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O mundo condensado
Através do estudo de obras como a Bíblia e a Odisseia, o crítico alemão Erich Auerbach procura entender o sentido
da história e da condição humana
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O crítico Erich Auerbach (Foto: Divulgação)
LEOPOLDO WAIZBORT
Erich Auerbach (18921957) é conhecido por seu livro Mimesis: A realidade exposta na
literatura ocidental (publi
cado em Berna no ano 1946) e podese dizer que seus outros
trabalhos gravitam em torno dessa obra.
O livro propõese a investigar nada menos do que a con dição humana, mas a compreende
como algo intrinsecamente histórico. Portanto, como algo que se altera ao longo do tempo, e o
esforço de análise consiste em revelar essa historicidade, e em mesma medida revelar a
condição humana tal como se apresenta em diferentes épocas e situações.
Essa tarefa, bastante complexa e talvez mesmo pretensiosa, foi encaminhada por Auerbach de
maneira extremamente ori ginal, lançando mão de sua formação como filólogo e estudioso de
obras literárias.
Se a condição humana não é algo transcendente e fixo, examinála consiste em acompanhar
as suas transfor
mações. Auerbach procurou responder a essa tarefa buscando compreender
como, em diversas obras literárias, os seres hu
manos, de alguma maneira, figuravam e fixavam
uma imagem do homem.
Ou seja, ele entendia que as obras literárias expunham o modo como os seres humanos viam a
si mesmos em um determinado momento e situação histórica.
Arrolando diversas imagens do ho mem que se alteram ao longo do tempo, ele escreveu uma
espécie de história da condição humana, entendida como uma história dos diferentes modos
como os seres humanos viam a si mesmos e o mundo no qual viviam, figurandoos em obras
literárias.
Podese argumentar que a condição humana não se confunde com a imagem do homem ou
com o modo como eles vêem a si mesmos. Mas a assunção do caráter intrinsecamente histórico
da condição humana acaba por conduzir a essa aproximação, desde que se pretenda – como é
o caso em Auerbach – evitar atribuir um conteúdo arbitrário ou ex
temporâneo à condição
humana.
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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado Revista Cult
Por outras palavras: Auerbach procurou revelar como os seres humanos, em situações
determinadas, enxergavam a si mesmos e formulavam essa visão que tinham de si e do mundo
no qual viviam. E entende que a obra literária – assim como outras formas culturais – é uma
espécie de depósito ou condensação dessa maneira de ver a si mesmo e o mundo.
Desse modo, sua tarefa convertese em investigar como as obras literárias revelavam uma
imagem do homem e de seu mundo. Não se trata de atribuir, pelo investigador, um conteúdo a
elas, mas algo bem diferente: descobrir como, a cada momento, os seres humanos viam e
compreendiam sua condição humana, figurandoa em forma literária.
Isso significava assumir a historici
dade das formas de consciência, que se revela em mesma TWITTER
medida no modo como a condição humana é figurada na obra literária.
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Por essa razão, o subtítulo da obra, que explica o que Auerbach entende por “mimesis”, fala da
realidade exposta. A obra literária expõe uma realidade, intrínseca e interna à obra, convertida Revista Cult 12h
em linguagem e estilo, e revela assim o modo como os homens vêem si mesmos e seu mundo. @revistacult
Psicanalista Ricardo Goldenberg publicará
Esse modo está articulado a formas de consciência, ou seja, à capacidade que eles possuem e à quinzenalmente coluna em nosso site:
modalidade que desen volvem de perceber e figurar tudo isso. ow.ly/YX3uf pic.twitter.com/EEuKBG3yzN
Em suma, Auerbach postula e procura desenvolver uma correlação enfática entre pelo menos
três dimensões: o modo como se concretiza uma forma ex
pressiva (no caso, a literária), o
modo como os homens vêem a si mesmos e uma determinada situação socialhistórica.
Ademais, sua perspectiva é enfatica mente histórica e a correlação é pensada em termos
processuais: transformações no modo como os homens figuram a si mesmos e o mundo na
obra literária estão conectadas a transformações no modo como vêem a si mesmos – por tanto,
a transformação nas formas de consciência, vale dizer nos próprios seres humanos – e também
a transformações na estrutura social, no mundo social histórico no qual esses homens vivem.
O resultado é que, investigando o modo como a realidade está exposta em uma determinada
obra literária (ou se
ja, como aparecem nela os homens e o mundo no qual eles vivem),
Auerbach vê como os homens daquele tempo e lugar concebem uma imagem do homem e do
mundo, e é isso a condição humana, tal como percebida por aqueles homens, na quela
situação. Expandir
Nesse sentido, a obra literária oferecelhe uma possibilidade, em vir
tude dessa articulação Tweetar para @revistacult
complexa de diferentes dimensões, de acesso às formas de consciência e, portanto, ao modo
como a condição humana é percebida pelos homens em diferentes momentos e situações.
“Realismo”
Auerbach empregou, na falta de termo melhor, a palavra (mas não o con ceito) “realismo” para
designar o modo como a realidade exposta aparece na obra literária. Mas empregoua sempre
adjetivandoa, de modo a especificála: não se trata de “realismo”, mas sempre de uma
modalidade particular de realismo, ou seja, de uma modalidade de exposição da realidade.
Destarte, o problema do realismo é convertido no problema dos realismos, e do seguinte modo:
às diferentes manei
ras de como os seres humanos percebem a si mesmos e o mundo no qual
vivem correspondem diferentes modalidades de “realismo”.
Assim, o problema que apontei pode também ser formulado – desde que tenhamos em vista o
que foi dito – co
mo uma investigação acerca de diversas modalidades de realismo ao longo da
história.
