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E ." O ·
A chamada crise da ética ultrapas· dade, o respeito à vida e à liber-
sou os tratados de filosofia p ara dade individual, em nome de que
chegar à imprensa e ao cidadão estamos falando: d e uma essência
comum. As razões estão no dia- ou natureza humana que se reali-
a-dia: a erosão das utopias políti- za nesses atos e valores? Ou de
cas o renascimento do racismo, urna experiência cultural particu-
a d~gradação da esfera pública lar que os engendrou e os tor~~u
por interesses privados, o abismo preferíveis? Rec~sar uma v~s~o
crescente entre miséria absoluta fundacional implica um relattvts-
e fruição do supérfluo, a banali- mo dos preceitos éticos?
zaçâo da violência nos espaços ur- Apoiado em Wittgenstein,
banos são alguns dos problemas Davidson, Rorty, Sellars, o autor
para os quais percebe·se não haver repõ e em discussão os.f';ffid~en­
solução que prescinda de uma dis- tos das reflexões tradic10nats so-
cussão partilhada sobre os ideais bre a ética, submetendo à crítica
projetados em nossos horizontes concepções essencialistas, metafí-
políticos e sociais. sicas ou fundacionais. Com urna
Além disso, as inovações tec- perspectiva neo~rag~áti~a, anali-
nológicas no campo da eng~nh~­ sa a crise e suas tmphcaçoes a par-
ria genética e no campo da mteh- tir do compromisso com os valo-
gência artificial redesenham a res da tradição democrática, hu-
auto-imagem que cultivamos du- manitária pluralista e individua-
rante milênios. Quando se trata de lista da c~ltura ocidental. A ética
pensar sobre o ser humano e a vi- e o espelho da cultura é um livro
da entre os membros de sua espé- claro e sucinto, rico em observa-
cie, a natureza já não
. serve
. mais ções originais, pr~ciso . na .argu-
de espelho, nem de guia. mentação. Uma leitura mstigante
Não se podem enfrentar os e extremamente útil para os que se
problemas do mundo em que vi- interessam pelos impasses éticos e
vemos sem discutir os valores que os destinos de nossa cultura.
sustentam nossas soluções. Quan-
do lutamos contra o totalitarismo,
Benilton Bezerra Júnior
a desigualdade social, ou quando Psicanalista c professor
pregamos a tolerância, a solidarie- do Instituto de Medicina Social da UERJ
AÉTICA
E
OESPELHO DACULTURA
JURANDIR FREIRE COSTA

AETICA
E
OESPELHO DA CULTURA
3~ EDIÇÃO

Rio de Janeiro- 2000


Co'J)Iyíghl ~ 19'J 4 IJg Jurandir F'reiff Costa

re~t,rvru:loo à
Dirl"ito;o; desta edição
F.mTOHA HOCCO LTDA.
Rua Rolirigo Silva, 26 -- !;7 andar
20011.{140 Rio dt• Janeiro. RJ
Td.: 507-2000 - f'ax; 507-2244

l 'rit!lf!d i11 Bl-azi/1 lmprr.sS<J no Dra.~il

preparação d t> originais


I..t:NY CORDEIRO

Cll'-l:lrasil. Cat<~logação-na-Jonl.l'
SiJldl~aJo Nacional dos F..dl!on>.~ dt• Livros, lU.

Col;ta, Jumndir Freire, 1!!44 -


C873e A P.tica c o ('SpelllO da <:ultur.t I J urandir Freire C-osta. ·-
Rio c1e Jandro: Rocco, l!l!H.

1. Éti<'a. 2. Tlr11.~il - Condi\"iX'S morais. L 'l'íl.ulo.

Clll >-170
94-1061 CDU -17
Para Célia, Ciça e Guga, pelo que pude, pelo que não pude.
Em memória do mestre, amigo, Philippe Paumelle, willwut
wlwmwt.
Em memória de Bubi, doze anos depois.
SUMÁRIO

Prefácio - .José Castello .......... ..... ... ..... .... ........................ 9


Introdução - Como nos espelhos, em enigmas .. .......... 17

ÉTICA PÚBUCA

.A,. faca no coração............................................................... 59


A razão cínica...................................................................... 62
Era uma vez a Alnérica ................. ........ ... .. ... .... ................. 71
Moral by tcchnicolor ..... .... .... .... .... .... .............. .... .... .... .... ... 76
Abominável mundo novo................................................... 81
Panorama visto do muro .. .. .. ... ..... .. .... .. .. .... .. ... .. .. .. .. .. .. .. .. .. 84
Os inlorais......................................................... ....... .... ........ 89
Oh! que delícia de máquina............................................... 92
O silêncio de um p ensador de bem .. .... .. .. .. .. .. .. .. .... ... .. .. ... 95
A lista do Betinho .... .... .... .... ... .... ... ... .................................. 98
Hennógenes e Reinaldo ..................................................... 102

ÉTICA PRIVADA

O governo dos sexos.......................................................... 107


Homossexualismo I homoerotismo.................. ................ 113
Homoerotísmo: a palavra e a coisa.................................. 117
A crueldade e a ética.......................................................... 12~.
Morrer aqui e agora............................................................ -!,?_7,: ·· '}.
Inocência útil....................................................................... 130
Eros na Gréda Antiga........................................................ 133
Richard Rorty e a psicanálise............................................ 137
SITUAÇÕES

Freud: ontem, ho.je, amanhã.............................................. 143


O sexo moderno e a cultura do sentimento.................... 151
O ocaso da f3.1Tlília ... ....... .. ... .. .. .. .. .. .. ... .. ... ... ... .. ... ....... ... .. .. .. 155
Murilo Salles e a ética do alheamento ......... ........... ... .... .. 159
A crença como experimento............................................. 163
Um nome próprio da paixão............................................. 167
A moral que ousa dizer seu nome..................................... 171
O Brasil já merece o Brasil................................................ 173
PREFÁCIO

Quatro atributos, todos detestáveis, compõem o perfil da


cultura brasileira hoje: o cinismo, a delinqüência, a violên-
cia e o narcisismo. Não é fácil, antes é muito doloroso,
admitir que eles se tomaram a confusa imagem de nosso
país. O cotidiano brasileiro nos leva, sempre, a deparar
com cínicos, delinqüentes, homens violentos e lamentáveis
narcisistas com a pose de homens de bem. Heróis de tem-
pos obscuros, eles estão por toda parte - e um pouco den-
tro de nós mesmos. Não é fácil defrontar com essa imagem
no espelho. Guardamos urna ponta de desconfiança, tenta-
mos nos proteger, mas preferimos não pensar muito, e ver
apenas o indispensável para seguir em frente.
O psicanalista Jurandir Freire Costa, ao contrário, quer
fitar essa imagem frontalmente. Dai a importância - e a
contundência ..:._ do livro que o leitor agora tem ~em suas
mãos. Não é simples acaso que um psicanalista, e não um
sociólogo, um cientista político, um antropólogo, tome essa
decisão. Foi relendo Freud, com atenção voltada para a
realidade do pais, que Jurandir Freire Costa formulou seu
eshoço de temia do Brasil. Em textos que alguns psicana-
listas pragmáticos e contaminados de religiosidade científi-
ca preferem encarar como ficções freudianas em vez de
teoria psicanalítica- casos de "Mal-estar na civilização",
"Moisés e o monoteísmo" e "Psicologia de ma.o;sas" - ,
Freud mostrou que, sem um olhar que transcenda a realida-
de, sem um vôo sobre o real, o homem cai na agonia, na
atomização, no pânico. E perde a própria humanidade.
Desprovidos de ideais que produzam alguma ordenação
no mw1do concreto, homens desnorteados se afogam no
temor. Não há homem, pmtanto, sem um ide~. "Somos
lO A ÉTICA r; O ESPELHO DA ClJLTL'RA

nós, indivíduos, que inventamos os universos de valores


que nos pemtitem viver em comunidade, ou seja, assumin-
do compromissos", diz o psicanalista. "Só com valores nos
tornamos capazes de prometer. De prometer e de cumprir."
O homem se diferencia do animal justamente porque seu
destino não está traçado no automatismo do instinto. A
sociedade hmnana, fundada sobre um caos, precisa de a rti-
11cios culturais para sobreviver. "É em resposta à vulnerabi-
lidade do corpo, à potência esmagadora da natureza, à mor-
talidade que os homens inventam as civilizações", realça.
Quando o homem destrói este equipamento de seguran-
ç.a que o protege do perecimento, da evanescência, e retar-
da a morte, ele cai na mais absoluta dcsproteção. Toma-se,
então, capaz de tudo, porque não é wn animal cujos passos
estão delimitados pelas regras de wn impulso espontâneo e
alheio à razão. Sem a cultura, o homem se tornruia mais
desprotegido que o mais desprotegido dos arúrnais. "A natu-
reza não tem compromissos", lembra Jurandir Costa. "Para
p rocessos naturais, não existe valor. Tanto faz morrer ou
viver, porque tudo entra no mesmo ciclo da eternidade. Os
homens é que são capazes de construir um espaço humano
de pennanência." A cultura não é, portanto, como querem
crer os ideólogos da indústria cultural, um simples artefato
· de revestimento que retoca as aparências do universo
humano. Não é uma "superestrutura", como os marxistas
fizeram crer por década.c;; não é um luxo, uma pausa entre
dois momentos de seriedade, como faz crer a indústria da
diversão e do lazer. Ao contrário, ela é a própria condição
de sobrevivência do homem no planeta. "Se você ataca sis-
tematicamente o equilíbrio cultural de wn povo, você retira
dos indivíduos seu único dispositivo -de proteção para
enfrentar a desordem e o vazio", enfatiza o psicanalista.
Você se toma, então, um suicirla.
Toda essa digressão é indispensável para se entender a
vigorosa teoria do Brasil esboçada nos ensaios de Jurandir
Freire Costa. Estamos, hoj e, no país da descrença. "Os indi-
víduos no Brasil tomaram-se social c moralmente supér-
fluos", pensa o autor. "Eles nada valem corno cidadãos, pes-
soas que têm responsabilidades. Ao eontrário, são postos
em situaç:ão de desqualificação e de tutela." Pessoas lança-
PRF.F.<\CJO li

das neste fosso moral passam a descrer das leis. Valores,


regras, ética, comprontissos passam a ser entendidos, ape-
na~, como racionalizações que encobrem a violência.
Cidadãos amargos preenchem o vazio produzido por esta
descrença com uma moral cínica. "O que vigora hoje, no
Brasil, é uma razão cínica", identifica Jurandir Costa,
tomando emprestado um conceito de Peter Sloterd.ijk."No
lugar da indignação, produziu-se um discurso desmorali-
zante que diz que toda lei é convencionalismo, formalismo,
idealismo, conservadorismo."
Torpedeada a lei, é todo wn universo simbólico que d~
morona. Por isso esta sensação nacional de que nada mais
tem valor: de que tudo "tennina em pizza". Tornamo-nos,
todos, homens sem pudor. Não são apenas os marginais
orgarúzados em falanges para o que der e vier, nem os polí-
tícos destilados na malversação e na corrupção renitente
que se deixam dirigir por essa razão cínica. "Existe um elo
indissolúvel entre o político que lesa o erário público, o
cidadão que ultrapassa o sinal vermelho e o assaltante que
mata", aponta o psicanalista. "Todos deixaram de levar em
conta a lei." Mas nos parece muito sensato, quase sempre,
ultrapassar o sinal vermelho enquanto reclamamos do
deputado corrupto, o u falsificar um recibo médico para o
imposto de renda enquanto lamentamos o aumento da vio-
lência nas cidades. Realizamos uma cisão entre duaS esfe-
ras de valor, uma indignada e furiosa, outra generosa e con-
descendente, e acreditamos com isso salvar a própria pele.
Exercitamos, assim, nosso cinismo.
Nada mais ilusório. Ora, o que é a lei senão esta conven-
ção sem a qual não podemos sobreviver à desordem da
natureza? ~ aniquilação da lei é, então, um ato suicida Um
exercício de auto-agressão. Um motorista que estaciona na
faixa de pedestres é, em certo sentido, tão violento quanto
um a~saltante que metralha sua vítima. Ambos se julgam
acima da lei e estão se destruindo com isso. "A cultura da
delinqüência é uma cultura suicida porque nós, homens,
enquanto espécie, não temos o instinto de sobrevivência
pam nos proteger", adverte Jurandir Costa. Mas cidadãos
que atuam embriagados pela cultura da delinqüência têm
os olhos vedados pela ilusão de que podem escapar impu-
12 A éTICA F: O F.SP~~UIO DA CULTCRA

