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organização
Benita Prieto
1ª edição
Rio de Janeiro
Prieto Produções Artísticas
2011
© 2011 Organizadora Benita Prieto
© Direitos de publicação
prieto produções artísticas
www.benitaprieto.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL-LÚCIA FIDALGO-CRB7/4439
ISBN 978-85-65126-00-7
”
mecha de sua vida.
O Narrador. Walter Benjamin.
prosas
....................................................................prosa de abertura
13 Contação de estória: vida e realidade
Affonso Romano de Sant’Anna
............................................................................................)
19 Contar histórias é alimentar a humanidade da humanidade
Carlos Aldemir Farias
25 Contos indígenas: uma experiência com narrativas dos primeiros povos brasileiros
Daniele Ramalho
............................................................................................(
45 Vozes, corpos e textos nos vãos da cidade
Júlio Diniz
79 Contando na telinha
Augusto Pessôa
85 Cinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na fogueira da
sala escura
Paulo Siqueira
105 Duas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos Role-Playing Games (RPG)
Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho
169 Entre hospitais gerais e psiquiátricos: histórias humanas e literárias como um rio de
caudaloso fio, tecendo redes de encontros na diversidade de afluências do viver saudável
Kika Freyre
............................................................................................*
196 E eles foram felizes para sempre.
Regina Machado
209 O paciente como contador de sua própria história: o olhar de um médico homeopata
Conrado Mariano
...............................................................................prosa final
215 As águas da memória e os guardadores da corrente de histórias
Maria de Lourdes Soares
............................................................................................&
225 De quem são essas vozes
:prosa de abertura
Contação de estória: o
vida e realidade
[Affonso Romano de Sant’Anna]
os homens, são as grandes contadoras de história: mães, babás, tias, avós, madrinhas...
Podemos avançar um pouco mais e dizer: o ser humano é não apenas um ser que
conta histórias e ouve histórias, mas sobretudo é um ser que faz história. Fazer história
é a suprema audácia dos humanos. Os romancistas, os cineastas e os líderes sociais,
por exemplo, operam isto mais claramente. Não se contentam em ser atores, querem
também ser autores, protagonistas de seu tempo.
Portanto, somos seres irremediavelmente históricos.
Digo isto e penso: eis uma observação banal. Qualquer pessoa sabe disto, não é
necessário ser um erudito para chegar a essa conclusão. Aliás, até os analfabetos, que
alimentam seu imaginário de contações de estórias, sabem disto. Então, por que fazer
essa observação?
Primeiro por uma razão, digamos pleonasticamente, “histórica”. Ou seja, a contação
de estórias passou a ser revalorizada de maneira notável nas últimas décadas, sobretudo
a partir dos anos 1980. Uma diversificada bibliografia que permeia diversos ramos do
14 conhecimento nos dá conta de uma verdadeira redescoberta da arte de contar histórias.
Isto está até mesmo nos consultórios psicanalíticos, que utilizam a “narratividade” dos
clientes como estratégia de tratamento, aperfeiçoando o que Freud há uns cem anos
já praticara quando adotou “a cura pela palavra”, revalorizando assim a palavra falada
capaz de destravar neuroses e traumas.
E isto se tornou tão visível e notável que as universidades se voltaram para este fenô-
meno estudando o renascimento da contação de estórias em nossa cultura. Cursos de
contadores de história se espalham por todas as partes, ao mesmo tempo em que, parale-
lamente, cursos sobre leitura, casas de leitura, secretarias de leitura e até mesmo Cátedras
de Leitura (a exemplo da PUC–Rio) começam a ser criados nas universidades.
Quer dizer, a leitura e a contação de estórias não apenas estão na moda, mas estão
irremediavelmente geminadas.
E isto, surpreendentemente, ocorre dentro de uma sociedade televisiva altamente
tecnológica, em que o cinema, a TV, a internet e os novos suportes ocupam espaços
imensos no nosso cotidiano. Isto sucede numa sociedade que, segundo alguns, reju-
bilando-se de cultuar a imagem, desprezaria a oralidade como se ela fosse um suporte
primitivo e ultrapassado. Nesse sentido, assim como nos últimos cem anos alardearam
tantas mortes em nossa cultura – morte do autor, morte da arte, morte do homem, etc.
– seria de se esperar que tivesse ocorrido a “morte” da arte de contar estórias.
rativas orais. Por outro lado, os irmãos Grimm na Alemanha, o dinamarquês Hans
Christian Andersen e os romancistas, como Alexandre Dumas, Walter Scott e José de
Alencar, foram buscar nas lendas, na história, no folclore, o imaginário coletivo.
E, na modernidade, ocorrem insólitas revalorizações da palavra. A arte contem-
porânea, depois de ter chegado ao abstracionismo, deu uma meia-volta em direção à
palavra e institucionalizou a “arte conceitual” como uma das mais nítidas tendências
do século XX. E isto se deu de tal forma que o “discurso” sobre os quadros ou obras
passou a ser mais relevante que as próprias obras e a terem em relação a elas certa
independência. (Tratei disto no livro O enigma vazio, editado pela Rocco).
A indústria das novelas de televisão, o cinema, o teatro, as estórias em quadrinho e
os romances continuam mais fortes que nunca. A publicidade tornou-se uma forma de
narrar e de seduzir. Uma cidade é um livro, cheia de letras, como para o índio é a floresta.
Disto tudo sobressai a palavra – narratividade. Narramos sem saber que narramos
e somos lidos até sem nos darmos conta de que nos estão lendo. Mais do que nunca
16 torna-se urgente que as pessoas tenham consciência de que ler o mundo é uma tarefa
contínua, desafiadora e propiciadora do sucesso pessoal e social.
Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias
vidas numa só.
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) Contar histórias é alimentar a o
humanidade da humanidade
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[Carlos Aldemir Farias]
1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.
2. O poder do mito. Palas Athena, 1998
afetos literários emanados dos sábios contadores, que dedicaram parte de seu precio-
so tempo às crianças. Considero um privilégio ouvir histórias, essa sensação de mara-
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
22
Contos indígenas: o
uma experiência com narrativas
dos primeiros povos brasileiros
[Daniele Ramalho]
oN
N
o ano de 1500 os europeus chegaram ao território que hoje chamamos de
Brasil. Havia aqui cerca de mil povos indígenas cuja população foi drasticamente
reduzida e que hoje se concentra em cerca de 280 etnias, que falam 160 línguas – um
Brasil que certamente precisamos conhecer.
No ano de 2000 comecei a contar histórias indígenas. Havia alguns anos da pri-
meira visita ao Museu do Índio do Rio de Janeiro. Ficava admirada com a riqueza
da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes de nossa terra e perplexa com
nosso desconhecimento sobre sua realidade – apesar de terem se passado mais de
quinhentos anos do primeiro contato.
25
Yawanawá, Xavante, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Apurinã, Kuikuro, Mehinaku.
Pesquisei diversas histórias e escolhi para estarem em “Contos indígenas” – aquele
que seria meu primeiro espetáculo com este tema – narrativas das etnias bororo
(“Subida para o céu”), kaxinawá (“A lenda da lua cheia”) e nambikwara (“O menino
e a flauta”). A primeira conta a origem dos animais e das estrelas, a segunda mostra a
origem da lua e da menstruação das mulheres e a terceira narra a origem dos alimen-
tos e da flauta sagrada Wairu, que só pode ser vista pelos homens.
As perguntas eram muitas: – Por que contar histórias indígenas em nossa socie-
dade? Como colaborar para difundir a tradição destes povos? Como utilizar versões
dos mitos tradicionais e fazer com que alguns de seus símbolos possam ser apreendi-
dos por pessoas de outra formação cultural? Como abordar temas como sexualidade e
morte, que para nossa sociedade são tabus, e que nas histórias indígenas são tratadas
com naturalidade? De que modo eu deveria contá-las?
1. Frase que norteia o trabalho do Instituto das Tradições Indígenas, para o qual trabalhei no projeto Rito de Passagem.
Divido com você “que me escuta” algumas reflexões após 11 anos de trabalho com
a cultura indígena brasileira.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Meu primeiro passo foi perceber que não há uma cultura indígena no Brasil, mas
muitas, já que há grandes diferenças entre o modo de vida das etnias encontradas
em nosso território. Como sugeriu Lévi-Strauss, para que haja uma compreensão dos
mitos indígenas o melhor é entendê-los em seus próprios termos, ou seja, compreen-
dendo o pensamento de quem os produz2.
Fui buscar então maiores informações sobre as etnias e mitos que escolhi. Procu-
rei referências que indicassem a que rituais se referiam, a que se destinavam e com
que finalidade. Dois deles preparavam os jovens para a iniciação ritual que marcava
sua passagem para a vida adulta. Esta pesquisa foi fundamental para guiar algumas
escolhas na construção do trabalho.
Citarei um exemplo. No mito kaxinawá “O menino e a flauta” conto a origem da
flauta wairu, que apenas aos homens é permitido ver. Como na historia o menino e
seu pai escutam o som da flauta, poderia ter sido o meu primeiro impulso usar uma
flauta durante a narração. Com a pesquisa compreendi que, se a história trata exata-
26 mente da flauta wairu como um tabu para as mulheres, nada mais coerente do que eu,
como mulher, não usar o instrumento na contação. Resolvi a questão reproduzindo
o som da música ritual com minha voz. Mais que preciosismo, para mim este é um
exemplo claro de como a pesquisa é importante no respeito às tradições do povo cuja
história desejamos apresentar.
Durante o longo período em que coletei versões dos mitos, encontrei muitas dife-
renças nas adaptações. Achei preciosidades como a coleção Morená, da escritora e
ilustradora Ciça Fittipaldi, cujas versões uso no espetáculo.
As narrativas dos mitos nos chegam normalmente em livros de antropólogos, escri-
tores e pesquisadores que conviveram com povos indígenas. Há casos em que são nar-
radas em português pelos indígenas – onde costumam se perder detalhes importantes
em função das histórias não serem recolhidas na língua de origem do narrador. Há
casos também em que os mitos são gravados ou escritos na língua indígena, e, posteri-
2. Claude Lévi-Strauss revolucionou a antropologia através do estruturalismo, com importantes estudos sobre a análise
de ritos e mitos
ormente, traduzidos – o que costuma apresentar melhores resultados.
A importância de encontrar várias versões de uma mesma história é a possibili-
dade de perceber o quanto foi preservado da essência daquela narrativa e o quanto
há de adaptação do autor, que muitas vezes “adultera” ou “corrige” o conteúdo do
mito para que o seu teor “primitivo” não entre em atrito com as normas sociais de
conduta de nossa cultura.
Após o contato de nossa sociedade com os povos indígenas, foram criados proje-
tos que visam registrar sua história mítica como, por exemplo, nas publicações utiliza-
das nas escolas indígenas ou em livros publicados por escritores indígenas – que, em
diversos estilos literários, revelam a tradição ancestral. É a palavra dos antigos – que
Daniele Ramalho
fala do tempo em que o mundo foi criado – apresentada pela nova geração, que
mesmo após incorporar à sua cultura inovações como o uso da internet, luta para
manter vivo o pensamento e o modo de vida harmônico de seu povo. Assim, apesar
de terem sofrido mudanças significativas em seu imaginário, eles encontram meios de
manter a sua identidade e reverenciar a sabedoria ancestral.
Voltando a “Contos indígenas”: optei por trabalhar no espetáculo com a corpo-
ralidade como um meio de contar as histórias. Sempre me saltava aos olhos a maneira
27
como os indígenas narram seus mitos. Um exemplo: na época em que trabalhei no
projeto Rito de Passagem, do Instituto das Tradições Indígenas /IDETI, durante uma
conversa com “Seu” Joaquim Yawanawá, ouvi-o narrando em pano (sua língua de
origem) o trecho de uma história. Eu não entendia o significado do que ele dizia,
mas era impressionante o vigor e intensidade com que me contava os fatos; os gestos
que fazia. Era como se revivesse na frente de sua ouvinte cada personagem e acon-
tecimento. Sei que há outras possibilidades, mas neste trabalho optei por uma forte
presença da corporalidade para, de algum modo, trazer ao imaginário do público um
encantamento e uma espécie de sentido ritual que considero bastante adequados para
uma narração mítica.
Como abordava três etnias diferentes, acabei optando por uma pesquisa mais
genérica sobre referências corporais dos povos, encontrando uma corporalidade
única, que permeasse todo o espetáculo. No começo da construção do espetáculo
“Contos indígenas”, eu e André Masseno, diretor do trabalho, utilizamos fotogra-
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
fias de pessoas dos povos abordados em ações físicas cotidianas. Reproduzimos estas
ações num treinamento corporal, codificadas em partituras físicas, que depois foram
devidamente esquecidas. Posteriormente, na composição das narrativas propriamente
ditas, os gestos e movimentos foram reaparecendo. E o corpo encontrado se refletiu
também na sonoridade. Aprendi palavras e cantos das etnias cujas histórias escolhi
em sua língua original, aprendi sons que os indígenas fazem em seu cotidiano – e, aos
poucos, codifiquei um modo diferenciado de abordar o som nas narrativas.
E qual é a importância de contar mitos indígenas hoje? Sabemos que as narrativas
míticas ajudam a compreender uma sociedade, trazendo sua visão sobre a ordem do
mundo, suas regras de convívio – o que não só fortalece seu sentido de grupo, como
carrega a sua memória. As histórias também preparam os indígenas para rituais de
passagem. Trazem a conexão entre mundo material e espiritual e falam de um encan-
tamento que pode nos conectar novamente com a magia da vida gerando uma nova
compreensão de nossa existência através de uma ancestralidade viva. Gosto muito de
28 Joseph Campbell quando ele diz que os mitos “...ensinam a se voltar para dentro...” e
“...nos permitem uma leitura das mensagens que o mundo nos emite”. As narrativas
indígenas podem, portanto, nos conectar para “além da internet” e gerar uma real
ligação com o outro e com a sociedade.
Sabemos que os mitos se referem a questões arquetípicas, tratando de símbolos
que acessam emoções e imagens simbólicas que constituem a condição humana – o
que nos leva a pensar que somos todos iguais! O africano Amadou Hampátê Bâ disse
– referindo-se à tradição dos mitos de iniciação peuls – que “Um conto é um espelho
onde qualquer um pode descobrir a sua própria imagem.”3
Por outro lado, o mito traz um caráter específico da cultura a que pertence – ou
seja, trata da identidade de um povo; aquilo que o faz único – o que sugere que somos
todos diferentes! Acredito que esta dicotomia presente nas narrativas míticas é que
pode gerar reflexões que nos levem a ter maior tolerância com a diversidade cultural e
3. Amadou Hampátê Ba foi escritor, historiador, poeta e contador de histórias nascido no Mali; um grande defensor da
tradição oral africana.
fazer com que encontremos modos de convívio mais harmônicos com outras pessoas
e culturas na grande aldeia global em que nos encontramos. É preciso, então, ver a
oralidade como uma atitude diante da realidade, ligada a uma visão de mundo e à
vontade de comunicação com o outro.
Espero, de verdade, que possamos dar voz à tradição indígena de nosso país;
que as histórias destes povos possam gerar respeito à riqueza da diversidade cultural
brasileira e que elas sejam, cada vez mais, contadas e escutadas por todos e para todos,
gerando mais compreensão e interação entre os povos.
Daniele Ramalho
Leituras Inspiradoras
oE u me lembro muito bem... Tanto o meu pai quanto a minha mãe me contavam
Ehistórias antes de eu dormir. As narrativas de meu pai, que era escritor, tinham
um sabor especial, pois eram em capítulos inventados por ele mesmo, recheados de
aventuras mirabolantes, que se sucediam a cada noite. Foi assim que iniciei meus
primeiros passos pelo fantástico mundo da contação de histórias.
Depois vieram os livros que despertaram em mim, desde cedo, a vontade de via-
jar. Mais tarde, trabalhei durante dois anos como professor-voluntário a serviço das
Nações Unidas na Guiné-Bissau, África. Ali, me encantei com as apresentações dos
31
griots e com a diversidade dos contos tradicionais africanos, tema de inspiração para
muitos de meus livros.
Essa experiência foi também importante para minha atuação como contador de
histórias e pesquisador da cultura oral afro-brasileira e africana.
Nos últimos anos, graças aos movimentos organizados e, sobretudo, depois da
lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e
afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, público e particular, a
literatura de raízes negras, nem sempre valorizada anteriormente, tem sido destaque
em nosso panorama editorial.
Também, pudera! Nós, brasileiros, somos frutos da união entre diversos povos e
crescemos convivendo com uma rica pluralidade de culturas.
Os versos da canção de um violeiro das barrancas do Rio São Francisco, em Minas
Gerais, resumem a questão:
Sou índio, sou branco, sou negro.
Eu sou brasileiro.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
34
DeusNumDé: o
dom da visão
[Edmilson Santini]
pressa”, passar, literalmente, ao largo da dita praça, mas, em vez disso, me vi atraído
de tal maneira pelo entoo da Cantiga (era uma Cantiga de Roda em tom de peditório,
acreditem), que pra lá fui levado a correr.
Quando me dei conta, estava de cabeça, juízo e tudo, enfiado no meio daquela
plateia que, mesmo compacta, me parecia uma imensidão humana, tamanha a simbo-
logia do acontecido no meio daquele círculo de expressões atentas: Um Cego-Trova-
dor. No impulso de quem tem a vivência de “rodar o chapéu, a cada função, perante o
respeitável público (no meu caso, rodo sempre o Folheto de Literatura de Cordel), fiz
zunir uma moeda no ar, que tilintou no miolo de um chapéu, que figurava no Centro
da Roda. No boca a boca de todos ali presentes, ouvi um “Viva! Viva a moeda da
sorte, que de longe acertou a boca do ganha-pão...”. Num gesto-meio-passe-de-mágica,
o cego fez calar o vozerio e suspendeu a cantoria. Cada um ali em volta fazia vez de
quem tinha uma história pra contar. Vendo no Cego uma História Viva em Pessoa,
não hesitei em dimensionar a importância do que ali chamei – lá entre meus botões
38 e pensamento – Teatro de Circunstância: aconteceu, virou diálogo. E um diálogo
comecei – meio prosa, meio verso –, perguntando como o Cego se chamava:
“Deusnumdé”! Respondeu ele. “Deus num quê”!? Saiu a exclamação, num coro
de muitas vozes. “Deus num deu olhos pra ver, mas deu o dom da visão”. O Cego
assim respondeu, em tom de improvisação. Em torno ouviu-se o estalar de mãos,
como se a praça inteira o aplaudisse de pé. No Centro da Roda – boca para o céu vira-
da – o chapéu num instante havia multiplicado os valores. Levado por certo encanta-
mento, no Cego quase me encostei. Olhando em seus olhos, vi que o Cego “me via
por dentro”. Situação de um sonho enriquecedor, da qual eu dou testemunho: ele era
eu, eu era ele e a Roda já era Outra. Um Mar de Encantaria fez vulto em meu pensa-
mento. E na Cadência do Verso de DeusNumDé tive a prova: o danado do Cego em
seu Universo Popular, nos abre os olhos para o lugar que ocupa, muitas vezes invisível,
nesta Ciranda de Histórias, no dia a dia a rodar...
Por meio do inconsciente – ciente do encanto ali vivido – me vi inteiro tomado pelo
zumbir sem fronteira da Tradição Oral. Logo, em vez de servir de guia, me vi guiado pela
voz de DeusNumDé, numa Viagem, eu diria, de Retorno ao Mundo do Maravilhoso.
