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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado ­ Revista Cult


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O mundo condensado
Através do estudo de obras como a Bíblia e a Odisseia, o crítico alemão Erich Auerbach procura entender o sentido
da história e da condição humana

TAGS: Erich Auerbach EDIÇÃO  209

EDIÇÕES ANTERIORES

O crítico Erich Auerbach (Foto: Divulgação)
LEOPOLDO WAIZBORT

Erich Auerbach (1892­1957) é conhecido por seu livro Mimesis: A realidade exposta na
literatura ocidental (publi​
cado em Berna no ano 1946) e pode­se dizer que seus outros
trabalhos gravitam em torno dessa obra.

O livro propõe­se a investigar nada menos do que a con​ dição humana, mas a compreende
como algo intrinsecamente histórico. Portanto, como algo que se altera ao longo do tempo, e o
esforço de análise consiste em revelar essa historicidade, e em mesma medida revelar a
condição humana tal como se apresenta em diferentes épocas e situações.

Essa tarefa, bastante complexa e talvez mesmo pretensiosa, foi encaminhada por Auerbach de
maneira extremamente ori​ ginal, lançando mão de sua formação como filólogo e estudioso de
obras literárias.

Se a condição humana não é algo transcendente e fixo, examiná­la con​siste em acompanhar
as suas transfor​
mações. Auerbach procurou responder a essa tarefa buscando compreender
como, em diversas obras literárias, os seres hu​
manos, de alguma maneira, figuravam e fixavam
uma imagem do homem.

Ou seja, ele entendia que as obras literárias expunham o modo como os seres humanos viam a
si mesmos em um determinado momento e situação histórica.

Arrolando diversas imagens do ho​ mem que se alteram ao longo do tempo, ele escreveu uma
espécie de história da condição humana, entendida como uma história dos diferentes modos
como os seres humanos viam a si mesmos e o mundo no qual viviam, figurando­os em obras
literárias.

Pode­se argumentar que a condição humana não se confunde com a imagem do homem ou
com o modo como eles vêem a si mesmos. Mas a assunção do caráter intrinsecamente histórico
da condição humana acaba por conduzir a essa aproximação, desde que se pretenda – como é
o caso em Auerbach – evitar atribuir um conteúdo arbitrário ou ex​
temporâneo à condição
humana.
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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado ­ Revista Cult

Por outras palavras: Auerbach pro​curou revelar como os seres humanos, em situações
determinadas, enxergavam a si mesmos e formulavam essa visão que tinham de si e do mundo
no qual viviam. E entende que a obra literária – assim como outras formas culturais – é uma
espécie de depósito ou condensação dessa maneira de ver a si mesmo e o mundo.

Desse modo, sua tarefa converte­se em investigar como as obras literárias revelavam uma
imagem do homem e de seu mundo. Não se trata de atribuir, pelo investigador, um conteúdo a
elas, mas algo bem diferente: descobrir como, a cada momento, os seres humanos viam e
compreendiam sua condição humana, figurando­a em forma literária.

Isso significava assumir a historici​
dade das formas de consciência, que se revela em mesma TWITTER
medida no modo como a condição humana é figurada na obra literária.
Tweets Seguir
Por essa razão, o subtítulo da obra, que explica o que Auerbach entende por “mimesis”, fala da
realidade exposta. A obra literária expõe uma realidade, intrínseca e interna à obra, convertida Revista Cult 12h
em linguagem e estilo, e revela assim o modo como os homens vêem si mesmos e seu mundo. @revistacult
Psicanalista Ricardo Goldenberg publicará
Esse modo está articulado a formas de consciência, ou seja, à capacidade que eles possuem e à quinzenalmente coluna em nosso site:
modalidade que desen​ volvem de perceber e figurar tudo isso. ow.ly/YX3uf pic.twitter.com/EEuKBG3yzN

Em suma, Auerbach postula e pro​cura desenvolver uma correlação enfá​tica entre pelo menos
três dimensões: o modo como se concretiza uma forma ex​
pressiva (no caso, a literária), o
modo co​mo os homens vêem a si mesmos e uma determinada situação social­histórica.

