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Resenhas - Lima, Antonio - A Fabricacao Do Imortal PDF
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RESENHAS
troca equilibrada (numa feliz utilização tória” dos livros didáticos, mesmo os
de textos de Mauss e Malinowski), en- mais “atualizados”, é possível notar co-
tre Alice da Porciúncula e o Museu: tal mo os processos que Regina Abreu des-
doação extraordinária, que aponta para creve nesse segmento do livro estão
a intenção de imortalizar o indivíduo presentes e atuantes num “imaginário
pela via da memória coletiva, dentre nacional” de ampla divulgação (e re-
outras contradádivas, foi aquinhoada produção) até hoje.
com uma sala especial para sua exposi- Em sua dimensão textual – artefato
ção permanente em meio a outros em- literário –, A Fabricação do Imortal bei-
blemas da “história nacional”, com o ra agradavelmente o romanesco, com
direito consagrado no ato da doação a um estilo claro e estimulante, conduzin-
uma curadoria especial a ser exercida do-nos (como numa investigação ar-
pela viúva e seu mordomo, estendendo- queológica), camada após camada atra-
se prerrogativas de ordem privada a um vés do(s) mundo(s) social(is) que pers-
espaço supostamente público. cruta, sem perder o rigor sociológico e
Os doze primeiros capítulos do livro as referências de contexto histórico. Co-
desentranham, pouco a pouco, dos va- mo mandam as regras da boa antropo-
riados objetos componentes desse “sis- logia, cá está uma etnografia densa, cu-
tema” que é a coleção (móveis, jóias, jo poder de descrição permite vislum-
roupas, esculturas, canetas, diplomas, brar múltiplos desdobramentos em ou-
fotografias, biografias e outros livros, tras pesquisas e supera os inevitáveis li-
dentre tantos), pela via do estudo de mites da escolha de instrumentais ana-
sua origem e trajetória, dos significados líticos.
que os impregnam e constituem não só Sobretudo, sente-se aí o potencial
a “fabricação do imortal” Miguel Cal- que a pesquisa antropológica, aplicada
mon, mas a vida social das elites políti- em perspectiva histórica, tem no des-
cas, seus valores, seus espaços de socia- vendar de processos sociais de longa
bilidade, as redes sociais que se entre- duração ainda em curso. Afinal, os
cruzam na formação do Estado à época, “imortais” mudam, mas continuam a ser
suas relações com os países europeus e, “fabricados” e “desfabricados”, estra-
de modo mais abrangente, um projeto tégias de consagração se redefinem,
implícito de uma “civilização brasilei- mas entram em jogo no cotidiano dos
ra”. São aspectos de grande importân- espetáculos estatais, e as margens de
cia para o conhecimento do período e aplicação de instrumentos socioantro-
das (pouco estudadas) elites brasileiras. pológicos cunhados para o tratamento
Nos cinco capítulos finais Abreu de outras realidades histórico-sociais a
volta-se para o espaço escolhido para temas e problemas em solo brasileiro
depósito e exposição desses semióforos devem ser preocupação permanenente
e seus sentidos, em última instância pa- do pesquisador em ciências sociais.
ra os planos de uma “história nacional” Também nesses aspectos o livro de Re-
como perseguidos pelos segmentos so- gina Abreu é uma bem-vinda e impor-
ciais abordados, concluindo por ver as tante contribuição.
alterações às finalidades e sistemática
de exposição do Museu Histórico Nacio-
nal. Nessa parte, Gustavo Barroso asso-
ma como figura principal da descrição
da autora. Reportando-se o leitor à “his-
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informação para a própria produção et- que a autora encara o grande problema
nográfica. dos diferentes estatutos dos textos es-
A partir da análise de um romance critos em geral (considerados ou não
do escritor samoano Albert Wente, In- pelos produtores e consumidores como
jerd Hoën discute igualmente as distin- literatura) e aqueles produzidos pelo
tas formas de se compreender a auto- antropólogo a partir da interação face a
nomia do texto e a importância de levar face no trabalho de campo. Ainda que
em consideração as diferenças entre os esses dois conjuntos de textos sejam to-
gêneros no momento de desenvolver a mados como dados, não devemos dei-
leitura antropológica de um texto ficcio- xar de reconhecer que suas condições
nal. A autora sustenta que a autonomia de produção (entre as quais devem ser
do texto jamais é absoluta e que é fun- incluídas as condições de leitura) são
damental entender como se constitui diferentes.
