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Nenhum a menos e o processo de inclusão escolar e social

Sérgio Kodato

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OLIVEIRA, ML., org. (Im)pertinências da educação: o trabalho educativo em pesquisa [online]. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 193 p. ISBN 978-85-7983-022-8.
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NENHUM A MENOS E O PROCESSO
DE INCLUSÃO ESCOLAR E SOCIAL
Sérgio Kodato1

Inicialmente, gostaria de agradecer o convite da professora Maria


Lúcia Oliveira, coordenadora deste evento para o debate do filme
dirigido por Zhang Yimou, Nenhum a menos. Tentarei em meus
comentários ser um pouco mais condescendente com os métodos
usados pela jovem professora chinesa, um pouco por ser minha
patrícia distante e pelo poético da trama.
Olhando para vocês da plateia, penso que, num sábado de manhã,
quase meio-dia já, enquanto muitas pessoas estão no clube aprecian-
do o sol, a piscina e a cerveja, estamos aqui, imaginando e debatendo
educação. Neste nosso encontro, temos a clara convicção de que, se
escolhemos ser educadores, professores, acabamos abrindo mão de
lutar para sermos ricos, no sentido de milionários, não é verdade?
Se tivéssemos pretensões de ser ricos, uma hora dessas, nós esta-
ríamos com o pensamento voltado para a Bolsa de Valores, ou para os
investimentos de capital num banco ou ainda para as ações de alguma
empresa multinacional. Se escolhemos ou fomos forçados a desistir

1 Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento


Humano – USP (SP). Docente dos cursos de graduação e pós-graduação da
FFCLRP-USP. Coordenador do Observatório de Violência e Práticas Exem-
plares da USP (Ribeirão Preto).
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de não sermos ricos, optamos por trilhar o caminho da busca árdua


pela sabedoria, e é isso que dignifica a atividade do professor: a busca
ávida e incessante por, como diria Madalena Freire, poder se dedicar
“[...] à maravilhosa aventura de conhecer o mundo”.
Por outro lado, temos sentido na pele e no cotidiano que, ao se
tentar ensinar, além dos parcos salários, no dia a dia sofremos bas-
tante. Somos depositários das angústias, da pobreza e expectativas
de progresso social dos alunos e de seus familiares. Então, o que fazer
para não adoecer com essa tensão e sofrimento; o que nós estamos
propondo?
Se pudéssemos pensar na ideia de transformar todo esse sofri-
mento em conhecimento, em saber, já não seria uma vantagem, ou
um início? Então essa é a proposta de hoje em termos de discussão:
pensarmos um método, uma forma de transformação do sofrimen-
to cotidiano em conhecimento. O socioanalista francês René Käes
(1991) propõe que pensemos na ideia segundo a qual “[...] os pro-
cessos e relações institucionais que acontecem numa escola eu só os
conheço de fato através do sofrimento que neles eu experimento”. E
o conhecimento dos processos e mecanismos institucionais, princi-
palmente numa escola, eu só assimilo, eu só compreendo, através do
sofrimento que neles eu experimento. Portanto, nós temos duas alter-
nativas: ou nós transformamos esse sofrimento em conhecimento ou
transformamos em doença, não é verdade? Seria isto que nós viemos
desenvolver: o inevitável sofrimento mastigado e transformado em
ideia, cena, narrativa.
Eu recebi aqui uma mostra dos exercícios de multiplicação, as
associações que solicitamos que vocês fizessem durante a projeção do
filme. A partir das cenas mais significativas, que associações vieram
no pensamento e na imaginação? Recebi aqui um aviãozinho criativo,
uma representação plástica. Recebi outro desenho criativo, com o
título “[...] afeto e o existir [...]”, do Fabiano, sugerindo dois temas
mobilizados na projeção.
Bom, gostaria de saber, qual foi a cena que mais marcou vocês
no filme? Qual foi a cena que mais tocou? O ibope, por enquanto,
é a cena da televisão, quando a professora vai anunciar que está
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preocupada com o menino perdido e ele assiste e chora. As palavras