Bem, na real, mesmo, àquela hora, encerrado o espetáculo acima citado, eu me
encaminhei foi direto pra casa, como o mais comum dos mortais. Foi assim que
me vi na Concreta Travessia da Avenida Brasil, à mercê de um trânsito emperrado,
repleto de arruídos, que meu pensamento voou, ligando o itinerário da Via Expressa
ao imaginário poético-viajante do Cego DeusNumDé. Estou ciente de que meu teste-
munho, a essa altura, vai tomando ares de metáfora errante, mas foi por meio dessa
errância que eu pude ver, em tempo real, por irreal que pareça, a entrada de Deus-
Edmilson Santini
NumDé, agora, na Praça do Reino Encantado: Lugar dos Contos Populares. Lá vi
DeusNumDé ser recebido ao som do Canto e Dança do Pastoril, Boi da Ressurreição,
Maracatu do Baque Virado, com baque solto na festa. Isso me abriu uma Terceira
Visão nos Sentidos, pois logo vi Meu Avô; que era ali um Velho Guardião de Muitas
Vozes, mantendo em constante renovação (narrador de bom guardado), entre outras,
as Histórias de Exemplos e Trancoso. Com DeusNumDé bem à vista, vi Meu Avô
trancando e abrindo as feições, lá de seu rosto – sorrindo ou enfezado – conforme
39
pedia o clima da história que estava contando, à beira do fogo, na Praça do Reino.
Velho narrador de ontem, como hoje, desempenhando seu papel sagrado.
A essa altura da viagem (concreta e imaginária) me ocorre dizer que, nos dias de
hoje, o contador de histórias, seja sua atuação por meio do verso ou da prosa, é um ser
essencial a uma sociedade que se vê necessitada em “dar um tempo ao tempo da poesia”.
Cruzando, enfim, um Terceiro Sinal Verde, antes de chegar em casa, vi Deus-
NumDé já transitando entre a Praça do Reino e a Praça da Pedra Medieval.
Assim que entrei em casa, liguei a televisão, direto no programa Narradores do
Tempo – Canal da Voz do Futuro. Quem eu vejo aparecer? DeusNumDé, lá desafi-
ando Homero. Não estando eu maluco – assim espero –, juro que isso eu vi suceder.
Coisa do mundo da tevê.
Partindo de um plano que se fechava nos dois, a tevê foi revelando uma grande
arena, onde se viam de gente antiga a modernosa... Ambiente de Encontro Celebrativo.
De repente, em plano médio, eu vi e reconheci: um Médium, ao seu lado uma
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Alma Viva do Teatro. Se não me falha a imagem, o Espírito Dionísius também vi. Vi
um Poeta mais atrás, só pela rima do olhar. Olha quantos entes da Criação Humana...
Logo ao lado vi um senhor que tinha pinta de palhaço. Era uma Praça povoada de
Porta-Vozes dos Saberes Populares. Vi a tevê fechar o plano de novo em Homero e
DeusNumDé. A peleja entre ambos alcançava seu clímax. Desenrolando o desfecho,
Homero desfiava lá um fuminho de rolo. A figura de seu rosto agora, do meu ponto
de vista, era, escrito, a de meu Avô.
Tevê voltou ao plano médio, e o poeta – reconhecido por mim – emendou contan-
do um Conto dos Dias de Hoje. Aí eu tive a certeza: espaço de contador de história é
espaço de precisão: vai onde é preciso ir. Nesse preciso momento, o cansaço se insinu-
ando, me dominou as pestanas, meus olhos foram deixando os Narradores no Ar...
Dia seguinte, as tantas vozes de um homem davam vez ao Teatro De Bonecos:
Era o início do Festival Nacional de Teatro, nas Ruas de Angra dos Reis, onde a Cia.
Chegança, do Maranhão foi chegando, já cantou pra guarnicê; e em pé sobre seu
40 Banquinho, entre ruas e sinais, vestido só de jornais, Dalmo Saraiva fazia vez de “O
Homem De Papel: Coberto de Notícia, sem Ler um Terço da Missa”. Num rito de
itinerância, prossegui ouvindo e vendo, entre tantas semelhanças de fala, as diferen-
ças na prosódia, nos sotaques... Seguindo minha abordagem, dei com a performance
da “Mulher Que Roda e Cai”. Entre a Mulher e o Cais, outras histórias ouvi. À Beira
do Mar de Angra, portanto a Praça do Porto, foi bonito de se ver: a Poética de Cordel
(Teatro de Precisão, Indo Onde é Preciso Ir, como eu já disse) fez a Ponte entre o Nar-
rado, o Vivido e o Cantado.
No rastro desse convívio da arte de contar-encenar com outras artes afins, dei
uma espichada de pernas, fui a becos e recantos, – que pareciam invisíveis aos olhos
programação oficial –, até me achar num picadeiro, bem na frente da igreja. Pen-
sei: Profano e Sagrado, numa alegre interação: Circo inteiro e ativo, compartilhando
acrobacias com as preces do sacristão. Mal pensei, fui avistando, lá noutra esquina
um caboclo. Vi logo que era cria do lugar: um pescador de palavras. Sua voz estava na
praça, mas apenas sussurrava uma história-para-dois. “Quem cochicha, o rabo espi-
cha”. Pensando assim, espichei o meu pescoço, meti o nariz entre os três (narrador e
seu público de dois): “Sou Seu Cochicha-Língua-Espicha!“ Ele a mim se apresentou.
E continuou contando sua história agora pra três. Pensei nessa modalidade: Público-
micro em meio à macro-visão de gente. Ideia só dele ou não, foi um jeito encontrado
de ser ouvido com atenção, valorizando, de verdade, cada palavra então falada. É nes-
sas pequenas grandes nuances, por entre ouvidos e praças, que se percebe: espaço do
contador de histórias nos dias atuais não se mede apenas pelo volume de público à
sua volta, mas também pelo conteúdo e boa qualidade que se imprime em seu contar.
Edmilson Santini
Já em pleno pôr do sol, um céu de plasticidade: Azul, vermelho, amarelo, suave-
mente mandou a estrela-guia alumiar a cidade, pro Cortejo das Linguagens. Assim
sendo: Do Homem de Papel ao Mímico, passando pelo Narrador-Para-Três, Mamu-
lengos, Cirandeiros... Até Mestre Vitalino, com Bonecos de Lampião e Maria Bonita,
acrescentaram pontos diversos na interação de contadores com outras artes. Desse
ponto de partida, ao som de tambores, cantos, danças, contos, etc. – por ruas, praças
e beira-mar o Cortejo circulou. Sendo o Ponto-de-Chegança o mesmo de onde par-
41
tira: Frente à igreja: lugar do Circo Armado. Cortejo chegou, fez-se a Roda, rodou-se,
então, o chapéu. Era o mesmo chapéu do começo dessa Jornada de Palavras.
Sem mais o que dizer, peço licença a Guimarães Rosa pra indagar: “Aqui, a
história acabada?”. Acaba é nada! A história é dada a se verter, virar outras, conforme
muda de voz ou de lugar. Toda história que se preza ser contada, guarda em si outras
versões. Falando nisso...
Lá Não vi foi DeusNumDé,
mas ele segue no ar,
contando, pra quem quiser
em seu mundo navegar
e contar, como puder,
a história que imaginar.
Meu Avô também não vi.
Não quis ele aparecer
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
42
Leituras Inspiradoras
Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberdade aprisionante do
espaço branco do papel, da imobilidade do corpo como máquina desejante, do silên-
cio imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo,
os contadores de história, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam
num delicado jogo de tensões.
Se o contador se dispuser a embaralhar a ordem de performatização dos textos e
construir a sua própria escolha, encontrará no vão do sentido a possibilidade de exer-
citar seus dons de bricoleur. Esse convite à trapaça, à invenção de um outro, tem um
forte aliado nos cenários imagéticos da cidade de nosso tempo. Imagens, textos e vozes
em dialogia e em rotação contínua. A liberdade, antes de tudo, é um jogo de seduções.
Acredito muito na potência da figura e da ação dos contadores diante da amnésia
imposta pelo capitalismo cognitivo para vender a memória como mercadoria. Há nos
contadores que erram pelas cidades um desejo de trazer do subsolo das reminiscên-
cias das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São griots e griotes
46 que resistem na contemporaneidade ao descaso com a história dos afetos e das nar-
rativas que a liberdade nos provoca.
Como tentar revelar as múltiplas faces da liberdade até agora? Como a contação
de histórias pode se transformar no lugar da resistência e de afirmação da precarie-
dade humana? Como os (e)leitores de nosso tempo lidam com a vontade que poten-
cializa o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópícos nos reservam?
Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas de desejos e dúvidas. Ler
em liberdade é o dispositivo possível de sua apreensão e entendimento.
c Muitas vidas, o
muitas vozes,
muitas histórias
[Júlio Diniz & Morandubetá]
o
Júlio Diniz – A palavra Morandubetá, o que significa?
Morandubetá – É uma palavra Tupi que significa “muitas histórias”.
Júlio Diniz – Como o grupo surgiu? Qual é a formação original? Houve pessoas que
entraram, ficaram um tempo e saíram?
Morandubetá – Em 1989 aconteceu no Rio de Janeiro um curso de contadores
de histórias com o grupo da Venezuela “En Cuentos y Encantos”, formado pela
venezuelana Isabel de los Ríos e o brasileiro Luiz Carlos Neves. Foram convida-
dos por Eliana Yunes que era Diretora da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro
49
Infantil e Juvenil, onde trabalhavam também Lúcia Fidalgo, Maraney Freire e Inês
Rocha. As quatro fizeram o curso e foram a semente do futuro grupo, mas ainda
não era o Morandubetá. Nesse meio tempo o Celso Sisto entrou para a FNLIJ,
como especialista da área de literatura, e se juntou ao grupo. Começamos a nos
reunir e contar histórias no Instituto Nazareth, um colégio dirigido por Regina
Yolanda que ficava na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Eliana participava da
equipe pedagógica e nos levou para lá. Ali nasceu o Morandubetá. Pouco depois
a Inês foi viver na França. E o grupo ficou composto por Eliana Yunes, Celso
Sisto, Maraney Freire e Lúcia Fidalgo. Então a Maraney saiu e chegou a Benita.
A formação que existe até hoje – Benita Prieto, Celso Sisto, Eliana Yunes e Lúcia
Fidalgo – começou em 1991. E o nome do grupo foi escolhido por causa do livro
Morandubetá, de Heitor Luiz Murat, da Editora Lê, uma colheita de diversas fábu-
las indígenas. Quando vimos o nome, falamos quase que ao mesmo tempo: mas
que nome interessante, Morandubetá! Uma palavra diferente. Que remete ao que
a gente quer... Homenagear os povos indígenas.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Júlio Diniz – Iluminar o Brasil pouco iluminado, deixá-lo vazar e brilhar, não é?
Morandubetá – Isso! É, tudo nasceu daí e assim! Foi muito... Bonito e mágico!
Júlio Diniz – E aí vocês começaram a fazer o quê em 91/92?
Morandubetá – Contávamos no projeto “Meu livro, meu companheiro”, da FNLIJ,
que acontecia no INCA – Instituto Nacional de Câncer, onde foi montada uma
sala com uma biblioteca chamada Bibliolândia, nome escolhido pelos frequen-
tadores. Nesse momento começamos também a viajar pelo Brasil para formar
contadores pelo Proler.
Júlio Diniz – Qual era o repertório? Era só para pacientes, para adultos e crianças?
Morandubetá – A sala e o repertório eram voltados para a literatura infantil e
juvenil, mas acabou virando um espaço de convivência de todos, porque nesse
momento também nascia no INCA um grupo de voluntários que estava sendo
formado para trabalhar com as crianças. Daí surgiu a ideia de que, além de contar,
poderíamos ministrar um curso de contador de histórias para esse grupo que teria
50
a possibilidade de difundir essa ação nas suas atividades. Nós também íamos às
enfermarias para contar, quando o paciente não podia se deslocar.
Júlio Diniz – Podemos dizer que antes dos doutores da alegria chegarem ao Rio de
Janeiro vocês já estavam lá e faziam esse trabalho?
Morandubetá – Sim! Com certeza! Nessa época inclusive começamos a pensar em
fazer essa ação num trabalho voluntário, a ideia de contar histórias para os enfer-
mos. Em 1995 fomos convidados para participar do projeto da Secretaria Muni-
cipal de Cultura Teatro é Vida, que era só com atores. Quando eles perceberam
que já havíamos feito isso no INCA, resolveram nos chamar. Então tivemos a
ideia de criar o projeto voluntário Cesta de Histórias que foi feito com o nosso
dinheiro em seis hospitais da rede pública. Compramos as cestas de vime, doa-
mos os livros, demos formação de contadores de histórias. Acabamos ganhando
uma Moção de apoio da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro por essa ação.
Foi uma bela surpresa!
Júlio Diniz – Como era ser um contador de histórias no início dos anos 90? Havia
já essa importância? Esse lugar? Esse reconhecimento? Vocês tiveram que respirar
fundo e desbravar essa floresta selvagem?
Morandubetá – A narração de histórias é algo milenar, ninguém inaugurou nada.
O que aconteceu refere-se ao surgimento e crescimento da narração urbana, que
efetivamente se reintroduziu na prática social do brasileiro. Começamos muito
timidamente, com muitos cuidados. Nós não saíamos dando oficina por aí,
vamos cheios de receios de usar, pois a palavra não existia. Mas Gregório nos
convenceu. É melhor falar de um jeito que todo mundo entenda. A língua portu-
guesa aguenta tudo isso. Ele define assim contação, ação de contar.
Júlio Diniz – Quando é que vocês deram um salto, ou seja, modificaram um pouco
o trajeto, se profissionalizaram e foram para o teatro? Já tive oportunidade de ver
o trabalho de vocês em vários esquemas diferentes. Até no palco do CCBB – Cen-
tro Cultural Banco do Brasil – aqui no Rio
Morandubetá – Fomos evoluindo sem perceber. A gente não tinha um plano.
Ocupávamos os espaços. Houve um fato importante que marcou o início de nossa
trajetória – o trabalho no Museu Histórico Nacional. A revista Veja fez uma maté-
ria e aí despertamos o interesse do público, da imprensa e dos gestores de cultura.
Passamos a ser chamados para projetos em várias instituições, nós fazíamos tudo
ao mesmo tempo.
Júlio Diniz – A partir daí, o que aconteceu?
52 Morandubetá – Naquele momento veio uma vontade de profissionalização. Decidi-
mos ter um logotipo, assessoria de imprensa, pensar em ter produtos, virar uma
microempresa. E decidimos sair da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,
para não parecer que pertencíamos à FNLIJ. Despedimo-nos com uma linda carta
que está lá nos arquivos da Fundação.
Júlio Diniz – A partir das vivências no Proler e no Leia Brasil, vocês formaram conta-
dores de história, é isso? Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse assunto.
Morandubetá – Percebemos que não daríamos conta de tudo, já que o Proler e o
Leia Brasil estavam crescendo por todos os cantos do país. Nessa época também
surge a Casa da Leitura em Laranjeiras que abre espaço para os contadores. A
Casa começa com a gente contando histórias porque ainda não havia a formação
continuada de grupos. Ministramos também cursos na PUC-Rio, Ler UERJ, uni-
versidades, SESC, SESI. Era tanto lugar, uma loucura saudável.
Júlio Diniz – Vou adaptar a frase do Millôr Fernandes que é muito boa para falar
desse aspecto. O Rio de Janeiro estava irreconhecivelmente inteligente naquele
momento. É isso?
Morandubetá – É isso mesmo! No início não havia muito público. Tudo acontecia
numa salinha. Levávamos nossos parentes e amigos para encher a sala. Depois o
público foi crescendo, tinha disputa... Tinha senha. Às vezes fazíamos duas ses-
sões no mesmo espaço. Todo o processo foi muito lindo. Tanto no CCBB quanto
na Casa da Leitura.
digital, da escrita eletrônica, mas ouvir uma história de viva voz, com a respiração
do contador, com o olhar do contador, é algo imbatível porque aproxima as pes-
soas. E as pessoas estão na verdade carentes de aproximação, de trocas pessoais.
Penso que precisamos investir não como uma forma de institucionalizar ou de
criar certas cerquinhas, em aspectos como a performática do contador de história,
a questão da voz, do corpo, que não tem que se confundir com o palco, com o
teatro. Como é que a gente transborda, transpira uma história? Isso merece um
estudo mais sistemático.
Lúcia Fidalgo – Há um problema hoje com a questão do repertório. A escolha dos
textos tem que ser ampliada porque os contadores infelizmente começaram nessa
onda de cópia, cópia, cópia, usando sempre as mesmas histórias. Devemos nos
preocupar bastante com isso. Estamos numa sociedade da informação. A gente
não tem que ter somente competência informacional para trabalhar com ela.
Eu acho que temos que ter competência informacional e emocional. Creio que
56 o papel do contador nisso funciona muito bem. Me preocupo muito com essa
questão do repertório, de formar repertórios novos pra gente não ficar repetidor,
como um papagaio. Então, só sendo leitor, não é?
Esta conversa com os participantes do grupo Morandubetá ocorreu na Cátedra
UNESCO de Leitura da PUC-Rio. Era uma segunda-feira ensolarada, e a vontade
de compartilhar experiências, relatos, sentimentos e lembranças nos aproximou
naquela manhã de céu azul e luz na alma. Eu desempenhei o difícil e ao mesmo
tempo prazeroso papel de mediador da conversa que contou com a presença de
Benita Prieto, Lúcia Fidalgo e Eliana Yunes. Como o Celso Sisto estava no sul do
Brasil, enviei por e-mail as questões para ele comentar. Suas observações foram
incorporadas a este bate-papo.
Impressões de uma o
contadora de histórias
– meu encontro com
a arte narrativa
[Bia Bedran]
o
“E
E
mbora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem...”
Assim a autora Clarissa Pinkola Estés encerra seu livro escrito no início dos anos
1990, O dom da história. Nesta obra ela pretende desvelar a amplitude do alcance das
narrativas orais através dos tempos e seu efeito de longa duração. Os componentes do
mundo mítico associados ao “feitiço libertador dos contos de fadas”, que se destina
a provocar uma sensação de felicidade, e ao acolhimento do conselho, têm a capaci-
dade de perdurar e coexistir num mundo técnico que corre cada dia mais em busca
do sentido para a vida. E do mesmo modo Walter Benjamin cita os elementos consti-
tutivos dos contos de fadas: “E se não morreram, vivem até hoje...”. 59
O estudo acerca do valor de longa duração dos contos oriundos das tradições
orais é tema recorrente na obra de Câmara Cascudo (1898-1986) desde a década de
1930. Especialmente em Literatura oral no Brasil, escrito entre 1945 e 1949, o autor nos
fornece dados relevantes sobre a atmosfera sagrada que envolve a prosa do narrador
e suas situações simbólicas apresentadas. Segundo ele, alguns segredos constituem as
técnicas da narrativa popular:
Os velhos irlandeses têm repugnância de contar estórias de dia porque traz infelicidade.
Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma cabaça ao nariz ou a mãe do narrador
transformar-se-á numa zebra selvagem. Os Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam
fulminados por um raio. Os Tenas, do Alasca, contam histórias de dia, mas o local deve
estar na mais profunda obscuridade. Essa interdição é a mesma em Portugal e Espanha,
decorrentemente para o continente americano. Quem conta estórias de dia cria rabo de
cotia. (CASCUDO, 1984, p. 228).
De fato, se recorrermos à memória de nossa infância, verificamos que talvez tenha
sido dentro da noite, na penumbra de um quarto, na proximidade aconchegante da
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Bia Bedran
ancestralidade e contemporaneidade. Portanto sempre haverá encantamento quando
alguém conta ou canta uma história, seja esta pessoa letrada ou não. A arte narrativa
se manifesta tanto no contador tradicional, cujas histórias foram criadas e recriadas
ao longo do tempo através da narração de sua experiência e de sua memória, quanto
no contador contemporâneo, que se instrumentaliza através da pesquisa, da leitura
61
e a insere na prática pedagógica. O professor contador de histórias promove em seu
cotidiano o fazer artístico das crianças, que passam a construir obras criativas a partir
da repercussão que as imagens poéticas das narrativas promovem dentro delas.