essa autonomia relativa – preocupação O vínculo entre literatura e etnogra-
que a conduz a reivindicar uma sociolo- fia é abordado de um ângulo distinto
gia dos produtores que permitiria al- em outros artigos do livro. Assim, Alan
cançar “uma maior compreensão tanto Barnard explora algumas das relações
da comunidade interpretativa a que o entre a science fiction de finais do sécu-
livro se dirige quanto do papel poten- lo XIX e princípios do século XX e tra-
cial da obra para essa comunidade in- balhos etnográficos produzidos na mes-
terpretativa” (:200). ma época. Relações que o autor analisa
Essa preocupação com a autonomia a partir de três temas que estão presen-
do texto é também um dos temas cen- tes nessas duas formas de discurso: as
trais do trabalho de Marit Melhuus, que raças perdidas, as guerras do futuro e
elabora uma análise de quatro diferen- os primeiros homens. Desse modo, Bar-
tes apropriações – encontradas em lei- nard pretende mostrar como a ilusão
turas antropológicas da cultura mexica- primitiva presente tanto em Tarzan of
na – de El Laberinto de la Soledad e de the Apes como nas etnografias é reci-
outras obras de Octavio Paz. Do ponto clada “retornando a nós através das fic-
de vista de Melhuus, a discussão das ções que agora lemos […] e inclusive
apropriações legítimas de uma peça li- nas ficções que quando crianças líamos
terária deve girar em torno da oposição tão inocentemente” (:252).
entre texto e contexto: El Laberinto…, Michael E. Meeker, por sua vez, tra-
ou qualquer outra obra de ficção, pode ta da relação entre meios de comunica-
ser considerado como parte do contexto ção, nacionalismo e islamização na Tur-
a partir do qual se fundamenta uma cer- quia. O autor distingue uma cultura tur-
ta leitura da cultura, ou pode ser consi- ca associada às populações rurais, na
derado como um texto cuja leitura se qual predominaria uma linguagem “lo-
fundamenta no conhecimento da cultu- cal e oral” de características islâmicas,
ra que o produziu. E, ainda que esses e uma que, nas grandes cidades, seria
dois modos de funcionamento da obra articulada por práticas sociais como a
literária não possam ser tratados como escrita, práticas escolarizadas, laicas e
opostos, pois são mutuamente constituí- nacionalistas. Ele demonstra que, na
dos, o fato é que “não podem operar si- verdade, a partir dos anos 80 a lingua-
multaneamente, ao menos não analiti- gem rural foi apropriada por um grupo
camente, ainda que o façam na prática” de intelectuais formados na tradição ur-
(:92). É a partir dessas considerações bana que procuram a “reconstrução de
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uma sociedade islâmica” (:32). Anali- (:101). A partir da análise dos vários te-
sando dois escritores pertencentes a es- mas presentes nos tangos (o amor im-
se novo grupo – e outros produtos cul- possível, a femme fatale, a milonguita,
turais como revistas e vídeos –, o autor o amor da mãe, a honra e sua defesa), o
mostra como esses bens são utilizados autor mostra como se constroem dife-
tanto pelos migrantes rurais no momen- rentes identidades masculinas que per-
to de redefinir sua identidade no mun- mitem entender “a complexidade das
do urbano, quanto por esses novos inte- relações entre homens e mulheres em
lectuais que procuram imaginar uma contextos em que estão sendo desen-
Turquia islâmica. volvidas novas formas de conceituar o
Igualmente interessada nos proces- amor” (:117). Essas demonstrações, no
sos de construção de identidades, Ma- entanto, perdem algo de sua força na
rianne Gullestad analisa uma autobio- medida em que a performance dos tex-
grafia escrita, a pedido da autora, por tos – especialmente, no caso do tango, a
um ancião norueguês. Ao refletir sobre própria dança, que poderia ser entendi-
a chamada história oral e descrever com da como outra forma de apropriação
certa meticulosidade a metodologia que dos textos – é excluída da análise. Esse
norteou sua investigação, a autora assi- tema só aparecerá no artigo de Solrun
nala explicitamente que seu interesse Willinksen-Bakker acerca da interface
está centrado no “que a ação de escre- oralidade/escrita, analisada a partir da
ver produz no escritor” (:160), ou seja, produção teatral no contexto multiétni-
nos processos de (re)construção do self co de Fiji.
a partir de uma determinada forma de A relação entre oralidade e escrita é
narração. Esses processos estão relacio- também discutida e problematizada nos
nados com aqueles outros através dos trabalhos de Sarah Lund Skar e Joanne
quais se (re)constitui a sociedade onde Rappaport. A primeira mostra o valor
o sujeito ocupa um lugar; de tal modo mágico que adquirem as cartas troca-
que “os dilemas morais no texto de Oi- das entre um grupo de camponeses pe-
vind podem ser vistos como ilustração ruanos e seus parentes que residem fo-
dos atuais dilemas do Estado de Bem- ra da comunidade. Nesse intercâmbio
Estar Social escandinavo” (:159). epistolar, o documento escrito serve de
O texto de Eduardo Archetti inscre- elemento que confirma a união entre os
ve-se, igualmente, nessa preocupação grupos, e a informação é localizada ape-
com a construção de identidades, ao fo- nas na palavra daquele que leva a car-
calizar “os contrastantes modelos de ta. Essa apropriação específica da escri-
masculinidade transmitidos pela poéti- ta feita por falantes do quechua permi-
ca do tango argentino em seu período te refletir sobre a necessidade de anali-
clássico” (:98), modelos que começam a sar os diferentes processos e estruturas
se formar na Buenos Aires cosmopolita sociais que dão sentido às relações di-
de princípios do século. O período ana- nâmicas entre o escrito e o falado.