Ademais, sua perspectiva é enfatica​ mente histórica e a correlação é pensada em termos
processuais: transformações no modo como os homens figuram a si mesmos e o mundo na
obra literária estão conectadas a transformações no modo como vêem a si mesmos – por​ tanto,
a transformação nas formas de consciência, vale dizer nos próprios seres humanos – e também
a transformações na estrutura social, no mundo social​ ­histórico no qual esses homens vivem.

O resultado é que, investigando o modo como a realidade está exposta em uma determinada
obra literária (ou se​
ja, como aparecem nela os homens e o mundo no qual eles vivem),
Auerbach vê como os homens daquele tempo e lugar concebem uma imagem do homem e do
mundo, e é isso a condição humana, tal como percebida por aqueles homens, na​ quela
situação. Expandir

Se as formas de consciência estão vinculadas a situações histórico­sociais, as transformações Revista Cult 28 fev


na estrutura da so​
ciedade implicam transformações nas formas de consciência, que por sua @revistacult
vez implicam transformações no modo co​ mo os homens veem a si mesmos e seu mundo e, por Há 100 anos morria Henry James. Releia artigo
fim, no modo como figu​ram isso em forma de literatura. sobre "Os embaixadores", sua obra‐prima:
ow.ly/YOsWv pic.twitter.com/xyTbhqv20t
Auerbach não formula nem postula uma causalidade unívoca entre essas diversas dimensões,
mas entende­as como uma totalidade social­histórica.

Nesse sentido, a obra literária oferece­lhe uma possibilidade, em vir​
tude dessa articulação Tweetar para @revistacult
complexa de di​ferentes dimensões, de acesso às formas de consciência e, portanto, ao modo
como a condição humana é percebida pelos homens em diferentes momentos e situações.
“Realismo”

Auerbach empregou, na falta de ter​mo melhor, a palavra (mas não o con​ ceito) “realismo” para
designar o modo como a realidade exposta aparece na obra literária. Mas empregou­a sempre
adjetivando­a, de modo a especificá­la: não se trata de “realismo”, mas sempre de uma
modalidade particular de realismo, ou seja, de uma modalidade de exposição da realidade.

Destarte, o problema do realismo é convertido no problema dos realismos, e do seguinte modo:
às diferentes manei​
ras de como os seres humanos percebem a si mesmos e o mundo no qual
vivem correspondem diferentes modalidades de “realismo”.

Assim, o problema que apontei po​de também ser formulado – desde que tenhamos em vista o
que foi dito – co​
mo uma investigação acerca de diversas modalidades de realismo ao longo da
história.

O uso dessa ideia de realismo, ade​
mais, foi direcionado para uma circuns​ crição mais definida,
pois se Auerbach estava interessado na condição huma​ na, era necessário mobilizar a ideia
para pensar o problema.

Isso significou que, ao longo do li​
vro, realismo visa a designar o modo co​ mo o mundo concreto
é figurado como algo sério, problemático, e mesmo dra​ mático. Ou seja, realismo aparece como
a conjugação de cotidiano e seriedade trágica.

No fundo, mais importante do

que o realismo é o cotidiano, o mundo da vida, o mundo concreto no qual vivem os homens de
carne e osso. O cotidiano é tão importante para Auerbach precisamente por isso: é o lugar
onde os homens vivem e, portanto, é onde, por assim dizer, está assentada a condição
humana, compre​ endida em sua historicidade intrínseca.

Por essa razão, sua investigação pro​
curou focalizar como o cotidiano apa​
recia e
ocasionalmente desaparecia da realidade exposta na literatura. E tam​bém como, uma vez
presente, com que intensidade ele aparecia, ou melhor, o quão impregnado de seriedade,
proble​
maticidade e dramaticidade.

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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado ­ Revista Cult
O destaque dado à seriedade, pro​
blematicidade e dramaticidade tem a ver com a elevação da
importância dada ao cotidiano; por outras palavras, ele é con​
siderado importante na medida
em que aparece como algo sério e, mais impor​
tante ainda, quando aparece como algo
impregnado de drama, como o ambiente no qual se desenrola um drama: a exis​ tência
humana.

Por outro lado, quando o cotidiano, o mundo da vida, aparece de forma irô​ nica, satírica,
idílica ou similar, isso sig​
nifica que a ele não se atribui a maior im​
portância: há outras coisas
mais sérias.

Mas como Auerbach vê?

