "ench6-1os" de pedagos seus.
o educador "bancfrio" vivesse a superagao da contradi- Para .testa equivocada concepgao dos homens, no me-
gao ja n5o seria "bancirio". Jf nio maria dep6sitos. Ja n5o mento mesmo em que escrevo, estariam "dentro" de mim,
tentaria domesticar.Ja n5o prescreveria.Saber com os como pedagosdo mundo que me circunda, a mesaem que
educandos, enquanto estessoubessem com ele, seria sua escrevo,os livros, a xicara de cali, os objetos todos que aqua
cstao, exatamente como dentro deste quarts estou agora.
{o N5o fazemosestaafirmagaoingenuamente.Ja temps afirmado que a edu- Desta forma, nio distingue presentificagaoa cons-
cagio repletea estrutura do poder, data di6culdade que tcm um educador
dia16gicode atuar coerentemente numa estrumra que megao dialogs. Argo fun-
ci&ncia de entrada na consci6ncia. A mesa em que escre-
damental, poem, pods ser frito: dialogar sobre a negagaodo proprio dialogo. vo;'os livros, a xicara de cafe, os objetos que me cercam

86 I PAULO FRnRE PEOAGOGIA DOOPNHIOO 1 87


A concepgaoe a pratica da educagaoque vimos criti-
est5o simplesmente presencesa minha consci6ncia, e
nio de?taro
deja. Tenho a conscifncia deles mas nio os cando se instauram como eficientes instrumentos para
tenho dentro de mim. este fim. Dai que um dos seus objetivos fundamentais,
mesmo que dele nio estejam advertidos muitos do que
Mas, se para a concepg5o "bancfria" a consci6ncia 6,
a realizam, segaq$cyltars .Sm judo..Q.pensa!.aut€n.ti-
em sua relagao com o mundo, esta "pena", passivamentc
ce. Nas aulas verbalistas, nos m&todos de avaliagaodos
escancarada a ele, a espera de que entre nela, coerentc-. 'conhecimentos", no chamado "controle de leitura", na
mente concluirf que ao educador nio cabenenhum outro
distincia entre o educador e os educandos, nos crit6rios
papel que nao.o de.disciplinar q.entradadQ..mundo
de promogao, na indicag5o bibliografica,': !m !Bdg!...b.a.
educandQ$1€p !rabalhQ sera,tamb&m, o de imitar o mun-
sempre a conotagao ..yigestiva...!.a projbigao ao.pensar
4g: O de ordenar o que ja se faz espontaneamente. Q4e.
verdadeiCO.
'Sng1le11.
gs educandQ!.dQ.cont£i3.!!Q!:.E,lILy!$zej4epgS-
Entre permanecer porque desaparece,numa esp6ciede
.!olde "comunicadQI'..=Jfal$Q. $412et:.}:..que.€1efQQ$.ider4
#

como verdadeiro saber.4i morrer para viver, e desaparecerpda e na imposigao de sua

E porque os homens, nestavisio, ao receberem o mun- presenga, o educador "bancfrio" escolhe a segunda hip6-
do que neles entra, ja sio serespassivos,cabe a educagao tese.Nio pode engenderque p.erman;cQFi,busca{ se!,.com
apassiva-losmaid ainda e adapts-los ao mundi. Qyanllo os QBtrol!:.E.g.pnl:jy%.simpatua!:D.unga jobrepgCse,..peQ
mais adaptados:papa a concepgao."bancaria !.!anto mais sequer justapor-se aos educandos, des:sim-patizar:.$a(2..hg
"educados",porque adeguado$.aQ mundi. perman6pcia ni!.bipertrofi4:
Esta& uma concepgaoque, implicand6 uma pratica, so- Mas, em nada disto pode o educador 'bancfrio" crer.
mente pode interessar aos opressores,que estario tio maid Conviver, simpatizar implicam comunicar-se, o que a con-
em paz, quanto mais adequadosestejam os homens ao cepgao que informa sua pratica rechaga e teme.
mundi. E tio mais preocupados, quando mais questionan- Nio pode perceber que somente na comunicagao tem
do o mundo estejamos homens.. sentido a vida humana..Que o oensl1.4g.fduc.ado{.jg-
Quando mais se adaptam asgrandes maiorias is 6nalida- mente ganha .autenticidade na autenticidadg.do penlgr
des que shessejam prescritas pdas minorias dominadoras, dos.Sdu caq.do$,.Jm$.dializados #rnbos pda !$g!,!4adfz.PQ!-
de tal modo que caregamaquelasdo direito de ter finalida- talk%. na intercomunjgagao:...poi=istQI.gpensar. daquele
des pr6prias, mais poderao estas minorias prescrever. .paQpods..serum.peBsar para estes nem a estesjmposto-
4iA concepgaodo saber,da concepg3o"bancaria", 6, no fimdo, o que Sartre(EI Dai que n5o deva ser um pensar no isolamento, na torre
liolMey Zascosa. Buenos Aims: Losada S.A., 1965,p. 25'6.) chamatia de concepgao
': Ha professoresque, ao indicar uma relagao bibliogrffica, determinam a lei
'digestiva"ou "alimendcia" do saber.Este6 coma se fosseo "alimento" que o edu-
aurade um livro da pagina 10a pagina 15,e fazem into para ajudar os alunos.
cador vai intmduzindo nos educandos, numa esp&ciede tratamento de engoKla...

PEDAGOGIA DOOPNMIDO 1 89
'i8DI P«ummm:«.
de marfim, mas na e pda comunicagao, em torno, repita- A concepgao "banciria", que a ela serve, tamb&m o
mos, de uma realidade. 6. No moments mesmo em que se funda num concei-
E, se o pensar s6 assim tem sentido, se tem sua conte to mecanico, estftico, espacializado da consci&nciae em
geradora na agro sobre o mundo, o qual mediatiza ascons- que transforma, por isto mesmo, os educandosem rea-.
ci6ncias em comunicag5o, nio seri possivel a sUperposigao pientes, em quase coisas, nio pode esconder sua marca
dos homensaoshomens. necr6fila. Nio se deixa mover, peso inimo .de libertar o
asta superposig5o, que & uma das notas fundamentais da pensamento pda agatedos homens uns com outros na ta-
concepgao "educativa" que estamos criticando, mais uma refa comum de refazerem o mundo e de tornf-lo mais e
vez a situa como pr!!!alda dominagag.# mais humano.
Dela, que parte de uma compreensaobalsados homens Seu inimo & justamente o contrfrio -- o de £gntrolar
-- reduzidos a meras coisas --, nio se posseesperar que pro- o pqn$!r..g.,a .g949:.levandQ.ps bomens go.ajustamento..gQ
voque o desenvolvimento do quetF£gm@ chama de .bil26b!:... .muildp. E inibir o poder df..criaq..de atuar. Mas, ao iazer
mas o desenvolvimento de seu contrario, a necrofUia. into, ao obstaculizar a atuagaodos homens, como sqeitos
Mimtms h Hda(diz Fromm) se camctehza por eZ credmfm- de sua agro, como seres de opg5o, hustra-os.
to de atta maltera estractarada,.AttdonaZ, el india o ttecr($Zo Quando, por6m, por um motivo qualquer, os homens se
ama todd Zo que HOcroce,togo Zo que es mecdttico. I,a persona sentemproibidos de atuar, quando se descobremincapazes
de usar suas faculdades, softem.
necrl$Za es moHda por ult deseode converter ZoorXdnico m mor-
gdnico, do.mirar Zavida mecd7tfcammte,
coho si todd Zaspn- Este sofrimento prov6m "do cato de se haver pertur-
bado o equilibriafhumano" (Fromm).. Mas, o nio po-
sonm dHmtes ./itezm cosa. .Togo!.los Wocesos,smtimimtos y
der atuar, que provoca o .sofrimento, provoca tamb&m
pemamimtos de Hda se tran loTHaRm cosa. I,a memonay tto h
nos homens o sentimento de recusa a sua impot6ncia.
ea?edmda; emery no ser es lo qae mata. EZittdiHdtio necK$1o
Tentam, entao, "restabelecer a sua capacidade de atuar'
pttede reaZ£zarsecolt ult objeto -- Kna.For o una persona -- dttica-
(Fromm).
mmte si h posed;m comemmda na ammaza a SHposes6n es 'Pode, por&m, £az6-1o?E como?", pergunta Fromm. "Um
wild ammaza a dZpismo, si pierce Zaposes{6n,pierce eZcontacts modo, responde:& submeter-sea uma pessoaou a um gru-
con el Wanda. E, mats adiante: 4ma el control y etl eZwto {Ze. po que tenha poder e identi6car-se com des. Por esta parti-
controla6 m(ztfi.Zatodd.4s cipagao simb61ica na vida de outra pessoa, o homem tem a
A opressao, que 6 um controle esmagador, & necr6fila. ilusio de que aqua,quando, em realidade, nio faz mais que
Nutre-se do amor a morte e nio do amor a vida. submeter-se aos que atuam e converter-se em parte deles."'4

43Fromm,op-cit., p.28-9. Id.,ibid.,p.28-9

90 I PAULOFRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO 1 91


Talvez possamosencontrar nos oprimidos este lipo pode esta concepgao tornar-se legado da sociedade opresso '
ra a sociedaderevolucionfria.
de reagan nas manifestag6espopulistas. Sua identifica-
A sociedaderevolucionfria que mantenha a pratica da
gao com lideres carismaticos, atrav&s de quem se possam
educagao"bancfria" ou se equivocou ncsta manutengao,
sentir atuantes e, portanto, no uso de sua pot&ncia, bem
ou se deixou "morder" pda desconfiangae pda descrenga
coma a sua rebeldia, quando de sua emersio no proces-
nos homens. Em qualquer das hip6teses, estari ameagada
so hist6rico, estio envolvidas por este impeto de busca de
atuagaode suapot6ncia. peso espectro da reagan).

Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que 6 ameaga Disco,.infelizmente, parece que nem sempre estlo con-
vencidos os que se inquietam pda causa da libertagao. b
a das, tem o seurem6dio em mais dominagao -- na repres-
sio feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabeleci- que, envolvidos pelo clima gerador da concepgao"banci-
ria" e softendo sua influ6ncia, nio chegam a perceber o seu
mento da ordem e da paz social. Paz social que, no fundo,
significado ou a sua formadesumanizadora. Paradoxalmen-
nio & outra senio a paz privada dos dominadores.
te, entao, usam o mesmo instrumento alienador, num es-
Por into mesmo &que podem considerar -- logicamente,
do seu panto de vista -- um absurdo }te oZmceof a strike forgo que pretendem libertador. E hf at& os que, usandoo
mesmo instrumento alienador, chamam aosque divergem
Zy workers atta (cant) call upon Ellestate itt t te same breath to me
desta prftica de ing6nuos ou sonhadores, quando n5o de
ldoZence iK p tt ng down the strike.4s.
reacionanos.
A educagao coma pratica da dominag5o, que vem sendo
O que nos pareceindiscutivel 6 que, se pretendemosa
objeto desta critica, mantendo a ingenuidade dos educan-
libertagao dos homens, nio podemos comegar por aliens-los
dos, Qgy€.prftlend!, em seu marcgldfQbglco(nem sempre
ou mant6-1osalienados..A libertagao aut6ntiga, que e a bu-
11 percebido por muitos dos que a realizam), 6 indoutrin4::los.
manizagao em processo, n5o. e..uma coisa que SQdeposita
nq.sentido de suaacomodagaoao mundo .daopressaQ. .
Ao denuncia-la, n5o esperamos que as elites domina- .nolhomen$.Nao 6 uma palavra a maisloca,,mitificante=.E
doras renunciem a sua pratica. Serra demasiado ing6nuo -$" 1'PT'aHS,:
que implica a agatee a reflex5o doshomeD&sobreQ.
mundo oaratransforms-lo.
espera-lo.
Nosso objetivo 6 chamar a atengao dos verdadeiros hu- Exatamente porque nio podemos aceitar a concepgao
mecinica da consci6ncia, que a v& como argo vazio a ser en-
manistas para o faso de que des nio podem, na busca da
chido, um dos fundamentos implicitos na visio "bancfria '
libertagao, servir-seda concepgao"bancfria", sob pena de
se contradizerem em suabusca. Assim como tamb6m n5o criticada, 6 que n5o podemos aceitar, tamb&m, que a agate
libertadora se sirva das mesmas armas da dominagao, isto &,
45 Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Sodety. Nova York: Charles
Scribner'sSons,1960,p.130. da propaganda dos slogan, dos "dep6sitos'

PEOAGOGIA DO OPNMIDO I 1931


92 I PAULOFWIW
A educagaoque se imp6e aos que verdadeiramentese Sem asta, n5o & possivel a relagao dia16gica, indispensavel
comprometem com a libertagao n5o pode fundar-se numa a cognoscibilidadedos sujeitos cognoscentes,em torno do
compreensaodos homens como seresvazios a quem o mesmoobjeto cognoscive!:
mundo "encha" de conte6dos; nio pode basear-senuma O antagonismo entre asduasconcepg6es,
.- uma, a '.ban:
.
consci6ncia especializada,mecanicistamente comparti- cfria", que serve a dominagao; outra, a pmblematizadora,
mentada, mas nos bomens como "corpos conscientes" e que !SIW.a libertagao:.toma corpo exatamenteai. Enquan-
na consci6ncia como consci6ncia {ltte?tdotzada
ao mundi.
to a primeira, necessariamente,mant&m a contradigao edu-
Nio pode ser a do dep6sito de conteidos, mas a da pro- cador-educandos, a segunda realiza a superagao.
blematizagia bos homens em suas relag6es com o mundi. r' Para manter a contradigao, a concepgao 'rbancfria" nega
Ao contrfrio da "bancaria", a gducagaoproblematizado- \ a dialogifjdadp homo ess&nciada educagaoe se faz antidia-i
ra: respondendo a ess6ncii do ser da consci6ngia, que & sua 16gica; para realizar a superagao, a educagao problematiza-
iateacionaZidade, nega os comunicados e existencia a comu- dora -- situagao gnosio16gica :-- afirma. a dialogicidade e se
n
nicagao. Identiflca-se com o proprio da consci&ncia que 6
faz dia16gica.
L sempre ser comcidncfa de, n5o apenas quando se intenciona
a objetos, mastamb&m quando se volta sobre si mesma,no
queJaspers" chama de "cisco". Qis5o em que a consci6ncia 6 NINGUEM EDUCANINGU£M) NINGU£M EDUCAA SI MESMO)OS
consci6ncia de consci6ncia.
HOMENS SE EDUCAM ENTRY Sl! MEDIATIZADOS POLOMUNDO
Nesteientido, 'a qducagaolibertadora, problematizado-
.ra,jf nio pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de
transferir, ou de transmitir "conhecimentos" e valores aos Em verdade, ngo serra possivel a educagao problematiza-
dora, que rompgJ;Qm os esquemas verticais caracteristicos
educandos, meros pacientes, a maneira da educagao "bancf-
ria", mas um atQ cognosgente. Come situagao gnosio16gica, da .fd!!fgfig.bg;lrgda, realizar-se como pratica da liber-
em que o objeto cognoscivel,em lugar de ser o t6rmino do dade, sem superar a contradigao entre*o educador e os
educandos. Como tamb&m n5o Ihe serra possivel faze-1o
ato cognoscente.de um sujeito, 6 o mediatizador de sujeitos
cognoscentes, educador,de um dado,educandos,de outro, dorado 4ialogg:
!-e.ducagaQ..
problematizadora coloca, desde.logo!..a-exi- E atrav6sdeste que se opera a superagaode que resul-
g6nSia d? superagao.da f:ontradigaq educador-educand6s. ta um termo novo: n5o mais educador do educando,nio
mais educando do educador, mas educador-educando com
% The rgZedonof comc£oH.sness
upolt itself h sereHdmt a d lmweZom as {s its educando-educador.
intentionality. lam at ntyseF J am both ore alto twoRoZd.
Ido not exist m a tiling exit.s,
bnt itt att {n?zasplit, m tny owptoUect,alta t t {lt motion and inner unrest. Karl Desta maneira, o educadorja nio 6 o que apenasedu-
Jaspers,PhiZosophW, x 1. The University of Chicago Press, 1969,p. 50.
fl?,.mas o que, enquanto educa. 6 edulado, em .dialogo

94 I PAULO FREIRE PEOAGOGIADO OPRIMIDO II"95


com o educandoque, ao ser educado,tamb6m educa.
Amboy, assim: se tornam sujeitos do prgcessg..!B.gue A pratica problematizadora, pelo contrario, n5o distin-
Slescem juntos e em que os "argumentos de autoridade' gue estesmomentos no quefazer do .educador-educando.
N5o 6 sujeito cognoscenteem um, e sujeito ntarradordo
J! nio vllem. Em que, para ser-se,funcionalmente, auto-
ridade, se necessita de esterseltdocom as liberdades e n5o conteQdoconhecidoem outro.
co?taradas. E..!fppre uip s!!!€!tofognQ$fgptd.quer.quandoseprg:
Jf agora ningu6m educa ningu6m, como tampouco pa111=qu€Lquando.ge..epcontre!-dialogigamente.-cQm-os
educandos:
ningu&m se educa a si mesmo: os homens se educam em
comunhao, mediatizadospelo mundo. Mediatizados pelts O objeto cognoscivel,de que o educadorbancfrio se
objetos cognosciveis que, na prftica 'bancaria", s5o possui- apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade sua,para
ser a incid6ncia da reflexio sua e dos educandos.
dos pele educador que os descreveou os deposita nos edu-
candos passivos. Dente modo, o educador problematizador re-faz, cons-
Esta prftica, que a tudo dicotomiza, distingue, na agro tantemente, seu ato cognoscente,na cognoscitividade dos
do educador, dois momentos. O primeiro, em que ele, na educandos. Estes, em lugar de serem recipientes d6ceis de
sua biblioteca ou no seu laborat6rio, exerce um ato cog- dep6sitos, s5o agora invgllggqSlorescHtiSlgb.em dHIW
noscente frente ao objeto cognoscivel, enquanto se prepara com o educador, inveltigaPQlgli11gQ:..!ambQlB.
para suasauras.O segundo,em que, rrente aoseducandos, 'Na medida em que o educador apresenta aoseducandos,
coma objeto de sua "ad'miragao", o conteado, qualquer que
narra ou disserta a respeito do objeto sabre o qual exerceu
o seu ato cognoscente. ele seja, do estudo a ser frito, :'jre-ad-mira" a "ad-miragao"
O papel que cabe a estes,coma salientamos nas paginas que antes fez, na "ad:miragao" que fazem os educandos.
precedentes, & apenas o de arquivarem a narragao ou os de- Pesofaso mesmo de esta pratica educativa constituir-
p6sitos que Ihes faz o educador. Delta forma, em.nome da se em uma situagao gnosio16gica,.o papel do edu$!dor
IH
'preservagao'da cultura e do conhecimento", nio hf ii)nli:' problematizador 6 proporcionar, com os educandos,as
cimento, nem cultura verdadeiroi condig6es em que se d6 a superaggo dq£gpbecjlnento .nQ.

.$gQ.po.de haver conhecimento pris os educandos n5o


giyf!.114.(igx4.pele
.verdadejFQ
.cglgh.gcimento=J.:que
.!f. da
no nive1.4o.bgosf
sio chamadosa conheceGmas a memorizar o conteQdo
Assim & que, enquanto a pratica bancaria, como enfati-
narlado.pele educador.Nio realizam nenhum ato cognos-
zamos, implica uma esp&ciede anestesia,inibindo o poder
citivd, uma vez que o objeto que deveria ser posco coma
criador dos educandos,g..eqy$agaoprobbp111izqSlgra, de
incid&ncia:de seu ato cognoscente & posse do educador e
nio mediatizadorda reflexio critica de ambos. .gg#f!. auyngcamfnte 1leflexiy(}Jmplb!.ym.fonstante3;Q
df:.&svelam.fnl114g.realjdldg. 4.p!!!pSl!!aEISgnde mantel

96 I PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 97
!.i.pftsao; a segunda, pele contrario. busca a anersdodas Por isto 6 que. certa vez, num dos "circulos de culture"
consci6ncias, de que resulte. sua iTtsnfao cdtfca na realidade. do trabalho que se realiza no Chile, um campon6s,a quem
Quando mais se problematizam os educandos,'coma a concepgaobancfria classificariade "ignorance absolute",
sexesno mundi e com o mundol tanto mais se sentir5o declarou, enquanto discutia, atrav6sde uma "codificagao"
desafiados. Tio mais desafiados, quanto mais obrigados a o conceito antropo16gicode cultura: "Descubro agora que
responder ao desafio. Desafiados,':compreendem o desa- n5o hf mundi sem homem." E quando o educador Ihe dis-
fio na pr6pria agro de captf-lo. Mas, precisamente porque se: 'Admitamos, absurdamente, que todos os homens do
captam o desafio coma um problema em suas conex6es mundi morressem, mas ficasse a.terra, ficassem as arvores,
com outros, num plano de totalidade e nio como algo pe- os passaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas, nio serra
trificado, a compreensao resultante tende a tornar-se cres- judo isto mundi?'
centemente critica, por isto, cada vez mais desalienada. 'Naol", respondeu enfatico, "faltaria quem dissesselsto
Atrav&sdela, que provoca novas compreens6es de novos d mKndo".O campon&s quis diner, exatamente, que faltaria
desafios,que vio surgindo no processoda resposta,se v5o a consci6nciado mundi que, necessariamente,
implica o
mundo da consci6ncia.
reconhecendo,mais e mais, como compromisso. Assim 6
que se dao reconhecimentoque engaja. Na verdade, nio ha eu que se constitua sem um ttdo
m. Por sua vez,o lidom constituintedo m seconstituina
A gqucagiti..iS)Qgpeatca da.iiberdade,ao contrfrio da-
constituigao do m comtitufdo. Desta forma, o mundi consti-
quela que 6 pralFq.da dominagao,implica a,negagaodo
homem abstrato, isolado, soho, desligado do mundo,'assim tuinte da consci6ncia,um percebido objetivo seu,ao qual se
in mdona. Dai, a afirmagaode Sartre, anteriormente cicada:
coma tamb6m a negagaQ.dgmundi coma uma realidade
11 ausentedos homens. 'consci6nciae mundi sedio ao mesmotempo.
Na medida em que os homens, simultaneamente refle-
A reflexio que prop6e, por ser aut6ntica, n5o 6 sobre tindo sobresie sobre o mundi, vio aumentandoo cam-
este homem abstrag5o nem sobre este mundo sem homens,
po"ai sua percepgao,vio tamb6m dirigindo sua "mirada'
mas sobre os homcns em suas relag6es com o mundi! a "percebidos" que, at6 entao, ainda que presentesao que
Relag6es em que consci6ncia e mundo se d5o simultanea- Husserl chama de "vis6es de funds"," nio se destacavam,
mentq: Nio ha uma .consci6nciaantese um mundo depois nio estavam postos por si
e vice-versa. Desta forma, nas suas "vis6es de fundo", vio destacando
;A consci6nciae o mundi", diz Sartre,"se d5o ao mesmo percebidos e voltando sua reflexio sabre des.
tempo:exteriorpor ess6ncia
a consci6ncia,
o mundi 6, por es-
s6ncia, reladvo a ela".4z 48 Edmund Husserl, Jdem Pertaining !o 4 Parr Pltettomettolo©Pand to A
Pltmommolcgical Philosophy; General httrodmtloPt to .I ParePhmommoloW, 3' ed.
" J.-P Saraie, op. cit., p 25'6. Londres: Collier Books, 1969, p. 103-6.

98 I PAULO FREIRE PEDAGOGIA DO OPNMIDO 1 99


O que antesja existia como objetividade:mas n5o era Mais uma vez se antagonizam as duas concepg6es e as
.-d

percebido em suasimplicag6es mais profundas e, is vezes, .£ duas praticas que estamos analisando. A.jbanc£rig", por 6b-
nem sequer era percebido, se "destaca" e assume o carater vios motivos, insiste em manter ocultas certasraz6esque
# explicam a maneira coma estdosada os homens no mundi
de problemas, portanto, de desafio.
A partir deste memento, o "percebido destacado" j£ 6 #
\
e, para into, mistifica a realidade.4problematizadora, com-
objeto da "admiragao" dos homens, e, como tal, de sua agro
$

prometida com a libertagao, se empenha na desmitificagao:


.-d
e de seu conhecimento. Por isto, q primeira nega o diflogo, enquanto a segundatem
Enquanto, na concepgao "bancfria ' -- permita-$e-nos a nele o self do ato cognoscenti: dei$aaaQjjjgljS:!4y41de.
repetigao insistente ---, o educador vai "enchendo" os edu- Z A primeira "assistencializa"; a segunda, criticiza. A pri-
candos de $!W..:!bgr, que sio os conteQdos impostos, .gl meira, na medida em que, servindo a dominagao, inibe a
pratica problematizadora, v5o os educandos desfnvol.!fido W criatividade e, ainda que nio podendo matar a intettciotta-
gl11y.p.QdgrdQ.fapla$ig e de i:ompreensa6do mundi que lidade da consci6ncia como um desprender-se ao mundo, a
}he$..apareqf!em suasrelag6esfQm e e, nio mais como uma .:>

'domestica", nega os homens na suavocagao onto16gicae


realidade estatica, mas coma uma realidade em transforms: Q hist6rica de humanizar-se. A segunda,na medida em que,
gao, em procelsQ:..
'N servindo a libertagao, se funda na criatividade e estimula
A tend6ncia, entao, do educador-educando como dos a'reflexio e a agro verdadeiras dos homens sobre a reali-
educandos-educadores & estabelecerem uma forma au- dade, responde a sua vocagao,' como ceres que nio podem
.t6ntica de.pensa!.e.ltuaf Pensar-se a si mesmos e ao iutenticar-se fora da busca e da transformagao criadora.
mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar
da aWaD.
A educag5oproblematizadora se faz, assam,um esforgo o HOMEM COMO UM SER INCONCLUSO, CONSCIENTE DE SUA

permanente 8trav&s do qual os homens v5o percebendo, INCONCLUSAO,E SEU PERMANENTE MOVIMENTO DE BUSCA
criticamente, como estdosendsno mundi comqaee em qae DO SER A4AIS
se acham.
Se,de faso, n5o 6 possivel entend6-1osfora de suasrelag6es A concepgao e a prftica 'rbancfrias", imobilistas, "fixistas",
dia16ticascom o mundi, se estasexistem independentemente terminam por desconhecer os homens coma seres hist6-
de se des aspercebem ou nao, e independentemente de coma / ricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do
as percebem,6 verdadetamb&m que a sua form!.gf-a!!!gb. / carater hist6rico e da historicidade dos homens. Por into
sendo etta ou aquela, €&99o, em grande parte, 4g£gmo.se../ mesmo & que os reconhececomo sexesque estdosada,
como sores inacabados, inconclusos em e com uma realida-
pelllSbamQOm!!!!dg

ioo I PAULOFnriKE PEDAGOGIADO OPR]MIDO I IOI


de que, sends hist6rica tamb&m, 6 igualmente inacabada. condigao dos homens como sereshist6ricos e a sua histo-
Na verdade, difereiitemente dos outros animais, que sio ricidade. Dai que se identifique com des como ceresmais
apenasinacabados,masnio sio hist6dcos, os homensse al&mde si mesmos -- como "projetos" --, coma ceresque
sabem inacabados. T6m a consci6ncia de sua inconclusio.
caminham para frente, que olham para ftente; coma se-
Ai se encontram asraizes da educagao mesma, como mani- res a quem o imobilismo ameagade morte; para quem o
festagaoexclusivamentehumana. lsto 6, na inconclusio olhar para trfs nio deveser uma forma nostflgica de que-
dos homens e na consci6nciaque dela t6m:,Dai que seja a rer voltar, mas um modo de melhor conhecer o que este
educag5oum quefazerpermanente. Permanentemente, na sendo, para mellor construir o futuro. Dai que se iden-
razio da inconclusio dos homens e do devenir da realidade.
tifique com o movimento permanente em que se acham
Desta maneira, a educagao se re-faz constantemente na inscritos os homens, como seres que se sabem inconclu-
praxis. Para ser tem que ester sendo. sos;movimento que &hist6rico e que tem o seu panto de
Sua "duragao" -- no sentido begsoniano do terms --, partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
como processo,este no jogo dos contrfrios perman6n- O ponte de partida deste movimento este nos homens
l cia-mudanga. mesmos.
Enquanto a concepgao"bancfria" da 6nfase a perma- Mas, como nio ha homens sem mundi, sem realidade,
n6ncia, a concepg5o problematizadora reforga a mudanga. o movimento parte das relag6eshomens-mundo.Dai que
Destemodo, a pratica "bancaria",implicando o imobihs- esteponte de partida esteja sempre nos homens no seuaqtli
mo a que fizemos refedncia, se faz reacionfria, enquanto a e no seu agora que constituem a situagao em que se encon-
concepg5o problematizadora, que, nio aceitando um presence tram ora imersos, ora emersos, ora insertados.
'bem-comportado",nio aceitaigualmenteum futuro pr&-da- Somente a partir desta situagao, que Ihes determina a pr6-
do,enraizando-se no presentedinamico,sefazrevolucionfria. pria percepgaoque dela estio tends, 6 que podem mover-se.
A educagaoproblematizadora,que nio & fixismo rea- E, para faz&-lo, autenticamente, 6 necessario,inclusive,
cionario, & futuridade revolucionfria. Dai que seja pro- que a situagao em que estio nio Ihes aparegacoma alba
fetica e, como tal, esperangosa.'P
Dai que correspondaa fatale intransponivel, mas come uma situagaodesafiadora,
que apenasos limita.
'9 Em Afar mlturalpara a liberdadec outrosescrttos,discutimos maid amplamente
este senddo profetico e esperangosoda educagao(ou aWaDcultural) problema- Enquanto a pratica "bancaria", por tudo o que dela
tizadora. Pro6etismo e esperangaque nsultam do canter ut6pico de tal korma dissemos, enfatiza, direta ou indiretamente, a percepgio
de agate,tomando-se a utopia coma a unidade inquebrantavel entre a denQncia
e o an6ncio. Den6ncia de uma Kalidade desumanizante e an6ncio de uma rea- fatalista que estejam tendo os homens de sua situagao,
lidade em que os homens possamser mais. Andncio e denQncianio sao,por6m, a pratica problematizadora, ao contrario, prop6e aos
palavrasvazias,mas compromisso hist6rico.
homens sua situagao como problema. Prop6e a des sua

I02 I PAULO FREIRE


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I I03
situagao como incid6ncia de seu ato cognoscente,atrav6s Esta busca do sa mats,por6m, n5o pode realizar-seno
isolamento, no individualismo, mas na comunhao, na so-
do qual sera possivel a superag5o da percepgao magica
ou ing6nua que deja tenham. A percepgao ing6nua ou lidariedadedos existires, dai que seja impossivel dar-senas
relag6es antag6nicas entre opressores e oprimidos.
magica da realidade da qual resultava a postura fatalista
cede seu lugar a uma percepg5oque & capaz de perceber-se. Ningu&m pode ser,autenticamente, proibindo que os
E porque 6 capaz de perceber-seenquanto percebe a outros spam. Esta & uma exig6nciaradical. O sermats
realidade que Ihe parecia em si inexoravel, 6 capaz que se busque no individualismo conduz ao ter mats eEofs-
de objetiva-lal: [a, forma de ser metros.De desumanizagao. N5o que nio
Desta forma, aprofundando a tomada de consci6nciada deja fundamental -- repitamos -- ter para ser. Precisa-
situagao, os homens se "apropriam" dela coma realidade his- mente porque &, n5o pode o ter de alguns converter-se na
obstaculizagao ao ter dos demais, robustecendo o poder
t6rica, por isto mesmo, capaz de ser transformada por des.
O fatalismo cede, entao, seu lugar ao impeto de trans- dos primeiros, com o qual esmagam os segundos,na sua
formagao e de busca, de que os homens se sentem sujeitos. escassezde poder.
Para a prftica 'bancfria", o fundamental 6, no mfximo,
Serra,realmente, uma vio16ncia, como de cato 6, que os
homers, sereshist6ricos e necessariamenteinseridos num amenizar esta situagao, mantendo, por&m, as consci6ncias
movimento de busca, com outros homens, nio fossem o imersas nela. Para a educagao problematizadora, enquan-
sujeito de seupr6prio movimento. to um quefazer humanista e libertador, o importante este
Por isto mesmo & que, qualquer que seja a situag5o em em que os homenssubmetidosa dominagaolutem por
que alguns homens proibam aos outros que sejam sujeitos sua emanclpagao.
de suabusca, se instaura como situagao violenta. Nlo im- Por into 6 que estaeducagao,em que educadorese edu-
candos se fazem sujeitos do seu processo, superando o
portam os meios usados para esta proibigao. Faze-1osobje-
tos 6 aliens-los de suas decis6es, que sio transferidas a outro intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do
ouaoutros. educador "bancario", supera tamb&m a balsaconsci6ncia
do mundi.
Este movimento de busca, por6m, s6 se justifica na me-
dida em que se dirige ao sa mats,a humanizagao dos ho- O mundo, agora,j£ n5o & argosobre que se fda com fa-
mens. E esta,como afirmamos no primeiro capitulo, 6 sua saspalavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educagao,
vocagao hist6rica, contraditada pda desumanizagaoque; a incid6ncia da agatetransformadora dos homens, de que
ngo sends vocag5o, 6 viabibdade, constativel na hist6ria. E, resulte a sua humanizagao.
enquanto viabilidade, deve apareceraos homens coma de- asta & a razio por que a concepgao problematizadora da
safio e nio como 6'eio ao ato de buscar. educagaonio pode servir ao opressor.