lisado abarca as três primeiras décadas O artigo de Rappaport, por sua vez,
do século XX, durante as quais se pro- volta-se para a “manipulação das pala-
duz a globalização do tango, processo vras escritas por povos colonizados”
que “serviu para inventar uma tradição, (:207). Seu trabalho mostra distintos mo-
um espelho onde os argentinos podem vimentos de apropriação realizados por
se ver a si mesmos precisamente por- camponeses colombianos: a partir de
que os outros começaram a vê-los” documentos escritos se constroem mi-
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pai espiritual) “uma estreita unidade se tipo de música requer muita atenção
músico-performática” (:47), sendo que dos músicos, já que embora o princípio
o ountò não precisa ser um iniciado, ao rítmico básico seja o mesmo (2:3), os ins-
contrário do oungenikon e, evidente- trumentos o executam em um tempo di-
mente, do oungan. No entanto, é inte- ferente do dos cantores, o que faz com
ressante notar que caso ele o seja, pode que se possa sempre retirar novos “tem-
eventualmente continuar tocando per- pos” dessas combinações. A partir da
feitamente, mesmo sob o efeito de uma análise das linhas melódicas dos instru-
possessão. Caso contrário, ele utiliza os mentos, podemos perceber essa rever-
ritmos necessários para aplacar a pos- sibilidade dos ritmos, criada através de
sessão, já que a cerimônia não pode acentuações diferentes para cada um
prosseguir sem sua atividade. dos instrumentos, fazendo com que se
Durante a cerimônia, os instrumen- constituam “subtempos” dentro da mé-
tistas e cantores executam peças que se trica mais geral, ora enfraquecendo-a,
relacionam com os Lwa ou com outros ora reforçando-a.
elementos do ritual, como os vèvè (de- O fluxo criado por esses entrelaça-
senhos rituais dos Lwa), com objetos sa- mentos deve ser bem conhecido a fim
grados, como o ason, a bandeira, ou com de que contrastem com o kase, ou que-
os membros do grupo cujo papel é es- bra do ritmo, que é o que induz o transe
sencial para a execução da cerimônia. e a possessão. O kase é efetuado pelo
Cada uma das canções possui um texto manman, e pode vir, por exemplo, na
específico, parte em langaj (“lingua- forma de uma figura quíntupla (cinco
gem africana antiga”), parte em creole, batidas no espaço de um tempo), que-
referente ao elemento sobre o qual se brando um ritmo baseado na tercina (as
voltam as atenções no momento – cada várias formas em que essas mudanças
elemento possui várias canções que podem ocorrer são analisadas no capí-
exaltam suas qualidades. É através das tulo 5). Essa quebra de ritmo é sentida
canções que as pessoas aprendem mais intensamente como uma mudança brus-
sobre os Lwa. Quando um Lwa, por in- ca no fluxo rítmico-sonoro imanente a
termédio da pessoa por ele possuída, determinadas fases do ritual, consti-
propõe uma nova canção, ele o faz me- tuindo então uma “deixa” para os ini-
diante ritmos já conhecidos por todos, ciados entrarem em transe, preparan-
propondo um novo arranjo de texto. do-se para a possessão. Ela ganha den-
Os ritmos em geral seguem o pa- sidade valorativa se comparada com o
drão básico africano da contraposição efeito que tais substituições de ritmos
2:3, criando uma densa polirritmia, que passam a ter na música ocidental a par-
vai tecendo teias de ritmos entrelaça- tir do início do Romantismo, quando são
dos, altamente desencontrados, contra- quase sempre lidas como uma espécie
pontados. Essa polirritmia se articula a de floreio que serve à batida principal,
partir de um outro princípio recorrente sem produzir mudanças significativas.
na música africana, que é o de chama- Essas descrições apontam para a
do/resposta. São os diálogos que se em- possibilidade de uma antropologia da
preendem entre os tambores e entre os música positiva, que integre tanto aná-
cantores, bem como a mistura desses lises de estrutura e forma musicais com
dois níveis de diálogo, que dão especi- análises de estrutura e forma de outros
ficidade à textura da música do Vodu. É domínios, como também, e principal-
interessante notar que a execução des- mente, que integre esses conjuntos com
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a forma pela qual os agentes os articu- como tal, de evocar um passado digno,
lam e recriam continuamente. No en- aquele dos ancestrais ilustres, os Lwa.
tanto, o autor não se detém nesse últi- Fleurant é tributário dessa concepção:
mo aspecto, que remeteria a uma abor- ao introduzir um novo tema ou elemen-
dagem mais propriamente antropológi- to em sua análise, remete-os invariavel-
ca do Vodu, e são raras as alusões aos mente para suas supostas origens afri-
discursos de seus informantes. Assim, canas, tentando localizá-los nessa ou
não ficamos sabendo muito sobre como naquela sociedade.