Um simples desenho ou uma pintura que transpõe através de formas, cores ou
texturas o que foi percebido de um momento específico narrado do conto, pode tor-
nar-se uma experiência significativa de aprendizagem, pois ali estão expressas a leitura
particular de cada indivíduo do mesmo fato objetivo da narrativa. A forma plástica
escolhida, pela criança ou pelo adulto, ao desenhar uma narrativa é uma apropriação
sua do significado objetivo do conto e sua consequente tradução subjetiva.
Esta leitura singular de cada um, expressa em desenhos tão diferentes entre si,
nos comprova a existência daquele “cinema mental” proposto por Ítalo Calvino,
que afirma ser impossível que os cenários imaginados pelos ouvintes de uma mesma
história possam ser semelhantes... E seguimos na esteira do conceito de Bachelard
acerca da relação íntima da imagem poética com o devaneio, pois o ouvinte de uma
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Bia Bedran
são narrados sem que o contexto psicológico seja imposto ao leitor ou ouvinte.
A imagem mais contundente que traduz a força ancestral que têm as narrativas
orais é cunhada por Benjamin:
Uma história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e
reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram
63
fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças
germinativas”. (BENJAMIN, 1994, p. 204).
Há meio século minha própria história está imbricada com a arte narrativa: num
primeiro e definitivo momento, como ouvinte de uma contadora, cantadeira e encan-
tadora mãe, e num período seguinte e até hoje, como uma amante das palavras conta-
das e cantadas propagadas pela estrada afora. Braguinha criou, na década de 1950, ao
adaptar a história de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault em música e versos:
“Pela estrada afora eu vou bem sozinha levar esses doces para a vovozinha...”. E desde
então eu sigo cantando e contando.
Mas eu não estou sozinha nesta estrada, onde as histórias são vaga-lumes que
sina-lizam com poesia, mistério e sabedoria os caminhos de todas as gentes e contam,
desde sempre, a história de nossa história no mundo. Muitos escritores, poetas, filóso-
fos, teóricos e artistas populares me ajudam a pensar o valor desta antiga arte milenar,
onde a palavra é indicadora de rumos passados, presentes e futuros, são unânimes em
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
relacionar a arte narrativa com a arte de viver. E todos eles precisam dos contadores de
histórias e dos cantadores para que a palavra se dirija alma adentro e possa repercutir
profundamente na forma de imagem poética. Letrados e não letrados leem o mundo e
contam suas histórias. É preciso contá-las para que o mundo possa ouvi-las. Onde desa-
parece a arte de narrar, também desaparece o dom de ouvir, já dizia Benjamin:
A narrativa mergulha a coisa na vida no narrador para em seguida retirá-la dele. Assim
se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do barro.
(BENJAMIN, 1994, p. 205)
Aí está a relevância das narrativas orais que se mantiveram vivas e germinativas
antes mesmo dos suportes que as pudessem registrar: a narrativa é uma forma arte-
sanal de comunicação que se prolonga e repercute, ao contrário da informação que
se esgota rapidamente. As narrativas estão imbricadas com a arte de viver. Portanto a
arte de narrar e o dom de ouvir se entrelaçam para que a maior aventura do homem
possa acontecer.
64
Leituras Inspiradoras
Bia Bedran
65
A terceira margem da cena o
[José Mauro Brant]
Outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele
tinha realizado ou não um movimento elegante; simplesmente viu a lua. O nome do
livro? O ator invisível. Sonho contar uma história em que eu, ao final, desapareça e só
reste, para o público, as imagens do conto.
Foi a paixão por essa generosa arte de fazer visível o invisível e meu amor pela pala-
vra dita, cantada, escrita que me fez ser contador de histórias. Contar histórias liber-
tou a minha voz das armadilhas do teatro e hoje ela está por aí, em bibliotecas, salas
de aula, hospitais, livros, CDs, e, é claro, e sempre, no meu lugar de origem, o palco.
Sonho com um teatro que volte a nascer de um impulso rapsódico. Do desejo de contar.
Contar histórias, pra mim, é sentir na pele a verdadeira função do oficio do ator.
É tocar a essência do próprio teatro.
Leituras Inspiradoras
70
u A porta aberta. Peter Brook. Civilização Brasileira, 2008.
u Contadores de Histórias: Oralidade, Narração Oral e Narração oral cênica. Francisco
Garzón Céspedes. In: O teatro dito infantil. Maria Helena Kühner (Org.). Cultura
em Movimento, 2003.
u O ator invisível. Yoshi Oida. Via Lettera, 2007.
u Introdução à poesia oral. Paul Zumthor. UFMG, 2010.
u Performance, recepção, leitura. Paul Zumthor. Cosac Naify, 2007.
u Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e o teatral. Luiz Arthur
Nunes. In: O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8, Número 9.
u O lugar das histórias(vídeo) In: Coleção Teatro. Volume 1. Fundação Joaquim Nabuco,
2010.
A voz quente do o
coração do rádio
[Gilka Girardello]
pelo cobertor, pra não incomodar as irmãs nas camas ao lado. Caçava as vozes dos
locutores dos primeiros programas de rock, ainda marginais naqueles tempos, pres-
sentindo as emoções que a cultura dos jovens guardava pra quem a fosse descobrindo.
Era revigorante a possibilidade de buscar e encontrar sozinha aqueles mundos, ao
sabor das excursões pelo dial. Intuir que milhares de outras meninas e meninos da
minha idade estavam ao mesmo tempo sozinhos em seus quartos, de ouvido nos
radinhos, escutando a mesma coisa, dava um arrepio na espinha, como o prenúncio
de uma revolução.
O rádio permite uma intimidade, uma presença tátil, um tipo de conspiração
narrativa entre quem fala e quem ouve. Ele envia pra longe a palavra encarnada e ao
mesmo tempo preserva a proximidade que a voz humana instaura, em sua condição
de corpo vivo. Afinal, “toda voz emana de um corpo, que permanece visível e palpável
enquanto ela é audível”, como diz Paul Zumthor. Por isso, o rádio faz com que cada
um dos milhares de ouvintes se sinta único, capaz de criar um rio de imagens mentais
74 para acompanhar o fluxo da fala do parceiro, aquele locutor que está no estúdio.
Que o rádio tem grande poder de animar a imaginação, é coisa já dita e redita. Em
uma pesquisa feita há alguns anos com centenas de crianças, por exemplo, pediram que
elas fizessem desenhos a partir de histórias ouvidas no rádio e na televisão. A versão
em rádio estimulou desenhos mais imaginativos: as crianças escolheram uma variedade
maior de conteúdos da história para representar graficamente, e incorporaram mais
conteúdos exteriores à história em seus desenhos1.
O apreço pelo rádio fez parte também da vida de um dos pensadores modernos
mais apaixonados pela imaginação e pela narrativa oral, Walter Benjamin. Entre 1929
e 1933, o grande teórico cultural escreveu e apresentou programas semanais de rádio
para crianças, em Berlim e Frankfurt. Nesses programas de vinte minutos, ele con-
tava, como se estivesse conversando ao pé da lareira, casos como o da destruição de
1. Pesquisa relatada em Patricia Marx Greenfield, Mind and Media: The effects of television, video games, and computers.
Harvard University Press, Cambridge, MA, 1984.
Pompeia pelo Vesúvio, o do terremoto de Lisboa, e muitas anedotas surpreendentes
como esta, que se passa em Nova Orleans, no tempo da Lei Seca:
Dois rapazes negros andam pelo corredor de um trem que acaba de parar, escondendo sob a
roupa frascos de diferentes formatos, onde se lê em letras graúdas: “chá gelado”. Um viajante
faz sinal a um dos vendedores e compra um dos frascos, pelo preço de um terno, escondendo-
o em seguida. Outro faz a mesma coisa, depois mais dez, vinte ou cinquenta. “Senhoras e
senhores”, imploram os rapazes, “esperem que o trem volte a andar antes de beberem seu
chá”. Todos piscam o olho em cumplicidade... O apito soa, o trem parte, e os passageiros
levam os frascos aos lábios. Mas o desapontamento logo nubla seus rostos, pois o que estão
bebendo é mesmo chá gelado2.
Gilka Girardello
Nem a TV nem a internet acabaram com o rádio, que se acomodou à primeira e
se acoplou à segunda, passando hoje muito bem, obrigado. No Brasil inteiro existem
hoje rádios nas escolas e comunidades, rádios de curto e longo alcance, rádios feitas
por crianças, por jovens, por velhos, rádios que falam todas as línguas que se fala no
Brasil, muito além do português. Tanto existem emissoras interativas on-line, quanto
emissoras captadas pela antena do radinho de pilha que o pedreiro escuta na obra, a
professora enquanto corrige provas em casa, e o motorista, no táxi.
75
Nem só de música, esporte e notícias se faz a programação dessas rádios. Em
muitos projetos, nas grandes cidades e vilarejos do interior, as vozes no rádio contam
histórias de vida, contos, poemas, fazem teatro com a textura da voz, experimentam
linguagens e temas contemporâneos. As histórias que o rádio conta abastecem de
emoções, arte e companhia os dias e noites das mulheres e dos homens em seus
momentos de intimidade ou solidão, falam aos românticos, aos visionários, e a todos
os que simplesmente buscam sintonizar seus semelhantes. O coração quente do rádio,
nos cantos das casas brasileiras, aquece o cotidiano de milhões, e é um dos nossos
grandes e nem sempre reconhecidos parceiros na aventura de povoar o cotidiano com
histórias contadas, e portanto com mais sentido na vida.
2 Em MEHLMAN, Jeffrey: Walter Benjamin for children: an essay on his radio years. Chicago: University of Chicago
Press, 1984, p. 8.
Leituras Inspiradoras
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
76
Contando na telinha o
[Augusto Pessôa]
Augusto Pessôa
Não tenho muito experiência com o veículo. Não sei bem como agir na frente de
uma câmera. Como ator, estou mais acostumado com o teatro. No teatro o gesto é
grande, a voz é empostada e precisa atingir a famosa velhinha surda que está sentada
na última fila. Como contador de histórias, dependendo do público, o processo é
semelhante ao do teatro. Com o diferencial que na contação de histórias o texto é
transmitido exclusivamente para o público.
81
E ainda tinha o problema das tais três câmeras. O tempo de mudança de uma
câmera para outra não tinha sido cronometrado. Resumindo: todas as adaptações
ultrapassaram o limite de dois minutos. Para meu alívio, eles gostaram do resultado
e não pediram para refazer as adaptações. Mas ainda tinha um problema: o olhar.
Quando você vira de uma câmera para a outra, o seu olho vai antes do que seu
rosto. Já imaginou? Nunca tinha pensado nisso! Precisava controlar meu olhar que,
teimoso, insistia em ir antes do meu rosto. E também tinha que imaginar algumas
figuras que seriam colocadas posteriormente pela computação gráfica. Como se eu
interagisse com essas figuras. Foi difícil. Principalmente porque não tinha um único
olhar para aquecer a contação. Somente o frio olho da câmera. Gravei em três dias.
Três manhãs para ser mais preciso. Não podia me mexer muito e tinha que estar com
uma “cara boa”. Essa era a pior parte. Como estava produzindo um espetáculo, tinha
muito trabalho. Várias vezes o diretor chamou a maquiagem para esconder minhas
olheiras. Realizei o trabalho e fiquei esperando o resultado final com os desenhos da
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
computação gráfica. Não tinha muita certeza de como ficaria. Vi alguns trechos, mas
não o resultado completo. Sinceramente, desconfiava de que não iria dar certo.
No início de outubro, quando já imaginava que os programas nem iam mais
passar, realizei um trabalho no estado da Bahia, na cidade de Feira de Santana. Um
dia estava no hotel e liguei a televisão. Por uma feliz coincidência o aparelho estava
ligado exatamente na tal emissora e... vi o programa! Era um tipo de trabalho que
eles chamam de “interprograma”. Não tinha um horário certo para passar. Era trans-
mitido durante a programação, entre os programas fixos. Tive a sorte de ligar e dar
de cara comigo na televisão contando uma história. Lembro da narrativa: João mais
Maria. Era um fragmento do conto popular. Terminada a transmissão a sensação foi
boa. Boa e estranha.
Diferente do que eu desconfiava, o trabalho funcionou. Mas de repente me dei
conta de que o programa seria transmitido para o Brasil todo. Durante um mês eu
entraria, sem pedir licença, na casa das pessoas, para contar uma história. Mas tive
82 uma satisfação: a história estava ali! Não plena, pois faltava, no momento em que o
trabalho foi gravado, a figura do ouvinte. O espectador viria depois e eu não podia
me relacionar com ele. Mas mesmo assim, de alguma forma, a história alcançou o
seu objetivo. A animação não era excessiva e estava ali para realçar o que era dito. A
estrela continuava a ser a narrativa.
O trabalho, que deveria durar apenas o mês de outubro, foi estendido. Um dia
recebi uma ligação da produção da emissora falando do sucesso do programa e per-
guntando se eu me incomodava que ele se estendesse por mais um mês. Aceitei. No
final de novembro nova ligação com pedido para estender o trabalho e assim foi. Os
programas ficaram no ar por quase cinco anos. Por causa de problemas financeiros
(a televisão era estatal, lembra?) dos vinte programas, só treze foram finalizados. Mas
foi um sucesso. Mesmo com o fim das transmissões, até hoje sou parado na rua por
desconhecidos que perguntam sobre o programa e quando ele vai retornar. Tive outras
experiências com a telinha contando ou lendo histórias. Mas, com certeza, a mais
bem sucedida até agora foi a dos “interprogramas”. Atribuo esse sucesso às histórias.
Ao poder que essas narrativas exercem e sempre exerceram sobre o ser humano. Inde-
pendentemente do formato, a história ainda consegue sobreviver e encantar.
Leituras Inspiradoras
Augusto Pessôa
u O folclore no Brasil. Basílio de Magalhães. Imprensa Nacional.
u Guardados do coração – memorial para contadores de histórias. Francisco
Gregório Filho. Amais.
u Literatura oral para a infância e a juventude. Henriqueta Lisboa. Peirópolis.
u Como um romance. Daniel Pennac. Rocco.
u Gramática da fantasia. Gianni Rodari. Summus. 83
u As raízes históricas do conto maravilhoso. Vladímir Propp. Martins Fontes.
u A arte de ler e contar histórias. Malba Tahan. Conquista.
Cinema: um griot cuja argila é o o
tempo e a estátua são os atores na
fogueira da sala escura
[Paulo Siqueira]
o
M eus avós eram da roça e eu passava todos os finais de semana ou férias lá. Me
Mlembro bem que minha avó realmente acreditava no Saci, assim como as pessoas
da região. Vejam bem, não era um folclore, as pessoas tinham visto, tinham tido ou
conheciam quem tivesse vivido alguma experiência com o Saci. É diferente dos adesi-
vos em carros do “eu acredito em duendes”. Não era uma questão de atitude, mas
uma realidade próxima. Meu avô nasceu em 1905, ele viu a cerca chegar ao nordeste,
e meus pais, que são de 1934, nasceram num país rural e participaram do processo
de urbanização do país. Hoje temos um Saci domesticado e tratado de forma lúdica,
85
não poderia ser diferente, vivemos num país moderno, urbano, virtual, digital e glo-
balizado. Para meus avós a escuridão do campo à noite, o som do vento, das corujas
piando no escuro, os insetos, as formas das árvores sob a lua, tudo isso possibilitava
uma sensação de obscuridade com relação à noite e aos entes que por ela corriam. A
noite urbana é diferente, cheia de luzes, sons de pessoas, carros, música, etc. Mas se
o Saci nos parece uma fantasia distante, por outro lado o E.T. de Varginha existe, ah
existe, sim! Existe porque eu conheço gente que viu o hospital cercado pelos soldados
da aeronáutica e que conhecem as meninas que os viram, lembra o segredo de Fátima,
né? Ou seja, tirando à parte a existência ou não desses mitos, a necessidade humana
de vivenciá-los ainda persiste. Graças a Deus! Por isso mantenho meu emprego. Mas
como se diz em física: na natureza nada se cria, nada se perde, o mito se transforma!
Se meu avô contava suas histórias de caçada de onça, se minha avó contava sobre o
cangaço e Sinhô Pereira, ou Neco Valõe, Lampião, Luiz Padre, Corisco... hoje, quan-
do vou às favelas fazer algum documentário, os meninos me contam das histórias
do Caveirão, do Bonde que invadiu tal comunidade, do traficante que enfrentou o
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Paulo Siqueira
dificilmente numa experiência coletiva num futuro próximo. Porém, temos recursos,
como apresentação do primeiro corte para uma plateia experimental, etc. Mas até se
chegar ao primeiro corte, já foram gastos milhões, portanto na compilação do roteiro,
onde os gastos são ainda pequenos, precisamos garantir o máximo de eficiência.
Os produtores de cinema procuram ficar antenados às necessidades da plateia em
potencial. Hoje em dia os filmes americanos sobre a guerra ao terrorismo, superam
87
em muito os sobre a guerra do Vietnã. No processo de elaboração do roteiro se bus-
cam bússolas em pensadores como Aristóteles, Syd Field, Gabriel García Márquez,
Christopher Vogler (o preferido dos roteiristas de hoje em dia, que na verdade adapta
Joseph Campbell para o cinema e que trabalha não somente a estrutura macrodra-
matúrgica temporal do roteiro, mas principalmente os arquétipos dos personagens e
da jornada mítica).
A partir do momento em que se inventa o trem, a questão do tempo para o
homem se torna fundamental. Percebe-se a importância do fuso horário, por exem-
plo. A velocidade de locomoção humana vai evoluindo e hoje, com a internet, temos
tempos simultâneos, onde um acionista da bolsa de valores no Brasil investe na bolsa
de Tókio on-line.
Segundo Hitchcock, que além do grande cineasta, foi um pensador teórico do
cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo
de montagem de um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do des-
montador da bomba, do mostrador de tempo, das vítimas, o som... estes cinco segun-
dos podem durar mais de um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem de tempo
de anos, se faz através de um corte de uma cena pra outra, numa fração de segundos.
Juntando todos estes pensadores, de Aristóteles a Vogler, muito me encanta o
conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psico-
logias dos personagens e do espectador.
Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o
cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São modelos que irradiam, em mão
única, o conteúdo ao espectador que só tem o poder de mudar de canal, ou sair da
sala, mas não pode interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso de
telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no
escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos
hipnotiza, né?), contando e ouvindo histórias, onde a via de interlocução é de mão
88 dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja de maneira mais agressiva, inter-
ferindo, emendando, contando também, ou de maneira mais sutil, com seu olhar,
sua reação ou sua concentração.
Quando fui realizar o filme Histórias me deparei com o seguinte problema: Como
fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imate-
rial? Porque num documentário sobre uma cidade, uma fábrica, ou uma pessoa, há o
objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos,
pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto,
pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo de imaginação
proposto. Uma peça de teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa
dá ao ouvinte o papel criador de imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhece-
dor teórico do assunto, afinal sou diretor de vídeo/cinema, o que sabia sobre contar
histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia
imaginar que alguém vivesse disso, ou estudasse o assunto com tanta profundidade.
Mãos à obra. Fui contratado, tinha que me virar. Primeira conclusão óbvia: eu
não estava realizando uma narrativa oral, eu estava realizando um filme. Graças a
Deus! Isso muda tudo. Era um filme sobre a narrativa oral, mas era um filme, com
suas regras próprias da cinegrafia, seus códigos e truques. Ah sim, não acreditem os
contadores que nós do cinema, só porque não temos o recurso presencial simultâneo
– o que permite ao ator teatral ou ao contador sentir a plateia e assim utilizar inter-
jeições, mis-en-scènes, improvisações, olhares e até (e por que não?) modificar a história
– não somos capazes de manipular (no bom sentido, né gente?) o nosso público.