PEDAGOGIA DO OPNMIDO I I05


IO4 I PAULO FREIRE
Nenhuma "ordem" opressorasuportaria que os oprimi- 3
dos todos passassema dizer: "Por qu6?'
Seesta educagaosomente pode ser realizada, em termos A DIALOGICIDADE: ESS£NCIADA EDUCAgAO
COMO PRATICA DA LIBERDADE
sistemfticos, pda sociedadeque fez a revolugao, isto nio
significa que a lideranga revolucionfria espere a chegada ao
poder para aplica-la.
No processo revo]ucionario, a ]ideranga n5o pode ser
"bancaria", para depois deixar de s6-1o.so Ao iNiCiAR ESTECAPiruLO SOBREa dialogicidade da educa-
g5o, com o qual estaremoscontinuando as anflises feitas
nos anteriores,a prop6sito da educagaoproblematizadora,
parece-nos indispensfvel. tentar algumas considerag6es em
torso da ess6nciado diflogo. Considerag6escom as quais
aprofundemos afirmag6es que fizemos a respeito do mesmo
l fema em EdKcafao romo prdtica (h Zibclzhdc.s'
Quando tentamos um adentramento no dialogo coma lena
1.
meno humano, senos revela argo queja poderemos dizer ser ele
mesmo: apahwa. Mas, ao encona-amlos a palavra, na anihse do
dialogs, como argo mais que um meio para que ele se naga,se
nos imp6e busch, tamb&m, sells elementos constitutivos.
Etta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimens6es:
aWaD e reflexao, de tal forma solidfrias, em uma interagao
H tio radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma degas,
se ressente, imediatamente, a outra. Nio ha palavra verda-
deira que nio segapraxis.': Dai que dizer a palavra verdadei-
ra segatransformar o mundi.s'

li Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1967[33' edigao, Sio Pau]o: Paze Terra, 2011].
5z Palavra (aWaD) ; Prixis.
(reflexio)
s,..U.i. .£113S:9= palavreria, verbalismo, bla-bla-bla
(de ren
flexao) = ativismo
5' No Capitulo IV analisamosdetidamcnte esteaspecto,ao discutirmos astccF 5' Algumas deltas Kflex6es nos ioram motivadas em nossos dialogos com o
das antidia16gica e dia16gica da aWaD.
prof Ernani Maria Fiori.

IO6 I PAULO FREIRE


A palavra inaut6ndca, por outro dado,com que n5o se pode Mas, se dizer a palavra verdadeira, que 6 trabalho, que &
transformar a reahdade, resulta da dicotomia que se estabele- praxis, 6 translormar o mundi, diner a palavra n5o & privy'
ce entre seus elementos constituintes. Assim & que, esgotada l&gio de alguns homens, mas direito de todos os homens.
a palavra de sua dimensio de agro, sacrMcada,automatica- Precisamente por isto, ningu&m pode dizer a palavra verda-
mente, a reflexio tamb&m, se transiorma em palavreria, ver- deira sozinho, ou diz6-la para os outros, num ato de prescri-
balismo, bla-blf-bla. Por tudo isto, alienada e ahenante. B uma gao, com o qual rouba a palavra aos demais.
palavra oca, da qual nio se pode esperar a deniincia do mun- O dialogs 6 este encontro dos homens, mediatizados
do, pois que n5o hf den6ncia verdadeira sem compromisso de pesomundi, para p70HKncid-Zo,
n5o se esgotando, portanto,
uansformagao,nem estesemagro. na relagao eu-tu.
Se, peso contrario, se enfatiza ou exclusiviza a agro, asta & a razio por que n5o 6 possivelo dialogs entre os
com o sacriflcio da reflexao, a palavra se convene em ati- que querem a prottanda do mundi e os que n5o a querem;
dsmo. Este, que & aWaDpda aWaD,ao minimizar a reflexao, entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra
nega tamb&m a praxis verdadeira e impossibilita o dialogo. e os que se acham negados deste direito. f preciso primeiro
Qualquer destasdicotomias, ao gerar-se em formas inau- que os que assimse encontram negadosno direito primor-
t6nticas de existir, gera formas inaut6nticas de pensar,que dial de dizer a palavra reconquistem essedireito, proibindo
reforgam a matriz em que se constituem. que esteassaltodesumanizantecontinue.
A exist&ncia,porque humana, n5o pode ser muda, silen- Se 6 dizendo a palavra com que, pron ttdando o mun-
ciosa, nem tampouco pode nutrir-se de salsaspalavras, mas di, os homens o transformam, o diflogo se imp6e coma
de palavras verdadeiras, com que os homers transformam caminho pele qual os homens ganham significagao enquan-
o mundo. Existir, humanamente, 6 plottanclar o mundo, to homens.
& modificf-lo. O mundi prottxaclado,por sua vez, se vol- Por isto, o dialogo 6 uma exig&ncia existencial. E, se
ta problematizado aos sujeitos proniiltcialttes,a exigir deles ele & o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir
novoproltx7taar. de seus sujeitos enderegadosao mundo a ser transfor-
Nio &no si16ncios'que os homens se fazem, mas na pala- mado e humanizado, n5o pode reduzir-se a um ato de
vra, no trabalho, na agro-reflexao. depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco
I' Nio nos referimos, obviamente, ao si]6ncio dasmeditag6es profundas em que tornar-se simpler troca de ideias a serem consumidas pe-
os homens, numb forma s6 aparente de fair do mundi, dele "afastando-se"para los permutantes.
admire-lo" em suaglobajidade, com ele, por isto, continuam. Dai que estas6or-
N5o & tamb6m discuss5o guerreira, po16mica, entre su-
masde recolhimcnto s6 clam verdadeirasquando os homens Deja seencontrem
'molhados" de Kalidadc e nio quando, significando um desprezo ao mundi. jeitos que nio aspiram a comprometer-se com apronattcia
!clam manciras de fugir deli, numa esp6ciede "esquizofrenia hist6rica" do mundi, nem a buscar a verdade, mas a impor a sua.

I08 I PAULOFAIRE PEnAGOcix DO OPRIMIDO I iog


Porque 6 encontro de homens que pronxltciamo mundo, nos dominados.Amor, nio. Porque 6 um ato de coragem,
n5o deve ser doagaodo pro?ttt?tciar de uns a outros. E um nunca de medo, o amor & compromisso com os homens.
ato de criagao. Dai que nio possa ser manhoso instrumento Onde quer que estejam estes,oprimidos, o ato de amor este
de que lance mgo um sujeito para a conquista do outro. A em comprometer-se com sua causa. A causa de sua liberta-
conquista implicita no dialogo 6 a do mundo pelts suJeitos gao. Mas, este compromisso, porque & amoroso, & dia16gico.
dia16gicos,n5o a de um pelo outro. Conquistado mundi Coma ato de valentia, nio pode ser piegas;como ato de
para a libertagao dos homens. hberdade, nio pode ser pretexto para a manipulagao, senio ge-
rador de outros amosde liberdade. A n5o ser assim, nio & amor.
Somente com a supressao da situagao opressora & possi-
EDUCAGAODIAL6GICAEDIALOGO vel restaurar o amor que nela estavaproibido.
Se nio amo o mundo, se nio amo a vida, se nio amo os
Nio ha dialogo, por6m, se n5o ha um profundo amor ao mun- homens,nio me 6 possivelo diflogo.
do e aos homens. Nio & possivela ptondttcia do mundi, que 6 Nio ha,por outro lado,dialogs, senio ha humildade.A
um ato de criagaoe recriagao,senio ha amor que a infunda." pr07tdnciado mundo, com que os homens o recriam perma-
Sendofundamento do diflogo, o amor &, tamb6m, diilo- nentemente, nio pode ser um ato arrogante.
go. Dai que seja essencialmentetarefa de sujeitos e que nio O dialogs, coma encontro dos homens para a tarefa co-
possa verificar-se na relagao de dominag5o. Nesta, o que ha 6 mum de saber agir, se rompe, se seus polos (ou um deles)
patologia de amor: sadismoem quem domina; masoquismo perdema humildade.
Como posse dialogar, se aliens a ignorancia, isto 6, se a
5s Cada vez nos convencemos maid da necessidadede que os verdadeiros re-
velo sempre no outro, nunca em mim?
volucionirios reconhegamna revolugao,porque um ato criador e libertador,
um ato de amor. Para n6s, a revolugao, que nio se faz sem teoria da revolugao, Como posse dialogar, se me admito como um homem
portanto, semci6ncia+nio tem nestsuma inconciliagaocom o amor. Pelocon- diferente, virtuoso por heranga, diante dos outros, meros
trario, a revolugao, que 6 feita pecoshomens, o 6 em name de suahumanizagao. "isto", em quem nio reconhegooutrosm?
Que leva os revolucionfrios a aderirem aos oprimidos, senio a condigao desu.
manizada em que se acham estes? Como posso dialogar, se me sinto participants de um
Nio 6 devido a detedoragao a que se submete a palavra amor no mundo capi- gueto de homens purrs, donos da verdade e do saber,para
talista que a revolug5o vi deixar de ser amorosa, nem os revolucionirios fazer
si16nciode seu carfter bi6filo. Guevara, ainda que tivessesalientado o "risco de
quem todos os que estio fora s5o "essagents", ou sio "na-
parecerridicule", nio temeu afirmi-lo. Ddemedecide(declaroudirigindo-se a tivos inferiores"?
Car16s Qmyano) a HesEOde parecer rtdhKZo qae eZverhdero revoZHciottddoes anima- Como posso dialogar, se panto de que a prottfnda do
dopor.Pertessmtimtmtos deanon Es fmposiblepemar #lt rwoZ ctoltado a tmtico,
silt estemaZidad.Ernesto Guevara, Obru rwoluciontarta.:M&xico: Ediciones Era mundi 6 tarefa de homens seletos e que a presenga das mas-
S.A., 1967, P. 637-38. sasna hist6ria & sinai de sua deterioragao que devo evitar?

nO I PAULO FREIRE PEDAGOGIA DOOPNMIDO I III


Como posse dialogar, se me fecho a contribuigio dos tende a renascer.Pode renascer. Pode constituir-se. Nio
outros, que jamais reconhego, e at6 me sinto ofendido gratuitamente, mas na e pda lula por sua libertag5o. Com
com ela?
a instalagao do trabalho nio mais escravo, mas livre, que
Como posco dialogar se demo a superagao e se, s6 em da a alegria de viver.
pensarnela,sonoede6nho? Sem esta f6 nos homens o diflogo 6 uma Carsa.Transfor-
A autossufici6ncia6 incompativel com o diflogo. Os ma-se, na melhor das hip6teses, em manipulagao adocica-
homens que nio t6m humildade ou a perdem nio podem damentepaternalista.
aproximar-sedo povo. N5o podem ser seus companheiros Ao fundar-seno amor, na humildade, na fe nos homens,
de p70 dncia do mundo. Sealgu&m n5o & capazde sentir-se o dialogo se faz uma relagao horizontal, em que a con$anfa
e saber-setio homem quanto os outros, 6 que Ihe maltaain- de um polo no outro 6 consequ6ncia 6bvia. Serra uma con-
da muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro tradigao se,amoroso, humilde e cheio de fe, o dialogo nio
com des. Nestelugar de encontro,n5o ha ignorantesab- provocasse este clima de confianga entre seus sujeitos. Por
solutos, nem sibios absolutos: ha homens que, em comu- isto inexiste esta confianga na antidialogicidade da concep-
nhio, buscam saber mais. gao "bancfria" da educagao.
Nio hf tamb&mdiflogo sen5o hf uma intensaf6 nos Se a f6 nos homens 6 um dado a prion do dialogs, a con-
homens. F6 no seu poder de fazer e de refazer. De criar e fianga se instaura com ele. A confianga vai fazendo os suj€i-
recriar. F6 na sua vocagao de sa mats, que nio 6 privi16gio tos dia16gicos cada vez mats companheiros na protui?tcfa do
de alguns eleitos, mas direito dos homens. mundi. Sefalha esta confianga, &que falharam ascondig6es
A f6 nos homens 6 um dado a prior! do diflogo. Por isto, discutidasanteriormente. Um falso amor, uma fisa humil-
existe antes mesmo de qlie ele se instate. O homem dia16gi- dade,uma debilitada fe nos homens nio podem gerar con-
co tem fe nos homens antes de encontrar-se frente a irente fianga.A confiangaimplica o testemunhoque um sujeito
com des. Esta,contudo,nio 6 uma ing6nuaB. O homem da aos outros de suas reals e concretas inteng6es. N5o pode
dia16gico,que 6 critics, sabe que, se o poder de fazer, de existir, se a palavra, descaracterizada, n5o coincide com os
criar, de transformar, & um poder dos homens, sage tam- atos.Dizer uma coisae fazer outra, n5o levando a palavra a
b&m que podem des, em situagao concreta, alienados,ter s6do, nio pode ser estimulo a confianga.
estepoder prejudicado. Esta possibilidade, por6m, em lugar Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo
de matar no homem dia16gicoa sua fb nos homens,apa- 6 uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens &
rece a ele, pesocontrfrio, como um desafio ao qual tem uma mentira.
de responder. Este convencido de que este poder de fazer Nio existe, tampouco, diflogo sem esperanga. A espe-
e transformar, mesmo que negado em situag6es concretas, ranga este na pr6pria ess6ncia da imperfeigao dos homens,

112 I PAULO FREIm PEOAGOGIA DO OPNMIDO I n3


levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca, coma ja Para o pensar ing6nuo, o importante 6 a acom6dagaoa
vimos, n5o se faz no isolamento, mas na comunicagao estehowenormalizado.Para o critico, a transformagaoper-
entre os homens -- o que & impraticfvel numa situagao manente da realidade, para a permanente humanizagao dos
de agressao. homens. Para o pensar critics, dina Pierre Finer, "a meta
O desespero6 uma esp&ciede si16ncio,de recusado nio seri mais eliminar os discosda temporalidade,agarran-
mundo, de fuga. No entanto a desumanizagaoque resulta do-se ao espago garantido, mas temporalizar o espago. O
da "ordem" injusta n5o deveriaser uma razio da perda da universo n5o se revela a mim (diz ainda Furter) no espago,
esperanga,mas, ao contrario, uma raz5o de desejar ainda impondo-me uma presenga maciga a que s6 posso me adap-
mais, e de procurar sem descanso,restaurar a humanidade tar, mas como um campo, um dominic, que vai tomando
esmagadapda injustiga. forma na medida de minha agro".s7
Nio &, por&m, a esperangaum cruzar de brazos e espe- Para o pensar ing6nuo, a meta & agarrar-se a este espago
rar. Movo-me na esperangaenquanto auto e, se luto com garantido, ajustando-sea ele e, negando a temporalidade,
esperanga, espero. negar-se a si mesmo.
F Se o diflogo & o encontro doshomens para sa mats,nio $9els!!!s.g.s1141pg(!-golf.i!!
!p!!fa..!!!n.
pensarcritico,6 ca-
pode fazed-se na desesperanga. Se os sujeitos do diflogo nada paz, tamb6m, df.g(;11flQ:.
esperam do seu quefazer, jf nio pode haver diflogo. O seu Sem ele nio ha comunicagao e sem esta n5o ha verdadei-
encontro & vazio e est6ril. 1:burocrftico e fastidioso. ra educagao.A que, operando a superagaoda contradigao
Finalmente, n5o ha o dialogo verdadeiro se nio ha nos educador-educandos, se instaura como situagao gnosio16gi-
seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar critico. Pensar ca,em que os sujeitos incidem seu ato cognoscentesabre o
que, nio aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece objeto cognoscivel que os mediatiza.
entre des uma inquebrantavel solidariedade.
Este 6 um pensar que percebe a realidade como proces-
so, que a capta em constancedevenir e nio como algo es- 0 oiALOGO COMEQANA BUSCAOO CONTE0OO PROGKAMATiCO
tftico. Nio se dicotomiza a si mesmo na agro. "Banha-se'
Dai que, para etta concepgao coma pratica da liberdade, a
permanentemente de temporalidade cujos riscos n5o teme}
sua dialogicidade comece, nio quando o educador-educando
Op6e-seao pensar ing6nuo, que v& o "tempo hist&rico
se encontra com os educando-educadores em uma situagao
como um peso, coma uma estratificagaodas aquisig6ese
experi6ncias do passado",s' de que resulta dover ser o presen- pedag6gica,mas antes, quando aquele se pergunta em torno
te algo normalizado e bem-comportado. do que vai dialogar com estes.asta inquietaq:aoem porno do
Trecho de carta de um amigo do autor. 5z Pierre Furter, Educafdoe Hda. Petr6polis: Voles, 1966,p. 26-7

n4 I PAULO FAIRE PEDAGOGIA


DOOPRIMIDO I n5
conteQdodo dialogs 6 a inquietagaoem torno do conte6do Furter) em permitir a tomada de consci6ncia de nossaplena
programatico da educagao. humanidade, coma condigao e obrigagao: como situagao e
Para o "educador-bancfrio", na sua antidialogicidade, a projeto.""
pergunta, obviamente, n5o & a prop6sito do conteQdodo Simplesmente, nio podemos chegar aosoperfrios, ur-
dialogo, que para ele nio existe,mas a respeito do progra- banos ou camponeses, estes, de modo gerd, imersos num
ma sobre o qual dissertarf a seusalunos. E a estapergunta contexts colonial quase umbilicalmente ligados ao mun-
respondersele mesmo,organizandosm programa. do da natureza de que se sentem mais panes que trans-
Parao educador-educando, dia16gico,problematizador, formadores, para, a maneira da concepgao "bancaria",
o conte6do programatico da educagaon5o 6 uma doag5o entregar-lines "conhecimento" ou impor-lhes um modelo
ou uma imposigao-- um conjunto de informes a serde- debom homem, contido no programa cujo conteido n6s
positado nos educandos --, mas a devolugao organizada, mesmos organizamos.
HU sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos Nio seriam poucos os exemplos que poderiam ser cita-
que este Ihe entregou de forma desestruturada." dos, de pianos, de natureza politica ou simplesmente do-
11 A educag5o aut6ntica, repitamos, nio se faz de A para B cente, que falharam porque os seus realizadorespartiram
ou de A sobre B, mas de A comB, mediatizados pelo mundo. de uma visio pessoal da realidade. Porque nio levaram
Mundi que impressiona e desafiaa uns e a outros, originan- em conga, num minimo instance, os homens em situafdo a
do vis6es ou pontos de vista sabre ele. Vis6es impregnadas quem se dirigia seu programa, a nio ser com puras incid6n-
de anseios,de davidas, de esperangasou desesperangasque cias de sua agro.
Para o educadorhumanista ou o revolucionfrio aut6nti-
implicitam temas significativos, a base dos quais se cons-
tituirf o conteQdoprogramatico da educagao.Um dos co, a incid6ncia da agro & a realidade a ser trans6ormada por
des comos outros homens e nio estes.
equivocos de uma concepg5oing6nua do humanismo este
em que, na insia de corporificar um modelo ideal de "bom Quem aqua sobre os homens para, doutrinando-os,
homem", se esquece da situagao concreta, existencial, pre- adapts-los cada vez mais a realidade que deve permanecer
sence,dos homens mesmos. "0 humanismo consiste (diz intocadasio os dominadores.
Lamentavelmente, por&m, neste "canto" da vertica-
s' Em uma longa conversagaocom Malraux, declarou Mao: Vo savezquejepro- lidade da programagao, "conte" da concepg5o "bancf-
clame depKis btt#rntps: no devon emdgner alix pttmses aver p#cisfopt ce que ltous
ria", caem muitas vezes liderangas revolucionfrias, no
avon rrfK d'elms avec foltfi.sfolt. ;Andre Malraux, Altai-memoires. Pads: Gallimard,
1967,p- 531 Nests afirmagao de Mao esb toda uma peoria dia16gicade cons- seu empenho de obter a adesio do povo a agro revo-
lituigao do.conteQdo programatico da educagao,que nio pode ser elaborado lucionfria.
a partir das finalidadcs do educador, do que Ihe parega ser o mclhor para sew
educandos. 5pP Furter, op. cit., p. 165

n6 I PAULO FIUIRE PEDAGOGY OOOPRIMIOO I n7


Acercam-se das massascamponesas ou urbanas com Afinal, o empenhodos humanistasn5o pode sero de
projetos que podem corresponder a sua visio do mundo, opor os seusslogansaosdos opressores,tendo como inter-
mas nio necessariamente a do povo.oo medifrios os oprimidos, coma se fossem ."hospedeiros'
Esquecem-sede que o seu objetivo fundamental 6 lugar dos sZogattsde uns e de outros. O empenho dos huma-
com o povo pda recuperagaoda humanidaderoubadae nistas,pele contrario, este em que os oprimidos tomem
n5o conqaistaro povo. Este verso nio deve caber na sua consci6ncia de que, peso faso mesmo de que estio sends
linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionfrio cabe 'hospedeiros"dos opressores,como seresduais, nio es-
libertar e libertar-secom o povo, nio conquista-lo. tio podendoser.
As elites dominadoras, na sua atuagaopolitica, sio efi- Estapratica implica, por isto mesmo, que o acercamento
cientesno uso da concepgao"bancfria" (em que a conquis- is massaspopulares se naga,n5o para levaf-shesuma mensa-
ta 6 um dos instrumentos) porque, na medida em que esta gem "salvadora", em forma de conteQdoa ser depositado,
desenvolveuma agro apassivadora,coincide com o estado mas,para, em diflogo com das, conhecer, nio s6 a objeti-
de "imers5o" da consci6nciaoprimida. Aproveitando esta vidade em que estao,mas a consci6nciaque tenham delta
'imers5o" da consci6ncia oprimida, estaselites v5o trans- objetividade; os vfrios niveis de percepgaode si mesmos e
formando-a naquela"vasilha" de que falamos e pondo nela do mundo em que e comque estio.
slogan que a fazem mais temerosa ainda da liberdade. Por isto 6 que nio podemos, a nio ser ingenuamente, es-
Um trabalho verdadeiramente libertador & incompati- perar resultados positives de um programa, seja educativo
vel com esta prftica. Atrav&s dele, o que se ha de fazer & num sentido maidt&cnico ou de agro politica, se,desrespei-
propor aos oprimidos os slogansdos opressores, coma pro- tando a particular visio do mundo que tenha ou estejaten-
blema, proporcionando-se, assim,a sua expulsao de "den-
do o povo, se constitui numa esp6ciede "invasio cultural",
tro" dos oprimidos.
ainda que feita com a melhor das inteng6es. Mas "invas5o
60 Roar dtaHir Kite liakon awr Zesnmsses, ltoHSdown.s c(mdmTltn d lan dZsin. IMm tou cultural" sempre.''
nuvuiZpuitr Zesnaasses,
nom drvons}urtir fb lars hsoins, a Ilan (k nosI)nowa ddsfn,sl
[ombZasoimt-ib. /ZarHw smww qw Z ntasses diem obetiwntmt lusoin lh talks ou aZZcs
trurigi)r?mtion$ luis (?wsuQaixenimt,eZZes
msoimt coltsctmtsdecelzsoln, qu 'eh:sn'aims
pti Lz vuZontZ nik ddsir(b Zes rlalise6 (hns ce cas, lzow fietons attendee awrlutience; c'aitsw- AS RELA96ES HOMENS-MUNDO, OS TEMAS GERADORESE O
lenzmt lonqm, fi h Itc & notnr truwil, Zesmassesserum, ihm lars mqoritd consdmta dc
CONTEODO PROCKAMATiCO DESTA EOUCAQAO
h ce d c trnm#mtions,ZonqK'eh:s
aKlmtLzwZontddbdfsiriielaluirrahutfr
qlt'm ;uarrn Za reaZiseCsirtm, Z'on Hsqw first'cou]K'r(&:s masa.[...] DeKtxlhpznpes (biveM
nousgKifler:
pmttiZlnltmt, ks hsoin.sr&k ({n ntasses
d lim Zahsoinsds (b notrelpmgim- Serf a partir da situag5opresence,existencia],concreta,
don; ({enxf&nntt, b d&ir Ifblenuw c3qMndINzrZesntasses,Za ruolations qH'eZZes
ow ptjses refletindo o conjunto de aspirag6esdo povo, que poderemos
eZlesmimes et non cclhx qm nousplrzlom a Imrplwe. Mao TH-Tung, "Le Front uni dana
le travail cultured", in (E14wes
clioisiesfk Xiao Tse-7Z)unB.
Pequim: Ed. du Peuple, 1966= 6' No capitulo seguinte. analisaremos detidamente etta questao.

n8 I PAULOFREIM PEOAGOGIA OO OPRIMIDO I n9


organizaro conteido programftico da educagio ou da tanto quandoa linguagem do povo, nio existem semum
agatepolitica. pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade
O que demosde racer, na verdade, 6 proper ao povo, a que se encontrem referidos. Desta forma, para que haja
atrav6s de certas contradig6es bfsicas, sua situagao existen- comunicagao eficiente entre des, 6 precise que educador
cial, concreta, presence,coma problema que, por sua vez, o e politico sejam capazesde conhecer as condig6es estru-
desafia e, assim, Ihe exige resposta, nio s6 no navel intelec- turais em que o pensare a linguagem do povo, dialetica-
tual, mas no navel da aWaD." Mente,:se constituem.
Nunca apenas dissertar sabre ela e jamais doar-the con- Dai tamb6m que o conteQdo programatico para a aWaD,
teQdosque pouco ou nada denhama ver com seusanseios, que & de ambos, n5o possa ser de exclusiva eleigao daqueles,
com suasd6vidas,com suasesperangas, com seustemores. mas,delese do povo.
ConteQdosque, is vezes,aument8m estestemores. Temo- E na realidade mediatizadora, na consci6nciaque dela te-
resde consci&nciaoprimida. nhamos, educadores e povo, que iremos buscar o conteQdo
Nosso papel nio & falAr ao povo sobre a nossa visio programftico da educagao.
do mundo, ou tentar imp6-la a ele, mas dialogar com ele O moments destebuscar 6 o que inaugura o diflogo da
sobre a sua e a nossa. demos de estar convencidos de que educagaocomo pratica da liberdade. E o momento em que
a sua visio do mundi, que se manifesta nas vfrias formal serealiza a investigag5o do que chamamos de nivnso tel?d-
de sua agro, replete a sua s t aldo no mundo, em que se tiCO63do povo ou o conyunto de seus tends geradores.
constitui. A agro educativa e politica nio pode prescindir asta investigagaoimplica, necessariamente, uma meto-
do conhecimento critico dessasituagao, sob pena de se tb- dologiaque nio Rodecontradizer a dialogicidadedaeduca-
zer "bancfrial ' ou de pregar no deserto. gaolibertadora. Dai que sejaigualmente dia16gica.Dai que,
Poristomesmo6 que,muitasvezes,i;g!!£!4orflF.pg!!!i: conscientizadora tamb&m, proporcione, ao mesmo tempo,
lgsfalam c nio sio entendidos.Sualing!!aged!!jg.$!!!!gW- a apreensao dos "temas geradores" e a tomada de consci&n-
z! c(lila..gjily+giQ concreta dos homens a queqlfbJan].-E-sua cia dos individuos em torso dos mesmos.
fda & urg disgurso a mais, alienado e alienante. Esta&a razio pda qual (em coer6nciaaindacom a fina-
E que a linguage;n do educad(ii:6ii"a6"F31itico (e cada lidade libertadora da educagao dia16gica)nio se trata de ter
vez nos convencemosmais de que este ha de tornar-se nos homens o objeto da investigagao, de que o investigador
tamb6m educador no sentido mais amplo da expressao), seriao sujeito.
6' Neste sentido, 6 tio contradit6rio que homens verdadciramente humanistas O que se pretende investigar, realmente, nio sio os ho-
usem a pritica "banciria" quanto que homens de direita se empenhem num mens, coma se fossem pegas anat6micas, mas o seu pensa-
csforgo de educag5oproblematizadora. Estes sio scmpre mats coerentes--ja-
mais aceitam uma pedagogia da problematizagao. H Com a mesma conota$o, usamos a expressao tendtica siWgkativa

120 I PAULO FREIRE PEDAGOGIA DOOPRIMIDO I IU


ments-linguagem referido a realidade, os niveis de sua per- outros, do panto de vista da agro de ambos no espagoem
cepgaodelta realidade,a sua visio do mundo, em que se que se encontram.
encontramenvolvidosseus"temasgeradores' Ao nio poder separar-sede sua atividade sobre a qual
Antes de perguntar-nos o que & um "tema gerador", cuja n5o pode exercerum ato reflexivo, o animal nio consegue
respostanos aclararf o que &o "universo minimo tematico", irnpregnar a transformagao, que realiza no mundi, de uma
nos parece indispensfvel desenvolver algumas reflex6es. significagao que vf mais al&m de si mesmo.
Em verdade, o conceito de "tema gerador".nao & uma Na medida em que suaatividade & uma ader6ncia dele,
criagaoarbitraria, ou uma hip6tesede trabalho que deva os resultados da transformagao operada atrav6s deja nio
ser comprovada.Se o "fema gerador" fosseuma hip6tese o sobrepassam.Nio se separamdele, tanto quanto sua
que devesseser comprovada, a investigag5o, primeiramen- atividade. Dai que ela caregade finalidadesque sejam
te, nio serra em torno dele, mas de sua exist6ncia ou nio. propostas por ele. De um dado, o animal nio se separa
Neste casa, antes de buscar apreend6-1oem sua riqueza, de sua atividade, que a ele se encontra aderida; de outro,
em suasignificagao, em suapluralidade, em seu devenir, em o panto de decisio desta se acha fora dele: na esp6ciea
sua constituigao hist6rica, teriamos que constatar, primei- que pertence. Pesofate de que sua atividade seja ele e ele
ramente, sua objetividade. S6 depois, entao, podedamos sejasuaatividade, n5o podendo deja separar-se,enquanto
tentar sua captagao. seu panto de decis5o se acha em sua esp6cie e nio nele,
Ainda que estapostura -- a de uma dQvidacritica -- seja o animal se constitui, fundamentalmente, como um "ser
11 fechado em si;
l legitima, nos pareceque a constatagaodo tema gerador,
como uma concretizagao,6 argoa que chegamosatrav6s, Ao nio ter este panto de decisio em si, ao n5o poder
n5o s6 da pr6pria experi6nciaexistencial, mas tamb&m de objetivar-senem a sua atividade, ao carecer de finalidades
uma reflexio critica sabre as relag6eshomens-mundo e ho- que se proponha e que proponha, ao viver "imerso" no
mens-homens,implicitas nasprimeiras. 'mundo" a que n5o conseguedar sentido, ao nio ter um
Detenhamo-nos nesteponto. Mesmo que possaparecer amanhi nem um hole, por viver num presence esmagador,
um lugar-comum, nunca sera demasiado falar acercados o anima16 a-hist6rico. Sua vida a-hist6rica se da, nio no
homens coma os Qnicosceres,entre os "inconclusos", capa- mundo tomado em sentido rigoroso, pris que o mundo n5o
zes de ter, nio apenas sua pr6pria atividade, mas a si mes- se constitui em um "nio eu" para ele, que seja capazde
mos, coma objeto de sua consci6ncia, o que os distingue do constitui-locoma eu.
animal,:incapaz de separar-sede sua atividade. O mundo humano, que 6 hist6rico, se faz, para o "ser
Nesta distingao, aparentemente superficial, vamos en-. fechado em si", mere suporte.Seu contorno nio Ihe & pro-
contrar as linhas que demarcam os campos de uns e de blem(itico, mas estimKZante.Sua vida nio 6 um correr riscos,

izz I pAUlO FREIRE PEDAGOGIA DOOPNNIDO I 123


mento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua per- outros, do ponto de vista da ação de ambos no espaço em
cepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se que se encontram.
encontram envolvidos seus"temas geradores' Ao não poder separar-sede sua atividade sobre a qual
Antes de perguntar-nos o que é um "tema gerador", cuja não pode exercer um ato reflexivo, o animal não consegue
resposta nos aclarara o que é o "universo mínimo temático", impregnar a transformação, que realiza no mundo, de uma
nos parece indispensável desenvolver algumas reflexões. significação que vá mais além de si mesmo.
Em verdade, o conceito de "tema gerador" não é uma Na medida em que sua atividade é uma aderênciadele,
criaçãoarbitrar.ia,ou uma hipótese de trabalho que deva os resultados da transformação operada através dela não
ser comprovada. .Se o "tema gerador" fosse uma hipótese o sobrepassam.Não se separamdele, tanto quanto sua
que devesseser comprovada, a investigação, primeiramen- atividade. Daí que ela careçade finalidadesque sejam
te, não seria em torno dele, mas de sua existência ou não. propostas por e]e. De um dado,o animal não se separa
Neste caso, antes de buscar apreendê-lo em sua riqueza, de sua atividade, que a ele se encontra aderida;de outro,
em suasignificação, em suapluralidade, em seu devenir, em o ponto de decisão desta se acha fora dele: na espéciea
sua constituição histórica, teríamos que constatar, primei- que pertence. Pelo fato de que sua atividade seja ele e ele
ramente, sua objedvidade. SÓdepois, então, poderíamos sejasuaatividade, não podendo dela separar-se,enquanto
tentar sua captação. seu ponto de decisão se acha em sua espécie e não nele,
Ainda que estapostura -- a de uma dúvida crítica -- seja o animal se constitui, fundamentalmente, como um "ser
legítima, nos pareceque a constataçãodo tema gerador, fechado em si
como uma concretização,é algo a que chegamos através, Ao não ter este ponto de decisão em si, ao não poder
não só da própria experiência existencial, mas também de objetivar-senem à sua atividade, ao carecerde finalidades
uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e ho- que se proponha e que proponha, ao viver "imerso" no
mens-homens, implícitas nas primeiras. 'mundo" a que não conseguedar sentido, ao não ter um
Detenhamo-nos neste ponto. Mesmo que possa parecer amanhãnem um hoje, por viver num presenteesmagador,
um lugar-comum, nunca será demasiado falar acerca dos o animal é a-histórico. Sua vida a-histórica se dá, não no
homens como os únicos seres,entre os "incondusos", capa- mundo tomado em sentido rigoroso, pois que o mundo não
zes de ter, não apenassua própria atividade, mas a si mes- se constitui em um "não eu" para ele, que sejacapazde
mos, como objeto de sua consciência, o que os distingue do constituí-lo como eu.
animal,:incapaz de separar-sede sua atividade. O mundo humano, que é histórico, se faz, para o "ser
Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos en- fechadoem si", mero suporte.Seu contorno não Ihe é p70-
contrar as linhas que demarcam os campos.de uns e de blemátÍco,mas estimKZante.
Sua vida não é um correr riscos,

122 I PAUIO FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 123


uma vez que não os sabecorrendo. Estes,porque não são Para o animal, rigorosamente, não há um aqui, um ago-
desafios perceptíveis reflexivamente, mas puramente "no- ra, um ali, um amanhã, um ontem, porque, carecendo da
tados" pelos sinais que os apontam, não exigem respostas consciênciade si, seu viver é uma determinação total. Não
que impliquem ações decisórias. O animal, por isto mes- é possíve[ao animal sobrepassaros limites impostos peia
mo, não pode comprometer-se. Sua condição de a-históri- aqtl{,pelo agoraou pelo alí.
co não Ihe permite assxmír a vida, e, porque não a assume, Os homens,pelo contrário, porque são consciênciade
não pode construí-la. E, se não constrói, não pode trans- si e, assim, consciência do mundo, porque são um "corpo
formar o seu contorno. Não pode, tampouco, saber-se consciente", vivem uma relação dialética entre os condicio-
destruído em vida, pois não conseguealongar seuSuporte, namentos e sua liberdade.
onde ela se dá, em um mundo significativo e simbólico, Ao se separaremdo mundo, que objetivam:'ao separa-
o mundo compreensivo da cultura e da história. Esta é a rem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto de decisão
razão pela qual o animal não animaliza seu contorno para de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e
animalizar-se, nem tampouco se desanimaliza. No bosque, com os outros, os homens ultrapassam as "situações-limite",
como no zoológico, continua um "ser fechado em si" -- que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insu-
tão animal aqui, como lá. peráveis, mais além das quais nada existisse.ó' No momento
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua mesmo em que os homens as apreendem como feios, em
atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função que elas se configuram como obstáculos à sua libertação,
de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o pon- se transformam em "percebidos destacados" em sua "visão
de ftlndo". Revelam-se, assim, como realmente são: dimen-
to de decisãode sua busca em si e em suas relaçõescom
sõesconcretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões
mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua
desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de
presença criadora através da transformação que realizam
açõesque Vieira Pinto chama de "atos-limite" -- aqueles que
nele, na medida em que dele podem separar-see, separando-se,
se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar de im-
podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal,
plicarem sua aceitação dócil e passiva.
não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.
Sea vida do animal se dá em um sziporteatemporal, pla- M O prof. Alvará Vieira Pinto analisa,com bastante lucidez, o problema das
'situações-limite". cujo conceito aproveita,: esvaziando-o, porém, da dimensã;o
no, igual, a existência dos homens se dá no mundo que eles pessimistaque se encontra originariamente emJaspers.
recriam e transformam incessantemente.Se,na vida do ani- Para Vieira Pinto, as "situações-limite" não são "o contorno inõ'anqueável
onde terminam as possibilidades, mas a margem real onde começam todas as
mal, o aqui não é mais que um habitat ao qual ele "cantata",
possibilidades"; não são "a fronteira entre o ser e o nada, mas a fronteira entre
na existência dos homens o aqui não é somente um espaço o ser e o ser mais"(mais ser). Alvará Vieira Pinto, Cpmciêttc a e real dado aacío-
físico, mas também um espaçohistórico. ltai. Rio deJaneiro: ISEB, 1960,v. 2, p. 284.

