Você está na página 1de 28

MANA 3(2):221-248, 1997

RESENHAS

ABREU, Regina. 1996. A Fabricação do PPGAS/Museu Nacional, 1990), e ten-


Imortal: Memória, História e Estraté- do se beneficiado da revisão feita a par-
gias de Consagração no Brasil. Rio de tir de um estágio no Centre de Sociolo-
Janeiro: Rocco. 225 pp. gie de l´Éducation et de la Culture da
École des Hautes Études en Sciences
Sociales (1994-95), o trabalho é profu-
Antonio Carlos de Souza Lima samente ilustrado, tanto por fotografias
Prof. de Antropologia, PPGAS-MN-UFRJ integrantes do material estudado – elas
mesmas documentos abordados no li-
Os estudos antropológicos feitos a par- vro –, quanto por fotos dos objetos in-
tir da análise de objetos, a outrora cha- vestigados, o que contribui sobremodo
mada “cultura material”, vêm sendo re- para introduzir o leitor em dimensões
cuperados sob novas ênfases nos qua- visuais pouco demonstráveis de modo
dros internacionais da disciplina. Rela- escrito. A autora – hoje pesquisadora
cionada a essa retomada está a percep- da Coordenação de Folclore e Cultura
ção acurada do significado das institui- Popular/Funarte – tem também a seu
ções que se constituíram como destina- favor ter pertencido aos quadros do
das à guarda, tratamento e exposição de MHN. Tal experiência indica as possibi-
objetos, os museus. Tal consciência, ar- lidades analíticas que instituições dessa
ticulada muitas vezes a problemas co- natureza – às vezes verdadeiros “meta-
mo os de formação de comunidades po- museus” – oferecem àqueles que sa-
líticas nacionais, de memórias coletivas, bem transformar seu cotidiano e sua fa-
da constituição de segmentos sociais miliaridade em matéria para (auto-)re-
determinados, ou ao estudo da história flexão, despindo-se de pré-conceitos,
da antropologia, é ainda incipiente no da adesão fácil a uma realidade primei-
Brasil. ra e a estudos mais corriqueiros.
O belo livro de Regina Abreu é um Em suas 225 páginas, A Fabricação
exemplo notável das possibilidades e do Imortal parte da valiosa coleção
relevância de estudos que tenham co- “Miguel Calmon du Pin e Almeida”,
mo ponto de partida materiais deposita- doada por sua viúva, Alice da Porciún-
dos em acervos museológicos na quali- cula Calmon du Pin e Almeida, ao Mu-
dade de coleções. Gerado a partir de seu Histórico Nacional, em 1936. A dá-
uma dissertação de mestrado em antro- diva teria intermediários: Pedro Cal-
pologia social (Sangue, Nobreza e Polí- mon – afilhado e sobrinho de Miguel
tica no Templo dos Imortais: Um Estu- Calmon, político baiano, por duas vezes
do Antropológico da Coleção Miguel ministro de Estado –, conservador do
Calmon no Museu Histórico Nacional, Museu, regente da disciplina História
222 RESENHAS

da Civilização Brasileira na Universida- dos conhecimentos científicos necessá-


de do Distrito Federal e quadro presti- rios para arrancar o Brasil da situação
gioso do Instituto Histórico e Geográfi- de “atraso” em que o legado colonial e
co Brasileiro; e Gustavo Barroso, ideali- escravista o colocara em face do “con-
zador e diretor do Museu Histórico Na- certo das nações”, a figura do fiel corre-
cional, escritor prolixo, ambos engaja- ligionário de Rui Barbosa (a quem cha-
dos em produzir uma “história nacio- mava de chefe), ministro da Viação e
nal” de acordo com as representações Obras Públicas e, posteriormente, da
de segmentos muito específicos das eli- Agricultura, Indústria e Comércio, sobri-
tes brasileiras da chamada Primeira Re- nho homônimo do Marquês de Abrantes
pública: aqueles que constituíam e se – o “estadista de dois reinados” –, Mi-
representavam como a “nobreza brasi- guel Calmon surge da análise enquan-
leira”, e em continuidade a essa. to exemplar para se entender o traba-
Após uma contextualização do uni- lho social de reconversão de uma he-
verso social mais amplo em que Miguel rança “nobre” (estreitamente ligada ao
Calmon falecera, dos eventos que con- exercício do poder sob o regime impe-
substanciaram a doação por sua viúva e rial, legado capaz de distinguir, reade-
das relações sociais que sustentaram tal quando) às novas posições de poder
ato, Abreu apresenta de modo objetivo que se configuram nas primeiras déca-
as perguntas que se propõe: “Quem é das da República.
essa senhora? Quem é o marido dessa Sob o signo de um genérico discur-
senhora? Para que museu os objetos são so evolucionista, em que as idéias de
doados? Como se caracteriza esse mu- progresso e cientificismo positivista im-
seu? Qual sua filosofia? Quem o dirige? peravam, tradição e modernidade, es-
Para que e para quem ele funciona? paços públicos e privados parecem de-
Quais os objetos escolhidos para serem finir-se e recombinar em uma síntese
doados? Como se processou essa esco- histórica específica. Elabora-se um no-
lha? Como esses objetos são incorpora- vo papel do “homem público”: dotado
dos pelo museu? Que lugar eles ocupam de uma formação universitária (sobre-
na hierarquia institucional? Quais os tudo por deter, via de regra, uma posi-
significados que eles encerram?” (:28). ção hierarquicamente superior na so-
Para respondê-las a autora lança ciedade), deverá atuar enquanto líder
mão de instrumentos da antropologia de um povo a ser formado, de uma na-
social, da sociologia e da história numa ção a ser planificada e estruturada. En-
minuciosa indagação sobre os modos trevê-se, aqui e ali, o jogo das relações
pelos quais se cria um novo “sagrado na- entre classes e frações de classe que
cional” já sob os céus do regime repu- formaram o Estado federativo republi-
blicano das primeiras décadas do sécu- cano no Brasil. Tal análise é feita à luz
lo; sobre como essa “nobreza brasilei- do resgate das informações sobre os ob-
ra”, fração (dominada) das elites políti- jetos integrantes da coleção (o que, e
cas da época, imortaliza-se enquanto como, Alice da Porciúncula decidiu ex-
portadora de uma tradição secular e, na por para representar a trajetória social
pessoa de Miguel Calmon, simultanea- de seu marido), e de sua descrição na
mente, apresenta-se como um segmen- qualidade de semióforos, segundo o
to modernizante, capaz de integrar a conceito de K. Pomian. Seu valor sim-
nova ordem política. Modelo de “servi- bólico é destacado, dentre outros fins,
dor público”, um engenheiro dotado para enfatizar o aspecto de permuta,
RESENHAS 223

troca equilibrada (numa feliz utilização tória” dos livros didáticos, mesmo os
de textos de Mauss e Malinowski), en- mais “atualizados”, é possível notar co-
tre Alice da Porciúncula e o Museu: tal mo os processos que Regina Abreu des-
doação extraordinária, que aponta para creve nesse segmento do livro estão
a intenção de imortalizar o indivíduo presentes e atuantes num “imaginário
pela via da memória coletiva, dentre nacional” de ampla divulgação (e re-
outras contradádivas, foi aquinhoada produção) até hoje.
com uma sala especial para sua exposi- Em sua dimensão textual – artefato
ção permanente em meio a outros em- literário –, A Fabricação do Imortal bei-
blemas da “história nacional”, com o ra agradavelmente o romanesco, com
direito consagrado no ato da doação a um estilo claro e estimulante, conduzin-
uma curadoria especial a ser exercida do-nos (como numa investigação ar-
pela viúva e seu mordomo, estendendo- queológica), camada após camada atra-
se prerrogativas de ordem privada a um vés do(s) mundo(s) social(is) que pers-
espaço supostamente público. cruta, sem perder o rigor sociológico e
Os doze primeiros capítulos do livro as referências de contexto histórico. Co-
desentranham, pouco a pouco, dos va- mo mandam as regras da boa antropo-
riados objetos componentes desse “sis- logia, cá está uma etnografia densa, cu-
tema” que é a coleção (móveis, jóias, jo poder de descrição permite vislum-
roupas, esculturas, canetas, diplomas, brar múltiplos desdobramentos em ou-
fotografias, biografias e outros livros, tras pesquisas e supera os inevitáveis li-
dentre tantos), pela via do estudo de mites da escolha de instrumentais ana-
sua origem e trajetória, dos significados líticos.
que os impregnam e constituem não só Sobretudo, sente-se aí o potencial
a “fabricação do imortal” Miguel Cal- que a pesquisa antropológica, aplicada
mon, mas a vida social das elites políti- em perspectiva histórica, tem no des-
cas, seus valores, seus espaços de socia- vendar de processos sociais de longa
bilidade, as redes sociais que se entre- duração ainda em curso. Afinal, os
cruzam na formação do Estado à época, “imortais” mudam, mas continuam a ser
suas relações com os países europeus e, “fabricados” e “desfabricados”, estra-
de modo mais abrangente, um projeto tégias de consagração se redefinem,
implícito de uma “civilização brasilei- mas entram em jogo no cotidiano dos
ra”. São aspectos de grande importân- espetáculos estatais, e as margens de
cia para o conhecimento do período e aplicação de instrumentos socioantro-
das (pouco estudadas) elites brasileiras. pológicos cunhados para o tratamento
Nos cinco capítulos finais Abreu de outras realidades histórico-sociais a
volta-se para o espaço escolhido para temas e problemas em solo brasileiro
depósito e exposição desses semióforos devem ser preocupação permanenente
e seus sentidos, em última instância pa- do pesquisador em ciências sociais.
ra os planos de uma “história nacional” Também nesses aspectos o livro de Re-
como perseguidos pelos segmentos so- gina Abreu é uma bem-vinda e impor-
ciais abordados, concluindo por ver as tante contribuição.
alterações às finalidades e sistemática
de exposição do Museu Histórico Nacio-
nal. Nessa parte, Gustavo Barroso asso-
ma como figura principal da descrição
da autora. Reportando-se o leitor à “his-
224 RESENHAS

ARCHETTI, Eduardo (ed.). 1994. Explor- gia ou antropologia da literatura, preo-


ing the Written. Anthropology and cupadas com os textos e seus autores
the Multiplicity of Writing. Oslo: Scan- como produtos sociais. Espaço que não
dinavian University Press. 342 pp. se pensa como fechado, mas sim como
um campo de exploração de textos es-
critos, procurando “localizar os espaços
Gustavo Blázquez sociais através dos quais os produtos es-
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ critos de uma sociedade particular ga-
nham sentido em termos antropológi-
Os anos 80 trouxeram ao campo da an- cos” (:26). Desse modo, no Epílogo, Sig-
tropologia uma discussão sobre o texto ne Howell procura ampliar o enunciado
etnográfico enquanto produção escrita geertziano, mostrando como os antro-
que procura narrar a vida de uma socie- pólogos não só escrevem e fazem traba-
dade conceituada como outra; suas di- lho de campo, como lêem etnografias e
ferenças e semelhanças com outros gê- outros textos antropológicos. Incluir a
neros literários; as relações entre o tra- ação de ler permite à autora refletir so-
balho de campo e o trabalho de textua- bre os efeitos dessa leitura nas ativida-
lização; as estratégias para a constru- des de campo e da escrita, bem como
ção das etnografias utilizadas pelos pais sobre algumas das condições de possi-
(e mães) fundadores. Essa concepção bilidade dessa leitura.
da etnografia como textualização do Um excelente exemplo dessa posi-
mundo foi resumida por Clifford Geertz ção “trans-pós-moderna” é apresenta-
ao definir a ação de escrever como a ati- do em “The Author as Anthropologist”.
vidade que caracteriza o etnógrafo, co- Neste texto, em que recolhe a herança
mo atividade fundante da antropologia. do antropólogo como autor, Thomas
Não se pode refletir sobre Exploring Hylland Eriksen procura mostrar a im-
the Written sem levar em conta essas portância da literatura ficcional que
preocupações; mas, ao mesmo tempo, uma sociedade produz para seu estudo
este livro não pode ser lido apenas no etnográfico, assim como apontar dife-
contexto das discussões dessa chamada rentes possibilidades de trabalho com
“antropologia pós-moderna”. Elabora- esses textos. Assim, Eriksen – a partir
do a partir de um seminário sobre a da análise de três obras literárias de au-
multiplicidade do papel da escrita nas tores de Trinidad e Tobago – propõe tra-
análises antropológicas, realizado em tar as obras de ficção como fontes etno-
outubro de 1991 na Universidade de gráficas equiparáveis a qualquer outro
Oslo, o livro editado por Eduardo Ar- depoimento nativo, ou seja, como docu-
chetti reúne um conjunto de reflexões mentos, mas também como “antropolo-
sobre textos escritos por autores que a gia teórica”, reflexão crítica sobre o so-
comunidade antropológica situaria fora cial distinta daquela produzida pelos
de seu círculo. antropólogos. Infelizmente, essa preo-
Na Introdução, Archetti procura ex- cupação em distinguir gêneros não é
plicitamente localizar o trabalho em um desenvolvida no momento de pensar os
novo espaço situado além das discus- romances como fontes, o que teria per-
sões sobre a etnografia como texto. Es- mitido a complexificação da análise, le-
paço intermediário que não pode ser re- vando a considerar as conseqüências
duzido nem ao da crítica literária, inte- dessas diferenças nos modos de produ-
ressada nos textos em si, nem à sociolo- ção de um romance e de outros tipos de
RESENHAS 225