que mais estão aparecendo nas associações feitas por vocês são “te-
nacidade”, “determinação”.
Eu pergunto a vocês: vocês se emocionaram, ficaram com von-
tade de chorar em alguma cena? Chorou mesmo?2 Isso mostra que
o filme conseguiu atingir um dos seus objetivos, que foi promover
uma catarse... Catarse é um termo que vem do grego catharsis, que
significa purgação, purificação da alma, “pôr para fora”, “expressar
emoções”; sempre que eu ponho para fora algo ruim, que eu libero
emoções negativas, eu me purifico.
Confesso também que fiquei com vontade de chorar e chorei
também. Nós choramos por causa do menino que estava desapare-
cido e que foi achado? Nós choramos por causa disso no filme? Do
desespero da jovem professora em garantir o “nenhum a menos”?
Muito provavelmente, não. Aristóteles, postulante da catarse como
purificação, talvez nos indicasse que estamos chorando pelas nossas
perdas, desaparecimentos, os “um a menos” que foram acontecendo
durante a nossa trajetória de vida.
Se você focar a cena que boa parte considerou a mais importante,
que é a da televisão, do menino chorando e da possibilidade do re-
encontro, essa cena remete a temas universais, que são a questão da
solidão, o abandono, a solidariedade, o desamparo. Então, a primeira
coisa que o filme toca é em perdas profundas que se encontram en-
raizadas em nossos corações, em nossas mentes. Como é que o filme
vai trabalhar a questão da perda?
Ele já enuncia logo no primeiro momento: a mãe do professor
vai morrer, por isso ele precisa se ausentar e aparece a substituta. A
mãe do professor vai morrer. Assim como nossas mães vão morrer
ou muitas até já morreram, não é verdade? O pai do menino que foi
para a cidade morreu! Assim como nossos pais vão morrer. O menino
ficou abandonado, solitário na cidade. A professora também ficou
abandonada, solitária na cidade. Nós nos sentimos solitários em
nossas cidades. E ao mesmo tempo vocês estão vendo que, diante

2 Várias pessoas menearam a cabeça afirmativamente.


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de tanta perda e de tanta solidão, o filme também vai trazer o tema


da solidariedade.
Observem o título do filme Nenhum a menos. Vocês viram que tem
uma inscrição logo no início, o título do livro no filme é “Existe um Sol
no Céu”. A escola vai terminar se chamando “Escola da Esperança”.
Percebe-se que este seria o primeiro contraponto que nós estaríamos
destacando no filme. Então, a primeira coisa que seria importante
colocar é que todos nós sofremos perdas inexoráveis, irremediáveis.
Quando você sofre uma perda, uma frustração amorosa, você acha que
é o único que está sofrendo, e esquece que a perda é uma perda social.
Só quando nos conscientizamos dessa perda é que é possível superá-
-la, é possível não ficar chorando simplesmente, melancolicamente.
Segundo ponto importante que o filme vai tocar é a confrontação
entre rural e cidade. Eu arrisco dizer que muitos de nós encontramo-
-nos nesta transição, entre o caipira e o citadino. Mesmo que você
não tenha morado na roça, nas suas origens não tem um pouco de
roceiro, um pouco de caipira? E você não está vivendo esta transição
da roça para a cidade? Então, esse filme também está trabalhando
essa situação do menino que vai do campo para a cidade. Aquilo que
ficou para trás! Esta noção do Proust (1992) “Em busca do tempo
perdido”, os bolinhos Madeleine.
Proust pode estar sugerindo isso, então: houve uma época quan-
do éramos felizes, não sabíamos, havia solidariedade, havia vínculo
afetivo, fraterno entre as pessoas. Então, o filme está trabalhando
esta passagem do campo para a cidade, do grupo simples para a
alienação da cidade grande; a solidão, a fome e, ao fundo, a luz néon,
o progresso.
Tem um outro ponto importante também, que é a representação
do giz. Vocês perceberam, não é? O giz é, então, o símbolo da sabe-
doria no início do filme. Vocês lembram que o professor guardava, e
contou cuidadosamente vinte e seis, um para cada dia em que ia ficar
ausente. No início das aulas toda a caixa de giz foi pisoteada numa
briga, não é verdade?
Uma das questões centrais da atualidade em Marshall Berman
(1988), em sua obra Tudo que é sólido desmancha no ar, é “tudo que é
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sagrado é profanado”. O giz, que é o símbolo sagrado da sabedoria,