1« 1 PAUIO FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I 12S


Esta é a razão peçaqual não são as "situações-limite", Desta forma, em lugar de "situações-limite", que são
em si mesmas, geradoras de um clima de desesperança,mas históricas, é o suportemesmo, maciçamente, que o limita.
a percepção que os homens tenham delas num dado mo- O próprio do animal, portanto, não é estar em relaçãocom
mento histórico, como um freio a eles, como algo que eles seu suporte -- se estivesse, o suporte seria mundo --, mas
não podem ultrapassar.No momento em que a percepção adaptado a ele. Daí que, como um "ser fechado" em si, ao
crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima 'produzir" um ninho, uma colmeia, um oco onde viva; não
de esperança e confiança que leva os homens a se empenha- esteja realmente criando produtos que tivessem sido o re-
rem na superação das "situações-limite' sultado de "ates-limite" -- respostas transformadoras. Sua
Esta superação, que não existe fora das relações ho- atividade produtora está submetida à satisfação de uma ne-
mens-mundo, somente pode verificar-se através da ação cessidade física, puramente estimulante e não desafiadora.
h
dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as Daí que seusprodutos, fora de dúvida, "pertençam dire-
1: 'situações-limite' tamente a seus corpos físicos, enquanto o homem é livre
Superadasestas,com a transformação da realidade,no- frente a seu produto".'s
vas surgirão, provocando outros "atos-limite" dos homens. Somente na medida em que os produtos que resultam da
Desta forma, o próprio dos homens é estar, como atividade do ser "não pertençam a seus corpos físicos", ain-
consciênciade si e do mundo, em relação de enfrenta- da que recebam o seu selo, darão surgimento à dimensão
mento com sua realidade em-que, historicamente, se dão significativa do contexto que, assim, se faz mundo.
as "situações-limite". E este enfrentamento com a reali- Daí em diante, este ser, que desta forma aguae que, necessa-
dade para a superação dos obstáculos só pode ser feito riamente, é um ser consciênciade si, um ser "para si", não pode-
historicamente, como historicamente se objetivam as ria ser, se não estívuseselüo, no mundo com o qual está, como
situações-limite' também este mundo não existiria, se este ser não odstisse.
No "mundo" do animal, que não sendo rigorosamente A diferença entre os dois, entre o animal, de cuja ativi-
mundo, mas Suporteem que está,não há "situações-limi- dade, porque não constitui "ates-limite", não resulta uma
te", pelo caráter a-histórico do segundo, que se estendeao produção mais além de si, e os homens que, através de sua
primeiro. açãosobre o mundo, criam o domínio da cultura e da his-
Não sendo o animal um "ser para si", Ihe falta o poder de tória, está em que somente estes são seres da praxis. Praxis
exercer "atou-limite", que implicam uma postura decisória que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformado-
dente ao mundo, do qual o ser se "separa", e, objetivando-o, ra da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação.
o transforma com sua ação. Preso organicamente a seu su-
ó5 Kart Marx, Àlanmcdtos económico$1os(litros e Outros textos escoZhüos.São Paulo
porte, o animal não se distingue dele. Abiíl Cultural, 1974.

126 I PAULO
FREIO
PEOAGOGIAI)O OPRIMIDO I 127
Com efeito, enquanto a atividade animal, realizadasem destesvalores, destasconcepções e esperanças,como tam-
pfáxis, não implica criação, a transformação exercida pelos bém os obstáculos ao ser mais dos homens, constituem os
homens a implica. temas da época.
E é como serestransformadores e criadores que os ho- Estes não somente implicam outros que são seuscon-
mens, em suaspermanentes relações com a realidade, pro- trários, às vezesantagónicos, mas também indicam tarefas
duzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, a serem realizadas e cumpridas. Desta forma, não há como
os objetos,'mas também as instituições sociais, suas ideias, surpreender os temas históricos isolados, soltos, desconec-
suasconcepções." tados, coisificados, parados, mas em relação diabética com
Através de suapermanente ação transformadora da rea- outros, seus opostos. Como também não há outro lugar
lidade objetiva, os homens, simultaneamente, criam a histó- para encontra-los que não seja nas relações homens-mun-
ria e se fazem sereshistórico-sociais. do, O conjunto dos temasem interação constitui o "univer-
Porque, ao contrário do animal, os homens podem tridi- so temático" da época.
mensionar o tempo (passado-presente-futuro)que, contudo, Frente a este;"universo"ade temas que dialeticamente
não são departamentos estaques,sua história, em função de se contradizem, os homens tomam suasposições também
suasmesmas criações,vai sedesenvolvendo em permanente contraditórias, realizando tarefas em favor, uns, da manu-
devenir, em que se concretizam suas unidades epocais. Estas, tenção das estruturas, outros, da mudança.
como o ontem, o hoje e o amanhã,não sãocomo se fossem
Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os
pedaços estanques de tempo que ficassem petrificados e nos
temas que são a expressão da realidade, há uma tendência
quais os homens estivessemenclausurados. Se assim fosse,
para a mitificação da temática e da realidade mesma, o que,
desapareceria uma condição fundamental da história: sua
de modo geral, instaura um clima de "irracionalismo" e de
continuidade. As unidades epocais,pelo contrário, estão em
sectarismo.
relação umas com as outras" na dinâmica da continuidade
histórica. Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação
Uma unidadeepocal se caracterizapelo conjunto de mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes a conota-
ideias, de concepções,esperanças,dúvidas, valores, desa- ção dinâmica que os caracteriza.
fios, em interação dialética com seuscontrários, buscando No momento em que uma sociedadevive uma épocaas-
plenitude. A representação concreta de muitas destas ideias, sim, o próprio irracionalismo mitificador passaa constituir
um de seustemas fundamentais, que terá, como seu opos-
M A propósito deite aspecto, cf Karel Kosik, Diabéticado cottcreto,3' ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985. to combatente, a visão crítica e dinâmica da realidadeque,
ó' Em torno dc épocas históricas, cf: Hans Freyer. Teoria de Za (boca acrKíal. empenhando-se em favor do seu desvelamento, desmascara
México: Findo de Cultura Económica, 1958.
sua mitiâcação e busca a plena realização da tarefa humana:

128 I PAUIS FREIRE PEDAGOGIA DO OPNMIDO I 129


a permanente transformação da realidade para a libertação A tendência então, dos primeiros, é vislumbrar no ínéd to
dos homens. fiável, ainda como íttédíto üáveZ,uma "situação-limite" amea-
Os temasmse encontram, em última análise,de um çadora que, por isto mesmo, precisa não concretizar-se.Daí
lado, envolvidos, de outro, envolvendo as "situações- que atuem no sentido de manterem a "situação-limite" que
limite", enquanto as tara$asque eles implicam, quando lhes é favorável."
cumpridas, constituem os "atos-limite" aos quais nos Desta forma, se impõe à ação libertadora, que é histó-
referimos. rica, sobre um contexto, também histórico, a exigência de
Enquanto os temas não são percebidos como tais, envol- que esteja em relação de correspondência,não só com os
vidos e envolvendo as "situações-limite", as tara;Émreferidas temas geradores, mas com a percepção que deles estejam
a eles, que são as respostas dos homens atravês de sua ação tendo os homens. Esta exigência necessariamente se alonga
histórica, não se dão em termos autênticos ou críticos. noutra: a da investigação da temática significativa.
Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas Os temas geradores podem ser localizados em círculos
'situações-limite", que se apresentam aos homens como se concêntricos, que partem do mais geral ao mais particular.
fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das Temas de caráter universal, contidos na unidade epocal
quais não lhes cabe outra alternativa senão adaptar-se. Des- mais ampla, que abarca toda uma gama de unidades e subuni-
ta forma, os homens não chegam a transcender as "situa- dades,continentais, regionais, nacionais etc., diversiâcadas en-
ções-limite" e a descobrir ou a divisar, mais além delas e em tre si. Como tema fundamental desta unidade mais ampla, que
relação com elas, o íttédíto üóveZ. poderemos chamar "nossaépoca", se encontra, a nossover, o
Em síntese, as "situações-limite" implicam a existência da libertação, que indica o seu contrai.io, o tema da domina-
daquelesa quem direta ou indiretamente "servem" e da- ção. É este tema angustiante que vem dando à nossa época o
queles a quem "negam" e "creiam' caráter antnopoZ(igíco
a que fizemos reâetênciaanteriormente.
No momento em que estesas percebemnão mais como Para alcançar a meta da humanização, que não se conse-
uma "fronteira entre o ser e o nada, mas como uma fron-
gue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é
teira entre o ser e o mais ser", se fazem cada vez mais crí-
imprescindível a superação das "situações-limite" em que os
ticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção em
homens se acham quase coisificados.
que está implícito o inédito üáveZcomo algo definido, a cuja
Em círculos menos amplos, nos deparamos com te-
concretização se dirigirá sua ação.
W mas e "situações-limite", característicos de sociedades de
'8 Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que sela a natureza de
sua compreensão, como a ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade ó9A bbenação desafia, de Êomla dialeticamente antagõnica, optímidos e opKsso-
de desdobrar-seem outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas taQ- KS.Assim, enquanto é, para os primeiras, seu "inédito viável", que pndsam concn-
Êasque devem ser cumpúdas. tizar, se constitui, para os segundos, como "situação-limite", que necessitam evitar.

i30 l PxuLOFRnRE PEDAGOGIA OO OPRIMIOO I I31


um mesmo continente ou de continentes distintos, que A INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES E SUA METODOLOGIA
têm nestes temas e nestas "situações-limite" similitudes
históricas.
De modo geral, a consciência dominada, não só popular,
A "situação-limite" do subdesenvolvimento, ao qual está
que não captou ainda a "situação-limite" em sua globali.
[igado o prob]ema da dependência, é a fundamental caracte- dade, âca na apreensão de suas manifestações periféricas,
rística do Terceiro Mundo. A tarefa de superar tal situação, às quais empresta a forca inibidora que cabe, contudo, à
que é uma totalidade, por outra, a do desenvolvimento, é, "situação-limite"."
por sua vez, o imperativo básicodo Terceiro Mundo. Este é um fato de importância indiscutível para o investi-
Se olhamos, agora, uma sociedadedeterminada em sua gador da temática ou de tema gerador.
unidade epocal, vamos perceber que, além desta temática uni- A questão fundamental, neste caso, está em que, fal-
versal, continental ou de um mundo especí6co de semelhanças tando aos homens uma compreensãocrítica da totalida-
históricas, ela vive seus temas próprios, suas "situações-limite' de em que estão, captando-a em pedaços nos quais não
Em círculo mais restrito, observaremos diversificações reconhecem a interação constituinte da mesma totalida-
temáticas, dentro de uma mesma sociedade, em áreas e su-
de, não podem conhecê-la. E não o podem porque, para
báreas em que se divide, todas, contudo, em relação com conhecê-la, seria necessário partir do ponto inverso. Isto
o todo de que participam. São árease subáreasque consti- é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do
tuem subunidadesepocais.Em uma unidade nacional mes- contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os
ma, encontramos a contradição da "contemporaneidade elementos ou as parcialidades do contexto, através de
donãocoetâneo'
cuja cisão voltariam ::com mais claridade à totalida-
Nas subunidades referidas, os temas de caráter nacional de analisada.
podem ser ou deixar de ser captados em sua verdadeira sig- Este é um esforço que cabe realizar, não apenasna me-
nificação,ou simplesmentepodem ser smtídos.As vezes, todologia da investigação temática que advogamos, mas,
nem sequer são sentidos.
z' Estaforma de proceder se observa, não raramente, entre homens dc clas-
O impossível, porém, é a inexistência de temas nestas
se média, ainda que di$erentementc de como se manifesta entre camponeses.
subunidadesepocais.O fato de que indivíduos de uma Seu medo da liberdade os leva a assumir mecanismos de deâcsae, atravésdc
área não captem um tema gerador, só aparentemente racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e negam a rea-
lidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da
oculto, ou o fato de capta-lode forma distorcida, pode "situação-limite", cuja crítica lhes é incómoda, sua tendência é ficar na periferia
significar, já, a existência de uma "situação-limite" de dos problemas, rechaçando toda tentativa dc adentramento no núcleo mesmo
opressão em que os homens se encontram mais imersos da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes chama a atenção para
algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, aosquais estão dan-
que emersos. do signi6caçãoprimordial.

132 I PAULO FREIRA


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I I33
também, na educaçãoproblematizadora que defendemos. Na análise de uma situação existencial concreta, "codi6ca-
O esforço de propor aosindivíduos dimensõessignificativas da",'' severifica exatamenteestemovimento do pensar.
de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhe- A descodificaçãoda situação existencial provoca esta
cer a interação de suaspartes. postura normal, que implica um partir abstratamente até
Desta maneira, as dimensões significativas que, por o concreto; que implica uma ida das partes ao todo e uma
sua vez, estão constituídas de partes em interação, ao volta deste às partes, que implica um reconhecimento do
serem analisadas,devem ser percebidas pelos indivíduos sujeito no objeto (a situação existencial concreta) e do obje-
como dimensões da totalidade. Deste modo, a análise crí- to como situação em que estáo sujeito."
tica de uma dimensão significativo-existencial possibilita Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto,
aos indivíduos uma nova postura, também crítica, em que se dá na análise de uma situação codificada, se bem-deita
face das."situações-limite". A captação e a compreensão a descodi6cação, conduz à superação da abstração com a
da realidade se refazem, ganhando um nível que até en- percepção crítica do concreto, já agora não mais realidade
tão não tinham. Os homens tendem a perceber que sua espessae pouco vislumbrada.
compreensão e que a "razão" da realidade não estão fora Realmente, em face de uma situação existencial codifi-
dela, como, por sua vez, ela não se encontra deles dico- cada (situação desenhada ou fotografada que remete, por
tomizada, como sefosseum mundo à parte, misterioso e abstração,ao concreto da realidade existencial), a tendência
estranho, que os esmagasse. dos indivíduos é realizar uma espécie de "cisão" na situação
Neste sentido é que a investigação do tema gerador, que que se lhes apresenta. Esta "cisão", na prática da descodifi-
se encontra contido no "universo temático mínimo" (os te- cação,corresponde à etapa que chamamos de "descrição da
mas geradores em interação), se realizada por meio de uma situação". A cisão da situação figurada possibilita descobrir
metodologia conscientizadora,além de nos possibilitar sua a interação entre as partes do todo cindido.
apreensão,insere ou começaa inserir os homens numa for- Estetodo, que é a situação figurada(codi6cada) e que an-
ma crítica de pensarem seu mundo. tes havia sido apreendido difusamente, passa a ganhar signi-
Na medida, porém, em que, na captaçãodo todo quc se ficação na medida em que sobe a "cisão" e em que o pensar
oferece à compreensão dos homens, este se lhes apresenta volta a ele, a partir das dimensões resultantes da "cisão'
como algo espessoque os envolve e que não chegam a vis- zi A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com al-
lumbrar, se íaz indispensável que a sua busca se realize atra- guns de seus elementos constitutivos, em intéração. A dcscodiâcação é a análise
crítica.da situação codificada.
vés da abstração.Isto não significa a redução do concreto
z: O sujeito se reconhece na representaçãoda situação existencial "codificada'
ao abstrato, o que seria negar a sua dialeticidade, mas tê-los ao mesmo tempo que reconhece nesta,objeto agora de suareflexão. o scu con-
como opostos que se dialetizam no ato de pensar. torno condicionanteem e com que está,com outros sujeitos.

I34 I PAULO
FMIRE PEOAcociA oo OPRIUinO l i35
Como, porém, a codificação é a representação de uma si- A metodologia que dependemosexige, por isto mesmo,
tuação existencial, a tendência dos indivíduos é dar o passo que, no fluxo da investigação, se façam ambos sujeitos da
da representação da situação (codificação) à situação con-
mesma -- os investigadores e os homens do povo que, apa-
creta mesma em que e com que se encontram. rentemente, seriam seu objeto.
Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem Quanto mais assumamos homens uma postura atavana
a comportar-se em face de sua realidade objetiva da mesma investigação de sua temática, tanto mais aprofundam a sua
forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem tomada de consciência em torno da realidade e, explicitan-
saídapara ser o que em verdade é: um desafio ao qual os do sua temática significativa, se apropriam dela.
homens têm que responder. Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo,
Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens tanto quanto.os investigadores, sujeitos da busca de sua te-
exteriorizando sua visão do mundo, sua forma de pensá- mática significativa, sacrifica a obÜetividadeda investigação.
lo, sua percepção fatalista das "situações-limite", sua per- Que os achadosjá não serão "puros" porque terão sofHdo
cepção estática ou dinâmica da realidade. E, nesta forma uma interferênciaintrusa. No caso,em última análise,da-
expressadade pensar o mundo fatalistamente, de pensa-lo queles que são os maiores interessados -- ou devem ser --
dinâmica ou estaticamente, na maneira como realizam seu em sua própria educação.
enfrentamento com o mundo, se encontram envolvidos
Isto revela uma consciência ingênua da investigação te.
seus "temas geradores' mática, para a qual os temas existiriam em sua pureza ob-
Ainda quando um grupo de indivíduos não cheguea ex- jetiva e original, fora dos homens, como se fossem coisa.s.
pressar concretamente uma temática geradora, o que pode Os temas, em verdade, existem nos homens, em suasrela-
parecer inexistênciade temassugere,pelo contrário; a exis- çõescom o mundo, referidosa fatos concretos.Um mesmo
tência de um tema dramático: o temado sílêttdo.Sugereuma fato objetivo pode provocar, numa subunidadeepocal, um
estrutura constituinte do mutismo ante a corça esmagadora conjunto de temas geradores, e, noutra, não os mesmos, ne-
de "situações-limite", em face dasquais o óbvio é a adaptação. cessariamente.
Há, pois, uma relaçãoentre o fato objetivo, a
Ê importante reenfatizar que o tema gerador não se en- percepção que dele tenham os homens e os temas geradores.
contra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na E através dos homens que se expressa a temática signMcaüva
realidade separadados homens. SÓpode ser compreendido e,ao expressar-se,
num certo momento, podejá não ser,exata-
nas relações homens-mundo.
mente, o que antes era, desde que haja mudado sua percepção
Investigar o tema gerador é investigar, reputamos,o pen- dos dados objeüvos aos quais os temas se acham referidos.
sar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar Do ponto de vista do investigador importam na análise
sobre a realidade, que é sua praxis. que faz no processo da investigação,detectar o ponto de

I36 I PAUL.O FREIO


PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I I37
partida dos homens no seu modo de visualizar a objetivida- está exatamente no contrário. Em deslocar o centro da inves-
de, verificando se, durante o processo,se observou ou não tigação, que é a temática significativa, a ser objeto da análise,
alguma transformação no seumodo de perceber arealidade. para os homens mesmos, como se fossem coisas, fazendo-os
A realidade objetiva continua a mesma. Se a percepção assim objetos da investigação. Esta, à base da qual se pre-.
dela variou no fluxo da investigação, isto não significa pre- tende elaborar o programa educativo, em cuja prática edu-
judicar em nada suavalidade. A temática significativa apa- cadores-educandos e educandos-educadores conjuguem sua
rece, de qualquer maneira, com o seu conjunto de dúvidas, ação cognoscente sobre o mesmo obyeto cognoscível, tem
de anseios, de esperanças. de fundar-se, igualmente, na reciprocidade da ação. E agora,
É preciso que nos convençamos de que as aspirações,os da ação mesma de investigar.
motivos, as finalidades que se encontram implicitados na A investigação temática, que se dá no domínio do hu-
temática significativa são aspirações,finalidades, motivos mano e não no das coisas, não pode reduzir-se a um ato
humanos..Por isto, não estão aí, num certo espaço,como mecânico. Sendo processo de busca, de conhecimento, por
coisasputrificadas, mas estãosendo.São tão históricos quanto isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vão desco-
os homens. Não podem ser captados cora deles, insistamos. brindo, no encadeamento dos temas significativos, a inter-
Capta-los e entendê-los é entender os homens que os penetração dos problemas.
encarnam e a realidade a eles referida. Mas, precisamen- Por isto é que a investigaçãose fará tão mais pedagógi-
te porque não é possível entendê-los fora dos homens, é ca quanto mais crítica e tão mais crítica quanto, deixando
preciso que estes também os entendam.. A investigação de perder-se nos esquemas estreitos das visões parciais da
temática se faz, assim, um esforço comum de consciência realidade, das visões "Êocalistas" da realidade, se 6xe na com-
da realidade e de autoconsciência, que a inscreve como preensão da tomlíd(üe.
ponto de partida do processo educativo, ou da ação cultu- Assim é que, no processo de busca da temática significa-
ral de caráter libertador. tiva, já deve estar presente a preocupação pela problemati-
zação dos próprios temas. Por suas vinculações com outros.
Por seuenvolvimento histórico-cultural.
A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA DA INVESTIGAÇÃO DOS Assim como não é possível-- o que salientamosno iní-
TEMAS GERADORES. OS XáKiOS MOMENTOS DA INVESTIGAÇÃO cio deste capítulo -- elaborar um programa a ser doado
ao povo, também não o é elaborar roteiros de pesquisado
Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em universo temático a partir de pontos prefixados pelos inves-
que os supostos investigados se descubram investigadores, e, tigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos
desta forma, "corrompam" os resultados da análise. O risco da investigação.

I38 I PAULO
FRnm PEDAGOGIA OOOPNMIDO I I39
Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve pensarpelosoutros nem para os outros, nem semos outros
tem de ser uma operaçãosimpática;'no sentido etimoló- A investigaçãodo pensardo povo não pode ser deitasem
gico da expressão.Isto é, tem de constituir-se na comuni- o povo, mas com ele, como sujeito de seu pensar.E se seu
H
cação,no sentir comum uma realidadeque não pode ser pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar,
vista mecanicistamente compartimentada, simplistamen- na ação, que ele mesmo se superara. E a superação não se
te bem-"comportada", mas, na complexidade de seu per- fm no ato de consumir ideias, mas no de produzi-las e de
manente vir a ser. transforma-las na ação e na comunicação.
Sendo os homens seres em "situação", se encontram en-
Investigadores profissionais e povo, nesta operação sim-
pática, que é a investigação do tema gerador, são ambos su- raizados em condições tempo-espaciais que os marcam e
jeitos deste processo. a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir so-
O investigador da temática significativa que, em nome bre sua própria sit acíoHaZídade,
na medida em que, desafia-
da objetividadei;'científica, transforma o :orgânico em dos por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto
inorgânico,o que estásendono que é, o vivo no morto, mesmo, algo mais que estar em sÍtHacionalídade,que é a sua
teme a mudança. Teme a transformação. Vê nesta, que posição fundamental. Os homens sãoporque estãoem situa-
não nega, mas que não quer, não um anúncio de vida, ção. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente
mas um anúncio de morte, de deterioração. Quer conhe- sobre sua forma de estar, mas criticamente atuem sobre a
cer a mudança, não para estimula-la, para aprofunda-la, situação em que estão.
mas para freá-la. Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a
Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, própria condição de existir. Um pensar crítico atravésdo
ao reduzi-la a esquemasrígidos, ao fazer do povo objeto qual os homens se descobrem em "situação". SÓna me-
passivo de sua ação investigadora, ao ver na mudança o dida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidade
anúncio da morte, mata a vida e não pode esconder sua espessaque os envolve, algo mais ou menos nublado em
marca necr661a. que e sob que se acham, um beco sem saída que os angus-
A investigação da temática, reputamos,envolve a investi- tia e a captam como a situação objetivo-problemática em
gação do próprio pensar do povo. Pensar que não se dá fora que estão, é que existe o engajamento. Da imersãoem que
dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos se achavam, emergem,capacitando-se para se ínsedrem na
homens e entre os homens, e sempre referido à realidade. realidade que se vai desvelando.
Não posso investigaro pensar dos outros, referido ao Desta maneira, a í?tserçãoé um estado maior que a emn-
mundo, se não penso Mas, não penso autenticamentese sãoe resulta da conscientizaçãoda situação. Ê a própria
os outros também não pensam. Simplesmente, não posso consciênciahistórica.

140 I PAUIO FREIRA


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I I41
Daí que seja a conscientização o aprofundamento da toma- Numa visão libertadora, não mais "bancária" da educa-
da de consciência, característica, por sua vez, de toda emersão. ção, o seu conteúdo programáticojá não involucra finalida-
Neste sentido é que toda investigação temática de cara, des a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque
ter conscientizador se faz pedagógica e toda autêntica edu- parte e nascedele, em diálogo com os educadores,reflete
cação se faz investigação do pensar. seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática
Quanto mais investigao pensardo povo com ele, tan- como ponto de partida do processoeducativo, como ponto
to mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, de partida de sua dialogicidade.
tanto mais continuamos investigando. Daí também o imperativo de dever ser conscientizadora
Educação e investigação temática, na concepção proble- a metodologia desta investigação.
matizadora da educação,se tornam momentos de um mes- Que amem)os, por exemplo, se temos a responsabilidadede
mo processo. coordenar um plano de educação de adultos em uma área cam
Enquanto na prática "bancária" da educação,antidialó- ponesa,que revele,indusive, uma alta porcentagem de anaKa-
gica por essência,por isto, não comunicativa, o educador betismo? O plano induirá a aHabetizaçãoe a pos-alílabetização.
deposita no educando o conteúdo programático da educa- Estaríamos, portanto, obrigados a realizar tanto a investigação
ção, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática das palavras geradoras quanto a dos temas geradores, à base de

problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que teríamos o programa para uma e outra etapasdo plano.
que jamais é "depositado", se organiza e se constitui na vi- Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos temas
são do mundo dos educandos, em que se encontram seus geradoresou da temática significativa."
temas geradores. Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida
Por ta] razão é que este conteúdo há de estar sempre atravésde fontes secundárias, começam os investigadores a
renovando-se e ampliando-se. primeira etapa de investigação.
A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe Esta,como todo começo em qualquer atividade no do-
interdisciplinar esteuniverso temático recolhido na investi- mínio do humano,pode apresentardificuldadese riscos.
gação,devolvê-lo, como problema, não como dissertação, Riscose dificuldades normais, até certo ponto, ainda que
aoshomens de quem recebeu. nem sempre existentes, na aproximação primeira que fa-
Se, na etapa da alfabetização, a educação problema- zem os investigadores aos indivíduos da área.
tizadora e da comunicação busca e investiga a "palavra É que, neste encontro, os investigadores necessitam
geradora"," na pós-alfabetização, busca e investiga o tema obter que um número significativo de pessoasaceite uma
gerador.
" A propósito da investigação e do "tratamento" das palavras geradoras, ct
z; Cf. Paulo Freire, Educaçãocomoprática da líbepzüde.
id.,ibid.

I42 I PAULO FmIRE PEDAGOGIA DO'OPRIMIDO I I43


conversainformal com eles,em que lhes falarão dos obje- A única dimensão que se supõe devam ter os investiga-
üvos de sua presençana área. Na qual dirão o porquê, o dores, neste marco no qual se movem, que se espera sefaça
como e o para quê da investigação que pretendem realizar c comum aos homens cuja temática se busca investigar, é a da
que não podem fazê-lo se não se estabelece uma relação de percepçãocrítica de suarealidade, que implica um método
simpatia e confiança mútuas. carreto de aproximação do concreto para desvelá-lo.E isto
No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderirem, nãoseünpõe.
não só à investigação, mas ao processo que se segue," de- Neste sentido é que, desde o começo, a investigação te-
vem os investigadoresestimular os presentes para que, mática se vai expressandocomo um quefazer educativo.
dentre eles, apareçamos que queiram participar direta- Como açãocultural.
mente do processo da investigação como seus auxiliares. Em suas visitas os investigadores vão fixando sua "mi-
Desta forma, estase inicia com um diálogo às clarasen- rada" crítica na área em estudo, como se ela fosse, para
tre todos. eles, uma espécie de enorme e saí ge?tens "codificação'
Uma série de informações sobre a vida na área,necessá- ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo, visualizando a
rias à suacompreensão,terá nestesvoluntários os seusre- área como totalidade, tentarão, visita após visita, realizar
colhedores.Muito mais importante, contudo, que a colega a "cisão" desta, na análise das dimensões parciais que os
destes dados, é sua presença atava na investigação. vão impactando.
&
Ao lado destetrabalho da equipe local, os investiga- Neste esforço de "cisão" com que, mais adiante, voltarão
dores iniciam suas visitas à área,xsempre autenticamen- a adentrar-se na totalidade, vão ampliando a sua compreen-
g te, nunca forçadamente, como observadores simpáticos. sãodela, na interação de suaspartes.
Por isso mesmo, com atitudes compreensiva em face do Na etapa desta igualmente suí gmerb descodi6cação, os
que observam. investigadores ora incidem sua visão crítica, observadora, di-
$
Se é normal que os investigadores cheguem à área da retamente, sobre certos momentosda existência da área, ora
investigação movendo-se em um marco conceitua] valorati- o fazem através de diálogos informais com seus habitantes.
vo que estará presente na sua percepção do observado, isto Na medida em que realizam a "descodificação" desta
não devesignificar, porém, que devem transformar a inves- 'codiâcação" viva; seja pela observação dos fatos, seja
tigação temática no meio para imporem este marco. pela conversaçãoinformal com os habitantes da área,
irão registrando em seu caderno de notas, à maneira de
zl ':Na razão mesma em que a 'investigação temática'(diz a socióloga Mana Wright Mills," as coisas mais aparentemente pouco im-
Edy Ferreira, num trabalho em preparação)só sejustifica enquanto devolva portantes. A maneira de conversar dos homens; a sua
ao povo o que a ele pertence; enquanto ula, não o ato de conhece-lo, mas o dc
çonhecer com ele a realidade que o desaba.' " Wnght Mills, Tle Soclolcgícal Intílginiation. Olúord: OxÊord University Press, 1963

I,H I PAULO FRnRE PEDAGOGIAOO OPNMIOQ I I45


forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, realizar-se, se possível, na área de trabalho, para que possam
no trabalho. Vão registrando as expressões do povo; sua estes participar dele
linguagem, suaspalavras, sua sintaxe, que não é o mesmo Observa-se que os pontos fixados pelos vários investi-
que sua pronúncia defeituosa, mas a forma de construir gadores, só conhecidos por todos na reunião de seminário
seu pensamento '' avaliativo, de modo geral coincidem, com exceçãode um
Esta descodi6cação ao vivo implica, necessariamente, ou outro aspecto que impressionou mais singularmente a
que os investigadores,em sua fase,surpreendam a áreaem um ou a outro investigador.
H

momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um

trabalho no campo; que assistama reuniões de alguma as- segundo momento da "descodificação" ao vivo, que os in-

sociação popular, observando o procedimento de seus par- vestigadores estão realizando da realidade que se lhes apre'
ticipantes, a linguagem usada,as relaçõesentre diretoria e senta como aquela "codificação" sa{ getleds.

sócios; o papel que desempenham asmulheres, os jovens. E Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos
indispensávelque a visitem em horas de lazer; que presen- expondo como perceberam e sentiram este ou aquele
ciem seus habitantes em atividades esportivas; que conver- momento que mais os impressionou, no ensaio "des-
gem com pessoas em suas casas,registrando manifestações codificador", cada exposiçãoparticular, desafiandoa
em torno das relações marido-mulher, pais-61hos; afinal, todos como descodiflcadoresí-ida
mesma realidade,vai
que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para estacom- re-presentificando-lhes a realidade recém-presentificada
à sua consciência intencionada a ela. Neste momento,
preensão primeira da área.
A propósito de cada uma destas visitas de observação "re-admiram" sua admiraçãoanterior no relato da "ad-
compreensiva devem os investigadores redigir um peque- -miração" dos demais.
no relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em Desta forma, a "cisão" que fez cada um da realidade, no
seminário,no qual se vão avaliandoos achados,quer dos processoparticular de sua descodi6cação,os remete, dialogi-
investigadoresprofissionais, quer dos auxiliares da investiga- camente, ao todo "cindido" que seretotaliza e seoferece aos
ção.'representantesdo povo, nestasprimeiras observações investigadores a uma nova análise, à qual se seguirá novo se.

que realizaram. Daí que este seminário de avaliação deva minário avaliativo e crítico, de que participarão, como mem-
bros da equipe investigadora, os representantespopulares.
7z Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo -- e genial exemplo
-- dc como pode um eschtor captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela
Quanto mais andem o todo e o re-totalizam na re-admira-
prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais -- a estrutura de seu pensamento. çãoque fazem de sua ad-miração, mais vão aproximando-se
O educador brasileiro Paujo de Torso escreveu um ensaio, cujo valor e interesse
dos núcleos centrais das contradições principais e secundá-
destacamos, sobre a obra de Guimarães Rosa,onde analisa o papel deste autor
como descobridor dos temas fundamentais do homem dó sertão brasileiro: rias em que estão envolvidos os indivíduos da área.