informação para a própria produção et- que a autora encara o grande problema
nográfica. dos diferentes estatutos dos textos es-
A partir da análise de um romance critos em geral (considerados ou não
do escritor samoano Albert Wente, In- pelos produtores e consumidores como
jerd Hoën discute igualmente as distin- literatura) e aqueles produzidos pelo
tas formas de se compreender a auto- antropólogo a partir da interação face a
nomia do texto e a importância de levar face no trabalho de campo. Ainda que
em consideração as diferenças entre os esses dois conjuntos de textos sejam to-
gêneros no momento de desenvolver a mados como dados, não devemos dei-
leitura antropológica de um texto ficcio- xar de reconhecer que suas condições
nal. A autora sustenta que a autonomia de produção (entre as quais devem ser
do texto jamais é absoluta e que é fun- incluídas as condições de leitura) são
damental entender como se constitui diferentes.
essa autonomia relativa – preocupação O vínculo entre literatura e etnogra-
que a conduz a reivindicar uma sociolo- fia é abordado de um ângulo distinto
gia dos produtores que permitiria al- em outros artigos do livro. Assim, Alan
cançar “uma maior compreensão tanto Barnard explora algumas das relações
da comunidade interpretativa a que o entre a science fiction de finais do sécu-
livro se dirige quanto do papel poten- lo XIX e princípios do século XX e tra-
cial da obra para essa comunidade in- balhos etnográficos produzidos na mes-
terpretativa” (:200). ma época. Relações que o autor analisa
Essa preocupação com a autonomia a partir de três temas que estão presen-
do texto é também um dos temas cen- tes nessas duas formas de discurso: as
trais do trabalho de Marit Melhuus, que raças perdidas, as guerras do futuro e
elabora uma análise de quatro diferen- os primeiros homens. Desse modo, Bar-
tes apropriações – encontradas em lei- nard pretende mostrar como a ilusão
turas antropológicas da cultura mexica- primitiva presente tanto em Tarzan of
na – de El Laberinto de la Soledad e de the Apes como nas etnografias é reci-
outras obras de Octavio Paz. Do ponto clada “retornando a nós através das fic-
de vista de Melhuus, a discussão das ções que agora lemos […] e inclusive
apropriações legítimas de uma peça li- nas ficções que quando crianças líamos
terária deve girar em torno da oposição tão inocentemente” (:252).
entre texto e contexto: El Laberinto…, Michael E. Meeker, por sua vez, tra-
ou qualquer outra obra de ficção, pode ta da relação entre meios de comunica-
ser considerado como parte do contexto ção, nacionalismo e islamização na Tur-
a partir do qual se fundamenta uma cer- quia. O autor distingue uma cultura tur-
ta leitura da cultura, ou pode ser consi- ca associada às populações rurais, na
derado como um texto cuja leitura se qual predominaria uma linguagem “lo-
fundamenta no conhecimento da cultu- cal e oral” de características islâmicas,
ra que o produziu. E, ainda que esses e uma que, nas grandes cidades, seria
dois modos de funcionamento da obra articulada por práticas sociais como a
literária não possam ser tratados como escrita, práticas escolarizadas, laicas e
opostos, pois são mutuamente constituí- nacionalistas. Ele demonstra que, na
dos, o fato é que “não podem operar si- verdade, a partir dos anos 80 a lingua-
multaneamente, ao menos não analiti- gem rural foi apropriada por um grupo
camente, ainda que o façam na prática” de intelectuais formados na tradição ur-
(:92). É a partir dessas considerações bana que procuram a “reconstrução de
226 RESENHAS

uma sociedade islâmica” (:32). Anali- (:101). A partir da análise dos vários te-
sando dois escritores pertencentes a es- mas presentes nos tangos (o amor im-
se novo grupo – e outros produtos cul- possível, a femme fatale, a milonguita,
turais como revistas e vídeos –, o autor o amor da mãe, a honra e sua defesa), o
mostra como esses bens são utilizados autor mostra como se constroem dife-
tanto pelos migrantes rurais no momen- rentes identidades masculinas que per-
to de redefinir sua identidade no mun- mitem entender “a complexidade das
do urbano, quanto por esses novos inte- relações entre homens e mulheres em
lectuais que procuram imaginar uma contextos em que estão sendo desen-
Turquia islâmica. volvidas novas formas de conceituar o
Igualmente interessada nos proces- amor” (:117). Essas demonstrações, no
sos de construção de identidades, Ma- entanto, perdem algo de sua força na
rianne Gullestad analisa uma autobio- medida em que a performance dos tex-
grafia escrita, a pedido da autora, por tos – especialmente, no caso do tango, a
um ancião norueguês. Ao refletir sobre própria dança, que poderia ser entendi-
a chamada história oral e descrever com da como outra forma de apropriação
certa meticulosidade a metodologia que dos textos – é excluída da análise. Esse
norteou sua investigação, a autora assi- tema só aparecerá no artigo de Solrun
nala explicitamente que seu interesse Willinksen-Bakker acerca da interface
está centrado no “que a ação de escre- oralidade/escrita, analisada a partir da
ver produz no escritor” (:160), ou seja, produção teatral no contexto multiétni-
nos processos de (re)construção do self co de Fiji.
a partir de uma determinada forma de A relação entre oralidade e escrita é
narração. Esses processos estão relacio- também discutida e problematizada nos
nados com aqueles outros através dos trabalhos de Sarah Lund Skar e Joanne
quais se (re)constitui a sociedade onde Rappaport. A primeira mostra o valor
o sujeito ocupa um lugar; de tal modo mágico que adquirem as cartas troca-
que “os dilemas morais no texto de Oi- das entre um grupo de camponeses pe-
vind podem ser vistos como ilustração ruanos e seus parentes que residem fo-
dos atuais dilemas do Estado de Bem- ra da comunidade. Nesse intercâmbio
Estar Social escandinavo” (:159). epistolar, o documento escrito serve de
O texto de Eduardo Archetti inscre- elemento que confirma a união entre os
ve-se, igualmente, nessa preocupação grupos, e a informação é localizada ape-
com a construção de identidades, ao fo- nas na palavra daquele que leva a car-
calizar “os contrastantes modelos de ta. Essa apropriação específica da escri-
masculinidade transmitidos pela poéti- ta feita por falantes do quechua permi-
ca do tango argentino em seu período te refletir sobre a necessidade de anali-
clássico” (:98), modelos que começam a sar os diferentes processos e estruturas
se formar na Buenos Aires cosmopolita sociais que dão sentido às relações di-
de princípios do século. O período ana- nâmicas entre o escrito e o falado.
lisado abarca as três primeiras décadas O artigo de Rappaport, por sua vez,
do século XX, durante as quais se pro- volta-se para a “manipulação das pala-
duz a globalização do tango, processo vras escritas por povos colonizados”
que “serviu para inventar uma tradição, (:207). Seu trabalho mostra distintos mo-
um espelho onde os argentinos podem vimentos de apropriação realizados por
se ver a si mesmos precisamente por- camponeses colombianos: a partir de
que os outros começaram a vê-los” documentos escritos se constroem mi-
RESENHAS 227

tos, a partir da tradição oral se cons- derados genuinamente africanos, os rit-


troem documentos legais escritos. Ex- mos que induzem ou aplacam essa pos-
plorando uma multiplicidade de gêne- sessão – ou seja, que a controlam – têm
ros, a autora busca revelar “a criativi- potencial necessário para atuar como
dade de um povo oprimido que mistura veículos de comunicação dos fiéis do
meios de expressão oral e escrita em Vodu com os Lwa, já que ambos são
sua apropriação das convenções literá- também oriundos da África.
rias da sociedade dominante” (:293) – o O livro de Fleurant, escrito a partir
que abre interessantes possibilidades de uma pesquisa de campo em Bòpo,
de trabalhos comparativos. no Haiti, aborda a prática musical em
Em suma, Exploring the Written ofe- seus aspectos formais e performáticos,
rece-nos um amplo espectro de pesqui- procurando integrá-la no contexto mais
sas que problematizam, a partir de lu- geral da cerimônia Rada, que “é um dos
gares distintos, a relação entre textos principais rituais do complexo religioso
antropológicos e não antropológicos. conhecido no Haiti como Vodu” (:2).
Pesquisas que operam a partir da ex- Para tanto, o autor (ele mesmo um ini-
ploração de uma multiplicidade de es- ciado no Vodu) centra sua análise na
critos que obrigam o leitor a fazer um música instrumental, no papel dos mú-
percurso ao fim do qual se encontrará sicos e instrumentos, e na música vocal
entre El Laberinto de la Soledad e a li- – neste caso, a partir das melodias e tex-
teratura de Fiji, Samoa ou da terra do tos de canções, por um lado, e das rela-
calipso; entre tangos portenhos e Tar- ções destas com cada Lwa cultuado na
zan of the Apes; entre uma autobiogra- cerimônia, por outro.
fia norueguesa e as cartas de campone- A cerimônia Rada, que pode durar
ses quechua escritas por escribas locais desde algumas horas até dias ou meses,
em espanhol. é realizada por diferentes motivos; os
principais são: kanzo/boulezen (respec-
tivamente, ordenação de fogo e queima
FLEURANT, Gèrdes. 1996. Dancing Spir- de potes de cerâmica, momentos cru-
its Rhythms and Rituals of the Hai- ciais no rito de iniciação), pwomès (pro-
tian Vodun, the Rada Rite. Westport, messa, engajamento solene, prelúdio
Connecticut: Greenwood Press. 209 para um serviço mais elaborado), ma-
pp. ryaj (casamento místico, quando alguém
se casa com um Lwa do sexo oposto), ou
uma ação de graças. Quaisquer que se-
Ana Paula Ratto de Lima jam as circunstâncias, entretanto, a es-
Mestranda, PPGAS-MN-UFRJ trutura do rito parece ser a mesma, co-
meçando com priyè dyò, em que Deus
Assim como no Candomblé no Brasil e (ou Bondye) é inicialmente invocado,
na Santería em Cuba, a música e a dan- para depois ser sucedido por todos os
ça são elementos fundamentais do Vo- santos católicos e pelos Lwa, primeiro
du haitiano, canais privilegiados de co- os masculinos, depois os femininos. A
municação entre os Lwa (seres espiri- ordem de invocação dos Lwa pode ser
tuais) e os humanos. É através de sua alterada em função da execução de prá-
prática que se induz um dos momentos ticas – homenagem, saudação ou pedi-
mais importantes dos ritos do Vodu, a do específico – dirigidas a algum Lwa
possessão. Além disso, por serem consi- em particular.
228 RESENHAS