da transmissão do conhecimento do velho para a nova, ele é piso-
teado, profanado, despedaçado. Do ponto de vista existencialista, é
um momento de náusea, de sofrimento intenso, seguido da epifania,
“iluminação súbita”. Náusea, quando “o mundo vira de ponta-
-cabeça”, um mal-estar súbito, o momento em nossas vidas onde
tudo se quebra, onde a sua ilusão se esvai. Fomos criados dentro
de uma mentalidade e cultura dos filmes de Hollywood, do “amor
romântico”, a meta era “casar e viver feliz para sempre”. Achávamos
que a vida era como uma escada que você vai subindo, subindo, até
que atinge um patamar de felicidade plena e eterna. A duras penas,
descobrimos que nossas vidas não são assim tão lineares.
Mal sabíamos nós que, ao invés de “do casamento e da felicidade
para sempre”, a vida é um contexto de crises e conflitos existenciais.
Nossa vida é assim: você se apaixona, você vai morar junto, casa, de
repente depois de um tempo não existe um mal-estar, um desgaste?
Uma briga, uma desilusão? É isso que o filme está mostrando com o
episódio do giz, a tristeza e sofrimento pelo pisoteamento, pela briga,
e num outro momento a epifania, uma iluminação súbita.
Vocês viram o momento em que o menino pega o diário da menina
e ela está falando do giz que foi pisoteado, e que o professor fazia
questão de usar até o último pedacinho e que a nova professora nem
havia se preocupado? Vocês perceberam a expressão da professora?
Ela percebeu que estava fazendo tudo errado. É como se houvesse
ocorrido uma iluminação súbita nela ali, naquele momento. Ela se
deu conta daquilo que representava o giz simbolicamente. Então,
esse é o efeito do filme: náusea e epifania. A nossa vida é assim: você
cresce, você tem desilusões, você sobe e vai para frente, você desce.
Seria isso o chamado sentido trágico da existência, quando você acha
que está atingindo o topo, tudo desmorona!
Uma outra temática que tem a ver com as palavras-chave que
vocês escolheram é obstinação. Vocês viram a corrida da menina,
atrás da caminhonete, indo atrás do menino, não esmorecia nunca,
demonstrava determinação. Vocês viram também que a menina,
em determinados momentos, é um pouco violenta, meio agressiva.
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Eu recebi uma notícia, semana passada, de que em determinadas


escolas do Japão eles estão contratando professores homens com
experiência em lutas marciais. Quer dizer, uma coisa de contenção
física mesmo, de demonstração de força e de intimidação. Mas não
sei se vocês viram que toda a agressividade dela era para fins benéfi-
cos, educativos. Vocês perceberam que não havia nenhuma mágoa,
nenhum ressentimento nessa agressividade? É aquilo que Freud vai
lembrar, que existem determinados momentos em que a violência é
utilizada para fins idealistas, para defesa de princípios, como possi-
bilidade sublimatória.
Como estamos falando de agressividade e violência, uma outra
temática que gostaria de explorar no filme é o ensino praticado.
Vocês veem a insistência da professora na contenção física, na ma-
nutenção da disciplina e na cópia. “Todo mundo vai ter que copiar a
lição independentemente de qualquer coisa, ficar quieto na carteira
sem abrir a boca e se desobedecer é castigado.” Eu enxergo, nesse
momento do filme, uma metáfora do ensino tradicional do período
medieval. Quais foram as duas grandes características do período
medieval? Cópia e disciplina. Os monges ficavam nos monastérios
transcrevendo as Escrituras Sagradas em seus pergaminhos. E disci-
plina, disciplinar o corpo e a mente. Então, a primeira parte do filme
configura-se como uma metáfora do ensino medieval. O significante
é a passagem do ensino medieval para o ensino moderno.
No ensino tradicional o aluno é passivo, como uma coruja ten-
dendo ao sono. Na história em questão, o aluno começou a se tornar
ativo numa outra proposta. Na primeira metade do filme o aluno
ficava sentado, copiando coisas incompreensíveis da lousa e tendendo
à indisciplina; na segunda metade ele participa ativamente: sugere,
vai para a lousa, levanta, produz, carrega tijolo. Observamos que se
formou um grupo de alunos em sala de aula. Gostaria de pontuar
que o fato de eles irem para a olaria foi uma tarefa organizadora. Foi
um marco no filme a hora em que começa esta história de olaria, do
ensino alienante sem sentido, para um ensino instrumental para a
vida. É isso que Pichon Rivière (1994) defende, que a tarefa organiza
o grupo. Uma tarefa que faça sentido para os alunos organiza o grupo.
(IM)PERTINÊNCIAS DA EDUCAÇÃO 103

