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ENFIM O PARAÍSO

ANTONIO BIVAR & CELSO LUIZ PAULINI


APRESENTAÇÃO

O concurso que a Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes do Rio de Janeiro


promoveu para escolher a peça que deve reinaugurar o Teatro Carlos Gomes apontou Enfim, o
Paraíso como vencedora. Foi uma decisão do Amir Haddad, do Moacyr Goes e minha, os três
diretores de teatro convidados para a tarefa desconfortável de julgar as concorrentes.
É muito bom mostrar Enfim, o Paraíso agora — começo dos anos 90 — quando outra vez se
discute a importância da palavra no teatro. Esta é uma discussão que vai e volta. E o que evolui,
de uma para outra vez em que a mesma discussão acontece, é o nível onde ela é posta quando é
retomada. Penso que desta vez este debate pode clarear muito bastando situá-lo nos seguintes
termos: o teatro se faz verbo ou o verbo se faz teatro?
Toda a corrente que imagina o teatro se fazendo verbo produz más palavras e mal teatro. É a
corrente a-histórica, que vê os fenômenos em termos de modas e acredita que, agora, sucedendo
um período de privilégio da imagem deve vir um período de privilégio da palavra. Por mais que
certas teorias avalizem esta forma de sucessões por vinganças é impossível pensar o mundo
como uma partida de ping-pong.
A história mostra, pelo contrário, que o teatro viveu eras bem articuladas. Vinculado
profundamente ao texto em apenas dois períodos da história do homem, o teatro agora, no final
de um desses períodos, e num processo acelerado pelo teatro industrial e pelo teatro eletrônico
(cine-teatro e tele-teatro), recupera progressivamente seus mais expressivos meios. Com todas as
palavras que ganhou nos cerca de 400 anos desta era guardadas no seu baú, a recuperação do
cênico seria estúpida se perdesse este tesouro. Enquanto, alternadamente, durante este processo,
a moçada fechava ou abria o baú, o que foi ficando evidente, aos poucos. foi a necessidade de
combinar visceralmente a palavra ao cênico. É facílimo ver numa ponta desta era Shakespeare e
na outra Brecht, ambos a igual distância de eras de independente teatralidade. A diferença é que
Shakespeare está perto da era pré e nós, com Brecht, da era pós. No que isso implica? Em que,
agora, o verbo se faz teatro.
Todo o poder à dramaturgia. Este lema pode muito bem definir este momento da evolução do
teatro subordinada à aceitação destes termos: o verbo se faz teatro. Houve um outro momento em
que se começou a dizer que os diretores usurpavam postos no mundo do teatro, e este enunciado
também era fruto daquela maneira de ver as mudanças como modas. O que acontecia, de fato,
era um primeiro estágio do processo de aproveitamento de todo o acervo do teatro gravado por
suas peças escritas, e cabia então ao diretor esta, digamos, função dramatúrgica. Agora, a
continuação deste processo cabe aos dramaturgos. É a hora de escrever peças “abertas”, depois
de terem sido “abertas”, pelos diretores, as peças “fechadas” (é preciso pensar na quarta parede,
para conceituar o que eu chamo aqui de aberto e fechado). Brecht, mais uma vez, é exemplo: ao
mesmo tempo escreveu um teatro “aberto” e preparou a cena para abrir as peças “fechadas”, foi
autor e diretor.
Esta peça aqui é duplamente histórica, fala da história do Brasil e fala, sem abrir a boca, da
história do teatro brasileiro. A trajetória de um dos seus autores, Antônio Bivar, de Cordélia
Brasil a Enfim, o Paraíso, é um belo resumo da história do teatro brasileiro contemporâneo. Não
se diga que estou apenas registrando o crescimento geográfico que vai do apartamento de
Cordélia Brasil aos dois continentes (continentes mesmo, Europa e América) de Enfim, o
Paraíso. Nem se argumente com o crescimento natural de um autor da sua primeira à sua última
peça. Em Cordélia Brasil, Antônio Bivar já é um escritor de teatro, criando personagens
profundamente identificados com o seu tempo e isso — considerando a cultura vinculada
inevitavelmente a um lugar e época — já é suficiente para a comprovação da excelência. O que
avança em Antônio Bivar, aqui co-autor junto com Celso Paulini, é o mesmo que muda do jovem
Brecht a Brecht, isto é, uma relação com um teatro mais conhecido e mais independente.
Enfim, o Paraíso é o tempo todo o verbo se fazendo teatro, é obra de dramaturgos — Celso e
Bivar — que são, escrevendo, autores, diretores, atores e público. Todo este latim é para mostrar

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que as virtudes fundamentais desta peça, e a oportunidade do seu surgimento neste momento,
estão comprometidas com a natureza de um teatro que reconhece a importância da dramaturgia
no processo de definição de um teatro “aberto”, novo.
E para provar que a defesa do teatro é também a defesa da palavra, quero destacar as muitas
virtudes literárias desta peça. Como fruto de uma pesquisa a que os autores deram dez anos de
suas vidas e que, processada, lhes deu quatro peças (As Raposas do Café, encenada em São
Paulo pelo Grupo Tapa, com direção de Eduardo Tolentino é outra das quatro), Antônio Bivar e
Celso Paulini montaram um circo brasileiro e universal. Acertaram quando se dedicaram ao
Brasil — nós somos os gregos que conhecemos melhor este teatralíssimo pedaço do mundo — e
acertaram quando combinaram abrangência e profundidade, coisas que dificilmente se
combinam. A largueza temporal e territorial do tema está amarrada por um humor excelente, de
mestres da palavra, e pela fé no cênico. Para dar só um exemplo, o coro desta tragédia nacional
— as alunas do Colégio Sion — é um recurso que aumenta a variedade de uma peça de cenas já
tão sortidas, e contribui para a sua unidade.
Enfim, o Paraíso é caso claro de verbo que se faz teatro.

Aderbal Freire Filho

PREFÁCIO

Celso Luiz Paulini e eu passamos praticamente a década de 80 inteira trabalhando num projeto
que desde seu começo sabíamos meio que quixotesco: escrever uma comédia musical sobre a
História do Brasil. Começamos em 1983. Eu com 44 anos e Celso, 10 anos mais velho, com 54.
Não perdíamos tempo com outras coisas. Não tinha domingo, não tinha feriado, não tinha férias,
não tinha nada que nos estimulasse mais que essa empreitada maluca, abarrotada por montanha
de livros e regada a cafezinho e bolacha. No meio do caminho e já com alguma prova concreta
do que estávamos fazendo ganhamos uma bolsa VITAE que muito nos auxiliou. Trabalhamos
tanto e com tamanha fúria que o resultado (no copião), calculamos, daria um espetáculo de 20
horas. Decidimos então dividi-lo em uma tetralogia: “Enfim o Paraíso” (Brasil Colônia), “Uma
Coroa nos Trópicos” (Brasil Império), “As Raposas do Café” (Primeira República) e “Enfim a
Poluição” (a Era Vargas). E saíamos com passadas largas — Celso mais alto que eu, pernas mais
longas — para que testar o embrião lendo-o para pessoas representativas da classe teatral.
Sendo a cidade São Paulo, lemos para Antunes Filho, para Sandro e Maria Della Costa, pro Zé
Celso, para a Minam Muniz, pro Fauzi Arap, para Ilka Marinho Zanoto etc. em saraus na casa de
uns e de outros às vezes com direito a regabofe. A terceira das peças, “As Raposas do Café”, foi
a primeira a ser encenada, em SP, 1990, pelo grupo Tapa. Resultado mais que positivo, sucesso
de crítica e público, mais de ano em cartaz, prêmios (inclusive o Molière) etc. A última das
peças, “Enfim a Poluição”, estava ainda no esboço quando Celso, no último agosto, passando
alguns dias com familiares no interior do Estado, teve morte fulminante causada por aneurisma
cerebral, aos 63 anos, praticamente ainda no começo de sua carreira de autor teatral, pouco mais
de mês e meio antes da chegada do telegrama que nos certificava vencedores do Concurso de
Dramaturgia do Teatro Carlos Gomes (Rio de Janeiro), pela primeira das peças, “Enfim o
Paraíso”. Agitado, sangüíneo e cheio de vitalidade, imagino o quanto Celso teria vibrado de
felicidade. Espírito superior, generoso, entusiasta, tenho absoluta certeza de que lá em cima
Celso continua em plena atividade.

Antonio Bivar, SP, 1/12/1992

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PRIMEIRO ATO

CENA 1

(SALA DO PALÁCIO REAL DE LISBOA. NO CENTRO DO PALCO, A CORTE SOB UM


BALDAQUINO. TODOS ESTÃO ESTÁTICOS. AO SOM DE UM INSTRUMENTO, OUVE-
SE UMA VOZ CANTANDO UMA CANTIGA MEDIEVAL PORTUGUESA. TERMINADA A
MÚSICA, O REI E O MINISTRO ENCARREGADO DOS NEGÓCIOS DE ULTRAMAR
AVANÇAM PARA A FRENTE DO PALCO. A CORTE CONTINUA IMÓVEL SOB O
BALDAQUINO, O QUAL É SUSTENTADO POR QUATRO PAJENS.)

MINISTRO
- Majestade, sem querer interromper o ócio em que tanto vos deleitais, creio ser de meu estrito
dever...
REI
- O que há agora, senhor Ministro?
MINISTRO
- Está no Paço, Majestade, aquela senhora a quem nossos espiões, há mais de dois anos, tentam
localizar nas cortes da Europa.
REI
- E que tal é a gaja?
MINISTRO
- É uma senhora de muita consideração. Trouxe cartas de apresentação do Rei Henrique da
Inglaterra, além de benções especiais de Sua Santidade o Papa para a vossa cristianíssima e
sereníssima majestade. Dizem que os franceses ficaram arrepiados.
REI
- Gostaria de vê-la incontinenti.

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MINISTRO (gritando para fora)
- Que entre a distinta!
(RUFAM OS TAMBORES. OS PAJENS SAEM COM O BALDAQUINA, E A CORTE,
CURIOSA, SE APROXIMA DO REI.)
REI (aos cortesãos)
- Espero que nenhum de vocês cometa alguma gafe.
(ENTRA UMA MÃE-DE-SANTO. DOIS PAJENS SEGURAM A CAUDA DE SEU
VESTIDO E UM TERCEIRO, CARREGA UMA ALMOFADA SOBRE A QUAL ESTÃO OS
BÚZIOS. A CORTE COCHICHA UM POUCO AMEDRONTADA. NEM ELA NEM O REI
SE CURVAM.)
REI (cofiando os bigodes e pigarreando)
- A minha mãe está se dando bem com os ares cá de Lisboa?
MÃE-DE-SANTO (coquete)
- Depois do “fog” de Londres e da umidade do Sena, nada como essa brisa quente que vem de
África.
REI
- Alegram-me estas tão boas disposições... A mãe está coradinha!
MÃE-DE-SANTO
- Como minha agenda está repleta gostaria de, sem mais delongas, saber o que Vossa Majestade
deseja.
REI (aos ouvidos do Ministro)
- Como ela fala bem o português!
MINISTRO
- Além de ioruba, do nagô e do inglês.
MÃE-DE-SANTO (impaciente)
- Afinal, Dom Manuel, em que posso ser útil a Vossa Majestade?
REI
- Seguramente Portugal está vivendo um grande momento de sua história. Eu gostaria de saber
duas ou três coisas a respeito de nossas navegações... Minha filha, vai sair uma grande armada de
Lisboa a caminho das Índias. Dize cá uma coisa: se a esquadra se afastar bastante da costa da
Guiné... onde irá dar? (pausa) O meu Vasco da Gama viu umas aves parecidas com garças que
iam indo rijas para o sudoeste como quem vai para a terra, estás a me entender?
MÃE-DE-SANTO
- Não.
REI
- Não?
(A MÃE-DE-SANTO COMEÇA A ANDAR PELO PALCO, CONCENTRANDO-SE. RUFAM
TAMBORES ATÉ O FINAL DE SUA FALA.)
MÃE-DE-SANTO (recebendo o santo)
- Será? Será que vai dar?... Caxambu, mandinga, bangu, cangerê, moamba, vatapá, munguzá...
Será? Será que vai dar?... berimbau, cacimba, marimba... quiabo, congo e pengó... Será? Será
que vai dar? (pausa) Saravá! (Ela em transe, estrebucha)

REI
- Não estou a entender picas, senhor Ministro! O que está dando nela?
MINISTRO
- Acho que ela é cavalo de Oxumarê...
MÃE-DE-SANTO (delirando)
- Os búzios! Os búzios! Cadê meus búzios de Angola?
(O PAJEM, QUE ESTÁ COM A ALMOFADA, APRESENTA-LHE OS BÚZIOS.)
PAJEM
- Estão aqui, madame.

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(ELA APANHA OS BÚZIOS E JOGA-OS NO CHÃO. AJOELHA-SE E OLHA
FIRMEMENTE PARA ELES, ENQUANTO O REI E O MINISTRO SE APROXIMAM
DELA.)
MINISTRO
- O que a senhora está vendo?
MÃE-DE-SANTO
- Água.
REI
- E que mais?
MÃE-DE-SANTO
- Mais água.
REI
- Só água?
MÃE-DE-SANTO
- Terra.
REI
- Onde?
MÃE-DE-SANTO
- Depois da água...
MINISTRO
- Muita terra?
MÃE-DE-SANTO
- Terra... Terras do sem fim...
MINISTRO
- E há ouro? Esmeraldas?

MÃE-DE-SANTO
- Areia...
REI
- E prata? Pedrarias?
MÃE-DE-SANTO
- Areia...
MINISTRO
- E diamantes?
MÃE-DE-SANTO
- Areia... Areias ardentes...
REI (decepcionado)
- Só areia, Mãe?
MÃE-DE-SANTO
- Muita brisa... brisa na copa das palmeiras...
REI
- E cravo? Canela? Gengibre?
MÃE-DE-SANTO
- Cachoeiras... rios... igarapés... igarapós... igapós... igarapava... e muita gente pelada!
REI (ao Ministro)
- Não estou gostando muito.
MINISTRO
- Minha senhora, não há alguma coisa boa para mercância? Por exemplo, o sândalo, a pimenta, a
cânfora?
(A MÃE-DE-SANTO, NO AUGE DA POSSESSÃO, É TOMADA DE FORTE AGITAÇÃO.
OS TAMBORES VÃO NUM CRESCENDO E SUBITAMENTE PARAM.)
MÃE-DE-SANTO (completamente tomada)

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- Se entrarem pela terra adentro... minerais... filões de ouro... prata... pedras... pedrarias...
esmeraldas... e um cruzeiro no céu... e sangue, muito sangue na terra...
REI
- Senhor Ministro, ordeno que se aprestem as naus imediatamente. E me chamem o Cabral...
Velas ao mar! Rumo às novas Índias...
TODOS
- Velas as mar! Ruma às novas Índias!
(BLACK OUT)

CENA 2

(MERCADO DA RIBEIRA EM LISBOA. REGATEIRAS COM SEUS TABULEIROS. NO


ESCURO OUVEM-SE OS PREGÕES DAS VÁRIAS REGATEIRAS:)
1) “Frangos, franguinhos e frangões...”
2)“Ovos de pata, pintinhos e pintões...”
3)“Nabos secos, rebuçados, pimentões...”
4)“Bacalhau, sardinhas e cações...”
(Luz)

BRIOLANJA
- Cá na feira me chamam Maria Briolanja
vai-se me a vida vendendo laranjas...
MARGARIDA VAZ
- Eu, Margarida Vaz,
se não vendo meus limões
estou levando por trás...
BRÁZIA ANTUNES
- Quem quer deste pão rolão
que Brázia Antunes amassou
mais com a sola dos pés
do que com as palmas da mão?...
URRACA
- Gemas d’ovos amassadas
que o frio nos traz acabadas!
BRIOLANJA
- Erva doce, cânhamo da Índia, melões, cidras e castanhas...
MARGARIDA VAZ
- Quem quer o meu bacalhau?
URRACA
- Ó Margarida Vaz, viste o ajuntamento lá no cais de Belém?
MARGARIDA VAZ
- Vi. A feira anda vazia, e ainda não vendi dois quartinhos de limões!
BRIOLANJA
- Apodrecem-me os melões, e não há quem os compre...
URRACA
- Tenho saudades da feira antiga
quando Antonia Lourença letrias vendia
e belos dobrões nossos bolsos enchiam...
BRIOLANJA
- Onde está a gente?
URRACA
- Foram todos a Belém.

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BRÁZIA ANTUNES
- A Belém? Que foram fazer ao cais?
MARGARIDA VAZ
- Parte uma nova armada e tem por capitão, o Cabral.
URRACA
- E aonde vão?
MARGARIDA VAZ
- Às Índias, sempre às Índias, nossa perdição!
BRIOLANJA
Trazem especiarias de fora, e o que a terra produz só desprezam... (Voltam a apregoar.)
MARGARIDA VAZ
- Pepinos, tomates e nabos
tão difíceis de vender
que melhor é metê-los no rabo...
Pepinos, tomates e nabos...
BRÁZIA ANTUNES
- Rabanada e ambrosia
bolos de mel e broa
se não comprardes na teiga
há de vir o cu em proa...
URRACA
- Papas de farinha e mel
vende a Maria Gardel
faz cosquinhas na garganta
e manda anjinhos pro céu...
BRIOLANJA
- Eu, Maria Briolanja,
filha de Ana Barreta,
que hoje no céu entre os anjos
tem sossegada a buceta...
Vendo panos das Índias
algodões e goma-laca
se não alivia o peito
mal não faz à babaca...
(Em prosa, dirigindo-se a Margarida Vaz)
Que é da Natália do Val, que hoje não apregoa?
MARGARIDA VAZ
- Cruzes! Onde anda ela? Será que não quer o pão, o diabo da rapariga? (Dirigindo-se a Urraca)
Viste-a tu, Urraca?
URRACA
- Não. Da vida alheia não cuido.
(ENTRA, MUITO AGITADA, NATÁLIA DO VAL.)
NATÁLIA
- Senhor Jesu! Acu... acu...
BRIOLANJA
- Que foi, priminha?
NATÁLIA
- Acudam-me, amigas minhas!
MARGARIDA VAZ
- Que cara é esta? Viste o diabo na tranqueira?
NATÁLIA (chorosa)
- Levam-me o filho amado que criei com mil cuidados e carinhos... Malditas leis e doutores que

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ao degredo o arrastam! Levam-no na armada que parte a cumprir pena nas Índias!...
BRIOLANJA
- Que fez o menino?
NATÁLIA
- Apanhou umas frutinhas inda verdes feito ele no pomar de um velho cônego, e o cônego se
queixou ao juiz... e o juiz meteu-lhe em ferros, e agora levam-no às Índias!...
BRÁZIA ANTUNES
- Coitadinho..
URRACA
- Pobre pena desgarrada.
(SOM DE TROMBETA. UM ARAUTO E SOLDADOS ENTRAM NA FEIRA. SURGEM
OUTRAS PESSOAS.)
ARAUTO (desenrola um pergaminho)
- Povo de Lisboa! Sua Majestade do Rei Dom Manuel comunica ao povo desta sereníssima
cidade que, hoje, 9 de março do ano da graça de 1500, parte deste nosso cais a mais poderosa
armada que reino algum cristão aprestou em demanda às Índias e a outras terras que, quiçá, se
encontrem no caminho... (Pausa) São dez naus de pano redondo, três caravelas e outras
embarcações menores. Cosmógrafos, soldados, frades, escrivães, capitães, agregados foram
convocados para esta magnífica empresa... (Pausa) São mil e quinhentas cabeças em quem El
Rei confia, com exceção, é claro, de alguns vis degredados...
NATÁLIA (atirando-se aos pés do Arauto)
- Ai, pobre do meu rapazito que vai cumprir pena nas Índias! Senhor, intercedei ao Rei...
ARAUTO (empurrando-a)
- Que é isso? Larga-me dona! (Aos soldados) Afastem essa mulher!
(OS SOLDADOS CARREGAM-NA)
NATÁLIA (resistindo grita)
- Deixem-me! Deixem-me! Pobre de meu filho! Que farão de ti, ó Rodrigo?
REGATEIRAS e POVO (gritando)
- Que é de meu marido? Que é de meu irmão? Meu cunhado! Meu afilhado! Comedores da
fazenda real! Bárbaros! Assassinos! Por que is aventurar ao mar iroso?
ARAUTO (continuando)
- Silêncio! (Aos soldados) Façam essa gente calar! (Os soldados ameaçam o povo com suas
armas) Como ia dizendo, com exceção de alguns degredados e outros homens vis que
empesteiam nossa terra... Pois bem, Sua Majestade pede ao povo desta fidelíssima cidade que
corra ao cais de Belém para augurar aos nossos heróis feitos tão grandes ou maiores do que
aqueles que fizeram a fama e a fortuna de Ulisses e seus homens...
TODOS (mudando de opinião e dando vivas)
- Às Índias, às Índias!... Ao mar! Ao mar!...
(BLACK OUT)
(PROJETAM-SE NUM TELÃO VELAS QUE SE AFASTAM. OUVE-SE MÚSICA.)