U6 I PAUta FREIRA
PEDAGOGIA DO OPmMIOO I I47
Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investi- de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, por-
gação, ao se apropriarem, através de suas observações, dos tanto, diversificação programática para o seu desvelamento.
núcleos centrais daquelas contradições, os investigadoresjá Daí que a preocupação básica dos investigadores deva
estariam capacitados para organizar o conteúdo programá- centrar-se no conhecimento do que Goldmann" chama de
tico da ação educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação "consciência real" (e6etiva) e "consciência máxima possível"
reflete as contradições, indiscutivelmente estará constituído Real conscíoasness ís the resí4Zt of rate m Itíple obstacZes
da temática significativa da área. and deüatiotts tltat the dWerentjactors of empírica! reaZíty
Não tememos, indusive, afirmar que a margem de acer- put íttto oppositíon a?td submítjor reaZizatío?tby tais potentiaZ
to para a ação que se desenvolvessea partir destes dados conscioKsness.
Daí que, ao nível da "consciênciareal", os
seria muito mais provável que a dos conteúdos resultantes homens se encontrem limitados na possibilidade de per-
das programações verticais. ceber mais além das "situações-limite", o que chamamos
Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os de "inédito viável
investigadores se deixem seduzir. Por isto é que, para nós, o "inédito viável" [que não pode
Na verdade,o básico,a partir da inicial percepçãodes- ser apreendido no nível da "consciência real" ou eÊetiva] se
te núcleo de contradições, entre as quais estará incluída a concretiza na "ação editanda", cuja viabilidade antes não
'BI

principal da sociedadecomo uma unidade epocal maior, é era percebida. Há uma relação entre o "inédito viável" e a
estudar em que nível de percepçãodelas se encontram os 'consciência real" e entre a "ação editanda" e a "consciência
indivíduos da área. máxima possível
No fundo, estascontradiçõesse encontram constituindo A "consciência possível" (Goldmann) parece poder iden-
'situações-limite", envolvendo temas e apontando tarefas. tificar-se com o que Nicolai'P chama de "soluções praticáveis
Se os indivíduos se encontram aíZehdosa estas "situações- despercebidas" (nosso "inédito viável"), em oposição às "so-
limite", impossibilitadosde "separar"-sedelas,o seutema a luções praticáveis percebidas" e às "soluções e6etivamente

l $

H.
elas referido será necessariamente o dojataZismo e a "tarefa'
a ele associada é a de quase não terem ta?x;Pa.
Por isto é que, embora as "situações-limite" sejam rea-
lidades objetivas e estejam provocando necessidades nos in-
realizadas", que correspondem à "consciência real" (ou e6e-
tiva) de Goldmann.
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na
primeira etapa da investigação, terem chegado à apreensão
divíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que mais ou menos aproximada do conjunto de contradições,
delas tenham.
28 Lucien Goldmann, The HuPntanSdmces alü Philosophy. Londres: The Chancer
Uma "situação-limite", como realidade concreta, pode Press,1969,p.118
provocar eünindivíduos de áreasdiferentes, e até de subáreas 7p Aiidré Nicolaj, Cúmportemmt économque et strttüures socíales. Paras: PUE 1960.

I48 I PAULO FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I H9


não os autoriza a pensar na estruturação do conteúdo pro- E que esteprocedimento, embora diabético,pois que
gramático da ação educativa. os indivíduos, analisando uma realidade estranha, com-
Até então, estavisão é deles ainda, e não a dos indivíduos parariam com a sua, descobrindo as limitações desta,
em face de sua realidade. não pode preceder a um outro, exigível pelo estado de
A segunda fase da investigação começa precisamente imersãodos indivíduos: aquele em que, analisandosua
quando os investigadores, com os dados que recolheram, própria realidade, percebem sua percepção anterior, do
chegam à apreensãodaquele conjunto de contradições. que resulta uma nova percepção da realidade distorci-
A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão damente percebida.
k algumas destas contradições, com que serão elaboradas as Igualmente fundamental para a sua preparação é a con-
codificações que vão servir à investigação temática. dição de não poderem ter as modificações,de um lado, seu
H Na medida em que as codificações(pintadas ou fotogra-
fadase, em certos casos,preferencialmente 6otografadasy'
núcleo temático demasiadoexplícito; de outro, demasiado
enigmático. No primeiro caso, correm o risco de transfor-
B'

são o abeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, mar-se em codiâcações propagandísticas, em face das quais
se dá à sua análise crítica, sua preparação deve obedecer a os indivíduos não têm outra descodificação a fazer, senão a
certos princípios que são apenasos que norteiam a confec- que se achaimplícita nelas,de forma dirigida. No segundo,o
ção das puras ajudas visuais. risco de fmer-se umjogo de adivinhação ou "quebra-cabeça'
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessa- Na medida em que representam situações existenciais,
riamente, devem representar situações conhecidas pelos as codificações devem ser simples na sua complexidade e
indivíduos cuja temática se busca,o que as faz reconhe- oferecer possibilidades plurais de análises na sua descodifi-
cíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas se cação,o que evita o dirigismo massificadorda codificação
reconheçam. propagandística. As codificações não são sZogam,são objetos
Não seria possível, nem no processo da investigação, cognoscíveis, desaâos sobre que deve incidir a reflexão críti-
nem nas primeiras fases do que a ele se segue, o da devo- ca dos sujeitos descodificadores.''
lução da temática significativa como conteúdo progra- Ao oferecerem possibilidades pluraisli de análises,
mático, propor representaçõesde realidades estranhas no processo de sua descodificação, as codificações, na
aosindivíduos.
i' As codificações, de um lado, são a mediação entre o "contexto concreto ou
ooAs codificações também podem ser orais. Consistem, neste caso, na apre- real", em que se dão os fatos, e o "contexto teórico", em que sã;oanalisadas;de
sentação, em poucas palavras, que fazem os investigadores, de um problema outro, são o objeto cognoscível soba o que o educador-educando e os educandos-
existenciale a que se segue sua "descodificação".A equipe do Instituto de educadores, como sujeitos cognoscentesi incidem sua reflexão crítica. Cfl Paulo
Desarrollo Agropecuario, Chile, vem usando-os com resultados positivos em Freire, Áçâb cair ru! para a líbnzlade e Ostras escHtos.Rio de Janeiro: Paz e Terra,
investigações temáticas. 1976]13' edição, São Pau]o: Paz e Terra, 201 1].

I50 I PAUL.O FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIA)O I I51


organização de seus elementos constituintes, devem ser indivíduos haviam apreendido a mesma realidade, agora re-
uma espéciede "leque temático". Desta forma, na medi- presentada na codificação.
da em que sobre elasos sujeitos descodiâcadoresincidam Promovendo a percepçãoda percepçãoanterior e o co-
É
sua reflexão crítica, irão "abrindo-se" na direção de ou- nhecimentoido conhecimento anterior,:+a descodificação,
tros temas. destaforma, promove o surgimento de nova percepçãoe o
Esta abertura, que não existirá no caso de seu conteúdo desenvolvimento de novo conhecimento.
temático estar demasiado explicitado ou demasiado enig- A nova percepção e o novo conhecimento, cuja forma-
mático, é indispensável à percepção das relações dialéticas ção já começa nesta etapa da investigação, se prolongam,
que existem entre o que representam e seuscontrários. sistematicamente, na implantação do plano educativo,
Para atender, igualmente, a esta exigência fllndamental, transformando o "inédito viável" na "ação editanda", com
é indispensável que a codificação, refletindo uma situação a superação da "consciência real" pela "consciência máxi-
existencial, constitua objetivamente uma totalidade. Daí ma possível'
que seus elementos devam encontrar-se em interação, na Por tudo isto é que mais uma exigência se impõe na pre-
composição da totalidade. paração das codificações é que elas representem contra-
No processo da descodificação os indivíduos, exteriorizando
dições tanto quanto possível "inclusivas" de outras, como
adverteJosé LuasFiori. Que sejam codiâcações com um má-
sua temática, explicitam sua "consciência real" da objetividade.
ximo de "inclusividade" de outras que constituem o sistema
Na medida em que, ao fazê-lo, vão percebendo como
de contradições da área em estudo. Mais ainda e por isto
atuavam ao viverem a situação analisada, chegam ao que
mesmo, preparada uma destas codi6cações "inclusivas", ca-
chamamos antes de percepção da percepção anterior.
paz de "abrir-se" em "leque temático" no processo de sua
Ao terem a percepçãode como antespercebiam: perce-
descodificação, que se preparem as demais "incluídas" nela,
bem diferentemente a realidade, e, ampliando o horizonte
como suas dimensões dialetizadas. A descodificação das pri-
do perceber, mais facilmente vão surpreendendo, na sua
meiras terá uma iluminação explicativamente diabéticana
'visão de fundo", as relações dialéticas entre uma dimensão
descodiâcação das segundas.
e outra da realidade.
Neste sentido, um jovem chileno, Gabriel Bode,': que há
Dimensões referidas ao núcleo da codificação sobre que mais de dois anos trabalha com o método na etapa de pós-aUa-
incide a operação descodificadora. betização, ü-ouxe uma contribuição da mais alta importância.
Como a descodiâcaçãoé, no fundo, um ato cognoscen-
8: Funcionário especializado de uma das mais sérias instituições governamen-
te, realizado pelos sujeitos descodi6cadores,'e como este taischilenas,o Instituto de DesarroUoAgropecuario(INDAP), em cuja direção
ato recai sobre a representaçãode uma situação concreta, até bem pouco esteve o economista, de formação autenticamente humanista,
abarcaigualmente o ato anterior com o qual os mesmos Jacques Chonchol.

PEDAGOGIA 000PR]Mm0 l i53


l5z l PKuio FRnRE
Na sua experiência, observou que os camponeses so- temático terminativo, se estenderánas outras, que ele cha-
mente se interessavam pela discussão quando a codificação ma de "codificações auxiliares'
dizia respeito, diretamente, a aspectosconcretos de suasne- Depois de descodificadaa "essencial",mantendo-a pro-
cessidadessentidas.Qualquer desvio na codi6cação,como jetada como um suporte referencial para as consciências
qualquer tentativa do educador de orientar o diálogo, na a ela intencionadas,vai, sucessivamente,projetando a seu
descodificação, para outros rumos que não fossem os de lado as codificações "auxiliares'
suasnecessidadessentidas,provocavam o seu silêncio e o Com estas, que se encontram em ilação direta com a "es-
seu indiÊerentismo.
sencial", consegue manter vivo o interesse dos indivíduos, que
Por outro lado, observavaque, embora a codificação se em lugar de "perder-se"nos debates,d)egam à síntesedos
centrasse nas necessidades sentidas (codificação, contudo, mesmos.
não "inclusiva", no sentido de José Luas Fiori), os campo- No fundo, o grande achado de Gabriel Bode estáem que
neses não conseguiam, no processo de sua análise, fixar-se, ele conseguiu propor à cognoscitividadedos indivíduos,
ordenadamente, na discussão,"perdendo-se", não raras ve- através da dialeticidade entre a codificação "essencial" e as
zes, sem alcançar a síntese. Assim também não percebiam, 'auxiliares", o sentido da totalidade.Os indivíduos imersos
ou raramente percebiam, as relações entre suas necessida- na realidade, com a pura smsíbíZidadede suas necessidades,
des sentidas e as razões objetivas mais próximas ou menos emerXemdela e, assim, ganham a razão das necessidades.
próximas das mesmas. Desta formal"muito mais rapidamente, poderão ultra-
Faltava-lhes, diremos nós, a percepção do "inédito viá- passaro nível da "consciência real", atingindo o da "cons-
vel" mais além das "situações-limite", geradoras de suas ciência possível'
necessidades. Se este é o objetivo da educaçãoproblematizadora que
Não lhes era possível ultrapassar a sua experiência exis- dependemos, a investigação temática, que a ela mais que ser-
tencial vocalista,ganhando a consciência da totalidade. ve, porque dela é um momento, a este objetivo não pode
Desta formal resolveu experimentar a pr(2jeçãosimul- fugir também.
tânea de situações, e a maneira como desenvolveu seu ex- Preparadas as codificações, estudados pela equipe inter-
perimento é que constitui a contribuição indiscutivelmente disciplinar todos os possíveisângulos temáticos nelasconti-
importante que trouxe. dos, iniciam os investigadores a terceira fase da investigação.
Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos descodi-
Inicialmente, profeta a codificação (muito simples na
ficadores, nos "círculos de investigação temática"."
constituição de seus elementos) de uma situação existen-
:' JoséLuís Fiori, em seu artigo já citado, reüficou com estadesignação,ade-
#
cial. A esta codificação chama de "essencial" -- aquela
quada à instituição em que se processa a ação investigadora da temática sig-
que representa o núcleo básico e que, abrindo-se em leque ni6cativa,a que antesIhe dávamos,realmente menos própria, dc "círculo de

i54 l Paul.o FMIRE PEDAGOGIA no OPRIMIDO l i55


@

Na medida em que operacionalizam estes círculos,84 reaçõesmais significativas ou aparentemente pouco signifi
com a descodificaçãodo material elaboradona etapa cativas dos sujeitos descodificadores.
anterior, vão sendo gravadas as discussões que serão, na No processo da descodi6cação,cabe ao investigador, au-
k
que se segue,analisadaspela equipe interdisciplinar. Nas )aliar desta, não apenas ouvir os indivíduos, mas desafia-los
reuniões de análise deste material, devem estar presen- cada vez mais, problematizando, de um lado, a situação
tes os auxiliares de investigação, representantes do povo, existencial codi6cada e, de outro, as próprias respostas que
e alguns participantes dos "círculos de investigação". O vão dando aqueles no decorrer do diálogo.
seu subsídio, além de ser um direito que lhes cabe, é Desta forma, os participantes do "círculo de investigação
indispensável à análise dos especialistas. Ê que, tão su- temática" vão extrojetando, pela força catártica da metodo-
jeitos quanto os especialistasdo ato do tratamento des- logia, uma série de sentimentos, de opiniões, de si, do mun-
tes dados, serão ainda, .epor isto mesmo, retificadores e do e dos outros, que possivelmente não extrojetariam 'm
$ ratificadores da interpretação que fazem estesdos acha-
circunstâncias diferentes.

dos da investigação. Numa das investigações realizadas em Santiago(esta


Do ponto de vista metodológico, a investigação que, infelizmente não concluída), ao discutir um grupo de indi-
víduos residentes num "cortiço" (convm ílZo) uma cena em
desde o seu início, se baseia na relação simpática de que fa-
lamos, tem mais esta dimensão fundamental para a sua que apareciam um homem embriagado, que caminhava
pela rua, e, em uma esquina, três jovens que conversavam,
segurança -- a presença crítica de representantes do povo
os participantes do círculo de investigação afirmavam que
desde seu começo até sua fase final, a da análise da te-
'aí apenas é produtivo e útil à nação o borracho que vem vol-
mática encontrada,que se prolonga na organizaçãodo
tando para casa,depois do trabalho, em que ganha pouco,
conteúdo programático da ação educativa, como ação
preocupadocom a família, a cujas necessidadesnão pode
cultural libertadora.
atender.É o único trabalhador. É um trabalhador decente
A estas reuniões de descodificação nos "círculos de inves-
como nós, que também somos borrachas"
tigação temática", além do investigador como coordenador
O interesse do investigador, o psiquiatra Patrício Lopes, a
auxiliar da descodificação, assisüão mais dois especialistas
cujo trabalho 6zemos referência no nosso ensaioanterior, era
-- um psicólogo e um sociólogo -- cuja tareia é registrar as estudar aspectos do alcoolismo. Provavelmente, porém, não
cultura", que podia, ainda. estabelecerconfusão com aquela em que serealiza a haveria conseguido estas respostas se se tivesse dirigido àqueles
etapa que se segue à da investigação. indivíduos com um roteiro de pesquisa elaborado por ele mes-
õ' Em cada "círculo de investigação" deve haver um máximo de vinte pessoas,
existindo tantos círculos quantos a soma de seusparticipantes atmyaa da popu-
mo. Tãvez, ao serem perguntados diretamente, negassem,
lação da área ou da subárea em escudo. até mesmo que tomavam, vez ou outra, o seu trago. Frente,

i# l PKuio FRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 157


E porém, à éodi6cação dc uma situação existencial, reconhecível
por eles e em que se reconheciam, em relação dialógica entre si
situação de trabalho no campo, a tónica do debate era sempre
a reivindicação salarial e a necessidade dc se unirem, de cria-
e com o investigador, disseram o que realmente sentiam. rem seusindicato para estareivindicação, não para outra.
{.
Há dois aspectosimportantes nas declaraçõesdestes Discutiram três situaçõesneste encontro e a tónica 6oi
1'
homens. De um lado, a relação expressa entre ganhar pou- sempre a mesma -- reivindicação salarial e sindicato para
co, sentirem-seexplorados, com um$"salário que nunca atender a esta reivindicação.
alcança", e se embriagarem. Embriagarem-se como uma Imaginemos, agorai:um educador que organizasseo sa
espéciede fuga à realidade, como tentativa de superação programa "educativo" para esteshomens e, em lugar da dis-
da frustração do seu não atuar. Uma solução, no fundo, cussãodesta temática, lhes propusessea leitura de textos
autodestrutiva, necrófila. De outro, a necessidadede va- que, certamente, chamaria de "sadios", e nos quais se fala,
lorizar o que bebe. Era o "único útil à nação, porque tra- angelicalmente, de que "a asaé da ave'
ba[hava,enquanto os outros o que faziam era raiar ma] E isto é o que se faz, em termos preponderantes, na ação
da vida alheia". E, após a valorização do que bebe, a sua educativacomo na política, porque não se leva em conta que
identificação com ele, como trabalhadores que também a dialogicidade da educação começa na investigação temática.
bebem. E trabalhadores decentes. A sua última etapa se inicia quando os investigadores,
Imaginemos, agora, o insucessode um educador do tipo terminadas as descodificaçõesnos círculos, dão começo ao
que Niebuhl85 chama de "moralista", que fosse fazer prédi- estudo sistemático e interdisciplinar de seus achados.
cas a esseshomens contra o alcoolismo, apresentando-lhes Num primeiro instante, ouvindo gravação por gravação,
como exemplo de virtude o que, para eles, não é manifesta- todas as que foram feitas das descodificações realizadas, e
ção de virtude. estudando as notas fixadas pelo psicólogo e pelo sociólogo,
O único caminho a seguir,neste como em outros casos. observadores do processo descodificador, vão arrojando os
é a conscientização da situação, a ser tentada desde a etapa temas explícitos ou implícitos em afirmações feitas nos "cír-
da investigação temática. culos de investigação'
Conscientização,é óbvio, que não para, estoicamente, Estes temas devem ser classificados num quadro geral de
no reconhecimento puro, de caráter subjetivo, da situação, ciências,sem que isto signifique, contudo, que sejam vistos,
mas, pelo contrário, que prepara os homens, no plano da na futura elaboraçãodo programa, como fazendo parte de
ação, para a luta contra os obstáculos à sua humanização. departamentos estanques.
Em outra experiência,de que participamos, esta,com cam- Significa, apenas, que há uma visão mais específica, cen-
poneses,observamos que, durante toda a discussãode uma tral, de um tema, conforme a sua situaçãonum domínio
B5R. Niebuhr, op. cit. qualquer das especializações.

158 I PAULO
FWIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I IS9
O tema do desenvolvimento,por exemplo, ainda que Neste esforço de "redução" da temática significativa, a
situado no domínio da economia, não Ihe é exclusivo. Re- equipe reconhecerá a necessidadede colocar alguns temas
ceberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia, fundamentais que, não obstante, não foram sugeridospelo
como da psicologia social, interessadas na questão do câm- povo,quando dainvestigação.
bio cultural, na mudança de atitudes, nos valores, que inte- A introdução destestemas, de necessidadecomprovada,
ressam,igualmente, a uma filosofia do desenvolvimento. corresponde, inclusive, à dialogicidade da educação, de que
Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas de- tanto temos falado. Sea programação educativa é dialógica,
cisões que envolvem o problema, o enfoque da educação etc. isto signi6ca o direito que também têm os educadores-edu-
Desta forma, os temas que foram captadosdentro de candos de participar dela, incluindo temas não sugeridos. A
uma totalidade jamais serão tratados esquematicamente. estes, por sua função, chamamos "temas dobradiça'
Seria uma lástima se, depois de investigados na riqueza de Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois temas
sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao no conjunto da unidade programática, preenchendo:'"um
serem "tratados", perdessem esta riqueza, esvaziando-se de possível vazio entre ambos, ora contêm, em si, as relações a
sua corça, na estreiteza dos especialismos. serem percebidas entre o conteúdo geral da programação e
Feita a delimitação temática, caberá a cada especialista, a visão do mundo que esteja tendo o povo- Daí que um destes
dentro de seu campo, apresentar à equipe interdisciplinar o temas possa encontrar-se no "rosto" de unidades temáticas.
projeto de "redução" de seu tema. O conceito antropológico de cultura é um destes "temas
No processo de "redução" deste, o especialista busca os dobradiça", que prendem a concepçãogeral do mundo que
seus núcleos fundamentais que, constituindo-se em unida- o povo esteja tendo ao resto do programa. Esclarece, através
des de aprendizagem e estabelecendo uma sequência entre de sua compreensão, o papel dos homens no mundo e com o
si, dão a visão geral do tema "reduzido' mundo, como seresda transformação e não da adaptação.;'
Na discussão de cada prometo específico, se vão anotando Feita a "redução"" da temática investigada, a etapa que se
as sugestões dos vários especialistas. Estas ora se incorpo- segue, segundo vimos, é a de sua "codificação". A da escolha
ram à "redução" em elaboração, ora constarão dos peque- " A propósito da importância da análise do conceito antropológico de cultura
nos ensaios a serem escritos sobre o tema "reduzido", ora cfl Paulo Freire, Edmaçãocomoprática da liberdade.
uma coisae outra. " Seencaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma cota
cidade cuja autonomia se encontra nas inter-relações de suas unidades que são,
H Estes pequenos ensaios, a que se juntam sugestões bi- também, em si, lota! (ides, ao mesmo tempo em que sãoparcíalídaüs da totali
bliográficas, são subsídios valiosos para a formação dos dademaior. Os temas, sendo cm si totalidades, também sãoparcialidades que,
em interação, constituem as unidades temáticas da totalidade programática.
educadores-educandos que trabalharão nos "círculos de
Na "redução" temática, que é a operação de "cigao" dos temas enquanto tola
cultura
cidades,se buscam seus núcleos fundamentais, que são as suas parcialidades.

I60 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I I61


do melhor canal de comunicação para este ou aquele tema trabalho, convidando-osa dar uma contribuição que se-
'reduzido" e sua representação. Uma "codificação" pode ria a entrevista em linguagem acessívelsobre tais pontos.
ser simples ou composta. No primeiro caso, pode-se usar o Se os especialistas aceitam, faz-se a entrevista de dez a
canal visual, pictórico ou gráfico, o tátil ou o canal auditivo. quinze minutos. Pode-se,inclusive, tirar uma fotografia
No segundo, multiplicidade de canais." do especialista,enquanto fala. No momento em que se
A escolhado canal visual, pictórico ou gráfico, depende propusesseao povo o conteúdo da entrevista, se diria, an-
não só da matéria a codificar, mas também dos indivíduos a tes, quem é ele. O que fez. O que faz. O que escreveu,
quem se dirige. Se têm ou não experiênciade leitura. enquanto se poderia prqetar sua fotografia em slides. Se
Elaborado o programa, com a temática já reduzida e é um professor de universidade, ao declinar-se sua condi-
codificada, confecciona-se o material didático. Fotografias, ção de professor universitário já se poderia discutir com
slides,.pZm
stHps,cartazes, textos de leitura etc. o povo o que Ihe parecem as universidades de seu país.
Na confecçãodeste material pode a equipe escolher Como as vê. O que delas espera.
alguns temas, ou aspectos de alguns deles e, se, quando e O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevista,
onde seja possível, usando gravadores, propâ-los a-especia- seria discutido o seu conteúdo, o qual passaria a funcionar
listas como assunto para uma entrevista a ser realizada com como uma codificação auditiva.
um dos membros da equipe. Do debate realizado, dariaposteriormente a equipe um re-
Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimento. latório ao especialistaem torno de (tomo o povo reagiu à sua
i
]
A equipe procuraria dois ou mais especialistas(economis- palavra. Desta maneira,- se estariam vinculando intelectuais.
tas), inclusive de escolasdiferentes, e lhes falaria de seu muitas vezes de boa vontade, mas, não raro, alienados da reali-
dade popular, a esta realidade. E se estaria também proporcio-
#

Desta forma, "reduzir" um tema é cíndi-lo em suas partes para, voltando-se a


ele como totalidade, melhor conhece-lo. nando ao povo conhecer e criticar o pensamento do intelectual.
Na "codificação" se procura re-totalizar o tema cindido, na representaçãode Podem ainda alguns destes temas ou alguns de seus
situações existenciais.
Na "descodificação",os indivíduos, cindindo a codificação como totalidade. núcleos ser apresentados através de pequenas dramatiza-
apreendem o rema ou os temas nela implícitos ou a ela referidos. Este processo ções, que não contenham nenhuma resposta. O tema em
de "descodificação" que, na suadialeticidade, não morre na cisão,que realizam si, nada mais.
na codificação como totalidade temática, se completa na re-totalização de to-
talidadecindida, com que não apenasa compreendemmais claramente,mas Funcionaria a dramatização como codificação, como si-
também vão percebendo as relações com outras situações codificadas, todas tuação problematizadora, a que se seguiria a discussão de
elas representações de situações existenciais. seuconteúdo.
canalvjsyal Jpiçtérico
" CODIFICAÇÃO a)Simples ll:ãiE..{Em Outro recurso didático, dentro de uma visão problema-
b) Composta !simultaneidade tizadora da educaçãoe não "bancária", seria a leitura e a
l de canais

i6z l PxuLO FRnRE


PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I r63
discussão de artigos de revistas, de jornais, de capítulos de Com um mínimo de conhecimento da realidade, podem
livros, começando-se por trechos. Como nas entrevistas os educadores escolher alguns temas básicos que funcio-
gravadas,aqui também, antes de iniciar a leitura de artigo nariam como "codi6cações de investigação". Começariam
ou do capítulo do livro, se falaria de seu autor. Em seguida, assimo plano com temas introdutórios ao mesmo tempo
se realizaria o debateem torno do conteúdo da leitura. em que iniciariam a investigação temática para o desdobra-
Na linha do emprego destes recursos, parece-nos in- mento do programa, a partir destestemas.
dispensável a análise do conteúdo dos editoriais da im- Um deles, que nos parece, como já dissemos,um
prensa,a propósito de um mesmo acontecimentos; Por tema central, indispensável,é o do conceito antropoló-
que razão os jornais se manifestamde forma diferente gico de cultura. Sejam homens camponeses ou urbanos,
sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o em programa de alfabetização ou de pós-alfabetização,
seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou ao ouvir o começo de suasdiscussõesem buscade mais conhe-
o noticiário das emissorasde rádio, o faça não como cer,no sentidoinstrumental do termo, é o debatedeste
conceito.
mero paciente, como objeto dos "comunicados" que
lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa Na proporção em que discutem o mundo da cultura, vão
libertar-se. explicitando seu nível de consciênciada realidade, no qual
Preparado todo estematerial, a que sejuntariam pré-livros estão implicitados vários temas. Vão referindo-sea outros
sobre toda esta temática, estará a equipe de educadores apta a aspectos da realidade, que começa a ser descoberta em uma
devolvê-lo ao povo, sistematizada e ampliada. Temática quem visão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem tam-
bém outros tantos temas.
sendo dele, volta agora a ele, como problemas a serem deci-
frados, jamais como conteúdos a serem depositados. Com a experiência que hoje temos, podemos afirmar
O primeiro trabalho dos educadores de base será a apre- que, bem-discutidoo conceito de cultura, em todasi:ou
sentação do programa geral da campanha a iniciar-se. Pro- em grande parte de suas dimensões, nos pode propor-
grama em que o povo se encontrará, de que não se sentirá cionar vários aspectosde um programa educativo. Mas,
estranho, pois que dele saiu. além da captação,que diríamos quaseindireta, de uma
Fundados na própria dialogicidade da educação, os edu- temática, na hipótese agora referida, podem os educa-
cadoresexplicarão a presença,no programa, dos "temas do- dores, depois de alguns dias de relações horizontais com
bradiça" e de sua significação; os participantes do "círculo de cultura", perguntar-lhes
diretamente:
Como fazer, porém, no casoem que não se possadispor
dos recursos para estaprévia investigação temática, nos ter- 'Que outros temas ou assuntos poderíamos discutir
além deste?;
mos analisados?

I64 I PAULOFREIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I.I65


1'
Na medida em que forem respondendo, logo depois de 4
anotar a resposta,a propõem ao grupo com um problema
também. A TEONA OA AÇÃO ANTIDIAIÓGICA

R Admitamos que um dos membros do grupo diz: "Gos-


taria de discutir sobre o nacionalismo." "Muito bem (diria o
educador, após registrar a sugestão, e acrescentaria): "Que
signiâca nacionalismo? Por que pode interessar-nos a dis-
cussãosobre o nacionalismo?' NESTE CAPITULO,EM QUK PRETENDEMOS
analisar as teorias da
É provável que, com a problematização da sugestãoao açãocultural que se desenvolvem a partir da matriz antidia-
grupo, novos temas surjam. Assim, na medida em que to- lógica e da dialógica, voltaremos, não raras vezes, a afirma-
dos vão se manifestando o educador vai problematizando, çõesdeitasno corpo deste ensaio.
uma a uma, as sugestões que nascem do grupo. Serão repetições ou voltas a pontosjá referidos, ora com
Se, por exemplo, numa área em que funcionam trin- a intenção de aprofunda-los, ora porque se façam necessá-
ta "círculos de cultura", na mesma noite, todos os "coor- rios ao esclarecimento de novas afirmações.
denadores" (educadores) procedem assim, terá a equipe Desta maneira, começaremos reaârmando que os ho-
central um rico material temático a estudar, dentro dos mens são seres da praxis. São seresdo quefazer, diferen-
princípios descritos na primeira hipótese de investigação tes, por isto mesmo, dos animais, seresdo puro fazer. Os
da temática significativa. animais não "admiram" o mundo. Imergem nele. Os ho-
O importante, do ponto de vista de uma educação liberta- mens, pelo contrário, como seresdo queEazer"emergem'
@

dora, e não 'bancária", é que, em qualquer dos casos,os ho- dele e, objetivando-o, podem conhecê-lo e transforma-lo
$ mens sesintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seupensar, com seu trabalho.
suaprópria visão do mundo, manifestadaimplícita ou expli- Os animais, que não trabalham, vivem no seu "supor-
citamente, nas suassugestões e nas de seus companheiros. te" particular, a que não transcendem. Daí que cadaespécie
Porque esta visão da educaçãoparte da convicção de animal viva no "suporte" que Ihe corresponde e que estes
que não pode sequer presentearo seu programa, mas tem suportes" sejam incomunicáveis entre si, enquanto: que
de busca-lo dialogicamente com o povo, é que se inscreve franqueáveis aos homens.
como uma introdução à pedagogiado oprimido, de cuja Mas, se os homens são seres do quefazer é exatamente
elaboração deve ele participar. porque seu fazer é ação e reflexão. É praxis. É transforma-
ção do mundo. E, na razão mesmaem que o quefazeré
praxis, todo fazer do quefazertem de ter uma teoria que

166 I PAULO
FREIO
necessariamenteo ilumine. O quefazer é teoria e prática. É Por isto, na medida em que a liderança nega a praxis
reflexão é ação. Não pode reduzir-se, como salientamos no verdadeira aos oprimidos, se esvazia, consequentemente,
capítulo anterior, ao tratarmos a palavra, nem ao verbalis- nasua;
mo, nem ao atavismo. Tende, desta forma, a impor sxa palavra a eles, tornando-
A tão conhecida afirmação de Lênin:'9 "Sem teoria revo- a, assim, uma Ê)alavrafalsa, de caráter dominador.
lucionária não pode haver movimento revolucionário" sig- Instala, com este proceder, uma contradição entre seu
nifica precisamente que não há revolução com verbaZísmos, modo de atuar e os objetivos que pretende, ao não entender
nem tampouco com atíüsmo,mas com p7üxis,portanto, que, sem o diálogo com os opümidos, não é possívelpraxis
com regerãoe anãoincidindo sobre as estruturas a serem autêntica, nem para estes nem para ela.
transformadas: O seu quefazer, ação e reflexão, não pode dar-se sem a
O esforço revolucionário de transformação radical destas ação e a reflexão dos outros, se seu compromisso é o da
estruturas não pode ter, na liderança, homens do qx(;fazere, libertação.
nas massasoprimidas, homens reduzidos ao purojnza'. A praxis revolucionária somente pode opor-se à praxis
Este é um ponto que deveria estar exigindo de todos daselites dominadoras. E é natural que assim seja, pois são
quantos realmente se comprometem com os oprimidos, quefazeresantagónicos.
com a causa de sua libertação, uma permanente e corajosa O que não se pode realizar,na praxis revolucionária,é
reflexão. a divisão absurda entre a praxis da liderança e a das massas
Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando a oprimidas, de forma que a destas fosse a de apenas seguir as
transformação da realidade em que se acham oprimidos, determinações da liderança.
reclama uma teoria da ação transformadora, esta não pode Esta dicotomia existe, como condição necessária,na si-
deixar de reconhecer-lhes um papel fundamental no proces- tuação de dominação, em que a elite dominadora prescreve
so da transformação. e os dominados seguem as prescrições.
Não é possível à liderança tomar os oprimidos como me- Na praxis revolucionária há uma unidade, em que a lide-
ros fazedoresou executoresde suas determinações; como rança -- sem que isto signiâque diminuição de sua respon-
meros ativistas a quem negue a reflexão sobre o seu próprio sabilidadecoordenadora e, em certos momentos, diretora
fazer. Os oprimidos, tendo a ilusão de que atuam, na atua- -- não pode ter nas massasoprimidas o objeto de sua posse.
ção da liderança, continuam manipulados exatamente por Daí que não sejam possíveisa manipulação, a sloganiza-
quem, por suaprópria natureza,não pode fazê-lo. ção, o "depósito", a condução, a prescrição, como consti-
tuintes da praxis revolucionária. Precisamente porque o são
19Vladimir Lenin, "What is to be Dome?",in Henry M. Christman(arg.),
da dominadora.
Esseltcial\Morasof lzttin. Nova York: BanhamBooks, 1966.p- 69.

t68 l PKuüo FREIRA


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I 169
Para dominar, o dominador não tem outro caminho senão Se são levadas ao processo como seres ambíguos," meta-
negar às massaspopulares a praxis verdadeira. Negar-lhes o de elas mesmas, metade o opressor "hospedado" nelas, e se
direito de dizer sua palavra, de pensar certo chegam ao poder vivendo esta ambiguidade que a situação
As massaspopulares não têm que, autenticamente, "ad- de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver, simplesmente, a
mirar" o mundo, denuncia-lo, questiona-lo, transÊormá-lo impressão de que chegaram ao poder.
para a sua humanização, mas adaptar-se à realidade que A sua dualidade existencialpode, inclusive, propor-
serve ao dominador. O quefazer deste não pode, por isto cionaro surgimentode um clima sectário-- ou ajuda-lo
mesmo, ser dialógico. Não pode ser um quefazer problema- -- que conduz facilmente à constituição de "burocracias'
tizante dos homens-mundo ou dos homens em suasrelações que corroem a revolução. Ao não conscientizarem, no de-
com o mundo e com os homens. No momento em que se correr do processo, esta ambiguidade, podem açoitar sua
fizessedialógico, problematizante, ou o dominador se have- :'participação" nele com um espírito mais revanchistaP' que
ria convertido aosdominados e já não seria dominador, ou revolucionário.
se haveria equivocado. E se, equivocando-se, desenvolvesse Podem aspirarà revoluçãocomo um meio de domi-
um tal quefazer, pagaria caro por seu equívoco. nação também e não como um caminho de libertação.
Do mesmo modo, uma liderança revolucionária, que Podem visualizar a revolução como a sua revolução pri-
não seja dialógica com as massas, ou mantém a "sombra' vada, o que mais uma vez revela uma das características
do dominador "dentro" de si e não é revolucionária, ou está dos oprimidos, sobre que falamos no primeiro capítulo
redondamente equivocada e, presa de uma sectarização in- deste ensaio.
discutivelmentemórbida, também não é revolucionária. Se uma liderança revolucionária, encamando, desta 6omla,
Pode ser até que chegue ao poder, mas temos nossasdú- uma visão humanista -- de um humanismo concreto e não
vidas em torno da revolução mesma que resulta deste que- abstrato --, pode ter di6culdades e problemas, muito maiores
fazer antidialógico. di6culdadese problemas terá ao tentar, por mais bem-inten-
Impõe-se, pelo contrário, a dialogicidade entre a lide- cionadaque sda, fmer a revolução para asmassasoprimidas. Isto
é, fzer uma revolução em que o com as massasé substituído
rança revolucionária e as massasoprimidas, para que, em
todo o processo de busca de sua libertação, reconheçam na Po8Maisuma razão por que a liderança revolucionária não pode repetir os proce-
dimentos da elite opressora. Os opressoKS, "penetrando" os oprimidos, neles n
revolução o caminho da superação verdadeira da contradi-
'hospedam"; os revolucionários, na praxis com os oprimidos, não podem tentar
ção em que se encontram, como um dos polos da situação "hospedar-sc" neles. Pelo contrário, ao buscaKm, com estes, o "despejo" daque-
concreta de opressão.Vale dizer que devem se engajar no les, devem íàzê,lo para contiver, para com eles estar e não para neles viver.
91Mesmo que haja--e explicavelmente-- por parte dosoprimidos, que sempre
processo com a consciência cada vez mais crítica de seu pa- estiveram submetidos a um regime de espoliação, na luta Kvolucionária, uma
pel de sujeitos da transformação. dimensão revanchista, isto não signi6ca que a revolução deva esgotar-se nela.