nemente da dissolução sociaL Não podem, e aqui começa


nossa tragédia brasileira.
O cidadão que estaciona em fila tripla para esperar o
filho diant~ do colégio age, ainda que em proporções dife-
rentes, com a mesma arrogância delinqüente do marginal
que fuzila o caixa de um banco ou a gangue que executa o
motorista de um carro-forte. Todos atuam munidos da ilu-
são de que, apesar de tudo, irão escapar. Esta desqualifica-
ção da lei inclui, em seu extremo, um ataque à política.
Vivemos num país em que a política está quase identificada
à delinqüência. Disso se conclui que, se políticos no fim das
contas agem movidos por razões inconfessáveis, todos
devemos fazer o mesmo, ou seremos ingênuos e fracos. "No
Brasil, você começa a ter uma desvalorização da política
em favor de uma cultura marginal, de delinqüência, e dos
interesses p~iculares de cada um", aponta o autor. Se a
política deixa de ser o espaço próprio ao exercício da liber-
dade para se tomar o lugar privilegiado da delinqüência, os
cidadãos intimidados retraem-se nos mecanismos cegos de
sobrevivência que o pensador americano Christopher Lasch
chamou de "núnirno eu". Estamos em um pais fragmentado
em pequenos e cínicos eus. Um país de anões, com suas
almas toscas e seu desejo perverso de invisibilidade.
Mas eis a serpente enroscada sobre si mesma: na cultu-
ra da sobrevivência, em que os indivíduos investem todas
as energias na defesa de um terreno mínimo de sobrevivên-
cia, a conduta social de regra é a própria delinqüência "O
que a razão cínica faz é dizer que não existe mundo de valo-
res, porque qualquer valor é produto da violência", mostra
Jurandir Costa. Chegamos, assim, à terra do "salve-se quem
puder", e escalamos os pescoços uns d~s outros hipnotiza-
dos pela utopia da redenção individual. "Mas, se não existe
mundo de valores, qualquer situação é válida. Desaparece,
então, qualquer possibilidade de reflexão ética" Se tudo é
possível, nada é possível: restam apenas a indiferenciação e
a escuridão.
Estamos em um país que pensa assim: ou você explora,
ou você engana, ou você é calhoi·da, ou você é escroque, ou
não há saída Por quê? Porque quem faz a lei é quem
manda, quem se beneficia da lei são os amigos, quem legis-
PREFÁCIO 13

la está comprometido unicamente com seus interesses pes-


soais. Uma lei que fosse igual para todos é, portanto, menti-
ra. Num país que pensa nesses termos, quem age dentro da
lei cai no ridículo. Parece agir contra si mesmo, parece bus-
car a derrota. "É esse cinismo aplicado à vida cotidiana que
se torna o mais perigoso", diz o psicanalista.
Os cidadãos brasileiros parecem, hoje, condenados a
um destes dois terriveis destinos: ou se tomam burocratas
obedientes, indivíduos rotineiros que fazem da anulação de
si uma maneira de ser; ou reagem tomados pela arrogância
delinqüente, atributo extremo de uma cultura regida pelo
narcisismo. Os obedientes enfileiram-se na legião de prova-
dores daquilo que Hannah Arendt chamou de "banalidade
do mal", porque até o mais enlouquecido torturador é,
antes de tudo, um burocrata dobrado pelo desejo de obede-
cer. Os que optam por delinqüir, perdendo a noção de prê-
mio e sanção, de permissão e interdição, afundam-se na
cultura do narcisismo e do cinismo. O burocrata servil é, na
aparência, o oposto do delinqüente arrogante, mas ambos
fazem o mesmo tipo de jogo: desmerecem a importância
de um ideal.
Aqui voltamos a Freud. Sem um ideal que caucione a
vida social, o homem se toma um ente que viaja na escuri-
dão. Passa a sofrer, então, de um "pânico narcísico",
expressão pescada por Freud num romance de segunda
c:lasse inglês chamado Whem it 'U.Ja.s dark, que descreve a
desordem provocada por uma suposta descoberta científi-
ca de que Jesus Cristo não foi, de fato, imortal. O "pânico
narcísico" é um efeito, avassalador, de situações em que o
homem perde suas referências de equilíbrio. Diante dele, a
opção é a fruição imediata do mundo. O espelho de Narciso
é o presente tornado destino. O futuro se transforma ape-
na~ numa quimera, estúpida, que esfarela em nossas mãos.
O sentimento dominante, então, é o de "fim de festa".
Estamos próximos, é preciso dar o nome, da psicopatia. "O
que é o psicopata senão aquele que, dentro de uma cultura
que funciona adequadamente, é cego em relação a valo-
res?", pergunta Jurandir Costa. «se todos passam a agir à
revelia da lei, entramos de fato muna cultura de psicopa-
tac;;." Mas o autor, prudente em relação aos estigmas de
14 A ÉTICA E O ESPELHO DA C l JLTUHA

hábito acoplados à noção psiquiátrica de psicopatia, prefe-


re falar mesmo em delinqüência. O que desnorteia o país
hoje é, mais que que uma dpença, o sentimento de que
fomos lançados de volta a um tempo primitivo e disforme,
anterior a toda lei.
Em tempos sombrios, o narcisismo aparenta ser a única
máscara capaz de garantir ao homem um mínimo de imuni-
dade. Só provido da cápsula narcísica ele ainda pode sentir
confiança para navegar pelos desvãos de um país que exter-
minou a lei. Mas aqui é preciso fazer mna distinção: a cultu-
ra do narcisismo e da delinqüência não é um atributo
necessário da cultura da violência Mas o que parece um
alívio é um perigo. "Em regimes totalitários, regidos pela
violência, leis draconianas podem manter a sociedade ftm-
cionando, porque ainda resta a lei da obediência a um só
líder", distingue o psicanalista. Mas é uma coesão mecâni-
ca, produzida pela dissuasão, pelo medo, pela intimidação.
A cultura do narcisismo formou-se no Brasil, cabe lembrar,
após a queda do autoritarismo. "Foi a incapacidade dos
políticos de catalisar o desejo de mudança que produziu a
descrença e justificou a delinqüência", diz o autor. Por isso
parece fazer sentido, hoje, o sentimento irre~;ponsável de
que nos tempos do regime autoritário, ao menos, o país
tinha alguma lei.· Aqui Jurandir Costa nos deixa diante de
uma grave advertência: num país em que a lei foi posta em
descrédito, qualquer promessa de lei, por mais draconiana
que seja, ou talvez quanto mais draconiana for, pode com-
portar um poder de sedução irresistível. Surge uma ilusão:
a do "eu era feliz e não sabian. Podemos estar montados, na
cegueira de nosso pânico, sobre o ovo da serpente. A cultu-
ra narcísica é, em algum grau de possibilidade, uma cultura
pré-fascista. Justiceiros moralistas, seitas fanáticas e ski.n
heads espocando aqui e ali nos fornecem, hoje, indícios
desse risco.
A análise afiada de Jurandir Freire Costa, desenvolvida
em ensaios esparsos mas contundentes publicados na
imprensa e reunidos nesta coletânea, nos coloca cara a
cara com um perigo: o da paralisia social O sintoma da
doença brasileira pode ser, hoje, a incapacidade de reação.
Ou o sentimento generalizado de que qualquer reação se
PREFÁCIO 15

transfonna, inevitavelmente, (>.m frustração. Mesmo aqueles


que conservam mn mínimo de responsabilidade para com o
país não escapam dessa sensação de impotência. "Enfatizo
isso porque não tenho uma visão idílica do que pode vir a
acontecer", admoesta o psicanalista. E, desmontando a
hipótese de qualquer falsificação de seu pensamento em
catecismo idealista, adverte: "Eu acho que o Brasil pode
não dar certo, acho que a catástrofe pode chegar. Nada
assegura que as coisas tenham solução. Há coisas que se
encaminham para um ponto em que não há mais solução
possível."
Jurandir Costa não faz essa dura advertência movido
pelo pessimismo, mas pelo n ?a..li<>mo e pelo desejo de rea-
ção. O desencanto pode, de fato, destruir o país - e é con-
tra ele que se deve agora lutar. "As classes médias pa.c;sam a
sentir, ultimamente, o mesmo vazio de perspectiva que
sempre foi sentido pelas populações marginalizadas", apon-
ta. "Elas nunca tiveram qualquer universo de esperança. Só
que isso, que antes era sentido apenas no gueto, passa
agora a ser comum a todos nós." O cinismo aparece, na ver-
dade, para encobrir o sofrimento. O amargor, a ironia enco-
brem a tristeza e a desesperança E nunca é bom fugir do
sofrimento e da infelicidade. A saída narcísica leva os cida-
dãos a buscar a felicidade na proteção de suas casas, muni-
dos de artefatos de consumo cada vez mais sofisticados,
mas cada vez mais descrentes de qualquer saída coletiva.
d'urandir Costa pensa que o que está em jogo, por fim, é a
liberdade. "A liberdade, no sentido clássico, é a liberdade
de sair à rua, de pruticipar do convívio comum. Era isso o
que o escravo não tinha, e era por isso que ele não era
livre." Intimidados pela violência, desconfiados até dos
amigos e enclausurados em nossa vida privada, tomamo-
nos escravos do medo. Tomamo-nos nossos próprios car-
cereiros.
Cidadãos reclusos em seu narcisismo, armados de cinis -
mo até a alma, convictos de que atuar socialmente é o
mesmo que delinqüir, vivemos da ilusão de que podemos
escapac solitários da catástrofe. "Não vamos escapar", cnfa-
tiza Jurandir Costa "A espécie hlmtana não tem instinto de
sobrevivência Ela pode explodir o planeta de uma hora
l(i A ÉTICA E O r~SPELIIO UA CULTURA

para outra, pode fazer da própria vida mn verdadeiro infer-


no." O que a protege de si mesma é, nunca é demais insistir,
a cultw-a. Este mundo de leis e ideais que transcende cada
dese-jo individual e nos faz empenhar a palavra e depois
cumpri-la. Sem os limites ditados por esta lei, o país pe mla-
necerá enjaulado nas pequenas miriades do narcisismo. É
ele que nos enlouquece.
Os artigos e entrevistas de Jurandir Freire Costa reuni-
dos nesse livro servem, seguramente, como um poderoso
antídoto contra o pessimismo e a desilusão. Suas idéias,
cruas e difíceis, a princípio fazem estremecer; mas logo,
pa'5sado o susto, nos levam a pensar. Não há, hoje, caminho
fácil para os que desejam formular uma saída para o Brasil.
Não e.xistem atalhos floridos, nem passagens secreta'5
mágicac;;, ou vias expressas de segurança máxima. O cami-
nho que temos pela frente é longo, tortuoso e inseguro.
Nada garante, além disso, que encontraremos a luz em seu
fim. Mas nossa única chance é lutar.

JOSÉ CASTELLO
INTRODUÇÃO
COMO NOS ESPELHOS, EM ENIGMAS

Os textos deste livro dizem respeito à ética. Antes, foram


todos publicados em jornais, donde o tom direto c por
vezes abrupto das afinnações. O meio de divulgação impõe
o estilo do argumento. Aproveito esta edição para expor e
justificar, de modo mais sistemático, o que penso sobre a
questão. No primeiro tópico desta introdução, apresento, de
forma breve, os fundamentos teóricos da visão que tenho
da ética. Trata-se de um conjwlto de argumentos técrúcos, e
o leitor menos interessado no assunto pode passar aos tópi-
cos seguintes, sem comprometer o nexo da leitura. Em
seguida, abordo problemas que julgo relevantes para nossa
vida moral, à luz das noções anteriormente discutida'5.

Porque não tive a intenção de dirigir-me exclusiva-


mente a especialistas, tentei busear um justo equilíbrio
entre a precisão do conceito e a familiaridade com a lingua-
gem cotidiana. Nem sempre foi possível; nem sei se seria
possível. O próprio assunto limita a exigência Nada mais
fácil do que agir eticamente; nada mais difícil do que querer
dizer o que é ética Talvez porque, no dia em que pudésse-
mos falar de ética por meio de idéias claras e distintas, já
não estaríamos falando de ética. Teríamos chegado ao lugar
em que o bem e o mal; a dor e a felicidade; o sofrimento e a
alegria; a esperança e a descrença; a efemeridade e a per-
man ê ncia separam-se d esde sempre e para sempre.
Seríamos anjos, deuses ou demônios, nunca homens. Ser
humano é falar, e quem fala se engana, erra, acerta, volta
atrás, em suma, faz tudo aquilo que dá sentido e valor a
palavras como decisão e -responsabilidade. Um mundo de
IR A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

certezas seria um mundo moralmente imóvel. Como na


imagem da lógica., a razão SP.ria implacável em suas premis-
sas e conseqüências. Este mundo é conhecido. Orwell e
Huxley pintaram-no na ficção; Hannah Arendt, na história
dos totalitarismos. Quando os homens não mais hesitam na
busca da "homologia consigo mesmos", cessam as dúvidas,
começa o horror. Da ética pode-se dizer o que Paulo disse
aos corintios sobre o bem: enquanto homens, só podemos
vê-lo em lusco-fusco, como nos espelhos, ern enigmas.
Face a face, só no encontro com Deus. Wittgenstein apro-
varia esta metáfora. Ele, como Freud, aproximou-se da lin-
guagem. Chegou perto da cena onde o bem mostra sua pre-
cariedade e a condição humana, sua futilidade. Aí nasce a
sede de ética