Há, na verdade, uma espécie de (chocalho ritual), bas (grande tamborim,


combinação das diversas fases do rito, raramente utilizado no Rada), boula (pe-
que vão sendo executadas mais ou me- queno tambor), segon (médio tambor) e
nos segundo as contingências (obvia- manman (grande tambor, conhecido
mente com algumas limitações). Essa também na África como tambor-mãe).
possibilidade de rearrumação verifica- Os três tambores são os instrumentos
da no culto está presente também na mais utilizados e importantes na ceri-
estrutura musical, ou seja, nas formas mônia; devem ser batizados, e sua fei-
de improviso dos ritmos e melodias, a tura exige cuidados rituais especiais.
fim de que não percam suas caracterís- Segundo Rigaud, “os poderes dos tam-
ticas mais gerais. bores devem ser reatualizados de tem-
Existem, na cerimônia Rada, oito ti- pos em tempos” (apud:38), não bastan-
pos de ritmos musicais: yanvalou, twa- do que sejam consagrados por ocasião
rigòl, mayi, zèpol, kongo rada, dyou- do ritual de batismo. Para tanto, devem
ba/matinik, nago, mazoun. Estes ritmos viajar simbolicamente para Ifa, na Áfri-
são executados por instrumentos de ca Ocidental, a fim de recuperarem seus
percussão, cantores e dançarinos, asso- poderes.
ciados de diferentes maneiras de acor- Do ponto de vista do Vodu, os tam-
do com o Lwa a quem se dirigem (:32). bores possuem poderes cruciais para os
No entanto, os ritmos mais freqüentes rituais; são eles que induzem a posses-
são yanvalou, mayi e zèpol. O primeiro são, o elemento vital de toda cerimônia
significa literalmente “venha para mim” Vodu, estabelecendo a comunicação en-
e é, ao mesmo tempo, uma invocação e tre os Lwa e os fiéis. Não é casual que o
uma música/dança de súplica, primeira próprio termo Vodu signifique, ao mes-
a ser executada em todas as cerimônias mo tempo, tambor e espírito no idioma
Rada, e cada vez que um Lwa é invoca- dos Fon do Benin. É o som dos tambo-
do. A dança consiste no movimento al- res, regulado pelos tocadores, que in-
ternado do abaixar e levantar os joelhos duz, determina a freqüência e interrom-
dobrados, e é através da performance pe a possessão. Nesse sentido, é funda-
dessa música/dança que os fiéis estabe- mental que os músicos tenham controle
lecem contato com os ancestrais em La- absoluto do que tocam. E embora todos
frik Ginen através da possessão. O Lwa os músicos possuam uma certa margem
deve responder aos apelos insistentes de improvisação, induzindo diálogos e
dos tambores, da dança e da música, e mudanças nos demais padrões tocados
“montar” um dos membros do grupo. pelas outras partes, é o ountò quem con-
Mayi e zèpol (também conhecido como trola, em geral, o fluxo rítmico executa-
“dança dos ombros”) são complemen- do pelos instrumentos, comandando di-
tos rituais do yanvalou, cuja função pri- reta ou indiretamente esses diálogos.
mordial é mandar embora um Lwa de Ele é o mestre dos instrumentistas e to-
forma positiva e feliz. Aqui, Fleurant ca o tambor-mãe (manman), o mais gra-
observa que, uma vez que estas são ve e que requer mais virtuosismo. Para
danças de andamento mais rápido, exe- se chegar a ountò, deve-se passar antes
cutadas em pé, seus movimentos fun- pela prática de tocar boula e segon, pois
cionariam como mecanismos de alívio a habilidade exigida cresce na propor-
de tensões. ção dos tambores.
Os conjuntos Rada possuem seis ins- O ountò forma com o oungenikon
trumentos musicais: ogan (sino), ason (mestre do coro) e o oungan (líder ou
RESENHAS 229

pai espiritual) “uma estreita unidade se tipo de música requer muita atenção
músico-performática” (:47), sendo que dos músicos, já que embora o princípio
o ountò não precisa ser um iniciado, ao rítmico básico seja o mesmo (2:3), os ins-
contrário do oungenikon e, evidente- trumentos o executam em um tempo di-
mente, do oungan. No entanto, é inte- ferente do dos cantores, o que faz com
ressante notar que caso ele o seja, pode que se possa sempre retirar novos “tem-
eventualmente continuar tocando per- pos” dessas combinações. A partir da
feitamente, mesmo sob o efeito de uma análise das linhas melódicas dos instru-
possessão. Caso contrário, ele utiliza os mentos, podemos perceber essa rever-
ritmos necessários para aplacar a pos- sibilidade dos ritmos, criada através de
sessão, já que a cerimônia não pode acentuações diferentes para cada um
prosseguir sem sua atividade. dos instrumentos, fazendo com que se
Durante a cerimônia, os instrumen- constituam “subtempos” dentro da mé-
tistas e cantores executam peças que se trica mais geral, ora enfraquecendo-a,
relacionam com os Lwa ou com outros ora reforçando-a.
elementos do ritual, como os vèvè (de- O fluxo criado por esses entrelaça-
senhos rituais dos Lwa), com objetos sa- mentos deve ser bem conhecido a fim
grados, como o ason, a bandeira, ou com de que contrastem com o kase, ou que-
os membros do grupo cujo papel é es- bra do ritmo, que é o que induz o transe
sencial para a execução da cerimônia. e a possessão. O kase é efetuado pelo
Cada uma das canções possui um texto manman, e pode vir, por exemplo, na
específico, parte em langaj (“lingua- forma de uma figura quíntupla (cinco
gem africana antiga”), parte em creole, batidas no espaço de um tempo), que-
referente ao elemento sobre o qual se brando um ritmo baseado na tercina (as
voltam as atenções no momento – cada várias formas em que essas mudanças
elemento possui várias canções que podem ocorrer são analisadas no capí-
exaltam suas qualidades. É através das tulo 5). Essa quebra de ritmo é sentida
canções que as pessoas aprendem mais intensamente como uma mudança brus-
sobre os Lwa. Quando um Lwa, por in- ca no fluxo rítmico-sonoro imanente a
termédio da pessoa por ele possuída, determinadas fases do ritual, consti-
propõe uma nova canção, ele o faz me- tuindo então uma “deixa” para os ini-
diante ritmos já conhecidos por todos, ciados entrarem em transe, preparan-
propondo um novo arranjo de texto. do-se para a possessão. Ela ganha den-
Os ritmos em geral seguem o pa- sidade valorativa se comparada com o
drão básico africano da contraposição efeito que tais substituições de ritmos
2:3, criando uma densa polirritmia, que passam a ter na música ocidental a par-
vai tecendo teias de ritmos entrelaça- tir do início do Romantismo, quando são
dos, altamente desencontrados, contra- quase sempre lidas como uma espécie
pontados. Essa polirritmia se articula a de floreio que serve à batida principal,
partir de um outro princípio recorrente sem produzir mudanças significativas.
na música africana, que é o de chama- Essas descrições apontam para a
do/resposta. São os diálogos que se em- possibilidade de uma antropologia da
preendem entre os tambores e entre os música positiva, que integre tanto aná-
cantores, bem como a mistura desses lises de estrutura e forma musicais com
dois níveis de diálogo, que dão especi- análises de estrutura e forma de outros
ficidade à textura da música do Vodu. É domínios, como também, e principal-
interessante notar que a execução des- mente, que integre esses conjuntos com
230 RESENHAS

a forma pela qual os agentes os articu- como tal, de evocar um passado digno,
lam e recriam continuamente. No en- aquele dos ancestrais ilustres, os Lwa.
tanto, o autor não se detém nesse últi- Fleurant é tributário dessa concepção:
mo aspecto, que remeteria a uma abor- ao introduzir um novo tema ou elemen-
dagem mais propriamente antropológi- to em sua análise, remete-os invariavel-
ca do Vodu, e são raras as alusões aos mente para suas supostas origens afri-
discursos de seus informantes. Assim, canas, tentando localizá-los nessa ou
não ficamos sabendo muito sobre como naquela sociedade.
os praticantes estão efetivamente pen- Se as chamadas religiões pan-afri-
sando, representando ou vivenciando canas se explicam, exclusivamente, pe-
essas práticas rituais. la perpetuação das tradições, através
Quase todas as interpretações de de mecanismos de transmissão oral,
Fleurant sobre o lugar ocupado pelo adaptando elementos da realidade pre-
Vodu na sociedade haitiana podem ser sente, como sugere o autor, é uma ques-
resumidas na formulação “o Vodu co- tão ainda em aberto. No entanto, saber
mo resposta às condições sociais haitia- como os envolvidos as estão vivencian-
nas” (:21). Do seu ponto de vista, esse do é, a meu ver, fundamental para uma
culto seria um dos meios para contornar articulação mais precisa entre esse “le-
a opressão sociopolítica: “é uma filoso- gado” africano e suas atualizações
fia e um modo de vida, que permite for- alhures.
mular respostas apropriadas para uma
situação historicamente opressiva e de-
bilitada” (:23). O Lwa inspira o fiel, pa- GIUMBELLI, Emerson. 1997. O Cuida-
ra que este possa empreender as ações do dos Mortos: Uma História da Con-
apropriadas quando confrontado com denação e Legitimação do Espiritis-
as dificuldades. Nesse sentido, as can- mo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
ções do rito Rada seriam um testemu- 326 pp.
nho eloqüente da habilidade do Vodu
para apresentar soluções para as con-
dições sociais haitianas. A primeira ce- Patricia Birman
rimônia Vodu no Haiti data de 14 de Profª de Antropologia, UERJ
agosto de 1791, pouco antes da revolta
geral dos escravos, e denota como ele A pergunta mais pertinente a respeito
“sempre foi uma religião de ação, no desse trabalho minucioso, feito com ra-
sentido de que os resultados poderiam ro empenho em explorar antropologica-
ser vistos de maneira tangível e, fre- mente fontes historiográficas, talvez se-
qüentemente, em um período relativa- ja a mesma que a sociedade dirige a
mente curto” (:21). seus religiosos ditos e reconhecidos co-
Nesse sentido, toda a análise musi- mo “espíritas”: vale mesmo o que está
cal da “rítmica” Vodu parece descolada escrito? Ou, em termos equivalentes,
da “função” mais primordial e geral do será que o sentido dos textos psicogra-
ritual, que seria a de oferecer uma res- fados que, frase após frase, contam his-
posta às terríveis condições socioeconô- tórias de personagens famosos, atri-
micas do Haiti. Por que essa forma de buem um sentido moral a certos com-
resposta e não outra é uma questão que portamentos, explicam certas curas e os
tem como única pista o fato de se tratar procedimentos a seguir deve ser busca-
de uma religião de origem africana, e, do nos princípios da mediunidade, ou
RESENHAS 231