Vocês perceberam também a mudança no papel da professora


novata? Vocês viram que ela começou a adotar um método de per-
guntar para os alunos. Muitas vezes temos a impressão de que ela
nem sabia direito, por exemplo as complexas operações de multipli-
cação. Parecia que os alunos sabiam mais que ela. Vocês lembram
do método socrático? Da ironia para a maiêutica. Ironia, “a arte
de fazer perguntas de forma a levar o interlocutor a reconhecer sua
ignorância”. E maiêutica, como “parto de novas ideias”. Então,
vocês percebem que, nesse momento onde ela estava inquirindo os
alunos, é como se fosse uma espécie de homenagem a esse método
socrático. Ela pergunta e desafia o interlocutor a pensar, raciocinar
e se tornar inteligente. E vocês percebem que fazer pergunta é muito
mais difícil do que dar a solução do problema de mão beijada. Quer
dizer, ao fazer uma pergunta você vai levar o aluno a pensar, foi o
que ela estava tentando fazer. E vocês viram depois que apareceram
novas ideias, parto de novas ideias.
Então, no bojo desse processo educativo vão emergir alunos sá-
bios, espertos, como raposas de orelha em pé, farejando e rastreando.
Todas as sugestões que foram dadas, de tentar ir de ônibus para a
cidade, de ir para a olaria, de tomar Coca-Cola e assim por diante,
partiram dos alunos. Então, nessa outra modalidade de ensino, o
aluno detém um saber, o aluno não é uma tábula rasa, ele detém um
saber instrumental. A ida à olaria, vocês viram que tem uma música
de fundo no filme? Vocês lembraram alguma coisa com essa música?
Essa música não é tão estranha assim, apesar de o filme ser chinês.
A ida à olaria também tem, para mim, uma homenagem ao educa-
dor francês Celestin. Este autor afirmava que, se você deixar os alunos
dentro da sala sem fazer nada, eles vão fazer bagunça. A ida à olaria
é, no sentido figurado, proposta pedagógica de Celestin da educação
pelo trabalho. Não o trabalho alienado, mas o autor defendia que,
quando o menininho de seis anos de idade que foi para a colheita com
os pais vem embora no final da tarde com a “mochilinha” cheia de
frutas que ele próprio colheu, ele pode estar extenuado, cansado, mas
em seu rosto é possível encontrar a felicidade de dever cumprido, de
alguém que fez alguma coisa significativa.
104 MARIA LÚCIA DE OLIVEIRA

Então é essa a contraposição do filme também: entre um ensino


onde todo mundo fica brigando, cutucando um ao outro, e um ensi-
no onde ao seu final eu tenho um produto: então alguns carregaram
tantos tijolos, outros menos. Observo que na hora em que eles estão
voltando, a música vai marcar isso, esses momentos de satisfação,
de gratificação, são passíveis de serem encontrados.
Nessa passagem então, do medieval para o moderno, vocês vi-
ram também que entra a questão do dinheiro. O dinheiro é o outro
organizador, a necessidade. Percebe-se que é a necessidade que
permite um sentido à prática pedagógica. Você viu que ela tentou
obter dinheiro dos próprios alunos, coisa que a gente faz de vez em
quando na penúria de nossas escolas.
Vocês viram os símbolos da contemporaneidade que vão apa-
recendo durante o filme? Primeiro a velocidade. Vocês viram que a
moça sai andando da aldeia, mas ela toma carona numa caminhonete
e depois chega de trator. A correria, a rapidez, o encurtamento das
longas distâncias, tudo isso configura uma das características do
homem atual. Vocês viram que a Coca-Cola se transformou num
líquido sagrado, num líquido precioso? Então, tudo isso está mar-
cando a China em locais em que o modo de produção era arcaico. As
duas latas de Coca-Cola sorvidas aos goles por um grupo de crianças
sedentas de objetos de consumo simboliza também o engajamento
da China na economia de mercado, a que poucos têm acesso.
Vocês viram também que, na busca pelo menino, a jovem profes-
sora fez cartazes à mão? Num segundo momento ela anunciou numa
espécie de rádio comunitária, até chegar na televisão, que é a mídia
privilegiada do nosso século. Então se percebe que, mesmo no proces-
so de busca do menino, os métodos vão sendo modernizados. Primeiro
um cartaz, que na China, na época da revolução cultural, era pregado
no muro, geralmente como denúncia e servia a uma pequena comuni-
dade. Depois uma rádio, que já tem uma abrangência maior, até che-
garmos na televisão, que transformou o mundo numa “aldeia global”.
No filme, os cartazes que ela fez com carinho e arte foram varridos
pela modernidade enquanto ela dormia. Foi tudo embora para o lixo.
Esse é o processo perverso da modernidade, varrer tudo para o lixo,
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principalmente aquilo que é antigo e, entre aspas, supérfluo. Vocês