1. Sobre a ética

Na "Conferência sobre a ética", Wittgenstein dizia: ( ... ) "se


um homem pudesse e$crever um livro sobre ética que fosse
realmente um livro sobre ética, este livro, como uma explo-
são, aniquilaria todos os outros livros do mundo"
(Wi ttgenstein, 1971 p . 147) . O livro nunca foi escrito .
Continuamos a falar sobre ética. Incessantemente, incansa-
velmente. O que é ética? Vejamos algumas opiniões. Ética é
a "ciência dos fins, meios e móveis da conduta, a partir do
estudo da natureza humana" (Abbagnano, 1982 p. 360); ou
"é a ciência que tem por objeto o julgamento aplicado à dis-
tinção do bem e d o mal" (Lalande, 1972 p . 305); ou, "é o
ramo do saber ou disciplina que se ocupa dos juízos de
aprovação e reprovação, dos juízos quanto à retidão ou
incorreção, bondade ou maldade, virtude ou vício, desejabi-
lidade ou a sabedoria de ações, disposições, fms, objetivos
ou estados de coisas" (Runes, 1990 p. 128), ou, finalmente,
"é a parte da filosofia prática que tem por objetivo elaborar
uma reflexão sobre os problemas fundamentais da moral
(finalidade e sentido da vida humana, os fundamentos da
obrigação c do dever, natureza do bem e do mal, o valor da
consciência moral etc.), mas fundada num estudo metaiísi-
JNT ROD UÇÃO t!l

co do conjunto das regras de conduta consideradas urúver-


salmente válidas" (Japia.ssú & Marcondes, 1989 p. 90).
; Todas as noções têm um certo parentesco. Tratam da
conduta humana diante do bem e do rnail. Ou, corno na for-
mulação de Wittgenstein, "daquilo que tem valor", "do que
rea lmente tem importância", "do sentido da vida", "do que
t.orna a vida digna de ser vivida" ou "da maneira correta de
viver" (Wittgenstein, op. cit. pp. 143-44) . Ética, portanto, é
toda ação humana que toma por objeto de intervenção
outra ação humana, do próprio agente ou de um outro.
Somos humanos e por isso agimos, disse Hannah Arendt. E
quando ag imos, agimos ipso jacto eticamente, disse
Wi ttgenstein. Quando Rush Rhees, um de seus alunos, per-
guntou-lhe o que achava da frase de Goering, "correto é
tudo que nos agrada", Witt:genstein respondeu: "Mesmo isto
é um tipo de ética" (ibid. p. 173). Por quê? Porque o bem e o
mal, o bom e o mau não existem na natureza "Nada é bom,
nada é mau", repetia Wittgenstein, citando Hamlet (ibid. p.
146). Uma ação humana só pode ser qualificada de boa ou
má por um julgamento do pensamento. Ética é um feito e
um discurso. Existe porque uma dada conduta pode ser
avaliada por meio de descrições que a apresentam como
boa ou má. A pergunta volta: como saber se uma ação é
boa ou má?
Inúmeras incursões foram feitas neste terreno. Opto
por seguir a linha de il)-vestigação wittgensteiniana e as que
dela estão próximas. E um ponto de vista particular, longe
de ser unânime, mas é o que me parece mais aceitável.
Parto do princípio, aparentemente óbvio, de que só pode-
mos julgar moralmente uma conduta quando podemos
reconh ecê-la como portadora de um sentido ético. Uma
conduta passível de avaliação moral é a que se deixa expri-
mir por meio de proposições éticas. Entretanto, para se
reconhecer uma sentença ética não basta conhecer o signi-
ficado das palavras usualmente empregadas nestas senten-
ças. Não confundimos, por exemplo, o sentido da palavra
bem e m expressões como "a liberdade é um bem" ou "o
bem é aquilo que se opõe ao mal" com o sentido de bem em
expressões como "você está bem disposto" ou "seu organis-
mo reagiu bem". Do mesmo modo, sabemos perfeitamente
20 A F.TICA EO I::SPELHO DA Cl.ILTI IRA

distinguir o sentido de bom em fra.-,es como "este é um bom


cineasta" do senüdo de bom em frases como "ela agiu com
um bom propósito". O que caracteriza, então, termos ou
expressões do vocabulário moral?
Em primeiro lugar, um emmciado ético, sendo um ato
lingüístico, possui a propriedade comum a todos os atos
desta ordem, qual seja, a performatividade. Isto quer dizer
que a linguagem, como mostrou Austin, não funciona ape-
nas descrevendo ou constatando o que são as coisas ou
acontecimentos humanos. Dizer que a linguagem é perfor-
mativa é dizer que ela é ato, que é capaz de desempenho ou
de alterar ações ou estados. Todo dizer é fazer. Qualquer
enunciado, mesmo quando em seu conteúdo, reduz-se a
descrever o que existe, soma a esta dimensão constatativa
ou descritiva, chamada de locutória, uma dimensão ilocu-
târia e uma dimensão perloe1ttória. A dimensão ilocut6?~ia.
é a que indica como o enunciado deve ser interpretado
pelos falantes competentes da língua, ou seja, como deve
ser lido em sua ''intenção", para ser corretamente com-
preendido. A dimensão perlocutóri,a são os efeitos produzi-
dos pelo enunciado no interlocutor. Assim, o sentido de um
enunciado é composto de um contmido proposicional e de
um conjunto de circunstlincias, o contexto, que conferem
força ou eficácia transformadora ao que é dito. Ao falar,
podemos mudar estados anteriores do sujeito e do mundo
(ver Austin, 1971, 1979, 1990; Lima, 1983; Marcondes, 1992).
Em segundo lugar, um ato ético, também por ser lin-
güístico, é sempre intencionaL Uma conduta ou um ato de
fala intencionais são aqueles que visam a fmalidades. Visar
a uma finalidade significa que, diante da conduta analisada,
é sempre possível perguntar: "destina-se a quê?", "tem o
motivo de quê?" E a esta pergunta é sempre possível res-
ponder oferecendo rnotivos ou razões. Brevemente, uma
conduta intencional é aquela cuja descrição permite ou
solicita a pergunta "por que razão?". "Ter a intenção de" sig-
nifica poder ser interpelado por expressões gramaticais do
genero com que f ns
A U i".
As intenções constitutivas dos atos de fala podem ou
não estar integralmente presentes à consciência do sujeito,
mas têm que ter uma finalidade para serem reconhecíveis a
Ir\TlmDu(,:Ão 21
'

título de fenômenos intencionais. Explicando melhor, um


comportamento retlexo, instintivo, involuntário segue uma
certa direção, possui um certo curso, mas não é um com~
portamento intencional. Urna conduta reflexa não visa a
finalidades. É apenas uma seqüência regulada de reações a
estímulos, ambos de natureza não-lingüística. Por isso, não
cabe perguntar que "motivos ou razões" levaram o reflexo a
manifestar-se. O reflexo é puramente causado. A distinção
vista deste ângulo é somente em parte verdadeira. Dá a
entender que os atos intencionais são motivados e os atos
não-intencionais são causados. De fato, certas correntes
teóricas defendem esta opinião, tida como a mais aceita.
Mas como desta discussão depende o entendimento poste-
rior de questões como o determinismo, a liberdade ou a
respo~bilidade do slijeito frente a decisões éticas, expo-
nho rapidamente as teses que têm mais afinidades com
minha abordagem do problema.
A primeira interpretação das relações entre intenção,
causas e motivos deriva da chamada concepção humiana
de causalidade. Nesta concepção, causa é todo "fenômeno
antecedente separado dos efeitos que produz e vinculado a
estes efeitos de forma contingente" (ver, Ricoeur, 1988 p.
13). Lido negativamente, o postulado afuma que dois fatos
não podem estar causalmente relacionados se estiverem
logicamente relacionados. É a tese da conexão lógica. Por
que não pode haver conexão lógica entre fatos causalmente
relacionados? Porque, para Hume, não existe relação
necessária entre fatos naturais. Uma sentença como "o sol
nasce todo dia" não implica urna outra do tipo "o sol tem
que nascer todo dia". A primeira é uma sentença observa-
cional; a segunda, uma sentença lógica, estipulada com
base em premissas aceitas, independente da veracidade
empírica das prenússas. A ciência não pode afirmar que "o
s.ol necessruiarnente terá que nascer todo dia". Pode garan-
tir apenas que, se não houver alteração no atual estado de
equilíbrio físico do sistema planetátio, se não houver altera-
ção em nosso aparelho perceptual e se os dispositivos
observacionais de que dispomos continuarem permitindo
experimentações confiáveis, pode-se dizer que a probabili-
dade de "o sol nascer todo dia" é bastante alta. Alta o sufi-
22 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

dente para que se possa calcular, por exemplo, o consumo


de energia elétrica de uma cidade com base nesta variável.
Porém, isto não significa que existe vínculo lógico necessá-
rio entre fatos causalmente relacionados. O movimento dos
planetas e os fatos meteorológicos são logicamente contin-
gentes. Posso descrever o movimento dos planetas ou o
nascer do sol sem referir-me obrigatoriamente, do ponto de
vista lógico, a um ou a outro. E, assim corno existe inde-
pendência lógica entre os termos da sentenç.a, existe inde-
pendência empúica da causa em relação ao efeito, mas não
o inverso. A rotação da Terra, definida corno causa, pode
ser observada experimentalmente, independente do "efeito
nascer do sol", porém o nascer do sol não pode ser obser-
vado sem que exista movimento da Terra.
Em síntese, na concepção humiana, existe indepen-
dência lógica entre os termos da relação causal e subordi-
nação empírica do efeito em relação à causa, ou, o que dá
no mesmo, independência ernpúica da causa em relação ao
efeito. Disto decorre mna outra conseqüência. Os fatos cau-
salmente relacionados podem ser interpretados como ins-
tâncias ou ocorrências de leis gerais, porque se repetem
com uma regularidade testável por observadores indepen-
dentes. Sempre que um evento segue-se a outro, na mesma
seqüência e sob as mesmas condições de observação e
experimentação, pode-se falar da existêneia de "leis cau-
sais" relacionando os eventos entre si. O resultado é que a
noção de causa, assim definida, aplica-se a coisas ou a con-
dutas humanas não-intencionais, como os movimentos
re11exos. Quando o que está em jogo são condutas intencio-
nais, a explicação, na concepção humiana, tem de recorrer
a motivos e não a causas.
Desta perspectiva, um motivo não pode ser uma
causa. Primeiro, porque faz pru'te da descrição do que se
pretende explicru·, c, por conseguinte, mantém com o fato
explicado uma relação de necessidade lógica; segm1do, por-
que não se deixa enunciar em termos de leis. Se, por exem-
plo, digo que a "causa" da reação de medo do indivíduo
diante de um assassinato é seu "medo de morrer", não
estou dando uma explicação causal do medo diante do
assassinato. Estou simplesmente descrevendo a reação de
INTRODUÇÃO 23

uma detemünada maneira. O medo diante do assassinato


não é distinto, nem lógica, nem empirieamente, do medo de
morrer. Ter medo de morrer significa sentir medo diante de
um assassinato. Dizer que o medo provocado pela visão de
um assassinato é "causado" pelo medo que o indivíduo tem
de morrer é uma forma de tomar a rea<,~ão inteligível, acei-
tável, plausível ou racional a quem tem medo e a quem
observa a reação de medo. Dito de outra maneira, é encon-
trar wno, m'zão ou um rnot'i.vo para a conduta. Se alguém
dissesse que o mesmo medo tinha como causa a "repulsa"
ao gcst.o assassino, estaria igualmente explicando a condu-
ta analisada, e seria inútil discutir se a repulsa era a causa
do medo ou o medo a causa da repulsa. Segundo as cir-
cunst.âltcias, ambas as afirmações seriam válidas, e ainda
seria possível dizer que a repulsa e o medo eram a causa
conjunta do medo diante do assassinato.
Cada uma das possibilidades significa troca de razões
ou motivos e não prova de subordinação lógica ou empúica
de um evento ao outro. A conversibilidade dos supostos
elementos causais mostra que a modificação nas afirma-
ções depende apenas da mudança das premissas. Numa
verdadeira relação causal, segundo Hume, isto seria impos-
sível. Uma causa não pode ser efeito e um efeito não pode
ser causa, pela pura inversão nos temtos descritivos. Na
relação motivac:ional, o nexo lógico obrigatório entre fatos
antecedentes e conseqüentes continua existindo. As razões
alegadas são todas logicamente equivalentes. Dependendo
do que se estipula, a causa pode tornar-se efeito e vice-
versa. Isto não acontece com fatos descritíveis como ocor-
rências de leis. Não podemos dizer que o nascer do Sol é a
causa do movimento da TeiTa em tomo do Sol, pois esta
afirmação invalidruia qualquer possibilidade de previsão de
outros efeitos atribuíveis ao movimento. Invertendo a
seqüência dos termos explicativos, deixaríamos de fora
inúmeros fatos sem "conexão lógica necessária", mas empi-
ticamente subordinados ao movimento de rotação da Terra,
r.omo as marés, os eclipses, a mudança de estações etc.
A segunda interpretação é ilustrada pelo pensamento
de Charles Taylor (ver Ricoeur, op. cit. pp. 24 e 112-113).
Para Thylor, a idéia humiana de causalidade está sujeita a
24 A ÉTICA I<~ O ~SPEUIO DA CULTURA

críticas, dado o pressuposto "atomista" que a anima. No


"atomismo", para que se fale em elo causal é preciso postu-
lar a existência de unidades ou elementos descontínuos,
implicados na seqüência da causalidade. Ora, diz Taylor,
nada impede que se pense em outro tipo de relação causal
de maneira coerente. Sugere, então, a noção de "causalida-
de teleológica", como um tipo de causalidade a ser conside-
rado ao lado da causalidade atomística
A causalidade teleológica "é a que tem como causa
suficiente de wn certo comportamento um acontecimento
que contém em sua descrição a exigência de que um outro
acontecimento, chamado seu flm, aconteça" (ibid. p. 113).
Isto é, a ordem de seqüência dos acontecimentos, ou as eta-
pas da evolução dos eventos, está incluída na condição
antecedente definida como causa. De tal modo que um
motivo pode ser dado como causa se a finalidade prevista
vier a acontecer. Para isto, não é necessário nem postular a
idéia de um fun exterior ao ato intencional - isto é, uma
intenção rrústeriosamente concebida como qualquer coisa
separada do enunciado em que está inscrita - , nem tam-
pouco postular a idéia de um motivo anterior, desconecta-
do da conduta explicada.
Por exemplo, posso dizer que o medo de morrer é a
causa do medo diante de assassinatos, se defino medo de
morrer como aquilo que vai produzir a reação prevista dian-
te de assassinatos, e se, de fato, tal reação comprovada-
mente acontece. Se um enunciado afirma que "um certo
curso de coisas depende de um acontecimento exigido
como fim" (ibid.), disponho da estrutura lógica de uma
explicação causal teleológica.
A explicação de Taylor, em meu entender, não resolve
as questões postas por Hume. Contenta-se em mostrar que,
além da necessidade lógica, pode existir uma relação de
subordinação lógica entre o motivo e o efeito, nos exem-
plos de e~l1S3lid~df' tP.lP.ológk;:t. Em outras palavras, Taylor
queria dizer que a relação lógica entre um motivo e o efeito
que ele produz pode ser logic:amente do mesmo tipo da
relação que existe entre fatos naturais causalmente relacio- ·
nados. Pretendia dissociar, emphicamente, a causa do efei-
to, subordinando o efeito à causa e, logicamente, tomar os
INTRODUÇÃO 25