seja, na fonte que permite entender e Deixemos por ora essa aproximação
acreditar na psicografia? para expor em linhas gerais esse impor-
Para os espíritas, com efeito, a escri- tante trabalho sobre o espiritismo no
ta dos médiuns é reveladora porque se Brasil. Com um recorte preciso em uma
parte da pressuposição de que o seu enorme massa de material, Emerson
sentido advém de fonte sobrenatural. manuseia fontes diversas para discutir
Assim, o médium não faz nada mais do a constituição do espiritismo no Brasil
que transcrever o que o espírito lhe dita e, particularmente, no Rio de Janeiro.
e esse conhecimento transmitido é pas- Ele parte da suposição de que o espiri-
sível de ser incorporado mediante um tismo é uma produção histórica e con-
trabalho de exegese feito por seus se- textual, resultado de um processo que
guidores que mistura, em doses indis- não continha, desde os seus primórdios,
cerníveis, a interpretação que realizam o traçado de seu caminho já delineado.
com tudo aquilo que acreditam lhes Em outras palavras, a noção, hoje pou-
chegar diretamente, sem contamina- co relativizada, de que espiritismo é re-
ções, desse emissor do Além. Por mais ligião seria efeito, segundo o autor, de
que, portanto, naturalizem o texto psi- uma conjunção peculiar, de um encon-
cografado, os espíritas reconhecem a tro de diferentes estratégias discursivas
existência de premissas que o validam, desenvolvidas por agentes sociais di-
bem como de uma interpretação que versos. Nesse processo, atuaram de ma-
lhe dá sentido. neiras contextualmente também dife-
Quando aproximo os documentos renciadas as instituições médicas, jurí-
psicografados dos processos analisados dicas, os meios de comunicação, os
por Emerson Giumbelli quero, para agentes religiosos espíritas, católicos e
além de uma brincadeira, colocar em outros, além das forças policiais. Com
discussão o lugar que nos últimos se distintas estratégias discursivas esses
concede à interpretação. Certamente, grupos, ao se enfrentarem e por vezes
os critérios interpretativos que condu- também se alinharem, instituíram ca-
zem a pesquisa etnográfica a hipóteses tegorias, forjaram polaridades (como
interessantes não são os mesmos da- aquela que opôs “místicos” e “científi-
queles aplicados pelo espiritismo dian- cos” entre os espíritas de diferentes fac-
te de textos “psicografados”, mas tanto ções), estabeleceram jurisprudências,
espíritas quanto antropólogos reconhe- práticas diversas que hoje são difíceis
cem, por vezes com evidente dificulda- de apreender (e, portanto, desnaturali-
de, que os dados não falam por si mes- zar) como efeito de um processo. A for-
mos e que, portanto, é preciso dotá-los mação do espiritismo, tal como o conhe-
de sentido. Dessa maneira, reconhece- cemos, no presente é efeito desse pro-
se a polissemia que os habita, enfronha- cesso desenvolvido em um certo campo
se em uma rede de discursos contradi- de forças, do entrelaçamento que se
tórios e ambíguos para, finalmente, produziu entre discursos e poderes que
construir uma mera versão. A incerteza, foram capazes de fazer valer não so-
pouco tranqüilizadora, a respeito dos mente algumas versões, mas também
resultados alcançados não deixa nem instituir certas práticas.
espíritas nem antropólogos descansar Giumbelli, nesse sentido, analisa a
em paz. O mundo dos mortos e as co- dinâmica e os atores sociais presentes
municações que resvalam de antigos no final do século passado e início deste
textos lhes acompanhará para sempre. que redimensionaram o lugar dos dis-
232 RESENHAS

cursos médicos, transformaram as fron- térios por intermédio dos quais os gru-
teiras identitárias dos grupos religiosos pos religiosos associados à possessão
e redefiniram, sucessivamente, os pa- passaram a se regular, obedecendo, as-
péis atribuídos ao Poder Judiciário e à sim, às injunções históricas que deram
polícia para, a partir da análise desse ao espiritismo kardecista um poder au-
contexto e desses embates, compreen- xiliar de polícia e fizeram da Federação
der o espiritismo como resultado disso Espírita Brasileira (FEB) um regulador
tudo. Contexto é, pois, uma palavra- doutrinário tanto para “dentro” dos gru-
chave. Produto de um campo de lutas pos espíritas quanto para a sociedade.
em que se definiu competências médi- As conclusões a respeito do espiri-
cas e jurídicas, emerge como lugar pos- tismo no Rio de Janeiro são alcançadas
sível para o espiritismo aquele concedi- mediante uma análise que se desdobra
do à religião. Criam-se, portanto, novos em torno de diferentes momentos histó-
lugares e novos papéis. O autor explica, ricos e debruça-se sobre práticas insti-
assim, como, a partir de um certo mo- tucionais diversas. O papel e o perfil da
mento, cristaliza-se uma crença por FEB resultam tanto de um esquadrinha-
meio da qual o espiritismo construiu o mento de suas práticas quanto dos efei-
seu lugar. Este teria se subordinado ao tos dos confrontos aos quais foi sendo
monopólio de cura conquistado pela submetida no interior desse campo. O
medicina e se aliado ao poder policial privilégio concedido à formação da FEB
para garantir, no campo “religioso”, seu teve como resultado colocar em relevo
papel privilegiado em relação ao baixo a sua formação e, ao lado disso, tam-
espiritismo, à macumba, ao candomblé, bém permitir entender o papel de ou-
ou seja, aos cultos de origem africana tras instituições no Rio de Janeiro em
em geral. alguns momentos decisivos, como as
Segundo a hipótese desenvolvida instituições sanitárias e judiciárias no
por esse trabalho, a construção históri- processo de urbanização da cidade, os
ca desse campo e o formato que veio a procedimentos judiciários associados à
adquirir, em função do jogo de forças e formação da República, os sucessivos
estratégias discursivas que o traspassa- lugares e diferentes definições do char-
ram, concederam ao espiritismo, no Rio latanismo, os códigos penais e as juris-
de Janeiro, comparativamente, um lu- prudências estabelecidas etc.
gar de referência, um ponto de ancora- Esse plano analítico pôde ser alcan-
gem em torno do qual todos os conflitos çado graças ao trabalho de investigação
religiosos passaram a se expressar, e o que envolveu diferentes fontes históri-
metro a partir do qual passaram a se cas. Cabe ressaltar o mérito, ainda raro
hierarquizar. O espiritismo no Rio de Ja- na antropologia produzida no Brasil, do
neiro teria tido, desse modo, papel equi- esforço de enfrentar essa modalidade
valente àquele desempenhado pela afri- de pesquisa, distante da perspectiva
canidade nagô na Bahia, construída por tradicional da disciplina com o seu pri-
uma aliança entre intelectuais e certos vilégio atribuído ao trabalho de campo
grupos de culto que passaram a ter o e à observação participante. A pesquisa
poder de legitimar, segundo seus crité- fundamentou-se, essencialmente, no
rios e medidas, os outros cultos de pos- estudo de quatro processos-crimes ins-
sessão. Mais do que um operador de taurados com base nos artigos 156, 157
distinções, o espiritismo teria sido ca- e 158 do Código Penal de 1890. A partir
paz, portanto, de instituir práticas e cri- desses processos, o autor busca exami-
RESENHAS 233

nar como se estruturou a repressão ao munhos, relatos, descrições etc. Os pro-


exercício ilegal da medicina, como se fi- cessos são apresentados, fundamental-
zeram presentes as acusações relativas mente, através do discurso elaborado
ao espiritismo e à Federação Espírita pelo advogado de defesa da FEB. Como
Brasileira. Além disso, foi beneficiário pano de fundo temos uma análise do
das fontes pesquisadas no Arquivo Na- campo médico da época e suas ques-
cional, relativas tanto a esses processos tões, como, por exemplo, o lugar atri-
quanto a outros, por Yvonne Maggie buído à hipnose, ao magnetismo, à su-
em Medo de Feitiço, tese de doutorado gestão. Sem dúvida, aquilo que designo
também do Museu Nacional, posterior- como pano de fundo se refere ao con-
mente premiada e publicada pelo Ar- texto, mas revela pouco das articula-
quivo Nacional em 1992 (como ocorre- ções discursivas que foram operadas
ria mais tarde com O Cuidado dos Mor- por esses interlocutores no próprio pro-
tos: Uma História da Condenação e Le- cesso e, muito menos, os deslizamentos
gitimação do Espiritismo). de sentido que foram sendo operados
Voltemos agora à questão mencio- pelos diferentes interlocutores no cur-
nada de início sobre o lugar da inter- so desse confronto. Assim, o contexto,
pretação. Como disse, tanto os textos aquele que nos daria as estratégias dis-
psicografados como os processos não cursivas empregadas pelos agentes so-
falam por si. Essa aparente obviedade, ciais que se fazem presentes no proces-
por vezes, parece ser diluída na análise so e fora dele, a partir dos lugares e in-
que o autor faz dos processos penais. teresses diferenciados, está ausente. As
Talvez, por conta disso, ele não cumpra relações de sentido, em lugar de emer-
o que promete, em função de um dis- girem de uma análise dessas relações
creto nominalismo que atravessa a ela- contextuais e, portanto, das redes de
boração do seu argumento. Com efeito, sentido que se tramam, são deduzidas
ao construir sua hipótese a respeito da das práticas espíritas e das orientações
aceitação do lugar de religião que o es- adotadas pela FEB, como resultados al-
piritismo da FEB promoveu, Giumbelli cançados posteriormente a esses pro-
se apóia no que está dito nos processos cessos, o que pressupõe uma relação di-
sem, no entanto, articular inteiramente reta entre a funcionalidade de certos
esse dito com o contexto discursivo pre- comportamentos e o discurso elaborado
sente nos processos e também fora des- pela defesa espírita. E o sentido do dis-
tes. Texto e contexto operam separados curso espírita parece, assim, falar por si
em momentos importantes de sua aná- mesmo, dispensando um trabalho inter-
lise. Com efeito, este último parece fun- pretativo que supõe a interlocução com
cionar mais como um quadro de fundo os outros discursos e agentes sociais que
do que como uma articulação analítica em vários níveis se fizeram presentes.
que permitiria justificar a interpretação Em decorrência dessas pressupos-
dos discursos referidos. Destaquemos tas articulações, o autor sustenta a cria-
um exemplo, entre outros que pode- ção de um modelo institucional que ex-
riam ser citados. Na análise que em- plicaria as atividades espíritas e o lugar
preende dos processos, Emerson Gium- (funcionalmente adequado) que a FEB
belli não os toma como um texto com- viria a ocupar no Rio de Janeiro. Per-
posto de múltiplas intervenções e con- gunto-me se essa sua hipótese, rica em
frontos que se apresentam – como de- conseqüências, não deveria se apoiar
poimentos, provas documentais, teste- mais na análise das articulações discur-
234 RESENHAS

sivas que se propõe a fazer do que na partir do controle e manipulação da he-


funcionalidade que se torna um dos ele- reditariedade) nos EUA e na Inglaterra
mentos mais importantes de sua com- desde as formulações de Francis Galton
provação. no final do século passado até o presen-
O autor tem o mérito de não se fur- te, quando a biologia cada vez mais fo-
tar à discussão com os trabalhos que ca suas lentes em direção a estruturas
antecederam o seu. Por isso, como reco- mais recônditas do corpo humano (cro-
nhecimento do seu esforço de esclare- mossomos, proteínas, DNA etc.). No
cer seus pontos de discordância, mere- meio tempo, Kevles analisa por que e
ce que levemos a sério seu livro, bus- como aconteceu a expansão, institucio-
cando também contribuir para o debate nalização e declínio da eugenia na pri-
que inaugurou. É importante, por fim, meira metade do século XX, bem como
frisar que somente os bons trabalhos os esforços de aplicação de conceitos
como o seu são críticos e suportam críti- eugênicos com fins de reforma social.
cas em razão do valor das questões que In the Name of Eugenics teve sua
levantam e buscam resolver. primeira edição em 1985 e veio a se tor-
nar uma das principais reflexões na sua
área. Justifica-se o prestígio alcançado:
KEVLES, Daniel J. 1995. In the Name é um tour de force sobre a trajetória da
of Eugenics: Genetics and the Uses of eugenia extremamente bem redigido,
Human Heredity. Cambridge: Harvard que combina em suas mais de quatro-
University Press. 426 pp. centas páginas uma enorme quantida-
de de informações com reflexões que
elucidam como a história da eugenia
Ricardo Ventura Santos pode (e deve) ser lida como uma imbri-
Prof. de Antropologia, MN-UFRJ cação entre ciência, política, cultura,
e ENSP-Fiocruz dentre outras dimensões. Ainda que
Kevles não se preocupe em explicitar
A capa do livro do historiador da ciên- vinculações teóricas, seu trabalho se-
cia Daniel Kevles apresenta dois con- gue claramente uma linha construtivis-
juntos de imagens. No primeiro vêem- ta. O êxito do livro respalda-se em uma
se figuras humanas com a superfície do pesquisa pormenorizada, baseada em
crânio dividida em regiões; no segun- fontes documentais e em entrevistas.
do, dois cromossomos. Trata-se de uma Chama a atenção o considerável domí-
capa, digamos, conceitual, que remete nio que o autor possui do campo bioló-
aos limites temporais e factuais das re- gico, que se revela em detalhadas des-
flexões de Kevles. Se as cabeças se li- crições de observações científicas.
gam às práticas de análise da persona- Os dezenove capítulos do livro po-
lidade a partir da morfologia popular no dem ser agrupados em cinco grandes
século XIX (i.e., frenologia), os cromos- blocos temáticos. No primeiro (capítu-
somos simbolizam a genética contem- los I-III) é abordada a gênese das idéias
porânea e a prática eugênica a ela as- eugênicas, que Kevles situa na Ingla-
sociada. Dito textualmente, In the Na- terra vitoriana, e particularmente nos
me of Eugenics conta a história da eu- escritos de Francis Galton. Gestada no
genia (o conjunto de propostas destina- âmbito de uma intelectualidade im-
das a melhorar as qualidades físicas, pregnada pelo evolucionismo e pelo
mentais e comportamentais humanas a darwinismo social, a eugenia como pro-
RESENHAS 235