CENA 3

(MADRUGADA. A CENA PASSA-SE NUMA PRAIA. NO CÉU, A LUA CHEIA ILUMINA


A EXUBERANTE FLORESTA TROPICAL. O LUAR DEIXA ENTREVER COBRAS
ENROLADAS EM GALHOS. VOEJAM PÁSSAROS NOTURNOS. PIRILAMPOS LUZEM,
MORCEGOS TRISSAM, CIGARRAS CICIAM, ONÇAS MIAM, PAPAGAIOS PALRAM,
SABIÁS GORJEIAM, SAPOS COAXAM, GRILOS CRIQUILAM, MACACOS GUINCHAM

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E COBRAS SIBILAM. NO FUNDO, O MAR; OUVE-SE O MARULHAR DAS ONDAS. A
LUZ DO LUAR VAI SE TRANSFORMANDO EM LUZ DA MANHÃ. ÍNDIOS REVEZAM
ENTRE SI UMA ESPÉCIE DE CACHIMBO, SOLTAM GRANDES BAFORADAS E
GRUNHIDOS DE PRAZER. OUTROS SERVEM-SE DE CAUIM QUE ESTÁ NUMA
CABAÇA. AO LADO, FRUTAS TROPICAIS. NUM CANTO DO PALCO UM ÍNDIO E
UMA ÍNDIA ESTÃO NUMA CENA IDÍLICA.)

1º ÍNDIO (soltando um baforada)


- Hummm, boooom!...
2º ÍNDIO (acabando de beber na cabaça de cauim)
- Sapiroca!
3º ÍNDIO (encoxando a índia)
- Booom!
ÍNDIA
- Piripê sapiroca!
1º ÍNDIO
- Ogepê-gepê.
2º ÍNDIO
- Ogepê-oçu!
3º ÍNDIO (em idílio)
- Ogerê-jeréo!
ÍNDIA
- Opacatu!
(ENTRE FUNDO MUSICAL E COMEÇAM A SURGIR VELAS NO FUNDO DO PALCO.)
2º ÍNDIO (vendo as velas)
- Quecê-quecé?
1º ÍNDIO
- Moanhé-moanhê!
2º ÍNDIO (apontando)
- Piricaçá!
1º ÍNDIO (também vendo as velas)
- Narambu mocó cará!
3º ÍNDIO (namorando)
- No no moçará nó!
2º ÍNDIO
- Moçará moanhé?
1º ÍNDIO
- Narambi oçu-minm.
2º ÍNDIO
- Cetê amanó manó?
1º ÍNDIO
- Nó. Tupã querá gururê.
2º ÍNDIO
- Anhangá.
(DO ALTO DAS CARAVELAS OS PORTUGUESES COMEÇAM A ACENAR COM
LENÇOS COLORIDOS. DOIS DOS ÍNDIOS CORREM PARA A FRENTE DO PALCO E
GRITAM PARA O PÚBLICO.)
AMBOS
- Fomos descobertos!
(DESCEM OS PORTUGUESES DAS CARAVELAS. SÃO OS SEGUINTES: PEDRO
ALVARES CABRAL, COM UM PESADO COLAR DE OURO NO PESCOÇO; PERO VAZ

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DE CAMINHA, TRAZENDO UM TINTEIRO AMARRADO AO BRAÇO E UMA PLUMA
QUE LHE SERVE DE PENA; FREI HENRIQUE DE COIMBRA; NICOLAU COELHO,
INTÉRPRETE DA ARMADA; UM DEGREDADO, RODRIGO, COM OS PULSOS
AMARRADOS; DOIS SOLDADOS ARMADOS DE ARCABUZES; UM GRUMETE
ADOLESCENTE TRAZENDO UMA ARCA, UM BANQUINHO E UM LAMPIÃO; UM
BICHA DEGREDADA. ENQUANTO OS PORTUGUESES DESCEM DAS CARAVELAS
ENTRAM MAIS UM ÍNDIA E TRÊS ÍNDIAS DANÇANDO UMA ESPÉCIE DE DANÇA
DO VENTRE, AO SOM DE “NUM MERCADO PERSA” (DE KETELBEY). OS ÍNDIOS
QUE ENTRAM SE AGREGAM AOS QUE JÁ ESTAVAM EM CENA. NO PALCO FICAM
DOIS GRUPOS DISTINTOS; PORTUGUESES E ÍNDIOS, AMBOS DANÇANDO.)

CABRAL (dançando)
- Nicolau, será que chegamos às Índias pelo Ocidente?
NICOLAU (idem)
- É bem capaz, esta música me parece um tanto oriental, senhor Cabral.
CABRAL (idem)
- É preciso saber onde estamos.
NICOLAU (idem)
- Mas como, senhor almirante?
CABRAL (idem)
- Apite.
(NICOLAU APITA. PÁRA A MÚSICA. OS ÍNDIOS, DESCONFIADOS, FALAM NUMA
ALGARAVIA QUE SE PRETENDE TUPI E APONTAM PARA OS PORTUGUESES.)
CABRAL
- Nicolau, tu que és o língua da armada, pergunta de uma vez onde estamos.
NICOLAU (apontando para um dos índios)
- Vem cá, ó mocetão! (Os índios cochicham e riem) Tu mesmo, vem cá, não te acanhes.
(DEPOIS DE COCHICHAREM ENTRE SI, OS ÍNDIOS EMPURRAM AQUELE QUE FOI
ESCOLHIDO EM DIREÇÃO DE NICOLAU. ELE, FURIOSO, ORA SE VOLTA PARA OS
SEUS, ORA SE VOLTA PARA NICOLAU.)
ÍNDIO
- Nuaruaque, potangi mogi peruassu...
NICOLAU (tentando acalmá-lo)
- Não fiques assim, rapaz. Somos portugueses, gente de boa paz.
ÍNDIO
- Nurucu potangi, maiorá.
NICOLAU
- Vamos, se me disseres umas coisitas eu te dou uns brincos, uns atavios, umas coisas muito
garridas... (Tira dos bolsos uns berloques.) Olhe, olhe, gostas?
ÍNDIO (desconfiado)
- Hummm...
NICOLAU
- Vê se me entendes, estamos por acaso nas famosas Índias?
ÍNDIO
- Índias?! (Olha para os companheiros) Índias!! (Todos riem e fazem mímicas.)
NICOLAU (para Cabral)
- Seguramente, senhor almirante, não estamos nas Índias.
CABRAL
- Faze-lhe outra, Nicolau. Pergunta que terra é esta.
NICOLAU (fazendo mímica)
- Como se chama esta boa terra? Que tem uma baía tão linda e uma gente tão descontraída?
ÍNDIO

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- Ipirapitanga.
(ÍNDIOS E ÍNDIAS CAEM NA RISADA E FAZEM GESTOS OBSCENOS. UM ÍNDIA
APALPA O SEXO DE UM GRUMETE CORRE A CONTAR AS OUTRAS O QUE
APALPOU. CAMINHA SENTA-SE NUM BANQUINHO E FURIOSAMENTE PÕE-SE A
ESCREVER NUM PERGAMINHO.)
CABRAL (dirigindo-se a um dos grumetes)
- Ôi Pimentel, desamarra esse degredado que tenho algo para ele. (Voltando-se para Nicolau)
Diga a esses parvos que eles vão assistir a um espetáculo de acrobacias. (Cabral faz um sinal a
Rodrigo, lá desamarrado)
NICOLAU
- Vou tentar. Ai meu Deus, como é difícil falar com quem não se entende! Seja o que Deus
quiser... (Respira fundo e começa) Estimado público desta freguesia... Damas gentis e robustos
cavalheiros... Agora terão a oportunidade de assistir a um mirabolante espetáculo de acrobacias
que fez o maior alarido nas feiras de Flandres, Antuérpia e, principalmente na feira do Tran-
coso... (Imediatamente Rodrigo do Val começa a fazer acrobacias enquanto um dos grumetes
toca gaita de foles)
ÍNDIOS (com admiração)
- Tupã! Tupi! Caracu! Caratê! Capuera! Capenga! Caetetu! Cará! Caruaru! Catupiri!
PORTUGUESES (com admiração)
- Par Deus, anda em saltos como pêga! Não sei que maleita o toma! É de ficar prenhe! Há de dar
com o cu em terra!
(OS PORTUGUESES PEGAM SUAS QUINQUILHARIAS E DISTRIBUEM AOS ÍNDIOS,
VIDRILHOS COLORIDOS, VENTAROLAS, PENTES. MACHADINHOS, COLARES ETC.
AS ÍNDIAS COMEÇAM A TOMAR LIBERDADES COM OS PORTUGUESES. A COISA
CAMINHA PARA A ORGIA.)
NICOLAU
- Senhor almirante Pedro Álvares Cabral, essa gente me parece que têm os pensamentos um
tanto levianos.

CABRAL
- Apita, apita Nicolau, que essa gente não tem jeito, não!
(NICOLAU APITA E FAZ-SE SILÊNCIO GERAL. CABRAL NO CENTRO DA CENA,
TIRA A CORRENTE DE OURO DO PESCOÇO.)
CABRAL
- Ó gente, melhor de quantas há no mundo e inocente, neste paraíso em que viveis há disso?
(Mostra a corrente) Há disso?
(OS ÍNDIOS COCHICHAM ENTRE SI. CABRAL FAZ MÍMICA DE CAVAR A TERRA E
TIRAR DELA A CORRENTE DE OURO. OS ÍNDIOS IMITAM CABRAL)
FREI HENRIQUE
- Eles não entendem, senhor almirante, são como crianças.
(OS PORTUGUESES CANTANDO, TENDO À FRENTE NICOLAU.)
PORTUGUESES (cantando)
- Nestas matas verdejantes
entre flores e pitangas
sapotis, garças e tangas
e cajus nos corpos nus
há de haver minas de ouro
que aplaquem nossa sede.
ÍNDIOS (cantando)
- Nestas matas verdejantes entre flores e pitangas não tem ouro não.
NICOLAU (para Cabral, em prosa)
- Não tem ouro, não senhor.

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CABRAL (gritando)
- E prata?
ÍNDIOS (cantando!
- Nesta ilha aprazível entre águas e arvoredos não tem prata não.
NICOLAU (a Cabral, em prosa)
- Também não tem prata, senhor Cabral.
CABRAL (aflito)
- E rubis, pedras, esmeraldas?... Vai em frente, Nicolau!
NICOLAU
- Nossa Senhora de Fátima, como vou perguntar isso? Sou poliglota, mas nem tanto.
ÍNDIOS (cantando)
- Nesta ilha aprazível entre águas e arvoredos cachoeiras e penedos esmeraldas e rubis nunca
vimos por aqui.
CABRAL (num rompante, bravo)
- Silêncio, silêncio! Afinal de contas, que pais é este? Os índios, de boca fechada, dão uma vaia.
CABRAL (furioso)
- Olha aqui, seu Pero Vaz de Caminha, o senhor, que é o escrivão da armada, vê se põe nessa
carta que não tem ouro, não tem pedras, não tem porra nenhuma.
(CABRAL E CAMINHA FICAM GESTICULANDO NERVOSAMENTE NO FUNDO,
ENQUANTO, NA FRENTE, COMEÇA UM DIÁLOGO ENTRE A BICHA DEGREDADA E
UM ÍNDIO DE COCAR AMARELO.)
BICHA
- Sabes, como me chamam, menino? (Pausa) Eu sou Jacinto!
ÍNDIO
- Inhembó tarucu?
BICHA
- Não. É Jacinto! O Jacinto das cornetas. E ora veja, estada no cais muito inocentinha a tomar
uns ares e esses malditos me pegam.
ÍNDIO (rindo sem entender)
- Hummm!
BICHA (indignada)
- E agora me vês aqui, uma degredada.
ÍNDIO
- Hum hum.
BICHA (envolvente)
- Mas acho que vou me dar bem por aqui. E tu, gajo, que tens umas formas... Como te chamas?
ÍNDIO
- Papacu.
BICHA
- É sério? Oi que terra! É aqui o paraíso?
ÍNDIO (feliz)
- Cacatu!
(A BICHA COMEÇA A FALAR NO OUVIDO DO ÍNDIO. ESTE OUVE E RI. FREI
HENRIQUE, QUE OBSERVARA O DIÁLOGO ENTRE OS DOIS, APROXIMA-SE DE
CABRAL.)
FREI HENRIQUE
- Senhor Cabral, estou vendo umas coisas que não me parecem lá muito católicas...
CABRAL
- Onde?
FREI HENRIQUE (apontando)
- Aqueles dois.
(CABRAL, NICOLAU E FREI HENRIQUE SE APROXIMAM DOS DOIS E OBSERVAM.

13
AGORA É O ÍNDIO QUE ESTÁ FALANDO NO OUVIDO DA BICHA. AMBOS ESTÃO SE
DELICIANDO. A BICHA DEGREDADA ATRAVÉS DE MÍMICA, PEDE AO ÍNDIO QUE
LEVANTE A TANGA. O ÍNDIO FAZ UM GESTO NEGATIVO, MAS A BICHA,
FORÇANDO UM POUCO, LEVANTA A MÃO DO ÍNDIO, QUE ESTAVA COBRINDO O
PRÓPRIO SEXO. O ÍNDIO COBRE O ROSTO NUM GESTO DE PUDOR. EM SEGUIDA
A BICHA LEVANTA A TANGA DO ÍNDIO.)
BICHA (espantada)
- Valha-me Deus!
FREI HENRIQUE (para Cabral)
- É uma vergonha senhor almirante!
CABRAL (entusiasmado)
- Vergonha coisa nenhuma! Acabamos de descobrir o pau brasil!
PORTUGUESES e ÍNDIOS (cantando)
- Quem foi que inventou o Brasil!
Foi seu Cabral, foi seu Cabral!
Quem foi que achou o pau?
Foi seu Cabral, o pau brasil...

(BLACK OUT)

CENA 4

(MESMO LOCAL DA CENA ANTERIOR. É UMA NOITE DE LUAR. NA FRENTE DO


PALCO, PERO VAZ DE CAMINHA, SENTADO NUM BANQUINHO ESCREVE SUA
“CARTA” SOBRE UMA ARCA, Á LUZ DE UM VELA. AS DUAS RAÇAS SE
CONFRATERNIZAM, NA SOMBRA, EM LOGOS AMOROSOS. FUNDO MUSICAL E
GEMIDOS DE AMOR.)

CAMINHA (dizendo enquanto escreve)


- Não lavram nem criam. Não há aqui nem boi nem vaca, nem qualquer outra alimária de que se
serve o homem. (Deixa de escrever e suspira) É um paraíso... (Escrevendo e dizendo) A região é
em si de muito bons ares, como os de entre Douro e Minho. As águas são muitas... (Ouve-se um
gemido, ele olha mas não diz nada e continua escrevendo) As águas são muitas e a terra, se a
quisermos aproveitar, nela dar-se-á tudo... (Outro gemido. Ele torna a olhar)... dar-se-á tudo
pelas águas que tem. (Pára de escrever e olha em direção ao público onde supostamente está
mar) Está aí o mar, o tenebroso mar... É uma bela noite... começa maio... e essas estrelas formam
uma cruz, a cruz do nosso Redentor e, no entanto, em minha alma (Um longo gemido de prazer.
Ele olha)... em minha alma este sentimento tão pesado, essa ânsia por coisas que o mundo não
pode.. suprir. (Outros gemidos) Divertem-se... Mas se eu ficar aqui remoendo os meus problemas
existenciais, acabo perdendo meu emprego de escrivão da armada. Vamos ao que interessa a essa
gente vil e mercantil... (indignado). Mas raios! em pleno primeiro de maio, todo mundo
metendo-se aí pelo mato e eu tendo que escrever essa carta!... (Decidido:) Vamos, vamos, Pero
Vaz, lembra-te do teu emprego! (Escrevendo e falando) Que Vossa Majestade saiba que os

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homens, assim que desembarcaram nesta Ilha de Vera Cruz... (Entram correndo Rodrigo e uma
índia; estão rindo, felizes. Caminha pára de escrever e observa)
RODRIGO
- Olha aqui, minha doce mangaba, tive cá umas idéias: será que tu topas?
ÍNDIA
- Claro, sou uma índia guerreira.
RODRIGO
- Então vamos! (Saem correndo)
CAMINHA
- Depravados! Mas deixemo-los lá! (Volta a escrever) Quero que Vossa Majestade saiba que os
degredados, os pivetes e os grumetes, já desertaram da nossa companhia, embrenhando-se por
esse interior com índios e índias... (parando e falando consigo mesmo) Que mais eu vou dizer a
El Rei Dom Manuel... Ah, já ia me esquecendo do principal... (Recomeça a escrever e a falar)
Até agora não pudemos saber que haja ouro ou prata por essas brenhas, mas estamos à sua cata.
E quanto às índias... (Surge uma índia e fica fazendo acenos para Caminha)... são bem feitas e
redondas, andam sempre nuas e têm suas vergonhas raspadas e tão apertadinhas que as mulheres
de nossa terra, vendo-as, teriam vergonha por não terem a sua como as delas... (Pára de
escrever) Está num português sem jaça, um primor! (Continuando a escrever e a falar) Enfim,
Majestade, se cá não tem ouro nem prata, buceta é que não falta. Primeiro de maio do ano da
graça de 1500. Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada.

(BLACK OUT)

CENA 5

(FOCO DE LUZ Á ESQUERDA NA FRENTE DO PALCO. UMA ALUNA


UNIFORMIZADA À MODA DO COMEÇO DOS ANOS 40 DECLAMA.)

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BIBI PENTEADO
- E tínhamos um pau precioso
que abundava nas florestas
de nosso querido Brasil
e por sua cor tão rubra
deram-lhe um lindo nome
chamaram-no Pau Brasil.

Célebre e cobiçado
por mercantes e por reis
vinham piratas mandados
pelo cruel soberano francês.

Vinham também os ingleses


para arrochar nosso pau.
Quanto sangue derramado
pela gente de Portugal!

Dom João III, um rei


que era vivo e finório
incumbiu Martim Afonso
de limpar o território
do nosso querido Brasil.