t.ermos independentes. Mas, desvincular lógica e empírica-


mente a causa "medo de morrer" do efeito, "medo de assas-
sinatos", não faz da causa "medo de morrer" ocorrência de
nenhuma lei geral. É verdade, podemos dizer que nem todo
medo de morrer produz medo de assassinatos. Pode produ-
:lir, por exemplo, medo de altura, medo de viajar de avião
etc. Só que assumindo que o "medo de morrer" é logica-
mente diferente das diversas formas pelas quais.pode se
a
apresentar consciência do sujeito, Taylor parece apelar,
implicitamente, para o "mito do museu mental", conforme a
imagem de Quine.
Este mito, também criticado por Wittgenstein, Austin
e Ryle, supõe a existência de uma coisa chamada "medo de
morrer", vagamente definida como processo ou objeto
mental, que preexiste ou existe ao lado de reações como
"medo de assassinatos", "medo de viajar de avião", "medo
de altura" etc. Para estes autores, no entanto, "sentir medo
de morrer'' é o mesmo que "sentir medo d e presenciar
assassinatos'', "sentir medo de altura", "sentir medo de via-
jar de avião" etc. E, se distingo no uso da linguagem a
expressão "sentir medo de morrer" simplesmente de uma
expressão como ''sentir medo de viajar de avião", isto não
significa que a primeira é a causa da segunda. Se substituir-
mos a expressão "sentir medo de morrer" por wn equiva-
lente lógico na gramática da língua, como, por exemplo,
"sentir medo de pular", não diriamos que o "medo de pular"
é a causa do "medo de pular de a')a-delta", do "medo de
pular de trampolim". O hábito lingüístico não autoriza esta
expressão. Podemos dizer, contudo, que o "medo de altura"
é a causa do "medo de pular de asa-delta" ou o "medo de
pular de trampolim" ou o "medo de debruçar-se numa
varanda alta" etc.
O que vemos, nestes casos, são descrições de eventos
a partir de motivações plausíveis, dentro de um certo
padrão de uso da linguagem, e não descrições de uma ver-
dadeira relação causal, conforme a exigência humiana.
Evidentemente, podemos distinguir semanticamente "dis-
posição para sentir medo" do "fato de sentir medo". Mac;
Lc;;to não faz da disposição urna "causa". A disposição para
sentir qualquer coisa não é uma eausa geral de efeitos parti-
26 A ÉTICA E O ESPELHO DA ClJLTURA

culares. É só uma outra fo rma de descrever ou tornar


razoável a regularidade da conduta "ter medo" diante de
certas circunstâncias.
Se deixarmos o exemplo do medo, e utilizarmos
outras frases da língua com o mesmo padrão lógico, vemos
maic; facilmente o equívoco desta explicação. A explicação
por "disposições" não tem validade informativa. E redun-
dante e apóia-se num hábito de linguagem sem alcance cog-
nitivo. Posso dizer que qualquer ato é produto de uma "dis--
posição J)ara agir" de tal ou qual maneira. Cantar é produto
da disposição para cantar; andar é produto da disposição
para andar; estudar é produto da disposição para estudar
etc. Isto equivale à famosa blague de MoliE~re que, critican-
do a medicina do seu tempo, dizia que os médicos explica-
vam o fato de o ópio fazer donnir por suas "propriedades
dorrnitivas".
A dificuldade da explicação de Taylor é a de querer
analisar a relação causal como algo heterogêneo, como
uma espécie de relação autônoma e exterior aos jogo$ de
linguagem que definem quais os sentidos de causalidade
que são admitidos como verdadeiros exemplos de relação
causal. Querer estender o sentido de causa de Hume ao
campo das ações intencionais, preservando exigências lógi-
cas criadas para descrever a prática da ciência, é um pro-
blema provavelmente sem saída. Foi a este problema, entre
outros, que Donald Davidson procurou rE-sponder com sua
teoria.
A terceira interpretação da relação entre intencionali-
dad e, causas e motivos é a formula da por Davidson .
Davidson baseia sua teoria na noção de "ação intencional''
como um tipo de ''evento". Um evento é um "particular" e
não um "universal".
Um universal é qualquer palavra da língua corrente
que possui a característica de ter urna propriedade partilhá-
vel por várias coisas e fenômenos. Por exemplo, a palavra
''verde" é considerada "universal" porque vários objetos ou
fenômenos podem ser qualificados de verde: esmeraldas, a
cor do mar, florestas, fogo-fátuo etc. As coisas e fenômenos
aos quais o adjetivo verde se aplica são chamados de ins-
tâncias ou ocorrências do verde. Deixo de lado, por en-
tNTHODlJÇÃO 27

quanto, a crític:a pertinente feita por alguns autores a esta


distinção entre universais e particulares. No momento, ela
é útil para a demonstração da opinião de Davidson sobre a
E-specificidade dos atos intencionais. Um particular é assim
chamado porque, ao contrário do universal, possui proprie-
dades que são únicas e só se aplicam a ele. Um particular é
um indivíduo lógico que é o único elemento da classe a que
pertence (ver Pariente, 1973, e Costa, 1989). Se digo que
alguma coisa é "esta cadeira" ou ''aquela cadeira", nenhuma
outra coisa poderá ser "esta ou aquela cadeira". O particu-
lar é reconhecido pelo emprego de nomes próprios, prono-
mes demonstrativos, advérbios de tempo e lugar ou descri-
ções definidas. Um evento, então, é um particular. E, por-
que são singulares ou particulares os eventos são suscetí-
veis de redescrições, sem perda de identidade.
Esta afirmação, a respeito da constância da identida-
de, também é brusca e st\jeita a discussões. Vou conservá-
la, no entanto, com vistas à explicitação da temia davidso-
nia na, e porque nem tudo na idéia da "identidade" dos even-
tos carece de fundamentos. Continuando, afirmar que um
evento pode ser redescrito sem perder sua identidade quer
dizer que pode ser reconhecido como o mesmo evento,
embora interpretado com diferentes sentidos. Podemos
descrever a "Proclamação da República no Brasil" corno "o
momento simbólico da queda da monarquia" ou como "o
sinal da supremacia econômica de certas oligarquias agrá-
ria'3" ou corno "o grande acontecimento político de nossa
história, na virada do século XIX" etc. A singularidade do
evento pennanece inalterada, bem como sua identidade.
As ações intencionais, corno exemplos de eventos,
mostran1 estas característica<>. Por esta razão, Davidson diz
que não são interpretáveis como instanciações de leis. Uma
ação não ocorre duas vezes da mesma maneira. Davidson
ad mite, portanto, a concepção de Hurne, que exclui as
ações intencionais do domínio dos fatos causados por for-
ça de leis. Mas acrescenta: "O princípio da causalidade de
I lurnc diz que quando eventos estão relacionados como
causas e efeitos têm descrições que inst.a nciam uma lei.
Não oiz que todo enunciado singular verdadeiro de causali-
dade instancia uma lei" (ver Evnine, W91 p. :17). A versão
28 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

davidsoniana de Hume corresponde a seus interesses. O


essencial, em sua teoria, é afirmar que, confom1e a descri-
ção, um evento pode ser tomado como passível de explica-
ção causal, por meio de leis, ou passível de ser interpretado
como "causado", embora sem instanciar ou exemplificar
ocorrência de leis.
Davidson, como Witt.genstein, Austin, Ryle, Derrida,
Rorty e outros, pretende respeitar os jogos da linguagem
ordinária. A seu ver, se dizemos que tal fato é "causa" de tal
outro e isto "é verdadeiro", não temos por que negar a rela-
ção de causalidade enunciada Ele pensa, como Quine, que
só podemos falar de "causas" dentro de um sistema de
crenças em que a maioria de nossas convicções sejam ver-
dadeiras. Verdade, para Davídson, é um puro termo de
aprovação ou de advertência, e não uma relação de corres-
pondência ou adequação entre teoria e realidade. Levando
em conta estas duas asserções, ele afirma que, ou dispomos
de um sistema de verdades para a maioria dos fatos na
maioria dos casos, ou nenhum apelo a evidências pode
fazer-nos conhecer ou explicar o que quer que seja E, se já
dispomos de um sistema e o que afirmamos como sendo
causa de um efeito, dentro de um sistema de verdades, for
verdade, então, o que afrrmamos como sendo causa é de
fato a causa
O raciocínio parece, à primeira vista, circular e tauto-
lógico. Vejamos como pode ser melhor esclarecido. Se digo
que o medo de morrer é a causa do medo de assistir a
assassinatos, esta formulação, para Davidson, pode ser
aceita sem correções, desde que seja verdadeira. É errado
supor, diz ele, "que não especificamos toda causa de um
evento, porque não a especificamos totalmente" (ver
Evnine, op. cit. p. 35). Uma coisa é estabelecer "relações
causais" entre pares de eventos; outra, é estabelecer "expli-
cações causais". As e:~:plicações causais são sensíveis à
forma como os eventos são descritos; as relações causais
exigem somente a crença na verdade da causa como ori-
gem do efeito, dentro de um sistema de crenças ou de ver-
dades mais amplas. Os eventos possuem explicações cau-
sais quando podem ser descritos de modo a poder instan-
ciar leis. Posso dizer que a causa do movimento de uma
DITRODUÇÃO 29

bola de bilhar é a tacada dada em outra bola, estabelecen-


do, a'5sim, uma relação causal entre a tacada e o movimen-
to. Mas, se quiser fornecer uma e:~:pl'ica.ção causal do movi-
mento da bola de bilhar, devo descrevê-lo no vocabulário
das leis mecânicas, e utilizar tennos como massa, velocida-
de, atrito, força, inércia etc. A relação causal é verdadeira,
porque posso con..<;tatar que cada vez que der uma tacada
numa bola de bilhar ela vai deslocar-se no espaço e no
tempo, ou seja, vai movimentar-se. Uma tacada, porém, não
é uma causa que possa ser generalizada como explicação
do movimento de todos os corpos sólidos conhecidos.
Davidson opera uma distinção entre explicação cau-
sal. e relação causal que permanece presa ao vocabulário
da epistemologia tradicional. Apesar de aceitar a idéia de
causa, na esfera das ações intencionais, acredita que a
explicação causal só é legítima quando enunciada na lin-
guagem das ciências físico-quúnicas. Seu argumento parece
caucionar a velha distinção de Dilthey entre "compreender"
c ''explicar": as ciências da natureza "explicam" os fatos
que estuda; as ciências humanas "compreendem" o que
investigam, mas não fornecem explicações. É com isto que
Richard Rorty rompe. Radicalizando a démarche davidso-
niana, Rorty mostra que esta diferenciação não faz jus à
novidade do pensamento do autor. Podemos distinguir
entre ''descrições de situações que facilitam a predição e o
controle dos fatos" e "descrições que nos ajudam a decidir
o que fazer" (Rorty, 1982, p. 197). Mas isto não significa que
a explicação voltada para a prediç.ão e o controle seja cog-
nitivamente superior à explicação voltada para a decisão e
a ação.
. Para Rorty, do ponto de vista pragmático, não precisa-
mos da distinção entre "relações causais" e "explicações
causais" para sustentar a idéia de que motivos e razões
podem ser causas de ações intencionais. O que acontece,
diz ele, é que confundimos urelações de causa" com "rela-
ções de justificação" (Rorty, 1991). Se usamos a palavra
"causa" na linguagem ordinária, e admitimos, com Quine e
1)avidson., que todo sistema de crenças funda-se necessaria-
mente em "causas" verdadeiras para a maioria dos fatos, na
maioria dos casos, a linguagem está em ordem e deve ficar
30 A ÉTICA E O F.SPI'~LilO DA CU.TI.TRA

onde sempre esteve. Causa, segundo Rort.y, é tudo aquilo


que, num dado sistema de crenças verdadeiras, é responsá-
vel pelos efeitos que a ela se atribuem. O que pensamos,
sentimos ou acreditamos é sempre diretamente "causado"
por coisas ou eventos de diversas ordens. Posso dizer que a
reação que tenho diante de um assassinato é causada pelo
medo de morrer, como posso dizer que é causada pelo
medo inconsciente de matar. O que muda, no caso, não é a
natureza da relação causal entre o episódio do assassinato
e o sentimento despertado. Isto é, não passo de uma r-ela-
ção causal explicativa para uma relação de compreen.'>ão
ou relação motivacional. Nos dois casos tenho Telações
ca.u sais. O que muda é a justificativa dada. E, lembra Rorty,
na teoria. de Davidson, a justificativa é dependente da des-
crição que damos dos eventos. Dizendo que a cena do
assassinato despertou no sujeito o desejo inconsciente de
matar, donde o medo reativo a assassinatos, descrevo o
evento de urna maneira X. Dizendo que o medo de morrer
provoca diretamente me do de assassinatos, descrevo o
mesmo evento de uma maneira Y. Verdadeira serã a causali-
dade aprovada tendo em vista o sistema de crença'?, a des-
crição escolhlda e o propósito visado.
Se desejo eliminar o medo de assassinatos, postulo a
idéia do desejo inconsciente de matar e obtenho o resulta-
do esp erado, posso afirmar que a causa pensada era a ver-
dadeira. Assim, podemos supor que a reação de medo nian-
te de assassinatos é provocada por uma crença inconscien-
te do sujeito, por uma crença consciente ou por uma "causa
que não é crença", caso descreva a reação de medo como
uma reação neurofisiológica ao estímulo visual, auditivo ou
olfativo induzida pelo assassinato: visão de sangue, barulho
de tiro, cheiro de pólvora etc. No primeiro caso, a "causa
inconsciente" é causa, mas não é razão, até tomar-se inteli-
gível, ou seja, até poder ser descrita em termos intencio-
nais, por meio de justificativas aceitáveis para o sujeito ou
pru·a o intérprete. No segundo caso, a causa é a razão, pois
causa e justificativa coincidem. No terceiro caso, a causa
não pode ser razão, pois os termos descritivos da conduta
são incompatíveis com o vocabulário das ações intencio-
nais.
INTROD\;ÇÀO 31