Senti-lo e com ele interagir.
O meu primeiro privilégio enquanto diretor é justamente o de ser o espectador
Paulo Siqueira
número um do meu trabalho. Enquanto estou editando o filme, eu sou também
plateia. Gente, não esqueçamos que o meu objeto é totalmente diferente do de um
narrador oral. A minha matéria-prima são o tempo, as imagens e os sons que eu
produzo. Imagens captadas por uma câmera, onde eu escolho o enquadramento, o
que significa que são imagens descritivas mas também críticas da cena. É como se
eu escrevesse um livro, onde eu leio e releio o quanto for necessário ou possível (há
89
um fator econômico limitador envolvido no processo) a minha obra. Mas se a escrita
é um ato individual (como conclui Boniface Ofogo) no filme Histórias, o cinema é
uma experiência coletiva, o que o difere em muito da televisão, do computador, da
leitura (se alguém lê em voz alta para uma plateia, o livro deixa de ser o veículo de
interlocução, este papel cabe ao leitor, sendo o livro ali, sua matéria-prima). O cinema
contém em si um processo ritualístico e também da oferta do mito. Uma plateia ci-
nematográfica respira junto, criam-se laços de sintonia, onde, quando um ri, contagia
os outros, é como num berçário, onde um bebê dispara o choro coletivo. A sala de
cinema remete às fogueiras do passado, toda escura, as chamas bruxuleiam da tela,
pra onde se voltam todas as atenções. Esse elemento é fundamental na compilação de
um roteiro que vai pro cinema ou pra televisão. Nesta última, a atenção é disputada
com a tensão do dedo sobre o controle remoto, o parente na cozinha, o vizinho na
janela, o telefone que toca, a criança que brinca, o cachorro que late, etc.
Portanto, o cinema retoma o ritual da fogueira, (Opa! Olha um ponto de conexão
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Paulo Siqueira
Assim procurei que o filme Histórias cumprisse os seus papéis: o papel de sociabi-
lidade, levando gente ao cinema, o papel de trazer o mito e os arquétipos através dos
personagens narrados, o papel de discutir o tema do contar histórias, seja através da
narração, da literatura, de educar ao esclarecer sobre o assunto, o papel de divulgar o
assunto, de seduzir para “a causa”, de divertir e entreter.
Cheguei à seguinte bela e triste conclusão: a tradição oral tem sua maior força
91
onde é sua maior fraqueza, pois quando uma pessoa morre, leva consigo seu universo
de imaginação e uma biblioteca se queima aqui na Terra. Aí, não há livro que registre,
vídeo, filme... Talvez, a partir da captação audiovisual eu consiga reter um pouco mais
de seu jeito ou interpretação do que através da escrita, mas seu universo interior,
ainda não há técnica capaz de preservar.
Leituras Inspiradoras
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
92
Blog, uma janela para o mundo o
[Marcio Allemand]
oE u conto histórias desde muito moleque, se bem que custei a me dar conta disto.
ELembro que costumava deixar minha prima Mônica intrigada e de boca aberta
com tantas invencionices que saíam da minha mente pra lá de fértil. Afinal eu era o
primo mais novo, mas nestas horas a diferença de idade pouco importava. Na verdade
eu era só uma criança que não parava de pensar um segundo sequer, observava tudo
e a todos, criava as situações mais absurdas e tinha sempre uma ideia nova na cabeça.
Minhas tias diziam que eu gostava de inventar moda. Concordo. Por outro lado, tenho
um amigo que diz que eu tenho a mente voltada para o mal. Discordo totalmente.
95
Com os amigos da rua em que eu morava, no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro,
não era diferente. Eu era o que se pode chamar de arteiro. Não que eu fosse um
moleque levado, agitado, daqueles que não parava quieto. Muito pelo contrário. Mas
eu gostava de inventar arte e volta e meia deixava a vizinhança de cabelo em pé.
Até hoje nunca descobriram quem realmente jogava ovos na casa da vila ao lado do
meu prédio. Se desconfiarem de mim, continuarei negando. Já o caso do açougue,
este todos souberam. Houve também uma época em que as meninas da minha rua
começaram a receber cartas anônimas. Eram cartas onde eu me declarava apaixo-
nado, cheias de versinhos simples e rimas baratas. Eu me divertia mesmo era vendo
a cara das mães das meninas que, ao receberem as tais cartas, desciam para tentar
adivinhar quem seria o autor desta ou daquela. Muito provavelmente eu fui o respon-
sável pela maioria delas. Ou de todas, sei lá. Mas eu era precavido. Em meio aos versos
e rimas, escrevia um “apaichonado“, assim com ch mesmo, e todas as vítimas acaba-
vam desconfiando de um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas
carregava a má fama de ter uma certa dificuldade com a nossa ortografia. As meninas
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu
não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo.
Anos mais tarde, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio –
cobrava para escrever cartas de amor para as namoradas de alguns amigos meus. Não
cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verdade eu nem
gostava de escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O
engraçado foi quando uma das namoradas de um destes amigos foi estudar no mesmo
colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar
no fundo da sala. Não deixava a menina se relacionar com ninguém e parou de falar
comigo. Quase um Cyrano de Bergerac.
Ao mesmo tempo que escrevia cartas de amor para a minha namorada ou para as
namoradas dos amigos, eu também gostava de escrever poesias e pequenas histórias.
Até hoje guardo com carinho um caderno com meus primeiros escritos. Ganhei da
Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado
96 conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor de
laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este caderno acompanhou toda a minha
trajetória na tentativa de me tornar escritor e aprendiz de poeta. Ainda não existia
internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e de difícil
acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida
cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acom-
panharmos a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como
disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios de comunicação, a linguagem,
a oralidade, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda
quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo caderno.
Durante muitos anos este caderno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da
sua existência. Ficava escondido. Só na faculdade resolvi revelar que ele existia e tudo
o que estava ali escrito virou material de um trabalho que tive de entregar num dos
primeiros períodos. Tirei dez e minha autoestima foi às alturas. Meus amigos também
gostaram e para muitos deles foi uma surpresa saber que eu escrevia poesias. E escre-
via no meu caderno. Computadores ainda eram raros.
Lá se vão quase duas décadas e desde então eu perdi a conta das poesias e das
histórias que escrevi em todos estes anos. Formado em jornalismo, já fiz de tudo na
área da comunicação social. Hoje sou repórter de um grande jornal, mas já experi-
mentei o audiovisual, fiz uma centena de vídeos institucionais, alguns curtas-metra-
gens, sabe-se lá quantos roteiros e um documentário que me levou a Cuba. Foi com
este documentário, por sinal, que pude conhecer mais de perto o universo dos conta-
dores de histórias e pude me dar conta da importância da tradição oral para o desen-
Marcio Allemand
volvimento da humanidade. Entre as poucas certezas que eu tenho nesta vida, uma é
que é primordial preservar nossas histórias. E contá-las a quem quer que seja. Porque
uma boa história faz bem para todo mundo.
Atualmente mantenho um blog chamado “Eu sei cozinhar” (www.euseicozinhar.
blogspot.com), onde as minhas poesias, memórias e os fatos do cotidiano servem de
ingredientes para incrementar a receita do que eu escrevo. Se a cozinha é lugar de
experimentar novas receitas, o meu blog é meu lugar de experimentação. Eu tenho
97
a sorte de ter alguns leitores fiéis, ou seguidores, como são conhecidos os leitores de
blog, que fazem lá seus comentários, sejam críticas ou elogios. É uma ferramenta que
me deu novo fôlego e estímulo para continuar a escrever. Se antes o meu caderno
ficava escondido, fechado numa gaveta, meu blog é literalmente um livro aberto.
Qualquer um pode ler, esteja onde estiver.
E isso me fascina na comunicação virtual. É um terreno fértil e promissor, pois
nada mais estimulante do que saber que seus textos, suas poesias, suas histórias, estão
na rede e que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo pode ter acesso a elas. E
me fascina mais ainda poder interagir com estas pessoas, trocar ideias, fazer amigos
do outro lado do mundo e então perceber que esta é a verdadeira globalização, a glo-
balização das palavras e da perpetuação das histórias.
Nestas horas eu volto ao caderno laranja de capa dura que ficava escondido. Era o
meu maior segredo e só eu sabia o que nele estava escrito. Eu era o meu único leitor
e foi assim durante muitos anos. Até que a tal professora mandasse que seus alunos
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
u We’ve got blog: how weblogs are changing our culture. Rebecca Blood. Perseus
Publishing.
u Blog: understanding the information reformation that’s changing your world.
Hugh Hewitt. Paperback.
99
Paiquerê Piquiri Fiietó, o
um experimento com
as linguagens
[Cléo Busatto]
contador do tempo de agora, se passaram séculos. Porém, o que sustenta essas ações é
a história que, enquanto sujeito, engendra o encantamento necessário para nos emo-
cionar. E na essência, a palavra que desperta a memória, reaviva lembranças e afetos,
propõe, instiga, efetiva vivências.
O século XXI é assim. Sugere a hibridez das linguagens. Em Paiquerê Piquiri Fiietó
foi assim. O presencial se fundia ao digital e nos mostrava como duas linguagens
distantes no tempo podiam gerar uma terceira, que trazia consigo a marca da contem-
poraneidade. Atuei na interface entre a arte e as novas tecnologias. Ao mesmo tempo
em que me utilizei de sofisticados recursos digitais, me apropriei da velha arte de con-
tar histórias, técnica ancestral que chega ao século XXI agregada a valores estéticos,
significados e significantes distintos. É dessa forma que em cena ocorreu um diálogo,
em tempo real, entre o narrador presencial e o narrador virtual.
Ora, se durante a contação presencial, o espectador se vê envolvido pelos senti-
mentos suscitados pelo sujeito-contador, na contação digital há um distanciamento
102 que permite ao sujeito-ouvinte comentar a ação e senti-la sob outro ângulo, não
menos envolvente, apenas distinto. Pensar a narração oral de histórias no século XXI
é pensar nos meios disponíveis para que se dê a fruição desse conto. Supõe a reflexão
sobre novas mídias e sobre o conceito de arte interativa. É de se considerar que a cri-
ança da atualidade encontra-se envolvida num imaginário construído por produções
que utilizam tecnologia de ponta e que chegam até ela através da internet, softwares,
blogs, games, redes de bate-papo. São os novos códigos geradores de poéticas. Novas
leituras e outros tantos sentidos. A hibridez do meio e dos processos expondo dife-
rentes significações.
E no Paiquerê Piquiri Fiietó o espetáculo foi se fazendo, devagarinho, apresentando
um personagem aqui, uma ação cênica acolá, revelando como a linguagem teatral
pode dialogar com a digital. A atriz cedia lugar à contadora de histórias que, de
posse da palavra, apenas sugeria e apresentava os personagens e as ações. Não mais
representava um outro. Enquanto isso, nos espaços de projeções (três bolas de dife-
rentes tamanhos e dispostas numa diagonal direção frente-fundo do palco) surgiam
imagens, como se fossem faíscas da memória ficcional dos personagens que falavam
no palco: a narradora, o xamã, a criança, a velha, a gralha branca. As imagens intera-
giam com a narradora, as mãos que ocupavam o primeiro plano na tela era um corpo
expressivo em cena. Num exercício lúdico, eu, autora, atriz-narradora, me permitia
viver essas criaturas e oferecia meu corpo e minha voz para que os personagens se
materializassem, consciente de que, estivesse a contadora no palco ou na tela do com-
putador, era ela, a palavra falada, a palavra querida, a palavra revelada que criava a
história, fundava a magia e fazia um outro mundo acontecer.
Cléo Busatto
Leituras Inspiradoras
oA ristóteles ensina em sua POÉTICA que uma história tem início, meio e fim. Todas as par-
Ates igualmente importantes para a representação da ação. Devemos lembrar, porém,
que todo ponto de chegada é novo ponto de partida. E nos caminhos da vida, histórias
se entrelaçam, como neste texto, escrito a quatro mãos. Quem começa é o Carlos.
Em minha jornada, a estrada acadêmica que percorri foi talvez pouco usual,
com uma graduação em Administração, um mestrado em Design e um doutorado
em Letras (Literatura). Há, porém, um elemento em comum, são todas áreas que se
propõe a serem interdisciplinares, da prática administrativa à práxis estética educativa 105
do Design Didático ao saber com sabor da Literatura. É, pois, um sujeito mestiço que
vos fala pela escrita. Biologicamente, descendendo pela mãe de russos e pelo pai de
negros e índios. Culturalmente, carioca de nascimento e criação, filho de pai paulista
do interior e de mãe americana, mas sem inglês do berço devido à influência da avó
paterna, a língua materna da mãe foi aprendida fora do lar para ao lar retornar. A mes-
tiçagem é então assumida como posição, mais que condição, nesta vivência escrita.
Ao viver acadêmico, soma-se um viver prático desde 1992 escrevendo, publicando
e divulgando os Role-Playing Games (RPG) como livros de narrativa para o entreteni-
mento, tendo como primeira obra o RPG Desafio dos bandeirantes, primeiro RPG a
abordar a história, cultura e folclore do Brasil. Em 1998, comecei a jornada de apli-
cação do RPG à educação em escolas de Ensino Fundamental, principalmente para
História e Geografia. O retorno à academia se deu em 2002 e 2003 com o mestrado
em Design, utilizando histórias interativas para auxiliar crianças surdas a adquirir por-
tuguês oral e escrito, além de desenvolverem criatividade. O doutorado em Literatura
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
val Caymmi. Ouvíamos o disco e ele explicava. Lembro-me da tristeza poética daquele
momento quando descobri que o homem morria no mar. Tristeza boa de sentir.
O pai de meu pai era o rei das histórias, só que com H maiúsculo. Era um grande
historiador e contava para nós a história do nosso país. Mas não era de um jeito chato
ou didático, nada disso! Aos domingos os netos reuniam-se na casa desses avós. Era
uma casa de três andares. No último ficava a biblioteca do Vovô Meco. Tinha mais de
não sei quantos mil livros. Uma delícia aquele cheiro! Meu avô mandava encadernar
todos os livros e colocar o seu Ex Libris. Às vezes as histórias vinham no meio da con-
versa, às vezes na dúvida de algum primo que estava estudando determinado assunto.
O vovô contava os episódios de nossa História como se tivesse participado de todos
os fatos. Era um ótimo contador de histórias!
Minha avó Gilda, mãe do meu pai, me ensinou a fazer crochê. Era muito cari-
nhosa e seu talento eram os doces. Que eu adorava comer, mas fazer... Este já não era
meu forte. Ela me apresentou Agatha Christie e seu indefectível Monsieur Hercule
116 Poirot, de quem eu fiquei fã. Vovó tinha a coleção completa. Minha adolescência foi
recheada desse tipo de literatura, adorava Arsène Lupin, um personagem tipo ladrão
de casacas. Este foi meu pai que me apresentou.
Em casa, almoçávamos e jantávamos quase sempre juntos e nesses momentos con-
versávamos bastante. Não havia TV na sala e tínhamos tempo de trocar ideias.
Tornei-me uma boa leitora. Com nove anos elegi como meu preferido Os colegas,
da Lygia Bojunga Nunes, que li nove vezes seguidas... Chegava ao fim, virava para a
primeira página e começava de novo. (Coincidência os nove anos e as nove vezes...)
Depois me apaixonei pela A fada que tinha idéias, da Fernanda Lopes de Almeida! Eu
queria ser a Clara Luz!
Meus pais sempre nos levaram para ver peças de teatro. Vi todas as montagens do
Tablado, do Grupo Navegando, do Ilo Krugli... Fui aluna do Ilo aos sete anos, numa
escola que ele tinha no Rio de Janeiro, chamada NAC (Núcleo de Artes Criativas),
depois, na minha adolescência, fui aluna da Maria Clara Machado, no Tablado. Já
querendo fazer teatro como profissão.
Meu mundo simbólico foi incessantemente alimentado e eu aproveitei cada gota disso.
Hoje, quando dou aulas sobre “como contar histórias”, costumo conversar com os
alunos e pergunto sobre suas experiências.
Constato que é uma benção que de vez em quando falte energia elétrica, pois na
maioria das vezes os depoimentos se referem às historias contadas nesses momentos.
A família se reúne em volta de uma vela e pronto! Que maravilha! Conversam, con-
tam fatos, histórias, memórias...
Hoje são olhos grudados em telas.
Leituras Inspiradoras
o
Q uando eu era criança, na casa da minha avó, tínhamos o hábito de sentar na
Qcalçada na “boca da noite”, para ouvir histórias. Era assim todos os dias, ali se
reuniam meus tios, tias, meus pais e minha avó paterna. E se preparavam depois do
jantar, sentados em cadeiras de couro de bode, para ouvir uma boa prosa. O terreiro
era de barro batido branco e, em noite de lua, tudo ficava claro ao redor da casa.
Ali surgia um novo mundo na minha cabeça. Distante daquela realidade difícil do
sertão, da falta de inverno e muita carestia. A roda de histórias na casa da minha avó,
a Dona Canela, era o momento de lazer de toda a família.
121
Chegado o meu tempo de escola, não me lembro de ter ouvido histórias na sala
de aula, acho que histórias a gente já tinha em casa, então a professora se preocupava
com outros conteúdos pedagógicos, além de ensinar a ler, escrever e fazer somas.
Reconheço que se tratava de uma escola pequenina, mas o rosto gordo da mestra eu
ainda lembro.
Observo que nos últimos vinte anos as histórias foram saindo dos lares e aos pou-
cos foram invadindo as escolas, ganhando a voz do professor. Hoje reconheço vozes
que tecem o imaginário, o lúdico e o literário na sala de aula. São as novas metas
educacionais. As promoções do livro, da leitura e da literatura fazem parte de novos
parâmetros, e na escola surge o professor encantador, aquele que prepara histórias deli-
ciosas para os seus alunos como se fossem biscoitos. O forno desta nova educação é
a memória do professor, a imaginação onde cada vez mais crianças e adolescentes são
convidados a sonharem os mundos que moram nos livros.
Nós, educadores e pais, sabemos que tem histórias de todo tipo e para qualquer
momento, com personagens e enredos diferentes. Tem aquelas para dormir, e se cenário
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
é um pai contando um conto para uma menina de oito anos na cabeceira de sua cama,
pode ser um conto de fadas; se um outro pai está com o filho na esteira na aldeia pode
ser uma lenda, mas se o cenário for de uma mãe sertaneja balançando o filho na rede
deve ser um causo de boi assombrado, deve ser assim ainda em alguns destes lares.
E qual é a voz da escola?
Os contos de fadas me parecem ainda favoritos, pois muitos professores foram
alimentados com eles, e na verdade são contos maravilhosos. Mas chega aquela hora
que o professor encantador de crianças, de tanto trabalhar com as mesmas histórias e
livros, cansa um pouco das princesas e príncipes, olhando com bons olhos para novas
histórias de autores bem vivinhos e até próximos da escola e da realidade brasileira.
Atualmente a contação de histórias na sala de aula é igualmente literária como
no passado, mas hoje utilizamos textos autorais. Antes no lar contavam-se histórias
populares, “causos” de domínio público onde ninguém lembrava quem era o autor.
Hoje os contos na escola, nos quais se propõe trabalhar a leitura, têm autores que são
122 bem conhecidos e isto é muito bom.
Aquelas vozes da professora impregnadas de literatura começam a aprender mui-
tos outros contos, às vezes um livro por semana, criamos assim a mulher-livro, ou
homem-livro, como queiram. Há entre os professores um esforço em preparar boas
histórias e colocar o universo do livro e da literatura, obras da literatura infantojuve-
nil de boa qualidade na escola.
