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Jorge de Lima - Murilo Mendes - Tempo e Eternidade PDF
Jorge de Lima - Murilo Mendes - Tempo e Eternidade PDF
JORGE DE LIMA
MURILO MENDES
TEMPO
E
ETERNIDADE
POEMAS
JORGE DE LIMA
E
MURILO MENDES
1935
Edição da Livraria do Globo
Porto Alegre
Restauremos a Poesia em Cristo
A
ISMAEL NERY
NA ETERNIDADE
J. DE L.
M. M.
NOTA PRELIMINAR1
Tristão de Ataíde
1
Publicado em O Diário, Belo Horizonte, 23 junho 1935, sob o título "A Desforra do Espírito." Tristão de Ataíde é o pseudônimo
de Alceu Amoroso Lima.
Murilo Mendes atingiu de chôfre, nessas páginas de convertido, um
diapasão poético que me desvaneço profundamente de ter podido pressentir,
quando há alguns anos já, longe ainda de qualquer inspiração religiosa, vagueava
êle angustiadamente em luta contra anjos de trevas e de luz, escrevendo nas costas
de papel de um banco em que era empregado versos de alucinação e de desespêro.
Era a procura, a ansiedade, o descontentamento de tudo o que era privado
da Luz que nunca se apaga. Era a marcha áspera na encosta, nos arredores do
templo, nos caminhos pedregosos para a Cruz, que é o terceiro plano daqueles que
a Igreja considera os soldados desconhecidos do Cristo.
Folgo, pois, em poder aproximar nesta crônica páginas, de poesia e de prosa,
que marcam, para a literatura brasileira, um dos mais altos cimos de sua grave
inspiração moderna, nesta hora em que os ornatos caem; os malabarismos se
desmoralizam; volta-se às coisas essenciais e certas almas desenganadas das
aventuras intelectuais literárias levantam o véu do mistério e param estupefatas,
pressentindo ou descobrindo a Fonte suprema da beleza e da explicação de tôdas
as coisas.
Por muitos anos pedi aos modernos não fecharem os olhos ao sobrenatural,
lado direito do tecido da vida de que somos apenas o avêsso. Ei-lo aqui, o
sobrenatural. Não foram êsses os primeiros, certamente, que o trouxeram às nossas
letras modernas. Nestes, porém, nesta prosa nua em tôrno do Cristo e nesses
poemas católicos, em tôrno do seu Corpo Místico vemos a reação mais recente e
mais impressionante contra os abusos que de novo se iam espalhando em nossas
letras, de um naturalismo literário anacrônico ou impregnado de partis pris políticos.
Nestas páginas, nada disto. Nenhuma preocupação apologética. Nenhum esfôrço
de vencer a retórica. Nenhuma posição interessada. Nenhuma preocupação de
agradar.
Êsses dramas e êsses poemas são um alimento forte, ácido mesmo e sêco,
que provàvelmente não satisfará a todos os paladares.
Aquêles, porém, que estiverem cansados do convencionalismo literário ou do
naturalismo de uma arte pornográfica ou panteísta hão de saudar nessas páginas
da nossa mais moderna literatura, uma desforra memorável do Espírito contra a
pieguice e a sensualidade. A beleza catedralícia de alguns dêsses poemas e a fôrça
impressionante de certos diálogos dêsses dramas mostram, bem ao vivo, como não
há mais alta inspiração para a arte do que o verdadeiro cristianismo católico.
TEMPO
E
ETERNIDADE
POEMAS DE
JORGE DE LIMA
1934
DISTRIBUIÇÃO DA POESIA
Capitão-mor, capitão-mor
quereis me dizer onde é que fica
a ilha de São Brandão?
Estrela, estrela
morreste ha tempos,
porém te vejo
na noite escura.
Obrigado ó morta.
Venta da Africa
varreste o oceano,
piratas fugiram
pras grandes montanhas.
Estrela apagada,
vento impotente,
tempo implacavel,
espaço vasio,
leis mentirosas,
deuses caidos,
nada, nada, nada.
Obrigado ó mortos.
Da noite que vim
pra noite que vou:
relampago de Deus – sou.
O CLAMOR QUE NÃO PÁRA
– O progresso é lá de baixo,
esse clamor é de-cima.
ETERNIDADE
POEMAS DE
MURILO MENDES
1934
NOVISSIMO JOB
a Dante Milano
Meu Deus,
Que tenho feito até hoje neste mundo,
Sinão Te invocar para que apareças,
Sinão me desesperar porque sou pó?
Meu Deus,
Quantas vezes estarás comigo e eu não Te vejo!
Dilata minha visão,
Dilata poderosamente minha alma,
Faze-me ligar todas as coisas ao Teu centro,
Faze-me amar o que não amo!...
Tudo o que creaste
E’ a divisão de uma vasta unidade
Em espaços e épocas diferentes.
Une-me a todas as coisas em Ti
E ilumina-nos fóra do tempo, a todos nós,
Com Teu perpetuo resplendor, assim seja!
NOVISSIMO JACOB
Ha noites intransponiveis.
Ha dias em que pára nosso movimento em Deus.
Ha tardes em que qualquer vagabunda
Parece superior á propria musa.
Ha instantes em que um avião
Nos parece mais belo que um misterio de fé,
Em que um programa politico
Tem mais realidade que o Evangelho.
Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito!
O tempo vence a ideia do eterno.