posta de melhoria das qualidades da pela biologia; não obstante, segundo


“raça” atrelou-se à expectativa, já bem Kevles, distanciaram-se dos preconcei-
enraizada na época, de que através da tos sociais de seus antecessores. Além
ciência seria possível intervir e contro- da estigmatização que a biopolítica na-
lar a natureza, incluindo a natureza hu- zista imprimiu às propostas eugênicas,
mana. Kevles descreve também como nesse período já era evidente a imprati-
ocorreu a consolidação da eugenia atra- cabilidade de se alcançar a melhoria da
vés do trabalho de certos cientistas, co- constituição biológica humana através
mo o inglês Pierson e o norte-america- das propostas da eugenia “tradicional”.
no Davenport, que contribuíram para Segundo Kevles, os eugenistas “refor-
dar uma aura científica ao campo em madores” desempenharam papel im-
emergência. O segundo bloco (capítu- portante no florescimento da genética
los IV-VII) analisa a propagação da eu- humana e suas pesquisas proveram da-
genia nas duas primeiras décadas deste dos que demonstravam que as popula-
século, quando as idéias eugênicas ções apresentavam uma enorme varia-
transpuseram as fronteiras do discur- bilidade biológica irredutível à simpló-
so científico e materializaram-se como ria dicotomia “características boas ou
práticas sociais cotidianas. Políticas de ruins” apregoada pela eugenia “tradi-
imigração restritiva e esterilização im- cional”. Finalmente, no quinto e último
plementadas nos EUA na ocasião foram bloco (capítulos XVII-XIX) Kevles de-
ideológica e tecnicamente alimentadas monstra que, se ruiu a utopia eugênica
pela eugenia. Importantes aspectos des- de que seria possível alcançar profun-
se período dizem respeito às teoriza- das reformas no âmbito da sociedade
ções acerca da interface hereditarieda- como um todo, isto não representou um
de e inteligência, ao desenvolvimento completo abandono das idéias e ideais
de testes para medir inteligência e à eugênicos. O aprimoramento técnico
preocupação com o suposto declínio da alcançado pelas ciências biomédicas
inteligência no plano nacional. O ter- nas últimas décadas, incluindo fertiliza-
ceiro bloco (capítulos VIII-X) analisa a ção artificial, possibilidade de detecção
emergência e consolidação de posturas de anomalias genéticas em embriões,
críticas à eugenia a partir dos anos 30. crescente capacidade de manipulação
Se as ciências biológicas indicavam que do DNA humano, dentre outras, tornam
a transmissão das características here- mais do que nunca possível exercitar a
ditárias era fenômeno bem mais com- prática de seleção de características
plexo do que o sugerido pelos eugenis- biológicas. Para Kevles, o aconselha-
tas, as ciências sociais apontavam para mento genético é um exemplo contem-
a relevância do meio na formação da porâneo de expressão das idéias eugê-
personalidade humana. No quarto blo- nicas, com uma importante diferença:
co (capítulos XI-XVI) é analisada a sig- centra-se no indivíduo e na família, dis-
nificativa transformação experimenta- tanciando-se das propostas de controle
da pela eugenia nas décadas de 40 e 50, e reforma social que marcaram a euge-
quando ocorreu um deslocamento des- nia “tradicional”.
de uma eugenia “tradicional” para uma Vale destacar certas questões de
outra versão que Kevles denomina “re- amplo alcance que permeiam o traba-
formadora”. Os eugenistas vinculados lho de Kevles. Uma delas diz respeito à
a esta linha continuaram a advogar no- heterogeneidade ideológica interna ao
ções de melhoria humana informadas movimento eugênico no âmbito anglo-
236 RESENHAS

saxão, que atraiu progressistas, radi- “reformadora” e no estabelecimento da


cais, socialistas-marxistas, comunistas genética humana nos EUA. Aspecto
etc., ou seja, não foi unicamente de ins- não explorado por Kevles é o de que
piração da direita conservadora. Uma Neel realizou extensas pesquisas gené-
outra é que, se a ciência foi um impor- ticas com populações indígenas amazô-
tante pilar de consolidação da eugenia, nicas a partir da década de 60, recapi-
ajudou também a corroer certos concei- tuladas em sua autobiografia (Physician
tos propalados pelos eugenistas, que a to the Gene Pool, John Wiley & Sons,
partir de um determinado período pas- 1994). O trabalho de Kevles provê o
saram a ser percebidos como “pseudo- contexto histórico no qual se deu a gê-
científicos”. nese do pensamento de Neel, contri-
Apesar de Kevles abordar a história buindo para uma maior compreensão
da eugenia em países anglo-saxões, de teorizações que interligaram euge-
fornece abundantes elementos para re- nia e populações indígenas.
flexões acerca do tema no âmbito lati- In the Name of Eugenics é um tra-
no-americano. Assim, as discussões so- balho fundamental sobre a história da
bre imigração no Brasil no início deste eugenia. Além de suas virtudes nos
século, que envolveram proeminentes campos da história e da sociologia da
intelectuais como Roquette-Pinto, Re- ciência, consegue de forma eficaz inter-
nato Kehl, Azevedo Amaral, foram por ligar passado e presente. No prefácio
vezes fortemente influenciadas pelos dessa edição, Kevles principia afirman-
debates então em curso, notadamente do que “o espectro da eugenia paira,
nos EUA. Igualmente significativo é o virtualmente, sobre todos os desenvolvi-
fato de trabalhos sobre a história da eu- mentos contemporâneos da genética
genia na América Latina dialogarem humana” (:ix); finda reiterando que uma
explicitamente com Kevles. Este é o ca- compreensão acerca da trajetória passa-
so da recente monografia de Nancy da da eugenia é essencial no momento
Stepan, intitulada The Hour of Eugenics atual, quando cresce exponencialmente
(Cornell University Press, 1991). Se na a capacidade humana de controle e in-
Inglaterra e, principalmente, nos EUA a tervenção sobre sua própria biologia.
eugenia se pautou no mendelianismo e Que o diga a questão da clonagem que,
assumiu tonalidades “negativas” (pre- se até algum tempo atrás se situava no
conizando esterilização, desestímulo ao campo da ficção científica, tornou-se re-
casamento entre indíviduos considera- centemente uma possibilidade real e
dos não-eugênicos etc.), segundo Ste- próxima.
pan, predominou na América Latina
uma versão lamarckiana da eugenia e
de orientação “positiva”, que apostava
na melhoria da raça mediante interven-
ção no plano ambiental (educação, hi-
giene, saneamento etc.). Kevles tam-
bém municia reflexões acerca da histó-
ria recente da genética na América do
Sul. O capítulo XV de seu livro analisa
a contribuição do geneticista norte-
americano James Neel nas décadas de
40 e 50, importante figura da eugenia
RESENHAS 237

MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricar- interessadas em sanar os males “de for-
do Ventura (orgs.). 1996. Raça, Ciência mação” que atingiam a “nação doen-
e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ te”, como descrevem Nísia T. Lima e
CCBB. 252 pp. Gilberto Hochman. Esboça-se já uma
vertente intelectual que não se encaste-
la nas instituições, mas investe em um
Olívia Maria Gomes da Cunha projeto quase missionário que visa
Profª de Antropologia, IFCS-UFRJ transformar teorias e métodos científi-
cos em políticas públicas, a fim de curar
Uma curiosa afinidade perpassa grande as doenças do país, disseminar a pre-
parte dos artigos dessa coletânea: a re- venção e os cuidados sanitários, pro-
ferência sutil a desejos, intenções e po- mover a unificação e remodelar as fei-
líticas, nem sempre manifestas mas cer- ções e a constituição dos corpos pela cu-
tamente cristalizadas em textos oficiais ra. O higienismo da geração de Oswal-
e literários, bem como à construção da do Cruz e Belisário Pena abrirá cami-
nação como um projeto estético. Sedu- nho para que o próprio Estado, através
ção estética e nacionalismo, por subtra- de programas de saúde muitas vezes
ção, poderiam ser citados como duas apoiados no apelo à regeneração pelo
tendências incidentais, sinalizadoras de trabalho, seja o principal responsável
certas preocupações presentes nos pela concretização, na década poste-
campos político-institucional e intelec- rior, dos sonhos eugenistas. Em nome
tual que nos permitem aproximar temá- da cura, equipararam-se políticas de
ticas diferentes construídas em contex- prevenção e repressão sanitárias e poli-
tos singulares. Exemplos concretos des- ciais.
sas conexões inauguram a primeira Mas se há um sentido capaz de ali-
parte desse livro dedicado à análise das nhavar práticas e idéias nem sempre
relações entre “raça, ciência e nação na unificadas nessas políticas, este pode
virada do século”. A reiteração dos vín- ser identificado em um desejo comum
culos entre Estado e sociedade, a im- de perfilar esteticamente a nação. Mais
portância da problemática racial inci- que um projeto, um ideal presente nos
dindo nas práticas e políticas oficiais, o discursos que clamam pelo embranque-
papel dos intelectuais, a proximidade cimento, pela seleção da imigração, pe-
entre literatura e ciências sociais, en- la “mestiçagem bem dosada” e pela er-
fim, tentativas incessantes de elaborar, radicação das doenças relacionadas à
redefinir e cristalizar um certo perfil so- insalubridade. A perfeição deve ser bus-
ciocultural da nação. cada sobretudo em uma política de imi-
Referências a investimentos cientí- gração seletiva, como nos mostram Gi-
ficos vinculados à expansão geopolítica ralda Seyferth e Jair de Souza Ramos.
do Estado brasileiro se fazem presentes Imigração e mestiçagem impõem-se,
seja na perspectiva da antropologia físi- principalmente a partir da década de
ca produzida nos museus de história na- 20, como faces de uma mesma moeda.
tural na virada do século – cujo objetivo Trata-se de implementar o que o conde
era constituir um quadro geral e hierar- de Gobineau preconizara como uma
quizado das “raças formadoras” do país, “mestiçagem bem dosada” (:51), asse-
como nos mostra John Monteiro –, seja gurando que ela compreenderia não só
nos projetos higienistas implementados a rejeição de uma parte substantiva das
por renomadas instituições de saúde, “raças” que comporiam a parte inferior
238 RESENHAS