os praticantes estão efetivamente pen- Se as chamadas religiões pan-afri-
sando, representando ou vivenciando canas se explicam, exclusivamente, pe-
essas práticas rituais. la perpetuação das tradições, através
Quase todas as interpretações de de mecanismos de transmissão oral,
Fleurant sobre o lugar ocupado pelo adaptando elementos da realidade pre-
Vodu na sociedade haitiana podem ser sente, como sugere o autor, é uma ques-
resumidas na formulação “o Vodu co- tão ainda em aberto. No entanto, saber
mo resposta às condições sociais haitia- como os envolvidos as estão vivencian-
nas” (:21). Do seu ponto de vista, esse do é, a meu ver, fundamental para uma
culto seria um dos meios para contornar articulação mais precisa entre esse “le-
a opressão sociopolítica: “é uma filoso- gado” africano e suas atualizações
fia e um modo de vida, que permite for- alhures.
mular respostas apropriadas para uma
situação historicamente opressiva e de-
bilitada” (:23). O Lwa inspira o fiel, pa- GIUMBELLI, Emerson. 1997. O Cuida-
ra que este possa empreender as ações do dos Mortos: Uma História da Con-
apropriadas quando confrontado com denação e Legitimação do Espiritis-
as dificuldades. Nesse sentido, as can- mo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
ções do rito Rada seriam um testemu- 326 pp.
nho eloqüente da habilidade do Vodu
para apresentar soluções para as con-
dições sociais haitianas. A primeira ce- Patricia Birman
rimônia Vodu no Haiti data de 14 de Profª de Antropologia, UERJ
agosto de 1791, pouco antes da revolta
geral dos escravos, e denota como ele A pergunta mais pertinente a respeito
“sempre foi uma religião de ação, no desse trabalho minucioso, feito com ra-
sentido de que os resultados poderiam ro empenho em explorar antropologica-
ser vistos de maneira tangível e, fre- mente fontes historiográficas, talvez se-
qüentemente, em um período relativa- ja a mesma que a sociedade dirige a
mente curto” (:21). seus religiosos ditos e reconhecidos co-
Nesse sentido, toda a análise musi- mo “espíritas”: vale mesmo o que está
cal da “rítmica” Vodu parece descolada escrito? Ou, em termos equivalentes,
da “função” mais primordial e geral do será que o sentido dos textos psicogra-
ritual, que seria a de oferecer uma res- fados que, frase após frase, contam his-
posta às terríveis condições socioeconô- tórias de personagens famosos, atri-
micas do Haiti. Por que essa forma de buem um sentido moral a certos com-
resposta e não outra é uma questão que portamentos, explicam certas curas e os
tem como única pista o fato de se tratar procedimentos a seguir deve ser busca-
de uma religião de origem africana, e, do nos princípios da mediunidade, ou
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seja, na fonte que permite entender e Deixemos por ora essa aproximação
acreditar na psicografia? para expor em linhas gerais esse impor-
Para os espíritas, com efeito, a escri- tante trabalho sobre o espiritismo no
ta dos médiuns é reveladora porque se Brasil. Com um recorte preciso em uma
parte da pressuposição de que o seu enorme massa de material, Emerson
sentido advém de fonte sobrenatural. manuseia fontes diversas para discutir
Assim, o médium não faz nada mais do a constituição do espiritismo no Brasil
que transcrever o que o espírito lhe dita e, particularmente, no Rio de Janeiro.
e esse conhecimento transmitido é pas- Ele parte da suposição de que o espiri-
sível de ser incorporado mediante um tismo é uma produção histórica e con-
trabalho de exegese feito por seus se- textual, resultado de um processo que
guidores que mistura, em doses indis- não continha, desde os seus primórdios,
cerníveis, a interpretação que realizam o traçado de seu caminho já delineado.