Uma tal investigação acerca das transformações históricas da condição humana ou,
formulando de outro modo, da autopercepção da condição humana, pressupõe um sujeito
cognoscente que seja capaz de compreender o que é outro e diferente.

Auerbach professa um “relativismo perspectivista” (a expressão é dele), se​
gundo o qual o
conhecimento está inex​
tricavelmente enraizado no presente do sujeito cognoscente.

Não obstante, tal sujeito é capaz de um esforço de conhecimento, por meio do qual pode
acessar outras épocas e ou​ tros povos – em última instância, por​
que todos os homens partilham
de uma humanidade comum e porque o mundo histórico é o mundo criado pelos homens e,
portanto, possui uma raiz comum.

Auerbach utilizou­se muito de Vico para fundamentar sua prática do conhe​cimento histórico
– muito menos uma teoria do que uma prática –, retomando a idéia de que o mundo histórico
é sempre uma configuração das possibilidades do ser humano, do espírito humano.

Sobre um terreno comum erguem­se as experiências específicas, que, contu​
do, sempre retém
um resto, ou melhor, uma camada do que é comum a todos os seres humanos – sua
humanidade – e que estabelece um canal para o ato de compreensão, que é o ato cognitivo.

Há, pois, uma humanidade comum, que se concretiza, contudo, apenas histo​
ricamente: a
condição humana.

Assim, o objeto de investigação pri​
meiro volta­se ao próprio investigador; também ele está
imerso em uma situação histórico­social concreta, em uma deter​ minada forma de consciência,
revelando uma determinada visão do homem e do mundo no qual ele vive.

A escrita da história

O objetivo de Auerbach foi sempre escrever história. Pode­se afirmar que, em Mimesis,
pretendeu escrever uma história das transformações no modo como os homens viam a si
mesmos, utilizando para tanto a literatura: nesta, procurou desvelar a imagem do homem e do
mundo.

O livro constitui­se de análises de variados textos literários, que se iniciam por volta dos séculos
9º a.C. – 8º a.C. (a Odisseia e o Antigo Testamento) e che​ gam até o seu presente, o momento
em que escrevia o livro (1942­45).

Nesse arco histórico de longuíssima duração, Auerbach selecionou alguns poucos textos –
cerca de meia centena – e, lendo­os, buscou compreender e expor como a realidade neles
aparecia, perseguindo variadas modalidades da conjugação (ou disjunção) de cotidiano e
seriedade.

Separação e mistura de estilos

Para operacionalizar analiticamente o problema da unificação (ou separação) de cotidiano e
seriedade (que por sua vez é o modo de perceber como a condição humana era percebida e
figurada em va​riados momentos e situações), Auerbach instrumentalizou a “regra da
separação dos estilos”, uma proposição da poética clássica segundo a qual os assuntos sé​
rios e
sublimes exigem uma linguagem elevada e transcorrem em um mundo elevado, enquanto os
assuntos de pouca importância deixam­se vazar em uma linguagem simples e são os assuntos
do mundo comum, isto é, cotidiano.

Entre o estilo elevado (do drama) e o estilo baixo (da comédia), há ainda um estilo
intermediário, que nunca é plenamente sério, mas também não é completamente satírico:
ocasionalmente tocante, sentimental, idílico etc.

A regra da separação dos níveis de estilo tem como contraparte a sua au​
sência ou quebra,
quando as coisas mais sérias e sublimes podem aparecer entra​nhadas no mundo cotidiano e
ser expres​
sas em uma linguagem comum.

E é isso, precisamente, o que inte​ressa a Auerbach: uma vez que procura investigar a
mencionada conjugação de cotidiano e seriedade, interessa­lhe a quebra da regra, a mistura
de estilos. Ou seja, a investigação da condição huma​ na pode ser conduzida utilizando como
marco de orientação (mas não exclusivo) o rompimento da regra da separação dos níveis de
estilo, uma vez que, enquanto operante, essa regra separa o cotidiano do sério, do trágico e do
sublime: estes referem­se, então, a um mundo extra ou supra­cotidiano.

Leopoldo Waizbort é professor no Departamento de Sociologia da FFLCH­USP e autor de

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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado ­ Revista Cult
As Aventuras de Georg Simmel (Editora 34)

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