da hierarquia da espécie humana, mas que a cultura e o “meio social” discipli-


também daqueles apontados como res- nem.
ponsáveis pela importação de uma ideo- O imperativo da nação como “sínte-
logia de “pureza de sangue” e “pureza se” ganha fôlego no que Martínez-
racial”. Echazábal chama de “misteriosa euge-
Essa sedução estética parece per- nia estética” de José Vasconcelos (:114),
mear outras variantes, não exclusivas, nas referências a uma “raça cósmica” e
do nacionalismo brasileiro. Os artigos “sintética”. Mas é em Freyre que o pa-
de Omar Ribeiro Thomaz e Lourdes radigma fusão/mistura parece conter
Martínez-Echazábal oferecem ao leitor elementos mais contundentes, e é em
a oportunidade de lançar um olhar com- Casa-Grande & Senzala que o ideal es-
parativo, no qual as “matrizes” desse tético da nacionalidade brasileira ga-
ideal estético podem ser buscadas para nha uma dimensão histórico-sociológi-
além dos paradigmas científicos vigen- ca, através de um discurso que alinha-
tes no país do início do século. No texto va ciência e literatura em um estilo pe-
de Martínez-Echazábal, a referência à culiar. Esse caráter menos prescritivo e
“mestiçagem” é apresentada como uma normativo, e mais estilístico, sem dúvi-
temática particular, ao conferir estilo e da, foi capaz de redimensionar o lugar
proeminência à literatura latino-ameri- do próprio “conhecimento científico”
cana a partir dos anos 30. Se há traços no texto freyreano. Subjetividade, lite-
passíveis de comparação nos diversos ratura e história sobrepõem-se na cons-
discursos nacionalistas latino-america- trução de uma nação avessa à brancura
nos no período, estes estão radicados na apolínea do colonizador inglês, mas
tensão entre o apelo à integração e à próxima ao dionisíaco por distinção, por
“culturalização da diferença” como mo- “dosagem”, por “tempero” e por gêne-
delos complementares à formação da ro. O homem brasileiro é um homem
nação. A comparação entre as narrati- novo, que se adapta às contingências
vas de Gilberto Freyre, José Martí e Jo- dos trópicos e negocia com o torpor e a
sé de Vasconcelos aponta para a recon- violência do civilizador. Ele se “autopa-
figuração dos termos que aludem à “ra- cifica” não pela resistência à domina-
ça” e, por vezes, à “cultura”, implican- ção, mas pela “altivez” com que des-
do a reconstrução de um modelo de na- brava a natureza e domina a si próprio,
cionalidade fundado nas idéias de mis- como se fora árido, infértil, “bugre”,
tura e fusão. A identificação destes dois “boçal” por origem. A “fusão” consti-
princípios nos mostra como, ao mesmo tuiu-se historicamente no cotidiano das
tempo que a idéia de fusão de “san- relações sociais, envolvendo diferentes
gues”, “raças” e “culturas” parece se graus de distância e afinidade, mistu-
constituir em discursos normatizados e rando (seletivamente) “sedução moral
oficiais, os elementos e critérios relacio- e fascinação estética” (:115).
nados à noção de “mistura” são sempre Vale notar que imbricações singula-
seletivos. Seleção e adaptatividade evo- res de novos padrões relacionais e esté-
cam a construção de uma nação esteti- ticos como um projeto de nação se es-
camente em construção, onde a nature- tendem para além das cercanias da ca-
za, de acordo com as premissas lamar- sa-grande. O texto de Omar Ribeiro
ckianas citadas no texto de Ricardo V. Thomaz informa-nos que o discurso
Santos, se ocupa em depurar, tonificar, freyreano, calcado no elogio tanto à dis-
fortalecer e preparar um terreno para tintividade do colonialismo português
RESENHAS 239

quanto aos seus modos caprichosos de Essa incursão pelas vicissitudes do


tornar gradativas, sutis e maleáveis di- colonialismo português é extremamen-
ferenças “raciais” e “culturais” como te importante para conferir à leitura do
níveis diversos de uma identidade em conjunto de artigos uma outra perspec-
construção – a do império colonial luso tiva acerca dos lugares a partir dos
–, paralelo à implementação de meca- quais o projeto de construção da nação
nismos de dominação e reafirmação da brasileira, até a primeira metade do sé-
autoridade portuguesa, deve ser visto culo, pode ser pensado. Contudo, se nas
como um projeto estético e político duas primeiras partes da coletânea a
(:110). A análise da repercussão da mor- oscilação no uso dos termos “raça” e
te de Papé, o “preto” das ilhas da Gui- “cultura”, devidamente contextualiza-
né, durante a Exposição Colonial Portu- dos, evidencia tentativas diversas de
guês no Porto em 1934, é um pretexto erigir paradigmas “científicos” para a
para explicitar os mecanismos sob os compreensão da formação da nação, nas
quais essa articulação é construída. Pa- duas últimas sugere categorias social-
pé vivo reclama como imagem o exotis- mente relevantes e sobre as quais as
mo, a estranheza e a singularidade de ciências sociais se arvoram descortinar
um exemplar das “raças coloniais”. Pa- os sentidos. Ainda assim, sua discussão
pé morto lembra que a unidade política permanece presa a um debate mais am-
do Império, enquanto discurso hegemô- plo sobre identidade nacional.
nico, foi capaz de colocar em segundo O sociólogo Guerreiro Ramos, anali-
plano as hierarquias sobre as quais o re- sado por Chor Maio por exemplo, ao
conhecimento das “diferenças” se ba- apostar em uma espécie de pedagogia
seavam. Por um momento, o que muitos de “reconversão” e valorização indivi-
imaginam ser um paradoxo do “modelo dual e política dos negros no Brasil,
brasileiro” – a descontinuidade entre acreditava que essa perspectiva os res-
discursos que remetem à homogeneida- gataria dos exotismos culturalistas
de e à igualdade, e práticas que reafir- rumo à “integração à nacionalidade”
mam nas relações cotidianas desigual- (:183). Joel Rufino, em um texto inspira-
dades e hierarquias – é confrontado de do em Guerreiro foi mais longe. De seu
forma inovadora e criativa. Quando Tho- ponto de vista, esse retorno à indistin-
maz diz que “Freyre vê na África Brasis ção se deve ao fato de que, desconstruí-
em gestação” (:102), a analogia parece do o determinismo racial, reconhecida
perfeita: as relações do intelectual bra- a pluralidade de experiências sociais,
sileiro com vários representantes do culturais e históricas, percebida a fra-
“saber colonial” português durante o gilidade dos marcadores fenotípicos
Estado Novo permitiram a ampliação (“uma vez que a maioria da nossa po-
dessa imagem para um plano transcolo- pulação tende para o escuro”), conclui-
nial. A hierarquia agora se fortalece pe- se que: “negro é povo”. Desse modo, o
la conquista de um projeto político/es- “lugar” conferido ao negro está associa-
piritual – o Império solidifica-se como do a uma perspectiva diversa, que Rufi-
um olhar particular que, ao se debruçar no denomina de “populismo revisita-
sobre os trópicos, o envolve, redescobre do”, em que a “indistinção” se coloca
e redesenha. Toda a aventura quinhen- como uma estratégia política. Ao “escu-
tista é então recontada a partir desse recer” a nação e diluir a necessidade do
novo desenho geopolítico. O Império apelo à “diferença”, Rufino parece in-
traduz-se em imagem e sentimento. verter totalmente a visão das adições
240 RESENHAS

“bem dosadas”, ao mesmo tempo que ORTNER, Sherry. 1996. Making Gen-
recusa a visão de uma sociedade funda- der: The Politics and Erotics of Cultu-
mentada em classes. O problema é que re. Boston: Beacon Press. 262 pp.
ao idealizar um perfil para a identidade
brasileira e ao “escurecer” o Brasil, Ru-
fino mais uma vez desenha um perfil de Cristiane Lasmar
nação por subtração: “brasileiro é como Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ
se deduz, o melhor sinônimo de negro;
e branco sinônimo de não-brasileiro” Making Gender pode ser visto como
(:223). Fica de fora uma parcela signifi- uma apresentação da trajetória intelec-
cativa da população para a qual a “cor” tual de um dos nomes mais importantes
como marca/insígnia da distinção social da antropologia do gênero. Os artigos
não tem tal relevância. que integram o livro, quatro inéditos,
Essa questão é retomada em outros retratam os movimentos teóricos de
artigos. Maggie, ao repensar as inúme- Sherry Ortner ao longo de mais de vin-
ras classificações raciais utilizadas no te anos de produção acadêmica. Aluna
Brasil, refere-se à de “moreno” como de Geertz nos anos 60, feminista, com-
aquela que mais se aproxima de uma prometida, como ela mesma se define,
espécie de “síntese” de um gradiente com “uma antropologia humanista, in-
de cor que também hierarquiza social- terpretativa, preocupada em elucidar
mente (:225). Sansone, relendo Freyre, questões de cultura, significado e va-
faz menção ao jogo entre antagonismo lor” (:217), Ortner não se furtou, toda-
e afinidade como habitus coexistentes e via, a explorar outras possibilidades
não excludentes (:207). Hasenbalg, in- teóricas.
sistindo contra os perigos de se tomar a O artigo de abertura, que dá nome
“ideologia da harmonia”, das etiquetas ao livro, representa a sua posição mais
de “cordialidade” e da “democracia ra- recente, uma crítica à teoria da prática
cial” como normas, reinveste na valori- a partir de uma perspectiva “feminista,
zação de um modelo polarizado de lei- minoritária, pós-colonial e subalterna”
tura das “relações raciais”. (:1). Considerando a teoria da prática
Em suma, um dos principais resul- como uma das mais poderosas para dar
tados dessa coletânea é mostrar, por conta da complexidade da vida social,
meio de diferentes enfoques, a existên- por sua ênfase na perspectiva do ator e
cia de estreitas conexões entre o debate nos modos de reprodução e transforma-
da “questão racial” e o nacionalismo. ção das relações de poder, a autora acu-
Um problema, no entanto, permanece: sa os seus principais defensores, contu-
de onde provém a necessidade, de- do, de jamais terem se esforçado para
monstrada na maior parte dos artigos, estabelecer um diálogo com a grande
de construir modelos de identidade e massa de trabalhos produzidos pela
relações sociais que, aludindo à “raça” “antropologia engajada”. O projeto de
ou à “cor”, descrevem a nação de modo unir teoria da prática e “perspectiva su-
distintivo? balterna” implica pensar a questão do
poder e da dominação sem abrir mão da
intencionalidade do sujeito. Inspirada
em Geertz, Ortner propõe o modelo dos
“jogos sérios” que captaria duas di-
mensões importantes da vida social.
RESENHAS 241

Como um jogo, esta é construída e or- tureza : cultura e a concepção (univer-


ganizada culturalmente em termos de sal) da inferioridade feminina.
categorias que definem atores, regras e Ao mesmo tempo que contribuiu
objetivos, e consiste em teias de rela- para tornar a dicotomia natureza/cultu-
ções entre posições subjetivas, múlti- ra um instrumento teórico relevante pa-
plas e intercambiáveis; por outro lado, ra os estudos de gênero durante os anos
há um espaço de agência, isto é, os ato- 70, o artigo suscitou debates inflama-
res jogam com habilidade, talento e in- dos. O paradigma de Ortner sofreu du-
tenção. Para Ortner, os jogos são “sé- ras críticas, tanto do ponto de vista epis-
rios” porque poder e desigualdade es- temológico quanto etnográfico. A críti-
tão sempre presentes. ca epistemológica tomava a oposição
A relação de Ortner com a teoria da natureza/cultura, tal como formulada
prática construiu-se ao longo das duas por Lévi-Strauss e reelaborada por Ort-
décadas compreendidas pelos outros ner, como uma construção ocidental
artigos da coletânea. No percurso, hou- não podendo ser, portanto, universali-
ve incursões a abordagens teóricas di- zada. Do ponto de vista etnográfico, os
versas, como em “The Virgin and the críticos apoiavam-se em uma série de
State” (1978), em que a valorização da casos que demonstravam a inadequa-
virgindade feminina é explicada atra- ção do modelo quando aplicado a algu-
vés de uma visão materialista e evolu- mas sociedades não-ocidentais.
cionista. Outro exemplo é o clássico Dois dos artigos do livro, “Gender
“So, Is Female to Male as Nature Is to Hegemonies” (1990) e o inédito “So, Is
Culture?” (1974), que se tornou referên- Female to Male as Nature Is to Cultu-
cia basilar para os estudos de gênero, re?”, tratam de responder a essas críti-
instituindo a dicotomia natureza/cultu- cas e redefinir a posição da autora. Em
ra como modelo teórico. ambos, Ortner reabre as discussões tra-
Inspirando-se na teoria de Michelle vadas na antropologia do gênero nas
Rosaldo sobre as implicações da oposi- décadas de 70 e 80 – sobre a utilidade
ção público/privado para o status social heurística da dicotomia natureza/cultu-
da mulher, a autora avança, nesse arti- ra e a universalidade da dominação
go, a hipótese de que o confinamento masculina –, à luz de novos instrumen-
na esfera privada e a própria fisiologia tos teóricos disponíveis. Ortner aceita
feminina levariam a uma representação apenas parcialmente as críticas à sua
simbólica universal e estruturante da formulação da dicotomia. Assume o
mulher como mais próxima à natureza. “grande erro substantivo” (:177) de ter
O argumento desenvolve-se a partir de proposto uma associação direta e ime-
duas referências principais: o estrutura- diata entre a dominação masculina e a
lismo de Lévi-Strauss e o existencialis- equação que associa mulher à natureza
mo de Simone de Beauvoir. Ortner su- e homem à cultura, sem considerar ou-
gere que, a despeito da imensa variabi- tras ordens de fatores que podem estar
lidade de representações particulares, relacionadas a essa dominação. Por ou-
toda cultura reconhece e afirma uma tro lado, reafirma que a oposição (e a
associação metafórica entre mulher e associação da mulher ao primeiro ter-
natureza. Ao mesmo tempo, a natureza mo) é uma estrutura simbólica de am-
é concebida como inferior, um mundo a pla ocorrência. Nesse ponto, Ortner
ser “socializado”, “dominado”. Disso empreende uma ofensiva contra os crí-
deriva a equação mulher : homem :: na- ticos que apresentaram exemplos etno-
242 RESENHAS