Disse-lhe: Vai, caro Afonso,


afugenta o francês e o inglês
que este pau é uma riqueza
do império português.
(OUVEM-SE PALMAS E VOZES: “MUITO BEM’; “BIS’; “BIS’ LUZ. NO CENTRO DO
PALCO, UMA PROFESSORA ASSENTADA À SUA MESA. EM VOLTA DELA, ALUNAS
ASSENTADAS EM CARTEIRAS. LÊ-SE NUM LETREIRO: COLÉGIO SION — 1943.)
PROFESSORA
- Muito bem, Bibi Penteado! Você declama esplendidamente Como ninguém mais se deu ao
trabalho de preparar nada, vamos continuar a nossa explanação sobre os primórdios da nossa
vida colonial, da qual, aliás, ainda não saímos. Infelizmente para vocês! (As alunas cochicham e
riem) Não vejo a hora de chegar o capítulo dos holandeses... (Suspirando) Ah, seria tudo tão
diferente! (lrritada) Psiu, façam silêncio, meninas! Senhorita Margarita Tagliaferro, onde
paramos mesmo na aula passada?
GUARACIABA (adiantando-se)
- A senhora parou na expedição de Gaspar de Lemos, em 1501.
PROFESSORA (irritada)
- Mas isto foi há séculos, Guaraciaba!
MARGARITA
- Não parou aí, não! A senhora parou no Gonçalo Coelho.
PROFESSORA
- Muito bem, Margarita Tagliaferro, você é a melhor aluna do Sion! Mas continuando, um pouco
antes, o pau brasil fora declarado monopólio exclusivo da coroa. Quer dizer: o pau era só da
coroa. (Pausa) Em 1504, vinham tantos navios franceses para levar o pau, que ninguém mais
sabia se o Brasil seria da França ou de Portugal... Levavam até navios de papagaios!
GUIOMAR
- Dona Iracema, e o Américo Vespúcio?
PROFESSORA

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- Sempre alienada, Guiomar Barreto Mesquita! Vespúcio já ficou para trás. E você não vai
querer que eu repita tudo outra vez! (Pausa) Nisto, passaram-se trinta anos. E chegou um grande
homem... (Apaixonadamente) Martim Afonso de Souza. Além de expulsar os franceses ele vinha
estabelecer alguns núcleos de povoamento. E o que dizem. A verdade é que Portugal estava
enlouquecido, porque a Espanha, sua vizinha, estava abarrotada de ouro e prata que os espanhóis
tinham descoberto no México. E Dom João III de Portugal, não querendo ficar atrás, queria a
todo custo descobrir ouro aqui no Brasil... (Lembrando-se) Ah, sabem com quem Martim Afonso
se encontrou? (Pausa) Quem sabe? (Pausa) Garanto que nem você, não é, Margarita?
MARGARITA
- Infelizmente isso eu não sei, professora.
PROFESSORA
- Pois eu vou dizer: ele se encontrou com Caramuru, Caramuru tinha sofrido um naufrágio e
caíra nas mãos de uma tribo de índios antropófagos. Mas como ele era muito magro, estavam
esperando que ele engordasse. Naturalmente, o Caramuru comia o menos possível...
GUIOMAR
- Por que, professora?
GUARACIABA
- Ele estava fazendo regime, não é, dona lracema? (Todas riem)
PROFESSORA
- Olha aqui, Guaraciaba Tupinambá Ramalho, poupe-nos de seu humor corrosivo, ou eu a mando
para a diretoria. (Voltando-se para Guiomar) Ele não comia, Guiomar, porque se ele comesse,
ele engordaria e os índios o comeriam. Está satisfeita?
GUIOMAR
- Sim, senhora.
PROFESSORA
- Bem, os índios esperavam, e nada do Caramuru engordar. Então, por mero acaso, a bela índia
Paraguassu se apaixonou perdidamente por ele... Tiveram mil filhos e foram se casar em Paris,
onde ela recebeu o nome de Catarina do Brasil. (Irritada) Estão entendendo tudo, não estão?
SAMIRA
- Mais ou menos.
GUARACIABA
- Professora, posso falar uma coisa?
PROFESSORA
- Pode.
GUARACIABA
- Papai disse que nossa família descende diretamente de João Ramalho e Bartira.
PROFESSORA (irritada)
- Senhorita Tupinambá Ramalho, ainda não chegamos ao João Ramalho. Estou achando, hoje,
vocês muito impertinentes. Mas retomando, Martim Afonso se despediu de Caramuru na Bahia e
disse: Caro Caramuru, rei até o Prata e na volta eu vou fundar a Vila de São Vicente. (Pausa)
Estou sendo clara, não estou? (Pausa) E vocês todas já sabem, não é, quem foi Gaspar de Lemos,
Vespúcio, Gonçalo Coelho, Caramuru, Bartira, Martim Afonso, Paraguassu e todo aquele
pessoal, certo? (Todas se entreolham.)
SAMIRA
- Gostaria de fazer uma pergunta, dona lracema, isto é, se a senhora permitir
PROFESSORA (delicada)
- Pergunte, minha filha.

SAMIRA
- Por que há uma fábrica de fogos de artifício no Brás que se chama Caramuru?
PROFESSORA (lívida e odiosa)
- É porque uma vez, ele estava cercado pelos índios, e não sabendo como escapar, ele deu um

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tiro para o alto. E os índios começaram a gritar: Caramuru! Caramuru! (Sarcástica) Gostou da
explicação
SAMIRA
- Gostei, sim senhora.
PROFESSORA
- Então vamos falar das Capitanias Hereditárias. (Pausa) A idéia de dividir o Brasil em
capitanias era uma idéia genial mas pouco original. Com a divisão em capitanias, podíamos
defender o pau brasil da sanha dos piratas e possibilitar que a população fixada na terra pudesse
encontrar o ouro com que os portugueses tanto sonhavam. Resumindo: não vou falar mais nada
sobre as capitanias, porque a matéria é muito extensa e eu não quero ser repreendida pela
inspetora federal que vive dizendo que eu sou prolixa. (Assenta-se elegantemente) Mas não
pensem vocês, minhas alunas, que foi por causa do fracasso das capitanias — porque elas
realmente foram um fracasso — que Dom João III resolveu criar o Governo Geral. Absolu-
tamente! A metrópole queria centralizar o poder por causa dos canaviais que estavam
prosperando. Ia começar... a idade de ouro do açúcar!
MARGARITA
- Com licença, dona Iracema, posso ir lá fora?
PROFESSORA
- Espere um pouco, Margarita, que já está na hora do sinal. (Levantando-se) Aproveitando esses
minutinhos, quero dizer algo muito importante... (Ela avança para a frente do palco) Dizem os
velhos cronistas que antes de chegarem aqui os portugueses isto era um paraíso... (A luz vai
baixando sobre a classe, criando um clima mágico em torno da professora) Homens e mulheres
viviam sem lei e sem rei. Não plantavam e não criavam raízes em parte alguma. A vida era uma
viagem por um jardim de delícias, entre ervas verdes, flores perfumadas e árvores carregadas de
frutas: a banana, o sapoti, o caju, o ananás, o jambo, a pitanga, o araticum, o jenipapo. a graviola,
a jaca, o maracujá... O milho e a mandioca brotavam da terra e corria o cauim nas noites de festa.
O unicórnio da anhuma curava todos os males, e os homens na extrema velhice conheciam uma
nova juventude por efeito de ervas encantadas... A natureza ainda não cessara de criar: o beija-
flor brotava dos troncos e o louva-deus deitava raízes na terra... Macacos, serpentes, preguiças,
tamanduás, araras, tucanos, arapongas — todos os bichos falavam... e também a jibóia se
renovava como as estações. Mas o que era doce, acabou-se. Vieram os brancos, cheios de
dúvidas e escrúpulos. No começo, bem no começo, talvez tenham amado esse paraíso, onde
ainda ninguém traçara limites. Onde tudo era de todos, inclusive o amor. Mas os portugueses não
suportaram tamanha inocência. Traziam da velha Europa uma sórdida concupiscência. Foi então
que começou o desterro... Foi o fim do paraíso. (BLACK OUT)

18
CENA 6

(PALCO VAZIO. NO FUNDO, VÊ-SE EM SOMBRA CHINESA, ANCHIETA


ESCREVENDO NA AREIA. MÚSICA. CONDUZIDOS POR UM FEITOR, ÍNDIOS
AGRILHOADOS ATRAVESSAM O PALCO LENTAMENTE. APÓS SUA SAÍDA ACENDE
UMA LUZ NUMA DAS LATERAIS SOBRE UM ATOR CARACTERIZADO COMO
ANCHIETA. ESTE DECLAMA.)

ANCHIETA
- Morro porque vejo
que este nosso povo
vai tão oprimido
de pesadas cadeias.
Ah! pesado fardo
desta triste vida!
ver tal inocência
acorrentada!

(BLACK OUT)

CENA 7

(MÚSICA DE CARNAVAL ENTRAM OS COMPONENTES DA ESCOLA DE SAMBA


“PENITENTES DA PENHA” TRAZENDO UM PEQUENO PALANQUE, QUE SERÁ
USADO PELO CARNAVALESCO QUE DIRIGE A ESCOLA. A FALA DO

19
CARNAVALESCO É ACOMPANHADA DE PERCUSSÃO.)

CARNAVALESCO (dirigindo-se ao público)


- Minha gente. meus caros componentes da Escola de Samoa Penitentes da Penha! Chega desse
carnaval alienado e ufanista que põe tudo para o alto... Vamos ser contundentes. Vamos exibir o
outro lado da história até hoje ofuscado por esses vultos contumazes e perspicazes como o
Tiradentes, a Princesa, o Caxias, e outros menos badalados como a Imperatriz, a Chica, o
Patriarca e a Marquesa. Eu quero de VOCÊS, caros penitentes, o sangue, o suor e as lágrimas.
Desta vez vamos fazer um carnaval ideologia, um carnaval consciente, atuante e impactante. Vai
ser uma aula na Avenida! Pois é, este ano o nosso enredo “A Arte de Bem Colonizar” vai
arrasar, vai tirar nota 10 em todos os quesitos, apesar dos casuismos e malabarismos dos
interesses alienígenas que, infelizmente, colonizam o nosso carnaval. Pois é, para a arte de bem
colonizar é preciso escolher um produto que tenha grande aceitação nos mercados internacionais,
E depois, plantá-lo intensivamente na colônia. Mas, vejam bem, um só produto. Porque assim o
país colonizado fica sempre dependente da metrópole: é o que se chama Monocultura. Mas, para
a monocultura dar certo, é preciso que as terras da colônia fiquem em poucas mãos. Em
pouquíssimas mãos. Eu não preciso dizer que isto se chama Latifúndio, porque vocês, Penitentes,
já sabem de cor e salteado. O país tem que virar uma grande Plantação.
(TERMINADA A FALA DO CARNAVALESCO, A ESCOLA DE SAMBA CANTA SEU
SAMBA-ENREDO)
TODOS
- Da Ilha da Madeira
em mil quinhentos e trinta
Martim Afonso de Souza
e não há quem me desminta
trouxe a cana para cá.

Na pioneira São Vicente


logo a cana ele plantou
e a terra generosa
para dar não demorou.

Engenhos brancos fumegavam


palpitando os corações
a fumaça ao céu subia
espalhando as ilusões.

E a fumaça do progresso
de latifúndio em latifúndio
foi subindo o litoral.
De São Paulo a Pernambuco
toda a terra foi coberta
por um só canavial.

E o açúcar brasileiro
foi a grande sensação
foi o boom da temporada
foi o estouro da nação.

Brasil, Brasil, Brasil


só açúcar, Brasil!
(O CARNAVALESCO, DO ALTO DO PALANQUE, CONTINUA A ENSAIAR A ESCOLA.)

20
CARNAVALESCO
- Bravo, bravo! Maravilha das maravilhas! Continuando o nosso programa quero lembrar que
para bem colonizar é preciso ter um olho na Exportação. Eu repito: Exportação. Toda a produção
da colônia deve ser exportada e vendida pela metrópole, porque o capital deve ficar nas mãos da
matriz.
TODOS (cantando)
- Para a cana plantar
é preciso primeiro
a floresta queimar
a floresta queimar
para a cana plantar
para a cana plantar.

E depois de plantar
é preciso algum tempo
algum tempo esperar
algum tempo esperar
para a cana cortar
para a cana cortar.

E depois de cortar
ela vai pra moenda
ela vai pra moenda
moenda esmagar
pra moenda esmagar
pra moenda esmagar.

Joga o caldo na fornalha


pra bem cozinhar
pra bem cozinhar
pra bem cozinhar.

E depois pra secar


e depois pra secar.

E depois de secar
e depois de embalar
o produto está pronto
e já pode exportar.

Pronto para exportar


pronto para exportar.

Brasil, Brasil, Brasil


só açúcar, Brasil!
CARNAVALESCO
- Estou cada vez mais maravilhado! A América Latina, diga o que disserem os alienígenas a
América Latina, repio, no que tange à gama de variedades rítmicas, é de uma contundência, é de
uma exuberância, é de uma opulência... sabe, eu acho um luxo! Mas chega de confetes, vamos ao
pacote da conscientização! Arrematando a arte de bem colonizar, basta acrescentar a Mão-de-
Obra Escrava. Com a mão-de-obra escrava o produto final sai muito barato e pode concorrer em
todos os mercados.

21
(UM NEGRO SE DESTACA DA ALA)
NEGRO (cantando)
- Vou cantar para vocês
a raça varonil
que de modo singular
fez a glória do Brasil.

Navios negreiros singrando os mares


trazendo congos e cabindas
angolas e mandingas
TODOS
- Ao som dos atabaques
e do afofiê
também vieram os orixás
tocando seu aguê
NEGRO
- E o negro aqui chegou
trazendo no sangue quente
uma ginga displicente
e um tal togo de cintura
que não tinha outra gente
TRIO
- Pano de cor nas costas
saias brancas rodadas
grossos braceletes
e argolões dourados
NEGRO
- E assim que aqui chegou
foi logo pra lavoura
por ordem do sinhô.
Mas essa gente
não ficou só no batente
pois tinha muito quente
a vontade de criar
Raça nenhuma brilha mais na passarela
a Avenida, minha gente, é toda dela
TODOS
- Raça nenhuma brilha mais na passarela
a Avenida, minha gente, é toda dela!
(UMA NEGRA DESTACA-SE)
NEGRA (cantando)
- A nega aqui chegou
e fez logo o amalá
com feijão fradinho
camarão e dendê
e não negou pimenta
na massa do abará
ralou milho na pedra
até ver o sol raiar
Ficou tudo tão gostoso
que inventou o acaçá
e pra tirar de letra

22
arrasou no vatapá
E na noite de ouro
invocou seus orixás
Obatalá, Xangô, Oxóssi,
Iemanjá!
Obataiá, Ogum, Oxum,
saravá!

(BLACK OUT)

CENA 8

(AS ALUNAS ESTÃO ASSENTADAS EM SUAS CARTEIRAS ESPERANDO A ENTRADA


DA PROFESSORA. LÊ-SE NUM LETREIRO: COLÉGIO SION, 1943.)

SAMIRA
- Vocês sabem o que a dona Darcy Vargas fez?
GUARACIABA
- Dona Darcy é uma simpatia.
SAMIRA
- Eu li no Cruzeiro. Ela fez um leilão para arrecadar fundos para a campanha: “Preservativos
para o soldado desconhecido”.
MARGARITA (irônica)
- Saiu em todas as revistas!
BIBI
- Mas fez leilão do quê?
SAMIRA
- Das luvas que a Claudette Colbert usou em “Mulher de Verdade”.
GUARACIABA
- Amanhã eu vou com a mamãe assistir “A Ponte de Waterloo”. O filme é de arrasar.
SAMIRA
- Quando eu vejo a Vivian Leigh... Ah, se a gente pudesse ser bonita como ela!..
MARGARITA (formal)
- Toda mulher pode ser bela. Não existe mulher tão desprovida de encantos que não possa se
tornar atraente, acentuando as linhas características de sua personalidade. (Pausa) Isso é da
Helena Rubinstein.
GUIOMAR (que estivera escrevendo)
- Escutem, gente, escutem! (Passa a ler) Querida Greer Garson: depois que ontem, no Cine
Metro, eu assisti ao seu maravilhoso filme “A Rosa da Esperança”, francamente deixei de ser fã
da Ida Lupino para me tornar sua fã incondicional. (Pausa) Meu aniversário será muito mais
feliz se você me enviar uma foto autografada para eu incluir no meu álbum. Sua para sempre,
Guiomar Mesquita.
BIBI
- No ano passado ela escreveu a mesma carta para a Joan Fontaine, depois que viu “Rebeca, a
Mulher Inesquecível”.
(ENTRA A PROFESSORA, AFOBADÍSSIMA)
PROFESSORA

23
- Desculpem, meninas, o meu atraso. Mas eu tive um problema seríssimo com a dona Altair, a
inspetora federal. Mas isso não interessa. O que interessa é que o programa está atrasadíssimo e é
por culpa de vocês.
ALUNAS
- Culpa nossa, dona Iracema?!
PROFESSORA
- De vocês sim. (Direta) Pois bem, em 1580... (Lembrando de algo) Ah, me lembrei de uma
coisa! Amanhã eu não virei ao Sion, porque vou ao Rio assistir a uma peça que está provocando
a maior celeuma. E a censura pode tirá-la de cartaz de uma hora para outra. Ainda mas durante
uma ditadura!
SAMIRA
- Mas que peça a senhora vai assistir, dona lracema?
PROFESSORA
- “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues.
GUIOMAR
- Que nome mais lindo! Deve ser uma peça romântica...
BIBI
- Parece título de radionovela.
PROFESSORA
- Nada disso, meninas. É uma peça radical. É um mergulho nas entranhas do ser humano. Passa
no plano da realidade, no plano da memória e no plano da alucinação.
GUARACIABA
- Tudo o que a senhora gosta, dona Iracema, é complicado.
PROFESSORA
- Claro, para vocês a vida é coca-cola, boogie-woogie e, e o vento levou! (Prática) Mas chega de
falar de teatro. Não vamos perder mais tempo, que eu tenho que cumprir o programa, porque se
não a dona Altair me ferra. Pois bem, em 1580 morreu o rei de Portugal. E ficou vago o trono de
Lisboa. Ele, infelizmente, não deixou nenhum herdeiro. E como o seu parente mais próximo era
o rei da Espanha, este herdou o trono de Portugal e Portugal passou a ser uma província da
Espanha. E o Brasil, que era colônia de Portugal, passou também a fazer parte do império
espanhol. Acontece, minhas alunas, que a Espanha estava em guerra com a Holanda. E sabe o
que os holandeses resolveram? (Pausa) Quem sabe? (Pausa curta) Ninguém sabe, não é? Os
holandeses tramaram um plano matreiro: resolveram cair feito moscas sobre o açúcar brasileiro.
Assim, a 15 de fevereiro de 1630, uma frota de 52 navios e iates e 13 chalupas, com 3780
marinheiros, 3500 soldados e 1770 canhões de todos os calibres começaram a forçar o porto de
Olinda em Pernambuco. Não deu para desembarcar ali. Mas desembarcaram mais acima, no Pau
Amarelo. E aí começou o domínio holandês no Brasil.
(AS ALUNAS, CANTANDO COM A MESMA MÚSICA DE “DA ILHA DA MADEIRA”
(CENA 7)
ALUNAS (cantando)
- E assim o holandês
foi deixando os seus moinhos
suas tulipas seus tamancos
seus amores seus carinhos
para vir provar o gosto
do açúcar brasileiro
sob o céu todo estrelado
na varanda de um sobrado.
PROFESSORA
- Ah, vocês são maravilhosas!

(BLACK OUT)

24
CENA 9

(LUZ SOBRE O ACAMPAMENTO LUSO-BRASILEIRO. A FRENTE DE UMA TENDA DE


CAMPANHA HÁ UM JOVEM PRISIONEIRO, RODRIGO. DE MÃOS ATADAS. UM
GUARDA O VIGIA.)