com tudo aquilo que acreditam lhes Em outras palavras, a noção, hoje pou-
chegar diretamente, sem contamina- co relativizada, de que espiritismo é re-
ções, desse emissor do Além. Por mais ligião seria efeito, segundo o autor, de
que, portanto, naturalizem o texto psi- uma conjunção peculiar, de um encon-
cografado, os espíritas reconhecem a tro de diferentes estratégias discursivas
existência de premissas que o validam, desenvolvidas por agentes sociais di-
bem como de uma interpretação que versos. Nesse processo, atuaram de ma-
lhe dá sentido. neiras contextualmente também dife-
Quando aproximo os documentos renciadas as instituições médicas, jurí-
psicografados dos processos analisados dicas, os meios de comunicação, os
por Emerson Giumbelli quero, para agentes religiosos espíritas, católicos e
além de uma brincadeira, colocar em outros, além das forças policiais. Com
discussão o lugar que nos últimos se distintas estratégias discursivas esses
concede à interpretação. Certamente, grupos, ao se enfrentarem e por vezes
os critérios interpretativos que condu- também se alinharem, instituíram ca-
zem a pesquisa etnográfica a hipóteses tegorias, forjaram polaridades (como
interessantes não são os mesmos da- aquela que opôs “místicos” e “científi-
queles aplicados pelo espiritismo dian- cos” entre os espíritas de diferentes fac-
te de textos “psicografados”, mas tanto ções), estabeleceram jurisprudências,
espíritas quanto antropólogos reconhe- práticas diversas que hoje são difíceis
cem, por vezes com evidente dificulda- de apreender (e, portanto, desnaturali-
de, que os dados não falam por si mes- zar) como efeito de um processo. A for-
mos e que, portanto, é preciso dotá-los mação do espiritismo, tal como o conhe-
de sentido. Dessa maneira, reconhece- cemos, no presente é efeito desse pro-
se a polissemia que os habita, enfronha- cesso desenvolvido em um certo campo
se em uma rede de discursos contradi- de forças, do entrelaçamento que se
tórios e ambíguos para, finalmente, produziu entre discursos e poderes que
construir uma mera versão. A incerteza, foram capazes de fazer valer não so-
pouco tranqüilizadora, a respeito dos mente algumas versões, mas também
resultados alcançados não deixa nem instituir certas práticas.
espíritas nem antropólogos descansar Giumbelli, nesse sentido, analisa a
em paz. O mundo dos mortos e as co- dinâmica e os atores sociais presentes
municações que resvalam de antigos no final do século passado e início deste
textos lhes acompanhará para sempre. que redimensionaram o lugar dos dis-
232 RESENHAS
cursos médicos, transformaram as fron- térios por intermédio dos quais os gru-
teiras identitárias dos grupos religiosos pos religiosos associados à possessão
e redefiniram, sucessivamente, os pa- passaram a se regular, obedecendo, as-
péis atribuídos ao Poder Judiciário e à sim, às injunções históricas que deram
polícia para, a partir da análise desse ao espiritismo kardecista um poder au-
contexto e desses embates, compreen- xiliar de polícia e fizeram da Federação
der o espiritismo como resultado disso Espírita Brasileira (FEB) um regulador
tudo. Contexto é, pois, uma palavra- doutrinário tanto para “dentro” dos gru-
chave. Produto de um campo de lutas pos espíritas quanto para a sociedade.
em que se definiu competências médi- As conclusões a respeito do espiri-
cas e jurídicas, emerge como lugar pos- tismo no Rio de Janeiro são alcançadas
sível para o espiritismo aquele concedi- mediante uma análise que se desdobra
do à religião. Criam-se, portanto, novos em torno de diferentes momentos histó-
lugares e novos papéis. O autor explica, ricos e debruça-se sobre práticas insti-
assim, como, a partir de um certo mo- tucionais diversas. O papel e o perfil da
mento, cristaliza-se uma crença por FEB resultam tanto de um esquadrinha-
meio da qual o espiritismo construiu o mento de suas práticas quanto dos efei-
seu lugar. Este teria se subordinado ao tos dos confrontos aos quais foi sendo
monopólio de cura conquistado pela submetida no interior desse campo. O
medicina e se aliado ao poder policial privilégio concedido à formação da FEB
para garantir, no campo “religioso”, seu teve como resultado colocar em relevo
papel privilegiado em relação ao baixo a sua formação e, ao lado disso, tam-
espiritismo, à macumba, ao candomblé, bém permitir entender o papel de ou-
ou seja, aos cultos de origem africana tras instituições no Rio de Janeiro em
em geral. alguns momentos decisivos, como as
Segundo a hipótese desenvolvida instituições sanitárias e judiciárias no
por esse trabalho, a construção históri- processo de urbanização da cidade, os
ca desse campo e o formato que veio a procedimentos judiciários associados à
adquirir, em função do jogo de forças e formação da República, os sucessivos
estratégias discursivas que o traspassa- lugares e diferentes definições do char-
ram, concederam ao espiritismo, no Rio latanismo, os códigos penais e as juris-
de Janeiro, comparativamente, um lu- prudências estabelecidas etc.