gráficos de conceituações alternativas conta da imensa variabilidade de pa-


da relação entre cultura e natureza, drões de relações entre os gêneros. Uti-
acusando-os de terem feito uma leitura lizando a noção de hegemonia, formu-
equivocada da noção de estrutura que lada por Gramsci e reelaborada por
informa sua hipótese de 1974. Manten- Raymond Williams, sugere que, embo-
do uma relação complexa com as ideo- ra seja possível detectar, em toda cultu-
logias e categorias culturais nativas, a ra, uma multiplicidade de lógicas, dis-
oposição natureza/cultura não é um ob- cursos e práticas relacionados ao siste-
jeto passível de ser “encontrado” pelo ma de gênero, alguns são hegemônicos,
escrutínio etnográfico, sustenta. Antes, outros marginais, subversivos, desafia-
seu caráter estrutural advém do fato de dores. Para exemplificar, focaliza o caso
tornar-se realidade como uma questão Andaman e mostra que, a despeito da
existencial, que todas as culturas en- existência de algumas prerrogativas
frentam: o confronto entre a humanida- masculinas, é possível classificar a so-
de e algo “que acontece fora da agên- ciedade andamanesa como (hegemoni-
cia e/ou da intencionalidade humanas” camente) igualitária, pois um igualita-
(:179). Desse modo, Ortner insiste na rismo sexual permeia de forma estrutu-
oposição em seus contornos, mas de ral vários padrões de relação social.
uma forma purificada, sem atribuir aos A autora alega, ainda, que sua visão
termos significados específicos. A ima- da universalidade da dominação mas-
gística do controle e da dominação, culina nos anos 70 era definida, basica-
apontada pelos críticos como um bias mente, com referência a questões de
ocidental, desaparece de sua argumen- valor e prestígio, o que não excluía a
tação. Mas a defesa de Ortner torna-se possibilidade da existência de instân-
problemática no momento em que ela cias, até mesmo legítimas, de poder fe-
tenta justificar a inserção dos termos de minino. Isto é verdade, porém, apenas
gênero na equação. Ao persistir na para os trabalhos que publica a partir
idéia de que as oposições natureza/cul- do início da década seguinte, os quais
tura e mulher/homem podem, facil- já refletem uma mudança de perspecti-
mente, entrar numa relação de metafo- va que se verificava na antropologia do
rização mútua, a autora recai no erro de gênero como um todo. Quando Michelle
induzir a uma substantivação desses Rosaldo apontou, em 1980, os proble-
mesmos termos. Por fim, ela conclui mas da utilização das dicotomias natu-
que, embora a hipótese de 1974 possa reza/cultura e público/privado, afir-
ser sustentada teoricamente, o parale- mando que conduziam a uma visão es-
lismo estático das categorias lhe pare- sencialista do problema da mulher e
ce, atualmente, menos interessante que pouco esclareciam sobre a vida que as
a análise da construção cultural e políti- mulheres levam nas sociedades huma-
ca da relação entre os elementos da nas, as grandes questões inauguradas
equação (:180). por Simone de Beauvoir já perdiam
Ao tratar da universalidade da do- apelo. Os autores começavam a buscar
minação masculina, Ortner revê radi- abordagens mais comprometidas com a
calmente sua posição anterior, assentin- realidade político-econômica de socie-
do que um conceito de cultura menos dades particulares, e com o ponto de
totalizante e integrado, aberto às con- vista do ator social. O clássico artigo de
tradições e inconsistências da vida cul- Collier e Rosaldo, no qual elas interpre-
tural, seria mais adequado para dar tam as representações culturais da mu-
RESENHAS 243

lher nas “sociedades simples” como mem/mulher mostra-se estéril diante


produtos da micropolítica da vida coti- de uma situação etnográfica em que as
diana, exerceu forte influência nos de- ações dos atores são determinadas mui-
senvolvimentos posteriores do campo e to mais por sua posição no sistema de
no pensamento de Ortner em particu- prestígio do que pelo gênero a que per-
lar. Dessa influência resultou “Rank tencem.
and Gender”(1981). Tendo em vista ainda o caso sherpa,
Este artigo lida com um extenso cor- “Borderland Politics and Erotics” anali-
po de dados etnográficos de sociedades sa a inserção das mulheres no alpinis-
polinésias tradicionais, sobre o qual mo de altas altitudes no Himalaia a par-
Ortner se debruça para explorar as re- tir dos anos 70. Com base na noção de
lações ali encontradas entre o sistema “zona de fronteira” (borderland), a au-
de prestígio e a construção do gênero e tora investiga a produção de novos sig-
da sexualidade. Partindo da questão “o nificados como fruto da interação de
que querem os atores?” e “definindo homens e mulheres, ocidentais e sher-
seus desejos e limitações como essen- pa, em uma atividade até então domi-
cialmente políticos” (:220), investiga o nada por homens. Enfatizando o ponto
ponto de vista das várias categorias de de vista da mulher sherpa, demonstra
atores envolvidos. Esse texto represen- que o alpinismo pode ser visto como um
ta ainda seu primeiro passo na direção meio de resgatar parte do igualitarismo
de uma teoria da prática, num movi- sexual perdido em conseqüência de
mento considerado por ela mesma, re- mudanças ocorridas com a moderniza-
trospectivamente, bastante intuitivo ção do Nepal.
(:220). A hipótese é a de que apesar da Entre os motivos para considerar a
estratificação social ser concebida como trajetória intelectual de Ortner particu-
fixa e imutável, os homens fazem uso larmente interessante estão a seriedade
de sua autoridade doméstica para forjar com que trata seu objeto de estudo, de-
estratégias de melhoria de status. Ort- monstrada pela autocrítica e experi-
ner demonstra que o alto status da mu- mentação teórica constantes, a habili-
lher polinésia decorre de sua importân- dade em coadunar envolvimento políti-
cia crucial para as considerações de co e rigor científico e, por fim, seu lugar
prestígio de seus parentes masculinos. paradigmático no desenvolvimento dos
Nos dois últimos artigos, também estudos de gênero. Do ponto de vista
inéditos, podemos detectar uma utiliza- teórico, o livro é um exemplo de como
ção mais consciente e sofisticada da idéias e métodos já consolidados po-
perspectiva inspirada no trabalho de dem ser reapropriados de forma criati-
autores como Bourdieu, Giddens e Sah- va e fecunda. Para aqueles que fazem
lins. “The Problem of Women as an uma antropologia engajada, pode ser-
Analytic Category” é o primeiro traba- vir de estímulo e inspiração. Para os an-
lho em que Ortner faz uso de sua exten- tropólogos envolvidos com questões de
sa pesquisa entre os Sherpa para pen- gênero é, ao mesmo tempo, uma fonte
sar questões de gênero. Focalizando o de dados e uma retrospectiva do desen-
papel fundamental exercido por um volvimento do campo.
grupo de mulheres na fundação do pri-
meiro convento sherpa, Ortner defende
a fertilidade heurística do método cen-
trado no ator. O recurso à distinção ho-
244 RESENHAS

PALMEIRA, Moacir e GOLDMAN, Mar- do especialmente nos nossos cursos de


cio (orgs.). 1996. Antropologia, Voto graduação. Associando a tendência bra-
e Representação Política. Rio de Janei- sileira para o pensamento intelectual
ro: Contra Capa Livraria. 240 pp. francês com dificuldades com a língua
inglesa, os alunos pouco sabem dos
Firth, Fortes e Gluckmans da vida. No
Claudia Fonseca livro de Palmeira e Goldman, temos um
Profª de Antropologia, UFRGS resgate criativo dessa tradição, enri-
quecida pela interlocução com o campo
São muitos os motivos pelos quais o li- intelectual brasileiro e atualizada para
vro Antropologia, Voto e Representação se adequar ao estudo de nossa realida-
Política organizado por Moacir Palmei- de.
ra e Marcio Goldman é bem-vindo à ce- Em terceiro lugar, o livro é uma li-
na acadêmica nacional. Gostaria de ção viva da complementaridade entre
apresentar três. Em primeiro lugar, traz teoria e pesquisas empíricas. Os três
uma perspectiva inovadora para uma primeiros artigos do volume anunciam
discussão minada de clichês, repetições as bases teóricas da discussão. Gold-
e retórica: a da cidadania. Justamente man e Palmeira, sobrevoando – de Mai-
por não ceder à tentação de modismos ne a Bourdieu – os estudos antropológi-
(a palavra “cidadania” mal aparece no cos de sistemas e processos políticos,
texto) essa coletânea garante um traba- alinhavam em poucos parágrafos as
lho original e consistente. Nela, os com- etapas históricas de nossa disciplina. No
portamentos políticos são vistos como segundo artigo, Goldman e Sant’Anna
parte integrante de processos envol- propõem uma pauta para a investiga-
vendo as mais diversas dimensões da ção do voto em sua densidade de esco-
vida social – representações “nativas”, lha individual e de agenciamento cole-
faccionalismos, vida comunitária, famí- tivo. Para tanto, dirigem suas atenções
lia e redes sociais, imprensa, identidade para o campo de estudos da política lo-
étnica, festividades, biografias, estrutu- cal no Brasil, procurando construir um
ras de mediação e cultura parlamentar. objeto de análise que incorpore as li-
Apesar da diversidade de enfoques, há ções do passado. Retomando pontos da
uma coerência na proposta dos diferen- apresentação, recomendam evitar ten-
tes autores, todos pensando a questão dências pouco produtivas ou já gastas,
da participação política a partir do estu- tais como: a definição do “político” que
do de populações inseridas em contex- se limita às políticas institucional e par-
tos específicos – dos camponeses gaú- tidária; o parti pris que identifica deter-
chos e teuto-brasileiros catarinenses minados processos políticos em termos
aos moradores da Zona Sul carioca e si- de “positivo ou negativo”; a ênfase em
tiantes nordestinos. aspectos puramente ideológicos da po-
O segundo ponto forte desse livro, lítica em detrimento do estudo dos me-
visto da perspectiva do campo antropo- canismos que os sustentam; e a confian-
lógico, é que traz à tona uma área que ça superdimensionada em perspectivas
nossa literatura deixa freqüentemente macroscópicas. Propõem, em vez disso,
em segundo plano: a antropologia polí- uma ampliação do campo de análise
tica. Trata-se daquele “estrutural-fun- que estende o “político” a uma multi-
cionalismo” britânico, tão afeito a as- plicidade de áreas de comportamento;
suntos políticos, que parece subestima- uma reintrodução de dimensões socio-
RESENHAS 245