GUARDA
- Quer um confessor?
RODRIGO
- Não.
GUARDA
- Sempre pedem... embora nem sempre o comandante permita.
RODRIGO (apontando para o Céu)
- Espero que Ele não tenha nada contra mim.
GUARDA (rindo)
- Quem?... Matias de Albuquerque?
RODRIGO
- Foda-se Matias de Albuquerque!
GUARDA
- Ah, agora entendi... é de Deus que você está falando. Com esse nunca se sabe. Que idade você
tinha quando entrou nessa guerra?
RODRIGO
- Dezesseis anos.
GUARDA
- E onde te pegaram?
RODRIGO
- Na Paraíba.
GUARDA
- E por que você se meteu nisso, rapaz?
RODRIGO
- Que outra coisa eu tinha para fazer?
GUARDA
- Na sua idade eu só pensava em mulher.

RODRIGO
- A guerra foi o meu divertimento... pelo menos não faltava comida.
GUARDA (refletindo)

25
- Sabe?... Eu mesmo me acho parecido com você. Só que preferi ficar do lado dos portugueses.
RODRIGO (petulante)
- Pode ser que eu tenha achado a farda dos holandeses mais vistosa.
GUARDA
- E agora vai morrer metido num camisolão.

(BLACK OUT)

CENA 10

(LUZ NO PALÁCIO DE FRIBURGO. NASSAU SENTADO NUMA ESPÉCIE DE TRONO.


CADEIRAS DE UM LADO E OUTRO. EM CENA, ALÉM DE NASSAU, FRANZ POST,
PIETER POST, CRALITZ, MARGRAF, PLANTE, CAMAREIRO E PISON. SÃO
ARTISTAS E CIENTISTAS QUE ELE TROUXE DA HOLANDA. FRANZ POST ESTÁ
PINTANDO O RETRATO DE NASSAU.)

NASSAU (examinando uma planta baixa)


- A planta do hospital ficou um primor. Não me arrependo, Pieter Post, de tê-lo trazido de
Holanda.
PIETER POST (tendo nas mãos seus projetos de arquiteto)
- Obrigado, Alteza. (Tentando abrir um rolo) Mas era sobre um outro projeto que eu queria...
NASSAU
- Um momento. (Voltando-se para Cralitz) Ó meu amigo, Cralitz, o céu opulento da América vai
sentir-se mais solitário com a sua partida. As estrelas já estavam acostumadas com seus olhos
astronômicos.
CRALITZ
- Graças ao Observatório do meu Príncipe.
PIETER POST

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- Mas Alteza...
NASSAU
- Um momento, Pieter.
PIETER POST
- Mas Alteza, este projeto...
NASSAU
- Espera Pieter. (A Cralitz) Caro Cralitz, chegando a Leyden, dê lembranças ao velho Snellius...
Foi um mestre extraordinário.
CRALITZ (fazendo vênia)
- Ele ficará comovido com a vossa lembrança. (Sai)
PIETER POST
- Alteza, acho que descobri uma solução...
FRANZ POST (irritado)
- Perdão, mas Vossa Alteza não pára um minuto. E como é que eu vou pintar?
NASSAU
- Perdoe-me, Franz Post.

FRANZ POST
- Ainda bem que pintar retratos não é a minha especialidade.
NASSAU
- Não se preocupe. Depois você voltará às suas adoráveis paisagens. (Voltando-se para
PieterPost) Velamos o que tem para dizer o meu irrequieto arquiteto.
PIETER POST
- Já sei como abrigar a todos que queiram vir morar em nossa Cidade Maurícia.
NASSAU (sonhador)
- Cidade Maurícia... Eu sabia que ia ser um sucesso!
PIETER POST
- Em vez de aterros, podemos construir sobrados altos e estreitos na nossa bela Maurícia.
NASSAU
- Bravos! Amsterdam vai morrer de inveja.
(MARGRAF E PLANTE COMEÇAM A FALAR AO MESMO TEMPO. MARGRAF TEM
NAS MÃOS UMA REDE DE CAÇAR BORBOLETAS; PLANTE, UM PESADO LIVRO)
MARGRAF
- Meu Príncipe, gostaria de mostrar um espécime que ainda não foi catalogado, e resolvi dar-lhe
o nome de Papilus lnocenteae...
PLANTE
- Ficarei agradecido se o Príncipe se dignasse a ouvir um pequeno trecho da minha epopéia
Mauritíados...
NASSAU
- Se os dois falarem ao mesmo tempo, eu não vou entender nada.
(MARGRAF BATE COM A REDE EM PLANTE E ESTE DÁ COM O LIVRO NELE.
ENTRA UM CAMAREIRO.)
CAMAREIRO
- Sereníssimo Príncipe, o doutor Píson já está em palácio.
NASSAU
- Mande-o entrar. (Sai o Camareiro) Agora, meus amigos, saiam por favor. O doutor Pison está
ansioso para falar comigo, e eu mais ansioso ainda para ouvi-lo. (Saem Margraf, Plante e Franz
Post — este último carrega seus apetrechos de pintura)

PISON (entrando)
- Tenho uma grande notícia para Vossa Alteza...
NASSAU (levantando-se)

27
- Qual, meu amigo?
PISON
- Descobri a cura das hemorróidas.
NASSAU
- Fabuloso! Mas é verdade mesmo, Pison?
PISON
- Definitivamente.
NASSAU
- Só faltava isso para esta terra virar um paraíso. Mas como se faz a cura?
PISON
- É fácil. Pega-se uma boa mandioca e besunta-se bem essa mandioca numa mistura de pimenta,
pólvora, aguardente, gengibre, banha de porco e enxofre. Em seguida introduz-se
cuidadosamente a mandioca no cu do paciente.
NASSAU
- Meu Deus, Pison! E não dói?
PISON
- Dói demais. Mas só no começo. Depois é uma santa paz... Nunca mais ninguém vai se queixar
de nada.
NASSAU
- Eu é que não quero experimentar. Mas me diga uma coisa: É preciso mesmo mandioca?
PISON
- É absolutamente necessário.
NASSAU
- Quem diria? Vou mandar plantar mandioca até nos corredores dos canaviais. E não se esqueça
de comunicar essa descoberta à Academia de Ciências de Viena.
PISON
- Já estou redigindo a comunicação. E quanto à minha monumental História Naturalis Brasiliae...
(ENTRA NOVAMENTE O CAMAREIRO)
CAMAREIRO
- Sereníssimo Príncipe, os senhores de engenho de Olinda e Recife estão na antecâmara.
NASSAU
- Mande-os entrar. (O camareiro sai) Me desculpe, Pison, depois conversaremos mais sobre a
mandioca. Agora tenho negócios de estado importantíssimos a tratar. (Pison faz vênia e sai)
(MÚSICA. ENTRAM OS SENHORES DE ENGENHO JOÃO FERNANDES VIEIRA,
SEBASTIÃO BEZERRA E ANTÔNIO DE CARVALHO, FAZENDO GRANDES VÊNIAS.)
NASSAU
- Ninguém mais que os senhores sabe das minhas dificuldades com a Holanda. A Companhia das
Índias Ocidentais não me dá tréguas. Sempre apresenta novas exigências.
VIEIRA
- Nisso estamos de pleno acordo com Vossa Alteza.
NASSAU
- E vejam bem: se não fosse o meu empenho pessoal, os senhores nunca poderiam exportar o seu
próprio açúcar.
CARVALHO
- Mas, por outro lado, Alteza, a Companhia nos lesa. Ela reservou exclusivamente para si todos
os outros monopólios.
VIEIRA
- Muito bem dito. Fomos espoliados do tráfico dos escravos. E também perdemos o pau-brasil e
as munições.
NASSAU (levemente irritado)
- Não é isso que estamos discutindo, senhor João Fernandes Vieira.
VIEIRA

28
- Muito de nós, senhores de engenho, tivemos nossas plantações incendiadas pela guerrilha.
NASSAU
- Farei empréstimo para recuperá-las.
BEZERRA
- Não há braços para os canaviais.
NASSAU
- Já estamos providenciando negros de Angola, senhor Sebastião Bezerra.
CARVALHO
- E se nossos engenhos forem novamente arrasados?
NASSAU
- Agora há uma trégua, senhores.
BEZERRA
- E quanto vai durar?
NASSAU
- O inimigo agora é a Espanha. Com o restabelecimento da coroa portuguesa, nada há que
impeça que Portugal e Holanda se entendam.
VIEIRA
- São hipóteses, meu Príncipe.
CARVALHO
- Mas os empréstimos, Alteza, têm sido insuficientes.
NASSAU
- Renovaremos.
VIEIRA
- E os juros?
NASSAU
- É preciso um pouco de sacrifício, senhor Vieira.
CARVALHO
- E a agiotagem?
NASSAU (sufocado)
- Por Deus! Estou entre dois fogos. Tanto a Holanda como os senhores, respeitáveis donos de
engenho de Pernambuco, querem arrancar a minha pele!
BEZERRA (gritando)
- Mas estamos endividados até o pescoço!
NASSAU (levanta-se para sair)
- Passar bem, senhores. (Sai abruptamente)
(OS SENHORES DE ENGENHO SE ENTREOLHAM POR UNS INSTANTES.)
VIEIRA
- Como os senhores vêem...
CARVALHO
- Na realidade, o Príncipe já nada pode fazer. Os seus o abandonam. A Companhia das Índias já
não o apoia.
BEZERRA
- É um sonhador. Queria fazer disso um paraíso.
VIEIRA
- Deixem de conversa mole. Tenho comigo algo muito importante. (Tira uma carta do bolso)
CARVALHO
- E o que é, senhor João Fernandes?
VIEIRA
- É uma carta.
(BLACK OUT)

29
CENA 11

(LUZ NO ACAMPAMENTO LUSO-BRASILEIRO. RODRIGO E O GUARDA.)

RODRIGO
- Escuta! Veja se descobre por mim, por que é que eu vou morrer... Por mais que eu pense, até
agora não consegui entender.
GUARDA
- Dizem que você traiu, ficando do lado desses hereges.
RODRIGO
- Traí? Mas a quem? De quem é essa terra? Dos mamelucos? Dos bugres? Dos portugueses?...
Por que não dos holandeses? Que diferença faz para quem apodrece nos mocambos? Que
importa quem seja o senhor, para quem tem de seu apenas a roupa do corpo e um pedaço de
peixe para comer? Não estão os hereges e os outros apenas interessados nos engenhos de açúcar?
GUARDA
- Ah, é muito bonito o que você está falando. Mas sabe? Nesses dias conturbados o melhor é a
gente não se arriscar.
RODRIGO
- É, as pessoas não gostam de se arriscar... mas uma coisa eu percebi nesse Príncipe...
GUARDA
- Nassau?
RODRIGO
- Este pelo menos é diferente... Seus olhos europeus procuraram estrelas na noite equatorial...
Construiu palácios, colocou pedras nas ruas barrentas desta cidade... Fez pontes e, sobre a areia
estéril, fez nascer um pomar com todas as frutas do Brasil. Encheu os jardins de aves e animais,
como num paraíso. Homens estranhos passaram a olhar o céu com lunetas, outros reproduzem
em suas telas pedaços da nossa natureza. Homens ruivos com redes perseguem borboletas, e
outros procuram no mato plantas raras e exóticas...
GUARDA
- Mas são hereges!

(BLACK OUT)

CENA 12

(LUZ EM CASA DE UM DOS CONSPIRADORES. JOSÉ FERNANDES VIEIRA ESTÁ


LENDO A CARTA ENVIADA PELO REI. AO SEU LADO, SEBASTIÃO BEZERRA E
ANTÔNIO DE CARVALHO.)

VIEIRA (lendo a carta)


- “Eu, El Rei, vos envio muito saudar. (Pausa) Sabendo o quanto sois fiéis a mim, o que já
haveis mostrado pelas cartas secretas que mandastes, digo-vos que me será muito grata toda a
ajuda que fornecerdes com a vossa espada e os vossos bens à causa de Portugal contra Holanda.
Tudo que fizerdes será recompensado pela minha real generosidade.” (Parando de ler e se
dirigindo aos outros senhores de engenho) O que segue é sem importância... E então? Que
decidis, senhores?
BEZERRA
- Já que estamos num beco sem saída... (para Vieira) O senhor, o que acha?
VIEIRA
- Apoiamos o Príncipe enquanto foi de nosso interesse... mas os ventos agora sopram contra

30
Nassau.
CARVALHO
- E então?...
VIEIRA (decidido)
- O que nos convém é aderir a Portugal. Se os holandeses forem vencidos, não teremos que pagar
um só vintém à Companhia das Índias Ocidentais. (todos aplaudem)

(BLACK OUT)

CENA 13

(LUZ SOBRE A PROFESSORA. ELA ENTRA CANTANDO UM FREVO, “O FREVO DE


NASSAU”; INSPIRADO EM “EVOCAÇÃO” DE NELSON FERREIRA.)

PROFESSORA (trazendo uma espécie de trono e cantarolando)


- ...E quando um vento quente soprar no canavial... Ai, meu Deus! que rima eu vou arranjar para
canavial?... É claro! Por que não pensei antes? O que rima com canavial é Maurício de Nassau.
(cantando) E quando um vento quente soprar no canavial/Maurício de Nassau...

(BLACK OUT)

31
CENA 14

(LUZ NO PALÁCIO DE FRIBURGO. EM CENA, APENAS A ESPÉCIE DE TRONO EM


QUE MAURÍCIO SE ASSENTAVA. SOBRE ESTE MÓVEL, AGORA ESTÃO AS PEÇAS
DO SEU VESTUÁRIO. ESTRAMBOM, O PAJEM, AJUDA NASSAU A VESTIR-SE. ONDE
ESTÁ O PÚBLICO É UM ESPELHO PARA NASSAU.)

ESTRAMBOM
- Aqui estão as calças, Alteza.
NASSAU
- Minhas malas já estão prontas?
ESTRAMBOM (soluçando)
- Sim, Alteza.
NASSAU
- Quem diria, heim, Estrambom, ser dispensado do governo do Brasil?...
ESTRAMBOM
- Foram intrigas, meu senhor.
(ENQUANTO NASSAU AJUSTA AS CALÇAS FRENTE AO ESPELHO, O PAJEM VAI
APANHAR O COLETE QUE ESTÁ SOBRE A ESPÉCIE DE TRONO.)
NASSAU
- A Holanda nunca se interessou pela minha administração. Eles nunca puderam compreender
que eu sou um príncipe, um humanista, e não um mesquinho colonizador.
ESTRAMBOM (ajudando-o a vestir o colete)
- Vossa Alteza me perdoe, sempre achei essa gente da Companhia uns grossos.
NASSAU (ajustando o colete em frente ao espelho)
- Nunca quiseram ver de perto essa maravilha que é a Cidade Maurícia. Sabe, Estrambom, este é
o país mais bonito do mundo... A Nova Holanda é o mais delicioso trecho de terra.
ESTRAMBOM
- Imagino como Vossa Alteza deve estar magoado.
NASSAU
- As mágoas, na realidade pouco importam. Mas é duro saber que um dia me assaltará à
lembrança o rumor desse vento crepitando nos canaviais de Pernambuco...
ESTRAMBOM
- E eu nunca mais vou me acostumar com os invernos de Holanda.
NASSAU (meio comovido)
- Eu te garanto que se o destino me deixasse aqui, eu faria desta terra um paraíso... (mudando de
tom) Dá-me depressa a casaca.
(OUVEM-SE AS PRIMEIRAS MARCAÇÕES DE UM FREVO. ESTRAMBOM APANHA O
TRONO E SAÍ NO FUNDO SURGE A CARAVELA, AGORA COM A BANDEIRA
HOLANDESA. ENTRAM PELAS LATERAIS DOIS BLOCOS DE FREVO, AOS QUAIS
NASSAU SE INTEGRA. TODOS CANTAM E DANÇAM O FREVO DE NASSAU. A
PROFESSORA TAMBÉM PARTICIPA DO FREVO.)
TODOS
- Maurício de Nassau
fidalgo e humanista
nunca houve outro igual.
Guerreiro e artista
homem nobre, gente fina, populista
Maurício de Nassau

Primeiro modernista
um quê de futurista

32
Maurício de Nassau
jardins parques e pontes
Recife ouviu mil fontes
seu nome murmurar...

NASSAU
- Adeus, adeus minha gente
vou-me embora descontente
se levo uma saudade
eu deixo uma verdade
em todos corações...
TODOS
- E quando um vento quente
soprar no canavial:
Maurício de Nassau...
NASSAU (já sobre os primeiros degraus da escada da caravela)
- E agora me despeço
levando aqui no peito uma sentença real:
que este paraíso
por mim jamais seria
um novo Portugal.
TODOS
- Adeus, adeus minha gente
vou-me embora descontente
se levo uma saudade
eu deixo uma verdade
em todos corações. (em surdina)
E quando um vento quente
soprar no canavial
Maurício de Nassau...
(SAI O BLOCO DE FREVO FICANDO EM CENA A PROFESSORA.)
PROFESSORA
- E foi assim que... (dedilha) ao ritmo de um frevo apaixonado... este homem nos deixou. Quanta
saudade (maliciosa) em alguns corações, é claro! (pausa) Na Holanda ele também brilhou, mas
isto é outra história que não nos cabe narrar. Depois que Maurício de Nassau partiu, o Brasil
começou a vencer. E em 1654, os flamengos foram definitivamente expulsos da nossa terra... E
(irônica) aquela doce paz voltou à casa grande e... à senzala!

(BLACK OUT)

33
CENA 15

(INTERIOR DE UMA CASA-GRANDE. PAREDES PESADAS E CAIADAS DE BRANCO.


A CENA É PREPARADA À VISTA DO PÚBLICO. UMA REDE É COLOCADA NO LADO
DIREITO DO PALCO. ESSA REDE TEM SUAS ALÇAS ATRAVESSADAS POR UM
BAMBU CUJAS EXTREMIDADES SE APOIAM SOBRE DOIS SUPORTES NO CENTRO,
UM TAPETE. SOBRE O TAPETE, ALMOFADÕES COM DOCES E FRUTOS TROPICAIS
NUM DOS CANTOS DO TAPETE, UMA ALMOFADA DE FAZER RENDA, COM OS
RESPECTIVOS BILROS. AO LADO DA REDE, DUAS BILHAS DE CERÂMICA E UMA
CANECA. NA PAREDE LATERAL ESQUERDA, UM ORATÓRIO COM IMAGENS DE
SANTOS ENTRAM OS PERSONAGENS. O CAPELÃO DA CASA-GRANDE FAZ O
SINAL-DA-CRUZ E AJOELHA-SE NO ORATÓRIO, COMEÇANDO A REZAR; ENTRAM
SINHÁ E SINHAZINHA RINDO E VÃO TOMAR OS SEUS LUGARES: A SINHÁ
ASSENTA-SE NUM DOS ALMOFADÕES, E A SINHAZINHA COMEÇA A FAZER
RENDA; ENTRA O SINHÔ, DESCALÇO E COÇANDO UM DEDO DO PÉ, E VAI
DEITAR-SE NA REDE; ENTRAM DUAS NEGRAS E UM NEGRO; UMA DAS NEGRAS
COMEÇA A FAZER CAFUNÉ NA SINHÁ; A OUTRA, DIRIGE-SE À REDE E COMEÇA A
FAZER CAFUNÉ NO SINHÔ, ENQUANTO UM NEGRO COMEÇA A TIRAR-LHE UM
BICHO-DO-PÉ.) MÚSICA INCIDENTAL.)