É claro que estamos falando da prática da professora narradora, aquela que dá voz
às histórias e toda a escola a reconhece.
Mas temos práticas ditas de contação de histórias como a manipulação de bone-
cos em tendas, ou detrás da mesa, às vezes uma televisão artesanal para passar uma
história, isto é arte sim, mas não acredito que seja realmente o que se propõem. É
preciso dizer que o contador de histórias pode até usar alguns elementos para contar
um conto, música, outras interferências, ou nada, mas é bom lembrar que o mais
importante é o que está dentro dele, guardado na sua memória, as histórias.
Veja o caso onde apresento uma professora e ela tem uma colega vizinha da sua
sala que não conta histórias para sua turma de educação infantil, é uma professo-
ra dedicada, brinca, canta e assobia, mas não conta histórias para suas crianças de
quatro e cinco anos. Quando chega a metade da tarde os seus alunos olham para a
sala em frente que às vezes dá até para ver a professora que eles chamam de Kaka, e
ficam apontando e balbuciando − história. É para a sala ao lado que sua professora e
outras levam suas crianças para ouvir uma professora enfeitiçadora.
Outra professora relatou-me que de tanto contar histórias na sala e devido a seu
desempenho é convidada para abrir eventos para toda a escola. O gosto pelas histórias
dos seus trinta alunos de quatro e cinco anos é o bastante para os mesmos ficarem
tentando encontrar, no cesto de livros do canto da sala, novas ou velhas histórias para
Almir Mota
que ela as conte. E se ela ocultar a palavra, desandam a contarem tudo de novo.
Nota-se que em salas de aula onde as crianças estão sempre ouvindo histórias,
elas são também, frequentemente as mais expressivas, falantes. Claro que existem as
salas de aula onde não tem sessões de contos, mas sim de leituras, isto não é ruim.
Leitura e contação de histórias contribuem juntas para o mesmo objetivo de educar
123
e entreter, criando mundos para pequenos seres que no geral só conhecem a sala de
aula e a sua casa. Cada Floresta, fadas ou piratas, na voz da professora são pedaços de
mundos e muita aventura.
É verdade, às vezes fazemos atividades que não sabemos ao certo como realizamos,
mas, no fundo, sabemos que dá certo, pois identificamos resultados felizes nas crian-
ças, que “acham” os contos bem contados em livros coloridos, cheio de imagens, do
qual se apossam e não largam por nada, até ser contado novamente ou surgir uma
nova história contada pela professora.
No projeto que coordeno no Ceará, uma professora disse o seguinte sobre uma
criança que estava contando histórias para outras crianças, se apresentando na sua
escola e outras do seu bairro e vizinhança: “Ele é outro menino, realiza as tarefas
com mais entusiasmo e participa de tudo na sala.” A professora estava falando de um
menino tímido, com problemas de fala, era assim, pois agora não erra mais as palavras
e nem troca mais.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Qual a mágica disto? Por que a voz da professora encanta tanto as crianças?
Seria alguma semelhança com a voz da mãe. A voz que escutamos antes de dormir?
Realmente eu não sei. Como pai, sempre contei histórias para o meu filho e ele
era muito pequeno quando conheceu certos contos. Atualmente engajado no mesmo
projeto cultural citado acima, Casa do Conto, ele busca livros que já tinha ouvido,
talvez sem lembrar daquelas histórias e ele conta para outras crianças, é como se uma
história que ouvimos carregássemos para sempre, vamos dizer que seja assim. Então é
melhor capricharmos em boas narrativas, pois nós seguiremos, e eles ficam.
Há muitas vozes na escola e precisamos primar para a realização de nossa intenção,
ou seja, vamos narrar contos e só isto. Os grandes enfeites musicais e produções vamos
deixar para os outros contadores que não têm plateia como você, que tem seus alunos
que lhe adoram e seguem seus passos. Os outros contadores de fora da escola têm que se
matar de estudar, ensaiar e esperar o público para realizar sua tarefa, mas isto para você,
professora contadora de histórias é moleza, faz parte do seu cotidiano escolar.
124 A sua voz, professora, e aqui faço questão de escrever professora, para fazer justiça
à grande maioria de mulheres que educam neste Brasil, sua voz faz a diferença para
estes meninos e meninas que buscam nela nada mais que um aconchego, às vezes não
encontrado no lar.
Aqui a nossa intenção, acredito, não é oferecer métodos para quem já pega no
batente todo dia como vocês, devo lembrar que é muito bom contar histórias quando:
‘ O livro que lemos, gostamos tanto que poderíamos contar na mesma hora;
‘ É um autor novo na sala de aula, e as crianças ainda não o conhecem;
‘ Crie dias diferentes na escola, onde seus alunos e os demais realizem uma mara-
tona de histórias;
‘ Se você gosta, fantasie-se, receba as crianças com um figurino de bruxa ou fada;
‘ Ou não realize nenhuma das alternativas anteriores e narre ótimas histórias.
O resto você sabe fazer. Como diz um conto dinamarquês: “Tudo que você faz é
sempre bem feito”.
Leituras Inspiradoras
Almir Mota
125
Bibliotecas: o
vozes silenciadas?
[Nanci Gonçalves da Nóbrega]
resgate da própria arte de narrar. Traz à tona a potência das histórias que se prendem
ao imaginário popular, à memória coletiva; narrativas que constituem/são constituí-
das (como) nossa reserva simbólica. As que são insumo e produção de nossos acervos
pessoais e coletivos.
Assim, neste novo olhar, mais ampliado, a temática do imaginário nos auxilia a
compreender sobre a existência de uma base poética da mente, como nos ensina Hillman,
assim como sobre a dimensão fantástica da vida cotidiana, recriada pelas palavras de
Certeau, e é evidência do repertório simbólico de toda sociedade, desde a tradicional,
até as sociedades complexas da atualidade, conforme Durand. Nada mais incentivador
para o homem contemporâneo, “oco de sentidos” no dizer de Fernando Pessoa.
Nesta era homogeneizante, a Arte acontece como ponto de mutação, como ato
micropolítico de transformação. Assim, dispositivos ou artefatos artísticos, se assim me
posso expressar, em oposição a dispositivos de armazenamento será o mote para uma
ação relacionada aos acervos dentro de uma dinamização que é anima ação (ação de
130 alma). Dioniso integrado a Apolo, se me faço entender. Pois afinal somos homo sapi-
ens, homo faber e homo ludens, todos ao mesmo tempo.
Nesse sentido, valorizar as imagens significativas, singularizá-las enquanto movi-
mentos singulares e coletivos possuidores de valores para a alma, diz de uma dimen-
são psíquica e planetária e cósmica para este novo espírito pedagógico veiculado/
veiculador das imagens, do imaginário, pois nele compreendo a ética como funda-
mento capital. O primordial aqui é desenvolver uma metodologia da invenção, do
reencantamento, pois precisamos estar grávidos para poder criar. Assim, penso ser o
papel da Biblioteca emprenhar os leitores de poemas, de filmes, de sonhos, desejos,
risos, dores, imagens significativas, de vozes que ressoam no mais profundo de cada
um. Povoar o imaginário, mas não para a domesticação da imagem – as simplificações
deformantes das imagens, das narrativas; a preocupação em “dosar” a Fantasia; a
subnutrição do imaginário seria exatamente o contrário desta didática da invenção.
O que aqui se diz é da Arte como ato ético-político de transformação. Ética e Estética
juntas no quefazer com os acervos.
Desta maneira, em nossos acervos, cada vez mais espaço às narrativas como estra-
tégias de autocriação. As narrativas que (se) compõem (a partir de) imagens singu-
larizadas, num movimento constante de (re) construção. Formas estéticas e vitais de
organização, são potência, elas próprias, para a provocação e o conhecimento. São
como instrumentos, ou brechas, para nossos universos interno e externo. Pois com
1. Nos palimpsestos, a reescrita era feita por medida de economia: raspava-se no couro, no pergaminho as marcas dei-
xadas do texto primeiro, para usar de novo o suporte onde estivera a escrita anterior. Aqui não me refiro ao objetivo
econômico, mas ao fazer e refazer necessário, constante.
como possíveis itens de elaboração alguns pontos-chave, tais como aqueles que utilizo
em minha vivência com as bibliotecas e seus leitores: a) um grande desejo de transfor-
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
oE ra uma vez, nos tempos das andanças do Morandubetá pelo Brasil afora, no
Efinal do século XX, mais precisamente no ano de 1993, conduzidos pela nave mãe
do Módulo Zero, comandada pelo Proler, no meio de suas inúmeras manobras fan-
tásticas, fantasiosas, intrigantes e sedutoras de leitores, esta nave maravilhosa acabou
por aterrizar nas terras do Cerrado Goiano, atraindo professores, atores e agentes cul-
turais vinculados a várias instituições e dentre eles três professoras da Universidade
Federal de Goiás, das quais duas eram vinculadas ao Centro de Ensino e Pesquisa
Aplicada a Educação (CEPAE/UFG).
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É importante dizer que durante o contato imediato estabelecido entre estas três
professoras e os tripulantes da nave mãe módulo zero, as duas professoras do CEPAE/
UFG foram contaminadas por um micro-organismo poderosíssimo que as tomou e as
transformou de tal forma que nunca mais elas foram as mesmas, haja vista que pas-
saram a ler compulsivamente e a contar histórias em suas salas de aula, de forma tão
constante e deliciosamente envolvente, que foram disseminando este hábito, numa
rapidez tal, que as pessoas foram sendo seduzidas a compartilhar leituras.
Aí... Alguns apaixonados por esta nova mania que havia se instalado, no âmbito
da Universidade começaram a se preocupar com a possibilidade de que algum cien-
tista desvairado se dedicasse a descobrir a cura para aquela deliciosa contaminação.
Então, demandaram, daquelas professoras, a fórmula para disseminarem aquela febril
vontade de ler e com ela aquela contagiante necessidade de contar as histórias lidas.
Ah! Aquelas professoras pioneiras se sentiam como Naftali, personagem do livro
Coração de Tinta, de Cornélia Funke, em seu diálogo de preocupação com as crian-
ças desprovidas do acesso ao livro “– Mas como fazem essas crianças sem livros de
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
histórias? – perguntou Naftali. E Reb Zebelun respondeu: – Elas têm que se confor-
mar. Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles. – Eu não poderia
viver sem eles. – disse Naftali.”
Eu não poderia viver sem livros. Este foi o princípio básico da contação de história
que se vivenciava nas salas de aula do Colégio de Aplicação da UFG, naquele tempo...
contavam-se histórias para despertar o desejo pelo texto escrito e, para contá-las, era
necessário gostar muito delas, outro princípio básico.
Aquelas duas professoras, agora acompanhadas de outros colegas de trabalho,
então, fundaram um grupo de contadores de histórias, Grupo Gwaya Contadores de
Histórias, da UFG. Este grupo institucionalmente era um projeto de extensão e cul-
tura, que propiciou a elas o tempo necessário para saírem por aí em escolas, hospitais,
festas, seminários e eventos, contando muitas histórias. E, com isso, se depararam
com uma nova demanda, muitos e muitos professores que desejavam aprender a
contar histórias.
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o ato de ler guarda sempre significados que estão além dele, transforma-se em metáfora que
alimenta desejos ancestrais que a humanidade sempre perseguiu, mesmo se em vão. Em
várias culturas, em várias épocas, ele foi promessa de revelação, de superação final da pre-
cariedade imposta como condição (PERROTI: 1990, p.39)
Eu buscava estes significados no trato com a leitura e com a escola básica e coletiva-
mente o grupo passou a construir o seu projeto de formação de novos contadores. Os
livros lidos, as discussões realizadas, as histórias contadas, o contato com o universo
da literatura e da arte cênica essencial para contar história foi me mostrando que o
livro tem um poder que se estabelece em duas perspectivas, na primeira ele se coloca
como objeto histórico que narra a história refletindo, difundindo, permitindo, teste-
munhado e me colocando como partícipe do tempo, dos costumes, dos valores, do
imaginário, do contexto e da época que ele me narra; na segunda o livro é constitutivo,
nele mesmo, de um imaginário de sua significação e, em meio a estas constatações me
vi diante de questionamentos sobre o sentido das políticas de acesso ao livro que em
última instância estão atreladas às questões da construção da cidadania e da emanci-
pação humana, não me afastando, também, da percepção primeira que vivenciei em
minha vida de leitora, a do livro como momento de lazer, sonho, doação, aventura...
sempre trazido à minha presença pelas carinhosas mãos ora de minha mãe, ora de
minha avó materna.
u Cenas de leitura. Verbena Maria Rocha Cordeiro. In: Leitor formado, leitor em
formação: a leitura literária em questão. M. Z Turchi e V. M. T. Silva (orgs). ANEP,
2006.
u Formando crianças leitoras. Josette Jolibert e colaboradores. Artes Médicas, 1994.
u Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Celso Sisto. Argos, 2001.
u Confinamento cultural, infância e leitura. Edmir Perrotti. Summus, 1990.
u Coração de tinta. Cornélia Funke. Cia. Das Letras, 2006.
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Por onde passo, o
levo comigo os
contadores de histórias
[Maria Helena Ribeiro]
oC ontar histórias, apesar de ser uma arte milenar, para mim foi tomando uma
Cnova dimensão a partir de 1989, quando trabalhava no setor de projetos da Funda-
ção Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ. Havia um burburinho, algo de novo,
um frisson em torno de um tal curso, ministrado por um grupo estrangeiro, que algu-
mas pessoas fizeram, criando alma nova para a questão do livro, da biblioteca e da
formação do leitor. Esta foi a primeira notícia que me chegou.
Continuava sem saber bem o que era, mas via a movimentação das pessoas, um
entusiasmo no ar, um falatório nos corredores, até que a minha curiosidade chegou
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ao máximo e me forcei a saber exatamente o que estava se passando.
O assunto girava em torno de algumas pessoas da Fundação que haviam feito um
curso de Contadores de Histórias. Esse curso mudou as suas vidas e, por tabela, as
nossas também, que não fizemos o curso. Houve uma contaminação de entusiasmo.
Era como se a narração de histórias precisasse de um empurrãozinho para se firmar
como a melhor estratégia de encantamento no processo de construção de um leitor.
Esse empurrãozinho foi dado, pois desencadeou uma nova história na promoção da
leitura, pelo menos por aqui.
Todos nós sabíamos da importância de contar histórias, porque como professores
e promotores de leitura já nos utilizávamos dessa ferramenta para incentivar a leitura.
Mas, parece que esse curso foi um marco na história da Contação de Histórias no
Brasil, inclusive originando, logo em seguida, o Grupo Morandubetá de Contadores
de Histórias, que foi a primeira escola para a formação de outros contadores.
Fiquei impressionada com a rapidez com que esse movimento se disseminou. As
pessoas ficavam encantadas com a nova forma de contar histórias, com os segredos
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
para fazê-las mais atraentes, com as novas técnicas de apresentar os textos dos livros,
seduzindo a plateia.
Aí, contavam-se histórias em todos os lugares, desde os corredores da Biblioteca
Nacional, para os funcionários, até em praças públicas e espaços culturais.
Um curso desses, eu nunca fiz, mas, naquele momento, fui contagiada pelos con-
tadores de histórias que começavam a se formar com essa nova orientação. Acreditei
neles e nunca mais os abandonei. Em todas as instituições que trabalhei, daí pra
frente, levei essa bandeira comigo, contribuindo assim, um pouco, para a concretiza-
ção dessa arte no Brasil
Migramos da Fundação do Livro para o Proler – Programa Nacional de Incentivo à
Leitura da Biblioteca Nacional, onde assumi a coordenação pedagógica do Leia Brasil
– Programa de Leitura da Petrobras, um programa de Bibliotecas Volantes em escolas
públicas, com capacitação de professores para a questão da leitura.
Levando comigo esse entusiasmo e a certeza da importância das histórias contadas
144 na formação do leitor, para que ele tomasse o impulso que precisava, logo acrescentei
ao Programa um curso de formação de Contadores de Histórias para os professo-
res do programa e apresentações de contadores nas escolas, nos dias das visitas do
caminhão-biblioteca.
Enquanto isso, na Casa da Leitura – sede do Proler e do Leia Brasil – a comu-
nidade de Laranjeiras e especialistas em Leitura e Literatura descobriam o encanta-
mento das histórias contadas pelos novos contadores. De todas as atividades que a
casa oferecia, o Curso de Contadores era o mais procurado. Artistas, atores principal-
mente, produtores culturais, educadores, psicólogos, leitores e até donas de casa iam
buscar algo que lhes trouxesse prazer.
Eliana Yunes, nossa diretora, e Francisco Gregório Filho, nosso querido chefe,
planejaram um curso de excelência por onde se formaram os hoje mais renomados
contadores de histórias e grupos de contação. Começou com esse curso uma com-
pulsão pela leitura. Falava-se todo o tempo de textos, de escritores, de lançamentos
de livros, de temas interessantes para se contar, de cultura popular, contos da caro-
chinha, e, assim, circulavam os livros, trocavam-se experiências, formavam-se grupos,
pesquisava-se sobre a leitura da literatura.
O mais interessante é que os cursos não tinham exclusivamente o objetivo de
ensinar a contar histórias, pois isso já é quase inerente ao ser humano. Basicamente
visavam o incentivo à leitura pelo viés da arte, da literatura. Mas os alunos, além de se
descobrirem leitores, descobriam-se também contadores de histórias. Até hoje encon-
tramos nos cursos de Letras, ou já formados nas Universidades, pessoas que, a partir
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Leituras Inspiradoras
o
Q uando comecei minhas pesquisas sobre a Gestão do Conhecimento Organizacio-
Qnal, confesso que – engenheiro de formação que sou, por isso mesmo mais ligado
às ciências exatas, às coisas objetivas do mundo, com um pensamento mais cartesiano
– estranhava a frequência com que esbarrava em referências às narrativas.
Era perturbador notar que quanto mais eu me aprofundava em áreas tão especializa-
das como Administração Estratégica, Aprendizado Organizacional, Gestão da Inovação,
Gestão da Mudança, Instituições, Teoria da Firma, Teoria Evolucionária das Mudanças
Econômicas, etc., mais evidente ficava o importante papel representado pela contação de
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histórias (storytelling) na formação do capital social das empresas realmente de sucesso, ou
seja, naquelas que têm a característica da longevidade e não nas de sucesso efêmero.
Justamente quando poderia parecer que os rápidos desenvolvimentos tecnológi-
cos dos tempos da globalização – tanto da informação, como das comunicações – tor-
nariam aquela antiga arte uma coisa obsoleta, eu ia me apercebendo da importância
crescente das narrativas.
Dentro desta ótica, eram claros os indícios de que é no melhor entendimento dos
fatos de suas histórias que as empresas constroem aquilo que os especialistas apon-
tam como fundamental para sua sobrevivência nos dias de rápidas mudanças que
vivemos: sua capacitação para inovar.
Confesso que relutei em aceitar que as dificuldades vividas em fases iniciais pela
empresa, suas crises importantes do passado, seus eventos marcantes, seus executivos
anteriores, seus mitos e seus heróis moldassem e restringissem seu comportamento
atual e futuro. Era difícil estabelecer uma conexão entre os aspectos mais tecnológicos
das empresas e esta sua dependência de trajetória.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Hoje noto que há algo de novo sobre a arte de contar histórias em ambientes orga-
nizacionais. Não se trata mais apenas do seu uso proposital para alcançar resultados
práticos em questionáveis e antiquadas práticas de liderança.
Em minhas pesquisas venho descobrindo que empresas longevas (as que se ca-
racterizam como verdadeiras comunidades) têm como principal característica aquela
especial capacitação para se adaptar constantemente às mudanças em seus ambientes
de negócios, com mais rapidez do que seus concorrentes.