170 I PAUL.OFRnRE PEDAGOGIA DO OPRIhIIDO I 171


pelo sem elas,porque jazidas ao processo através dos mesmos fazer se dividisse em uma etapa de reflexão e outra, distan-
métodos e procedimentos usadospara opríini-las. te, de ação. Ação e reflexão se dão simultaneamente.
Estamos convencidos de que o diálogo com as massas O que pode ocorrer, ao exercer-seuma análisecrítico-
populares é uma exigência radical de toda revolução autên- reflexiva sobre a realidade, sobre suas contradições, é que se
tica. Ela é revoluçãopor isto. Dos golpes,seria uma inge- percebaa impossibilidadeimediata de uma forma determi-
nuidade esperar que estabelecessemdiálogo com as massas nada de ação ou a sua inadequacidade ao momento.
oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para Desdeo instante,porém, em que a reflexãodemonstraa
legitimar-se ou a corça que reprime. inviabilidadeou a inoportunidade de uma forma tal ou qual de
A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar ação,que deve ser adiada ou substituída por outra, não se pode
o diálogo corajoso com as massas.Sua legitimidade estáno negar a ação nos que fazem esta reflexão. É que esta se está
diálogo com elas,não no engodo, na mentira.ç' Não pode te- dando no ato mesmo de aduar -- é também ação.
mer as massas, a sua expressividade, a sua participação e6etiva Se; na educação como situação gnosiológica, o ato
no poder. Não pode nega-las.Não pode deixar de prestar-lhes cognoscente do sujeito educador (também educando) so-
F conta. De falar de seus acertos, de seus erros, de seus equívo- bre o objeto .cognoscívelnão morre, ou nele se esgota,
cos,de suasdi6culdades.
porque, dialogícamente, se estende a outros sujeitos cog-
A nossa convicção é a de que: quanto mais cedo comece noscentes,de tal maneira que o objeto cognoscível se faz
o diálogo, mais revolução será. mediador da cognoscitividade dos dois, na teoria da ação
Este diálogo, como exigência radical da revolução, res- revolucionária se dá o mesmo. Isto é, a liderança tem, nos
ponde a outra exigência radical -- a dos homens como se- oprimidos, sujeitos também dã ação libertadora e, na rea-
res que não podem ser cora da comunicaçãoj:pois que são lidade, a mediação da ação transformadora de ambos.
comunicação. Obstaculizar a comunicação é trans6ormá-los Nesta teoria da ação, exatamente porque é revolucioná-
em quase "coisa" e isto é tarefa e objetivo dos opressoresl ria, não é possívelfalar nem em atou,no singular,nem
não dosrevolucionários.
apenasem amores,no plural, mas em atores em intersub-
É preciso que fique claro quem:por isto mesmo que es- jetividade, em intercomunicação.
tamos defendendo a praxis, a teoria do fazer, não estamos
Nega-la;;;no processo revolucionário, evitando, por isto
propondo nenhuma dicotomia de que resultasseque este
mesmo, o diálogo com o povo em nome da necessidadede
'organiza-lo", de fortalecer o poder revolucionário, de as-
'Se algum beneficio se pudesse obter da dúvida(disse Fidel Casino ao falar ao
seguraruma frente coesaé; no fundo, temer a liberdade. É
povo cubano, confirmando a morte de Guevara), nunca coram armas da revolução
a mmrfru, o tncdo da verdade, a cumplicidade com qualquer ilusão Casa,a cumpli- temer o próprio povo ou não crer nele. Mas, ao se descrer
cidade com mentira." Fidel Castão,GKamlm,17/10/1 967.(Os giiâos sãonossos.) do povo, ao temê-lo, a revolução perde sua razão de ser. É

In I PAUIO FREIra PEDACOCiA no OPRIMIDO l i73


que ela nem pode ser Seitapara o povo pela liderança, nem sua comunhão com o povo. Comunhão em que crescerão
por ele, para ela, mas por ambos,numa solidariedade que não juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmente au-
pode ser quebrada. E esta solidariedade somente nasce no tonomear-se, se instaura ou se autentica na sua praxis coma
testemunho que a liderança dá a ele, no encontro humilde, do povo, nunca no desencontro ou no dirigismo.
amoroso e corajoso com ele. Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não
Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enri- percebendo esta obviedade, a de que a situação concreta
jecemos no desencontro,no qual transformamos os outros em que estão os homens condiciona a sua consciência
em puros objetos. E, ao assim procedermos, nos tornamos do mundo e esta as suas atitudes e o seu enfrentamento,
necrómos, em lugar de biófUos. Matamos a vida, em lugar de pensam que a transformação da realidade se pode fazer
alimentarmos a vida. Em lugar de busca-la, corremos dela. em termos mecânicos.9' Isto é, sem a problematização
Matar a vida, õeá-la, com a reduçãodos homensa pu- desta falsa consciência do mundo ou sem o aprofunda-
ras coisas, aliena-los, mistiâcá-los, violenta-los são o próprio mento de umajá menos falsa consciência dos oprimidos,
dos opressores. na ação revolucionária.
Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encon- Não há realidade histórica -- mais outra obviedade --
tro dos homens no mundo para transforma-lo, que é o que não sqa humana. Não há história semhomens, como
diálogo,P'estejamos caindo numa ingênua atitude, num ide- não há uma história para os homens, mas uma história de
alismo subjetivista. homens que, deita por eles, também os faz, como disse Marx.
ã Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os E é precisamente, quando -- às grandes maiorias -- se
l
homens no mundo e com o mundo. Os homens com os ho- proíbe o direito de participarem como sujeitos da história,
mens, enquanto classesque oprimem e classesoprimidas. que elas se encontr8m dominadas e alienadas.O intento
O que pretende a revolução autêntica é transformar a de ultrapassagem do estado de objetos para o de sujeitos
realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante -- objetivo da verdadeira revolução -- não pode prescindir
dos homens. nem da ação das massas, incidente na realidade a ser trans-
Afirma-se, o que é uma verdade, que esta transformação formada. nem de sua reflexão.
não pode ser deitapelos que vivem de tal realidade, mas pe- Idealistas seríamos se, dicotomizando a ação da reflexão,
los esmagados,comuma lúcida liderança. entendêssemos ou ahmássemos que a simples reflexão sobre
Que seja esta, pois, uma afirmação radicalmente conse- p' Theepoch during wltich thc domintalztcZ sesdrestablc. epock in which the wórker's
quente, isto é, que se torne existenciadapela liderançana movemmt mKst ól;]hó {tselFagainsf a powetfill advnsal], whíclt is occasíomlly tltrca-
!mina and ís in wery cme solely seated in pawq proa ce ntaturaUy a sorialist literarure
9s Sublinhemos mais uma vez que este enconuo dialógico não se pode verificar which emplu.dizes the "nmttvtal " elcntmt af reality. tlte obstacles to be wercome, a7tdthe
entre antagónicos. scaPttlaica(;y of ItKman awarmessand action. L. Goldmann, op. cit.. p. 80-1

U4 I PAULO FREIRA PEOAGOCIA


O0 OPRIMIDO l i75
a realidade opressora, que levasseos homens ao descobrimen- ação se contradizia a si mesma se, em lugar da prescrição,
to de seu estado de objetos, já signi6casseserem eles sujeitos. implicasse a comunicação, a dialogicidade.
Não há dúvida, porém, de que, seeste reconhecimento ainda Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pen-
não signi6ca que sejam sujeitos, concretamente, "significa, sarem com as massas? Exatamente porque estas são o seu
disse um aluno nosso, serem sujeitos em esperança".PSE esta contrário antagónico, a sua "razão", na afirmação de Hegel,
esperança os leva à busca de sua concretude. já citada. Pensar com elas seria a superação de sua contradi-
Falsamente realistas seremos se acreditarmos que o ção. Pensar com elas significaria já não dominar.
ativismo, que não é ação verdadeira, é o caminho para a Por isto é que a única forma de pensar certo do ponto de
revolução. vista da dominação é não deixar que as massaspensem, o
Críticos seremos, verdadeiros,se vivermos a plenitude que vale dizer: é não pensar comelas.
da praxis. Isto é, se nossaação involucra uma crítica refle- Em todas asépocas os dominadores foram sempre assim
xão que, organizando cadavez o pensar,nos leva a superar --jamais permitiram às massas que pensassem certo.
um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Este 'Um tal Mr. Giddy", diz Niebuhr, que foi posteriormen-
precisa alcançar um nível superior, com que os homens che- te presidente da sociedadereal, fez objeções (refere-seao
guem à razão da realidade. Mas isto exige um pensar cons- prometode lei que se apresentou ao Parlamento britânico
tante, que não pode ser negado às massaspopulares, se o em 1807, criando escolas subvencionadas) que se podiam
objetivo visado é a libertação. ter apresentado em qualquer outro país: "Por especial que
Se a liderança revolucionária lhes negar este pensar se pudesse ser em teoria o prometo de dar educação às classes
encontrará preterida de pensar também, pelo menos de trabalhadoras dos pobres, seria prejudicial para sua moral
pensar certo. É que a liderança não pode pensar sem as mas- e sua felicidade; ensinaria a desprezar sua missão na vida,
F sas,nem para elas,mas comelas. em lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e
Quem pode pensar semas massas,sem que se possa dar outros empregos; em.lugar de ensinar-lhes subordinação
@

H ao luxo de não pensar em tonto dela, são as elites domina- os faria rebeldese refratários, como se pâs em evidência
doras, para que, assim pensando, melhor as conheçam e, nos condadosmanufatureiros, habilita-los-ia a ler folhetos
melhor conhecendo-as,melhor asdominem. Daí que o que
sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristan-
poderia parecer um diálogo destascom as massas,uma co-
municação com elas, sejam meros "comunicados", meros dade; torna-los-ia insolentes para com seus superiores e,
'depósitos" de conteúdos domesticadores. A sua teoria da em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir
contra eles o braço forte do poder."9'
p5 Fernando Garcia, hondurenho, aluno nosso, num curso para latino-ameiica
nos em Santiago, Chile, 1967. 9 R. Niebuhr, op. cit., p. 118-9

176 I PAVIO FREIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I I77


No fundo, o que o tal Mr. Gidd» citado por Niebuhr, Enquanto, no processoopressor, as elites vivem da
queria, tanto quanto os de hoje, que não falam tão cínica 'morte em vida" dos oprimidos e só na relação vertical en-
e abertamente contra a educaçãopopular, é que as massas tre elase elesse autenticam, no processorevolucionário só
não pensassem.Os Mr. Giddy de todas as épocas,enquan- há um caminho para a autenticidade da liderança que emer-
to classe opressora, ao não poderem pensar com as massas ge: "morrer" para reviver através dos oprimidos e com eles.
oprimidas, não podem deixar que elas pensem. Na verdade,enquanto no primeiro é lícito dizer que al-
Desta forma, dialeticamente,se explica por quê, não guém oprime alguém, no segundo,já não se pode afirmar
pensando com, mas apenas em torlto das massas, as elites que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozi-
opressorasnão fenecem. nho, masos homensselibertam em comunhão.Com isto,
Não é o mesmo o que ocorre com a liderança revolucio- não queremos diminuir o valor e a importância da lideran-
nária. Esta, ao não pensar com as massas, fenece. As massas ça revolucionária. Pelo contrário, estamos enfatizando esta
são a sua matriz constituinte, não a incidência passivade importância e estevalor. E haveráimportância maior que
seu pensar. Ainda que tenha também de pensar em tonto das conviver com os oprimidos, com os esfarrapados do mun-
massaspara compreendê-las melhor, distingue-se este pen- do, com os "condenados da terra"?
sar do pensar anterior. E distingue-se porque, não sendo um Nisto, a liderança revolucionária deve encontrar não só
pensar para dominar e sim para libertar, pensando em torno a sua razão de ser, mas a razão de uma sã alegria. Por sua
dm mmsm, a liderança se dá ao pensar delas. natureza, ela pode fazer o que a outro, por sua natureza, se
Enquanto o outro é um pensar de senhor, este é um pen- proíbe de fazer, em termos verdadeiros.
sar de companheiro. E só assim pode ser. É que, enquanto a Daí que toda aproximação que aos oprimidos façam
dominação, por sua mesma natureza, exige apenas um polo os opressores, enquanto classe, os situa inexoravelmente
dominador e um polo dominado, que se contradizem anta- na falsa generosidade a que nos referimos no primeiro
gonicamente, a libertação revolucionária, que busca a supe- capítulo deste trabalho. Isto não pode fazer a liderança
ração desta contradição, implica a existência dessespolos e, revolucionária: ser falsamente generosa. Nem tampou-
mais, :uma liderança que emerge no processo desta busca. co dirigista.
Estaliderança, que emerge, ou se identi6ca com as massas Se as elites opressoras se fecundam, necrofilamente, no
populares, como oprimida também, ou não é revolucionária. esmagamento dos oprimidos, a liderança revolucionária so-
Assim é que, não pensar comelas para, imitando os domi- mente na comunhão com eles pode fecundar-se.
nadores, pensar simplesmente em torno dela, não se dando Esta é a razão pela qual o quefazer opressor não pode
a seu pensar, é uma forma de desaparecer como liderança ser humanista, enquant(y o revolucionário necessariamen-
revolucionária.
te o é. Tanto quanto o desumanismodos opressores,o

I78 I PAUIO FREIRA


PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I I79
H
humanismo revolucionário implica:r a ciência. Naquele, Desta forma, é impossível o diálogo. Isto é próprio das
estase encontra a serviço da "rei6cação"; nesta, a serviço elites opressoras que, entre seus mitos, têm de vitalizar mais
da humanização. Mas, se no uso da ciência e da tecnologia este,com o qual dominam mais.
para "reiâcar", o si?zeqtta desta ação é fazer dos oprimidos A liderança revolucionária, pelo contrário, cientí6co-hu-
suapura incidência,já não é o mesmo o que se impõe no manista, não pode absolutizar a ignorância das massas.Não
uso da ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui os pode crer neste mito. Não tem sequer o direito de duvidar,
oprimidos, ou se tornam sujeitos,também, do processo,ou por um momento, deque isto é mito.
continuam "reificados Não pode admitir, como liderança, que só ela sabee
E o mundo não é um laboratório de anatomia nem os ho- que só ela pode saber -- o que seria descrer das massaspo-
mens são cadáveresque devam ser estudados passivamente. pulares.Ainda quando sojalegítimo reconhecer-seem um
O humanista científico revolucionário não pode, em nível de saberrevolucionário, em função de sua mesma
nome da revolução, ter nos oprimidos objetos passivos de sua consciência revolucionária, diferente do nível de conheci-
análise,da qual decorram prescriçõesque elesdevam seguir. mento ingênuo das massas,não pode sobrepor-sea este,
Isto significa deixar-secair num dos mitos da ideologia com o seu saber.
opressora, o da absoZKtizaçãoda {gnoráncía, que implica a Por isto mesmo é que não pode sloganizar as massas,
existência de alguém que a decreta a alguém. mas dialogar com elas para que o seu conhecimento ex-
No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo periencial em torno da realidade, secundadopelo conheci-
os outros como absolutamenteignorantes, se reconhece mento crítico da liderança, se vá transformando em razão
e à classea que pertence como os que sabem ou nasce- da realidade.
ram para saber.Ao assimreconhecer-setem nos outros o Assim como seria ingênuo esperar das elites opresso-
seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua ras a denúncia deste mito da absolutização da ignorância
passa a ser a palavra "verdadeira", que impõe ou procura dasmassas,é uma contradição que a liderança revolucio-
impor aos demais. E estessão sempre os oprimidos, rou- nária não o faça e, maior contradição ainda, que atue em
bados de sua palavra. função dele.
Desenvolve-seno que rouba a palavra dos outros uma O que tem de fazer a liderança revolucionária é pro-
profunda descrença neles, considerados como incapazes blematizar aosoprimidos, não só este, mas todos os mitos
Quanto mais diz a palavra sem a palavra daqueles que estão de que se servem as elites opressoras para oprimir. Se as-
proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o poder e o gosto sim não se comporta, insistindo em imitar os opressores
de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode viver se não em seus métodos dominadores, provavelmente duas res-
tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem. postaspossam dar as massaspopulares. Em determinadas

PEOAGOGIA OO OPRIMIDO I I81


I80 I PAULO FREIRE
circunstânciashistóricas, se deixarem "domesticar" por Há alguns pontos fundamentais a analisar nas afirma-
um novo conteúdo nelas depositado. Noutras, se assusta- ções dos que-assim pensam.
rem diante de uma "palavra" que ameaça o opressor "hos- Acreditam (não todos) na necessidadedo diálogo com
pedado" nelas.P7 asmassas, mas não creem na sua viabilidade antes da che-
Em qualquer dos casos,não se fazem revolucionários. a e mire que não a ssive
gada ao poder. Ao admitirem é possível uma for
No primeiro,a revoluçãoé um engano;no segundo,uma rta
ma de comportamento l 11]
educativo-crítica a
antes da chegada
impossibilidade. ao poder por parte da liderança, negam o caráter peda-
Há os que pensam, às vezes,com boa intenção, mas gógico da revolução, como revoluçãoc it rnZ.Por outro
K equivocamente, "que sendo demorado o processo dialó- lado, confundem o sentido pedagógico da revolução com
gico9' -- o que não é verdade -- se deve fazer a revolução a nova educação a ser instalada com a chegada ao poder.
sem comunicação,atravésdos comKtticados" e, depois de A nossaposição,já afirmada e que se vem afirmando em
feita, então, se desenvolveráum amplo esforço educati- todas as páginas deste ensaio, é que seria realmente ingenui-
vo. Mesmo porque, continuam, não é possívelfazer edu- dade esperar das elites opressoras uma educação de caráter
cação antes da chegada ao poder. Educação libertadora' libertário. Mas, porque a revolução tem, indubitavelmente,
p' As vezes,nem sequer estapalavraé dita. Bastaa presençade alguém(não um caráter pedagógico que não pode ser esquecido, na ra-
necessariamentepertencente a um grupo revolucionário) que possaameaçarao zão em que é libertadora ou não é revolução,a chegadaao
opressor "hospedado" nas massas,para que elas,assustadas,assumam posturas
poder é apenasum momento, por mais decisivo que seja.
destrutivas. Contou-nos um aluno nosso, de um paíslatino-americano, que, em
certa comunidade camponesa indígena de seu país, bastou que um sacerdote Enquanto processo, o "antes" da revolução está na socieda-
Fanático denunciasse a presença de dois "comunistas" na comunidade, "pondo de opressora e é apenas aparente.
em risco a íé católica", para que, na noite deste mesmo dia, os camponeses, unâ-
A revolução se gera nela como ser social e, por isto, na
nimes, queimassemvivos os dois simplesprofessoresprimários que exerciam
seu trabalho de educadoresinfantis. medida em que é ação cultural, não pode deixar de cor-
Talvez esse sacerdote tivesse visto, na casa daqueles infelizes tttaestrosrKraks, responder às potencialidades do ser social em que se gera.
algum livro em cuja capa houvessea cara de um homem barbado-.
p' Salientamos, mais uma vez, quc não estabelecemosnenhuma dicotomia en-
É que todo ser se desenvolve (ou se transforma) den-
tre o diálogo e a ação revolucionária, como se houvesse um tempo de diálogo, tro de si mesmo, no jogo de suas contradições.
e outro, diferente, de revolução.Aârmamos, pelo contrário, que o diálogo é C)scondicionamentos externos, ainda que necessários, só
a "essência" da ação revolucionária. Daí que na teoria desta ação, seus atires,
ílttns yet vnmmte, incidam sua ação sobre o Dueto, que é a realidade que os
sãoeâcientes se coincidem com aquelas potencialidades.»
mediatiza, tendo, como ol#ettvo,atravésda transformação daqKeü,a humaniza- O novo da revolução nasce da sociedade velha, opres-
ção dos homens. Isto não ocorre na teoria da ação opressora, cuja "essência" é sora,'que foi superada. Daí que a chegada ao poder, que
antidialógica. Nesta, o esquema sê simplifica. Os amores
têm, como oQetosde sua
ação, a realidadee osoprimidos simultaneamente e, como oÜetivo, a manutenção w No livro já citado, Anãoculturalparaa liberdade
c Outrosescritos,
discutimos
da opressão, através da manutenção da realidade opressora. maisdetidamenteas relaçõesentre ação cultural e revolução cultural.

i8z l Pxulo FmIRE PEDAGOGO DOOPNHIDO I I83


continua processo, seja apenas,como antes dissemos, homens para a "pronúncia" do mundo, é uma condição fun-
um momento decisivo deste. damental para a sua real humanização.
Por isto é que, numa visão dinâmica e não estática da Se "uma ação livre somente o é na medida em que o ho-
revolução, ela não tem um antese um depoisabsolutos, mem transforma seumundo e a si mesmo, se uma condição
de que a chegada ao poder seria o ponto de divisão. positiva para aliberdade é o despertar daspossibilidadescria-
Gerando-se nas condições objetivas, o que busca é a su- doras humanas, se a luta por uma sociedade livre não o é a
peração da situação opressora com a instauração de uma menos que, através dela, seja criado um sempre maior grau
sociedade de homens em processo de permanente libertação. de liberdade individual",''' se há.de reconhecer ao processo
O sentido pedagógico, dialógico, da revolução, que a faz revolucionário o seu caráter eminentemente pedagógico.
"revolução cultural" também, tem de acompanha-laem to- De uma pedagogia problematizante e não de uma "pedago-
das as suas fases. gia" dos "depósitos", "bancária". Por isto é que o caminho
É ele ainda um dos eficientes meios de evitar que o poder da revolução é o da abertura às massaspopulares, não o do
revolucionário se institucionalize, estratiflcando-seem 'bu- fechamento a elas. É o da convivência com elas,não o da
rocracia" contrarrevolucionária,pois que a contrarrevolução desconfiançadelas. E,:quanto mais a revolução empaa sua
também é dos revolucionários que se tornam reacionários.'oo teoria, como salienta Lênin, mais sua liderança tem de estar
E, se não é possível o diálogo com as massas populares an- comas massas,para que possa estar contra o poder opressor.
tes da chegada ao poder, porque falta a elas experiência do
diálogo, também não lhes é possível chegar ao poder, por-
que lhes falta igualmente experiência dele. Precisamente A TEORIA DA AÇÃO ANTIDIALÓGICA E SUASCARACTERÍSTICAS:
porque defendemosuma dinâmica permanente no proces- A CONQUISTA,DIVIDIR alARAMANTER A OPRESSÃO,A lçíANIPULAÇÃ0
so revolucionário, entendemosque é nesta dinâmica, na EAIN\nSÃO CULTURAL
praxis das massas com a liderança revolucionária, que elas
Destas consideraçõesgerais, partamos, agora, para uma
e seuslíderes mais representativos aprenderão tanto o diálogo
análise mais detida a propósito das teorias da ação antidia-
quanto o poder. Isto nos parece tão óbvio quanto dizer que um lógica e dialógica.
homem não aprendea nadar numa biblioteca, masna água.
ioi Á.Êeeactíon(diz Gajo Petrovic) can only Z)eonetywh ch a ?mtt cMnges hís worHatü
O diálogo com as massasnão é concessão,nem presen-
h hitlzseF[. . .] A posítive copditíon of.Êeedom is the kltowlclige of {fte límits of necessit) tlte
te, nem muito menos uma tática a ser usada,como a sloga- awamtessof h#man creutivelmssíbí]ites.[-.]T#testruWlcjorafeesocü:ty ísttotastrH8k
nização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos jm af?e síüety nbss throngh ít an wngrratn deXrefof ilüil'ümlfpedom ís meated.
Gajo PetroMc, f'Man and Freedom", in Erích Fromm(org.), &)ciaZísmHx7MítisM.
ioo Cf. Mao Tbé-Tung, "On Contradictions", in FourEssayson Pltilosophy Pequim: Nova York: Anchor Books, 1966,p. 274-6.Do mesmo autor, é importante a ]eitwa
R)reign Languages Press Edition, 1968. deMan it theÀ4ü-T»mtH;t CbntKly.Nova Yotk: Anchor Books, 1967.

I84 I PAULO FMIRE PEDAGOGIA


DOOPRIMIDOI I85
A primeira, opressora; a segunda, revolucionário-liberta. roubando ao oprimido conquistado sua palavra também,
dou. sua expressividade, sua cultura.
Instaurada a situação opressora, antidialógica em si, o
Conquista antidialógico se torna indispensável para mantê-la.
A conquista crescente do oprimido pelo opressor apa'
O primeiro caráter que nos parece poder ser.surpreendido na rece, pois, como um traço marcante da ação antidialógica.
ação antidialógica é a necessidade da conquista. Por isto é que, sendo a açãolibertadora dialógica em si, não
O antidialógico, dominador, nas suas relações com o pode ser o diálogo um a postedort seu, mas um concomitante
seu contrário, o que pretende é conquista-lo, cada vez dela. Mas, como os homens estarão sempre libertando-se, o
mais, através de mil formas. Das mais duras às mais su- diálogo''; se torna um pamanmte da açãolibertadora.
tis. Das mais repressivasàs mais adocicadas,como o O desejo de conquista, talvez mais que o desejo, a ne-
paternalismo. cessidadeda conquista, acompanha a ação antidialógica em
Todo ato de conquista implica um sujeito que conquista todos os seus momentos.
e um obÜetoconquistado.O sujeito da conquista determina Através dela e para todos os fins implícitos na opressão,os
suas finalidades ao objeto conquistado, que passa,por isto opressoresse esforçampor matar nos homens a suacondi-
Ç mesmo, a ser algo possuído pelo conquistador. Este, por sua ção de "ad-moradores" do mundo. Como não podem conse-
vez, imprime suaforma ao conquistado que, introjetando- gui-lo, em termos totais, é preciso, então, mítÚcar o mundo.
o, se fm um ser ambíguo. Um ser, como dissemosjá, "hos- Daí que os opressoresdesenvolvam uma série de recur-
pedeiro" do outro. sos através dos quais propõem à "ad-miração" das massas
Desde logo, a ação conquistadora, ao "rei6car" os ho- conquistadase oprimidas um falso mundo. Um mundo de
mens, é necrófila. engodos que, alienando-as mais ainda, as mantenha passi-
Assim como a ação antidialógica, de que o ato de con- vas em face dele. Daí que, na ação da conquista, não seja
quistar é essencial, é um simultâneo da situação real, concre- possível apresentar o mundo como problema, mas, pelo
ta, de opressão, a ação dialógica é indispensável à superação contrário, como algo dado, como algo estático,a que os ho-
revolucionária da situação concreta de opressão. mens se devem ajustar.
Não se é antidialógico ou dialógico no "ar", mas no A falsa "ad-miração" não pode conduzir à verdadeira
mundo. Não se é antidialógico primeiro e opressordepois, praxis, pois que é a pura espectação das massas,que, pela
mas simultaneamente.O antidialógico se impõe ao opres- iuz Isto não significa, de maneira alguma, segundo salientamos no capitulo an-
terior, que, instaurado o poder popular revolucionário, a revolução contradiga
sor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista,
o seu caráter dialógico, pelo Fatode o novo poder ter o dever ético, inclusive, de
oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, reprimir toda tentativa de restauração do antigo poder opressor.

I86 I PAULO FREIO PEDAGOGIA DO OPRIMDO I I87


conquista, os opressores buscam obter por todos os meios. que, no plano das nações, mereceu segura advertência de
Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas, grega- JoãoXXIII.'" O mito de que as elites dominadoras, "no
rizadas. Por tudo isto, massasalienadas. reconhecimento de seus deveres", são as promotoras do
É preciso, contudo, chegar até elas para, pela conquista, povo, devendo este, num gesto de gratidão, aceitar a sua
mantê-las alienadas. Este chegar até elas, na ação da con- palavra e conformar-se com ela. O mito de que a rebelião
quista, não pode transformar-se Ham.Piar com elas. Esta do povo é um pecado contra Deus. O mito da proprie-
"aproximação", que não pode ser deita pela comunicação, dade privada, como fundamento do desenvolvimento
se faz pelos "comunicados", pelos "depósitos" dos mitos in- da pessoa humana, desde, porém, que pessoas humanas
dispensáveisà manutenção do statm que. soam apenasos opressores.O mito da operosidadedos
O mito; por exemplo,: de que a ordem opressora é opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimi-
uma ordem de liberdade.De que todos são livres para dos. O mito da inferioridade "ontológica" destes e o da
trabalhar onde queiram. Se não lhes agrada o patrão, po- superioridade daqueles.:o'
dem então deixa-lo e procurar outro emprego O mito Todosestesmitos e mais outros que o leitor poderá
de que esta"ordem" respeitaos direitos da pessoahu- acrescentar,cuja introjeção pelas massaspopulares oprimi-
mana e que, portanto, é digna de todo apreço. O mito de das é básica para a sua conquista, são levados a elas pela
que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar propaganda bem-organizada, pelos slogan.s, cujos veículos
M a ser empresários-- mais ainda,;o mito de que o ho- são sempre os chamadosR"meios de comunicação com as
mem que vende, pelas ruas, gritando: "doce de banana e massas".'osComo se o depósito deste conteúdo alienante ne-

B: goiaba" é um empresáriotal qual o dono de uma grande


fábrica. O mito do direito de todos à educaçãoT'quando
las fosse realmente comunicação.
Em verdade, finalmente, não há realidade opmssora que
o número de brasileiros que chegam às escolasprimá- não seja necessariamente antidialógica, como não há anti-
rias do país e o dos que nelas conseguempermanecer é dialogicidade em que o polo dos opressores não se empenhe,
chocantemente irrisório. O mito da igualdade de classe, incansavelmente,na permanente conquista dos oprimidos.
quando o "sabe com quem está falando?" é ainda uma Já as elites dominadoras da velha Romã falavam na ne-
pergunta dos nossosdias. O mito do heroísmo das classes cessidadede dar "pão e circo" às massaspara conquista-las,
opressoras,como mantenedoras da ordem que encarna amaciando-as,com a intenção de assegurara sua paz. As
a "civilização ocidental e cristã", que elas defendem da l03 Mataantagütru.
;'barbárie materialista". O mito de sua caridade, dePsua 'o' By }tísacmatim(diz Memmi, needndo-se ao perfn que o colonizador faz do
colonizado), tlte colonizaresmblisltesthc colonízedm bdng Zaz7.He deciEies
thr Zazi-
generosidade,quando o que fazem, enquanto classe,é nessís camtít tiontal ín the vela ntatureof tlte colottizcd. Op. cit« p. 81.
assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda '05 Não criticamos os meios em si mesmos, mas o uso que se lhes dá.