SINHÔ
- Depois que os flamengos se foram, isto aqui voltou a ser o que era: um paraíso.
SINHÁ
- É o que eu digo, senhor meu marido. (Dando um tapa no braço da negra que lhe faz cafuné)
Ai, tá me machucando, Benvinda!
BENVINDA
- Me perdoe, Sinhá.
SINHÁ
- Faz, mas de mansinho... bem gostoso, viu!
SINHÔ (para o negro que lhe tira o bicho-do-pé)
- Vai com jeito, Serafim!
SERAFIM
- Sim, sinhô.

SINHAZINHA
- Mãe, desde dia hoje tô com uma coceira...!
SINHÁ (lassa)
- Onde, Dedé?
SINHAZINHA
- Na piriquita, mãe!
(O PADRE OLHA PARA SINHAZINHA, PÕE AS MÃOS NO PEITO E OLHA PARA O
CÉU, ESCANDALIZADO. OS NEGROS TODOS RIEM.)
SINHÁ (dando outro tapa na Benvinda mas com certa preguiça)
- Te bota no seu lugar, Tição!
SINHÔ (para o negro que lhe espetara o dedão)
- Ai meu dedo, seu excomungado! Tá querendo ir para o tronco, é?
SERAFIM (ainda rindo)
- Foi sem querê, meu sinhô, nego se distraiu.
SINHÔ
- É o que dá, ficar ouvindo prosa de branco.

34
SINHÁ
- Olha aqui, Dedé, depois eu vou mandar a das Dores te preparar um banho de assento com
gomo de cajueiro. É um santo remédio pra coceira.
DAS DORES (parando o cafuné que fazia no Sinhô e oferecendo refresco)
- De genipapo ou de aluá, meu sinhô?
SINHÔ
- De genipapo.
(DAS DORES ENFIA A CANECA NA BILHA E SERVE O SENHOR ENQUANTO A
SINHÁ SE FARTA DE DOCES.)
SINHAZINHA
- Eu não gosto de tomar banho de assento, senhora minha mãe.
SINHÁ (com a boca cheia e escorrendo doce pelo queixo)
- Vai tomar sim! Que menina mais rebelde!
SINHÔ (para das Dores)
- Coça, das Dores, coça... mas coça com gosto!
SINHÁ (para Benvinda)
- Coça, Benvinda, coça... mas coça com gosto!
SINHAZINHA
- De assento eu não tomo!
SINHÁ (de boca cheia)
- Toma sim.
SINHÔ (para das Dores)
- Agora vai descendo devagarinho... Esfrega de leve no cangote, minha filha.
SINHÁ (começando a se excitar)
- Esfrega mais, esfrega mais, Benvinda...
PADRE (pigarreando)
- Não quero ser um desmancha-prazeres, mas para tudo há um limite neste mundo de Deus, meus
filhos.
SINHÔ (com dor)
- Ai!
SERAFIM (que acabara de tirar o bicho-do-pé)
- Saiu, meu sinhô, olha que baita! São dois!
SINHÔ
- Deixa ver... (enquanto examina os bichos que Serafim lhe mostra, vai coçando o dedão) Ai que
coceirinha boa!...
SINHÁ
- Amassa, Benvinda, amassa...
PADRE (persignando-se)
- Que pouca vergonha neste Brasil!
DAS DORES (oferecendo refresco)
- De genipapo ou de aluá, meu sinhô?
SINHÔ
- De genipapo. (Das Dores o serve)
SINHÁ
- Isso, Benvinda! Amassa, meu bem, amassa...!
SINHAZINHA
- Senhor meu pai, quando é que vem de Recife o João Mascate?
SINHÔ (tomando refresco)
- Para quê, minha filha?
SINHAZINHA (coçando-se)
- Minha água-de-cheiro já está no fim.
SINHÔ (coçando-se)

35
- Qualquer dia desses, Dedé.

SINHÁ (tendo um orgasmo)


- Ai, ai, que pecado mais gostoso, esse!
PADRE (escandalizado levantando-se e pondo as mãos na cintura dirigindo-se ao público)
- Para mim já é demais! (Sai)
SINHÔ (para Sinhá)
- Minha senhora, vosmecê viu o atrevimento do Padre Antônio?
SINHÁ (recompondo-se)
- Eu vi, senhor meu esposo... É um padre muito ordinário. Em vez de emprenhar nossas
negrinhas, fica implicando com a gente. (Com a boca cheia de doce) Começa de novo.
Benvinda, hoje estou muito precisada. (Benvinda recomeça o çafuné)
DAS DORES (deixando o cafuné e oferecendo refresco)
- De genipapo ou de aluá, meu senhor?
SINHÔ
- Pare de me oferecer refresco, das Dores! E vê se aprende com a Benvinda como se faz um
cafuné!
DAS DORES (rindo)
- Faço o que posso, nhonhô.
(ENTRA TOTONHO, O FILHO, ABOTOANDO A BRAGUILHA.)
TOTONHO
- Senhor meu pai, se não for incômodo, eu queria falar com vossa mercê.
SINHÔ
- Chega aqui, filho... (O pai estende a mão e o filho, respeitosamente, a beija) Que é, Totonho?
TOTONHO
- São umas manchas que me apareceram na cara... (Mostra o rosto cheio de manchas vermelhas)
SINHÔ
- Não é nada, Totonho, é sífilis.
TOTONHO
- Sífilis?!
SINHÁ
- Não se preocupe, não meu filho! Pega lá na cristaleira uma garrafada. Daquelas que o João
Mascate trouxe da última vez.
SINHÔ
- E não te esqueças de chupar caju. (Para das Dores) Você é uma nulidade. Pare com esse
cafuné! (Para Serafim) Serafim, vai lá chamar o Damião que eu preciso dar uma vistoria na
moenda.
SERAFIM
- Sim sinhô. (Sai)
SINHAZINHA
- Mãe, posso pedir para Benvinda cantar uma modinha pra nós.
SINHÁ (irritada)
- Pode. Você não tem jeito, Dedé.
BENVINDA (começa a cantar e a dançar com Totonho)
- Meu branquinho feiticeiro
doce ioiô meu irmão
adoro o teu cativeiro
branquinho do coração.
Meu branquinho feiticeiro
doce ioiô meu irmão
como é gostoso o teu beijo
atrás do pé de limão.

36
SINHAZINHA (adorando)
- Ai como a Benvinda canta!
SINHÁ (cortando)
- Canta, nada! (para a filha) Quer acostumar mal a Benvinda? (Entram Serafim e Damião)
SERAFIM
- Toma aqui, sinhô.
SINHÔ
- Vamos para a moenda.
(MÚSICA INCIDENTAL. OS DOIS NEGROS TRANSPORTAM A REDE COM O
SENHOR.)
SINHAZINHA
- Por desaforo eu não vou tomar banho de assento.
SINHÁ
- Mas depois não te queixes da coceira.

(BLACK OUT)

CENA 16

(A MESMA MÚSICA MEDIEVAL TOCADA NA PRIMEIRA CENA DA PEÇA. PALÁCIO


REAL DE LISBOA. SOB UM DOSSEL VERDE E VERMELHO, O TRONO REAL.
SENTADO NO TRONO O FAVORITO DE AFONSO VI. ESTE ESTÁ SENTADO NO
COLO DO AMANTE. POR UM CAPRICHO, A COROA ESTÁ NA CABEÇA DO
FAVORITO. A LUZ PRODUZ UM EFEITO DE FANTASIA SOBRE O TRONO. AMBOS
ESTÃO SONHANDO.)

REI (no colo do favorito)


- Meu rei... meu belo rei... Sabe qual seria a maior felicidade?
FAVORITO
- Qual?
REI
- Que pelo menos um dia ninguém nos perturbasse com negócios de Estado.
FAVORITO
- Seria pedir muito.
REI
- E se fugíssemos nós dois, por uma noite dessas?... Disfarçados pegaríamos um veleiro... e na
América, à sombra de palmeiras carregadas de papagaios, faríamos uma cabana...
FAVORITO
- Perto do mar?
REI
- Claro! E de noite ficaríamos contando as estrelas.
FAVORITO
- Dizem que nos trópicos não é preciso trabalhar.
REI
- Dizem que lá tudo dá... sem esforço.
FAVORITO
- E os selvagens?
REI

37
- São homens simples, naturais... são uns bons selvagens.
FAVORITO
- Não são antropófagos?
REI
- Alguns. Você tem medo?

FAVORITO
- Eu teria ciúme. Todos aqueles homens nus...
(ENTRA APRESSADO UM ALCOVITEIRO.)
ALCOVITEIRO
- Majestade! Majestade! O Conde de Castelo Melhor já se fez anunciar.
(AMBOS SE LEVANTAM. O REI TIRA A COROA DA CABEÇA DO FAVORITO E A
COLOCA NA SUA.)
REI
- Esse conde é um impertinente.
FAVORITO
- Preparai-vos majestade.
(ENTRA O CONDE DE CASTELO MELHOR.)
ALCOVITEIRO
- Ele esta aí, Majestade!
(O REI ASSENTA-SE NO TRONO E O FAVORITO FICA AO SEU LADO NUMA
RESPEITOSA DISTÂNCIA.)
CONDE (curvando-se)
- Majestade...
REI
- Quais são as notícias desagradáveis?
CONDE
- Quisera vos poupar empenhos difíceis, Majestade.
REI
- O que o senhor nunca consegue, infelizmente
CONDE
- O melhor ministro não é o que esconde as dificuldades.
REI
- Pode falar, senhor Conde de Castelo Melhor.
CONDE
- É preciso que Vossa Majestade autorize a retirada de nossas tropas das praças do Oriente.
Mantê-las está acima de nossas possibilidades financeiras.

REI
- Pelo que vejo, nosso império indiano acabou.
CONDE
- No entanto, meu senhor, ainda resta uma esperança.
REI (curioso)
- E qual é?
CONDE
- Ainda vos podeis tornar um príncipe glorioso... A história há de dizer que Afonso Sexto
restaurou o reino de Portugal.
REI (irônico)
- E como? Pedindo um novo empréstimo aos judeus de Antuérpia?
CONDE
- Notícias ainda frescas, chegadas do Brasil, poderão mudar o destino do Reino.
REI (interessado)

38
- Do Brasil? Diga, diga logo, senhor Conde.
CONDE
- Alguns índios aprisionados em São Vicente revelaram a existência de uma tribo que habita às
margens de uma fabulosa lagoa, onde é tanto o ouro que até as águas são douradas...
REI (fascinado)
- Ouro! Ouro!... O senhor está falando de ouro?
CONDE
- E as águas da lagoa correm de uma serra coberta de pedras verdes.
REI (alucinado levantando-se do trono)
- Esmeraldas, meu Deus! (ao favorito) Você ouviu?
CONDE
- Até as nuvens da região são verdes.
REI (entusiasmado)
- O Brasil vai nos tirar da ruína!... E diga, senhor Conde, como vamos meter a mão nessa riqueza
toda?
CONDE
- É fácil. Há em Piratininga um homem de extremo valor e fidelíssimo à Vossa Coroa. Um
homem que á percorreu todo o sertão... um bandeirante...
REI
- E o seu nome?

CONDE
- O lendário Fernão Dias Paes Leme.
REI
- Escreva-lhe, senhor ministro, uma carta... Prometa-lhe mundos e fundos: honrarias, riquezas,
mercês... Tudo o que for preciso! Mas que ele parta imediatamente em busca das esmeraldas.
CONDE (curvando-se)
- Escreverei já, Majestade.
REI (gritando)
- Corra! (O Conde sai. O Rei dirigindo-se ao alcoviteiro) E você aí, caia fora também! (O
alcoviteiro sai. O Rei estende os braços e atrai o favorito para junto de si) E para nós dois, vou
mandar construir um palácio todo de ouro e prata.
FAVORITO
- É demais, Majestade!
REI
- E você não sabe do melhor: você vai me comer num leito todo incrustado de esmeraldas!

(BLACK OUT)

39
CENA 17

(COLÉGIO SION, 1943. UMA SINETA INDICA O FIM DO RECREIO. VOZERIO DE


ALUNAS. ENTRAM EM CLASSE A PROFESSORA DONA IRACEMA E SUAS ALUNAS:
BIBI PENTEADO, GUARACÍABA TUPINAMBÁ RAMALHO, MARGARITA TAGLIA-
FERRO, GUIOMAR BARRETO MESQUITA E SAMIRA HADDAD.)

PROFESSORA (espirrando)
- Assentem-se, meninas! São Paulo em julho é uma verdadeira Sibéria! (Assoa o nariz com um
lenço) De tanto riscar com lápis vermelho a prova de vocês — porque vocês erram tudo! — eu
vou acabar tendo a minha terceira bursite. Por isso, fiquem sabendo que este mês eu não vou dar
prova escrita. Vou fazer uma chamada oral, vai ser de surpresa, e vai ser uma verdadeira blitz!
Aliás, vou começar já!
GUIOMAR
- Mas a gente não estudou, dona Iracema!
GUARACIABA
- Assim não vale, professora!
BIBI
- Que vai ser de mim?
SAMIRA
- A senhora não tem pena de nós, dona Iracema?
PROFESSORA
- Não tenho pena de ninguém, pois a obrigação do aluno é estar com a matéria em dia. Vou
começar com... (As alunas se entreolham apavoradas) Vou começar com você, Guaraciaba
Tupinambá Ramalho! Vou fazer uma pergunta muito exata. Por que Dom Afonso VI mandou
uma carta para o Fernão Dias Paes Leme, por quê?
MARGARITA (levantando a mão)
- Eu sei!
PROFESSORA
- Eu sei que você sabe, Margarita Tagliaferro! Vamos, Guaraciaba, responda!
GUARACIABA
- Bem... ele mandou uma carta porque... (Olha para Bibí pedindo em off)
BIBI (soprando)
- As esmeraldas..

GUARACIABA
- As esmeraldas, dona Iracema!

PROFESSORA
- Ah, muito bem, até que enfim! (Pausa) Mas o que se passava com as esmeraldas?
GUARACIABA (desatando)
- O rei falou que o amante ia comer ele numa cama de esmeraldas...
PROFESSORA (cortando)
- Que horror, Guaraciaba! Depois vão falar que eu ensino pornografia no Sion. Imaginem se isso
cair no ouvido da inspetora federal! A dona Altair me expulsa do magistério. (As alunas riem)
Desisto de você vou te dar uma nota baixíssima, Guaraciaba. (Voltando-se para Margarita)
Você que é estudiosa Margarita, vamos, responda.
MARGARITA
- O rei escreveu uma carta prometendo mundos e fundos para o Fernão Dias, para que ele

40
entrasse no sertão à procura das esmeraldas.
PROFESSORA (satisfeita)
- Maravilha! É isso mesmo! Se não fossem alunas como você, eu já desistido da minha cátedra.
(Outro tom) E o velho Fernão Dias, que era um súdito muito leal não considerou nada: nem a
idade, nem os perigos, e decidiu entrar pela mata em busca das sonhadas esmeralda (Pausa) E
enormes os preparativos na vila de São Paulo: Bruacas de sal, fumo de rolo, panos de toicinho,
barris de pólvora, armas. munições, etc. etc. (Pausa) Fernão Dias gastou o que tinha e o que não
tinha. Deixou a sua família na miséria. E sua mulher, dona Maria Betim, até caiu de cama
(Pausa) por isso São Paulo inteiro deixou de ir à despedida. Na hora da partida, dona Maria
Betim, sem um pingo de emoção na voz, disse ao velho bandeirante: “Já que você quer partir vá.
Mas não me volte de mãos vazias.” E ele respondeu: “Ou volto com as esmeraldas, ou morro.” E
de fato ele morreu. Mas não me sobra tempo para contar a saga da expedição. Eles saíram de São
Paulo, atravessaram Minas e foram parar nos sertões da Bahia. Foram sete anos de privações,
sofrimentos, doenças e misérias de toda a espécie. Um filho seu, bastardo, é verdade, tramou
com outros companheiros a morte do próprio pai. Fernão Dias não titubeou mandou enforcar o
filho. (Pausa) E aquela bandeira, aquele pequeno bando de homens esfarrapados e combalidos,
um dia dá de encontro com uma lagoa verde e de águas estagnadas. E aí, minhas alunas, nas
imediações dessa lagoa, Fernão Dias encontrou as pedras longamente cobiçadas. E também
encontrou a febre, o miasma, a morte. (Começa o delírio de Fernão Dias assumido pela
professora) Esmeraldas! Esmeraldas! (Luz verde) E o delírio começa. A mão que a febre agita,
ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aflita. Crispa os dedos, escarva o chão e aperta contra o
peito as verdes esmeraldas. Ah, mísero demente, o teu tesouro é falso! Tu caminhaste em vão no
encalço de uma nuvem faz, de um sonho malfazejo! Aperta, gigante, contra o peito as
esmeraldas e tudo é verde! Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas; verdes, na
verde mata embalançam-se as ramas; chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio; em
esmeraldas flui a água verde do rio, e do céu, todo o verde, as esmeraldas chovem... (Luz normal
A professora em pleno delírio está no chão. As alunas em pé, espantadíssimas) Fernão Dias Paes
Leme os olhos cerra e morre.
ALUNAS
- Bravo, professora! Muito bem, dona Iracema!

PROFESSORA (levantando-se do chão e áspera)


- Gostaram? É o poema do Olavo Bilac, “O Caçador de Esmeraldas’, que vocês vão decorar
inteirinho para a próxima aula.
BIBI
- Mas isso não é Literatura, professora?
PROFESSORA
- É Mas vocês não estão aqui para adquirir cultura geral?
GUIOMAR
- Eu estou aqui para passar de ano!
SAMIRA
- Mas ele descobriu mesmo as esmeraldas, professora?
PROFESSORA
- Infelizmente não, Samira. Eram umas turmalinas que não valiam nada. Coitado, não? (Pausa)
Mas deixemos o Fernão Dias de lado, porque estamos em junho e a matéria está atrasadíssima!
Sentem-se todas, agora, e prestem atenção, porque eu vou falar do ouro. (Pausa) Pois bem,
quando descobriram o ouro foi um deus-nos-acuda... Uns dizem que foi o Rodrigo Arzão, outros
dizem que não; outros ainda dizem que foram outros. Enfim, quando Borba Gato descobriu ouro
em Sabarabuçu, todo mundo marcou encontro em Minas Gerais. Ninguém plantava nada, nem
mandioca. Era aquela miséria e aquele ouro. O ouro saia de Minas e ia para Portugal. Mas não
ficava em Portugal: os portugueses não tinham indústria e compravam tudo da Inglaterra. Assim
o nosso ouro foi parar em Londres. Vila Rica vivia com um pé na miséria e outro no esplendor:

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igrejas, igrejas e palácios barrocos estão aí para provar. Os mulatos faziam música, os
aleijadinhos faziam escultura e os poetas, como é natural, faziam poesia. (Pausa) O Sion queria
que eu levasse vocês a Ouro Preto para explicar a Inconfidência Mineira no próprio local. Eu
mandei uma carta para a Secretaria de Educação de Minas, mas eles responderam que estavam
com os cofres vazios — como sempre — e que não podiam financiar uma tal excursão. Assim,
eu sou obrigada a discorrer sobre a Inconfidência Mineira aqui mesmo. E vai ser já.
GUIOMAR
- Ah, dona lracema, nós não vamos para Minas?
PROFESSORA
- Infelizmente não. Mineiro não abre a mão nem pra ver se está chovendo. E continuando: a
partir de 1750, a mineração entrou em franca decadência. O ouro começou a diminuir e Portugal
começou a reclamar. Quanto mais Portugal reclamava mais o ouro sumia. Quando Dona Maria I
— a rainha louca — subiu ao trono de Portugal foi uma loucura. Por outro lado, a Capitania das
Minas Gerais já não podia pagar as cem arrobas anuais de ouro que a coroa exigia. A rainha,
meu Deus, ficou ainda mais louca! E mandou o governador de Minas Gerais, o Visconde de
Barbacena, fazer a Derrama. (Chamando) Margarita, o que é a Derrama?
MARGARITA
- Era um imposto obrigatório a ser pago por toda a Capitania de Minas Gerais.