Mas a inovação não é apenas uma vontade declarada. Ela exige a prática regular e
constante de uma humildade em busca do que precisa ser aperfeiçoado na empresa,
de um ambiente com abertura suficiente para tal, caracterizando que os verdadeiros
proprietários do capital social não deveriam ser pequenos grupos – que podem facil-
mente ser tornar obsoletos – mas a empresa que, vista como uma comunidade, se
mostra muito mais apta a dar respostas.
Para atender aos atuais desafios de adaptação, contínuos e necessários, sempre
152 com maior rapidez, diversos autores de diferentes áreas de estudos vêm chamando
atenção para o fato de que as estruturas burocráticas e hierárquicas baseadas em
mecanismos de comando e controle, que se mostraram tão eficientes desde o início
do taylorismo, já não funcionam adequadamente e funcionarão cada vez menos. Há
assim a necessidade da troca da ênfase em simples e objetivas relações de causa e efeito
pelo foco em aspectos menos explícitos, menos objetivos, digamos mais tácitos.
Esse novo mundo organizacional, de valores, significados e experiências, com
atenção às interações humanas, precisa identificar o conhecimento, entendido como
a união de saberes e habilidades para uma capacidade de ação eficaz, como novo e
mais importante fator de produção.
Sendo o conhecimento contextual e só existindo nas pessoas que compõem uma
empresa, me chama atenção a importância da palavra “contexto” e a forma como ela
é negligenciada nas empresas que não conseguem se ver como comunidades.
É o contexto que faz com que, embora construído pela análise da informação e
que possa algumas vezes ser transformado em informação para ser disseminado, o
conhecimento não seja apenas um tipo especial estático de informação, como muitos
creem. Isto porque diariamente importantes elementos de contexto são incorporados
ao conhecimento nas mentes e corpos das pessoas, nas rotinas das empresas e, princi-
palmente, no relacionamento entre as pessoas e entre elas e suas empresas.
As empresas e suas pessoas em um determinado momento são apenas um instantâ-
neo de um quadro dinâmico em que pessoas vão e vêm, influenciam e são influencia-
das por aquilo a que nos referimos simplificadamente como organização.
É fácil dizer que a empresa é uma organização. Mais fácil ainda é alardear que a
Fernando Goldman
organização é uma comunidade, mas na prática criar um ambiente propício ao flores-
cimento do conhecimento exige muito mais do que simples slogans.
Uma pessoa para expressar aquilo que conhece ou pelo menos aquilo que tem
consciência que conhece não pode deixar de fazê-lo senão emitindo algum tipo de
informação (conteúdos), na forma de mensagens, sejam orais, escritas, sinalizadas,
gráficas, gestuais, dançadas, corporais ou qualquer outra forma que um ser humano
tenha para se comunicar.
153
É preciso conectar os conteúdos disponibilizados, representados por dados e
informações, aos contextos, para que outras pessoas possam criar novos conhecimen-
tos capazes de possibilitar à empresa se modificar de modo a se adaptar às mudanças
de seus ambientes de negócios.
Fui assim começando a entender que o elo, entre os conteúdos e os contextos, são
as narrativas, que sendo a forma como as pessoas constroem um mundo de significados,
se tornam um tipo de código, útil em ambientes dinâmicos, de racionalidade limitada
e de incerteza, como os enfrentados pelas empresas na atual era de globalização, pois
transformam a incerteza da mudança em algo compreensível e com significado.
Seguindo as ideias de Argyris e Schoen sobre toda empresa ter uma teoria “pro-
clamada” e uma “aplicada”, são as narrativas que nos informam sobre as regras infor-
mais, quando chegamos a uma empresa.
No meu entender as narrativas organizacionais, além de proverem meios funda-
mentais para se compreender os processos do cotidiano organizacional, são elementos
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
u O poder das narrativas nas organizações. Stephen Denning. Campus - Elsevier, 2006.
u The concept of “Ba”: building foundation for knowledge creation. I. Nonaka e
N. Konno. California Management Review, v. 40, n. 3, Spring 1998.
u Criação de conhecimento na empresa: como as empresas japonesas geram a
dinâmica da inovação. I. Nonaka e H. Takeuchi. Campus, 1997.
Fernando Goldman
155
Fagulhas habitam multidões o
[Célia Linhares]
oL ogo que fiz nove anos, perdi meu pai. Voltei para o Maranhão e encontrei uma
Lpaisagem já conhecida pelas conversas familiares e que, de vez em quando, ganha-
vam um tom nostálgico, próximo de um sentimento de exílio. Ah! Como o Rio de
Janeiro ficava longe de São Luís!
O re-encontro com minha cidade, me fez descobrir que ao construí-la, imaginari-
amente, nela havia reservado lugares de relevo para os primos e os tios, as alvoradas
com suas brisas, os sabores e os batuques das festas populares. Então, me surpreendi
com tantas ladeiras (difíceis de subir), com as travas de poderes estagnados, enfim,
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com as noites e suas tormentas...
Sei que num desses dias em que os bondes pareciam saltar dos trilhos para trafegar
em meu coração, me assombrei com a intensidade de perguntas que nem sabia formu-
lar. Acreditei que não ia dar conta da vida. Pedi a Deus que me ajudasse, mandando
um anjo me buscar de forma veloz, se possível, fulminante.
De repente, ao entrar numa das alcovas do sobrado, onde vivíamos, no Canto da
Viração, deparei com uma imagem trêmula, estranha, assustadora, que se associou a um
conjunto de vozes que cantavam, com determinação, se encontrando em desencontros.
— Os céus me ouviram? Resolveram me atender? Estes eram os sinais não de um, mas de uma
legião de anjos? Como poderia eu recuar de minhas súplicas, diante de uma decisão celestial?
— Não, não queria ir pro céu. Era urgente, urgentíssimo declinar da viagem com os anjos.
Pedi, com o coração aos saltos, uma prorrogação.
Corri pra janela, arriscando um canto de olho e decifrando o mistério da figura
vacilante: era uma calça comprida de meu irmão, pendurada pelo suspensório, numa
coluna de cama antiga!
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Célia Linhares
caminhos para a liberdade que nunca deixou de fagulhar... Assim, os movimentos
sociais se deslocaram para espaços que antes pareciam destituídos de política. As
associações de moradores insurgiram em toda parte, nas comunidades de base, nas
práticas da Teologia da Libertação, com os mutuários de casa própria, das donas de
casa, dos aposentados, das mulheres, negros, indígenas e gays que se organizaram e
tornaram mais abertas, compartilhadas e visíveis suas lutas.
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A realidade mudava e nossos instrumentos de apropriação dos movimentos sociais
também precisavam ser refeitos (Evers, 1984). Os novos sujeitos coletivos instalavam outro
tempo-espaço e requeriam uma outra inteligibilidade (Sader, 1988). Os movimentos de
1968 mostraram que as relações políticas não estão distanciadas das tensões cotidianas.
Se Foucault (1984) tematizou a mobilidade do poder, que não se concentra nos
palácios, nem se fixa nos gabinetes e nem, muito menos, se reduz a impor e negar
condutas, potencializando ferramentas para intervirmos nos funcionamentos soci-
ais, Paulo Freire (1992) também, por outros contornos, trabalhou o alargamento da
política, discutindo uma processualística responsável pela manutenção dos mecanis-
mos que fortalecem opressores e oprimidos.
Ressaltou as relações entre políticas, culturas e existências sócio-humanas, sus-
tentando poderes arbitrários e opressores, que ao invés de se instalarem exclusiva-
mente, numa entidade externa, se alojam com tensões e complacências, nos senti-
mentos e afetos do oprimido, subjugando-o.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
De toda forma, para romper essa submissão, não pode ser dispensado nem o
desejo de liberdade, nem as condições concretas de libertação, que precisam ser cria-
das e mobilizadas. Por isso, Paulo Freire valorizou a educação para a liberdade, como
um exercício de autonomia, sempre inconcluso, em que os oprimidos se apropriam
da vida, do mundo, para refazê-lo.
Esses novos tipos de movimentos sociais, mesmo sob silenciamentos e suspeitas
acadêmicas, foram construindo outras formas de ações políticas, intensificando solida-
riedades em circuitos crescentes, capilarizando-se e encontrando-se com aqueles até então
banidos da fruição dos bens materiais e imateriais que a sociedade vinha produzindo.
O avanço do capitalismo com suas forças necrófilas, foi derrubando fronteiras
(como entre as Alemanhas) para reduzir a criação de mundos possíveis, proclamando a
urgência de sofisticar, globalizando um mundo único; mundo que as políticas neocon-
servadoras e neoliberais pretendem infligir a tudo e a todos, como o Império irrecusável.
Mas o preço da participação nesse império é não somente alto, muito alto, mas
160 impagável, pois atinge de muitos modos a vida, o planeta, os corpos, enfim, toda uma
múltipla realidade, enredando-os em relações agenciadoras em que nem faltam coer-
ções cruéis e explícitas, nem tão pouco manipulações sutis e sedutoras.
Assim, apesar das cadeias relacionais que se instalam e se apresentam como redes
inescapáveis, emerge desse cerceamento formas múltiplas de afirmações de vida que
vão instituindo fagulhas com que se constroem possibilidades de outros mundos mais
solidários, em que as multiplicidades se dispersam e confluem diferindo e singulari-
zando sujeitos coletivos e individuais, pelas interdependências entre objetos e sujei-
tos, rompendo com as formas de organização binária da vida (Lazaratto, 2006).
Portanto, escapando de concepções e práticas endurecidas pela imutabilidade das
utopias, Negri e Hardt (2001) vão ressignificar a concepção e a prática de multidão,
tomando-a como resistência, multiplicidade e potência, atualizando-a pela apropria-
ção dos circuitos cibernéticos.
É bom observar o comportamento das multidões em suas iniciativas que tomam
celulares para mobilização social que se dispersa, atuando de modo livre, mas con-
fluindo na causa comum de defesa da vida, da liberdade. Por isso, valorizam a plu-
ralidade dos sujeitos e instrumentos reinventando, em sintonia com nosso tempo,
militâncias interativas.
Vale concluir lembrando a analogia que Negri (2001) faz entre as multidões e
Francisco de Assis: “(...) encontramo-nos na situação de Francisco, propondo contra
a miséria do poder a alegria do ser. Esta é a revolução que nenhum poder controlará”.
Célia Linhares
Leituras Inspiradoras
o
M eu nome é Marilene Nunes, nasci numa cidadezinha do Espírito Santo chama-
Mda Mimoso do Sul. A minha vinda para o Rio de Janeiro aconteceu quando
ainda era criança. Como toda criança que mora no interior, sempre ouvi muitas
histórias contadas por minha mãe, lembro que ficava horas sentada na porta de casa
ao anoitecer, ouvindo mamãe contar contos de assombração, de fazendeiros, histórias
de vida, etc.
O tempo foi passando, me mudei e ainda era pré-adolescente quando cheguei à
Maré, vinda de Del Castilho, removida da avenida Suburbana. Assim que cheguei,
163
achei tudo muito estranho, a casa era chamada de “Dúplex”, porque tinha dois
andares (embaixo ficava sala, cozinha, banheiro e em cima dois quartos), havia uma
caixa d’água instalada, mas não tinha água encanada. A minha casa ficava numa parte
já aterrada da Maré, na comunidade Nova Holanda, eu visitava várias colegas que
moravam nas palafitas, era divertido e ao mesmo tempo perigoso quando andava nas
pontes sobre as águas e no calor era gostoso, porque sempre molhava meus pés. Outra
diversão era carregar água com o “rola-rola” ou “lata na cabeça” para encher a caixa
d’água. (Era difícil conseguir água, porque tinha que sair pedindo nas casas distantes.)
A minha entrada nesse universo de contar histórias aconteceu através de uma ami-
ga que me informou que haveria uma Oficina de Contação de História no CEASM
(Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), logo me interessei, pois sempre gostei
de ouvir e contar histórias para os meus filhos. Fiz a inscrição e fui entrevistada, mas
saí de lá com a certeza de que não seria selecionada, pois a faixa etária exigida era de
16 a 21 anos. Até então, só conhecia a ONG através de comentários dos moradores.
A ONG CEASM foi fundado em 1997, por alguns moradores universitários que,
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Lene Nunes
Casamento na palafita, que eu conto na varanda do Tempo da Casa, segundo tempo
do museu (uma vez que a concepção o divide em doze partes chamadas Tempos). E
é dentro dessa réplica que as pessoas recordam, choram e resgatam, de dentro de si,
toda a memória aterrada, adormecida, de uma época vivida ali. Numa dessas visitas
que eu acompanhei, tive uma experiência com uma senhora que, ao entrar na réplica
165
de uma palafita, construída dentro do Museu, chorou pelas lembranças que vieram
à tona, ao ver expostos ali vários objetos e pertences que fizeram parte de sua vida.
Quando a levei até o velho fogão Cosmopolita1 e falei do “pente-quente”2, foi uma
emoção ainda maior, pois choramos juntas e lembrei-me da época em que minha mãe
alisava meus cabelos com esse objeto.
Outra experiência que vivi foi no Tempo do Medo. Em uma visita, a filha reco-
nheceu a mãe, os irmãos e o primo numa foto, sentados na ponte, exposta ali, e
contou para a mãe. Na semana seguinte, a mãe veio conhecer o Museu e ficou muito
emocionada com tudo que viu, percebi que ela tinha pressa em chegar onde estava a
tal foto, e, quando chegou perto, apontou um por um de seus familiares e disse: “O
tempo passou, pois nesse retrato aqui, os meus cabelos eram pretos e agora estou com
a cabeça branca. Ah, minha filha, meus meninos caíam muito dentro dessa maré. E
1. Marca de um fogão.
2. Objeto que se esquentava ao fogo para alisar o cabelo (seria a prancha de hoje).
eu mesma presenciei muita gente caindo dessas pontes e alguns até morreram.”
Minha atuação como contadora de história me possibilitou um envolvimento
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
maior com um povo que lutou e resistiu à força do tempo, esse trabalho mexeu com
meu passado. Em minha opinião, a arte de contar histórias é viajar, interpretar, viver,
passear pelos caminhos por onde passam cada personagem, e contar as da Maré, é
uma questão de honra, de propriedade e pertencimento.
Como eu sempre digo: “Quem não tem passado não tem história.”
Leituras Inspiradoras
diferentes, desaguando num mesmo mar. É isso! E assim, com o fechar do livro, era
passado o fio da palavra às crianças, onde se partilhava alegrias e desassossegos, medos
e surpresas, encontros, dúvidas, delicadezas. A vida e a morte caminhavam juntas,
lado a lado, e não em sentidos opostos como se costuma pensar. As crianças falavam
da saudade de casa, dos irmãos, da escola, dos animais de estimação, da comida
feita pela sua mãe e também falavam de outras crianças que, com o seu mesmo diag-
nóstico, encerravam ali suas histórias, quando elas pareciam estar apenas começando.
A palavra guardava para nós um prestígio de nobreza. E a estas histórias huma-
nas, começamos a dar-lhes fisionomia de contos, criando um mundo onde morassem
para sempre todas as possibilidades, já que, ali, elas eram tão tolhidas pelas rotineiras
normas do tratamento. E, neste mundo, entre o papel e a minha caneta, leite puro
poderia ter gosto de leite com café pra agradar menino, uma vaca podia morrer de
olhos abertos porque foi assim que menino viu sua avó morrer, as injeções podiam se
abraçar dentro da geladeira pra curar solidão de menina, mãe-pomba podia dar cuscuz
170 na boca do filhote pra agradar outro menino, e menina podia entrar até na fogueira
pra abraçar a mãe sem se queimar, de tanta saudade que ela tinha.
E em reverência a estas histórias, criadas ali na Oncologia, cortejadas pela dificul-
dade, editamos um primeiro livro cheio de histórias e, logo, o segundo. E a palavra
continuava a ser levada pela correnteza da Oficina de Contos, que foi então desaguar
também na Enfermaria da Cardiologia Pediátrica. O processo continuou seguindo o
mesmo fio, reverenciando histórias humanas a ofertar-lhes histórias literárias. E edita-
mos o terceiro e o quarto livros. Depois uma coletânea deles todos com livro e CD.
As histórias humanas passaram a inspirar a criação de histórias literárias e, quan-
do eu chegava, as crianças já anunciavam ter histórias inteirinhas morando em suas
cabeças para me contar. Compomos um movimento bonito, uma sintonia mesmo,
como as ondas e a areia, de ir e vir, de esperar pelo que se sabe chegar e chegar com
maciez, com maciez de se estar tocando em sonhos infantis, uma imensa coleção de
tesouros, rara, sensível, desigual.
E se os contos nos encantam tanto, nos inspiram tanto e neles nos reconhecemos
tanto, é porque eles trazem expressas em metáforas as nossas necessidades primordiais
de aprender com a vida, de viver as suas aventuras, e o fio da história vem como um
rio, nos carregando na sua correnteza para dentro dela, e estar em uma enfermaria
de hospital, definitivamente, não nos impede de nada. Porque através da partilha da
palavra neste cenário montado entre Contador, criança, história e hospital, o Con-
tador que também escuta a história da criança busca dosificar (e também dulcificar)
a carga pesada de suas histórias humanas, a aproximação com a morte, com o medo,
com a solidão, com a dúvida, com a dor. É diferente de fingir que elas não existem,
atenção! Mas é tentar buscar um equilíbrio, subjetivo, claro, sem receitas, entre toda
a mazela emocional que a aflige e a promessa de felicidade perpétua que encerra as
histórias literárias. E assim, as histórias acabam por às vezes ajudar a curar, n’outras a
Kika Freyre
aliviar e n’outras ainda a consolar crianças e pais em situação de longo internamento.
Os pais se aproximam mais dos filhos, e o diálogo flui mais transparente, brando, fei-
to água de nascente. E cada vez mais os pais escolhem participar e partilhar histórias
ouvidas, vividas e inventadas.
Porque cada vez mais as pessoas buscam voltar ao tempo deste contato perdido,
171
de partilhar o olhar, o gesto terno, a graça, a verdade das palavras. E o Contador de
Histórias ganha força neste cenário, porque, para além da história que amortece o
correr dos batimentos cardíacos, amacia a velocidade da pressão arterial, ele, o Con-
tador, oferece no hospital este ambiente de possibilidades. Traz um viver feliz para
sempre provável e a cada encontro, perpetua esta probabilidade. E acreditar nesta
possibilidade de cura pode inverter muitos papéis de doenças. Porque esta crença
acaricia a autoestima, passa um bálsamo na imunidade, elevando os números das
defesas orgânicas. Fisiologicamente as histórias mexem conosco também. Elas entram
pelos nossos poros, pelos nossos olhos, pelas janelas da nossa alma e se alojam ali,
lá dentro, no sótão do nosso coração e a gente sabe que o sangue que passa, carrega
tudo, inclusive os sonhos de cura que as histórias plantam lá naquele cantinho tão
‘desavistado’ dentro de nós.
...
Mais uma vez, uma Contadora e um livro de histórias. Uma Casa para tratamento
psiquiátrico de adultos no Recife/Brasil (NAPPE) e outra em Braga/Portugal (Casa
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Kika Freyre
eu percebi o que eu quero e percebi que não quero esta vida para mim, de trabalhar por quem
só me quer para serviçal. Eu nunca vou esquecer esta história. Parece que a menina adivinhou
e a trouxe mesmo para mim. Obrigada! Joca, 53 anos
Para este trabalho com histórias, o diagnóstico pouco importa. O rótulo mais
importante é o nome de cada uma destas pessoas – que também escolhem alcunhas
173
para quando as suas frases aparecerem citadas. E sempre começamos a trabalhar em
busca de se conhecer a história deste nome que se carrega por toda biografia, que,
para tanta gente, traz uma força desigual. E, a partir daí, partilhamos enredos onde as
pessoas traduzem capítulos das suas vidas... e das suas tantas mortes.