Os critérios que podemos usar para optar por uma das


tiês causas não são da ordem de um qualquer imperativo
teórico; são de ordem pragmática. A avaliação das conse-
qüências morais resultantes da escolha é que vai determi-
nar a legitimidade, a validade ou a veracidade da descrição.
A terceira caracteristica do ato ético é a irredutibilida-
de e não-relatividade. Neste item segtúremos, fundamental-
mente, as sugestões de Johnston( l991) e Pitkin(l972)
sobre a intérpretação wittgensteiniana do tema Dizer que
uma ação ética é irredutível significa dizer que pode ser
causada, mas não justificada por fatores não-éticos. Não hã
como demonstrar, de maneira consistente, que crenças
morais "exprimem" ou "representam" realidad(;'.S materiais,
no rúvel das idéias, ou que são traduções ilusórias de cren-
ças de outra ordem. Crenças não "representam" realidades
materiais porque, segundo Wittgenstein, fatos não produ-
zem valores. E não são substitutos equivocados de outras
crenças porque os jogos de linguagem têm fronteiras deter-
minadas pelas regras de uso das palavras ou expressões.
De tal forma que procurar mostrar que wn jogo é wna ver-
são factfcia de outro é o mesmo que dizer que alguém está
jogando errado ou que inventou um novo jogo. Nos dois
casos, a hipótese de que alguém está jogando um jogo origi-
nal, sem saber que está jogando, não faz sentido. A crítica
às teorias funcionalistas e utilitaristac; da o rigem da moral
elucidam mais facilmente o argumento wittgensteiniano.
Wittgenstein, discutindo a matriz funcionalista de
algumas opiniões de Frazer e FreU<I sobre religião, diz que
os dois não diferenciam paráfrase de explicação. Não é teo-
ricamente legítimo afirmar que crenças morais religiosas
são ilusórias porque os praticantes ignoram a "verdadeira
função" ocupada pela crença no interior do sistema de
valores ou de determinações materiais ao qual pertencem.
C~uando ambos pen..c;;am em explicar quais as origens o u
"causas" das convicções religiosas, alegando que os indiví-
duos desconhecem as verdadeiras explicações dos fatos
que explicam religiosamente, apenas tornarr• as condutas
n1orais estudadas inteligíveis dentro de outro universo de
sentido. Estes autores não perceberam que a earacterística
de uma crença moral é justamente a de não possuir um
;J2 :\ t;TJCA E O F.SPELIIO DA CVLTORA

referente no "mundo objetivo" que possa retificar ou corro-


borar os pontos de vista professados. Uma crença religiosa
não é um substituto racionalmente rebaixado de uma cren-
ça científica. Dizer que 1m1a crença religiosa é produto da
ignorância, e que o progresso da razão ou da ciência tende-
rá a eliminá-la, a c urto ou médio prazos, mostra não só
pouco discernimento sobre a natureza da religião. Mostra,
além do mais, a crença de que o conhecimento científico é
cognitiva e moralmente superior ao conhecimento fundado
na tradição religiosa.
O fUI}C~onalismo é o exemplo típico do reducionismo
idealista. E a posição intelectual que afirma a redutibilidade
das crenças morais a crenças empíricas, considerando as
primeiras "representantes" fantasiosos das últimas. A cren-
ça moral é definida como a aparência enganosa de crenças
de outro gênero. O utilitarismo, por seu lado, é um reducio-
nismo do tipo materialista. Pretende derivar convicções éti-
cac; de fatos ou realidades empíricas. Na doutrina utilitária,
as crenças morais são aceitac; como crenças aprovadas por-
que atendem a maior satisfação possível de interesses, aspi-
rações, desejos etc., todos eles concebidos como fatos
preexistentes a interpretações.
Wittgenstein discorda desta opinião. Contra-argumen-
ta dizendo que reduzir crenças morais a representantes
ideativos de fatos empíricos significa, no mais das vezes,
dissimular: a) que o que se descreve como "realidade mate-
rial", como fato bruto, nada mais é do que "realidade lin-
güística", sem suporte temporoespacial, corno na efetiva
realidade material dos objetivos físicos; b) que estas "reali-
dades lingüísticas", malgrado o conteúdo descritivo de sua
forma gramatical, em absoluto são neutras quanto a valo-
res. Isto fi ca evidente quando se observa o papel do "inte-
resse" no utilitarismo.
Quando se diz que uma convicção moral deriva da
fmalidade de maximizar interesses, o que pode querer dizer
"maximizar'"? Como se procede a esta mensuração? Qual o
padrão a que se recorre para reconhecer que um certo inte-
resse será "maximizado" se tal cren~~a moral for assumida?
O que é "máximo" e ''mínimo", neste caso? Além disso,
pode-se perguntar, que processos, estados ou disposições
lll<.'ntais são responsáveis por este tipo de cálculo, nitida-
rncnte decalcado dos modelos racionais dos cálculos quan-
titativos'? Maximizar ou minimizar interesses pode ser algo
nifcrcnte de agir de tal maneira que o resultado da ação
possa ser descrito como "maximização" ou "minimi7..ação"
de interesses?
Ilustremos a dificuldade com uma hipótese. Suponha-
mos que o máximo interesse individual seja um interesse
conhecido e aceito por nossa tradição cultural, corno, por
Pxcmplo, o interesse em manter-se vivo. Quando definimos
o interesse em manter-se vivo como norma para julgar o
que é "o máximo ou o mínimo interesse", ocultamos do
raciocínio o fato de que tal interesse nada tem de puramen-
te empírico. Número um, um interesse não é uma coisa.
et~jo sentido pode ser ensinado e aprendido com a ajuda da
ostensão, como aeontece com objetos físicos. Número
dois, a idéia de que manter-se vivo é um interesse natural
n:quer uma irnagern de natureza e uma imagem de vida que
fazem parte de crenças que só existem em culturas como a
nossa: ou que a ela se ac;semelham. Interesse em manter-se
vivo não é uma c:onstatação empírica moralmente indife-
rE-nte. Aliás, se scguic;semos à risca a recomendação de que
manter-se vivo é bom, porque está escrito "nas leis da natu-
reza", também deveriamos achar bom "morrer", "adoecer",
"nascer portador· de malformações genéticas" etc. Não
teríamos como justificar os esforços que fazemos contra
isto que consideramos males c que, no enta.nt.o , são . ratos
naturais.
O que chamamos de instinto de conservação ou de
imeresse em manter-se vivo não está na natureza como
pedras, árvores, movimento de moléculac:; ou atração entre
<: orpos físicos. Podemos encontrar indivíduos ou cultma.s
que ponham a defesa da honra acima da necessidade de
sobreviver a qualquer custo. O interesse não é algo que pre- ...
cede, antecipa ou detemtina a crença moral. Pelo contrário,
(~ a crença moral que faz do interesse pela \lida um valor.
Que determina o tipo, grau ou qualidade de interesse a ser
tomado como medida para o motivo que chamamos de
"gan h~litário ".
E verdade, diz Wittgenstein, existem comportamentos
34 A ÉTJCA E O ESPEl.JIO DA CULTURA

intencionais regidos pelo cálculo utilitário de interesses.


Porém, o interesse alegado é um motivo, uma justificativa
entre outras, e não a "causa" empírica ou material da mora-
lidade. O interesse não é um existente extralingüíst ico. É
wna crença que pode funcionar como ca'u.sa, como razão
ou como causa que pode· ser razão, mas que não pode
situar-se no território extramoral. Uma causa de crenças
m orais pode ser uma coisa, mas, se for uma coisa, não
pode funcionar como j ustificativa de crenças. Conhecemos
interesses, conscientes ou inconscientes, alguns deles são
causas e razões de crenças éticas. Mas, se podem funcionar
como causas e razões, é justamente porque não são "fatos
empíricos", no sentido de fatos "materiais". E, se não são
fatos materiais, então funcionam como C'renças que são
causas de crenças, e não como coisa.s e estados de coisas
que são causas de crenças.
Pode-se objetar que estas criticas passam à margem
do que é central na tese utilitarista. O importante, nesta
tese, é afirmar a presença de ·i nteresses onde a razão meta-
física via imperativos moTais categóricos, como "dever",
"obrigação" etc. O utilitarismo apenas tenta mostrar que a
. ética é deste.mundo e que está amarrada a interesses mun-
danos. Wittgeru;tein diria que a visão pragmática da ética
também se recusa a expulsá-la do mundo. Mas no mundo
existem muitas coisas além de "cálculo de interesses".
Adnútir que na origem de qualquer "sentido de obrigação",
"respeito a princípios", "responsabilidade diante de pro-
messas consentidas" etc. encontramos sempre um "cálculo
de interesses", que visa a ganhos utilitários, significa o
mesmo que fazer de "cálculo de interesses" sinõnimo de
toda e qualquer causa ou razão para agir. Uma noção que
tudo explica nada explica.
Talvez por isso o utilitaris mo não cons iga explicar
precisamente aquilo que contradiz s uas teses centrais.
Acompanhemos de perto o raciocínio. Descarta.nrlo a hipó-
tese de que o interesse utilitário é um dado natural, resta
pensar que é uma conduta socialmente aprendida. Mas, se é
uma conduta socialmente aprendida e definida como a
causa c a razão primordial de toda.-; as aspirações morais, é
difícil compreender por que os indivíduos inventam razões
Jt\TRODUÇÁO 35

como "sentido de dever" ou usentido de obrigação" para


justificar suas condutas éticas. Por que o interesse enquan-
to causa e razão não basta? Por que esta causa não pode
se r justificativa? A única explicação P.ncont.rada pelo utilita-
rismo é a oferecida pelo funcionalismo: os indivíduos se
enganam ou são enganados quanto aos verdadeiros móveis
de suas ações ou decisões morais. Voltamos ao ponto zero
da argumentação. O intérprete de uma conduta ou crença
moral pode discordar das razões dadas pelo sl\ieito da con-
duta para justificá-la Sua interpretação, porém, não é logi-
cantente superior à do sujeito; é meramente uma outra
O impasse do utilitarismo é o de querer en contrar um
terrno teórico que seja, simultaneamente, "causa material"
e "motivo lingüístico". A idéia de interesse como fundamen-
to das ações morais joga com a polissemia da palavra na
língua corrente. Ora interesse significa algo supostamente
material, como "interesse de conservação", entendido
como sinônimo de "instinto"; ora como "razão utilitária".
No entanto, corno foi visto, mesmo se o utilitarismo conse-
guisse demonstrar que falando de "interesses" estaria falan-
do de "realidades materiais", um fato material, também já
vimos, pode ser causa de 3!Jllisição ou alteração de crenças
morais, mas não pode ser razão. Posso ter minhas crenças
morais abaladas ou modificadas por um terremoto, por aci-
dentes graves, por uma experiência alucinogêruca extr~ma­
mente prazerosa ou pela experiência de sofrimentos e pri-
vações físicas, como tortura, fome etc. Mas fatos deste ou
de outros tipos, causadores de estímulos físicos intensos
ou não, só se tomam razões quando integram-se a sistemas
de crenças. Quando se tomam signos de bem e mal; bom
ou mau; justo ou injusto etc.
Se uma catástrofe natural me atinge, e isto altera a
imagem que tenho, digamos, de "destino", de "acaso" ou da
onipotência divina, que deveriam ter-me protegido da des-
graça e não protegeram, posso dizer que a causa da mudan-
ça de minhas crenças morais foi o fenômeno natural da
catástrofe. Entretanto, só sei que existiu mudança, e, por
conseguinte, que passei a agir moralmente de uma outra
forma, quando a causa é justificada em terrnos de razões,
que são éticas.
36 A ÉTICA E O F..SPP.I.HO DA CIJLTUHA

O utilitarismo inverte o raciocínio. Diz que bom não é


"bom" porque aprendi a avaliar certas coisas como boas e
outras como más. Bom é aquilo que "maximiza" interesses;
mau aquilo que diminui ou vai contra interesses. Entretanto,
dependendo do sistema de crenças, posso achar uma catás-
trofe uma coisa boa Para muitos cristãos, o mito do dilúvio
foi uma boa coisa, embora indo de encontro aos "interesses
de conservação" da vida dos pecadores punidos. Podemos,
sem düemas morais ou contradições lógicas, dizer que o
bem pode ir contra interesses. Esta. é 'urna frase com senti-
do na língua e na vida.
Enfim, um ato ético não é relativizável. Com isto
Wittgenstein queria dizer que uma ação moral é sempre jul-
gada de modo absoluto em seu valor. Não existe "moral
relativa''. Um julgamento empírico funda-se no acordo
sobre o valor normativo das ·evidências, pouco importando
que coisas ou estados de coisas sejam selecionados para
funcionar corno evidências. Um julgamento estético funda-
se na aceitação da relatividade das preferências. O julga-
mento moral é diferente. Não se serve do arbítrio das evi-
dências para dizer o que é certo ou verdadeiro, nem aceita
a e quivalência moral de prefe rências conflitantes. Se
alguém diz que montanhas são feitas de espuma, alegando
que isto é urna verdade empírica, posso dizer que esta opi-
nião está errada, pois os fatos previamente aceitos como
evidên cias negam esta poss ibilidade. Se alguém diz que
gosta da imagem literária de "montanhas de espuma",
posso discordar da preferência, mas não considero "erra-
do" alguém gostar desta metáfora, exceto se penso em dis-
cutir "cientificamente" a questão, apelando para os cânones
da crítica literária, da teoria da literatura, da teoria do
comentário, da história da a rte etc. Porém se alguém diz
que "é correto assassinar crianças", não posso recorrer a
evidências para dizer que "isto é errado ou monstruoso", e
també m não posso dizer que tal gesto "é uma questão de
gosto".
A peculiaridade do ato ético, na teoria wittgensteinia-
na, é a de enunciar uma preferência que não se deixa relati-
vizar. Esta especificidade most ra-se lingüisticamente em
senten ças que requisitam a utoma ticamente a pergunta
L~THODUÇÂO 37