viram que com a modernização o filme vai trabalhando as relações
sociais, enfraquecendo a solidariedade, até chegar naquela mulher do
guichê da recepção da emissora de televisão, totalmente insensível ao
sofrimento da professora. Nesta plateia muita gente colocou que ficou
irritado da vida com aquela mulher. À medida que a modernidade
vai avançando, nós vivemos um processo de desumanização, de tal
forma que ao final desse processo nós teríamos uma sociedade que
seria uma espécie de uma réplica do cenário de Blade Runner, um
filme futurista que mostra a existência de milhões de miseráveis nas
ruas, esfaimados, se matando. E os ricos nem mesmo vão pisar o pé
no chão, já vão sair das suas casas em veículos voadores que planam
sobre a terra, já vão entrar direto nos shopping centers e escritórios,
de tal forma que vamos ter um abismo brutal, multidões de gente se
comendo pelas ruas, na mais completa barbárie, e uma ínfima mi-
noria num nível de vida inimaginável, de “admirável mundo novo”.
Vocês sabiam que já tem rico milionário americano indo para a
Lua, pagando passagem do próprio bolso, enquanto a maioria não
tem nem como comprar um fusca? E onde reside esse paradoxo?
Vocês devem ter percebido então que tem uma cena do filme em
que o menino está admirando a luz néon, e está encantado com
toda a modernidade da cidade, e o que ele vai falar? O que foi mais
importante para ele na cidade? Mendigar comida. Essa é a dura e
contrastante realidade da cidade: “[...] ela é próspera, ela é avançada
tecnologicamente, cheia de luzes, e eu tive que mendigar comida”.
Eu estive uma vez em Nova York e minha irmã tinha me empres-
tado um cartão de crédito, que eu achava que podia sacar em dinheiro
até o limite total. Na verdade não é bem assim, o caipira não sabia que
só podia sacar a metade em dinheiro, e o restante em compras. Então,
da metade para frente da viagem eu fiquei sem dinheiro no bolso,
e eu percebi que, nessas cidades grandes, se você não tem dinheiro
nenhum, você é um crápula, um cachorro abandonado. É isto que o
filme também está mostrando. Quer dizer, a fome faz com que você
vire um cachorro abandonado, não existe dignidade que se sustente
diante da solidão, do abandono e da fome.
106 MARIA LÚCIA DE OLIVEIRA

Em outro momento, o filme passará do medieval moderno para


o pós-moderno. Quem ajudou a encontrar o menino? A televisão,
esta que transformou o mundo numa aldeia global. O menino foi
achado via televisão e da sua aldeia transforma-se em personagem
da mídia. Depois disso, com as doações da cidade para a escola rural,
perceberam que no fim o giz ficou todo colorido e em abundância?
O final do filme é uma oficina pedagógica de criação, quando cada
um vai lá e escreve uma palavra. Isso é muito utilizado pelos profes-
sores atualmente, você dá a chance ao aluno de ir à lousa e escrever
uma palavra ou uma frase. Quando o grupo de alunos escreve na
lousa, simbolicamente ele se apropria de um espaço tradicional do
professor, uma inversão de papéis e o reconhecimento, pelos alunos,
da professora jovem. E vocês viram também que essa professora tinha
um despojamento no sentido de não esconder a ignorância dela dos
alunos? Apesar de ser jovem, demonstrou um despojamento que nós
só alcançamos depois de muitos anos de experiência: a humildade
do reconhecimento do não saber... No começo da carreira docente
você não quer falar que não sabe, que não entende direito o que está
ensinando, que está inseguro. Eu passei por apuros, e eu acho que
vocês também, no começo de carreira, quando todo mundo começa
a fazer bagunça e você não tem condições para exercer aquele famoso
manejo da sala de aula com tranquilidade e soberania.
Essas oficinas de cada um colocar uma palavra, o aluno ativo é o
que está marcando a diferença entre o ensino tradicional e o ensino
moderno. Nós estamos vivendo esse momento de transição. O desafio
para nós professores é a invenção de novas estratégias de acordo com
esse tempo cibernético, virtual e imagético. No ensino tradicional
só o professor fala, o aluno fica escutando e dormindo ou pensando
em dar algum sentido para aquele tédio, nem que seja às custas de
alguma travessura ou ato indisciplinar.
Para terminar, gostaria de colocar a proposta e convidá-los como
nossos observadores privilegiados do Observatório de Violência e
Práticas Exemplares da USP/Ribeirão Preto. Todos nós olhando o
mesmo fenômeno da violência nas escolas e procurando desenvolver
e multiplicar práticas exemplares de prevenção.
***
(IM)PERTINÊNCIAS DA EDUCAÇÃO 107