São importantes as histórias para uma pessoa ouvir e vir a pensar sobre o que está a fazer
da sua vida. Vico, 38 anos
E cavando os alicerces dos seus trajetos, encontramos pessoas que foram se cons-
truindo enchidas de nada, carentes, carentes de tudo, inclusive de ouvidos para suas
próprias histórias. E diante deste manancial, fazemos juntas um trabalho arqueológi-
co mesmo. Trabalhamos com memória, com acervo, com patrimônio imaterial. Tra-
balhamos com a leitura e a constante proposta de releitura dos fatos vividos em busca
de um sentido para esta vida.
Há histórias que trazem mistérios. Eu gosto do mistério das histórias. As nossas vidas tam-
bém trazem mistérios. As histórias são as nossas vidas contadas aos poucos, de mistério em
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
Kika Freyre
para acordar os homens e celebrar a vida. Kika Freyre & Paulo F. B. C .Mello.
EDUPE, 2009.
175
Contos na prisão: o
um espaço
chamado liberdade
[Rosana Mont’Alverne]
existem versões na internet). Durante os dez anos em que o projeto foi realizado nos
auditórios daquela instituição, fizemos dois concursos, que revelaram novos talentos
da arte narrativa e que resultaram em dois livros: Uma história para contar (2004) e
Histórias que ouvi, histórias que vivi: o lado inusitado e pitoresco da Justiça Mineira (2005).
O Conto Sete em Ponto hoje é realizado também em Ouro Preto e, em Belo Hori-
zonte, os espetáculos acontecem mensalmente no Palácio das Artes.
Os contos tradicionais e a literatura escrita, por possuírem ensinamentos que
ultrapassaram séculos e regiões do mundo inteiro, têm o poder de nos apontar
direções, de produzir insights e de nos despertar de um longo sono. Alguns têm verda-
deiro poder de cura e parecem chegar na hora certa para nos auxiliar em momentos
de escolhas difíceis, mudanças de fases de vida e início de novos projetos. Além do
mais, uma roda de histórias é sempre uma diversão e um momento de religação com
o que temos de mais humano: nossa capacidade de nos percebermos como seres em
movimento; partes de um elo ancestral que nos une e nos lembra de nossa verdadeira
178 identidade. Em um mundo cheio de padrões e modelos a seguir e a consumir (roupas,
comida, música, modo de vida etc.), as histórias nos ajudam a nos lembrar quem
somos, de onde viemos e para onde vamos. Nesse trajeto, sem dúvida, estaremos mais
seguros se acompanhados de uma boa história.
Em setembro de 2004, recebi uma carta inusitada. O Juiz da Vara de Execuções
Penais de Itaúna, Dr. Paulo Antônio de Carvalho, que conhecia o meu trabalho com
a arte de contar histórias, convidou-me a ministrar oficinas semanais de contos para
os presos da APAC de Itaúna — MG (Associação de Proteção e Assistência aos Conde-
nados). Arrematou o convite com um verso de Cecília Meireles: “Não faças de ti um
sonho a realizar. Vai”. Confesso que dúvidas e medos me cercaram. Estaria pronta
para a tarefa? Senti que chegava a hora de experimentar o poder da palavra do conta-
dor de histórias no espaço da coerção, da punição, da privação da liberdade: a prisão.
Lembrei-me da situação carcerária no Brasil, que, diga-se de passagem, é ampla-
mente conhecida de todos os brasileiros minimamente informados. O sistema penal
brasileiro vem sofrendo modificações legislativas, muitas vezes por pressão da socie-
dade, que vê no recrudescimento das penas e do aparato penitenciário a solução
para a questão da segurança pública e da defesa social. Porém, cresce o número de
encarcerados e cresce também a criminalidade. Não é mais possível e nem útil nos
negarmos a reconhecer que os criminosos são parte do mesmo tecido social do qual
também fazemos parte.
Nesse tecido, eles tanto influenciam quanto são influenciados. Trabalhar pela
recuperação real dessas pessoas, a fim de que possam se reintegrar de forma harmo-
Rosana Mont’Alverne
niosa na comunidade, oferecer-lhes a oportunidade da socialização em lugar de excluí-
las parece ser a melhor alternativa, senão a única, na busca de uma solução definitiva
do problema. Essa não é uma tarefa só do aparato estatal, mas de toda a sociedade.
Mas é preciso esclarecer que a APAC de Itaúna é um estabelecimento prisional
diferente, uma associação civil juridicamente constituída, sem fins lucrativos e tem
apoio dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado de Minas Gerais. Sua filosofia de
trabalho é a de que um bandido recuperado é um bandido a menos nas ruas. Lá não
há policiais nem agentes carcerários. Voluntários atuam em diversas áreas e os presos
179
tomam conta dos presos. A APAC de Itaúna é referência mundial em recuperação de
presos e foi o solo fértil para o desenvolvimento do trabalho com os contos.
Nem é preciso dizer que aceitei o convite. Quantas portas se abrem quando nos
permitimos entrar na aventura e nos lançamos com paixão em nosso ofício!
Os participantes – todos condenados cumprindo pena em regime fechado –
começaram a escutar histórias, contar, recontar, ler e criar, além de ter aulas sobre
postura corporal, técnica vocal, expressão oral, gestual e visual e outros segredos que
formam o bom contador de histórias. Nas improvisações, a criatividade e a memória
são estimuladas; surgem belíssimas histórias, transcritas e incorporadas ao repertório
do grupo. Antigos contos de fadas são recontados e discutidos, gerando reflexão e
aprendizagem. Os contos surgem como opção de resignificação de vidas, de encanta-
mento da própria história, que passa a ter valor. Esse é o principal objetivo do projeto:
enriquecer o imaginário dos presos, trazendo-lhes novas representações, situações
semelhantes às suas, mas tratadas de outra maneira. Trata-se de oferecer-lhes a chance
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Rosana Mont’Alverne
as rebeliões, a doença, a morte na calada da noite, além de temerem o que está além
do seu controle, no mundo exterior: a reação da família, a infidelidade do cônjuge, o
rigor do julgamento e a (não) assistência do advogado. O medo funciona como uma
doença, afetando o nosso bem-estar e disseminando insegurança. A cura, ou seja, a
restauração da tranquilidade, é uma necessidade de todos nós. Valdeci Antônio Fer-
reira também percebeu esses sentimentos e concluiu:
Nesse momento, me vem à memória as minhas avós já falecidas, minha mãe e meu pai em
volta do fogão à lenha, comendo biscoito frito e tomando café. Recordo-me, com saudades,
181
das histórias contadas e recontadas para afastar o nosso medo de criança. (...) Tem gente
que conta histórias para afastar o medo; e essas histórias contadas e recontadas possuem o
dom de encantar a vida.
Contra o medo – nosso e dos presos – acredito na contribuição da força da pala-
vra do conto ou da palavra encantada ou, ainda, na força na “boa palavra”, que carre-
ga consigo a sabedoria e a possibilidade de dar nova interpretação a fatos do passado
que não podem ser mudados. A palavra do contador de histórias, trabalhada artisti-
camente, ganha o atrativo estético, que cativa e encanta o ouvinte, conduzindo-o até
a sabedoria e aos ensinamentos guardados no conto. A arte permite que o ouvinte se
integre ao que é sublime, enriquecendo a experiência.
Na atualidade, o retorno da prática da narração de histórias obedece a uma neces-
sidade que extrapola a intenção profissional do artista, mas favorece a função social da
prática e o bem-estar individual. A integração de um indivíduo mais equilibrado com o
mundo ao seu redor é um dos efeitos que se destaca a partir do diálogo com os contos.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Rosana Mont’Alverne
183
Histórias em sinais o
[Lodenir Karnopp]
oA primeira aproximação que tive com pessoas surdas e a língua de sinais foi
Aatravés de Cursos de Libras e, posteriormente, como professora de português em
uma escola de surdos. Aproximação que trouxe e traz rupturas, possibilidades, deslo-
camentos. Estranhamento diante da língua e da cultura surda. Fala suspensa, sinais
que emergem, sinais que capturam o olhar e a atenção. Sinais que contam histórias.
“Atenção aos sinais!” foram os enunciados propositivos nos cursos de Libras e nos
diálogos com os surdos! Olhares atentos, histórias em sinais trouxeram-me experiên-
cias com a língua de sinais, uma língua que flui através de mãos que vão combi-
185
nando movimentos, configurações de mão, pontos de articulação, expressões faciais
e corporais, posicionando o sujeito discursivamente. Visual-gestual, modalidade de
uma língua de sinais, que alavanca uma diferença na forma como tradicionalmente
concebemos as línguas. Línguas de sinais que nos posicionam e nos jogam para outra
experiência: aquela em que o logofonocentrismo é deslocado.
Olhares atentos, mãos ágeis e a ressignificação dos enunciados – difícil, longo,
constante, mas atraente aprendizado. A língua sendo tecida naquele espaço de enun-
ciação em frente ao corpo, com sinais articulados em diferentes camadas linguísti-
cas. Discursivamente nos posicionamos, as armas sonoras silenciam, possibilitando
o cultivo de uma outra experiência, em uma comunidade que interpela nosso olhar,
nossos sinais.
Não é simplesmente um deslocamento da experiência linguística falada para
outra, que é visual. Trata-se, antes de tudo, de considerar que há sinais que nos per-
mitem olhar e outros que nos ensinam a olhar. Olhar a cultura, o sujeito, a língua. A
experiência, e aqui com referência à experiência de uma língua visual, é aquilo que
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
“nos passa, que nos acontece, o que nos toca”. A experiência que estamos referindo
considera “aquilo que nos acontece, nos sucede”1.
Fui paulatinamente me aproximando das histórias que são contadas em Libras
através das mãos que contam histórias. No entanto, esse contato ocorreu após alguns
anos de convívio com a comunidade surda. Como professora de português, meu
olhar esteve muito centrado em ensinar português. Ao me aproximar da comunidade
de surdos, conviver com amigos surdos e ler textos relacionados às experiências de
vida de pessoas surdas, tanto em narrativas sinalizadas quanto em textos acadêmicos,
encontrei outras possibilidades de diálogo, de trocas, de aprendizados. Aprendi, por
exemplo, com Miranda (2001), pesquisador surdo, que a escrita na língua portuguesa
continua sendo a camisa de força que limita e conforma o saber à capacidade de
decifração gráfica. Muitos dos programas de educação fracassam, também porque
parte-se do princípio de que a língua portuguesa deve ser igual para todos. E esses
todos são pessoas tratadas como monolíngues, assexuadas, sem história ou idade, sem
186 raça, sem emprego, sem desejos. O apagamento da diferença linguística e cultural
tem historicamente posicionado o surdo como ‘deficiente linguístico’, prevalecendo o
acento em uma tradição que rejeita a existência de uma pluralidade de manifestações
linguísticas.
Presenciamos cenas em que não se reconhece a situação bilíngue do surdo e se
rejeita de forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente. Diante de
tais cenas, uma das maiores contribuições que contadores de histórias, pesquisadores
e educadores de surdos podem prestar hoje é varrer a ilusão da “deficiência linguísti-
ca” e trazer para o cenário outras histórias, outras imagens, outras narrativas, outras
traduções, outras línguas, outros olhares.
Apesar de mudanças significativas na legislação e de iniciativas de algumas insti-
tuições, o fato é que, há muito tempo, temos por parte dos surdos uma luta histórica
tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é devida, não somente
Lodenir Karnopp
por surdos em diferentes momentos: nas associações de surdos, nos encontros anuais
da Feira do Livro em Porto Alegre, em escolas de surdos. Épicos, poemas, anedotas
e contos foram capturando meu olhar, minha atenção, tornando-se um dos temas
de pesquisa que venho realizando. O encontro com a literatura surda, com histórias
contadas em sinais e com traduções de diferentes histórias traduzidas para a Libras
foram trazendo a articulação de olhares entre/culturas. Esse movimento poético/
político evidenciou que “Os surdos começam a se narrar de uma forma diferente, a
187
serem representados por outros discursos, a desenvolverem novas identidades surdas,
fundamentadas na diferença (...)” (Skliar 1999, p. 12).
Nas últimas três décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comu-
nidades surdas, em diferentes espaços, especialmente, o reconhecimento da cultura
surda e a oficialização da Língua de Sinais Brasileira. Produções culturais de surdos
possibilitaram a elaboração de outras representações sobre os surdos.
Atualmente desenvolvemos um projeto de pesquisa intitulado Literatura Surda.
Buscamos histórias que são contadas por surdos contadores de histórias em diferen-
tes regiões no Brasil, em Libras, seja presencialmente (em Associações de Surdos,
Escolas de Surdos...) ou virtualmente (internet, youtube). Quando analisamos a Li-
teratura Surda, a primeira observação que podemos fazer é que ela tem uma tradição
próxima a culturas que transmitem suas histórias oral e presencialmente. Manifesta-se
nas histórias contadas em sinais; no entanto, o registro de histórias contadas no pas-
sado permanece na memória de algumas pessoas surdas ou foram esquecidas. Desse
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Leituras Inspiradoras
Lodenir Karnopp
u O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. Silvia Duschatzky
e Carlos Skliar. In: Habitantes de Babel. Políticas e poéticas da diferença. Jorge
Larrosa e Carlos Skliar. Autêntica, 2001, p. 119–138.
u Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Jorge Larrosa. Revista Brasileira
de Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, n. 19,
2002, p. 20-28.
u Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Carlos Skliar (org.). Mediação, 1999.
189
(vol. 1 e 2)
u Que palavra que te falta? Lingüística, educação e surdez. Regina Maria de Souza.
Martins Fontes, 1998.
u Contando histórias sobre surdos(as) e surdez. Rosa Silveira. In: Estudos Culturais em
Educação. Marisa V. Costa. UFRGS, 2000.
Palavras táteis o
[AnaLu Palma]
AnaLu Palma
As crianças alvoroçadas, incrédulas, perguntando como era possível com o deslizar
do dedo construir frases. Elas queriam tocar também, não apenas as palavras, mas
a contadora de história, para certificarem-se de que era real. Alguma coisa muito
especial ficou gravada para sempre na memória daquelas crianças. Era a chance de
compreender a diferença naquilo em que é mais potente: a diversidade humana, tão
193
rica, tão bela, tão facilmente integrável.
Se hoje minha voz é capaz de modulações variadas, devo aos ouvidos que precisei
conquistar. Se hoje minha sensibilidade é aguçada, devo à utilização dos sentidos. Se
hoje componho história é para aproximar os que enxergam dos que não enxergam ou
que enxergam de uma forma diferente.
Assim, formou-se o acervo de quatrocentos livros. Hoje, oito países que falam esta
Língua com a qual me comunico com vocês poderão ouvir todos estes encantamentos.
Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e, cobrindo
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.
Leitura Inspiradora
u A Voz do Ator Vidente: O Caminho Sonoro para o Ator com Deficiência Visual. Ana
Lúcia Palma Gonçalves. In: Temas em inclusão: saberes e práticas. Aliny Lamoglia
(Org.). Synergia, 2009.
2. PESSOA, Fernando. Obra Poética – Volume Único. In Poesias Coligidas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1997.
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195
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* E eles foram felizes para sempre.
— disse a mãe fechando o livro.
o
* Demorou muito para eles chegarem lá?
— perguntou o menino de quatro anos.
*
*
*
*
[Regina Machado]
oN
N
ão é uma pergunta absurda. Não é uma pergunta banal. SEMPRE pode não ser
um lugar para onde se vá, digamos, a pé ou a cavalo. Mas com certeza é um lugar
onde se vive. Onde moram os contos milenares, sementeiros ancestrais da palavra
que se renova, a todo instante e em qualquer espaço, na voz de cada contador ou
contadora de estórias.
Guimarães Rosa disse uma vez numa célebre entrevista:
“Para quem vive no Infinito, como eu...”
Penso aqui com meus botões, que o SEMPRE é um lugar dentro da gente, como
outros que habitamos, dependendo da circunstância. 197
Há o lugar do “imediatamente” para onde queremos ir quando aquele chocolate
nos acena da prateleira. O lugar do “nunca mais” onde muitas vezes nos grudamos
feito chicletes de sofrimento e saudade.E tantos outros lugares que compõem o que-
bra cabeças daquilo que acreditamos que somos nós.
A imagem que me aparece do SEMPRE é a de um lugar vazio, que pode ser tudo
e ter tudo. Não de qualquer jeito, desarrumado, uma bagunça, mas numa ordem
absolutamente mutável segundo a gramática da Fantasia.
É o lugar em que, quando criança, a gente brincava de cabaninha. A gente se
metia embaixo de lençóis e colchonetes muito bem arrumados pra gente caber lá
dentro com nossos travesseiros e o que mais desse vontade. Para viver o SEMPRE.
O SEMPRE que nunca foi antes e nunca será outra vez, existindo só e apenas
naquele instante, fora do tempo horizontal da História, da contingência.
Um lugar para experimentar mil combinações do que é possível, para aprender o
que pode vir a ser.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Precisamente o que as estórias milenares nos convidam a fazer, num passeio pela
paisagem mítica preservada humanidade afora. Que ecoa na nossa paisagem interior,
aberta para nossa passagem quando estamos encantados.
Sinto um pouco de pena das pessoas que confundem alhos com bugalhos. Então,
nesse caso, por exemplo:“Os contos de fadas foram ridicularizados pela arte moderna
e pelos freudianos como instrumento de alienação” (frase tirada do artigo: Disney,
vida e fantasia de luzes e sombras, de Daniel Piza para o Jornal O Estado de São Paulo
em 17 de maio de 2009).
O encantamento não é alienado e também não é infantil. E os contos de fadas
são um ramo apenas recente de uma árvore que existe desde que o mundo é mundo,
enraizada no desejo de saber.
E nem todos os freudianos concordariam com a afirmação acima, mas isso é uma
outra conversa.
O encantamento é um estado de conhecimento. A qualidade que acende sua
198 vivacidade é o movimento perene e flexível da imaginação criadora. Uma qualidade
forjada no SEMPRE que se manifesta nas mais variadas situações: nas formas da
Natureza, nas brincadeiras das crianças (quando elas PODEM brincar), nas obras
de artistas, de cientistas, nos mitos e nos ritos das culturas tradicionais, em todas as
transgressões que transformam a História dos grupos humanos.
Outro menino de quatro anos estava brincando com sua avó. De repente a corrente elétrica
foi interrompida.
No escuro, disse a avó: “Nossa, a luz caiu!”
Logo em seguida tudo voltou ao normal. A avó outra vez: “Que bom, a luz voltou !”
O menino, em silêncio por um certo tempo, abriu um ar de descoberta: “Sabe, vó, eu estava
pensando. A luz caiu e depois ela voltou. Deve ser porque tem uma cama elástica dentro da
parede!” (Caso contado pela avó, Eliana)
O SEMPRE é também um lugar de risco, da aventura de formular hipóteses, de
alargamento do espaço do conhecido, como um salto livre para o que ainda não sei,
para o que tenho vontade de saber, ou até para o que sei, mas não sabia que sabia.
Digamos que não é exatamente na escola, na igreja, na família ou no ambiente
de trabalho que as pessoas do mundo de hoje são convidadas a esse tipo essencial de
busca de conhecimento.
Mas é precisamente no SEMPRE da arte da Fantasia, onde os contos tradicionais
milenares existem como expressão privilegiada e vigorosa, que esse convite é feito
a qualquer um, criança ou adulto, sem cerimônia ou hierarquia, planejamentos ou
dinâmicas de equipes de RH.
É a própria estrutura narrativa, desenhada como uma rede de relações simbólicas,
Regina Machado
que pega cada um pela mão e a gente se vê num instante lá dentro da estória brin-
cando de cabaninha, enredando nossa própria história nas ações dos personagens.