lógicas que leve em consideração as re- Nordeste, alvo clássico dos debates so-
lações pessoais e as posições sociais dos bre mandonismo. Retomando a idéia do
sujeitos (dos eleitores, assim como dos “tempo da política”, Beatriz Heredia,
candidatos, e cabos eleitorais); e, final- em “Política, Família, Comunidade”,
mente, a desnaturalização de noções apresenta sua experiência com colonos
tais como “voto”, “eleição” e “demo- gaúchos e sitiantes pernambucanos pa-
cracia”, a fim de ressaltar a dinâmica de ra pensar como o período eleitoral afeta
processos que divergem de modelos as comunidades interioranas, modifi-
“ideais”. cando as relações interpessoais. Lem-
Moacir Palmeira retoma com “Polí- brando que, dentro da família, cabe ao
tica, Facções e Voto” a crítica aos mo- homem a intermediação com o mun-
delos teóricos tradicionais (mandonis- do público, destaca o lugar central do
mo, faccionalismo etc.) na análise da pai na definição dos votos dos demais
política local no Brasil. Por apresenta- membros da família. Procura entender
rem uma imagem fixa dos blocos políti- também as motivações do voto, repor-
cos, esses modelos não explicam as fre- tando-se a noções nativas de ajuda,
qüentes infidelidades partidárias e a compromisso e dívida, especialmente
mobilidade interpartidária. Pensando quando acionadas nas relações com
nos recortes sociais do tempo, Palmeira pessoas de fora da comunidade. Nota-
destaca que o período eleitoral só pode se, nesse contexto, uma certa “exterio-
ser compreendido levando-se em consi- ridade” da política partidária: a comu-
deração os rearranjos de compromissos nidade resiste em lançar candidatos
que foram se delineando no período en- próprios, justamente por medo de intro-
tre as eleições. Não basta conhecer as duzir relações de desigualdade (clien-
lealdades familiares e vinculações par- telismo) entre iguais (da comunidade).
tidárias para entender o processo elei- Em “O Bar de Tita: Política e Redes So-
toral. É preciso levar em consideração ciais”, Claudia Guebel leva o leitor a
as esferas de sociabilidade regidas pelo um palco urbano no interior nordestino
compromisso pessoal, pois é através dos onde examina a prática cotidiana de
múltiplos fluxos de trocas – presentes, uma coordenadora de campanha do Sin-
favores, ajudas –, dentro e fora do “tem- dicato dos Trabalhadores Rurais duran-
po da política”, que se trava o processo te as eleições estaduais e nacionais de
de adesão. Afinal, o voto não deve ser 1990. Comparando as diferentes esfe-
pensado, necessariamente, em termos ras de sociabilidade – trabalho, família,
de uma escolha, uma decisão individual política e lazer – procura entender o jo-
tomada conforme os atributos dos can- go de cruzamentos e evitamentos nas
didatos ou partidos, mas antes como relações pessoais para inferir como as
adesão – um processo que vai compro- fronteiras do espaço social modificam-
metendo o indivíduo, a família, ou outra se durante o “tempo da política”. Me-
unidade social significativa, ao longo do diante uma leitura particular do Diário
tempo. de Pernambuco, Marco Antônio Bonelli
Nos capítulos subseqüentes, a pau- examina a dimensão simbólica do pro-
ta de investigação é viabilizada em cesso eleitoral no artigo “O Retrato da
pesquisas empíricas por doutores, mes- Política: Cobertura Jornalística e Elei-
tres e bacharéis ligados à equipe do ções”. Ali, comícios e caminhadas são
PPGAS-MN. Um conjunto de artigos diferentes meios de celebrar vínculos
trata de regiões rurais e urbanas do sociopolíticos e eventos emblemáticos
246 RESENHAS

de uma verdadeira “festa política”. Há po de possibilidades: “Podem estar em


campanha de rua, visitas em casa por jogo, não só o bairro e o time de futebol,
cabos eleitorais, cartazes, pichações, como a religião e o conselho do sogro”
distribuição de camisetas, tudo apro- (:199). Para testar essa hipótese, a auto-
veitando laços de vizinhança, paren- ra compara o perfil de determinados
tesco e afinidades pessoais para con- candidatos com os votos recebidos con-
quistar as primeiras adesões. Mas, indo forme as diferentes zonas eleitorais,
além, o autor toma o jornal como inter- criando três tipos de comportamento
locutor – ator social que constrói a rea- eleitoral. Um primeiro, em que há vota-
lidade política que descreve. Na análi- ção concentrada em uma só zona, cor-
se de estilo e conteúdo semântico da responde aos candidatos que subli-
cobertura de campanha verificam-se nham sua presença na própria comuni-
alguns processos que personalizam a dade (construção de obras, participação
política, mostrando como assuntos lo- em movimentos do bairro etc.) e apre-
cais e a imagem pessoal do candidato sentam-se como quem entende os pro-
são, nesse âmbito, fundamentais. blemas daquela população. Em um se-
Saímos do sertão e entramos na me- gundo tipo, vê-se a votação espalhada
trópole – eleições municipais no Rio de uniformemente por todas as zonas; tra-
Janeiro de 1992, com Karina Kuschnir e ta-se, nesse caso, de candidatos defen-
Gabriela Scotto. Em “Campanha de sores de determinadas categorias pro-
Rua, Candidatos e Biografias”, Scotto fissionais (bancários etc.), étnicas ou re-
centra-se na idéia da política enquanto ligiosas. O terceiro tipo, denominado “o
campo entrecruzado por relações per- voto ideológico”, diz respeito a candi-
sonalizadas – um campo em que um datos que receberam votos principal-
aperto de mão, um abraço ou um beijo mente na Zona Sul, que falam generi-
passam a ter uma conotação política em camente em “cidade”, e apelam para
termos de proximidade, distância, hie- noções abstratas tais como “ética”, “ci-
rarquia, popularidade e disputa. Procu- dadania” e “trabalho”. Nesse artigo ve-
ra identificar nos panfletos da campa- mos claramente uma adesão ao princí-
nha os elementos que melhor contri- pio expresso pelos organizadores da co-
buem para o reconhecimento do candi- letânea: “sociologizar” as teorias de
dato, concluindo que “não há proposta comportamento eleitoral, indo além de
sem candidato, não há candidato sem uma “mera contextualização” das ações
rosto e uma biografia” (:177). Por outro individuais para explorar como as es-
lado, o processo eleitoral que resgata o truturas sociais e simbólicas perpassam
candidato do anonimato produz um as diferentes unidades sociais, incutin-
efeito semelhante no eleitor: ao saudar do-lhes significado.
seu candidato, ao comunicar seus pro- Com seu artigo sobre “Decoro Par-
blemas, o eleitor deixa de ser um cida- lamentar: Esfera Privada e Domínio Pú-
dão anônimo e se converte, também blico”, Carla Teixeira nos traz para a
ele, em uma pessoa com história e rela- política nacional. Ao examinar os pro-
ções. Em “Cultura e Representação Po- cessos de perda de mandato dos depu-
lítica no Rio de Janeiro”, Kuschnir pro- tados Ibsen Pinheiro e Ricardo Fiuza
cura entender os múltiplos planos da (1993-94), mostra não somente a gran-
cultura que motivam o voto, mostrando de importância da imprensa na defini-
que o indivíduo situa sua “escolha” ção de culpa e responsabilidade, mas
dentro de um leque de opções, um cam- também certas particularidades no tra-
RESENHAS 247

tamento dado aos casos. Enquanto Pi- igual no plano humanista. (A importân-
nheiro – que durante sua defesa mante- cia da festa no plano político explica-se,
ve uma atitude reservada, dando, com justamente, por ela ser palco de ence-
sua linguagem impessoal, “um trata- nação da intimidade e da igualdade en-
mento institucional de si mesmo” (:222) tre político e eleitor, tanto quanto de re-
– resguardou sua vida privada e ateve- novação da hierarquia.) Chaves, em
se a questões legais, Fiuza, por seu la- vez de pensar em termos de “um códi-
do, assumindo que “aos homens públi- go duplo”, expresso pela oposição teó-
cos não é dado o direito de ter vida pri- rica entre indivíduo e pessoa, reconhe-
vada”, jogou-se em uma defesa marca- ce os paradoxos inerentes à pessoa bra-
da pelo apelo pessoal. Em vez de optar sileira que encerra uma noção de igual-
pelos valores do universo jurídico, dade que é permanentemente depen-
apostou na fórmula decoro=honra... e dente das relações.
ganhou. Assim, paradoxalmente, a CPI Finalmente, em “Pluralismo, Etnia e
que, ao condenar o lucro pessoal obtido Representação Política”, Giralda Sey-
no exercício de cargos públicos, parecia ferth recua na história para estudar a
afirmar a separação entre as esferas pú- participação política e, em particular, a
blica e privada, acabou transmitindo mobilização de lideranças teuto-brasi-
um recado quase oposto ao associar de- leiras, na virada do século, entre imi-
coro parlamentar à honra pessoal do grantes alemães no sul do Brasil. Verifi-
político. ca como, em 1883, quando a colônia de
O objetivo de Christine A. Chaves, Blumenau foi politicamente emancipa-
em “Eleições em Buritis: A Pessoa Polí- da, menos de 20% de seus residentes ti-
tica”, é repensar a noção de pessoa, na nham direito a voto – apesar de uma ta-
sua complexidade significativa, como xa relativamente alta de alfabetização.
categoria nativa. A autora sugere, em A exigência de falar (bem) a língua por-
seu artigo, que boa parte dos formula- tuguesa eliminava boa parte dos imi-
dores teóricos brasileiros, em razão de grantes e seus descendentes que, fron-
uma profunda identificação com os va- talmente, se opondo à política assimila-
lores da modernidade, têm tratado a cionista do governo, abraçavam uma
pessoa como um “indivíduo despido de noção pluralista de cidadania. Consi-
interioridade” (:154), e procura, a partir deravam-se parte do Estado brasilei-
de suas observações sobre a política lo- ro, ao mesmo tempo que mantinham
cal em Buritis (interior de Minas Ge- sua identidade com a nação alemã. O
rais), restituir a especificidade local do contexto de então, limitado principal-
termo. No Brasil, apesar de manifestar- mente a eleitores luso-brasileiros, fez
se em todas as relações sociais, a hie- com que comerciantes, pequenos in-
rarquia não é um valor socialmente re- dustriais e outras lideranças locais fos-
conhecido. A noção de pessoa, além de sem “atropelados” por intrusos que
referir-se a um universo hierárquico, usavam uma retórica nacionalista con-
também remete-se a uma igualdade siderada xenófoba – situação que durou
moral calcada na cosmologia cristã e até as eleições municipais de 1903. Em
católica. Essa igualdade não se traduz um comentário às ideologias racistas da
em termos sociológicos (não se coloca época, Seyferth sublinha um fato irôni-
como reivindicação consciente no plano co: tanto os assimilacionistas que plei-
das relações sociais), mas sim como as- teavam a miscigenação a fim de bran-
piração a ser reconhecida enquanto quear a população, quanto os pluralis-
248 RESENHAS

tas que, rejeitando intercasamentos,


procuravam resguardar sua germanida-
de pressupunham uma crença na desi-
gualdade das raças humanas. Os deba-
tes sobre as diferentes formas de nacio-
nalismo simplesmente opunham um ra-
cismo contra outro.
Assim, olhando voto e eleições atra-
vés de diferentes filtros – classe, etnia,
família, vizinhança – e, considerando
tanto os discursos como os processos e
relações que subjazem a esses discur-
sos, os autores acabam alcançando seu
objetivo, fazendo do voto um tipo de fa-
to social total que revela as especifici-
dades simbólicas e sociais do contexto
político brasileiro.

Você também pode gostar