PROFESSORA
- Muito bem, Margarita Tagliaferro! (Às outras alunas) Mirem-se no exemplo dela. (Pausa)
Decretada a Derrama, Vila Rica ficou em polvorosa. A elite colonial começou a erguer seus
punhos rendados contra Portugal. E, na calada da noite, começaram a conspirar. No fundo era
uma revolução burguesa num país que não tinha burguesia. Alguns historiadores chegam até a
afirmar que foi apenas um levante de mineradores contra os abusos do fisco.
BIBI
- E o Tiradentes?
PROFESSORA
- Para Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, eu abro uma exceção: ele era realmente um
idealista.
GUIOMAR
- E o que os inconfidentes pretendiam, dona Iracema?
PROFESSORA
- Eles queriam a independência de Minas e do Rio de Janeiro. O resto do Brasil eles deixavam
para os portugueses.
SAMIRA
- E São Paulo?
PROFESSORA
- Eles não estavam nem aí com São Paulo. Os inconfidentes queriam uma república nos moldes
norte-americanos, queriam instalar fábricas e uma universidade em Vila Rica. Como o
liberalismo deles não era para valer, eles deixaram de lado o problema de escravidão. Os negros
iam continuar na pior.
MARGARITA
- E por que eles não pensavam nos negros, dona Iracema?
PROFESSORA
- Porque não interessava. Porque quase todos eles eram proprietários. Mas não posso me deter,
porque o tempo urge. O resto vocês lá sabem: Tiradentes foi enforcado, foi esquartejado sua casa
foi salgada e os seus restos mortais foram espalhados pelas estradas de Minas Gerais. E tratem de
ir arrumando as malas, porque amanhã de madrugada nós vamos pegar um avião para São
Salvador. (Soa a campainha indicando o final da aula)
TODAS
- O sinal, professora! A aula acabou!

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PROFESSORA
- Eu sei. A Secretaria de Educação da Bahia foi muito generosa. Vai financiar a nossa excursão.
Eles não são como os mineiros. Podem sair, minhas alunas.

(BLACK OUT)

CENA 18

(TELÕES MOSTRANDO SALVADOR. AO SOM DA MÚSICA “NA BAIXADO


SAPATEIRO” DE ARI BARROSO, ENTRA A PROFESSORA E SUAS CINCO ALUNAS,
TODAS COM BUQUÊS DE ROSAS VERMELHAS NA MÃO. ESTÃO FANTASIADAS DE
BAIANA. FANTASIAS LEVES E COM UM MÍNIMO DE PANOS E BALANGANDÃS; AS
SAIAS DEVEM IR ATÉ OS JOELHOS, E AS MANGAS DAS BLUSAS SÃO CURTAS E
LIGEIRAMENTE BUFANTES; LENÇOS NA CABEÇA, AMARRADOS À MANEIRA DE
TURBANTES.)

PROFESSORA
- Detesto essas excursões a que o Colégio Sion me obriga. Eu acho que História a gente estuda
nos livros e na escola. Mas já que estamos na Bahia, vou tentar explicar da melhor maneira
possível a Inconfidência Baiana. (Pausa) Essa rebelião não se limitou à elite branca de letrados e
homens livres. De maneira alguma!
BIBI
- Mas houve, então, uma Inconfidência Baiana, dona Iracema?
PROFESSORA
- Só houve. Em 1798. (Sarcástica) E não foi uma revolução de punhos rendados como a Mineira.
(Afetada) Pode-se dizer que a Conjuração Baiana foi o primeiro movimento de classes no Brasil,
isto é, foi o início da luta de classes. Foi um movimento consciente.
(ENTRAM OS REVOLUCIONÁRIOS BAIANOS VINDOS DO FUNDO. VOZERIO. EM
SURDINA, MUITO EM SURDINA, OUVE-SE ‘A MARSELHESA’: O VOZERIO CRESCE
E OS REVOLUCIONÁRIOS PASSAM A EXPRIMIR EM ALTOS BRADOS SEUS IDEAIS.
ENTREMENTES, A PROFESSORA E AS ALUNAS, ASSUSTADAS, SOBEM NUM
PRATICÁVEL, APOIANDO-SE UMAS NAS OUTRAS. FICAM CERCADAS PELOS
REVOLUCIONÁRIOS.)
REVOLUCIONÁRIOS
- Viva Jean-Jacques Rousseau! Negro também é gente! Morte aos aristocratas! Liberdade,
Igualdade e Fraternidade! Liberdade para os escravos! Viva a reforma agrária! Morte aos

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portugueses! Morram os padres! Vivam os alfaiates! Viva o Terror! Viva Robespierre! Abaixo
os tiranos! Viva o casamento civil! Abaixo os açougueiros! Abaixo a propriedade privada! Viva
a ciência! Viva a França! Abaixo a Inglaterra! Viva a República! Viva a Assembléia Nacional!
Forca para os reis! Laissez faire, laissez passer!...
(ENTRE APAVORADA E ENTUSIASMADA A PROFESSORA COMEÇA A CANTAR A
MARSELHESA’ DEPOIS DE ALGUNS INSTANTES AS ALUNAS TAMBÉM CANTAM.)
PROFESSORA (cantando)
- Allons enfants de la patrie/Le jour de gloire est arrivé/ Contre-nous de la tyranie/L’etefldard
sanglant est levé...
CORO DE REVOLUCIONÁRIOS
- Letendard sanglant est levé...
PROFESSORA
- Minha queridas alunas, foi ótimo virmos à Bahia. Assim vocês puderam sentir in loco a
Inconfidência Baiana. Não se assustem. Esse pessoal deve fazer parte de algum grupo folclórico.
(Incentivando as alunas) Vamos, perguntem o que quiserem. Garanto que eles estão por dentro
da História. Baiano é muito culto.
GUIOMAR
- Vai, Samira Haddad, pergunte alguma coisa.
SAMIRA
- Vocês fazem teatro de rua?
REVOLUCIONÁRIO
- Desde que Salvador era capital do Brasil!
GUARACIABA (tomando coragem)
- Ó gente, qual é a diferença entre a Inconfidência Mineira e a Inconfidência Baiana?
MARGARITA
- Por que tem tanto preto nessa revolução?

REVOLUCIONÁRIOS
- Não temos punhos de renda
somos negros e mulatos
escravos e mal-nascidos
homens da plebe ignara
quase sempre uns fodidos.

Miseráveis alfaiates
pedreiros e biscateiros
soldados de baixos postos
ourives e carpinteiros.

Toda uma gente explorada


enquanto o branco passeia
empinando a pança cheia.

Miserável e insatisfeito
passa o povo vida dura
aumenta o sal some o azeite
sobe a carne some o leite
e nossos filhos passam fome
pois seu pão o rico come.

Do que o branco se regala


possa o negro se fartar

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pois ninguém vai segurar
nossa sede de justiça.
REVOLUCIONÁRIOS, PROFESSORA E ALUNAS
- Há de florir a igualdade
sob o céu da liberdade
sob o céu do meu Brasil.

Para a fogueira o tirano


para a forca o português
que vá a rainha pro inferno
e pau no cu do burguês.
(A ÚLTIMA ESTROFE É REPETIDA, ENQUANTO A PROFESSORA E AS ALUNAS VÃO
JOGANDO ROSAS SOBRE OS REVOLUCIONÁRIOS.)
(BLACK OUT)
A CORTINA SE FECHA.
FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

CENA 1

(TELÃO REPRESENTANDO O CAIS E A CIDADE DO RIO DE JANEIRO. ANO 1808. NO


FUNDO UM NAVIO COM BANDEIRA PORTUGUESA. OS PERSONAGENS EM CENA
ESTÃO ESPERANDO O DESEMBARQUE DE D. JOÃO VI.)

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PERSONAGENS DA CENA:
DINORÁ — NEGRA VENDEDORA DE QUITUTES;
SOUZA — IRMÃO DAS ALMAS;
CRUZ — UM SOLDADO DE MILÍCIAS;
TOCADOR DE REALEJO E SUAS SORTES;
GUILHOTINA — UMA PROSTITUTA;
DOM MARCOS DE NORONHA E BRITO — VICE-REI;
ADELAIDE — ESPOSA DO VICE-REI
RODRIGO — SARGENTO DE MILÍCIAS;
SEBASTIÃO — PAJEM NEGRO;
LAFAIETE — OUTRO PAJEM NEGRO;
DOM JOÃO VI;
DONA CARLOTA JOAQUINA — SUA ESPOSA;
DONA MARIA — RAINHA DE PORTUGAL E MÃE DE DOM JOÃO VI;
DOM PEDRO — CRIANÇA E
DOM MANUEL — CRIANÇA.)
ESCLARECIMENTOS:
DINORÁ — A VENDEDORA DE QUITUTES — TRAZ UM TABULEIRO; SOUZA — O
IRMÃO DAS ALMAS — TRAZ A SALVA ONDE RECOLHE AS ESMOLAS; O TOCADOR
DE REALEJO TRAZ NO SEU CARRINHO UM PERIQUITO; OS PAJENS NEGROS
USAM TRAJES VISTOSOS DE CETIM E CABELEIRAS EMPOADAS; AS DUAS
CRIANÇAS, DOM PEDRO E DOM MANUEL, TÊM MAIS OU MENOS 10 ANOS E
ESTÃO VESTIDOS DE BRANCO, ASSIM COMO DONA MARIA; OS SOLDADOS
FAZEM A RONDA PARA MANTER A ORDEM; O VICE-REI E A ESPOSA ESTÃO
PRÓXIMOS DA ESCADA APENSA AO NAVIO.

DINORÁ
- Olha a pamonha do Valongo!... Olha o beiju quentinho! Quem quer do meu manuê que dá água
na boca de quem comer!? (Para o irmão das almas) Vai uma pamonha, meu branco?
(O TOCADOR DE REALEJO COMEÇA A TOCAR, ENCOBRINDO EM PARTE A
RESPOSTA DE SOUZA, O IRMÃO DAS ALMAS.)
SOUZA
- Com este calor! Deus me livre, Dinorá!
DINORÁ
- E um beiju?
SOUZA
- Também não.
DINORÁ
- Mas também não me peça dinheiro para as almas. (Voltando-se para Cruz, soldado de milícias)
O Cruz, por que demoram tanto para descer?
CRUZ
- Me disseram, Dinorá, que Dom João VI é muito lerdo.
DINORÁ
- Cruzes, não vou ficar a vida inteira plantada aqui, não! Quer uma pamonha, meu bem?
CRUZ
- Quanto custa?
DINORÁ
- Para você eu dou de graça. (Ela não dá e sai apregoando) Pamonha, pamonha do Realengo,
quem não compra não ganha dengo!
TOCADOR DE REALEJO (tocando o instrumental)
- A sorte, a sorte! A vida está pela hora da morte! (Passando por Guilhotina belisca-lhe o
traseiro)

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GUILHOTINA
- Tire as patas, cabrão!
VICE-REI (Para Adelaide sua esposa)
- Estou a me sufocar nesta casaca, Adelaide. Não há meio de descerem do barco. Isto já me
parece desaforo!
ADELAIDE (se abanando)
- Tenha paciência, Noronha, é a primeira vez que uma família real põe os pés na América.
TOCADOR DE REALEJO
- A sorte, a sorte!...
DINORÁ (Para Guilhotina)
- Saba Guilhotina, Dom João ficou uma semana inteira na Bahia metido no navio.

GUILHOTINA
- Por que, Dinorá?
DINORÁ
- Medo, minha filha!
GUILHOTINA
- A mim pouco se me dá, estou aqui só para ver se pego um portuga.
SOUZA (dirigindo-se ao Vice-Rei)
- Senhor Vice-Rei, uma esmola para as almas, meu senhor! (O Vice-Rei põe uma moeda na
salva) Deus lhe pague. As almas do purgatório agradecem.
RODRIGO (para Souza)
- O Souza, dizem que tu embolsas o dinheiro das almas.
SOUZA
- É calúnia, sargento Rodrigo. E que o fizesse? Acaso também não tenho alma?
RODRIGO
- És muito finório, Souza.
ADELAIDE (Para o Vice-Rei)
- Sabe, Noronha, me disseram que Dona Maria está completamente louca.
VICE-REI
- Também, com tantos lutos em família! Como se não bastasse perder o maridinho, por quem ela
tinha verdadeira paixão...
ADELAIDE
- Maridinho? Dizem que o rei era um homem e tanto!
CRUZ (Para Guilhotina)
- Não sabe a dona que hoje é proibido ficar zanzando aqui no cais?
GUILHOTINA
- Maricas.
CRUZ
- Prendo-te, sua descarada!
RODRIGO (intervindo)
- Deixa a menina em paz, Cruz!
CRUZ
- O senhor manda, sargento.
VICE-REI
- Não é à toa que perdeu o juízo.

ADELAIDE
- E a maluquinha fica perambulando pelos corredores de Queluz.
SEBASTIÃO
- O Lafaiete, poderias me dizer por que o príncipe-regente Dom João veio dar com os costados
no Brasil?

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LAFAIETE
- Já te expliquei mais de uma vez, Sebastião. Será que não me entendes?
DINORÁ (apregoando)
- Pamonha, pamonha de Cascadura...
TOCADOR DE REALEJO
- A sorta a sorte!... Quem não arrisca não petisca, galinha velha não cisca!
SEBASTIÃO (Para Lafaiete)
- Eu não estou entendendo direito, Lafaiete.
LAFAIETE
- Ora, todo mundo sabe Sebastião! Foi por causa do Bloqueio Continental!
SEBASTIÃO
- Bloqueio Continental? Que vem a ser isto, primo?
LAFAIETE
- O grande Napoleão, primo, o imperador dos franceses, proibiu todo e qualquer comércio entre
os países europeus e a Inglaterra. O magnífico Napoleão disse do alto do seu trono que ninguém
podia receber navios ingleses. Os outros obedeceram na hora. Mas Dom João tentou enganar
Napoleão fazendo média com os dois lados. E lógico, primo, que não deu certo.
ADELAIDE (para o Vice-Rei)
- Você não acha, Noronha, que Portugal deve estar um horror, com todos aqueles franceses
depravando as melhores famílias de Lisboa? (Música de realejo)
SOUZA (para dona Adelaide)
- Uma esmolinha para as almas, minha caridosa senhora!
ADELAIDE
- Mas eu já lhe dei há pouco! (Para o Vice-Rei) Ele se aproveita, pobre das almas!
GUILHOTINA (abanando-se)
- Será que eles não vão descer nunca?
RODRIGO (bem humorado)
- Se não te pões ao fresco, vais para a Casa-da-Guarda.
GUILHOTINA
- Ah! eu queria tanto ver os dois meninos... Dizem que o Pedrinho e o Manoel são lindos!
SEBASTIÃO (ao Lafaiete)
- Ah, então foi isso? Quem diria, heim? Bem atrevido esse tal de Napoleão!
LAFAIETE
- Então, primo, Dom João teve que fugir. Aliás, foi uma correria no cais de Belém. As tropas de
Napoleão quase pegam Dom João pelos fundilhos.
DINORÁ (apregoando)
- Pamonha de Irajá, beiju da Tijuca, manuê de Andaraí!
SOUZA
- Um cruzadinho para as almas...
(MÚSICA EM OFF: UM DOBRADO DE CIRCO, TODOS SE VOLTAM PARA O NAVIO.
OUVEM-SE DE VÁRIOS PONTOS: “É AGORA!... CORRE GENTE!... O PRÍNCIPE
CHEGOU!... VAI DESCER!... NÃO EMPURRE!... ATÉ QUE ENFIM!... AI QUE
EMOÇÃO!”)
VICE-REI (adiantando-se)
- Viva o Príncipe Dom João!
TODOS
- Viva!
SEBASTIÃO
- Viva Dom João nosso irmão!
TODOS
- Viva!
(SURGE DOM JOÃO NO ALTO DO NAVIO.)

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TODOS
- Viva Dom João!
ALGUÉM
- Viva o rei fujão!
DOM JOÃO (começando a descer a escada do navio)
- Obrigado, obrigado! (Acena para o povo) Obrigado, minha gente, obrigado meus súditos tão
leais! (Faz sinal para que o povo silencie) A paisagem é inenarrável, o céu é deslumbrante, o
povo é desfrutável, e o clima, sufocante! Em suma, estar na América é deveras aconchegante!
(CHEGANDO AO PÉ DA ESCADA, DOM JOÃO É AUXILIADO POR LAFAÍÈTE E
SEBASTIÃO QUE OPÕEM EM TERRA. O VICE-REI E DONA ADELAIDE BEIJAM-LHE
A MÃO. NO ALTO SURGE DONA CARLOTA JOAQUINA.)
LAFAIETE
- Viva Dona Carlota Joaquina!
TODOS
- Viva!
CARLOTA (descendo a escada e se queixando)
- Imagine se isso são modos de receber uma princesa! Que eu fiz para vir parar em terra de
negros, que horror! (E auxiliada pelos pajens a descer; em seguida é apresentada ao Vice-Rei e
esposa, que lhe beijam a mão)
(SURGEM DONA MARIA E SEUS NETOS, DOM PEDRO E DOM MIGUEL TODOS
VESTIDOS DE BRANCO)
LAFAIETE
- Viva Dona Maria Primeira!
TODOS
- Viva!
ALGUÉM
- Viva Dom Pedro e Dom Miguel!
TODOS
- Viva!
ALGUÉM
- Viva a rainha Dona Maria Louca!
TODOS
- Viva!
(QUANDO OS PAJENS NEGROS VÃO AJUDÁ-LA A DESCER, ELA TEM UMA CRISE
DE LOUCURA.)
DONA MARIA
- Socorro! Satanazes! Tirem esses demônios da minha frente! (Assustados, os pajens se afastam;
Acudam-me! Estou no inferno!
DOM JOÃO
- Senhora minha mãe, fique calminha. São apenas dois pajens de cor.
DONA MARIA (abraçando-se a Dom João)
- Tem certeza, meu filho, de que não são demônios?
DOM JOÃO (para o Vice-Rei)
- Minha real mãe ficou um pouco perturbada com a viagem.
VICE-REI
- Naturalmente Alteza, o balanço das ondas... (O Vice-Rei começa a tirar da casaca um imenso
discurso)

DOM JOÃO
- Senhor Vice-Rei, eu dispenso todas as formalidades. O senhor pode me dar seu discurso que eu
leio em casa.
ADELAIDE (para o Vice-Rei)

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- Ai, de que maçada ele nos livrou!
DINORÁ (aproximando-se de Dom João)
- Será que Vossa Alteza não quer uma pamonha?
RODRIGO (para Cruz)
- Ó Cruz, afaste essa mulher!
DOM JOÃO (para Cruz)
- Nada disso, quero conversar com esse povo tão espontâneo, tão caloroso... (Para Dinorá)
Como se chama mesmo esses quitutes que a filhota está vendendo?
DINORÁ (charmosa)
- Pamonha, Dom João, pamonha! O senhor quer provar uma?
DOM JOÃO
- Dá-me seis de uma vez. (Para o Vice-Rei) Ô Noronha, pega aí esses quitutes e manda por na
conta do tesouro real.
DINORÁ (entregando as pamonhas ao Vice-rei)
- Meu Deus, como ele é simples, comunicativo... (Para o povo) Vocês viram, gente, ele comprou
as minhas pamonhas!
GUILHOTINA (pendurada no ombro de Rodrigo)
- Estou gostando desse príncipe!
(ENQUANTO DOM JOÃO CONVERSA COMO VICE-REI, CARLOTA JOAQUINA SE
SEPARA DO GRUPO E SE DIRIGE A RODRIGO.)
CARLOTA (para Rodrigo)
- Então o senhor é um sargento de milícias? E há quanto tempo está engajado?
RODRIGO
- Há dois anos, Alteza.
CARLOTA (apontando para Guilhotina)
- E essa senhora... é sua esposa?
RODRIGO
- Bem, não é, propriamente uma senhora...
CARLOTA (apalpando o bíceps de Rodrigo)
- Compreendo. Vou nomeá-lo imediatamente para a minha guarda pessoal. Gosta?