I88 I PAULO FREIO PEDAGOGIA DOOPRiMiOO l i89


elites dominadoras de hoje, como as de todos os tempos, Desde os métodos repressivos da burocratização estatal,
continuam precisandoda conquista como uma espéciede à sua disposição, até as formas de ação cultural por meio das
'pecado original", com "pão e circo" ou sem eles. Os con- quais manejam as massaspopulares, dando-lhes a impres-
teúdos e os métodos da conquista variam historicamente, são de que as ajudam.
o que não varia, enquanto houver elite dominadora, é esta Uma das características destas formas de ação, quase nun-
ânsia necró61a de oprimir. ca percebidas por profissionais sérios, mas ingênuos, que se
deixam envolver, é a ênfase na visão ZocaZistados problemas
Dividir para manter a opressão e não na visão deles como dimensão de uma totali(üde.
Quanto mais se pulverize a totalidade de uma área em
Esta é outra dimensão fundamental da teoria da ação opres- "comunidades locais", nos trabalhos de "desenvolvimento
sora, tão velha quanto a opressão mesma. de comunidade", sem que estas comunidadessejam es-
Na medida em que as minorias, submetendo as maio- tudadas como tonalidades em si, que são parcialidades de
rias a seu domínio, as oprimem, dividi-las e mantê-las outra totalidade (área, região etc.) que, por sua vez, é par-
divididas são condição indispensável à continuidade de cialidade de uma totalidade maior (o país, como parciali-
seu poder. dade da totalidade continental), tanto mais se intensifica a
Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das alienação.E, quanto mais alienados, mais fácil dividi-los e
massaspopulares, que significaria, indiscutivelmente, uma mantê-los divididos.
séria ameaça à sua hegemonia. Estasformas íocalistasde ação, intensiâcando o modo vo-
Daí que toda ação que possa,mesmo incipientemente, calista de existência das massas oprimidas, sobretudo rurais,
proporcionar às classesoprimidas o despertar para que se diâcultam sua percepção crítica da realidade e as mantêm
unam é imediatamente areadapelos opressoresatravésde ilhadas da problemática dos homens oprimidos de outras
métodos, inclusive, fisicamente violentos. áreasem relação dialédca com a sua.'oó
Conceitos, como os de união, de organização, de luta, lo' É desnecessário dizer que esta crítica não atinge os esforços neste setor que.
são timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente numa perspectivadiabética,orientam no sentido da açãoque sefunda na com-
o são,mas para os opressores.É que a praticização destes preensão da comunidade local como totalidade em si e parcialidade de uma to-
talidade maior. Atinge aqueles que não levam em conta que o desenvolvimento
conceitos é indispensável à ação libertadora. da comunidade local não se pode dar a não ser dentro do contexto total de quc
O que interessa ao poder opressor é enfraquecer os opri' Eazparte, em interação com outras parcialidades,o que implica a consciência
da unidade na diversificação, da organização que canalize as corçasdispersas e a
midos mais do que já estão, ilhando-os, criando e aprofun-
consciência clara da necessidade de transformação da realidade. Tudo isto é que
dando cisões entre eles, através de uma gama variada de assusta,razoavelmente, os opressores.Daí que estimulem todo tipo de ação em
métodos e processos. que, além da visão vocalista,os homens sejam "assistencializados'

I90 I PAUL.O FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I I91


O mcs=o4se verifica nos chamados "treinamentos de
ou é substituída pelos novos líderes que emergem, à altura
líderes" que, embora quando realizadossem esta inten- da nova percepção social que se constitui.
ção por muitos dos que os praticam, servem, no fundo, Daí, também, que aos opressores não interesse esta
à alienação. forma de ação, mas a primeira, enquanto ela, mantendo a
O básicopressupostodestaaçãojá é, em si, ingênuo. alienação,obstaculiza a emersão das consciênciase a sua
Fundamenta-se na pretensão de "promover" a comunida- inserção crítica na realidade dos oprimidos como classe.
de por meio da capacitação dos líderes, como se fossem as Este é outro conceito que aos opressores Eazmal, ainda
partes que promovem o todo e não este que, promovido, que, a si mesmos, se considerem como classe,não opresso-
promove as partes. ra, obviamente, mas "produtora;
Na verdade, os que são considerados em nível de lide- Não podendo negar, mesmo que o tentem, a existência
rança nas comunidades,para que assim sejam tomados, dasclassessociais, em relação dialética umas com as outras,
necessariamente, refletem e expressam as aspirações dos em seus conflitos, falam na necessidade de compreensão, de
indivíduos da sua comunidades' harmonia, entre os qüe compram e os que são obrigados a
Estão em correspondência com a forma de ser e de pen- vender o seu trabalho.i07
sar a realidade de seus companheiros, mesmo que revelan- Harmonia, no fundo, impossívelpelo antagonismoin-
do habilidades especiaisque lhes dão o statm de líderes. disfarçável que há entre uma dasse e outra.'"
No momento em que, depoisde retirados da comuni- loz "Se os operários não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de scu
trabalho(diz o bispo Franic Split), todas as reformas nasestruturas serãoineâca-
dade, a ela voltam, com um instrumental que antesnão ti-
zes. Indusive, se os operados às vezes recebem um salário mais alto em algum
nham, ou usam estepara melhor conduzir as consciências sistema económico, não se contentam com estes aumentos. Querem ser proptic-
dominadas e imersas, ou se tornam estranhos à comunida- tários e não vendedores de seu tfabajho. Atualmente(continua Dom Franic), os
trabahadores estão cada vez mais conscientes de que o trabalho constitui uma
de, ameaçando, assim, sua liderança.'
parte da pessoahumana. A pessoahumana, porém, não pode ser vendida nem
Sua tendência provavelmente será, para não perderem a vender-se.Toda compra ou venda do trabalho é uma espécie'de escravidão.A
liderança, continuar, agora, com mais eficiência, no manejo evolução da sociedade progride neste sentido e, com segurança, dentro deste sis-
temado qual se afirma não scr tão sensívelquanto nós à dignidade da pessoahu-
da comunidade.
mana, isto é, o marxismo." "15 0bispos hablan en prol del Tercer Mundo", CIDOC
Isto não ocorre quando a ação cultural, como processo IPIÉurtm,
México,Doc. 67/35, 1967,p. l-ll.
tota[izado e tota]izador, abarcaa comunidade e não seuslí- '" A propósito das classessociaise da luta entre elas, de que tanto se acusa
Marx como uma espéciede "inventor" destaluta, cf: a carta que escrevea J.
deres apenas Quando se ím atravésdos indivíduos como Weydemeyer,a I' do março de i852, em que dec]aranão ]he caber "o mérito
sujeitos do processo. de haver descoberto a existência das classesna sociedade moderna nem a luta
entre elas.Muito antes que eu(comenta Maa) alguns historiadores burgueses
Neste tipo de ação se veriâca o contrário. A liderança
haviam já exposto o desenvolvimento histórico desta luta de classes e alguns eco-
antedór ou crescetambém ao nível do crescimento do todo nomistasburgueses, a sua anatomia económica. O que acrescentei(diz ele) 6oi

192 I PKIIO FRnRE PEOAGOGIA DO OPRIMIDO I ]93


B

Pregam a harmonia de classes como se estas fossem Inseguros na sua dualidade de seres "hospedeiros" do
aglomerados fortuitos de indivíduos que olhassem, curio- opressor, de um lado, rechaçando-o; de outro, atraídos por
sos,uma vitrina numa tarde de domingo. ele, em certo momento da confrontação entre ambos, é fácil
A harmonia viável e constatada só pode ser a dos opres- àquele poder obter resultados positivos de sua ação divisória.
sores entre gi. Estes, mesmo divergentes e, até em certas Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o
ocasiões, em luta por interesses de grupos, se unificam, quanto lhes custa aceitarem o "convite" que recebem para
imediatamente, ante uma ameaça à classe. evitar que se unam entre si. A perda do emprego e o seu nome
Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possí- numa "lista negra",:que signi6ca portas que se fecham a eles
vel entre seusmembros na buscade sua libertação. SÓem para novos empregos, são o mínimo que lhes pode suceder.
casos excepcionais, não s6 é possível; mas até necessária, A sua insegurança vital, por isto mesmo, se encontra di-
a harmonia de ambos para, passadaa emergência que os retamente ligada à escravização de sua pessoa,como subli-
uniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais nhou o bispo Split, anteriormente citado.
desapareceuna emergência desta união. E que, somente na medida em que os homens criam o seu
A necessidadede dividir para facilitar a manutenção do es- mundo, que é mundo humano, e o criam com seu trabalho
tado opressor se manifesta em todas as ações da dasse domi- transformador, eles se realizam. A realização dos homens, en-
nadora. Sua inteúerência nos sindicatosj favorecendo certos quanto homens, está, pois, na realização deste mundo. Desta
'representantes" da dasse dominada que, no fundo, são seus maneira,se seu estar no mundo do trabalho é um estar em
liglül
representantes,e não de seuscompanheiros; a "promoção" de dependênciatotal, em insegurança, em ameaçapermanente,
If
indivíduos que, revelando certo poder de liderança, podiam sig- enquanto seu trabalho não ]he pertence, não podem realizar-se.
ni6car ameaça e que, "promovidos", se tomam "amaciados"; a O trabalho não livre deixa de ser um quefazer realizador de
distribuição de benessespara uns e de dureza para outros, tudo sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua "rei6cação'
sãoformas de dividir para manter a "ordem" que lhes inteKssa. Toda união .dos oprimidos entre si, que já sendo ação,
Formas de ação que incidem, direta ou indiretamente, aponta outras ações, implica, cedo ou tarde, que percebendo
sobre um dos pontos débeisdos oprimidos: a sua inseguran' eleso seu estado de despersonalização,descubram que, dividi-
ça vital que, por sua vez, já é fruto da realidade opressora dos, serão sempre presas fáceis do dirigismo e da dominação.
em que se constituem. Unificados e organizados,'oPporém, farão de suadebilida-
demonstrar: 1) que a existênciadas classesvai unida a determinadas faseshistó- de corça transformadora, com que poderão recriar o mun-
ricas de desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classesconduz à ditadura do, tornando-o mais humano.
do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é, por si, mais que o trânsito
até a abolição de todas a$classes,para uma sociedade sem classes." Mam-Engels, lo' Aos camponeses,por isto mesmo, é indispensávelmantê-los olhadosdos
Obra esç(Zgü&u. operários urbanos, como estes e aqueles dos estudantes que. não chegando a

I94 I PAUIO FmIRE


PEDAGOGIA OO OPRIMIDO I I95
O mundo mais humano de suasjustas aspirações, con- injusta e necrófila, estaráquerendo "comprar" a suapaz.
tudo, é a contradição antagânicado "mundo humano" dos Acontece que paz não se compra, se vive no ato realmen-
opressores -- mundo que possuem com direito exclusivo te solidário, amoroso, e este não pode ser assumido, en-
-- e em que pretendem a impossível harmonia entre eles, carnado, na opressão.
quc "coisificam", e os oprimidos, que são "coisificados" Por isto mesmo é que este messianismoexistentena
Como antagónicos, o que serve a uns necessariamente ação antidialógica vai reforçar a primeira característica des-
desserve aos outros. ta ação -- o sentido da conquista.
Na medida em que a divisão das massasoprimidas é ne-
l Dividirpara manter o SMtmqaose impõe, pois, como funda-
l mental objetivo da teoria da açãodominadora, antidialógica.
Como auxiliar desta ação divisória, encontramos nela
cessária à manutenção do star que, portanto, à preserva-
ção do poder dos dominadores, urge que os oprimidos não
uma certa conotaçãomessiânica,atravésda qual os domi- percebam daramente estejogo.
nadores pretendem aparecer como salvadores dos homens Neste sentido, mais uma vez é imperiosa a conquista
a quem desumanizam. para que os oprimidos realmente se convençam de que es:
No fundo, porém, o messianismocontido na sua ação tão sendo defendidos. Defendidos contra a ação demoníaca
não pode esconder o seuintento. O que eles querem é sal- de "marginais desordeiros", "inimigos de Deus", pois que
var-se a si mesmos. E salvar sua riqueza, seu poder, seu esti- assim são chamados os homens que viveram e vivem;arris-
lo de vida, com que esmagam aos demais. cadamente, a busca valente da libertação dos homens.
O seu equívoco está em que ninguém se salva sozinho Desta maneira, para dividir, os necrófilos se nomeiam a
nem como indivíduo, nem como classeopressora, mas com si mesmos biófUos e aos biófilos, de necr(5filos.A história,
os oprimidos, pois estar contra eles é o próprio da opressão. contudo, seencarrega sempre de refazer estas"nomeações'
Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudes- Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chaman-
se descobrir, no que chamamos, no primeiro capítulo, do o Tiradentes de inconâdente e ao movimento libertador
de falsa generosidade do opressor, uma das dimensões de que encarnou, de Inconfidência, o herói nacional não é o que
seu sentimento de culpa. Com esta generosidadefalsa, o chamou de bandido e o mandou enforcar e esquartejar,e
além de estar pretendendo a manutenção de uma ordem espalhar pedaços de seu corpo sangrando pelas vilas assusta-
das,como exemplo. O herói é ele. A história rasgou o "título"
constituir, sociologicamente, uma classe.se fazem, ao aderirem ao povo. um
perigo pelo seu testemunho dc rebeldia. É preciso, então, fazer ver àsclassespo- que Ihe deram e reconheceu o seu gesto.
[
pulares que os estudantes são irresponsáveis e perturbadores da "ordem". Que Os heróis são exatamenteos que ontem buscavama
o seu testemunho é falso, pelo fato mesmo dc que, como estudantes. deviam
estudar, como cabe aos operários das fábricas c aos camponeses trabalhar para união para a libertação e não os que, com o seu poder, pre-
o "progressoda nação' tendiam dividir para reinar.

i96 l pAULO FMIRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 197


$

Manipulação destespactos, de que sempre resulta, cedo ou tarde, o esma-


gamento das massas.
Outra característica da teoria da ação antidialógica é a mani- E os pactos somente se dão quando estas,mesmo ingê-
pulação das massas oprimidas. Como a anterior, a manipu- nuas, emergem no processo histórico e, com sua emersão,
lação é instrumento da conquista, em torno de que todas as ameaçam as elites dominantes.
dimensõesda teoria da açãoantidialógica vão girando. Basta a sua presença no processo, não mais como puras
y
© Através da manipulação, as elites dominadoras vão tentan- espectadoras, mas com os primeiros sinais de sua agres-
do conformar asmassaspopulares a seusobjetivos. E, quanto sividade, para que as elites dominadoras, assustadascom

K mais imaturas, politicamente, estejam elas(rurais ou urba-


nas), tanto mais facilmente se deixam manipular pelas elites
dominadoras que não podem querer que se esgote seu poder.
essapresença incomoda, dupliquem as táticas de manejo.
A manipulação se impõe nestasfasescomo instrumento
l fundamental para a manutenção da dominação.
A manipulação se faz por toda a série de mitos a que nos Antes da emersão das massas,não há propriamente ma-
l referimos. Entre eles,mais este:o modelo que a burguesia
$
nipulação, mas o esmagamento total dos dominados. Na sua
se faz de si mesma às massascom possibilidade de sua as- imersão quase absoluta, não se faz necessária a manipulação.
censão. Para isto, porém, é preciso que as massas aceitem Esta, na teoria antidialógica da ação, é uma resposta que
sua palavra. o opressor tem de dar às novas condições concretas do pro-
Muitas vezesestamanipulação, dentro de certas condi- cessohistórico.
ções históricas especiais, se verifica através de pactos entre A manipulação aparececomo uma necessidadeimperio-
as classes dominantes e as massas dominadas. Pactos que sa das elites dominadoras, com o fim de, através dela, con-
poderiam dar a impressão, numa apreciação ingênua, de seguirum tipo inautêntico de "organização", com que evite
um diálogo entre elas. o seu contrário, que é a verdadeira organização das massas
Na verdade, estespactos não sãodiálogo porque, na profun- populares emersas e emergindo.' ''
didade de seu objetivo, está inscrito o interesse inequívoco da Estas,inquietas ao emergir, têm duas possibilidades: ou são
elite dominadora. Os pactos, em última análise, são meios de manipuladaspelaselites para manter a dominação ou seorga-
que se servem os dominadores para realizar suasfinalidades.''' nizam verdadeiramente para sua libertação. É óbvio, então,
B
O apoio das massaspopulares à chamada 'burguesia na-
l
l cional" para a defesado duvidoso capital nacional foi um li' Na "organização" que resulta do ato manipulador, as massaspopulares,
meros objetos dirigidos, se acomodam às finalidadesdos manipuladores,en-
''' Os pactos só são válidos para as classespopulares -- e neste casojá não são quanto na organização verdadeira, em que os indivíduos são sulcitos do ato de
pactos -- quando as finalidades da ação a ser desenvolvida ou que já se realiza organizar-se,as finalidadesnão são impostaspor uma elite. No primeiro caso,
estão na órbita desua decisão.
a "organização" é meio de massificação; no segundo, de liberüção-

lg8 l Paul.o FnziKZ PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I I99


l

que a verdadeira organização não possa ser estimulada pelos Se as massas associam à sua emersão, à sua presença no
dominadores. Isto é tarefa da liderança revolucionária. processo, sobre sua realidade, então sua ameaça se concre-
Acontece, porém, que grandes frações destasmassaspo- tiza na revolução.
pulares,já agora constituindo um proletariado urbano, so- Chame-se a este pensar certo de "consciência revolucio-
bretudo nos centros mais industrializados do país, ainda que nária" ou de "consciência de classe", é indispensável à revo-
revelando uma ou outra inquietação ameaçadora, carentes, lução, que não se Eazsem ele
contudo, de uma consciênciarevolucionária, se veem a si As elites dominadoras sabem tão bem disto que: em cer-
l mesmas como privilegiadas. tos níveis seus,até instintivamente, usam todos os meios,
l A manipulação, com toda a sua série de engodos e promes- mesmo aviolência física, para proibir que asmassaspensem.
Têm uma profunda intuição da força criticizante do
sas,encontra aí, quase sempre, um bom terreno para vingar.
O antídoto a esta manipulação está na oganização criti- diálogo. Enquanto quem:paraalguns representantes da li-
}'
camente consciente, cujo ponto de partida, por isto mesmo, derança revolucionária, o diálogo com as massaslhes dá
não estáem depositar nelas o conteúdo revolucionário, mas a impressão de ser um quefazer "burguês e reacionário",
na p70bZematízação de sua posição no processo. Na probZelnta- para os burgueses, o diálogo entre as massas e a liderança
tização da realidade nacional c da própria manipulação. revolucionária é uma real ameaça,que há de ser evitada.
Bem razãotemWcHorti lzquandodiz: 'Ttxla políücade esquer' Insistindo aselites dominadoras na manipulação, vão ino-
da se apoia nas massaspopulans e depende de sua consciênda. culando nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal.
Sevier a confundi-la, perderá as raízes,pairará no ar à esperada Esta manipulação se faz ora diretamente por estaselites,
queda inevitável, ainda quando possa ter, como no caso brasi- ora indiretamente, através dos líderes populistaspEstes lí-
leiro, a alusãode fmer a rwolução pelo simples giro à volta do deres, como salienta Weaort, medeiam as relações entre as
poder" e, esquecendo-se dos seus encontros com as massas para elites oligárquicas e as massaspopulares.
o eúorço de organização, perdem-se num "diálogo" impossível Daí que o populismo se constitua, como estilo de ação
com as elites dominadoras.Daí que também terminem mani- política, exatamente quando se instala o processo de emer-
puladas por estaselites de que nsulta caÜ não raramente, num são das massas em que elas passam a reivindicar sua partici-
jogo puramente de cúpula, que chamam de realismo. pação, mesmo que ingenuamente.
A manipulação, na teoria da açãoantidialógica, tal como O líder populista, que emerge neste processo, é também
a conquista a que serve, tem de anestesiar asmassaspopula- um ser ambíguo. Precisamente porque fica entre as massas
res para que nao pensem. e as oligarquias dominantes, ele é como se fosse um ser an-

l lz Francisco Weüort, "Política de massas", in Política e rwolição social lto Brada.


fíbio. Vive na "terra" e na "água". Seu estarentreoligarquias
Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1965,p. 187. dominadoras e massas Ihe deixa marcas das duas.

200 I PAULO FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 201

H
.}

Enquanto populista, porém, na medida em que simples- está desarmado de leis e de elementos concretos de ação ime-
mente manipula em lugar de lutar pela verdadeira organi- diata para a defesa da economia do povo. É preciso, pois, que
zação popular, este tipo de líder em pouco ou quase nada o povo se orEattíze,não só para defender seus próprios inte-
serve àrevolução. resses,mas também para dar ao governo o ponto de apoio
Somente quando o líder populista supera o seu cará- indispensável à realização dos seus propósitos." E prossegue:
l ter ambíguo e a natureza dual de sua ação e opta decidi- 'Preciso de vossa tlníão, preciso de que vos orgattízeissolida-
l damente pelas massas,deixando assim de ser populista, riamente em sindicatos;predso que Éormeisum bZocojorte e
renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolu- coesoao lado do governo para que este possa dispor de toda
ã
cionário de organização.Neste momento, em lugar de a corça de que necessita para resolver os vossos próprios pro-
E mediador entre massase elites,;é contradição destas,o blemas. Preciso de vossa lÍBido para que possa lutar contra os
que leva as elites a arregimentar-se para freá-lo tão rapi- sabotadotes,
para que não fique lJrísí07tei70
dos interessesdos
damente quanto possam. espemZadotese dosgamttdososem prejuízo dos interessesdo
É interessante observar a dramaticidade com que cargas povo". E, com a mesma ênfase:"Chegou, por isto mesmo,
falou às massasobreiras,num primeiro de maio de suaúlti- a hora do governo apelar para os trabalhadores e dizer-lhes:
ma etapa de governo, conclamando-as a unir-se. uni-vos todos nos vossos sindicatos, como corçaslivres e or-
'Quero dizer-vos, todavia (afirmou cargas no célebre ganizadas.Na hora presentenenhum governo poderásabsistír
discurso), que a obra gigantesca de renovação, que o meu otl dispor dejorça st!/icímte para a.ssaa.srealizaçõessetzãocorar
governo está começando a empreender, não pode ser le- com o apoio das alga?tízações operária."in
vada a bom termo sem o apoio dos trabalhadores e a sua Ao apelar veementemente às massas para que se orga-
}
cooperação cotidiana e decidida." Após referir-se aos pri- nizassem, para que se unissem na reivindicação de seus di-
meiros noventa dias de seu governo, ao que chamava "de reitos e ao dizer-lhes, com a autoridade de chefe de Estado,
um balanço das dificuldades e dos obstáculos que, daqui e dos obstáculos, dos freios, das dificuldades inúmeras para
dali, se estão levando contra a ação governamental", dizia realizar um governo com elas, foi indo, daí em diante, o seu
11

em linguagem diretíssima ao povo o quanto ]he calavam governo, aos francos e barrancos até o desfechotrágico de
'na alma o desamparo, a miséria, a carestia de vida, os agosto de 1954.
l salários baixos... os desesperos dos desvalidos da fortuna Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de
e as reivindicações do povo que vive na esperança de me- governo,uma inclinaçãotão ostensivaà organizaçãodas
l lhores dias'
Em seguida,seu apelo se vai fazendo mais dramático e ii3 Getúlio Vergas, em discurso pronunciado no Estádio C.R. Visco da Gama
em I' de maio de 1951,in Ogovemotrabalhistano Brmíl. Rio deJaneiro:Livraria
objetivo: "Venho dizer que, neste momento, o governo ainda José Olympio Editora, p 322-4.(Os grifos são nossos.)

Z02 I PAUL.O FREIRA PEDAGOGIA DO OPNMIDO I 203

i
massas populares, consequentemente ligada a uma série Invasão cultural
de medidas que tomou no sentido da defesa dos interesses
nacionais, possivelmente aselites reacionárias não tivessem Finalmente'jsurpreendemos na teoria da ação antidialógica
chegado ao extremo a que chegaram. uma outra característica fundamental -- a invasão cultural
Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, que, como as duas anteriores, serve à conquista.
ainda que discretamente, das massaspopulares, não mais Desrespeitando aspotencialidades do ser a que condicio-
como exclusivo mediador das oligarquias, se estasdispõem na, a invasão cu]tura] é a penetração que fazem os invasores
E de força para frei-lo. no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua vi-
Enquanto aaçãodo líder semantém no domínio dasforças sãodo mundo, enquanto lhes leiam a criatividade, ao ini-
paternalistas e sua extensão assistencialista,pode haver diver- birem sua expansão.
gênciasacidentais entre ele e grupos oligárquicos feridos em Neste sentido, a invasão cu]tura], indiscutivelmente alie-
seusinteresses,dificilmente, porém, diferençasprofundas. nante. realizada maciamente ou não, é sempre uma violên-
É'que estas formas assistencialistas,como instru- cia ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade
mento da manipulação, servem à conquista. Funcionam ou se vê ameaçado de perdê-la.
}
como anestésico.Distraem as massaspopulares quan- Por isto é que, na invasão cultural, como de resto em to-
}

K to às causas verdadeiras de seus problemas, bem como das as modahdadcs da ação antidialógica, os invasores são os
quanto à solução concreta destesproblemas. Fracionam autores e os amoresdo processo, seu sujeito; os invadidos, seus
as massaspopulares em grupos de indivíduos com a es- objetos. Os invasoresmodelam; os invadidos são modelados.
perança de receber mais. Os invasons optam; os invadidos seguem sua opção. Pelo me-
Há, contudo, em toda esta assistencializaçãomanipula- nos ê esta a expectativa daqueles. Os invasores atuam; os in-
dora, um momento de positividade. vadidos têm a ilusão de que amuam,na atuação dos invasores.
Ê que os grupos assistidosvão sempre querendo inde- A invasãocu]tura] tem uma dupla face.De um lado, éjá
finidamente mais e os indivíduos não assistidos,vendo o dominação; de outro, é tática de dominação.
exemplo dos que o são,passama inquietar-se por serem as- Na vaidade, toda dominação implica uma invasão,não ape-
sistidos também. nas única, visível, mas às vezescamuflada, em que o invasor se
E, como não podem as elites dominadoras assistencializar apresentacomo se posseo amigo que ajuda. No fundo, invasão é
a todos, terminam por aumentar a inquietação dasmassas. uma forma de dominar económica e culturalmente o invadido.

A liderança revolucionária deveria aproveitar a contradi- Invasão realizada por uma sociedade matriz, metropolita-
ção da manipulação, problematizando-a às massaspopula- na, numa sociedade dependente, ou invasão implícita na do-
res, com o objetivo de sua organização. minação de uma dasse sobre a outra, numa mesma sociedade.

za4 l PxuLOFREIO PEDAGOGIA DOOPNMIDO I 205

Ê
Como manifestação da conquista, a invasão Cu]tura] cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer
conduz à inautenticidade do ser dos invadidos. O seu pro- com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, fa-
grama responde ao quadro valorativo de seus atorcs, a seus lar a seu modo.
padrões, a suasfinalidades. O eu social dos invadidos, que, como todo eu social, se
Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz constitui nas relações socioculturais que se dão na estrutu-
antidialógica e ideológica, jamais possa scr deita através da ra, é tão dual quanto o ser da cultura invadida.
problematização da realidade e dos próprios conteúdos pro- É esta dualidade, já várias vezes referida, que explica os
gramáticos dos invadidos. invadidos e dominados, em certo momento de suaexperiên-
Aos invasores,na sua ânsia de dominar, dc amoldar os cia existencial, como um m quase "aderido" ao ta opressor.
invadidos a seus padrões, a seus modos de vida, só interessa É preciso que o eu oprimido rompa estaquase"aderên-
saber como pensam os invadidos seu próprio mundo para cia" ao tK opressor, dele "afastando-se", para obetívá-Zo,so-
domina-los mais.i'4
mente quando se reconhece criticamente em contradição
E importante, na invasãocu]tura], que os invadidos ve- com aquele.
jam a sua realidade com a ética dos invasorese não com Esta mudança qualitativa da percepção do mundo, que
a sua.Quanto mais mimetizados fiquem os invadidos, me-
!

não se realiza cora da praxis, não pode jamais ser estimulada


lhor para a estabilidade dos invasores. pelos opressores,como um objetivo de sua teoria da ação.
Uma condição básica ao êxito da invasão cu]tura] é o

B conhecimento por parte dos invadidos de suainferioridade


intrínseca.
Pelo contrário, a manutenção do status qao é o que lhes
interessa,na medida em que a mudança na percepçãodo
mundo, que implica, neste caso, a inserção crítica na reali-
Como não há nada que não tenha seu contrário, na me- dade, os ameaça. Daí a invasão cultural como característica
dida em que os invadidos vão reconhecendo-se "inferiores"
da ação antidialógica.
necessariamente irão reconhecendo a "superioridade" dos
Há, contudo, um aspectoque nos parece.importante
invasores. Os valores destespassama ser a pauta dos inva-
salientar na análiseque estamos fazendo da ação antidia-
didos. Quanto mais se acentua a invasão, alicnando o ser da
lógica. É que esta, enquanto modalidade de ação cultural
n4 Para este fim, os invasons se servem, cada vez mais, das ciências modaisc da
tecnologia, comojá agora dasciênciasnaturais.' de caráter dominador, nem sempre é exercidadelibera-
E que a invasão,na medida cm que é ação cultural, cujo caráter induzido damente. Em verdade, muitas vezes os seus agentes são
permanece como sua conotação essencialinão pode prescindir do auxílio das igualmente homens dominados, "sobredeterminados" pela
ciências e da tecnologia com que os invasoKS melhor amuam. Para eles se Eaz
indispensável o conhecimento do passado e do presente dos invadidos, através
própria cultura da opressão.'is
do qual possam determinar as altemativas de seu futuro c, assim, tentar a sua
''s A propósito de diabética da sobredetcrminação, cf. Louis Althusser, PoKr
condução no sentido dc seus interesses.
Mam. Pauis:Maspero, 1967.

206 I PAULO FREIRA


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I 207
Com efeito, na medida em que uma estrutura social se objetivas que geram uma c outra, quer nos lares, nas re-
denota como estrutura rígida, de feição dominadorafas ins- lações pais-61hos,no clima desamoroso c opressor,como
tituições Eormadoras que nela se constituem estarão, neces- amoroso c livre, quer no contexto sociocultural.
sariamentel"marcadaspor seu clima, veiculando seus mitos Crianças deformadas num ambiente de desamor, opres-
e orientando sua ação no estilo próprio da estrutura.
sivo, &ustradas na sua potência, como diria Fromm, se não
l Os lares e as escolas,primárias, médias e universitá-
conseguem, na juventude, endereçar-se no sentido da re-
has, que não existem no ar, mas no tempo e no espaço, belião autêntica, ou se acomodam numa demissãototal do
não podem escapar às influências das condições obÜetivas
seu querer, alienados à autoridade e aos mitos de que lança
estruturais. Funcionam, em grande medida, nas estrutu-
mão esta autoridade para 6ormá-las, ou poderão vir a assu-'
ras dominadoras, como agências Éormadoras de futuros
invasores mir formas de ação destrutiva.
Esta influência do ]ar se alonga na experiência da escola.
As relações pais-fUhos,nos lares, refletem, de modo ge-
Nela, os educandos cedo descobrem que, como no lar, para
ral, as condições objetivo-culturais da totalidade de que
conquistar alguma satisfação, têm de adaptar-se aos pre-
participam. E, se estassão condições autoritárias, rígidas,
ceitos verticalmente estabelecidos. E um destes preceitos
dominadoras, penetram os lares, que incrementam o clima
é não pensar.
da opressão.'-'
Introjetando a autoridade paterna através de um tipo
Quanto mais se desenvolvem estas relações de feição au-
rígido de relações, que a escola enfatiza, sua tendência,
toritária entre pais e fUhos,tanto mais vão os filhos, na sua
quando se fazem profissionais, pelo próprio medo da liber-
infância, introjetando a autoridade paterna..
Discutindo, com a clareza que o caracteriza, o proble- dade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos em
ma da necrofUiae da biomia, Fromm analisa as condições que se deformaram.
Isto, associado à sua posição classista, talvez explique
l ió O autoritarismo dos pais e dos mestres se desvelo cada vez mais aosjovens
como antagonismo à sua liberdade. Cada vez mais, por isto mesmo, a juven- a adesãode grande número de profissionais a uma ação
tude vem se opondo às formas de ação que minimizam sua expressividadee antidialógica. ' ''
obstaculizam sua afirmação. Esta, que é uma das manifestações positivas que Qualquer que seja a especialidadeque tenham e que os
observamos hoje, não existepor acaso. No fundo, é um sintoma daquele clima
ponha em relação com o povo, sua convicção quaseinaba-
histórico ao qual fizemos referênciano primeiro capitulo desteensaio, como
caracterizador de nossaépoca, como uma época antropológica. Por isto é que lável é a de que lhes cabe "transferir", 'levar", ou "entregar'
l a reação da juventude não pode ser vista a não. ser interessadamente, como ao povo os seus conhecimentos, as suas técnicas.
simples indício das divergências geracionais que em todas as épocas houve e há.
Na verdade, há algo mais profundo. Na sua rebelião, o que a juventude denun- iiz Tãvez explique também a anüdialogicidade daquelesque, embora convencidos
cia e condena é o modelo injusto da sociedadedominadora. ;Esta rebelião, con' de suaopção revolucionária, concluam, contudo, descrentesdo povo, temendo a
tudo, com o caráter que tem, é muito recente. O caráter autoritário perdura. comunhão com ele. E que, sem o perceber, ainda mantêm dentro de si o opressor.
Na verdade, temem a liberdade, na medida em que hospedam o "senhor'