''certo ou errado". Toda ação moral é aquela que pode ser


descrita desta forma. Termos éticos ou morais, se forem
corretamente entendidos, sempre afirmam o valor absoluto
das intenções ou prefer ências por eles qualificados. O wú-
verso de sentido, o jogo de linguagem ou a forma de vida
em que os enunciados são possíveis fazem deste requisito
condição para o reconhecimento ou a identidade semântica
de um proferimento ético. Sabemos o que é um valor ou
uma preferência moral porque, usando termos do vocabulá-
rios ético, afastamos, por princípio, a possibilidade de pro-
var sua "verdade" recorrendo a evidências empíricas ou a
relativizar sua "verdade" em contraste com opiniões discor-
dantes.
Wittgenstein pensava que as proposições éticas fun-
cionavam desta forma na linguagem porque eram sempre
solidárias de wna visãb de mundo. A interpretação parece-
me verdadeira, mas não se aplica exclusivamente aos ter-
mos éticos. Opiniões científicas e estéticas também estão
atreladas a visões de mundo ou sistemas totalizadores de
c renças. Do cont rário, não poderia ter sentido. O passo
adiante na compreensão da singularidade da ética foi dado
por Rorty. Com base na teoria da linguagem de Davidson e,
so?r~tudo, na filosofia moral de Sellars e Shklar, ele diz que
o uruco fundamento de um enunciado moral é a própria trà-
<lição moral que toma o ennnciado possível. De Davidson
retoma a idéia de que a linguagem é um comportamento
natural; wna resposta feita de sons e marcas articulados ao
ambiente. De Sellars s Shldar guarda a idéia do mínimo
denominador comum à tradição moral do Ocidente. Com
estas duas noções, constrói sua teoria neopragmática da
moral.
Rorty não pergunta qual é a verdadeira essência ou
natureza da ética Seu ponto de partida é o de que a lingua-
gem c riou respostas ou condutas intencionais éticas assim
'
corno outras formas de resposta dos sujeitos às solicita-
ções do mundo. Ética é tudo aquilo que chamamos de ética.
E o que chamamos de ética não só apresenta as singulari-
dades semânticas e pragmáticas apontadas por Wittgens-
tein. Mostra também um uso regulado da palavra bem e mal
que, em nossa tradição, afUTna a existência de pl'incípios e
38 A f:T!CA E O ESPELHO l>A CliLTCRA

de um sujeito suporte destes prindpios. Os princípios são


aqueles classicamente postulados pela herança democráti-
ca, humarútária, pluralista e individualista da cultura oci-
dental: todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à
busca da felicidade. Princípios que podem ser resumidos,
de modo negativo, pela afirmação feita por Shklar de que "a
crueldade é o que de pior podemos fazer a um outro ser
humano". Quanto ao sujeito, diz Rorty, é também o clássico
sujeito moral, isto é, aquele a quem se atribui o poder de
deliberar entre alternativas morais, escolhendo o bem ou o
mal como objetivo de sua ação. É contra este pano de
fundo que pretendo discutir alguns problemas éticos da
sociedade brasileira.

2. Dilemas éticos da cultura brasileira

Falar de dilema ético significa dizer que os princípios


morais da cultura perdem a força que deveriam ter na dire-
ção das ações práticas. Existe uma "crise nos valores éti-
cos" quando os indivíduos não mais se orientam pelos
ideais de conduta moral aceitos e não sabem ou não conse-
guem propor novos ideais compatíveis com a tradição cul-
tural. E o que vem acontecendo entre nós. Aprendemos a
desprezar a vida e a liberdade de muitos em nome da cupi-
dez de poucos; pusemos interesses privados acima dos
interesses comuns, e o resultado é conhecido: a vida e a
liberdade dos opulentos passaram a valer tanto quanto a
dos miseráveis, quer dizer, nada. Quanto à felicidade, isto
sim, legítima "propriedade individual", quando obtida, é
imediatamente ameaçada. Não pela incerteza do desejo,
nosso e do outro, mas pelo risco de vida bruto, cego, endê-
mico que corremos pelo simples fato de viver no Brasil.
Pelos menos nas médias e grandes cidades, onde sair às
mas tom ou-se uma atividade de alto risco para a integrida-
de física de qualquer um.
Alguns dos problemas que enfrentamos são comuns a
muitas nações ocidentais; outros possuem nossa marca
registrada Não julgo importante acentuar este divisor de
!NTROOUÇÃO

águas. Problemas são problemas. Aqui ou lá. Interessa


resolvê-los e não classificá-los conforme o sotaque nacio-
nal, salvo se isto for condição sine qua non da resolução
desejada. Deixo de lado, igualmente, a análise de todas as
prováveis causas sociais, políticas, econômicas e culturais
da crise que vivemos. Elas são incontáveis. A outros, mais
capacitados, esta parte do trabalho. Parto do princípio de
que todas podem ser ou são efetivamente causas das
mudanças em nossas crenças morais. Desde, é óbvio, que
se leve em conta o sentido de causa, na concepção de
Oavidson e Rorty. Meu intento é o entender um pouco mais
qual o impacto destas transformações na imagem ideal do
sujeito moral.

Penso que podemos ver a questão de duas maneiras. A


primeira pode ser chamada de "hipótese jurídica" da crise.
Retomo neste domínio particu1ar da moral o conceito cria-·
do por Foucault em sua genealogia da sexualidade (Fou-
cault, 1976). A moral ou ética, na "hipótese jurídica", é vista
como um código de regras ideais de conduta. A crise é o
conflito com o código, determinado pelo afastamento das
condutas práticas do modelo ideal. O conceito central
nesta forma de raciocínio é o de transgressão. Como no
caso do direito, o col\iunto de prescrições morais é o que
permite julgar a gravidade das infrações cometidas. A con-
duta moral emergente é sempre definida de forma negativa.
A lógica da apreciação é feita por subtração. Comparam-se
as ações intencionais com os grandes princípios do código
e faz~se o cálculo da deficiência. O que vai mal é o que
.falta. Pensamos sempre que não agimos ·Como seria bom
agir porque uns transgridem as normas por cinisiJlO e
outros por ignorância. Os primeiros são autores ou cúmpli-
ces da imoralidade porque sabem o que é bom, mas marú-
pulam as brechas do sistema social para obter privilégios
ilícitos e injustos. Os segundos transgridem por inépcia;
porque JamaiS souberam o que significa ser tratado como
um sujeito moral. A convivência com o desmando ou visa à
sobrevivência dos que não têm saída ou à saída mais fácil
dos que sempre "se deram bem".
Para que o sistema de crenças mantenha sua coerên-
40 A ÉTICA E O ESPELHO OA Gl.ILTIJRA

cia, as causas devem poder funcionar como razões. Isto


quer dizer que entre causas e efeitos tem de haver uma rela-
ç.ão de plausibilidade. Os conteúdos racionais ou descriti-
vos dos fatores causais devem apresentar certa homologia
com os conteúdos dos efeitos. Os comportamentos tra.n.Y
gressores vistos como "negativos" devem encontrar na raiz
de suas causas fatos também "negativos". O aspecto defici-
tário dos costumes deve refletir o asp€cto deficitário dos
eventos que os produziram.
Fala-se de revolução tecnológica ainda não absorvida;
do novo capitalismo asiático e do desequilíbrio das econo-
mias ricas tradicionais; do capitalismo selvagem e depen-
dente; da desigualdade crônica da estrutura socioeconônú-
ca; da questão agrária; da destruição do meio ambiente; da
urbanização anárquica; da delinqüência urbana; das drogas;
dos assaltos; dos seqüestros; da fome; da mendicância; dos
menores abandonados; dos assassinatos de crianças, de
índios, de homens que fazem amor com homens etc. As
condutas impropriamente chamadas de "antiéticas" ex-
. põem, ao mesmo tempo, o fracasso das vidas individuais
em meio ao mal-estar da cultura. A imoralidade é percebida
como excesso ou omissão; desequilíbrio ou inadequação à
norma A transgressão é desafio e falência no desempenho
esperado. O incômodo, a insatisfação são efeitos do que
falta: falta de culpa; de vergonha; de decoro; de compromis-
so; de responsabilidade; de solidariedade; de sentido cívico;
de sensibilidade política etc. O remédio é a restauração dos
valores perdidos.

Em outra ocasião, sugeri a possibilidade de entender-


mos a crise ética deste ponto de vi.,ta (Costa, 1988). Dizia,
na época, que o descrédito dac; leis e o ataque ideológico à
idéia do stüeito moral ideal davam lugar ao surgimento de
uma cultura do mínimo eu, como disse Lasch, e da razão
cínica, como pensou Sloterdijk. Nesta cultura, a proximida-
de do pãni~císico, como o descreveu Freud, levou os
sujeitos a ír condutas delinqüentes ou burocráticas
que progressivamente vieram substituir o respeito às leis
INTROOUÇÃO IJI

legítimas e à dignidade moral das pessoas. Notei, depois


disso , que certos fatos sociais - como o processo de
impeachment do ex-presidente Collor; a CPI da comtpç.ão; a
campanha contra a fome, criada pelo Betinho etc. - deram
re~-postas positivas à degradação dos costumes cívicos.
Independente de terem ou não efeitos culturais a
longo prazo, os eventos mostraram que boa parcela dos
cidadãos brasileiros é capaz de agir eticamente, de acordo
com as exigências de nosso ideário moral. Nem tudo foi
resolvido, mas algo começou a ser resolvido. O caminho
para a restauração dos valores morais, embora extrema-
mente difícil, tem estradas pavimentadas. Gerações e gera-
ções morreram para que tivéssemos clareza do que é bom e
mau em matéria de convívio humano. Tivemos sorte. Não
somos herdeiros espirituais de nazistas ou stalinistas.

Pragmaticamente pensando, este momento de refle-


xão ou da prática ~tica é, sem dúvida algwna, absolutamen-
te essencial. Pemüte que a tradição reafirme seus direitos,
mesmo ao preço de conflito de opinião na interpretação do
que seja esta reafirmação. Democratas, liberais ou socialis-
tas pensam geralmente em reabilitar a tradição pelo diálo-
go e pela p ersuasão e, s ó em último c aso , pela força.
Conservadores e autoritários, pela viol~.ncia e pela punição.
O importante é que o valor da tradição tome-se explícito,
não obstante a opinião cínica que vê em qualquer compro-
misso com o legado da cultura sinal de conservadorismo.
Mas fazer valer a autoridade da tradição moral, ainda
que pela força se preciso, não aponta compulsoriamente pa-
ra o conservadorismo. Indica que a culttrra está apta. a definir
mn quadro estável de valores, que é a condição de possibili-
dade de qualquer mudança. Conservadorismo não é dejen-
~er- a tradição; é resistir ao surgimento de novas tradições.
E procurar impedlir que os vocabulários morais se transfor-
mem de~tro dos princípios básicos de wna tradição que, co-
mo a nossa, prevê· a eventualidade da mudança. Nwna socie-
dade que não admite ou não pode conceber a mudança, o
tenno tradição perde o sentido, pois tudo é tradicional.
42 A ÉTICA~ O ~SPJ<~LHO DA CULTURA