Maria Lúcia: Muito obrigada, professor Sérgio. Bom, acho que


fui muito feliz, quando pensei no nome da Cilene e no nome do Sérgio
para que a gente pudesse debater esse filme, como inspiração para
nossas reflexões sobre o educador. Na verdade eu não escolhi esse fil-
me, ele surgiu como sugestão, num dia em que estava assistindo com
a minha família, como uma oportunidade para que a gente pudesse
discutir com mais profissionais essas questões que temos tratado aqui
como fundamentais para o desenvolvimento do educador.
Então vou contar a vocês por que eu escolhi este filme, eviden-
temente do ponto de vista da minha intenção. Digamos que temos
bastante conhecimento, de que o Freud vai descobrir o funcionamen-
to da mente humana nas margens desse funcionamento humano não
propriamente com a patologia, mas ele vai tomar o sonho como um
caminho para a descoberta da mente e vai usar pistas muito simples,
muito singelas. Ele começa a tentar descobrir a doença mental e da
doença mental ele acaba descobrindo como é que nós todos funcio-
namos, como todo ser humano funciona. Por exemplo, por um ato
falho que a gente comete, isso mostra que existe um inconsciente
determinando nossas condutas, nossas intenções. Eu acho que esse
filme é mais ou menos isto. Ele não vai tratar didaticamente ou inten-
cionalmente da formação de um educador, ou da profissionalização
docente, por isso que eu achei importante a contribuição da Cilene
quando disse “eu vou ser dura com aquela professora”... De fato, ela
não era uma professora formada. O filme não mostra métodos de for-
mação do educador, formas burocratizadas de formação do educador,
como isto se forma etc., mas na minha compreensão, a singeleza da
apresentação do filme, eu acho que ele nos provoca... Pegando a fala
da Cilene que diz “eu vou ser dura no começo”, e depois mostra como
aquela pessoinha de treze anos consegue de fato ser uma professora,
embora a Cilene aponte a importância da profissionalização. Penso
que o filme se torna importante porque aborda o fundamento do ser
educador. Aqui nós poderíamos arrolar vários itens.
Para mim, aquela menina de treze anos foi colocada lá para ser
professora, e é possível colocar qualquer pessoa para responsabilizar-
-se pela educação? Mas eu estou preocupada com uma questão, que,
108 MARIA LÚCIA DE OLIVEIRA