208 I PAULO FREIRA


PEDAGOGIADO OPNMIDO I 209
Veem-se,a si mesmos,como os promotoresdo povo. Sentem a necessidade de renunciar à ação invasora,
Os programas da sua ação, como qualquer bom teórico da mas os padrões dominadores estão de tal forma metidos
ação opressora indicaria, involucram as suas finalidades, as 'dentro" deles, que esta renúncia é uma espécie de morrer
suas convicções, os seus anseios. um pouco.
Não há que ouvir o povo para nada, pois que, "incapaze Renunciar ao ato invasor significa, de certa maneira, su-
inculto, precisa ser educado por eles para sair da indolência perar a dualidade em que se encontram -- dominadospor
que provoca o subdesenvolvimento' um lado; dominadores, por outro.
Para eles, a.,'incultura do povo é tal 'que lhes' parece um Significarenunciar a todos os mitos de qüe se nutre a
absurdo falar da necessidadede respeitar a 'Visão do mun- ação invasora e existenciar uma ação dialógica. Significa,
do' que ele estejatendo. Visão do mundo têm apenasos por isto mesmo, deixar de estar sobreou "dentro", como
profissionais' 'estrangeiros", para estar com,como companheiros.
Da mesma forma, absurda lhes parece a afirmação de O "medo da liberdade", então, neles se instala. Duran-
que é indispensável ouvir o povo para a organização do con-
B te todo esseprocesso traumático, sua tendência é, natural-
teúdo programático da ação educativa. É que, para eles, "a mente, racionalizar o medo, com uma série de evasivas.
ignorância absoluta" do povo não Ihe permite outra coisa Este ':medo da liberdade", em técnicos que não chega-
senão receber os seus ensinamentos. ram sequer a fazer a descoberta de sua ação invasora, é
Quando, porém, os invadidos, em certo momento de sua maior ainda, quando se lhes fala do sentido desumanizan-
experiência existencial, começam, desta ou daquela forma, a re- te desta ação.
cusar a invasãoa que, em outro momento, se poderiam haver Não são raras as vezes,nos cursos de capacitação,sobre-
adaptado,parajustMcar o seu6acasso,fiam na "inferioridade' tudo no momento da "descodificação'lde situações concre-
dos invadidos, porque "preguiçosos", porque "doentes", por- tas feita pelos participantes, em que, irritados, perguntam
que "mal-agradecidos" c às vezes, também, porque "mestiços'; ao coordenador da discussão: 'Aonde, afinal, o senhor quer
Os bem-intencionados, isto é, aqueles que usam a "inva- nos levar?" Na verdade, o coordenador não está querendo
são" não como ideologia, mas pelas deformações a que nos conduzi-los. Ocorre simplesmente que, ao problematizar-
referimos páginas atrás, terminam por descobrir, em suas Ihes uma situação concreta, eles começam a perceber que,
experiências, que certos Racassosdc sua ação não se devem se a análise desta situação se vai aprofundando, terão de
a uma inferioridade natural dos homens simples do povo, desnudar-sede seusmitos, ou afirma-los.
mas à violência de seu ato invasor. Desnudar-se de seus mitos e renunciar a eles, no momen-
Este, de modo geral, é um momento diflciLpor que pas- to, são uma "violência" contra si mesmos,?'praticada por
sam.algunsdos que íàzem tal descoberta. eles próprios. Afirma-los é revelar-se.A única saída,como
11
nO I PAULO FREIRA
l PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 211
mecanismo de defesa também, é transferir ao coordenador Em ambos os casos, é a cultura da classe dominante obs-
o que é a prática normal: condazír, conqaístar, í7tvadír,' '; como taculizando a afirmação dos homens como seresda decisão.
manifestação de sua antidialogicidade. No fundo, nem os profissionais a' que nos referimos,
Esta mesma fuga acontece, ainda que em escalamenor, en- nem os participantes da discussão citada num bairro pobre
tre homensdo povo, na proporção em que a situação concreta de Nova York estão falando e aquando por si mesmos, como
de opressãoos esmaga e sua "assistencialização" os domestica. amoresdo processo histórico.
Uma daseducadorasdo FuloCircle,'de Nova York, insti- Nem uns nem outros são teóricos ou ideólogos da do-
tuição que realiza um trabalho educativo de real valor, nos minação. Pelo contrário, são efeitos que se fazem tambêm
relatou o seguinte caso:ao problematizar uma situaçãoco- causa da dominação.
dificada a um dos grupos das áreaspobres de Nova York que Esteé um dos sérios problemas que a revolução tem de
mostrava, na esquina de uma rua -- a rua mesma em que se enRentar na etapa em que chega ao poder.
fazia a reunião --, uma grande quantidade de lixo, disse ime- Etapaque, exigindo de sualiderança um máximo de sa-

&. diatamente um dos participantes: "Vejo uma rua da Áftica


ou da América Latina'
bedoria políticas de decisãoe de coragem, exige, por tudo
isto, o equilíbrio suficiente para não se deixar cair em posi-
"E por que não de Nova York?", perguntou a educadora. ções irracionalmente sectárias.
'Porque, afirmou, somos os Estados Unidos e aqui não É que, indiscutivelmente,os profissionais,de forma-
pode haver isto.' ção universitária ou não, de quaisquer especialidades,
Indubitavelmente, estehomem e alguns de seuscompa- são homens que estiveram sob a "sobredeterminação" de
nheiros, que .com ele concordavam, com uma indiscutível uma cultura de dominação, que os constituiu como seres
'manhada consciência",fugiam a uma realidadeque os duais. Poderiam, inclusive, ter vindo das classespopula-
ofendia e cujo reconhecimento até os ameaçava. res, e a deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior.
Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxi- Estes profissionais, contudo, são necessáriosà reorgani-
to e do sucesso pessoal, reconhecer-se numa situação ob- zaçãoda nova sociedade.E, como grande número entre
jetiva desfavorável para uma consciência alienada é arear a eles, mesmo tocados do "medo da liberdade" e refutando
própria possibilidade do êxito. em aderir a uma ação libertadora, em verdade são mais
Quer neste, quer no caso dos profissionais, se encontra
equivocados que outra coisa, nos parece que não só pode-
patente a força "sobredeterminante" da cultura em que se
riam, mas deveriam ser reeducados pela revolução.
desenvolvem os mitos que os homens intrometam.
l Isto exige da revolução no poder que, prolongando o que
lis Cf. Paulo Freio, JExtemlóno comunüacfón?
ICIRA, Santiagodo Child, 1969
[ExtmsãoOHcomKttícação?,
trad. Rosjska Darcy de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz antes 6oi ação cultural dialógica, instaure a "revolução cultu-
e Terra, 1971]. ral". Desta maneira, o poder revolucionário, conscientizado

212 I PAUL.O FMIRE PEDAGOGIA DO OPNMIDO I 213


e conscientizador,
não apenasé um poder, mas um ltovo e tecnologia, na sociedade revolucionária, devem estar a
poder; um poder que não é só freio necessário aos que pre- serviço de sua libertação permanente, de sua humanização.
tendiam continuar negando os homens, mas também um Desde esse ponto de vista, a formação dos homens, para
co?tütevalente a todos os que queiram participar da recons- qualquer quefazer, uma vez que nenhum deles se pode dar
trução da sociedade. a não ser no tempo e no espaço, esta a exigir a compreen'
Neste sentido é que a "revolução cultural" é a continua- são:a) da cultura como superestruturae, não obstante,
ção necessáriada ação cultural dialógica que deve ser reali- capaz de manter na infraestrutura, revolucionariamente
zada no processo anterior à chegada ao poder. transformando-se, "Sobrevivências" do passado;''' e b) do
A "revoluçãocultural" toma a sociedadeem reconstru- quefazer mesmo, como instrumento da transformação da
ção em sua totalidade, nos múltiplos quefazeresdos ho- cultura.
mens, como campo de sua açãoformadora. Na medida em que a conscientização,na e pela "revo-
A reconstrução da sociedade,que não se pode fazer me- lução cultural", se vai aprofundando na praxis criadora da
canicistamente, tem, na cultura que culturalmente se refaz, sociedade nova, os homens vão desvelando as razões do
por meio desta revolução, o seu instrumento fundamental. permanecer das "sobrevivências" míticas, no fundo, realida-
Como a entendemos,a "revolução cultural" é o máximo des,forjadas na velha sociedade.
de esforço de conscientização possível que deve desenvolver Mais rapidamente, então, poderão libertar-se destes
o poder revolucionário, com o qual atinja a todos, não im- espectros que são sempre um sério problema a toda re-
Ê. porta qual seja a sua tarefa a cumprir
Por isto mesmo é que este esforço não se pode conten-
volução, enquanto obstaculizam a edificação da nova
sociedade.
tar com a formação tecnicista dos técnicos, nem cientificista Através destas "sobrevivências" a sociedade opressora
[
dos cientistas, necessáriosà nova sociedade. Esta não pode continua "invadindo" c, agora, .'invadindo" a própria socie-
distinguir-se, qualitativamente, da outra(o que não se faz dade revolucionária.
repentinamente, como pensam os mecanicistas em sua in- Esta é, porém, uma terrível "invasão", porque não é feita
genuidade), de forma parcial. diretamente pela velha elite dominadora que se reorgani-
Não é possível à sociedade revolucionária atribuir à tec- zassepara tal, mas pelos homens que, inclusive, tomaram
nologia as mesmas finalidades que Ihe eram atribuídas pela parte na revolução.
sociedadeanterior. Consequentemente,nelas varia, igual- Hospedeiros" do opressor, resistem como se fossem
mente, a formação dos homens. este a medidas básicas que devem ser tomadas pelo poder
Neste sentido, a formação técnico-científica não é anta- revolucionário.

gõnica à formação humanista dos homens, desdeque ciência n9 Cf. L. Althusser, op- cit

2Ü I PÂULO FMIRE PEDAGOGIA DO OPNMIDO I 215


Como seresduais,porém, aceitam também, ainda em visão do mundo na outra. A "superioridade" do invasor.
função das "sobrevivências",o poder que se burocratiza e A "inferioridade" do invadido. A imposição de critérios. A
violentamente os reprime. posse do invadido. O medo de perdê-lo.
Este poder burocrático, violentamente repressivos'por A invasãocultural implica ainda, por tudo isto, que o
sua vez, pode ser explicado através do que Althusser' :' cha- ponto de.decisão da ação dos invadidos está fora deles e nos
ma de,"reativação de elementos antigos", toda vez que dominadores invasores.E, enquanto a decisãonão estáem
circunstâncias especiaiso favoreçam, na nova sociedade:' quem devedecidir, mas fora dele, este apenastem a ilusão
Por tudo isto é que defendemos o processo revolucionário de que decide.
!
como açãocultural dialógica que se prolongue em "revolu- Esta é a razão por que não pode haver desenvolvimento so-
t ção cultural" com a chegadaao poder. E, em ambas,o esfor- cioeconómico em nenhuma sociedadedual, reflexa, invadida.
ço sério e profundo da conscientização, com que os homens, É que, para haver desenvolvimento, é necessário: 1) que
através de uma praxis verdadeira, superam o estado de abe- haja um movimento de busca, de criatividade, que tenha,
tos,como dominados, e assumem o de sdeíto da História. no ser mesmo que o faz, o seu ponto de decisão; 2) que esse
Na revolução cultural, finalmente, a revolução, :desen- movimento se dê não só no espaço,mas no tempo próprio
volvendo a prática do diálogo permanente entre liderança e do ser,do qual tenha consciência.
povo, consolida a participação deste no poder. Daí que, se todo desenvolvimento é transformação, nem
Desta forma, na medida em que ambos --: liderança e toda transformação é desenvolvimento.
povo -- se vão criticizando, vai a revolução defendendo-se A transformação que se processa no ser de uma semen-
Í mais facilmente dos riscos dos burocratismos que implicam te que, em condiçõesfavoráveis,germina e nasce,não é
desenvolvimento.
novas formas de opressãoe de "invasão", que são sempre
as mesmas. Seja o invasor um agrõnómo extensionista -- Do mesmo modo, a transformação do ser de um animal
numa sociedadeburguesa ou numa sociedade revolucioná- não é desenvolvimento. Ambos se transformam determi-
ria --, um investigador social, um economista, um sanitaris- nados pela espécie a que pertencem e num tempo que não
ta, um religioso, um educadorpopular, um assistentesocial lhes pertence, pois que é tempo dos homens.
ou um revolucionário, que assimse contradiz. Estes, entre os seresinconclusos, são os únicos9quese
A invasãocultural, que serve à conquista e à manuten- desenvolvem. Como seres históricos, como "seres para si",
ção da opressão,implica sempre a visão focal da realidade, autobiográficos, sua transformação, que é desenvolvimen-
a percepçãodestacomo estática,a superposiçãode uma to, se dá no tempo que é seu,nunca fora dele.
Esta é a razão pela qual, submetidos a condições con-
lzo Considerando esta questão, diz Althusser: Cale réactívdtíoit seraÍt pruprmmt
ímcowcvubk
dam dükaiqae d4o rwe pies rdéterm tdt Olt.Op. cit., p. 116. cretas de opressão em que se alienam, transformados em

n6 I PAULO FMIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 217
'serespara outro" do falso "ser para si" de quem dependem, expressara verdade, bem como os que se centram no es-
os homens também já não se desenvolvem autenticamente. tudo de sua renda bruta. Parece-nosque o critério básico,
E que, assimroubados na sua decisão,que se encontra no primordial, está em sabermos se a sociedade é ou não um
ser dominador, seguem suasprescrições. "ser para si". Se não é, todos estes critérios indicarão sua
Os oprimidos só começam a desenvolver-sequando, supe- modernização, mas não seu desenvolvimento.
rando a contradição em que se acham, se fazem "serespara si' A contradição principal das sociedades duais é, realmen-
Se,agora,analisamosuma sociedadetambém como ser,pa- te, esta -: a das relações de dependência que se estabelecem
rece-nos condudente que, somente como sociedade "ser para entre elas e a sociedade metropolitana. Enquanto não supe-
si", sociedade livre, poderá desenvolver-se. ram esta contradição, não são "seres para si" e, não o sendo,
Não é possívelo desenvolvimento de sociedadesduais, não se desenvolvem.
reflexas, invadidas, dependentes da sociedade metropolita- Superadaa contradição, o que antes era mera transformação
na, pois que são sociedades alienadas, cujo ponto de decisão 'assistencializadora"em beneficio, sobretudo, da matriz, se tor-
política, económica e cultural se encontra cora delas -- na na desenvolvimento verdadeiro, em beneficio do "ser para si'
sociedade metropolitana. Esta é que decide dos destinos, Por tudo isto é que as soluçõespuramentereformistas
em última análise, daquelas, que apenas se transformam. que estassociedadestentam, algumas delas chegandoa as-
Como;'seres para outro", a sua transformação interessa sustar e até mesmo a apavorar a faixas mais reacionárias de
precisamente à metrópole. suas elites, não chegam a resolver suas contradições.
Por tudo isto, é preciso não confundir desenvolvimento Quase sempre, senão sempre, estassoluções reformistas
com modernização. Esta, sempre realizada induzidamente, são induzidas pela própr.ia metrópole, como uma respos-
ainda que alcance certas faixas da população da "sociedade ta nova que o processo histórico Ihe impõe, no sentido dc
satélite", no fundo interessa à sociedade metropolitana. manter sua hegemonia.
A sociedadesimplesmente modernizada, mas não desen- É como se a metrópole dissessee não precisa dizer: "faça-
volvida, continua dependentedo centro externo, mesmo mos as reformas, antes que as sociedades dependentes façam
que assuma, por mera delegação, algumas áreas mínimas a revolução'
de decisão. Isto é o que ocorre e ocorrerá com qualquer E, para logra-lo, a sociedademetropolitana não tem outros
sociedadedependente, enquanto dependente. caminhos senão a conquista, a manipulação, a invasão econó-
Estamos convencidos dcinquc, para aÊerirmos se uma mica e cultural(às vezes,militar) da sociedade dependente.
sociedade se desenvolve ou não, devemos ultrapassar os Invasão económica e cultural em que as elites dirigen-
critérios que se fixam na análisedc seus índicespa' capi- tes da sociedade dominada são, em grande medida, puras
ta de ingresso quc, "estatisticados", não chegam sequer a metástases das elites dirigentes da sociedade metropolitana.

218 I PAUL.O FREIRA PEDAGOGIA DOOPRIMIDO I a9


Após estasanálisesem torno da teoria da ação anti- Esta adesão aos oprimidos importa uma caminhada até
eles. Uma comunicação com eles.
dialógica, a que damos caráter puramente aproximativo,
As massaspopulares precisam descobrir-se na liderança
repitamoso que vimos afirmandoem todo o corpo des- emersa e esta nas massas.
te ensaio: a impossibilidade de a liderança revolucionária
usar os mesmos procedimentos antidialógicos de que se No momento em que a liderançaemergecomo tal,
necessariamente se üconstitui como contradição das eli-
servem os opressores para oprimir. Pelo contrário, o cami-
tes dominadoras.
nho desta liderança há de ser o dialógico, o da comunica-
ção, cuja teoria logo mais analisaremos. Contradição objetiva destaselites são tambêm as mas-
Antes, porém, de fazê-lo, discutamos um ponto que nos sasoprimidas, que "comunicam" esta contradição à lide-
rança emersa.
parece de real importância para um maior esclarecimento
de nossasposiçõesl Isto não significa, porém, quejá tenham asmassasalcan-
Queremos referir-nos ao momento de constituição da çado um grau tal de percepção em torno de sua opressão,
liderança revolucionária e algumas de suas consequências de quc resultasse saber-se criticamente em antagonismo
básicas,de caráter histórico e sociológico, para o proces- com aquelas.'':
so revolucionário. Podem estar naquela postura anteriormente referida de
Desde logo, de modo geral;:esta liderança é encarnada 'aderência" ao opressor.

por homens que, desta ou daquela forma, participavam dos É possível,também, em função de certas condiçõeshis-
estratos sociais dos dominadores. tóricas objetivas, que já tenham chegado, senão à visualiza-
Em um dado momento dc sua experiência existen- ção clara de sua opressão, a uma quase "claridade" desta.
cial, em certas condiçõeshistóricas, estes,num ato de Se, no primeiro caso, a sua "aderência" ou "quase aderên-
verdadeira solidariedade (pelo menos assim se deve es- cia" ao opressornão lhes possibilita localiza-lojora delas,'"
perar), renunciam à classeà qual pertencem e aderem no segundo, localizando-o, se reconhecem, em nível crítico,
aos oprimidos. em antagonismo com ele
Seja esta adesão o resultado de uma análise científica da No primeiro, com o opressor "hospedado" nelas, a sua
realidadeou não, ela implicita, quando verdadeira, um ato ambiguidade as faz mais temerosas da liberdade. Apelam
de amor, de real compromisso.':'
para explicaçõesmágicas ou para uma visão falsa de Deus
iz' No capítulo anterior citamos a opinião dc Guevara a este propósito.:Dc
izz Uma coisa são as necessidadesde classe;outra, a "consciência de classe".A
Camelo Torres, disse Germano Guzman: 'IJogou-se inteiro porque entregou
propósito de "consciên;cia d;eclasse", cf G, Lukács, HÍstQireet comcimceíie clmse.
tudo. A cada hora manteve com o povo uma atitude viral dc compromisso,
Paras:Les Éditions de Minuit, 1960.
como sacerdote,como cristão e como revolucionário." Germano Guzman,
!

''; Cf. F. Fanon, op. cit.


Camião, el erra guerHllero. Bogotá: Servidos Especiales de Prensa, 1967, p. 5

220 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 221


#

(estimulada pelos opressores), a quem fatalisticamente porque coirmanadas na mesma representatividade, contra-
transferem a responsabilidade de seu estado de oprimidos.':' dição das elites dominadoras.
Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperança- Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificil-
das,estasmassasdificilmente buscam a sua libertação, em mente se rompe. Continua com a chegada ao poder, em
cujo ato de rebeldia podem ver, inclusive, uma ruptura que as massas realmente sc sentem e sabem que estão.
desobedientecom a vontade de Deus -- uma espéciede Isto não diminui em nada o espírito de luta, a coragem,
F enõentamento indevido com o destino. Daí a necessidade. a capacidadede amar, o arrojo da liderança revolucionária.
que tanto enfatizamos,de problematizá-las
em torno dos A liderança de Fidel Castro e de seuscompanheiros, na épo-
mitos de que a opressão asnutre. ca chamados de "aventuKiros irresponsáveis" por muita gente,
No segundo caso,isto é, quandojá ganharam a "clare- liderança eminentemente dialógica, seidentMcou com asmas-
za" ou uma quase "clareza" da opressão,o que as leva a sassubmetidasa uma brutal violência, a da ditadura de Batista.
localizar o opressorjora delas, aceitam a luta para superar Com isto não queremos aârmar que esta adesãose deu tão
a contradição em que estão. Neste momento, superam a facilmente. Exigiu o testemunho corajoso, a valentia de amar
distância que medeia as objetivas "necessidadesde classe' o povo c por ele sacrificar-se.Exigiu o testemunho da esperan-
da "consciência de classe' ça nunca desfeita de recomeçar após cada desastre, animados
Na primeira hipótese, a liderança revolucionária se pela vitória que, forjada por elescomo povo, não seria apenas
faz, dolorosamente, sem o querer, contradição das massas deles, mas deles e do povo, ou deles enquanto povo.
também. Fidel polarizou pouco a pouco a adesão das massas que,
Na segunda, ao emergir a liderança, recebe a adesão além da objêtiva situação de opressãoem que estavam,já
quase instantânea e simpática das massas,que tende a cres- haviam, de certa maneira, começado, em função da expe-
cer durante o processo da ação revolucionária. riência histórica, a romper sua "aderência" com o opressor.
O caminho, então, que a liderança faz até elas é espon- O seu "afastamento" do opressor estava levando-as a "ob-
taneamente dialógico. Há uma empatia quase imediata en- jetivá-lo", reconhecendo-se, assim, como sua contradição an-
tre asmassase a liderançarevolucionária.O compromisso tagânica. Daí que Fidel jamais se haja deito contradição delas.
entre elas se sela quase repentinamente. Sentem-se ambas, Uma ou outra deserção,uma ou outra traição registradaspor
iz' Em conversacom um sacerdotechileno, de alta responsabilidade intelecmal
Guevara no seu Relatosde h GuerraRevoZacio?ária,em que se
e moral, que esteveno Reciteem 1966,ouvimos dele que "ao visitar, com um refere às muitas adesõestambém, eram de ser esperadas.
colega pernambucano, várias famílias residentes em Mocambos, de condições Desta maneira, a caminhada que faz a liderança revo-
de miséria indiscutível, e ao perguntar-lhes como suportavam viver assim, escu-
tava sempre a mesma resposta: 'Que posso fazer? Deus quer assim, só úe resta
lucionária até as massas,em função de certas condições
conformar:me.' históricas, ou sc realiza horizontalmente, constituindo-se

222 I PAULO FRnRE PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 223


ambasem um só corpo contraditório do opressorou, fa-
zendo-setriangularmente, leva a liderança revolucionária Racionalizando a sua desconfiança,fala na impossibili-
a "habitar" o vértice do triângulo, contradizendo também dade do diálogo com as massas populares antes da chegada
as massaspopulares. ao poder, inscrevendo-se, desta maneira, na teoria antidia-
lógica da ação. Daí que, muitas vezes, tal qual a elite domi-
Esta condição, como já vimos, Ihe é imposta pelo fato
nadora, tente a cone estadas massas,se faça messÍáttÍca,use
de as massaspopulares não terem chegado, ainda, à cri-
a manípuhç:ãoe realize a ínva.sãoCKZtxraZ.
E, por estes cami-
ticidade ou à quase criticidade da realidade opressora.
nhos, caminhos de opressão, ou não faz a revolução ou, se a
Quase nunca, porém, a liderança revolucionária perce- faz,não é verdadeira.
be que está sendo contradição das massas.
O papel da liderança revolucionária, em qualquer cir-
Realmente, é dolorosa esta percepção e, talvez por um
cunstância, mais ainda nesta, está em estudar seriamente,
mecanismo de defesa, ela resista em percebê-lo.
enquanto atua, as razões desta ou daquela atitude de des-
Afinal, não é fáci] à liderança, que emerge por um gesto de
adesãoàsmassasoprimidas, reconhecer-secomo contra- confiança das massase buscar os verdadeiros caminhos pe-
los quais possachegar à comunhão com elas. Comunhão
!
dição exatamente de com quem aderiu.
no sentido de ajúdá-las a que se ajudem na visualização da
Parece-nos este um dado importante para analisar certas
realidade opressora que as faz oprimidas.
formas de comportamento da liderança revolucionária que,
A consciênciadominada existe,dual, ambígua,com seus
mesmo sem o querer, se constitui como contradição das mas-
temores e suas desconfianças.izs
saspopulares, embora não antagânica, comojá o afhmamos.
Em seu diário sobre a luta na Bolívia, o comandan-
+'

A liderança revolucionária precisa, indubitavelmen-


te, da adesão das massaspopulares para a revolução. te Guevara se refere várias vezes à falta de participação
camponesa, afirmando textualmente: La mobiZízacíótt
Na hipótese em que as contradiz, ao buscar esta adesão
M
e ao surpreender nelas um certo alheamento, uma certa campesina es íttexíste tc, salvo elt Zas tardas de ínÚormacíó?t

desconfiança, pode tomar esta desconfiança e aquele alhea- qKe molestamalgo, Feto tto se?tmuy rápidos ttí (fícíenres; Zos
mento como se fossem índicesde uma natural incapacida- podremos anKZar. E em outro momento: Falta completa
de delas.Reduz, então, o que é um momento histórico da de incorporacióH campesí a auttqKe tios van perdtettdo el míe-
consciênciapopular ao que seria deficiência intrínseca das do y se logra Zaadmíracíón de Zescampesímos.
Es ana tarda
massas.E, como precisa de sua adesão à luta para que possa le?ztízy pacÍe7tre.':'
haver revolução, mas desconfia das massas desconfiadas. se
':5 Importante a leitura de Erich Fromm. "The Application of Humanist
deixa tentar pelos mesmos procedimentos que a elite domi- Psychoanaiysis [o Marxist Theory", in Socialist HKnultísm. Anchor Books, 1996;
nadora usa para oprimir. e Reuben Osborn, Àfalxísmo ypsícoaltálísls. Barcelona: Ediciones Península.,1967.
izó EI díodo dc CIK m Bolíüa. México: Siglo XXI, p. 131-52.

2« I PAULO FREIO
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 225
Explicando este medo e estapouca eficiência dos campo- dialógica da ação, os sujeitos se encontram para a transfor-
l
neses,vamos encontrar neles, como consciênciasdomina- mação do mundo em co-laboração.
dasfo seu opressor introjetado. O eu antidialógico, dominador, transforma o ta domina-
As próprias formas comportamentaisdos oprimidos, a do, conquistado, num mero "üto".iz7
sua maneira de estarem sendo, resultante da opressão e que O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o ta
levam o opressor, para mais oprimir, à prática da ação cul- que o constitui. Sabetambém que, constituídopor um ta --
tural que acabamos de analisar, estão a exigir do revolucio- um não eu --, essettl que o constitui seconstitui, por suavez,
nário uma outra teoria da ação. como a, ao ter no seu eu um ta. Desta forma, o m e o tu pas-
O que distingue a liderança revolucionária da elite do- sam a ser, na diabéticadestas relações constitutivas, dois m que
se amem dois eu.
minadora não são apenasseusobjetivos, mas o seu modo
de aduar distinto. Se amuam igualmente os objetivos se Não há, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito
identiâcam. que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lu-
Por esta razão é que afhmamos antes ser tão paradoxal que gar disto, há sujeitos que se encontram para a p70núttcíado
a elite dominadora problematize as relações homens-mundo mundo, para a sua transformação.
aos oprimidos, quanto o é que a liderança revolucionária Se as massas populares dominadas, por todas as con-
não ofaça. siderações já feitas, se acham incapazes, num certo mo-
Entremos, agora, na análise da teoria da ação cultural mento histórico, de atender à sua vocação de ser sujeito,
dialógica, tentando, como no caso anterior, surpreender será pela problematização de sua própria opressão, qae
seus elementos constitutivos. implica sempreKmajorma q aZquerde ardo, que elas pode-
rão fazê-lo.
Isto não significa que, no quefazer dialógico, não haja
A TEORIA DA AÇÃO DIALÓGICA E SUAS CARACTERÍSTICAS: lugar para a liderança revolucionária.
A CO-LABORAÇÃO, A UNIÃO, A ORGANIZAÇÃO. E A SÍNTESE Significa, apenas, que a liderança não é proprietária das
CUIIUjtAL massaspopulares, por mais que a ela se tenha de reconhecer
um papel importante, fundamental, indispensável.
Co-laboração A importância de seu papel, contudo, não Ihe dá o direito
de comandar as massaspopulares, cegamente, para a sualiber-
Enquanto na teoria da açãoantidialógica a conquista, como tação. Se assim fosse, esta liderança repetiria o messianismo
sua primeira característica,implica um sujeito que, con-
quistando o outro, o transforma em quase "coisa", na teoria Cf. Martin Buber, Xoy tú. Buenos vires: Nueva Visión, 1969

U6 I PAULO FREIRA PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 227


salvador das elites dominadoras, ainda que, no seu caso, esti- Daí quc, ao contrário do quc ocorre com a conquista,
na teoria antidialógica da ação, que mitifica a realidade para
vessem tentando a "salvação" das massaspopulares.
manter a dominação, na co-laboração, exigida pela teoria
Mas, nesta hipótese, a libertação ou a "salvação" das
dialógica da ação, os sujeitos dialógicos se voltam sobre a
massaspopulares estaria sendo um presente, uma doação
realidade mediatizadora que, problematizada, os desafia.
a elas,o que romperia o vínculo dia16giboentre a lideran-
A resposta aos desafios da realidade problematizada é já a
ça e elas, convertendo-as de coautoras da ação da liber-
ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, para transforma-la.
tação, em incidência desta ação-
Problematiiar, porém, não é sloganizar,é exercer uma
A co-laboração, como característica da ação dialógica?
análise crítica sobre a realidade problema.
que não pode dar-se a não ser entre sujeitos, ainda que te- Enquanto na teoria antidialógica as massassão objetos
nham níveis distintos de função, portanto, de responsabili-
sobre que incide a açãoda conquista, na teoria da açãodialó-
dade, somente pode realizar-se na comunicação.
gica são sujeitos também a quem cabe conquistar o mundo.
....» O diálogo, que é sempre comunicação, funda a co-labora- Se,no primeiro caso,cada vez mais se alienam, no segundo,
ção. Na teoria da ação dialógica, não há lugar para a cottqiiista
transformam o mundo para a liberdade dos homens.
das massas aos ideais revolucionários, mas para a sua adesão.
Enquanto na teoria da açãoantidialógica a elite domina-
O diálogo não impõe, não manga, não domestica, não
dora mitifica o mundo para melhor dominar, a teoria dialó-
sloganiza.
gica exige o desvelamento do mundo. Se, na miti6cação do
Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza
mundo e dos homens, há um sujeito que mitifica e objetos
ao nadas'Como também não significa deixar de ter o dialó-
que são miti6cados, já não se dá o mesmo no desvelamento
gico uma consciência clara do que quer, dos objetivos com do mundo, que é a sua desmitificação.
os quais se comprometeu.
Aqui, propriamente, ninguém desvelao mundo ao ou-
A liderança revolucionária, comprometida com as mas-
tro e, ainda quando um sujeito inicia o esforço de desvela-
sas oprimidas, tem um compromisso com a liberdade. E, mento aosoutros, é preciso que estesse tornem sujeitos do
precisamenteporque o seu compromisso é com as massas ato de desvelar.
oprimidas, para que se libertem, não pode pretender con- O desvelamento do mundo e de si mesmas, na praxis au-
quista-las, mas conseguir sua adesãopara a libertação. têntica, possibilita às massaspopulares a sua adesão.
Adesãoconqubta(Ünão é adesãoporque é aíietêltciado con- Esta adesão coincide com a confiançaHque as massas
quistado ao conquistador atravésda prescrição deste àquele. popularescomeçama ter em si mesmase na liderança
A adesão verdadeira é a coincidência livre de opções.
revolucionária, quando percebem a sua dedicação, a sua au-
Não pode verificar-se a não ser na intercomunicação dos tenticidade na defesa da libertação dos homens.
homens, mediatizados pela realidade

PEDAGOGIADO OPRIMIDO I 229


zH l PxuioFl
A confiança das massas na liderança implica a conÊança No relato já citado que faz Guevarada luta em Sierra
que esta tenha nelas. Maestra,relato em que a humildade é uma nota constante,
Esta confiança nas massaspopulares oprimidas, porém, se comprovam estas possibilidades, não apenas em deser-
não pode ser uma confiança ingênuaÍ ções da luta, mas na traição mesma à causa.
A liderança há de contar nas potencialidades das massas Algumas vezes,no seu relato, ao reconhecer a necessi-
a quem não pode tratar como objetos de sua ação. Há de dade da punição ao que desertou para manter a coesão e a
confiar em que elas são capazesde se empenhar na busca disciplina do grupo, reconhece também certas razões expli-
de sua libertação, mas há de desconfiar, sempre desconfiar, cativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a mais
da ambiguidade dos homens oprimidos. importante, é a ambiguidadedo ser do desertor.
Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamen- É impressionante, do ponto de vista que defendemos,
te, desconfiar deles enquanto homens, mas descontar do um treçho do relato em que Guevara se refere à sua pre-
opressor "hospedado" neles. sença,não apenascomo guerrilheiro, mas como médi-
Desta maneira, quando Guevara'" chama a atenção ao co, numa comunidade camponesade Sierra Maestra. 'a.li
revolucionário para a "necessidade de desconfiar sempre -- (diz ele) começou a jazer-se cante em nós a consciência
desconfiar do camponês que adere, do guia que indica os da necessidadede uma mudança definitiva na vida do
caminhos, desconfiar até de sua sombra", não está rompen- povo. A ideia da reforma agrária se fez nítida e a comtl-
do a condição fundamental da teoria da ação dialógica. Está tthão com o po?o deixou de ser teoria para converter-se em
sendo, apenas, realista. parte definitiva de nosso ser. A guerrilha e o campesina-
É que a confiança, ainda que básica ao diálogo, não é um to, continua, se iam.@ttdíndo?temasó massa,sem que nin-
a príod deste, mas uma resultante do encontro em que os guém possadizer em que momento se fez intimamente
homens se tornam sujeitos da denúncia do mundo, para a verídico o proclamado ejomos partes do campesinato. SÓ
sua transformação. sei(diz ainda Guevara), no que a mim me respeita, que
Daí que, enquanto os oprimidos sejam mais o opressor aquelas consultas aos camponeses da Sierra converteram
'dentro" deles que eles mesmos, seu medo natural à liber- a decisãoespontâneae algo lírica em ama jorç:a de distinto
dade pode leva-los à denúncia, não da realidade opressora, valor e mais sereia.
mas da liderança revolucionária. Nunca suspeitaram (conclui com humildade) aqueles so-
Por isto mesmo, esta liderança, não podendo ser ingê- fndos e leais povoadores da Sierra Maestra o papel qaedesem-
nua, tem de estar atenta quanto a estaspossibilidades. pmluram comojorhdores de nossa ídeol(agia tevolttd07táTÍd".izo
iz8 Emesro Guevara, Relatosiie Zaguerra rfwlucioaíarta. Buenos Aias: Editora
Nueve 64, 1965. i;' Id., ibid« p. 81.(Os grifos são nossos)

z30 l Pxuto FMIRE PEDAGOGO OOOPR.IX4100 I 231


Observe-sc como Guevara enfatiza a comunhãocom o E, como objeto, a adesãoa que ele também se.refere
não poderia dar-se. No máximo, haveria "aderência" e, com
povo como o momento decisivopara a transformação do
esta,não se faz revolução, mas dominação.
1.:
que era uma "decisãoespontâneae algo lírica: em uma
O que exige a teoria da ação dialógica é que, qualquer
corçade distinto valor e mais serena".'E explicita que, a
que seja o momento da ação revolucionária, ela não pode
partir daquela comtlnltão, os camponeses, ainda que não
prescindir desta comi n tão com as massas populares.
o percebessem, se fizeram "6orjadores" de sua "ideologia
revolucionária' A coma7thão
provoca a co-laboração
que leva liderança e
massas àquela./quão a que se refere o grande líder recente-
Foi assim, no seu diálogo com as massas camponesas,
mente desaparecido. Fusão que só existe se a ação revolu-
que sua praxis revolucionária tomou um sentido deânitivo.
cionária é realmente humana '" poristo, simpática, amorosa,
Mas,o que não expressou Guevara, talvez por sua humilda-
comunicante, humilde, para ser libertadora.
de, é que coram exatamente esta humildade e a sua capaci-
A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para
dade de amar que possibilitaram a sua "comunhão" com o
cria-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida.
povo E esta comunhão, indubitavelmente dialógica, se fez
Não há vida sem morte, como não há morte sem vida,
co-laboração.
mas há também uma "morte em vida" . E a "morte em vida" é
Veja-secomo um líder como Guevara,que não subiu
a Sierra com Fidel e seuscompanheiros à maneira de um exatamente a vida proibida de ser vida.
Acreditamos não ser necessário sequer usar dados es,
jovem frustrado em buscade aventuras,reconheceque a
tatísticos para mostrar quantos, no Brasil e na América
sua "com nltão como povodeixou de ser teoria para conver-
Latina em geral, são "mortos em vida", são "sombras"
ter-se em parte definitiva de seu ser" (no texto: nosso ser).
de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados
Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos
e submetidos"' a uma permanente "guerra invisível" em
da sua e da experiência dos seus companheiros, de falar
'" A propósito da defesado homem dente a "sua morte", "depois da morte dc
de seus encontros com os camponeses"leais e humildes",
Deus", no pensamento anual,cf. Mikael Duftenne, Pnarl.'lmmme.Paria:Éditions
numa linguagem às vezes quase evangélica, este homem du Seuil.1968.
i3i '2\ maioria deles, diz Gerassi, nferindo-se aos camponeses, se vende ou ven-
excepcional revelava uma profunda capacidade de amar e
de membros de sua família para trabalharem como escravos, a fim de escapar à
comunicar-se.Daí a força de seu testemunho tão ardente morte. Um jornal de Belo Horizonte descobriunadamenos de 50 mil vítimas
quanto o deste outro amoroso -- "o sacerdote guerrilhei- (vendidasa CrS 1.500,00),e o repórter, continua Gerassi,para comprova-lo,
ro" --, Camelo Torres. comprou um homem a sua mulher por 30 dólares.'VI muita gente morrer de
fome', explicou o escravo, 'c por isto não me importo de ser vendido'. Quando
Sem aquela comunhão, que gera a verdadeira colabora- um traficante de homens üoi preso em São Paulo, em 1959,confessouseus
ção, o povo teria sido objeto do fazer revolucionário dos cantatas com fazendeiros de São Paulo, donos de caâezaise construtores de
homens da Sierra. edifícios, interessados em sua mercadoria -- exceto, porém, as adolescentes,