Como quer que seja, a análise "jurisdiforme" das ques-


tões éticas concentra a atenção nos indícios do mal-estar
para proceder ao diagnóstico e à busca de solução dos
impasses. Repetindo o que disse, nesta análise a faceta da
falha ou da falta no cumprimento das exigências ideais de
conduta vem em primeiro plano. No entanto, a presente
desmoralização da tradição ética tem seu lado positivo. O
lado que acrescenta, que soma algo de novo ao repertório
de comportamentos morais não relacionados com o antigo
código. Chamarei esta hipótese de "htpótese produtiva".
Na "hipótese produtiva", a oposição aos ideais da tra-
dição dá-se pela contestação do que é consensualmente
aceito, mas, simultaneamente, pelo desinvestimento ou
abandono do interesse por um certo estilo de vida. Os prati-
cantes do novo modo de viver não se percebem como inca-
pazes ou infratores; descrevem-se como criadores de con-
dutas inovadoras, positivas. Os preceitos do direito à vida,
à liberdade e à busca da felicidade são desprezados por
razões outras que não as tradicionais razões cínicas. O
cinismo procura desmoralizar os princípios éticos mostran-
do, com ajuda de exemplos práticos, que nada mais são do
que "intenções piedosas". No presente caso, a estratégia é
outra. É a de criar uma hierarquia em que tais preceitos
sejam vistos como preceitos menores. Como princípios
idealistas, fantasiosos, ineficientes, puritanos, franciscanos,
repressivos, obsoletos, em suma, como conselhos edifican-
tes,· do "catecismo dos perdedores". Não só os cínicos-
cegos em relação a valores - e os miseráveis - analfabe-
tos em relação a valores - opõem-se à tradição moral que
conhecemos. Os homens "felizes", "~s vencedores", como
se costuma dizer, também. É o adv~nto da "consciência
feliz" na "ideologia do bem-estar".
A noção de ideologia do bem-estar ou de "bem-estar
da civilização" foi pensada por Calligaris, no quadro de
referências conceituais psicanalíticas (Calligaris, 1988).
Fundamentalmente para dar conta do fenômeno das per-
versões, sem o ranço conservador, moralista e paroquial,
responsável, entre outras coisas, pela estigmatização infa-
mante de preferências eróticas minoritárias, como, por
JNTRODPÇÀO

exemplo, a preferência homoerótica. Passo ao largo desta


vertente para explorar o que concerne aos objetivos deste
trabalho.
Da noção de Calligaris, retenho a idéia de que na ideo-
logia do bem-estar o indivíduo busca uma fonna de não
sentir inquietações morais. De não ser obrigado a fazer :r
escolhas que o obriguem a decidir e a optar, arcando com o
peso da responsabilidade pelos seus atos. Em outras pala-
vras, de não "individualizar-se" como sujeito moral. Neste
sentido, o elenco de causas e razões da penúria ética muda
de feição. Não são os tropeços da sociedade brasileira que
ganham relevo; são os sucessos. Thdo aquilo que a maioria
aprova e defme como bom e desejável. Uma palavra pode
res umir e etiquetar o lado festejado da cultura brasileira ao
qual me reftro: "modernização".
Modernizar quer dizer várias coisas. Quer dizer ser neo-
liberal em econo'rnia; ser a favor da privatização de tudo que
possa vir a dar lucro; cultuar a tecnologia da informática e
dos multimídias; ser "liberado" em matéria de sexualidade;
adotar o consumo ostentatório como estilo de vida; cons-
truir identidades pessoais pela filiação a grupos particulari-
zados por marcas corporais, traços étnicos, convicções reli-
giosas etc.; tornar-se praticante e consumidor das inúmeras
tecnologias de bem-estar físico-mental e, por fim, jazer do
sucesso na mídia sintoma de auto-realização e da lingua-
gem da publicidtufe, meio intelectual privüegiado das dis-
cussões culturais. Todos estes itens compõem o lado apro-
vado da nova ideologia moral. Todos recebem o aval da
maioria dos brasileiros, que vê, na adesão a este ideário e a
este estilo de viver, prova de sua ocidentalização e de sua
entrada no "clube do Primeiro Mundo". O homem médio
brasileiro converteu-se à ideologia do bem-estar, ideologia
que opõe-se, quase ponto por ponto, à cultura humanista,
democrática, pluralista e individualista. que marcou a civili-
zação ocidental. Vejamos algumas de suas características.
Em primeiro lugar, esta ideologia é virule ntame nte
antipolítica, não só porque na prática e no discurso desqua-
lifica e ignora o valor do político na construção da ética
democrática ocidental. Até aqui, nada de novo. O modo de
11 A f.'TICA F.: O ESPP.LHO DA CULTURA

vida burguês sempre definiu o culto do privado corno nor-


malmente superior ao compromisso com o público. A novi-
dade, agora, é que a distinção entre o público e privado
tende a apagar-se em proveito de um outro fenômeno, o da
publici.dade. Antes, as razões do desprezo pelo político
eram, essencialmente, de duas ordens. Primeiramente, o
politico não produzia riquezas materiais, nem pe1mitia que
a iniciativa dos grandes homens se manifestasse em sua
plena expressão. Políticos eram os que queriam ter poder
sem dinheiro e sem traba1ho. Em resumo, a moral do traba-
lho e da produção de riquezas fornecia uma justificativa
elevada para motivos nem sempre nobres. Depois, o politi-
co era a cena da mentira, do engodo, da superficialidade.
Enquanto o privado era o lugar dos sentimentos honrados,
da autenticidade, da honestidade de propósitos etc., como
a vida familiar e amorosa mostravam, o político era o lugar
das promessas feitas e não cumpridas. A bondade e a gene-
rosidade não tinham vez na esfera política. A dignidade
humana tinha nos sentimentos e emoções privadas o refú-
gio nwn mundo sem compaixão.
Pouco importa se, aos nossos olhos, as justificações
do modo de vida burguês tradicional pareçam hlpócritas ou
ideológicas. Dizer que a maneira como a velha burguesia
defmia seus propósitos era "falsa" é logicamente equivalen-
te a dizer que a maneira como o pensamento libertário,
socialista ou humanitário os define é verdadeira. Uma afu'-
mação não se subordina à outra. Não há como medir o
nível de exatidão ou de correspondência entre prática e
teoria, porque qualquer medida é uma função do. próprio
sistema de interpretação.
N~.ste registro, dizer que wna teoria é mais ou menos
verdadeira quer dizer que ela·é mais ou menos moralmente
justa. Certamente, tendo em vista os princípios democráti-
cos e humanitários, julgar o modo de vida burguês ou o
modo de produção capitalista como injusto é moralmente
superior a tentar legitimar a redução de seres humanos a
força de trabalho ou a instrumento de expansão e acumula-
ção de capital, a pretexto de respeitar a liberdade de inicia-
tiva individual
Mais interessante, entretanto, é notar as diferenças
JN'fROUUÇÃO 45

que podem surgir, na cultura, quando diferentes tipos de


justificação são dados a fenômenos idênticos. A atividade
política, menosprezada por razões que os agentes conside-
ravam motalmente elevadas, não atingia o núcleo da idéia
do sl\ieito moral. O indivíduo da velha privacidade burgue-
sa respeitava sua intimidade como portadora de uma digni-
dade ideal que merecia ser cultivada e transmitida como
modelo às futuras gerações. Mesmo a hipocrisia tinha com-
promissos eom a decência
É verdade, o modelo da privacidade sentimental, con-
jugal e familiar produziu uma intolerância inaceitável con-
tra certos tipos de conduta sexual e afetiva. Mas, ainda
assim, a justificativa preconceituosa) para legitimar-se, ape-
lava para os ideais do sl\ieito moral. O burguês preconcei-
tuoso acreditava estar mais próximo do ideal de perfeição
moral do que o sl\ieito discriminado. A nuance é importan-
te. Quando o ideal é respeitado, podem-se interpelar os
infratores em nome da coerência, e, se não bastar, fazer
valer a força da justiça. Muitas das lutas pelos direitos civis
de minorias apoiaram-se na validade desta crença.

O apoliticismo do ethos atual é de outro gênero. Os ,


' indivíduos não cultuam mais nem virtudes públicas, nem
privadas. Por virtudes entendo o que Foucault descreveu
como práticas de ascese (Foucault, 1984). Ou seja, tudo
aquilo que os indivíduos podem fazer porque se concebem
como moralmente livres para escolher se querem ou não
fazer. A virtude era um suplemento de homa, criado pela
disciplina da vontade dos que aspiravam à glória ou à imor-
talidade. Porque imaginavam-se livre.s e capazes de exerc~.r
influência sobre si e sobre os outros, os indivíduos tenta-
vam ser "excelentes" no que faziam ou na maneira como
viviam. O herói, fosse ele conijoso, santo ou sábio, era o
modelo do "homem virtuoso". Era alguém que se alçava
acima das circunstâncias e da estrita necessidade para
ctiar algo novo em matélia de exemplo moral.
Na ideologia do bem-estar, o que conta não é a virtude, "
é o sucesso. A distância ética entre os dois é .enorme. O
sucêsso é indiferente à virtude. Seu parâmetro é a visibili- _
46 A t :TICi\ ·~ O ESPELHO DA CU LTI.'RA

dade. Donde a simbiose com a publicidade ou o "espaço


publicitário". O sucesso vive da publicidade e ambos
dependem do mercado de objetos. O suces..c;;o só é sucesso
se é notícia, e a notícia só é notícia se é um artigo, um pro-
duto vendável. Na núdia, pessoas, coisas ou eventos rece-
bem o mesmo tratamento. O espaço publicitário considera
irrelevante as tradicionais divisões entre fatos e valores,
público e privado. O virtuoso e o vicioso; o banal e o extra-
vagante; o subli.m:e e o monstruoso; o simulacro e a ·realida- .
de; o caricato e o autêntico, tudo é nivelado, no noticiário,
pela medida do sucesso de vend~. Não se pede mais ao
indivíduo que "excelencie", pede-se que "apareça", que "se
mantenha em cartaz". Não se pede mais que pense em qual
é a melhor escolha moral para ele e para o outro, pede-se
que calcule qual a melhor tática para ser "bem-sucedido". A
dignidaçle do sujeito moral perdeu sua função de funda-
mento da ética. Só é noticia se, no momento e na circuns-
tância, revelar-se um produto vendável. ·
Em São Paulo, um bancário de 26 anos foi preso por
manter relações sexuais com algumas dezenas de garotos
menores de idade. O macabro do episódio não é o fato .do
atentado ao pudor, e ainda menos, é óbvio, a qualidade da
inclinação erótica do infrator. Pode-se discutir se um garo:.
to de 16 anos de idade, como foi relatado na imprensa, têm
ou não capacidade de aceitar espontaneamente, sem vio-
lência, as solicitações sexuais de um rapaz de 26. O escân-
dalo do acontecimento é a lista elaborada pelo bancário,
contendo detalhes das conquistas e das relações sexuais, e
que foi feita com o objetivo de ser posteriormente publica-
da O rapaz, supostamente violentador, pensava em escre-
ver um livro, em trazer a público uma experiência da vida
privada que nada tem de exemplar, nem do ponto de vista
da criação literária, nem da experimentação moral. O dese-
jo de sair do anonimato e aparecer no espaço publicitário
foi um móvel da ação intencional mais poderoso do que o
sentimento de honra, de pudor ou de proteção à intimidade
da vida privada.
O s~e~o tornou-se um meio "naturalizado" ou "so-
cializado" dê construção de identidade pessoal. A diluição
do sujeito na moral do consumo e do mercado faz do suces-
INTRODUÇÃO

so uma das poucas condições de posse da admiração do


outro. Admiração desejada porque significa acesso a um
maior número de bens materiais e à distinção pelos signos
do consumo ostentatório. Os ídolos· da publicidade não pre-
cisam ser "excelentes" no que são ou fazem. O emblema do
sncesso.é a pennanência em cartaz e os objetos que exi-
bem. A angústia do anonimato causa inveja do sucesso e
avidez pela publicidade porque o sucesso é praticamente o
único modelo de individualização deixado aos indivíduos.
Modelo que reafirma a importância da posse de objetos de ·
consumo como espelho identificatório. Eu sou aquilo que
possuo, e quanto mais possuo, em qualidade e quantidade,
mais sou bem-sucedido.
A precariedade deste modelo de identificação salta à
vista. No momento em que dependo dos objetos de con.•:m-
mo para construir o sentimento de identidade, abandono a
crença na autonomia e na independência dó sujeito moral
diante de suas circunstâncias. Deixamos de lidar com a
contingência do desejo do outro, problema clá<;,sico de nos-
sa tradição cultural, para enfrentar o problema do que pode
ser uma conduta intencional humana inspirada na circula-
ç~ão, troca, produção e venda de objetos. Antes éramos feli-
zes ou infelizes, bons ou maus; agora somos obsoletos,
imprestáveis, inutilizáveis, economicamente inviáveis ou,
pelo contrário, algo que tem valor de venda, potencial de
lucro, liquidez etc.

Em segundo lugar, a ideologia do bem-estar é particu-


larista na visão de mundo que propõe a seus crentes e prati-
cantes. Particularista quer dizer incapaz de sustentar pre-
tensões sobre a identidade do sujeito, generalizáveis par.a
um dado universo cultural. Renunciando ao modelo de su-
jeito moral enquanto norma de julgamento para condutas
éticas de grupos ou indivíduos, o indivíduo do bem-estar
tende a buscar no real das coisas os pontos de ancoragem
para a identidade pessoal. Este problema foi assinalado, há
muito tempo, por llabermas ( 1983), e Calligaris vem acres-
c:e ntando novas chaves para sua compreensão.
48 A f:TrCA E O ESPELHO DA CllLTrJ{A

Dois exemplos ilustram a teoria. A'-3 elites sodoe<:onô-


micas procuram distinguir-se pela ostentação dos objetos
que possuem. Isto determina o reconhecimento de "quem é
quem'' no mundo do sucesso. Para ser "alguém", é preciso
ter aquilo que os que pertencem ao:; grupos privílc:>giados
têm. A posse de objetos pa~sa a ser o foco da disputa imagi-
nária da individualização ou da promessa da felicidade e do
bem-estar individual. Quem tem "é"; quem não tem "não é",
pode "deixar de ser" ou "não merece ser''. Na violência
urbana isto fi ca claro. Os delinqüentes de pés descalços
não hes itam em tirar a vida de quem quer que seja para
apropriar-se de objetos de ostentação. O outro, o dcspos-
suído de bens, nada vale por si. A indiferença recíproca das
classes sociais na cultura urbana brasileira é espantosa e
fero:t. Quem mata entende que a vítima só vale pelo que
poss uía como objetos de consumo ostentatório; quem
morre, mal sabe que só valia pelos objetos que possuía,
como lhe ensinar~ a acreditar.