RODRIGO
- É o meu sonho.
GUILHOTINA
- Eu sei que a senhora é princesa, mas esse homem é meu.
CARLOTA
- Mas eu quero apenas emprestado, você deixa?
DOM JOÃO (dirigindo-se ao irmão das almas)
- O que estás a recolher nesta salva, meu senhor?
SOUZA
- Esmola para as almas.
DOM JOÃO (ao Vice-Rei)
- Ô Noronha, põe uns cruzados na salva por conta do Erário Real. (Noronha tira do bolso umas
moedas e põe na salva.)
LAFAIETE (admiradíssimo)
- Mas ele é muito liberal! Eu também vou falar com ele!
VOZES
- Vai! Vai, Lafaiete!
LAFAIETE
- Sereníssimo príncipe Dom João, não querendo abusar do precioso e escasso tempo de Vossa
Alteza, porque, como todos sabemos, o tempo voa e as palavras ficam... Isto é, as palavras é que
voam... mas enfim o tempo também não fica atrás, principalmente em se tratando de um

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príncipe, cujo tempo, por força de inúmeras e facciosas circunstâncias que não convém cogitar
ab hoc et ab hac, repito, há de ser despendido em especiosas preocupações que o vulgo em sua
crassa ignorância não se dá conta, no entanto, e já que Vossa Alteza vem se mostrando tão
acessível, para não dizer como o Padre Vieira “tão ocioso de ouvir a voz do povo”, ou, como
dizem as pessoas da mais alta e ilustrada cultura: Vox populi, vox Dei... eu folgaria de saber
quais são as vossas prioridades administrativas, ou seja, mutatis mutandis, quais são as metas,
ou, usando de outros vocábulos, o que Vossa Alteza pretende fazer para melhorar esse Rio tão
acanhado?
CARLOTA (para Lafaiete)
- O menino fala com tanto desembaraço que estou pensando em nomeá-lo meu secretário
particular.
DOM JOÃO (para Carlota)
- Por favor, contenha-se, minha senhora. (Avançando para o centro do palco) Então, vocês
querem saber o que vou fazer? Pois bem, já na Bahia mandei abrir os portos do Brasil a todas as
nações amigas...
VOZES
- Oba! Muito bem! Apoiado!
GUILHOTINA
- E aqui, aqui neste Rio, o que o senhor pretende fazer?
DOM JOÃO
- Deixem-me ver, deixem-me ver... Ah, sim! Diante desta natureza deletéria e desse clima
ofuscante, eu não tenho nem critério, acho tudo relevante... Que tal um jardim botânico?
VOZES
- Jardim Botânico?
GUILHOTINA
- Mas para que serve um jardim botânico?
DOM JOÃO (recitando)
- Para que serve?
Ora!
Para que nas tardes de verão exorbitante
pessoas finas, ilustradas e galantes
passeando nas alamedas farfalhantes
não apanhem essa terrível insolação
e possam ir decorando calmamente
neste novo paraíso terreal
os belos nomes da flora nacional.
LAFAIETE (entusiasmado)
- Inacreditável! A idéia de Vossa Alteza é deveras concupiscente conseguiu como ninguém aliar
as delícias do lazer às luzes do saber!
DOM JOÃO
- Pois, pois... Mas não viste ainda nada!
LAFAIETE
- E tem mais?
DOM JOÃO
- Vou criar uma siderurgia.
VOZES
- Siderurgia? Mas pra que serve isso?
DOM JOÃO (recitando)
- Siderurgia, minha gente, é a arte
de arrancar e produzir o ferro
hoje disputado em toda a parte.
E uma coisa afirmo, digo e não erro!

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uma nação para ser forte e potente
há de ter sempre pela frente
muito ferro!
DINORÁ
- Maravilha! Ele comprou pamonha e agora está pensando em ferro!
LAFAIETE
- Mas é uma cabeça privilegiada! Esta terra vai virar um paraíso!
DOM JOÃO (recitando)
- E doravante, abaixo as portarias
que ferozes proibiam
a criação de um parque industrial
Quem quiser criar indústrias
terá agora o meu aval.
LAFAIETE
- É demais para a minha cabeça!
SOUZA
- Vamos entrar na era industrial!
DOM JOÃO
- E para que todos saibam o que se passa pelo mundo, eu vou criar, num segundo, a Imprensa
Régia.
TODOS (cantando)
- A Imprensa Régia vai ser uma abertura
para a estreita cuca colonial
até que, enfim, meu caro Gutenberg
vai começar a farra cultural.
DOM JOÃO
- E o nosso primeiro jornal vai se chamar, se ninguém tiver uma idéia melhor, Gazeta do Rio de
Janeiro.
ADELAIDE (para o público, deslumbrada)
- Ai, que príncipe bem falante!
DOM JOÃO (cantando)
- O que eu vou fazer
vai enlouquecer o coração brasileiro
de São Sebastião do Rio de Janeiro.
TODOS (cantando)
- O que ele vai fazer
vai enlouquecer o coração brasileiro
de São Sebastião do Rio de Janeiro
A Escola Régia pode ser uma agonia
mas doravante vai acabar co’essa apatia.
Vou estudar de Platão à Geometria
inda que me funda a cuca e me dê cefalalgia.
De tanto bolinar a bunda da Luzia
vou tirar no meu mestrado
nota dez em Anatomia!
Olhar o céu estrelado
já não é vã filosofia
de tanto ver estrelas
brilhando todo dia
em vez de Astronomia
vou apanhar um resfriado
e talvez oftalmia.

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A Escola Régia vai acabar co’essa anarquia
vou escrever sem esbarrar na Ortografia;
do Aristóteles, moço fino e muito ético,
dizem uns, até peripatético.
Vou me amarrar na Física e na Fonética
e versejar no duro co’a Poética.
Cantar demais é pegar melomania
olhar o mar é ficar com maresia,
se levar ferro vai dar siderurgia,
quem faz buraco estuda Arqueologia.
De praça em praça só se vê topografia.
E o velho mangue não está mais pra pescaria.
Depois da Escola Régia só se aprende a sodomia.
E não é preciso
ter muito siso
pra dizer em são juízo
que a pátria amada
vai ser um paraíso.
(AO CANTAREM A ÚLTIMA ESTROFE VAI CAINDO A LUZ. NO ESCURO OUVE-SE O
REALEJO. LUZ SOBRE O TOCADOR DE REALEJO.)

TOCADOR DE REALEJO (intercalando suas falas com música)


- Não virou um paraíso, não!... Belos sonhos... mas poucos se concretizaram... Chuvas de verão.
A abertura dos portos só beneficiou a Inglaterra. (Pausa) A siderurgia ficou na imaginação de
seus idealizadores. Pelos tratados de 1810, os ingleses passaram a monopolizar o comércio
brasileiro... Como, vocês me perguntarão? É fácil responder: os ingleses introduziram suas
manufaturas no Brasil, pagando menos direitos alfandegários do que as próprias mercadorias
portuguesas. De repente a Rua do Ouvidor ficou abarrotada de comerciantes e de produtos
ingleses: ferragens, pregos, peixe defumado, raquetes de tênis, aquarelas, porcelanas, chá,
espartilhos, bengalas, borzequins, carruagens, cristais, cachimbos... E imaginando os rigores do
inverno carioca, as lojas ofereciam: trenós, sapatos para a neve, casemiras, lãs, cobertores, patins
para gelo, cachecóis, boinas, capuzes, etc. etc. E a nossa indústria que ameaçava nascer, foi para
as calendas, pois não podia concorrer com os produtos ingleses, vendidos a preço muito baixo.
Dom João quis, os ingleses não quiseram.

(BLACK OUT)

CENA 2

(DOM JOÃO SENTADO À MESA ESTÁ COMENDO UM FRANGUINHO. ENTRA UM

53
CRIADO DE LIBRÉ.)

CRIADO (curvando-se)
- Majestade o senhor Desembargador Albano Fragoso pede para ser recebido. (Com empáfia)
Diz que o assunto é de alta relevância.
DOM JOÃO (com uma coxa de frango na mão)
- Não me deixam comer os meus franguinhos em paz... Me atormentam a todo instante.
CRIADO
- Posso despedi-lo, Majestade?
DOM JOÃO (atirando a coxa no prato)
- Não. É melhor recebê-lo. (O criado se curva e sai) Sou o monarca mais infeliz da minha época.
Como se não bastassem os ingleses, agora essas malditas cortes de Lisboa estão a exigir a minha
volta... Afinal, só aqui, no Reino Unido do Brasil, é que, às vezes, encontro algum consolo.
(ENTRA O DESEMBARGADOR.)
DESEMBARGADOR (curvando-se)
- Espero, Majestade, não estar sendo importuno.
DOM JOÃO
- Sente-se, Desembargador. (O desembargador assenta-se) Espero que o senhor tenha
novidades. Espero que já saibam quem mandou esse capoeira... como se chama mesmo?
DESEMBARGADOR
- O Corta-Orelhas.
DOM JOÃO
- Isto! (Pausa) Quem mandou que ele atirasse na mulher do Carneiro Leão?
DESEMBARGADOR
- É um assunto bastante delicado e...
DOM JOÃO (cortando)
- Claro que é delicado! Quem foi o mandante do crime?
DESEMBARGADOR
- Creio que... Não sei se deva... Na realidade não sei como... como começar...
DOM JOÃO
- Basta de rodeios. Ordeno que fale!

DESEMBARGADOR
- Se Vossa Majestade ordena, não tenho o que discutir. (Pausa) Foi a Rainha... foi ela que
mandou o Corta-Orelhas...
DOM JOÃO
- A Carlota Joaquina?
DESEMBARGADOR (pondo uns papéis sobre a mesa)
- Vossa Majestade poderá constatá-lo neste processo.
DOM JOÃO
- Outra infelicidade da minha vida foi este casamento. Convém que desapareça para sempre mais
este escândalo da minha mulher.
DESEMBARGADOR
- Compreendo, Majestade.
DOM JOÃO (sofrido)
- Se o senhor soubesse como este momento está sendo difícil para mim...
DESEMBARGADOR
- Estou entre aqueles que têm profunda admiração pelo espírito de Vossa Majestade.
DOM JOÃO (lamentoso)
- Treze anos, meu caro Albano... e eu relutei tanto em vir para cá. E agora, por nada deste mundo
gostaria de deixar esse paraíso. (Em surdina, “Cidade Maravilhosa” de André Filho. Dom João
aponta para a Baía de Guanabara) Olhe só essa baía... Não é a mais bela do mundo,

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Desembargador? (Pausa) Nunca me canso de olhar o Corcovado... Se a gente pudesse por uma
estátua do Cristo, lá em cima, abençoando a cidade... Não seria uma idéia extraordinária?
DESEMBARGADOR
- Só Vossa Majestade poderia ter uma idéia tão sensível.
DOM JOÃO (enxugando algumas lágrimas)
-...E não poder acompanhar o crescimento de minhas palmeirinhas no Jardim Botânico
(Mostrando) Elas estão desta altura, meu amigo.
DESEMBARGADOR
- Então é certa a partida de Vossa Majestade?
DOM JOÃO
- Um rei não é senhor de seu destino. A Revolução do Porto, o senhor sabe... Os liberais querem
que eu volte a Portugal e jure a Constituição. Eu resisto, mas até quando? Já sei o que me espera
por lá: as Cortes querem cercear todas as minhas prerrogativas reais... Eles pensam que uma
Constituição, como num passe de mágicas, vá resolver todos os problemas.

DESEMBARGADOR
- Infelizmente estamos numa época constitucional.
DOM JOÃO
- Se dizem constitucionalistas, liberais, mas querem fazer do Brasil novamente uma colônia.

(BLACK OUT)

55
CENA 3

(ALCOVA DA RAINHA. CARLOTA JOAQUINA, NA CAMA, ENTRE O SARGENTO


RODRIGO E O PAJEM LAFAIETE. RODRIGO ESTÁ DE BOTAS E NU DA CINTURA
PARA CIMA; LAFAIETE, DE PERUCA EMPOADA E ENVOLTO NUM PANO LEVE DE
ESTAMPADO AFRICANO.)

CARLOTA
- Não fossem vocês, não sei como iria suportar o Rio de Janeiro. Uma cidade que não tem o
menor clima para uma rainha. Me sinto tão desambientada, tão sozinha!
LAFAIETE
- Eu também me sinto meio assim.
CARLOTA
- Saudades da Nigéria... é banzo.
RODRIGO
- É o atavismo... São as raízes...
CARLOTA (pondo a mão no sexo dos rapazes)
- Chega de metafísica! (Apalpando-os) Ih! como estão desanimados... Que é isso, rapazes? (Para
Rodrigo)
RODRIGO
- Mas a senhora só pensa em fornicar!
CARLOTA (tirando a mão do sexo deles)
- Até agora não encontrei coisa melhor. E você, também está desanimado, Lafaiete?
LAFAIETE
- Eu bem que gostaria mas agora não dá mais.
CARLOTA (irritada)
- Mas por que vocês estão assim? Vamos digam!
RODRIGO
- É por causa desse zunzum que está correndo na corte.
CARLOTA
- Pouco se me dá.
LAFAIETE
- Ainda hoje, o senhor Dom João recebeu o Chefe-de-Polícia, o Desembargador Albano Fragoso.
CARLOTA (brava)
- Mas ele me destratou! Disse que eu era uma loureira, uma mulher à toa! Eu, uma rainha, aceitar
uma ofensa dessas, jamais!

RODRIGO
- Francamente, acho que você exagerou.
CARLOTA
- Trate-me com mais respeito, sargento Rodrigo.
RODRIGO
- Perdão, Majestade.
CARLOTA
- E você, Lafaiete, também acha que exagerei?
LAFAIETE
- Sinceramente, eu acho.
CARLOTA (furiosa)
- A opinião de vocês pouco me importa. O que me magoa, o que me decepciona, é que eu
esperava tanto de vocês!
LAFAIETE
- Eu fiz o que pude, Majestade.

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CARLOTA (furiosa)
- Basta! Saiam daqui! Quero ficar sozinha, sozinha... (Em pé, na cama) Estou farta dos trópicos...
Mentira, essa conversa de que abaixo do Equador só se faz amor. (Os dois apanham as
respectivas roupas) E vão se vestir lá fora! Não suporto a presença de incompetentes! Fora!
(Eles saem apressados com as roupas na mão)
(BLACK OUT)

CENA 4

(LUZ NA LATERAL DIREITA, VÊ-SE DOM PEDRO SORRIDENTE; LUZ NA LATERAL


ESQUERDA, VÊ-SE DOM JOÃO AMARGURADO. APAGAM-SE AS LUZES DAS
LATERAIS E ACENDE-SE A LUZ DO CENTRO OS DOIS DEIXAM AS LATERAIS E
VÃO PARA O CENTRO DO PALCO.)

DOM PEDRO (beijando a mão de Dom João)


- Avisaram-se de que meu real pai desejava falar comigo.
DOM JOÃO
- Sim, Pedro, e é sobre as dificuldades que a nossa dinastia está enfrentando. Você é jovem, mas
sabe que o mundo está em mudanças, em profundas mudanças. O liberalismo avassala toda a
Europa e todos querem uma Constituição. Acham que a Constituição é a panacéia que vai curar
todos os males.
DOM PEDRO
- E os reis, onde ficam os reis, meu senhor?
DOM JOÃO
- Antes os reis tinham uma espécie de poder divino. Eram amados e respeitados. Sua vontade era
lei. Agora os representantes do povo discutem e decidem nos seus parlamentos e o rei apenas
assina.
DOM PEDRO
- E a sua vontade?
DOM JOÃO
- Deverá ser a vontade do povo.
DOM PEDRO
- E é por isso que o senhor parte?
DOM JOÃO
- Se eu não voltar as Cortes de Lisboa poderão destituir a dinastia dos Braganças. E isso é o pior
que nos poderia acontecer.
DOM PEDRO (meditativo)
- Não sei se eu iria me dar bem com essa história de apenas assinar o que os outros decidem... É
difícil, senhor meu pai, ser liberal e rei ao mesmo tempo.
DOM JOÃO
- Dificílimo. Mas assente-se aqui, Pedro, porque agora o que você vai ouvir é importantíssimo.
(Dom Pedro assenta-se) Os cofres de Portugal estão vazios. A saída que a Assembléia de Lisboa

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arranjou é voltar tudo como era antes: o Brasil volta a ser uma colônia. Eles fecham os portos e
passam, novamente, a controlar todo o comércio brasileiro.
DOM PEDRO
- Tenho ouvido muitas histórias por aí... Dizem...
DOM JOÃO (correndo)
- Eu sei. Este país está louco para se livrar de Portugal.
DOM PEDRO (preocupado)
- O senhor acha que isso é possível?
DOM JOÃO
- Grave bem essas palavras, meu filho. Mas bem mesmo! Pedro, se o Brasil se separar, antes que
seja para ti a coroa do que para algum desses aventureiros.
DOM PEDRO (feliz)
- Eu, Imperador do Brasil!
DOM JOÃO
- Você mesmo. E trate de segurar esse rojão!

CENA 5

(LUZ. DONA ALTAIR — A INSPETORA FEDERAL — ESTÁ SENTADA NUM BANCO.


VESTIDA COM UM TAILLEUR MUITO SEVERO, ESTÁ LENDO UM RELATÓRIO.
ENTRA DONA IRACEMA, UM POUCO TÍMIDA.)

PROFESSORA
- A senhora mandou me chamar, dona Altair?
ALTAIR
- Mandei, dona Iracema. (Mostrando o relatório) A senhora sabe o que eu tenho nas mãos? (A
professora espicha o pescoço tentando ler o relatório. Dona Altair fecha-o com violência no
nariz de dona lracema)
PROFESSORA (para o público)
- É um relatório sobre as minhas aulas.
ALTAIR
- São quarenta e cinco páginas de impertinências! A senhora, como professora de História, é uma
anarquista!

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PROFESSORA
- Eu?!
ALTAIR
- A senhora, sim. Os pais das alunas não param de telefonar, e tenho recebido reclamações até do
bairro de Santana. A senhora, primeiro rasgou seda para os holandeses; e como se não bastasse,
os mineiros vão ficar possessos com a sua visão da Inconfidência. Não se contentando com isso,
a senhora gastou cinco aulas para narrar as cenas de alcova de Dona Carlota Joaquina, detendo-
se nos detalhes mais libidinosos. Sem falar na chegada de Dom João VI, que me parece um
profundo desrespeito às tradições da família brasileira. Gostaria de saber onde a senhora se
informa para dar aulas tão diferentes daquelas que estão nos manuais aprovados pela Secretaria
de Educação.
PROFESSORA
- Mas, dona Altair, e a liberdade de cátedra?
ALTAIR
- No seu caso não se trata de liberdade, mas de liberdades, ouviu?!
PROFESSORA
- Ouvi, sim senhora, mas é que eu sou muito impulsiva, dona Altair! O que posso fazer?

ALTAIR
- É a sua última oportunidade. Ou a senhora faz do Sete de Setembro vindouro uma apoteose, ou
não respondo por mim. Eu, como inspetora federal, digo que a senhora será expulsa do
magistério por desvio ideológico.