232 I PAUIO FREIRE


PEDAGOGIA DOOPNMIDO I 233
que o pouco de vida que lhes resta vai sendo devorado O problema central que se tem nesta,como em qual-
pela tuberculose, pela esquistossomose,pela diarreia in- quer das categorias da ação dialógica, é que nenhuma delas
fantil, por mil enfermidades da miséria, muitas das quais se dá cora da praxis.
a alienação chama de "doenças tropicais' Se, para a elite dominadora, Ihe é fácil, ou pelo menos
Em face de situaçõescomo estas,diz o padre Chenu, não tão difícil, a praxis opressora, já não é o mesmo o que
'[...] muitos, tanto entre os padresconciliarescomo entre se verifica com a liderança revolucionária, ao tentar a praxis
laicos informados, temem que, na consideração das neces- libertadora.
sidades e misérias do mundo, nos atenhamos a uma abjura- Enquanto a primeira conta com os instrumentos do po-
ção comovedora para paliar a miséria e a injustiça em suas der, a segunda se encontra sob a força deste poder.
manifestações e seussintomas, sem que se chegue à análise A primeira se organiza a si mesma livremente e, mesmo
das causas,até à denúncia do regime que segrega estainjus- quando tenha as suasdivisões acidentais e momentâneas,
se unifica rapidamente em face de qualquer ameaçaa seus
tiça e engendra esta miséria".":
interesses fundamentais. A segunda, que não existe sem as
O que dependea teoria dialógica da ação é que a denún-
massaspopulares, na medida em que é contradição antagõ-
cia do "regime que segregaesta injustiça e engendra esta
nica da primeira, tem, nesta mesma condição, o primeiro
miséria" seja feita com suas vítimas a fim de buscar a liberta-
ção dos homens em co-laboração com eles. óbice à sua própria organização.
Seria uma inconsequência da elite dominadora se con-
sentissena organização das massaspopulares oprimidas,
Unir para a libertação
pois que não existe aquela sem a união destasentre si e
Se, na teoria antidialógica da ação, se impõe aos domina- destascom a liderança. Enquanto que, para a elite domi-
dores, necessariamente, a divisão dos oprimidos com que, nadora, a sua unidade interna, que Ihe reforça e organiza o
mais facilmente, se mantém a opressão,na teoria dialógica, poder, implica a divisão das massas populares, para a lide-
pelo contrário, a liderança se obriga ao esforço incansável rança revolucionária, a sua unidade só existe na unidade das
massas entre si e com ela.
da união dos oprimidos entrc si, e deles com ela, para a
libertação. A primeira existe na medida de seu atttagonísmocom as
massas; a segunda, na razão de sua comulthão com elas, que,
que eram vendidasa bordéis."John Gerasse,.A iJtvmão(ü Amédcalatim. Rio dc por isto mesmo, têm de estar unidas e não divididas.
l Janeiro: Civilização Brasileira, 1965,p. 120« A própria situação concreta de opressão,ao dualizar o
llz O.l! Chenu, Temoigltagt'chrétim, abril de 1964. Apud André Maine,
Cristíattosy marmitas desp#ésdel concílio.Buenos Abres: Editorial Arandu,
m do oprimido, ao fazê-lo ambíguo, emocionalmente ins-
1965,P.167 tável, temeroso da liberdade, facilita a ação divisória do

2H I PAULO
FRnM PEDAGOGIA DO OPRIMIOO I 235
l
dominador nas mesmas proporções em que diâculta a ação um conhecimento Caso de si mesmos e dela. É necessário

l
H
uni6cadora indispensável à prática libertadora.
Mais ainda, a situação objetiva de dominação é, em si
mesma, uma situação divisória. Começa por dividir o a
desideologizar.
Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos
não pode ser um trabalho de pura sloganização ideológi-
opr.amidona medida em que, mantendo-o numa posição de
ca. E que este, distorcendo a relação autêntica entre o su-
'aderência" à realidade,que se Ihe afigura como algo todo-
jeito e a realidade objetiva, divide também o colgnoscitívo
poderoso, esmagador, o aliena a entidades estranhas, expli- do afetivo e do atívo que, no fiando, são uma totalidade
cadoras deste poder. não dicotomizável.
Parte de seu m se encontra na realidade a que se acha
O fundamental, realmente, na ação dialógico-libertado-
'aderido", parte fora, na ou nas entidades estranhas, às quais ra, não é "desaderir" os oprimidos de uma realidade mitiâ-
responsabiliza pela corçada realidade objetiva, dente à qual
cada em que se acham divididos, para "aderi-los" a outra.
nada Ihe é possível fazer. Daí que sqa este, igualmente, um
O objetivo da ação dialógica está?pelo contrário, em
m dividido entre o passadoe o presenteiguaise o futuro
proporcionar que os oprimidos, reconhecendoo porquêe o
sem esperançaque, no fundo, não existe. Um m que não
comode sua "aderência", exerçam um ato de adesãoà praxis
se reconhece sendo,por isto que não pode ter, no que ainda
verdadeira de transformação da realidade injusta.
vem, a futuridade que deveconstruir na união com outros.
Significando a união dos oprimidos, a relação solidária
Na medida em que seja capas de romper a ',aderên-
entre eles não importam os níveis reais em que se encon-
cia", objetivando em termos críticos a realidade de que as-
trem como oprimidos, implica também, indiscutivelmente,
sim emerge, se vai uniâcando como a, como sujeito, em consciência de classe.
face do objeto. É que, neste momento, rompendo igual-
A "aderência" àrealidade, contudo, em que seencontram,
mente a falsa unidade do seu ser dividido, se indivídua
verdadeiramente. sobretudo os oprimidos que constituem as grandes massas
camponesas da América Latina, está a exigir que a consciên-
Destamaneira, se,para dividir, é necessáriomanter o m
cia de classeoprimida passe, senão antes, pelo menos conco-
dominado "aderido" à realidade opressora, miti6cando-a,
mitantemente, pela consciênciade homem oprimido.
para o esforço de união, o primeiro passo é a desmitificação
da realidade. Propor a um camponêseuropeu, como um problema,
a sua condição de homem, Ihe parecerá, possivelmente,
Se para manter divididos os oprimidos se faz indispensá- algo estranho.
vel uma ideologia da opressão,para a sua união é imprescin-
Já não é o mesmo fazê-lo a camponeses latino-america-
dível uma forma de açãocu]tura] atravésda qual conheçam
nos, cujo mundo, de modo geral, se "acaba" nas Ê'inteiras
o pmquêe o comode sua "aderência"à realidadeque lhes dá
do latifúndio, cujos gestos repetem, de certa maneira, os

z36 l PKuto FREIRA


PEDAGOGODO OPRIMIDO I 237
animais e as árvores e que,"imersos" no tempo, não raro se mesmo, na realidade, que só estará sendo autenticamente
consideram iguais àqueles. compreendida quando captada na dialeticidade entre a inca
Estamos convencidos de que, para homens de ta] forma e superestrutura.
'aderidos" à natureza e à figura do opressor, é indispensável Paraque os oprimidos se unam entre si, é precisoque
que se percebam como homemproibidos de estarsendo. cortem o cordão umbilical, de caráter mágico e mítico, atra-
A "cultura do silêncio", que se gera na estrutura opres- vésdo qual se encontram ligados ao mundo da opressão.
sora, dentro da qual e sob cuja força condicionante vêm rea- A união entre eles não pode ter a mesma natureza das
}

lizando sua experiência de "quase-coisas", necessariamente suasrelações com essemundo.


os constitui desta forma. Esta é a razão por que, realmente indispensável ao proces-
Descobrirem-se,portanto, atravésde uma modalidade de so revolucionário, a união dos oprimidos exige deste processo
açãocultural, adialógica,problematizadora de si mesmos em que ele seja, desde seu começo, o que deve ser: ação cultural.
t seu enüentamento com o mundo, signiâca, num primeiro Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos
g tnomento, que se descubram como cedro, .António, comJose- oprimidos vai depender da experiência histórica e existen-
Êa,com toda a signi6caçãoprofunda que tem estadescoberta. cial que eles estejam tendo, nesta ou naquela estrutura.
No fundo, elaimplica uma percepçãodistinta da signiâcação Enquanto os camponeses se acham em uma realidade
dos signos.Mundo, homens, cultura, árvore, trabalho, ani- 'fechada", cujo centro decisório da opressão é "singular" e
mal, vão assumindo a signi6cação verdadeira que não tinham. compacto, os oprimidos urbanos se encontram num con-
Reconhecem-se, agora, como seres transformadores da texto "abrindo-se", em que o centro de comando opressor
realidade, para eles antes algo misterioso, e transformado- se faz plural e complexo.
res por meio de seu trabalho criador. No primeiro caso, os dominados se acham sob a decisão
Descobrem que, como homens, já não podem continuar da figura dominadora que encarna,em suapessoa,o siste-
sendo "quase-coisas" possuídas e, da consciência de si como ma opressor mesmo; no segundo, se encontram submeti-
homens oprimidos, vão à consciênciade classeoprimida. : dos a uma espécie de "impessoalidade opressora'
Quando a tentativa de união dos camponesesse faz à Em ambos os casoshá uma certa "invisibilidade" do po-
basede práticas ativistas,que giram em torno de sZogame der opressor. No primeiro, pela sua proximidade aos opri-
não penetram estes aspectos fundamentais, o que se pode midos; no segundo,pela suadiluição.
observar é ajustaposição dos indivíduos, que dá à sua ação As formas de ação cultural, em situações distintas como
um caráter puramente mecanicista. estas,têm, contudo, o mesmo objetivo: aclarar aos oprimi-
A união dos oprimidos é um quefazer que se dá no do- dos a situação objetiva em que estão, que é mediatizadora
mínio do humano e não no dascoisas.Verifica-se,por isto entre eles e os opressores, visível ou não.

238 I PAULO FREIRA PEDAGOGIA DOOPR]MIOO I 239


l
Somente estas formas de ação que se opõem, dc um
mundo que tenham ou estejam tendo as massaspopulares,
lado, aos discursos verbalistas e aos blá-blá-blás inoperantes
da percepçãoclara de qual seja a contradição principal e o
e, de outro, ao ativismo mecanicista,podem opor-se, tam-
principal aspectoda contradição que vive a sociedade,para
bém, à açãodivisória daselites dominadoras e dirigir-se no
se determinar o qKee o como do testemunho.
sentido da unidade dos oprimidos.
Sendo históricas estas dimensões do testemunho, o dia-
lógico, que é diabético,não pode importa-las simplesmente
Organização
de outros contextos sem uma prévia análise do seu. A não
ser assim, absolutiza o relativo e:'miti6cando-o, não pode
Enquanto, na teoria da ação antidialógica, a manipulação,
escapar a alienação.
que serve à conquista, se impõe como condição indispen-
O testemunho, na teoria dialógica da ação, é uma das
sável ao ato dominador, na teoria dialógica da ação, vamos
conotações principais do caráter cultural e pedagógico da
encontrar, como seu oposto antagónico, a oganização das revolução.
massaspopulares.
Entre os elementos constitutivos do testemunho, que
A organização não apenas está diretamente ligada à sua
não variam historicamente, estão a coerênciaentre a palavra
unidade, mas é um desdobramento natural desta unidade
e o ato de quem testemunha, a OKsadía do que testemunha,
das massaspopulares.
que o leva a enfrentar a existência como um risco perma-
Desta forma, ao buscar a unidade, a liderança já busca,
nente;:a radicalização,nunca a sectarização, na opção feita,
igualmente, a organizaçãodas massaspopulares, o que im- que leva não só o que testemunha, mas aquelesa quem dá
plica o testemunho que deve dar a elasde que o esÊorcode o testemunho, cada vez mais à ação. A valentia de amar que,
libertação é uma tarefa comum a ambas.
segundopensamos,já ficou claro não significar a acomoda-
Este testemunho constante, humilde e corajoso do exer- ção ao mundo injusto mas a transformação deste mundo
cício de uma tarefa comum -- a da libertação dos homens para a crescente libertação dos homens. A onça nas massas
-- evita o risco dos dirigismos antidialógicos. populares, uma vez que é a elas que o testemunho se dá,
O que pode variar, em função das condiçõeshistóri- ainda que o testemunho a elas, dentro da totalidade em que
cas de uma dada sociedade,é o modo como testemunha.
estão, em relação dialética com as elites dominadoras, aÊe-
O testemunho em si, porém, é um constituinte da ação te também a estas,que a ele respondem dentro do quadro
revolucionária. normal de sua forma de aturar.
Por isto mesmo é que se impõe a necessidadede um Tk)do testemunho autêntico, por isto crítico, implica ousadia
conhecimento tanto quanto possívelcada vez mais critico de correr riscos -- um deles, o de nem sempre a liderança con-
do momento históiíco em que se dá a ação, da visão do seguir de imediato, das massas populares, a adesão esperada.

«O I PAULO FMIRE
PEOAGOGIA DOOPNMIOO I 241
Um testemunhoque, em certo momento e em certas
condições, não frutificou, não está impossibilitado de, ama-
nhã, vir a &utificar. É que, na medida em que o testemunho
não é um gesto no ar, mas uma ação,um enâentamento,
com o mundo e com os homens, não é estático. .É algo di-
l e coisifica; no segundo, a organização só corresponde à sua
natureza e a seu objetivo se é, em si, prática da liberdade.
Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina in-
dispensávelà organização com a condução pura dasmassas.
«

nâmico, que passaa fazer parte da totalidade do contexto É verdade que, sem liderança, sem disciplina, sem or-
da sociedadeem que se deu. E, daí em diante,já não para.'" dem, sem decisão,sem objetivos, sem tarefas a cumprir e
Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, "anes- contas a prestar, não há organização e, sem esta, se dilui a
tesiando" as massaspopulares, facilita sua dominação, na ação revolucionária. Nada disso, contudo, justifica o mane.
ação dia16gica, a manipulação cede seu lugar à verdadeira jo das massas populares, a sua "coisiâcação'
organização. Assim como, na ação antidialógica, a mani- O objetivo da organização, que é libertador, é negado pela
pulação serve à conquista, na dialógica, o testemunho, 'coisificação" das massaspopulares, se a liderança revolucio-
ousado e amoroso, serve à organização. Esta, por sua vez, nária as manipula. "Coisificadas" já estão elas pela opressão.
não apenas está ligada à união das massas populares como Não é como "coisas", já dissemos, e é bom que mais uma
é um desdobramento natural desta união.
vez digamos, que os.oprimidos se libertam, mas como homens.
Por isto é que afirmamos: ao buscar a união, a liderança A organização das massaspopulares em classeé o
l
já busca, igualmente, a organização dasmassaspopulares. processono qual a liderança revolucionária, tão proibida
E importante, porém, salientar que, na teoria dialógica quanto estas,de dizer sua palavra,';' instaura o aprendiza-
da ação, a organização jamais será a justaposição de indiví- do da pronúHcíado mundo, aprendizadoverdadeiro,'por
duos que, gregarizados, se relacionem mecanicistamente. isto, dialógico.
Este é um risco de que deve estar sempre advertido o Daí que não possa a liderança dizer sua palavra sozinha,
verdadeiro dialógico. mas com o povo- A liderança que assim não proceda,que
Se,para a elite dominadora, a organização é a de si mes- insista em impor sua palavra de ordem, não organiza, mani-
ma, para a liderança revolucionária, a organização é a dela pula o povo. Não liberta, nem se liberta, oprime.
comas massaspopulares.
iJ4 Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, din-
No primeiro caso, organizando-se, a elite dominadora es- tor da Faculdadede Medicina de uma universidade cubana, disse:'A revolução
trutura cadavez mais o seupoder com que melhor domina implica três 'P' --: Pulava, Povoe lblvota. A explosãoda Pólvora, continuou,
l
aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em b:rasca,na
l "' Enquanto processo, o testemunho verdadeiro que, ao ser dado, não íi'u- ação, de sua libertação.
nificou, não tem. neste momento negativo, a absolutização de seu õ'acasso. Pareceu-nosinteressante observar, durante a conversação, como este médico
Conhecidos são os casosde líderes revolucionários cubo testemunho não mor. revolucionário insistia na raiana, no sentido em que a tomamos neste ensaio
reu ao serem mortos pela repressão dos opressores. '\ Isto é, palavra como ação e reflexãc} -- palavra como praxis.

242 I PAULO FREIRA


PEOAGOGIA DO OPRIMIDO I 243
O fato, contudo, de na teoria dialógica, no processo de
organização, não ter a liderança o direito de impor arbitraria-
l Na teoria da ação dialógica, portanto, a organização, im-
plicando autoridade, não pode ser autoritária; implicando
liberdade, não pode ser licenciosa.
mente sua palavra, não signi6ca dever assumir uma posição
Pelo contrário, é o momento altamente pedagógico, em
liberahsta, que levaria as massasoprimidas --- habituadas à
que a liderança e o povo fazemjuntos o aprendizadoda au-
opressão -- a licenciosidades.
toridade e da liberdade verdadeiras que ambos, como um só
A teoria dialógica da ação nega o autoritarismo como
}

corpo, buscam instaurar, com a transformação da realidade


nega a licenciosidade.E, ao fazê-lo, a6rma a autoridade c
que os mediatiza.
aliberdade.
Reconheceque, senão há liberdade sem autoridade, não Síntese cultural
há também esta sem aquela.
A conte geradora, constituinte da autoridade autêntica, está Era todo o corpo deste capítulo se encontra firmado, ora
na hbeíxiadeque, em certo momento se faz autoridade. Toda implícita, ora explicitamente, que toda ação cultural é sem-
libenlade contém em si a possibilidade de vir a ser, em drcuns- pre uma forma sistematizada e deliberada de açãoque incide
tâncias especiais(e em níveis existenciais dúerentes), autoridade.
sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la como
Não podemos olha-las isoladamente,mas em suas rela- estáou mais ou menos como está,ora no de trans6ormá-la.
ções, não necessariamente antagónicas.''s Por isto, como forma de ação deliberada e sistemática,
É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma toda açãocultural, segundovimos, tem sua teoria, que, de:
terminando seus fins, delimita seus métodos.
como tal na pura tralu$mhcü, mas na deZeEação ou na adesão
A ação cultural ou está a serviço da dominação -- cons-
simpática. Se se gera num ato de transferência, ou de impo-
ciente ou inconscientemente por parte de seus agentes --
sição "anui-pática" sobre as maiorias, se degenera em autori-
ou estáa serviço da libertação dos homens.
tarismo que esmaga as liberdades.
An\bas, dialeticamente antagónicas, seprocessam, como
Somente ao existenciar-secomo liberdade que 6oi cons- afirmamos, na e sobre a estrutura social, que se constitui na
tituída em autoridade,pode evitar seu antagonismocom dialeticidade pamanêncía-mada7tça.
as liberdades.
[sto é o que explica que a estrutura social, para sec tenha de
Toda hipertrofia de uma provoca a atro(ia da outra. esMrsePtííoou, em outras palavras:amrsetüo éo modo que tem
Assim como não há autoridade sem liberdade e esta sem
a estrutura social de dKxur,na acepçãoberg$oniana do termo.'3ó
aquela,não há autoritarismo sem negaçãodas liberdadese
n' Na verdade,o que Emque a estrutura seja esuutura socia],portanto, históiico-
licenciosidade sem negação da autoridade. cultural,não é a permanêncianem a mudança,tomadasabsolutamente,mas a
dialetizaçãode ambas. Em ú]üma análise,o quc pemlanece na esüutura social nem éa
ns O antagonismo entre ambas se dá na situação objetiva de opressão ou de
licenciosidade. permanência nem a mudança, mas aduração da dialeücidadepermanênda-mudança.

2« I PAULO FREIRA PEDAGOGIA DOOPNMIDO I 245


O que pretende a ação cultural dialógica, cujas caracte-
rísticas estamos acabando de analisar, não pode ser o desa-
] da ação cultural dialógica, se acha a condição para supe-
rar a indução.
parecimento da dialeticidade permanência-mudança (o que Enquanto na invasão cultural, como já salientamos,os
seria impossível, pois que tal desaparecimento implicaria o atores retiram de seu marco valorativo e ideológico, neces-
desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no sariamente, o conteúdo temático para sua ação,partindo,
dos homens), mas superar as contradições antagónicas de assim,de seu mundo, do qual entram no dos invadidos, na
que resulte a libertação dos homens; síntese cultural, os atores, desde o momento mesmo cm que
Por outro lado, a açãocultural antidialógicapretende chegamao mundo popular, não o fazem como invasores.
mitificar o mundo destascontradiçõespara, assim,evitar E não o fazem como tais porque, ainda que cheguem de
ou obstaculizar, tanto quanto possível, a transformação ra- 'outro mundo", chegam para conhecê-lo com o povo e não
dical da realidade.
para "ensinar", ou transmitir, ou entrqar nada ao povo.
No fundo, o que se achaexplícita ou implicitamente na Enquanto, na invasão cultural, os atires -- que nem se-
ação antidialógica é a intenção de fazer permanecer, na "es- quer necessitam de, pessoalmente, ir ao mundo invadido,
trutura" social, as situações que favorecem seusagentes. sua ação é mediatizada cada vez mais pelos instrumentos
Daí que estes,não aceitandojamais a transformação tecnológicos -- são sempre atores que se superpõem, com
da estrutura, que supere as contradições antagónicas, acei- sua ação, aos espectadores, seus objetos, na síntese cultu-
tem as reformas que não atinjam seu poder de decisão,de ral, os atoresseintegram com os homensdo povo, atores,
que decorre a sua força de prescrever suas finalidades às também, da ação que ambos exercem sobre o mundo.
massas dominadas.
Na invasão cultural, os espectadores e a realidade, que
Este é o motivo por que esta modalidade de ação implica deve ser mantida como está, são a incidência da ação dos
a conquistadas massaspopulares, a sua díüsão, a sua manipa- atires. Na síntese cultural, onde não há espectadores, a rea-
Zaçãoe a invasão c ZraraZ.E é também por isto que é sempre, lidade a ser transformada para a libertação dos homens é a
como um todo, uma açãoíndazída,jamais podendo superar incidência da ação dos atores.
este caráter, que Ihe é fundamental. Isto implica que a síntesecultural ê a modalidade de
Pelo contrário, o que caracteriza, essencialmente, a ação ação com que, culturalmente, se fará frente à força da pró-
cultural dialógica, como um todo também, é a superação pria cultura, enquanto mantenedora dasestruturas ém que
de qualqueraspectoinduzido. se forma.
No objetivo dominador da açãocultural antidialógica Desta maneira, este modo de ação cultural, como ação
se encontra a impossibilidade de superação de seu cará- histórica, se apresenta como instrumento de superação da
ter de açãoinduzida, assimcomo, no objetivo libertador própria cultura alienada e alienante.

%6 I PAULO FREIO
PEDAGOGIAOO OPRIMIDO I 247
Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de
l Por isto é que os invadidos, qualquer que seja o seu nível,
sér também revoluçãocultural. docilmente ultrapassam os modelos que lhes prescrevem
A investigação dos temas geradores ou da temática sig- os invasores.
nificativa do povo, tendo como objetivo fundamental a Como, na síntese cultural, não há invasores, não há mo-
captação dos seus temas básicos, só a partir de cujo conheci- delos impostos, os atores, fazendo da realidade objeto de
mento é possívela organizaçãodo conteúdo programático sua análise crítica, jamais dicotomizada da ação, se vão inse-
para qualquer açãocom ele, se instaura como ponto de par- rindo no processohistórico, como sujeitos.
tida do processoda ação,como síntesecultural. Em lugar de esquemasprescritos,liderançae povo,
Daí que não seja possível dividir, em dois, os momentos identificados, criam juntos as pautas para sua ação. Uma
desteprocesso:o da ínvestllgação taítáticd e o da anãocomo e outro, na síntese, de certa forma renascem num saber e
síntese mZtaraZ.
numa ação novos, que não são apenas o saber e a ação da
Esta dicotomia implicaria que o primeiro seria todo ele liderança, mas dela e do povo. Saber da cultura alienada
um momento em que o povo estariasendo estudado,ana- que, implicando a açãotransformadora, dará lugar à cultu-
lisado, investigado, como objeto passivo dos investigadores, ra que se desaliena.
o que é próprio da ação antidialógica. O saber mais apurado da liderança se refaz no conheci-
Deste modo, esta separaçãoingênua significaria que a mento empírico que o povo tem, enquanto o desteganha
ação, como síntese, partiria da ação como invasão. mais sentido no daquela.
Precisamenteporque, na teoria dialógica, estadivisão não Isto tudo implica que, na síntese cultural, se resolve -- e
se pode dar. a investigação temática tem como sujeitos de seu somente nela -- a contradição entre a visão do mundo da
processo não apenas os investigadores profissionais, mas tam- liderança e a do povo, com o enriquecimento de ambos.
bém os homens do povo, cujo universo temático se busca. A síntesecultural não nega as diferenças entre uma visão
Neste momento primeiro da ação, como síntesecultu-
e outra, pelo contrário, se funda nelas. O que ela nega é a
ral, que é a investigação,sevai constituindo o clima da cria- invasão de uma pela outra. O que ela afirma é o indiscutível
tividade, que já não se deterá, e que tende a desenvolver-se subsídio que uma dá à outra.
nas etapas seguintes da ação. A liderança revolucionária não pode constituir-se cora do
Este clima inexiste na invasão cultural que, alienante, povo, deliberadamente o que a conduz à invasãocultural
amortece o ânimo criador dos invadidos e os deixa, en- inevitável.
quanto não lutam contra ela, desesperançados e temerosos Por isto mesmo é que, ainda quando a liderança, na hi-
de correr o risco de aventurar-se,sem o que não há criati-
pótese referida neste capítulo, por certas condições históri-
vidade autêntica.
cas,aparececomo contradição do povo, seu papel é resolver

«8 I PAULO FREIRA
PEOACOGIA DO OPR]MIOO I 249
esta contradição acidental. Jamais poderá fazê-lo através da ação ao estímulo exdusivo desta reivindicação, ou sobrepor-se
'invasão", que aumentaria a contradição. Não há outro ca- a esta aspiração, propondo algo que está mais além dela. Algo
minho senão a síntese cultural.
que não chegou a ser ainda para o povo um "destacado em si'
Muitos erros e equívocoscomete a liderança ao não levar No primeiro caso,incorreria a liderançarevolucionária
em conta esta coisa tão real, que é a visão do mundo que o povo no que chamamosde adaptaçãoou docilidade à aspiração
tenha ou esteja tendo. Visão do mundo em que se vão encon- popular. No segundo, desrespeitandoa aspiraçãodo povo,
trar explícitos e implícitos os seus anseios, as suas dúvidas, a sua cairia na invasão cultural.
esperança,a sua forma de ver a liderança, a sua percepção de si A solução está na síntese. De um lado, incorporar-se ao
mesmo e do opressor, as suas crenças religiosas, quase sempre povo na aspiraçãoreivindicativa. De outro, plobkmatízaro
sincréticas, o seu fatalismo, a sua reação rebelde. E tudo isto, significado da própria reivindicação.
como já afü'mamos, não pode ser encarado separadamente, Ao íazê-lo, estará problematizando a situação histórica
porque, em interação, se encontra compondo uma totalidade. real, concreta, que, em sua totalidade, tem, na reivindicação
Para o opressor,o conhecimento destatotalidade só Ihe salarial, uma. dimensão.
interessa como ajuda à sua ação invasora, para dominar ou Deste modo, ficará claro que a reivindicação salarial,so-
manter a dominação.Para a liderança revolucionária, o co- zinha, não encarna a solução definitiva. Que esta se encon.
nhecimento desta totalidade Ihe é indispensável à sua ação, tra, como afirmou o bispo Split, no documentojá citado
como síntese cultural.
dos bispos do Terceiro Mundo, em que "se os trabalhadores
Esta, na teoria dialógica da ação, por isto mesmo que não chegam, de alguma maneira, a ser proprietários de seu
é sílttese,não implica que devem ficar os objetivos da ação trabalho, todas as reformas estruturais serão ineficazes
revolucionária amarrados àsaspiraçõescontidas na visão do O fundamental, por isto, insiste o bispo, é que eles de-
mundo do povo. vem chegar a ser "proprietários e não vendedores de seu
Ao ser assim, em nome do respeito à visão popular do trabalho", porque "toda compra ou venda do trabalho é
mundo, respeito que realmente deve haver, terminaria a li- uma espécie de escravidão'
derança revolucionária apassivada àquela visão. Ter a consciênciacrítica de que é preciso ser o proprie-
Nem invasãoda liderança na visão popular do mundo, tário de seu trabalho e de que "este constitui uma parte da
nem adaptaçãoda liderança às aspirações,muitas vezesin- pessoahumana" e que a "pessoa humana não pode ser ven-
gênuas,dopovo. dida nem vender-se.' é dar um passo mais além das soluções
Concretizemos. Se, em um dado momento histórico, a as- paliativas e enganosas.É inscrever-senuma ação de verda-
piração básicado povo não ultrapassaa reivindicação salarial, a deira transformação da realidade para, humanizando-a, hu-
nossover, aliderança pode cometer dois erros. Restringir sua manizar os homens.

250 I PAULO FREIRA


PEDAGOGIA DO OPRIMIDO I 251
Finalmente, a invasãocultural, na teoria antidialógica da Mesmo porque, na relativa experiência que temos tido
ação, serve à manipulação que, por sua vez, serve à conquis- com massaspopulares, como educador,com uma educação
ta e esta à dominação, enquanto a síntese serve à organiza- dialógica e problematizante, vimos acumulando um mate-
ção e esta à libertação. rial relativamente rico, que 6oicapaz de nos desafiar a correr
Todo o nosso esforço neste ensaio 6oi falar desta coisa o risco das afirmações que fizemos.
óbvia: assim como o opressor,para oprimir, precisa de uma Se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, espera-
teoria da açãoopressora,os oprimidos, para se libertarem, mos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa íé
igualmente necessitam de uma teoria de sua ação. nos homens e na criação de um mundo em que seja menos
O opressor elabora a teoria de sua ação necessariamente difícil amar.
sem o povo, pois que é contra ele.
O povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, in-
trojetando o opressor,não pode, sozinho, constituir a teoria
de sua açãolibertadora. Somente no encontro dele com a
liderança revolucionária, na comunhão de ambos, na praxis
de ambos, é que esta teoria se faz e se re-faz.
A colocação que, em termos aproximativos, meramente
introdutórios, tentamos fazer da questão da pedagogia do
oprimido nos trouxe à análise,também aproximativa e in-
trodutória, da teoria da açãoantidialógica, que sefve à opres-
são,e da teoria dialógica da ação, que serve à libertação.
Desta maneira, nos daremos por satisfeitos se, dos possí-
veis leitores deste ensaio, surgirem críticas capazesde reti$car
erros e equívocos, de aprofundar afirmações e de apontar o
que nao vimos.
E possível que algumas destas críticas se façam pretenden-
do retirar de nós o direito de fiar sobre matéria -- a tratada
neste capítulo -- em torno de que nos fita uma experiência
participante. Parece-nos,contudo, que o fato de não termos
tido uma experiência no campo revolucionário não nos retira
a possibilidade de uma reflexão sobre o tema.

252 I PAVIO FRnRE


PEDAGOGIA OO OPRIMIOO I 253
a educação, fazendo com que sua

osl o4 l $ teoria pedagógica se tome, tam-


bém, uma liçãoãdelcidadaniaÊe
solidariedade.
Pedag(leia do opdmÍdo resume

ç'á"# o.sfzorq todos os elementos que fizeram


de Paulo Freire'.o principal edu-
cador brasileiro do século XX.
z..g(
Éaum livroÇdejileituraêobrigató-
ria para todos aqueles que dese-
jam compreende4nossajjsitua-
ção ainda atual de acomodação.

®
Este livro foi composto na tipologia
Dante MT Std, em corpo 12/15,
e impresso em papel ofF-whitc no
SistemaCameron da Divisão Gráfica da
Distribuidora Record. Capa: Vector Budon
Fotos: {Stock Ícapa) e Ricardo CaZÍxto,
arquivos de cita Freira (goto do autor)

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