O uso dessa ideia de realismo, ade
mais, foi direcionado para uma circuns crição mais definida,
pois se Auerbach estava interessado na condição huma na, era necessário mobilizar a ideia
para pensar o problema.
Isso significou que, ao longo do li
vro, realismo visa a designar o modo co mo o mundo concreto
é figurado como algo sério, problemático, e mesmo dra mático. Ou seja, realismo aparece como
a conjugação de cotidiano e seriedade trágica.
No fundo, mais importante do
que o realismo é o cotidiano, o mundo da vida, o mundo concreto no qual vivem os homens de
carne e osso. O cotidiano é tão importante para Auerbach precisamente por isso: é o lugar
onde os homens vivem e, portanto, é onde, por assim dizer, está assentada a condição
humana, compre endida em sua historicidade intrínseca.
Por essa razão, sua investigação pro
curou focalizar como o cotidiano apa
recia e
ocasionalmente desaparecia da realidade exposta na literatura. E também como, uma vez
presente, com que intensidade ele aparecia, ou melhor, o quão impregnado de seriedade,
proble
maticidade e dramaticidade.
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O destaque dado à seriedade, pro
blematicidade e dramaticidade tem a ver com a elevação da
importância dada ao cotidiano; por outras palavras, ele é con
siderado importante na medida
em que aparece como algo sério e, mais impor
tante ainda, quando aparece como algo
impregnado de drama, como o ambiente no qual se desenrola um drama: a exis tência
humana.
Por outro lado, quando o cotidiano, o mundo da vida, aparece de forma irô nica, satírica,
idílica ou similar, isso sig
nifica que a ele não se atribui a maior im
portância: há outras coisas
mais sérias.
Mas como Auerbach vê?
Uma tal investigação acerca das transformações históricas da condição humana ou,
formulando de outro modo, da autopercepção da condição humana, pressupõe um sujeito
cognoscente que seja capaz de compreender o que é outro e diferente.
Auerbach professa um “relativismo perspectivista” (a expressão é dele), se
gundo o qual o
conhecimento está inex
tricavelmente enraizado no presente do sujeito cognoscente.
Não obstante, tal sujeito é capaz de um esforço de conhecimento, por meio do qual pode
acessar outras épocas e ou tros povos – em última instância, por
que todos os homens partilham
de uma humanidade comum e porque o mundo histórico é o mundo criado pelos homens e,
portanto, possui uma raiz comum.
Auerbach utilizouse muito de Vico para fundamentar sua prática do conhecimento histórico
– muito menos uma teoria do que uma prática –, retomando a idéia de que o mundo histórico
é sempre uma configuração das possibilidades do ser humano, do espírito humano.
Sobre um terreno comum erguemse as experiências específicas, que, contu
do, sempre retém
um resto, ou melhor, uma camada do que é comum a todos os seres humanos – sua
humanidade – e que estabelece um canal para o ato de compreensão, que é o ato cognitivo.
Há, pois, uma humanidade comum, que se concretiza, contudo, apenas histo
ricamente: a
condição humana.
Assim, o objeto de investigação pri
meiro voltase ao próprio investigador; também ele está
imerso em uma situação históricosocial concreta, em uma deter minada forma de consciência,
revelando uma determinada visão do homem e do mundo no qual ele vive.
A escrita da história
O objetivo de Auerbach foi sempre escrever história. Podese afirmar que, em Mimesis,
pretendeu escrever uma história das transformações no modo como os homens viam a si
mesmos, utilizando para tanto a literatura: nesta, procurou desvelar a imagem do homem e do
mundo.
O livro constituise de análises de variados textos literários, que se iniciam por volta dos séculos
9º a.C. – 8º a.C. (a Odisseia e o Antigo Testamento) e che gam até o seu presente, o momento
em que escrevia o livro (194245).
Nesse arco histórico de longuíssima duração, Auerbach selecionou alguns poucos textos –
cerca de meia centena – e, lendoos, buscou compreender e expor como a realidade neles
aparecia, perseguindo variadas modalidades da conjugação (ou disjunção) de cotidiano e
seriedade.
Separação e mistura de estilos
Para operacionalizar analiticamente o problema da unificação (ou separação) de cotidiano e
seriedade (que por sua vez é o modo de perceber como a condição humana era percebida e
figurada em variados momentos e situações), Auerbach instrumentalizou a “regra da
separação dos estilos”, uma proposição da poética clássica segundo a qual os assuntos sé
rios e
sublimes exigem uma linguagem elevada e transcorrem em um mundo elevado, enquanto os
assuntos de pouca importância deixamse vazar em uma linguagem simples e são os assuntos
do mundo comum, isto é, cotidiano.
Entre o estilo elevado (do drama) e o estilo baixo (da comédia), há ainda um estilo
intermediário, que nunca é plenamente sério, mas também não é completamente satírico:
ocasionalmente tocante, sentimental, idílico etc.
A regra da separação dos níveis de estilo tem como contraparte a sua au
sência ou quebra,
quando as coisas mais sérias e sublimes podem aparecer entranhadas no mundo cotidiano e
ser expres
sas em uma linguagem comum.
E é isso, precisamente, o que interessa a Auerbach: uma vez que procura investigar a
mencionada conjugação de cotidiano e seriedade, interessalhe a quebra da regra, a mistura
de estilos. Ou seja, a investigação da condição huma na pode ser conduzida utilizando como
marco de orientação (mas não exclusivo) o rompimento da regra da separação dos níveis de
estilo, uma vez que, enquanto operante, essa regra separa o cotidiano do sério, do trágico e do
sublime: estes referemse, então, a um mundo extra ou supracotidiano.
Leopoldo Waizbort é professor no Departamento de Sociologia da FFLCHUSP e autor de
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02/03/2016 Revista Cult O mundo condensado Revista Cult
As Aventuras de Georg Simmel (Editora 34)
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