PROFESSORA
- Mas fazer uma comemoração assim...! Em cima da hora?!... Sem nenhuma preparação?
ALTAIR (levantando-se)
- Vire-se! Você não é a professora mais culta do Sion? (Sai)
PROFESSORA (saindo atrás)
- Mas dona Altair, assim de repente? A senhora quer me ver louca?...

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CENA 6

(ENTRAM POR UMA LATERAL GUARACIABA, SAMIRA, BIBI, MARGARITA E


GUIOMAR. TODAS SOBRAÇAM PILHAS DE LIVROS E OS DISTRIBUEM, PARTE
SOBRE O BANCO, PARTE SOBRE O CHÃO.)

GUARACIABA
- O que será que a dona Iracema vai fazer com esse monte de livros?
GUIOMAR
- Espero que não seja para a gente ler.
BIBI
- Já estou cheia.
SAMIRA
- Desde que entrei no Sion não faço outra coisa senão estudar História.
PROFESSORA (entrando, também carregando livros)
- Obrigado. Agora vocês vão direitinho para casa, que eu tenho de ler tudo isso. Nada de ficar
fazendo footing na Barão.
ALUNAS
- Sim, senhora. (começam a sair)
PROFESSORA (chamando-as)
- Ah, me lembrei de uma coisa. (As alunas se entreolham) Eu queria saber qual das senhoritas foi
dar com a língua em casa? (Silêncio) Sim, porque o Colégio Sion tem recebido reclamações
acerca das minhas aulas.
TODAS
- “Que é isso, dona lracema?” “Eu não fui!” Eu também não!” “Imagina, dona Iracema, se a
gente ia fazer uma coisa dessas!”
PROFESSORA
- Está bem, podem ir. Depois a gente conversa. (As alunas saem) Essa dona Altair me detesta...
Mas o que fazer? (Suspira) Seja o que Deus quiser! (Pegando um dos livros) Será que vou ler
todos esses livros de História até amanhã? Se eu não fizer uma “Independência” memorável, a
dona Altair me põe fora do colégio. (Apanhando um livro) Vou começar por este. (Abre o livro e
começa a ler) “Era um jovem afoito, simpático, mas mal-criado, que viera ao Brasil muito
menino, e que aqui fizera amigos, aqui amara e casara. O caráter do Príncipe sempre foi esse:
leviano, ambicioso, misto de Dom Quixote e Casanova. Não era idealista, não era patriota, era
um ator. A Independência não foi feita por ele. Fatalmente viria, mais cedo ou mais tarde. (Vai
paulatinamente abaixando a voz e adormece) Não era estimado como o seu pai, Dom João VI,
por quem havia uma espécie de adoração... (Dorme)
(TEMA MUSICAL E LUZ APROPRIADOS A UM SONHO. ENTRAM, VINDOS DE
PARTES DIFERENTES, OS SEGUINTES PERSONAGENS: JOSÉ BONIFÁCIO,
GONÇALVES LEDO, PEDRO I E A IMPERATRIZ LEOPOLDINA. LEOPOLDINA TRAZ
UM CAVALETE, UMA TELA E UM PINCEL. NO DECORRER DA CENA ELA IRÁ
PINTAR. A MÚSICA DÁ UM ACORDE MAIS ALTO.)
PROFESSORA
- Nossa! Parece que estou sonhando! (Para o público) Será que eles são quem eu estou pensando
que eles são? (Para Gonçalves Ledo) O senhor é...?
LEDO
- Gonçalves Ledo, um democrata, um liberal e mesmo um radical.
PROFESSORA (erguendo-se)
- Então já sei quem são os outros! Mas o quê, o quê, os senhores vieram fazer aqui?
LEOPOLDINA (armando o cavalete de pintura)
- Viemos acudi-la, Iracema... nesse apuro em que você se encontra.

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PROFESSORA
- Ah, Princesa Leopoldina, se a senhora soubesse...
DOM PEDRO
- Já sabemos, dona lracema. E chega de falar na dona Altair. Estamos aqui para ajudá-la a
comemorar o Sete de Setembro.
PROFESSORA (fazendo vênia)
- Estou desvanecida, meu Imperador. (Olhando para José Bonifácio) E o senhor não é aquela
figura controversa, o José Bonifácio de Andrada, o Patriarca da Independência, o primeiro a
pensar em reforma agrária?
BONIFÁCIO
- A senhora é ótima fisionomista.
PROFESSORA
- Obrigado. E já que estão aqui, vou fazer uma entrevista.
DOM PEDRO
- Mas deve ser curta, muito curta, porque precisamos voltar imediatamente.
PROFESSORA
- Voltar? Voltar para aonde?
DOM PEDRO
- Para os manuais de História, para os livros, para o Panteão da Glória
PROFESSORA
- Que emoção!
DOM PEDRO
- E como Imperador, eu vou falar em primeiro lugar. (Pausa) Como a senhora sabe, meu pai teve
que voltar para Portugal. E agora, o Parlamento português quer que eu também volte para Lisboa
com o pretexto de que preciso aprimorar a minha educação. Mas o que eles querem, dona
lracema, é recolonizar o Brasil. Esta é a minha grande dificuldade...
LEDO
- Posso dar um aparte?
DOM PEDRO
- Espere a sua vez.
LEDO
- Eu não tenho medo de cabeças coroadas. Eu sou um liberal e acho muito bom que os
parlamentos limitem o poder dos reis. Aliás, meu sonho mais acalentado é a República.
DOM PEDRO (furioso)
- República?! Isto é um palavrão! (Avançando sobre Ledo) Sou capaz de esmurrá-lo.
PROFESSORA (agitada)
- Pedro, acalme-se, não seja intempestivo!
LEDO (arregaçando as mangas)
- Venha, então!
BONIFÁCIO (serenando os ânimos)
Meus filhos, meus filhos, não se agitem tanto! Lembrem-se de que estamos no Brasil e
chegaremos a uma conciliação. No Brasil sempre se concilia tudo!
LEOPOLDINA (pintando)
- Por favor, ouçam o Bonifácio!
PROFESSORA
- Silêncio! (Para Dom Pedro) Continue, Dom Pedro. (Para os outros) E que ninguém
interrompa, hem!
DOM PEDRO
- Professora, a senhora desculpe o Ledo. Ele é um pouco exaltado, meio radical, mas uma ótima
pessoa.
PROFESSORA (vaidosa, avançando para o público)
- Eu conheço o Ledo. Ele é um liberal, namora a maçonaria e sonha com a República. Para os

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liberais, a maioria tem sempre razão, não é, Ledo?

BONIFÁCIO
- Que horror! A populaça! A bandeira esfarrapada da democracia!
LEDO (para Bonifácio)
- Você, Bonifácio, é um conservador, um latifundiário... (Para a professora) Ele tem medo do
povo, professora!
DOM PEDRO (intervindo)
- Olhem que é um medo razoável!...
BONIFÁCIO (para Ledo)
Eu?! Medo do povo?! Saiba que não cortejo a ralé.
TODOS (menos Ledo)
- José Bonifácio!!!
PROFESSORA
- Que é isso? Vocês vieram para me ajudar ou para badernar a História do Brasil?
DOM PEDRO
- Perdão, dona Iracema. Mas olhe, em algumas coisas todos estão de acordo: o povo quer que eu
fique (Fazendo pose) e eu FICO! (Todos aplaudem)
BONIFÁCIO
- E há mais, professora: tanto os grandes proprietários de terra, enfim, os conservadores, e até os
radicais... (Apontando Ledo) como essa gentalha aí...
LEDO (indignado)
- Dona Iracema, ele está de novo me ofendendo! Se for assim, eu não faço essa tal de conciliação
e fico com a República. Hoje mesmo vou escrever um artigo no Revérbero Constitucional.
PROFESSORA
- Vamos, Bonifácio, seja mais cordato, mais político...
BONIFÁCIO (suspirando)
- Ah meu Deus, não é fácil ser um estadista! Está bem, Ledo, eu retiro a expressão.
PROFESSORA
- Gostei, Bonifácio! Para mim, no essencial vocês estão de acordo. Ninguém quer que o Brasil
volte a ser colônia.
DOM PEDRO
- Muito bem! Então eu não voltarei para Portugal e ficarei aqui como Príncipe Regente! Não é
isso, Bonifácio?
BONIFÁCIO
- É sim, Alteza.

DOM PEDRO
- Ainda bem. Pois foi justamente por isso que eu te coloquei na Pasta do Reino, Justiça e
estrangeiros.
PROFESSORA
- Eu estou adorando vocês. (Pensativa) Meu Deus, o que eu vou fazer para ajudar a conciliação...
(Pausa) Ah, já sei! (Para Ledo) Ledo, será que não dá para você tirar a República do programa
liberal? Pelo menos por enquanto?
LEDO (Apontando Bonifácio)
- Bem, se eles fizerem algumas concessões...
LEOPOLDINA (que estava pintando)
- Já vi que está pintando essa tal de conciliação.
DOM PEDRO
- Já era tempo.
BONIFÁCIO (tossindo)
- Olha aqui, Ledo, se estou entendendo bem, vocês aceitam o Príncipe Dom Pedro como o nosso

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legítimo soberano, não é?
LEDO
- Desde que de mãos e pés atados à Constituição.
DOM PEDRO (para Ledo)
- E como vocês deixaram de lado a República, eu, em troca vou aceitar uma idéia muito cara aos
liberais; vou convocar a Constituinte e dar uma Constituição ao Brasil.
LEOPOLDINA
- Adorei essa idéia!
BONIFÁCIO
- Devagar, devagar, meu Príncipe! Não vá a plebe pensar que estamos na Revolução Francesa!

(BLACK OUT)

CENA 7

(AO ACENDER A LUZ, DONA IRACEMA ESTÁ DORMINDO, TENDO NO COLO O


LIVRO DE HISTÓRIA QUE ESTAVA LENDO. LEOPOLDINA PINTA ENQUANTO DOM
PEDRO E BONIFÁCIO CONVERSAM UM POUCO AFASTADOS.)

LEOPOLDINA (mostrando o quadro a Dom Pedro)


- Gostas deste quadro, Pedro?
DOM PEDRO
- Você é a princesa mais talentosa que eu poderia desejar. Você pinta, borda, caça borboletas,
monta a cavalo, pesca e é uma botânica exímia... Você deixa qualquer um complexado. (Para o
Bonifácio) Sua Alteza não é mesmo um portento?
BONIFÁCIO
- Feliz do país que tem uma governante como esta.
LEOPOLDINA
- Mas tu não me amas, Pedro!
DOM PEDRO
- Não tenho tempo. O Brasil me absorve por inteiro... Ainda mais na atual conjuntura.
LEOPOLDINA
- No mínimo eu devo ser masoquista! (Outro tom) Vocês notaram uma coisa? (Pequena pausa)
O programa dos liberais não toca nem de leve no problema da abolição.
DOM PEDRO
- Será que eles esqueceram?
BONIFÁCIO (a Dom Pedro)
- Muito em segredo, Alteza, eu vou apresentar à Constituinte um projeto propondo a abolição da
escravatura.
DOM PEDRO
- Nem pensar, Bonifácio! Se ninguém pensou até agora é porque não interessa para ninguém.
BONIFÁCIO
- Mas é uma abolição gradual, Alteza, aos poucos...
DOM PEDRO
- Você está louco? Os conservadores vão ficar vermelhos de ódio. Mudar a estrutura agrária do
país, Bonifácio! Você quer que eu perca meu trono, quando eu nem bem pus a bunda nele?!

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BONIFÁCIO
- Também estou pensando num projeto sobre os nossos indígenas. Afinal, eles são os donos
legítimos da terra...
DOM PEDRO (levantando-se)
- Chega de idéias, Bonifácio! Não tenho mais tempo para esse tipo de conversa. Aliás, hoje eu
vou ao teatro. Estréia uma companhia francesa e o elenco está louquinho para me ver.
LEOPOLDINA
- Ele não me ama, senhor Ministro! (Apontando Dom Pedro) Ele vive correndo atrás de saias.
BONIFÁCIO
- Os homens, minha cara Princesa, mesmo os melhores, deixam muito a desejar. Um vez, quando
eu era estudante em Paris...
LEOPOLDINA
- Deixemos de confidências, senhor Ministro.
DOM PEDRO
- Acho bom mesmo!
LEOPOLDINA (tendo um estalo)
- Já sei! Já sei!
DOM PEDRO
- O que você sabe, meu amor?
LEOPOLDINA (indo em direção de José Bonifácio)
- Senhor Ministro, acabei de descobrir mais uma contradição do liberalismo brasileiro: eles não
querem, nem de longe, saber da abolição da escravatura. Tenho a certeza de que algum dia
alguém há de escrever essas palavras.
BONIFÁCIO
- Nunca me cansarei de elogiar sua inteligência e o seu talento político. Alteza.
LEOPOLDINA (apontando o Príncipe)
- Mas ele não me ama!
(ENTRA, ESBAFORIDO, UM LACAIO, TRAZENDO CORRESPONDÊN-CIA LACRADA.)
LACAIO
- Alteza, Alteza, grandes problemas! Acabou de chegar um estafeta de São Paulo...
DOM PEDRO (arrancando a correspondência de suas mãos)
- Dá-me essas cartas! (Dom Pedro rompe o lacre e começa a ler) Uma rebelião em São Paulo!
BONIFÁCIO (arrancando a correspondência das mãos do Príncipe e passando os olhos)
- É preciso uma punição exemplar.

DOM PEDRO
- Devo ir a São Paulo imediatamente! É preciso debelar a agitação antes que se alastre.
BONIFÁCIO
- Sua Alteza Real pode correr perigo.
DOM PEDRO
- A Fortuna ajuda os audazes!
LEOPOLDINA
- Pedro, e se nesse ínterim vierem más notícias de Portugal?
DOM PEDRO
- Se nesse ínterim vierem notícias desagradáveis, vocês me avisem incontinenti. Adeus!
(Começa a sair)
(CAI O LIVRO DA PROFESSORA NO CHÃO, ACOMPANHADO DE UM FORTE
EFEITO SONORO.)
PROFESSORA (acordando e estirando-se)
- Ai meu Deus...
(OS PERSONAGENS QUE ESTÃO EM CENA FOGEM PRECIPITADAMENTE, O
LACAIO LEVA O CAVALETE DE LEOPOLDINA.)

64
PROFESSORA
- Ai, tive um sonho maravilhoso! Que alívio! Não vou precisar ler nenhum desses livros. Já sei
como comemorar o Sete de Setembro e fechar a boca de dona Altair. (Para o público) Vocês me
desculpem, mas eu tenho que sair correndo para preparar o Sete de Setembro que vai ser um
arraso!

(BLACK OUT)

CENA 8

(NA COLINA DO IPIRANGA. ESTÃO EM CENA FRANCISCO GOMES (SECRETÁRIO


PARTICULAR DE DOM PEDRO, O CONHECIDO CHALAÇA), PADRE BELCHIOR E
DOIS CRIADOS; OS DOIS PRIMEIROS ESTÃO A CAVALO, E OS CRIADOS, A PÉ. AO
LADO DOS CAVALEIROS, NO CHÃO, O CAVALO DE DOM PEDRO. AS
CAVALGADURAS SÃO FEITAS DE ARAME E PANO, PRESAS À CINTURA DOS
CAVALEIROS.)

CHALAÇA
- Foi admirável a rapidez com que o nosso Príncipe pacificou os ânimos da província.
PADRE
- Foram aplausos e delírios por toda a parte: Guaratinguetá, Taubaté, Pindamonhangaba,
Santos... Tenho o pressentimento de que Sua Alteza vai fazer algo de inusitado...
CHALAÇA
- E no meio de tudo deve haver um rabo de saia. Nunca vi o Príncipe tão excitado.
(ENTRA DOM PEDRO ARRUMANDO AS CALÇAS. DIRIGE-SE À MONTARIA,
PRENDENDO-A À CINTURA.)
PADRE
- Vossa Alteza melhorou?
DOM PEDRO
- Aliviei-me, padre Belchior. Foram esses malditos camarões que comi em Santos.
(ENTRA UM CORREIO A CAVALO.)
CORREIO (circulando entre os cavaleiros)
- Quem me informa, quem pode me informar? Viram por aí a comitiva do Príncipe Dom Pedro?
CHALAÇA
- Você acaba de esbarrar-se com ela.
CORREIO
- Qual de vossas excelências é o Príncipe Regente?
DOM PEDRO (arrancando-lhe das mãos a correspondência)
- Sou eu, sua cavalgadura. Dá-me essas cartas.
CORREIO
- Perdão, Majestade. São cartas enviadas pelo Ministro do Reino e pela nossa Real Princesa.

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DOM PEDRO
- Vou ler primeiro a do Bonifácio. (Rompe o lacre de uma das cartas e começa a ler) De
Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores.
TODOS (olhando para o Príncipe)
- Oh!
DOM PEDRO
- Amigos, estão para sempre quebrados os laços que nos ligam a Portugal. (Dirigindo-se a
Francisco Gomes) Dize-me, Chalaça, que horas são?
CHALAÇA (consultando o relógio)
- Quatro e meia, Príncipe.
DOM PEDRO (desembainhando a espada)
- Independência ou morte!
TODOS
- Independência ou morte!
(ENQUANTO SÃO DITAS AS ÚLTIMAS FALAS, PROJETA-SE O QUADRO DE PEDRO
AMÉRICO. MÚSICA. TODOS SE VOLTAM PARA O FUNDO ADMIRANDO O QUADRO.)

CRIADO 1
- Seria necessário um artista para afixar na tela esta cena tão emocionante.
DOM PEDRO
- Assim que chegar ao Rio vou mandar fazer esse quadro.
CHALAÇA
- Alteza, é preciso providenciar uma grande recepção em São Paulo.
DOM PEDRO
- Você que é muito festeiro, Chalaça, vá correndo na frente e organize uma sessão de gala na
Opera.

(BLACK OUT)

CENA 9

(AO SOM DE UMA ÁRIA DE ÓPERA, ENTRAM VÁRIOS PERSONAGENS QUE


APARECERAM NA PEÇA, COMO POR EXEMPLO, ÍNDIOS, PERO VAZ DE CAMINHA,
CANTORA NEGRA, NASSAU, CARLOTA JOAQUINA, DOM JOÃO VI, LAFAIETE,
PROFESSORA E ALGUMAS ALUNAS. POR ALGUNS INSTANTES OS PERSONAGENS
PERMANECEM IMÓVEIS, ENQUANTO CORRE A MÚSICA. SUBITAMENTE CESSA A
ÁRIA DA ÓPERA E COMEÇA UM SAMBA-CANÇÃO. DOM PEDRO, DESTACANDO-SE
DO GRUPO, CANTA O SAMBA-CANÇÃO “A MISSIVA DO IPIRANGA" CUJA ME-
LODIA FOI INSPIRADA EM “MENSAGEM’ DE CÍCERO NUNES E ALDO CABRAL,
SUCESSO DE ISAURA GARCIA.)

DOM PEDRO (cantando)


- Quando o carteiro chegou

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e meu nome gritou
de missiva na mão
Eu agarrei a missiva
quebrei o seu lacre
e mal li já gritei:
Eu
nada espero da sorte
vou dar logo um corte
nessa aporrinhação.
Basta de querer dominar-me
de impor-me seu charme
e deixar-me no chão.
Tua risível maldade
a bem da verdade.
já nem me fascina:
É
uma vil nicotina
uma falsa morfina
um meter sem tesão.
Eu agarrei a missiva
quebrei o seu lacre
e mal li já gritei:
Eu
independo da sorte
e te jogo na cara
Independência ou Morte.

(PANO)

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