gar de referência, um ponto de ancora- Esse plano analítico pôde ser alcan-
gem em torno do qual todos os conflitos çado graças ao trabalho de investigação
religiosos passaram a se expressar, e o que envolveu diferentes fontes históri-
metro a partir do qual passaram a se cas. Cabe ressaltar o mérito, ainda raro
hierarquizar. O espiritismo no Rio de Ja- na antropologia produzida no Brasil, do
neiro teria tido, desse modo, papel equi- esforço de enfrentar essa modalidade
valente àquele desempenhado pela afri- de pesquisa, distante da perspectiva
canidade nagô na Bahia, construída por tradicional da disciplina com o seu pri-
uma aliança entre intelectuais e certos vilégio atribuído ao trabalho de campo
grupos de culto que passaram a ter o e à observação participante. A pesquisa
poder de legitimar, segundo seus crité- fundamentou-se, essencialmente, no
rios e medidas, os outros cultos de pos- estudo de quatro processos-crimes ins-
sessão. Mais do que um operador de taurados com base nos artigos 156, 157
distinções, o espiritismo teria sido ca- e 158 do Código Penal de 1890. A partir
paz, portanto, de instituir práticas e cri- desses processos, o autor busca exami-
RESENHAS 233
MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricar- interessadas em sanar os males “de for-
do Ventura (orgs.). 1996. Raça, Ciência mação” que atingiam a “nação doen-
e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/ te”, como descrevem Nísia T. Lima e
CCBB. 252 pp. Gilberto Hochman. Esboça-se já uma
vertente intelectual que não se encaste-
la nas instituições, mas investe em um
Olívia Maria Gomes da Cunha projeto quase missionário que visa
Profª de Antropologia, IFCS-UFRJ transformar teorias e métodos científi-
cos em políticas públicas, a fim de curar
Uma curiosa afinidade perpassa grande as doenças do país, disseminar a pre-
parte dos artigos dessa coletânea: a re- venção e os cuidados sanitários, pro-
ferência sutil a desejos, intenções e po- mover a unificação e remodelar as fei-
líticas, nem sempre manifestas mas cer- ções e a constituição dos corpos pela cu-
tamente cristalizadas em textos oficiais ra. O higienismo da geração de Oswal-
e literários, bem como à construção da do Cruz e Belisário Pena abrirá cami-
nação como um projeto estético. Sedu- nho para que o próprio Estado, através
ção estética e nacionalismo, por subtra- de programas de saúde muitas vezes
ção, poderiam ser citados como duas apoiados no apelo à regeneração pelo
tendências incidentais, sinalizadoras de trabalho, seja o principal responsável
certas preocupações presentes nos pela concretização, na década poste-
campos político-institucional e intelec- rior, dos sonhos eugenistas. Em nome
tual que nos permitem aproximar temá- da cura, equipararam-se políticas de
ticas diferentes construídas em contex- prevenção e repressão sanitárias e poli-
tos singulares. Exemplos concretos des- ciais.
sas conexões inauguram a primeira Mas se há um sentido capaz de ali-
parte desse livro dedicado à análise das nhavar práticas e idéias nem sempre
relações entre “raça, ciência e nação na unificadas nessas políticas, este pode
virada do século”. A reiteração dos vín- ser identificado em um desejo comum
culos entre Estado e sociedade, a im- de perfilar esteticamente a nação. Mais
portância da problemática racial inci- que um projeto, um ideal presente nos
dindo nas práticas e políticas oficiais, o discursos que clamam pelo embranque-
papel dos intelectuais, a proximidade cimento, pela seleção da imigração, pe-
entre literatura e ciências sociais, en- la “mestiçagem bem dosada” e pela er-
fim, tentativas incessantes de elaborar, radicação das doenças relacionadas à
redefinir e cristalizar um certo perfil so- insalubridade. A perfeição deve ser bus-
ciocultural da nação. cada sobretudo em uma política de imi-
Referências a investimentos cientí- gração seletiva, como nos mostram Gi-
ficos vinculados à expansão geopolítica ralda Seyferth e Jair de Souza Ramos.
do Estado brasileiro se fazem presentes Imigração e mestiçagem impõem-se,
seja na perspectiva da antropologia físi- principalmente a partir da década de
ca produzida nos museus de história na- 20, como faces de uma mesma moeda.
tural na virada do século – cujo objetivo Trata-se de implementar o que o conde
era constituir um quadro geral e hierar- de Gobineau preconizara como uma
quizado das “raças formadoras” do país, “mestiçagem bem dosada” (:51), asse-
como nos mostra John Monteiro –, seja gurando que ela compreenderia não só
nos projetos higienistas implementados a rejeição de uma parte substantiva das
por renomadas instituições de saúde, “raças” que comporiam a parte inferior
238 RESENHAS
“bem dosadas”, ao mesmo tempo que ORTNER, Sherry. 1996. Making Gen-
recusa a visão de uma sociedade funda- der: The Politics and Erotics of Cultu-
mentada em classes. O problema é que re. Boston: Beacon Press. 262 pp.