resguardada toda a importância da formação profissional docente,


antecede e que também pode vir após a esta questão da formação.
É possível constatar que pessoas com formações maravilhosas não
conseguem aquilo que essa professora, que não é professora, entre
aspas, conseguiu. Eu reduziria tudo isso a uma questão: ela é agarrada
ao desejo de saber da criança, e é agarrada ao desejo do conhecimento,
ao compromisso de ensinar.
Vejam que ela fica do lado de fora no começo, porque também ela
não sabe nem onde tem que ficar, o que é que ela tem que fazer ali.
Ela fecha a porta e esse foi um momento que me tocou muito, como
uma professora está do lado de fora? Ela não tem lugar? Eu diria que
o professor não tem lugar numa escola que transmite informação.
Porque para mim o lugar do professor não é o de transmitir apenas
ideias e informações. Para mim ela estava no lugar certo, fora, estava
lá fora. Mas, veja, ela consegue de um tal jeito uma empatia com as
crianças, empatia no sentido mesmo do dicionário. Ela consegue
antes de tudo estar apaixonada por aquilo que está fazendo, e não
é por causa do dinheiro que ofereceram, não! Se vocês observarem,
ela vai gastar todo o seu dinheiro na procura do menino; ela investe
o dinheiro que receberia na procura de um menino. Então, ela tem
empatia com a criança. Ela pega cada criança e vai usar aquilo que
a criança quer saber dentro do mote, que no caso era a viagem, e vai
transformar aquilo num conhecimento, ou seja, num entendimento
que é gerado com um outro. Essa que é a ideia da etimologia da pa-
lavra grega conhecimento. Para que formemos alguém dentro desta
perspectiva é preciso que tenhamos isto plantado em nós. Tem a ver
com empatia, tem a ver com que o Kodato estava lembrando aqui,
que é o compromisso. A ideia de compromisso dessa menina é fun-
damental para o desenvolvimento e a profissionalização do educador.
Para mim a importância do filme reside no tratamento que ele dá
àquilo que é essencial, fundamental para nós nos desenvolvermos.
O sofrimento que se transforma em sabedoria também é funda-
mental. A moça parece superautoritária, mas ela é de uma humildade
incrível. Ela se coloca como uma aprendiz e faz lembrar Guimarães
Rosa quando diz: “Mestre não é aquele que sempre ensina, mas
(IM)PERTINÊNCIAS DA EDUCAÇÃO 109

aquele que de repente aprende”. Então, aprender o quê? Ela está


numa relação de empatia com aquelas crianças, de extrema iden-
tificação com elas. Apesar de não saber mais do que cantar aquelas
duas frases, ela se coloca como uma pessoa que vai extrair daquele
sofrimento uma enorme sabedoria! O filme mostra a capacidade de
compaixão daquela “professora”.
Este é para mim o valor do filme. Por isso eu o escolhi, e não outro
que apresentasse uma professora, uma educadora muito bem empre-
gada, ganhando bem, mostrando o que é ser bom educador. Mas eu
tomo alguém que não é educador, alguém que é posto lá de repente,
mas que vem mostrar para nós a essência da paixão de formar, o que
é ter essa paixão e o que é conseguir formar, porque não basta só ter
paixão. Por que não basta? Porque a paixão como foi lembrada aqui
também pode se tornar doença. Atualmente nós temos observado
sua manifestação em muitas síndromes, não só a do pânico, que é
a angústia. É um nome bonito, pós-moderno, para uma patologia
extremamente conhecida que tem a angústia como sua essência.
Os diretores de escolas, representantes das secretarias de educa-
ção e professores sabem disso. Ressalto aqui aquela tese que nós es-
távamos juntos analisando, sobre uma escola que tem 90 professores,
47 estão de licença médica. Se são doentes de verdade, não sabemos,
mas a saúde sem dúvida implica a capacidade para amar e trabalhar.
Então, veja, se nós não conseguimos transformar nosso sofrimento
em sabedoria ou, falando em termos do que Freud falou, transformar
o limão numa limonada, um recurso é adoecermos, em todos os sen-
tidos. E essas são as doenças do professor, mas tem as dos alunos, que
ainda nós vamos tratar bastante, que eu citaria e abordaria apenas
duas: o fracasso escolar e a violência escolar. Fracasso traz violência
e vice-versa, violência leva a fracasso e tudo isso está junto. Para
mim está cada vez mais claro que nós temos que buscar desenvolver
a identidade pessoal e profissional. As observações da Cilene sobre
a formação profissional docente e o destaque que o Kodato deu à
sabedoria e capacidade empática e ao compromisso com o ensino de
uma “professora” criativa são para nós de extrema importância sem
serem excludentes.
110 MARIA LÚCIA DE OLIVEIRA

Referências bibliográficas

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: aventura da modernidade.


São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
KÄES, R. et. al. A instituição e as instituições: estudos psicanalíticos. Tra-
dução de Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
PROUST, M. Em busca do tempo perdido. 10. ed. São Paulo: Globo, 1992.
7 v.
RIVIÈRE, P. O processo grupal. Tradução de Marco Aurélio Fernandez
Velloso. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

Filme

NENHUM A MENOS. Direção: Zhang Yimou. Roteiro: Xiangsheng Shi.


Intérpretes: Wei Minzhi, Zhang Huike, Tian Zhenda, Gao Enman, Sun
Zhimei. Produtoras: Bejing New Picture Distribution, Columbia Pic-
tures, Film Productions Asia, Guangxi Film Studio. Bejing: Columbia
Pictures, 1999. 1 DVD (106 min), son., color.

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