Não sei mais da côr da tua pele, nem do ritmo do teu andar,
nem da linha do teu nariz, nem do tom da tua voz, nem do volume
dos teus seios.
Meu Deus
Afasta de mim Tua face;
Cobre-Te com as nuvens e o arco-iris,
Porque não suporto tão grande esplendor.
Não precisas de fazer maiores milagres
Do que os desdobramentos da alma imortal
E a conservação da nossa vida
Apesar das catastrofes diarias.
Para que duvidar de Ti, si Te vejo?
Afasta de mim Tua face transluminosa:
Meu sêr temporal só tem coragem de vê-la,
Diminuida, nos meus irmãos corruptiveis, como eu.
A IRMÃ SOBRENATURAL
Meu Deus
Sou uma creatura infame e miseravel
Que com Teu halito forte levantaste do pó
Afim de Te conhecer, Te amar e Te servir.
Só valho alguma coisa porque me olhas.
Nada tenho de meu para Te oferecer,
Salvo a penna com que escrevo
A poesia que me inspiras para eu Te louvar.
Os martires Te oferecem suas chagas
Ou então o gladio do suplicio.
Eu, pobre poeta, Te ofereço minha penna.
Toma-a e faze dela a aza do anjo
Que um dia me receberá na eterna gloria!
ABSTRAÇÃO DA PERSPECTIVA
O Amigo e a Musa
Sucedem-se alternativamente no meu espirito
Assim como o dia e a noite para outros.
E, sobre os tres, o sol que não se deita,
O sol de Jesus Cristo, meu Poeta e meu Deus,
Ilumina sem perspectiva
Nossas almas creadas para a eternidade.
MUNDA COR MEUM
a Anibal Machado
Tambem eu vi aquêle
Que vem precedendo a nova éra.
Tambem eu vi aquêle
Que foi creado para maior gloria de Deus.
Tambem eu vi aquêle
De quem os homens não dão testemunho.
Tambem eu passeei com êle
Sob as arcadas dos templos e á beira do mar.
A sabedoria se manifestava pelos seus labios
E a plenitude da arte pelas suas mãos.
Os homens não acreditaram nas suas obras.
A eternidade impaciente o chamava.
Tambem eu vi os céus se abrirem
– Os anjos choravam com saudade dêle –
E o Julgador o receber com uma corôa de astros.
PSALMO
Murilo Mendes
Cecília Meireles
(A Jorge de Lima)
Jaz um poeta,
– essa criatura sem equivalência,
a transbordar de seus limites humanos,
em vício ou virtude,
a exceder a multidão comedida
que o contempla ou não contempla,
entende ou não entende,
combate ou glorifica,
mas não pode deixar de saber que está presente.
Jaz um poeta,
– displicente descobridor de rotas
que não ficarão sendo suas,
minucioso artífice de pequenos jogos
que entre os seus dedos lhe quebrarão.
O Poeta,
– êsse acontecimento inefável.
(A alma a inclinar-se por cima de sucessivos muros...
até onde? até onde?
Até onde é possível sofrer.)
Jaz um poeta:
abandona a excursão mortal,
de onde se desprendia a cada instante,
numa aprendizagem contínua de evasão.
Que é o Poeta
senão o burlador das fronteiras da vida,
o constante fugitivo das dimensões do mundo,
o prodigioso funâmbulo, a dançar em cascatas e labaredas?
Jaz um Poeta:
– o ouvido que melhor ouve o apagado e esquecido,
e recolhe sua informulada queixa e seu cântico longínquo;
– o ôlho que mais longe avista,
até onde as formas ainda são simples esquemas,
onde tudo que parece o mais simples
se desdobra e entrelaça em trama profunda.
Sem ser Deus, nem profeta, nem sábio,
mas tudo isso, imperfeitamente e amargamente,
porque é apenas um Poeta.
Tudo tão claro, para êle, nos reinos do impossível,
e, fora dele, só obstáculos.
Cintila e escurece,
conforme a Deusa dorme ou acorda,
e vive deslumbrado em seu destino,
embora, às vezes, também equivocado.
Porque suas veias são de esperança e paixão.
Como se considera a flor desmanchada,
o aerólito caído,
um sismo, o relato de um milagre,
assim diante de um Poeta morto se pára,
– não como diante de outros mortos
de quem se aprecia, embora, às vêzes com maiores lágrimas,
o êxito, a aptidão, o desígnio, a derrota,
de quem se ponderam virtudes e defeitos,
com êstes instrumentos da terra, primitivos.
Jaz um Poeta.
Nesse vexame opaco dos mortos,
que não podem mais estender a mão ao amigo,
nem completar a extensão de um verso.
Jaz um Poeta.
E há um evidente espanto,
e o dia combalido sente
que uma fôrça atravessou suas horas, vertiginosa e lúcida,
deixou para trás suas portas,
saltou pelos horizontes do cenário.
Jaz um Poeta.
O que girava no palco vertiginoso,
ora de frente, ora de costas para os aplausos.
O que se balançava em aéreos fios de Efêmero e Eterno.
O que recebia sem gritos punhais no coração.
O que brandia címbalos de espelhos côncavos e convexos.
O que às vezes se evaporava numa espiral de assombros,
outras, passeava no cotidiano, muito naturalmente,
como a água pela terra sem nenhum ruído.
Tasso da Silveira
* * *