ao idealizar um perfil para a identidade
brasileira e ao “escurecer” o Brasil, Ru-
fino mais uma vez desenha um perfil de Cristiane Lasmar
nação por subtração: “brasileiro é como Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ
se deduz, o melhor sinônimo de negro;
e branco sinônimo de não-brasileiro” Making Gender pode ser visto como
(:223). Fica de fora uma parcela signifi- uma apresentação da trajetória intelec-
cativa da população para a qual a “cor” tual de um dos nomes mais importantes
como marca/insígnia da distinção social da antropologia do gênero. Os artigos
não tem tal relevância. que integram o livro, quatro inéditos,
Essa questão é retomada em outros retratam os movimentos teóricos de
artigos. Maggie, ao repensar as inúme- Sherry Ortner ao longo de mais de vin-
ras classificações raciais utilizadas no te anos de produção acadêmica. Aluna
Brasil, refere-se à de “moreno” como de Geertz nos anos 60, feminista, com-
aquela que mais se aproxima de uma prometida, como ela mesma se define,
espécie de “síntese” de um gradiente com “uma antropologia humanista, in-
de cor que também hierarquiza social- terpretativa, preocupada em elucidar
mente (:225). Sansone, relendo Freyre, questões de cultura, significado e va-
faz menção ao jogo entre antagonismo lor” (:217), Ortner não se furtou, toda-
e afinidade como habitus coexistentes e via, a explorar outras possibilidades
não excludentes (:207). Hasenbalg, in- teóricas.
sistindo contra os perigos de se tomar a O artigo de abertura, que dá nome
“ideologia da harmonia”, das etiquetas ao livro, representa a sua posição mais
de “cordialidade” e da “democracia ra- recente, uma crítica à teoria da prática
cial” como normas, reinveste na valori- a partir de uma perspectiva “feminista,
zação de um modelo polarizado de lei- minoritária, pós-colonial e subalterna”
tura das “relações raciais”. (:1). Considerando a teoria da prática
Em suma, um dos principais resul- como uma das mais poderosas para dar
tados dessa coletânea é mostrar, por conta da complexidade da vida social,
meio de diferentes enfoques, a existên- por sua ênfase na perspectiva do ator e
cia de estreitas conexões entre o debate nos modos de reprodução e transforma-
da “questão racial” e o nacionalismo. ção das relações de poder, a autora acu-
Um problema, no entanto, permanece: sa os seus principais defensores, contu-
de onde provém a necessidade, de- do, de jamais terem se esforçado para
monstrada na maior parte dos artigos, estabelecer um diálogo com a grande
de construir modelos de identidade e massa de trabalhos produzidos pela
relações sociais que, aludindo à “raça” “antropologia engajada”. O projeto de
ou à “cor”, descrevem a nação de modo unir teoria da prática e “perspectiva su-
distintivo? balterna” implica pensar a questão do
poder e da dominação sem abrir mão da
intencionalidade do sujeito. Inspirada
em Geertz, Ortner propõe o modelo dos
“jogos sérios” que captaria duas di-
mensões importantes da vida social.
RESENHAS 241
lógicas que leve em consideração as re- Nordeste, alvo clássico dos debates so-
lações pessoais e as posições sociais dos bre mandonismo. Retomando a idéia do
sujeitos (dos eleitores, assim como dos “tempo da política”, Beatriz Heredia,
candidatos, e cabos eleitorais); e, final- em “Política, Família, Comunidade”,
mente, a desnaturalização de noções apresenta sua experiência com colonos
tais como “voto”, “eleição” e “demo- gaúchos e sitiantes pernambucanos pa-
cracia”, a fim de ressaltar a dinâmica de ra pensar como o período eleitoral afeta
processos que divergem de modelos as comunidades interioranas, modifi-
“ideais”. cando as relações interpessoais. Lem-
Moacir Palmeira retoma com “Polí- brando que, dentro da família, cabe ao
tica, Facções e Voto” a crítica aos mo- homem a intermediação com o mun-
delos teóricos tradicionais (mandonis- do público, destaca o lugar central do
mo, faccionalismo etc.) na análise da pai na definição dos votos dos demais
política local no Brasil. Por apresenta- membros da família. Procura entender
rem uma imagem fixa dos blocos políti- também as motivações do voto, repor-
cos, esses modelos não explicam as fre- tando-se a noções nativas de ajuda,
qüentes infidelidades partidárias e a compromisso e dívida, especialmente
mobilidade interpartidária. Pensando quando acionadas nas relações com
nos recortes sociais do tempo, Palmeira pessoas de fora da comunidade. Nota-
destaca que o período eleitoral só pode se, nesse contexto, uma certa “exterio-
ser compreendido levando-se em consi- ridade” da política partidária: a comu-
deração os rearranjos de compromissos nidade resiste em lançar candidatos
que foram se delineando no período en- próprios, justamente por medo de intro-
tre as eleições. Não basta conhecer as duzir relações de desigualdade (clien-
lealdades familiares e vinculações par- telismo) entre iguais (da comunidade).