Na nossa vida, todos os dias de manhã acordamos para o desconhecido, mas nós
não nos lembramos disso.
Nas culturas tradicionais os mitos, artefatos, cantos, danças e outras narrativas
são documentos dessa lembrança, são símbolos.
Os contos tradicionais são uma substância que armazena, perpetua e difunde
199
conhecimento na forma de arte da Fantasia.
Os contos dispõem uma situação que instiga nossa curiosidade, por meio de uma
questão proposta logo no início da narrativa. E se a estória é boa, a gente se vê que-
rendo saber “o que será que vai acontecer...depois” . E pouco a pouco, como uma
espécie de contrário da alienação, que nos fixa no limite e na impossibilidade (“eu
sou assim, sabe, o que é que vou fazer...”), podemos experimentar a liberdade do
SEMPRE possível, num exercício de autonomia em que nos arriscamos a ficar horas
dentro do ventre de uma baleia, a voar nas costas de uma águia, a conversar com um
cavalo que é um príncipe encantado por um bruxo.
Visitar esse espaço do SEMPRE dentro de nós, penso que é uma necessidade.
Os contos tradicionais sacodem um lugar de confortável aparente certeza em que
nos escoramos no dia a dia e desafiam em nós algum tipo de representação imaginária
de limite. Enquanto acompanhamos o trajeto de um príncipe, de uma árvore, de uma
mulher serpente, de um peixe sonhador, vivendo junto o desnovelar da narrativa,
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
Regina Machado
seres humanos, com terra sob nossos pés e céu acima de nossas cabeças.
201
O ofício de viver o
contando histórias
[Cristiano Mota Mendes]
oN asci num tempo e lugar onde contar histórias era tão comum quanto apanhar
Nmanga madura em árvore ou caída na terra. Assim como frutos maduros jogavam
no ar seus cheiros, atraindo crianças e pássaros, as histórias contadas pelos mais velhos
nos atraíam para viagens no maravilhoso da imaginação.
Minha mãe e meu pai eram contadores de histórias de estilos bem diferentes.
Benzinho, minha mãe, era eclética e sedutora em suas narrativas, que podiam
começar em alguma versão ibérica de um conto de fadas e desembocar no Axixá,
litoral maranhense. Eram histórias e estórias misturadas aos personagens da família
203
e às toadas de bumba-meu-boi. Esta deliciosa transgressão das estórias tradicionais
em apropriação particular, íntima, povoou minha infância e meu interesse vida afora
pelas coisas que se mestiçam.
Benzinho era cantora e adorava cantar, imprimia às suas narrativas, quase sempre,
comentários musicais, a tal ponto que música e história se invadiam e vadiavam livre-
mente sem nenhum compromisso com os limites normais dos significados. Não é à
toa que eu e um dos meus irmãos, Ronaldo, nos tornamos músicos.
Já seu Raimundo, nosso pai, fazia mais a linha cartesiana, com começo, meio e fim.
Seus contares falavam quase sempre de bichos, rios e pássaros, índios do Pindaré,
de Barra-do-Corda. Seu Mundoca, como ele era conhecido no interior do Maranhão,
por onde vivia viajando, era um ambientalista romântico, andarilho, apaixonado por
sua terra. Trabalhou no antigo SPI, Serviço de Proteção ao Índio, precursor da Funai,
como seu pai, irmãos, primos e sobrinhos.
Certa vez, contava ele, estava viajando no rio Mearim com um grupo de caça-
dores, quando avistaram um bando de macacos-prego numa árvore grande, perto da
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
margem do rio. Um dos homens fez menção de apontar a arma para o bando. Ime-
diatamente, uma das fêmeas mostrou para o grupo de caçadores o filhotinho que car-
regava às costas, como se dissesse: “não me matem, que tenho meu filhinho pra criar”.
Esta história me marcou profundamente e creio que ela se mantém viva den-
tro de mim até hoje na compaixão e ternura que sinto pelos animais silvestres ou
domésticos. Uma pequena história, na narrativa de um bom contador, é capaz de
acompanhar e orientar um sentimento, contribuir decisivamente para uma formação
ética e humanista.
O ofício de contar histórias é um brinquedo mágico, misterioso e infinito. O
contador de histórias desenha um caminho que vai dar no coração de quem o escuta.
Se a tua Cigarra, contador, prenuncia a chuva ou se embriaga de néctar e jasmim,
não importa. Se o coração do ouvinte, criança, adulto ou velho, não se hipnotiza
por tua história é porque carece do sopro que acende a chama antiga feita de alma e
paixão. Eros e Psique.
204 Nenhuma narrativa, mito, causo, lenda, estória, resiste se não se atualiza dentro
de quem escuta ou lê.
Escutei mais de uma vez, de uma moça que trabalhava na casa dos meus pais, uma
história de sereia que nunca esqueci. A Sereia, contava Teresa, se banhava nas águas
de um poço, no quintal de sua casa, em Caxias no Maranhão.
Não era mãe d’água de um grande rio ou do alto-mar. Ela apenas se banhava no
poço e cantava na lua cheia com seus negros cabelos e nudez.
Cada casa do interior do mundo tem um poço com mãe d’água.
E cada sereia tem o sonho de um menino a visitar.
Muitos anos depois leria histórias de um poeta cego que falava de sereias e de
homens que tinham de ser amarrados aos mastros dos navios para não serem arrasta-
dos por elas ao fundo do mar. Alguns dizem que o tal do poeta não existiu. Talvez seja
a mistura de muitos poetas que caminhavam pelo mundo contando histórias.
Independente das histórias e seus narradores, o mar sempre existiu e por volta dos
16 anos de idade me vi dono de um barco que se chamava Tucum. Seu cavername,
espécie de esqueleto dos saveiros, foi trazido a reboque de Belém do Pará para São
Luís do Maranhão pelo meu professor e sócio, Clemens Hilbert, um músico alemão
aventureiro, que navegou por aqueles mares nos anos 1970 e 1980.
A reconstrução do Tucum, num tosco estaleiro da Gamboa, bairro de São Luís,
foi um acontecimento que não poderia esquecer. Dois mestres artesãos, irmãos,
foram recolocando a madeira do barco, meses a fio, num processo complicadíssimo
A Benzinho e Raimundo
Leituras Inspiradoras
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
206
207
O paciente como contador o
de sua própria história:
o olhar de um
médico homeopata
[Conrado Mariano]
oP ara toda história contada tem que existir um ouvinte, seja criança ou adulto,
Paluno ou não, espectador ou não, no meu caso, um médico, ofício que exerço
há pouco mais de trinta anos. Logo, ouço, por todo este tempo, histórias as mais
diversas, engraçadas por vezes, comuns de outras, dolorosas em grande parte. Seja
do ponto vista apenas físico, seja da alma, e, o mais comum, de ambos. Afinal, como
homeopata não dá para ouvir o que a alma tem para contar sem ouvir também o que
o corpo está falando, não apenas através do gestual, das atitudes, mas também, em
boa parte das vezes, principalmente, dos sintomas físicos. Desde sempre fui consi-
209
derado, por amigos e familiares, um bom ouvinte e admito que estão certos. Em todas
as histórias ouvidas, a pouca interferência é necessária para que possamos ocupar o
lugar do outro naquela história. É preciso que aquele que ouve, entenda a história
pela perspectiva de quem conta. Muitas vezes histórias contadas por pessoas com
outros hábitos, com outras culturas, outras maneiras de entender a vida, são muito
diferentes das daquele que ouve. Mas uma coisa é comum a todos e não depende de
nenhuma destas categorias: a emoção. Esta, sim, é universal. Não há ser humano, de
qualquer parte do mundo, que viva sob seja qual for o regime político ou religioso,
sob qualquer cultura, que não tenha emoções.
Assim, fui treinando, durante a vida, esta arte de escutar, colocando-me sempre
no lugar de quem conta. Sem julgar, sem avaliar, sem criticar, sem intervir, apenas
ouvindo e buscando entender não apenas aquela história que me contam, mas o
sujeito que a vive e a relata. Aprendi, com isso, que ouvir talvez seja a forma mais amo-
rosa de acolhimento, desde que não tomemos como nosso o direito de julgar, deter-
minar normas de vida, enfim, prescrever um estilo de vida para o outro. Temos que
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
saber que quem conta sua história quer, antes de tudo, ser ouvido e compreendido.
Só, mais nada. Só assim, penso eu, poderemos entender o que o outro está falando,
na visão do outro, claro. Não adianta, neste caso, avaliarmos ou emitirmos qualquer
julgamento, principalmente de valores. Importa sim, entender o outro. Não se trata
de uma história arquetípica, ou que leve a uma reflexão ética, ou que nos traga uma
mensagem que nos obrigue a pensar. Não é destas histórias que eu falo, pois estas
devem ser contadas por profissionais experientes no ofício de contar histórias, por
atores, atrizes, bailarinos e músicos, afinal as histórias não precisam ser contadas ape-
nas oralmente. Falo não destas histórias, mas de outra: das histórias que são contadas
por aqueles que vivenciam experiências durante sua existência e com elas constroem
suas vidas.
Pelo tipo de trabalho que executo, ouvir histórias faz parte do cotidiano e se apren-
de na faculdade – até hoje me lembro da aula sobre anamnese, estava no terceiro ano
da faculdade — a “obter uma história” sempre a partir da anamnese que nada mais é
210 do que uma investigação oral sobre os sintomas que o paciente nos relata. Assim, com
determinados sintomas relatados, algumas perguntas feitas, bem objetivas, para algu-
mas caracterizações, temos uma história clinica que, com alguns exames solicitados,
vão permitir um diagnóstico e tratamento adequados. Não é da história clínica que eu
falo, afinal esta é uma história guiada pelo médico, mas da história daquela pessoa que
está ali com aqueles sintomas os quais, em si, falam da doença, mas não do doente.
Para que eu possa ouvir e entender aquela pessoa sentada à minha frente, o relato
tem que ser outro, acompanhado de sintomas clínicos muitas vezes, mas estes isola-
damente são insuficientes para que eu possa lidar com o indivíduo que sente a dor.
Diversas foram e são as histórias que ouvi. Dos mais diversos tipos de pessoas.
Coisas que ouvi, as quais numa situação normal gerariam, inclusive, reações fortes,
mas o papel de médico homeopata nos coloca de tal forma isento, visto que o mais
importante no momento da consulta é a possibilidade de se entender o que o paci-
ente nos relata e a maneira pela qual, peculiarmente, ela a vivencia. Busca-se identifi-
car, nestes casos, a emoção que acompanha uma atitude. A intencionalidade emotiva
da ação faz transparecer uma particularidade que mostra a identificação daquele ser:
a sua essência. Certa vez ouvi dizer que ninguém é de todo mau nem de todo bom.
Claro, não podemos pensar no ser humano de forma maniqueísta, afinal o bom e o
mau existem em todos nós. Só somos bons porque conhecemos valores que são maus.
Isso aparece no paciente e o homeopata consegue perceber isso pelos conceitos que
aprende de homem, doença e cura.
Uma paciente, um dia, me contou: “... me despedi do meu marido e saí, esqueci
um documento e precisei voltar para casa e o ouvi ao telefone, pelo papo, desconfiei
Conrado Mariano
e não deu outra: ele tinha uma amante. Me descontrolei, estou neste estado que você
vê. A forma como ele falou de mim para a outra me destruiu. Segui a mulher, cheguei
a bater na casa dela, mas graças a Deus não havia ninguém em casa. Não sei o que
eu faria. Entretanto, tenho que confessar: eu já o traí, com um amigo dele. Mas não
suporto a ideia de ter sido traída por ele. Sei que estou sendo injusta, eu também já
fiz isso, mas não consigo fazer diferente”. Este é apenas um trecho do que ouvi da
história de uma mulher asmática. A asma, em si, me diria o quê? O que eu poderia
211
fazer por uma pessoa com asma, além dos medicamentos específicos para o quadro?
A asma, neste caso, é uma história, mas incompleta.
Uma outra história mais ilustrativa disso se refere a uma paciente que me disse:
“... tenho medo de mudanças, acabo deixando as coisas ficarem como estão, mesmo
que não me agradem, mesmo que eu não esteja feliz, tenho medo de mudanças pois
sempre acho que será para pior, não consigo me imaginar promovendo uma mudança
na minha vida, mesmo pensando que seria para melhor e acabar sendo para pior,
então fico nessa situação tão ruim tanto no trabalho quanto em casa”. Neste caso, o
que a paciente apresentava era um quadro de mialgia, que se concentrava nas pernas.
Pelas dores, era impedida de executar alguns movimentos, ou pelo menos os difi-
cultava. Há um nexo entre o quadro emocional com o clínico, pois, para quem não
consegue fazer movimentos de mudanças em sua vida, mesmo quando está infeliz,
pode-se entender que os músculos não responderão de forma adequada aos movi-
mentos solicitados.
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
O corpo fala! Este último relato mostra como se pode ouvir o que ele nos diz e o
relato de quem conta sua história apenas confirma e modaliza aquilo que está sendo
dito pelos sintomas. Contar uma história, para nós, não se restringe a algo pontual,
a apenas um período de uma vida, mas ao que aquela determinada pessoa teve de
experiências ao logo de todo o período de vida até aquele momento. As emoções se
repetem ao logo de nossas vidas, são elas que refletem nossa essência, são elas que
nos identificam e são elas que permitem que tenhamos consciência de quem somos e
como somos, do que gostamos, do que não gostamos, do que nos entristece, do que
nos alegra. Do que nos dá raiva ou não. Enfim, são as nossas emoções que permitem
que possamos nos conhecer. Elas permitem, assim, que possamos ser os atores princi-
pais de nossas vidas, que possamos ser, então, contadores de nossas próprias histórias.
Leituras Inspiradoras
212
u Éthique à Nicomaque. Aristóteles. Trad. et presentation par Richard Bodéüs. Flam-
marion, 2004.
u De l`âme. Aristóteles. Traduit par E. Barbotin. Belles Lettres, 2002.
u La connaissance de la vie. George Canguilhem. Librarie Philosophique J. Vrin, 1975.
u Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. George Canguilhem. Edições 70, 1977.
:prosa final
213
As águas da memória o
e os guardadores da
corrente de histórias
[Maria de Lourdes Soares]
o
1. Memória de Mnemosyne
Gente da palavra. Antigos aedos e rapsodos gregos (rápthein áoidén, aqueles que
sabem costurar cantos), assim como os griots da África de nossos dias, são garantes
da permanência da memória em sociedades fundadas sobre a tradição oral, em que
217
contar histórias não é um evento à parte, mas algo constitutivo do próprio cotidiano.
Com razão Alex Haley dirá: “quando um griot morre é como se toda uma biblioteca
tivesse sido arrasada pelo fogo”.
Guardiã das tradições orais, a cantadora-contadora Clarissa Pinkola Estés (autora
de O dom das histórias e Mulheres que correm com os lobos) nasceu da confluência de duas
linhagens: a das contadoras húngaras (mesenmondók) e a das latinas (cuentistas). Segun-
do o legado de que Clarissa descende, “acredita-se que as histórias são escritas como
uma leve tatuagem na pele de quem as viveu”. Essa espécie de “escrita levíssima” faz
lembrar as tatuagens dos griots, pergaminhos de palavras andantes, de aldeia em aldeia.
As arquetípicas narradoras velhas e sábias são transportadas para os textos impres-
sos da cultura letrada (nas maternas figuras de criadas, amas ou avós, como a Mamãe
Gansa), que ficcionam a voz carinhosa da contadora e a memória de uma origem
ligada ao contexto da oralidade. Na verdade, relato oral e escrito se entrelaçam e retro-
alimentam: “a linguagem conduz da boca para a página e vice-versa, e a ‘oratura’, ou
Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes
a literatura oral, no Ocidente não existiu de modo isolado desde os tempos homéri-
cos” (Marina Warner). Às duas categorias de narradores postuladas e associadas por
Walter Benjamin – a do camponês sedentário, que recolhe o saber do passado, e a do
marinheiro comerciante, que traz o saber das terras distantes –, Marina Warner acres-
centa a da fiandeira, “mulher madura com sua roca”, que se tornou “ícone genérico
da narrativa nas capas de coleções de fadas a partir de Charles Perrault”.
A esta linhagem pertencem também D. Benta e Tia Nastácia (Monteiro Lobato),
inseparáveis repositórios do saber erudito e popular, respectivamente. Outra figura
que remete às maternais contadoras de histórias e também às antigas deusas da fecun-
didade é a mulher de saia imensa, toda cheia de bolsos, que canta e conta histórias,
“espiando papeizinhos, como que lê a sorte de soslaio”: “dos bolsos vai tirando
papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada,
de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por
arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das pro-
218 fundidades desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que
vai vivendo, que dizendo vai” (Eduardo Galeano).
Contadores conhecem bem o seu ofício e, não raro, também escrevem lindamente.
O contador – afirma Galeano – é alguém prenhe, “grávido de gente. Gente que sai
por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o
narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado de pessoinhas”. Cada
contador – lembra Clarissa – sabe que “contar ou ouvir histórias deriva da energia
de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço,
sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e reple-
tos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo viva. Se existe uma única fonte das
histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos”.
Narrar, tecer, curar. Walter Benjamin, no artigo “Narrar e curar”, a propósito
da extraordinária força de cura das mãos e da voz de uma mulher que contava histó-
rias junto ao leito do filho enfermo, conjectura: “toda doença não seria curável, con-
tanto que se deixasse levar suficientemente longe – até a embocadura – pela corrente
da narrativa?” E conclui: “O acaricial desenha um leito para essa corrente”.
Por sua vez, como educador e terapeuta de crianças gravemente perturbadas, cuja
tarefa principal foi restaurar um significado na vida delas, Bruno Betelheim desta-
cou, do conjunto da literatura infantil, os contos de fadas, por proporcionarem “as
experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encon-
trar sentido na vida”, ajudando a criança a lidar com a “perplexidade existencial”.
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& De quem são essas vozes o
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Affonso Romano de Sant’Anna, poeta, ensaísta e cronis-
ta com mais de cinquenta obras publicadas. Ministrou cursos na Universidade
de Köln (Alemanha), Universidade do Texas (EUA), Universidade de Aarhus
(Dinamarca), Universidade Nova (Portugal) e Universidade de Aix-en-Provence
(França). Dirigiu o departamento de Letras da PUC-Rio. Presidiu a Biblioteca
Nacional (1991-1996) possibilitando a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas,
do Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), exportando a literatura 225
brasileira e modernizando a instituição. Foi cronista do Jornal do Brasil e d’O
Globo. Atualmente, escreve para O Estado de Minas e Correio Brasiliense.
228
das sobre temas de Leitura na América Latina, onde seu discurso teve uma imensa
recepção, principalmente no México e Colômbia. Doutorou-se em Letras e Lin-
guística pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio, e pela Universidade de
Málaga, Espanha. Também é ensaísta, crítica e pesquisadora de temas relacionados
com a Formação de Leitores, Infância e Cultura. É assessora da UNESCO para
Políticas de Leitura, Coordenadora adjunta da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-
Rio, Consultora do CERLALC e do PNLL. Tem artigos e livros publicados tanto no
Brasil como em outras partes do mundo, com ênfase no tema Leitura, bem como
em Teoria Literária, Literatura Comparada e trabalhos interdisciplinares.
com Gregório Filho, Miza Carvalho e Lorena Best. Tem grande atuação no Bairro
da Maré do Rio de Janeiro como contadora de histórias no Museu da Maré, insti-
tuição pioneira no Brasil na preservação de memória das comunidades e na biblio-
teca municipal Jorge Amado da lona cultural Herbert Vianna. Coordena projeto de
incentivo a leitura para crianças de seis a treze anos na biblioteca Elias José.
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