tidárias para entender o processo elei- Em “O Bar de Tita: Política e Redes So-
toral. É preciso levar em consideração ciais”, Claudia Guebel leva o leitor a
as esferas de sociabilidade regidas pelo um palco urbano no interior nordestino
compromisso pessoal, pois é através dos onde examina a prática cotidiana de
múltiplos fluxos de trocas – presentes, uma coordenadora de campanha do Sin-
favores, ajudas –, dentro e fora do “tem- dicato dos Trabalhadores Rurais duran-
po da política”, que se trava o processo te as eleições estaduais e nacionais de
de adesão. Afinal, o voto não deve ser 1990. Comparando as diferentes esfe-
pensado, necessariamente, em termos ras de sociabilidade – trabalho, família,
de uma escolha, uma decisão individual política e lazer – procura entender o jo-
tomada conforme os atributos dos can- go de cruzamentos e evitamentos nas
didatos ou partidos, mas antes como relações pessoais para inferir como as
adesão – um processo que vai compro- fronteiras do espaço social modificam-
metendo o indivíduo, a família, ou outra se durante o “tempo da política”. Me-
unidade social significativa, ao longo do diante uma leitura particular do Diário
tempo. de Pernambuco, Marco Antônio Bonelli
Nos capítulos subseqüentes, a pau- examina a dimensão simbólica do pro-
ta de investigação é viabilizada em cesso eleitoral no artigo “O Retrato da
pesquisas empíricas por doutores, mes- Política: Cobertura Jornalística e Elei-
tres e bacharéis ligados à equipe do ções”. Ali, comícios e caminhadas são
PPGAS-MN. Um conjunto de artigos diferentes meios de celebrar vínculos
trata de regiões rurais e urbanas do sociopolíticos e eventos emblemáticos
246 RESENHAS
tamento dado aos casos. Enquanto Pi- igual no plano humanista. (A importân-
nheiro – que durante sua defesa mante- cia da festa no plano político explica-se,
ve uma atitude reservada, dando, com justamente, por ela ser palco de ence-
sua linguagem impessoal, “um trata- nação da intimidade e da igualdade en-
mento institucional de si mesmo” (:222) tre político e eleitor, tanto quanto de re-
– resguardou sua vida privada e ateve- novação da hierarquia.) Chaves, em
se a questões legais, Fiuza, por seu la- vez de pensar em termos de “um códi-
do, assumindo que “aos homens públi- go duplo”, expresso pela oposição teó-
cos não é dado o direito de ter vida pri- rica entre indivíduo e pessoa, reconhe-
vada”, jogou-se em uma defesa marca- ce os paradoxos inerentes à pessoa bra-
da pelo apelo pessoal. Em vez de optar sileira que encerra uma noção de igual-
pelos valores do universo jurídico, dade que é permanentemente depen-
apostou na fórmula decoro=honra... e dente das relações.
ganhou. Assim, paradoxalmente, a CPI Finalmente, em “Pluralismo, Etnia e
que, ao condenar o lucro pessoal obtido Representação Política”, Giralda Sey-
no exercício de cargos públicos, parecia ferth recua na história para estudar a
afirmar a separação entre as esferas pú- participação política e, em particular, a
blica e privada, acabou transmitindo mobilização de lideranças teuto-brasi-
um recado quase oposto ao associar de- leiras, na virada do século, entre imi-
coro parlamentar à honra pessoal do grantes alemães no sul do Brasil. Verifi-
político. ca como, em 1883, quando a colônia de
O objetivo de Christine A. Chaves, Blumenau foi politicamente emancipa-
em “Eleições em Buritis: A Pessoa Polí- da, menos de 20% de seus residentes ti-
tica”, é repensar a noção de pessoa, na nham direito a voto – apesar de uma ta-
sua complexidade significativa, como xa relativamente alta de alfabetização.
categoria nativa. A autora sugere, em A exigência de falar (bem) a língua por-
seu artigo, que boa parte dos formula- tuguesa eliminava boa parte dos imi-
dores teóricos brasileiros, em razão de grantes e seus descendentes que, fron-
uma profunda identificação com os va- talmente, se opondo à política assimila-
lores da modernidade, têm tratado a cionista do governo, abraçavam uma
pessoa como um “indivíduo despido de noção pluralista de cidadania. Consi-
interioridade” (:154), e procura, a partir deravam-se parte do Estado brasilei-
de suas observações sobre a política lo- ro, ao mesmo tempo que mantinham
cal em Buritis (interior de Minas Ge- sua identidade com a nação alemã. O
rais), restituir a especificidade local do contexto de então, limitado principal-
termo. No Brasil, apesar de manifestar- mente a eleitores luso-brasileiros, fez
se em todas as relações sociais, a hie- com que comerciantes, pequenos in-
rarquia não é um valor socialmente re- dustriais e outras lideranças locais fos-
conhecido. A noção de pessoa, além de sem “atropelados” por intrusos que
referir-se a um universo hierárquico, usavam uma retórica nacionalista con-
também remete-se a uma igualdade siderada xenófoba – situação que durou
moral calcada na cosmologia cristã e até as eleições municipais de 1903. Em
católica. Essa igualdade não se traduz um comentário às ideologias racistas da
em termos sociológicos (não se coloca época, Seyferth sublinha um fato irôni-
como reivindicação consciente no plano co: tanto os assimilacionistas que plei-
das relações sociais), mas sim como as- teavam a miscigenação a fim de bran-
piração a ser reconhecida enquanto quear a população, quanto os pluralis-
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