Outro exemplo do part.icularismo moral atual é dado


pelo movimento das chamada.., minorias. O movimento das
o
minorias, inicialmente, foi desencadeado contra precon-
ceito da moral burguesa tradicional Em nome dos direitos
civis ou dos direitos humanos, mulheres, homens homoero-
ticamente inclinados e pessoas etiquetadas de "negras"
reclamaram tratamento moral equivalente ao dado aos
representantes das "maiorias". Pouco a pouco, numerosas
correntes nestes movimentos começaram a reivindicar os
direitos que lhes vinham sendo negados, como uma obiiga-
ção devida à "condição natural" de suas particularidades
físicas ou emocionais. Os indivíduos diseriminados redupli-
cam a discriminação. A título de revalorizarem positiva-
mente o que havia sido negativan\ente valorizado, .recorrem
à idéia de "condição natural" como fundamento da aspira-
ção moral. Neste caso, não são os objetos possuídos que
distinguem os sujeitos; são os corpos, os genes, a "herança
racial" ete. A nonna da conduta ética encontra-se fora dos
prindpios e da imagem do sujeito moral. O real das coisas,
rutüiciais ou naturais, é quem diz o que a moral deve ser e o
que é moralmente devido a cada um.
J'JTHODI'ÇAO

O particnl arisrno da identidade de:> minoria é uma


variante do modelo identificatório pela via do objeto.
~ublinhando o pertendmento a urna comunidade de predi-
cados físicos, os indivíduos buscam na realidade o referen-
te lliUial 1Jata :-;ua.o.; iden[.idades. Quando gntpOS de peSSOas
que se identilicam como gays alegam que suas inclinações
eróticas devem ser respeitadas, porque a "ciência" vem pro-
vando - o que é mais do que contestável -que a tendên-
cia Nótica individual é determinada por uma tipieidade
genética, mostram o quanto desconsideram qualquer moti-
vo moral corno razão suficiente para exigirem a considera-
ção que lhes é devida. O mesmo acontece com pessoas que
se dizem "negras" e também acham que merecem trata-
mento moral respeitoso porque seus predicados físicos são
·'naturais".
Além da comprovada insuficiência histórica deste
gênero de argumento, a referência partieularista da cons-
trução da identidade renuncia por completo a evocar a ima-
g~m do sttieito moral como instrumento de afirmação da
identidade. A contradição lógica e prática desta ideologia é
~vidente. Se a id('ntidade do indivíduo é desr.rita corno um
subproduto de sua singularidade física, genética ou outra,
qu~ direito tem ele de reivindicar o mesmo P.statut.o moral
dE' um outro com diferentes particularidades'? Ou existe um
valor moral maior que determine a igualdade de direitos
morais entre indivíduos com difP.rente.s singularidades físi-
cas ou comportan1entais, e, então, a reivindicação é sensa-
ta, ou não existe este valor c respeitar ou não as minoriac; é
Hma questão de gosto. Se o valor existe, entretanto, o argu-
mento particularista, de teor naturalista, é supérfluo.
Não precisamos~ em nossa tradição cultural, recorrer
a argumentos particularistas ou naturalistas para defender
o direito que têm os indivíduos de ser respeitados em sua~
\"idas públicas ou privadas, independente de traços físicos
OH de suas preferências morais, emocionais, sexuais, reli-
giosas etc. A valorização da natureza, neste ca.<;;o, é seme-
lhante ao relevo dado ao corpo na construção de outras
id entidades pessoais contemporâneas. Responde ao
mesmo desejo de encontrar, fora da linguagem, e, conse-
qüentemente, fora da ét.ica, um solo fixo e objetivo que
50 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

possa dar fundamento a nossas escolhas morais. O despres-


tígio do ideal de sujeito moral condena a idéia de escolha
ao rol das idéias desusadas. A incerteza quanto ao desejo é
substituída pela certeza da presença plena, sem indecisões,
da "natureza do objeto".

Em terceiro lugar e por último, a ideologia do bem-


estar é determinista e autolitária em seus princípios éticos.
Determinista porque tende a buscar, cada vez mais, em
ratos, coisas ou evento~ descritos como matertais, as justi-
ficativas das intenções éticas. Neste movimento, reducio-
rústas, economicistas, funcionalt~tas, utilitaristas, fisicalis-
tas, naturalistas etc. dão-se todo~ as mãos. Com ou sem
propósitos cínicos, insistem em dizer que t.omar princípios
éticos gerais como fundamento de ações éticas particulares
é idealismo. Ora, o problema do determinismo, entendido
como "a possibilidade de uma completa explicação causal
de todos os aspectos do comportamento humano" (War-
nock, 1960), não é só o de contrruiar os hábitos da lingua-
gem ordinárta que validam o papel causal de termos corno
escolha, motivos ou razões no vocabulário das condutas
intencionais.
Tampouco é o de não resolver problemas de semânti-
ca formal, a exemplo da quE>stão de como derivar "o que é"
de "o que deve ser". Como mostrou Cavell, a autonomia da
moral não precisa de argumentos deste quilate para afir-
mar-se como verdadeira. Não ajo moralmente, de modo
autônomo, porque disponho de critérios racionais para
dizer que "não tenho eomo inferir a sen~ença de11o fazer
isso da sentença porque Deus, a natureza; a razão, o bom
senso, a ciêrwia etc. mandam jazer isso, a menos que as
sentenças sejam suplementares por uma premissa étiea do
tipo devo obedecer ao que Deus, a natureza, .a razã.o, o
hom senA so, a ciênci-a. etc., mandam fazer' (Cavell, 1979).
Ajo moralmente porque adquiro a habilidade de jogar um
jogo de linguagem onde aprendo a me ver como um sujeito
que delibera em situações de conflito e que é capaz de justi-
ficar a ação de que é autor.
Tais argumentos bastariam para que a aceitação do
Gl

determinismo ético se torna..<;se menos natural do que os


deterministas querem fazer crer. Ao lado disso, o determi-
nismo alinha-se à ideologia do bem-estar oferecendo mode-
los de identidades pessoais causalmente explicados por
fatos e não valores. A pregnância da moral dos objetivos é
clara. Assim como o mundo dos objetos fornece a imagem
que tenho de mim, o modo de fabricação de objetos deve
fornecer a imagem do modo como sou fabricado. Isto é,
devo ser descrtto como previsível e controlável em minhas
ações. Ideologicamente, o sucesso do determinismo é o de
apresentar a imagem do sl\jeito como a de wn artefato. Na
mesma linhagem de cientificismos e mecanicismos de
outros tempos, as hipóteses naturalistas do tipo genética
ou outras propõem uma noção de determinismo causal
estreita, exclusivista e indefensavelmente reducionista de
nossas preferências morais.
Na tradição ética que é a nossa, o detenninismo, ou
seja, a escolha pela descrição dos atos éticos do sujeito
como efeito de causas empíricas, sempre existiu subordi-
nado às recomendações dos princípios morais básicos.
Escolhemos dizer que um comportamento foi causalmente
determinado por fatos empíricos quando isto pode atenuar
a responsabilidade moral do sujeito, liberando-o de ônus
físicos ou morais desnecessártos. Ao dizermos, por exem-
plo, que um ato criminoso ou lesivo à integrtdade físico-
moral de outros foi causalmente determinado por fatos
empíricos, estamos simplesmente perdoando o indivíduo,
em parte ou no todo, pelas conseqüências de seus atos.
Dizendo que ele estava privado de consciência ou com a
vontade debilitada, em função de distúrbios orgânicos,
emocionais etc., estamos dizendo que não merece arcar
com os custos da pwúção prevista
O pressuposto é o de que ninguém deve fazer sofrer inu-
tilmente um semelhante. Porém, o acréscimo do argumento
empúico, na análise da cauo;;alidade, não é o critério último
pm·a o julgamento de uma conduta transgressora. A avaliação
elo que pode contar como fato empírtco atenuante ou agra-
vantt.> de uma falta moral depende de pressupostos morais
anteriores, e não de um critério científico objetivo, racional c
c~ticarnente neutro que dê o veredito final ao julgamento.
A ÉTICA E O ESPELHO DA CUL1TRA

O caso de conduta.-, transgressoras causadas por uso


de drogas ilegais é um exemplo óbvio. Científica e objetiva-
mente, crimes cometidos sob a ação de drogas deveriam
beneficiar-se de atenuantes, já que a droga pode obnubilar
a consciência do sujeito, debilitando sua vontade ou suas
convicções morais. Mas como, atualmente, o senso comum
juridico acha que o sujeito já é "culpado" pelo fato de ter
feito uso de drogas, um crime cometido sob efeito de dro-
gas é um crime duplo, por assim dizer. A análise da causali-
dade presente na ação intendonal complexa submete o
argumento do fato empírico a considerações, em última
instância, de natureza moral. Esta prática é completamente
diversa daquela que vê no determinismo naturalista o tribu-
nal superior e o último recurso no julgamento de atos
morais.
Concluindo, a moral do bem-estar, porquanto particu-
larista e determinista, é autoritária. Este é o corolário ideo-
lógico do paradigma do objeto como modelo de identida-
des morais. Abrindo mão da idéia de sujeito moral como
ideal obrigatório de condutas em nossa cultura, abre-se o
flanco para a defesa do "correto é o que nos agrada". No
momento em que tomo objetos como elementos definido-
res de identidades humanas e fatos empíricos corno causa e
j ustificação das ações intencionais, posso dizer que a "lei
da equivalência das mercadorias" e da "indiferença da natu-
reza quanto a questões morais" está estabelecida A ideolo-
gia do bem-estar é a porta aberta para o autoritarismo. Não
há como j ustificar direitos humanos iguais para seres
humanos naturalmente düerentes se não estipulamos que
desigualdades naturais não podem e nã.o devem ser justi-
ficativa para desigualdades rrwrais.
A idéia da desigualdade moral só existe no interior de
um sistema moral que permita a comparação entre ações
intencionais , e não nas diferenças encontráveis em nosso
patrimônio físico ou biológico. O mérito dos "melhores"
eabe àqueles que ''excelenciam" no exercício dos princípios
morais. Mas, se tento encontrar em nosso corpo ou nos
objetos que possuímos o critério distintivo para a con...;;ide-
raç~o ou desconsideração do nosso próximo, recorro à lin-
guagem das "evidências" que, como na linguagem científi- ·
f!'JTRODCÇÀO

ca, trata eventos como efeitos de leis e não como fenôme-


- nos passíveis de redescri~:ões e reinterpretações. Jogamos
no lixo da história pelo menos alguns milênios de tradição
cull.ural.
O hediondo exemplo do nazismo, com seu racismo
biologista e estatizante, é a ilustração paroxística do parti-
cularismo determinista em matéria de ética ou moral.
Desdenhando o ideal do sujeito moral como uma invenção
dos fracos e impotentes, e ensinando aos indivíduos que
moral é um subproduto de peculialidades "raciais", o nazis-
Jno quis fnndar a ética na "ciência", ocultando a moral que -
informava a "escolha científica". A preferência moral pas-
sou a ser absoluta, como não podia deixar de ser, mas com
o álibi intelectual da prova empírica dos fatos e teorias
científicas.
.No Brasil, a proliferação de identidades particularistas
mostl)a o fascínio desta ideologia. Obviamente, não afirmo,
o que seria falso e injusto, que todos os grupos de militân-
cia em favor da causa de minorias participem desta ideolo-
gia, ou estejam conscientes do alcance de suas opiniões,
quando procuram defender direitos morais recorrendo a
direitos naturais. Do mesmo modo, grupos definidos por
hábitos de consumo não discriminam necessariamente gru-
pos diversos até o limite de negar-lhes a humanidade. Falo
da tendência geral. Refiro-me ao fato de que aprendemos
durante milhares de anos, a ver no outro alguém que er~
como nós porque tinha algo em comum conosco, além de
uma constituição biológica parecida e dos objetos em
comum que eram capazes de ter.
O corpo, como os instrumentos ou utens ílios que
P_odemos produzir, sempre· foram vistos corno meios que
tmhamos de alcançar a felicidade sem fazer injustiça ao
semelhante. Eram instrumentos postos à nossa disposição
pela natureza, pela graça de Deus, p ela diligência dos
homens, pelo acaso da história, pelo heroísmo dos mais
fortes, pela inteligência dos privilegiados, pela virtude dos
melhores e mais sábios, pouco importa. O fundamental era
que essa herança deveria estar a serviço de uma comunida-
(le universal de humanos que tinham dignidade porque fala-
vam e que sabiam o que era moral porque sabiam distinguir
A f.'TJCA F. O ESP.I!:LllO DA Cll i.TilRA

entre o bem e o maL Esta faculdade, capacidade, função,


habilidade, disposição, ou o que quer seja, sempre foi, até
hoje, percebida corno algo que transcende aquilo que con-
sumimos e produzimos, e aquilo que, em nós, só pode con-
sumir e produzir, ou seja, nosso corpo ou nosso equipamen-
to biológico.

Se discutimos até hoje o que é o bem e o mal, é porque


pudemos imaginar um sujeito moral a quem atribuímos o
poder de ser causa interior dos atos lingüísticos descritos
como éticos. Este st\ieito foi concebido como capaz de alte-
rar suas próprias circunstâncias, e, portanto, de ser impre-
visível nos atos que inaugura, contra as detenninações de
seu passado. Estamos sempre recriando o bem e o mal. Por
isso o bem, nas sombras destas contingências, só pode ser
visto como nos espel1ws, em enigmas. Mas porque somos
imprevisíveis, insistimos em descrever-nos corno seres
morais herdeiros de uma dada tradição. Sem imprevisibili-
dade não haveria escolha moral, e, sem tradição moral, não
haveria por que escolher.
Esta imagem do sujeito, dirão os cínicos, é idealista.
Nunca se realizou na história, ainda menos na história da
civilização ocidental. É desconhecer que o vocabulário dos
ideais independe de comprovações empíricas para funcio-
nar como "vocabulário ideal". Como dizemos em psicanáli-
se, só existe sujeito a partir de um horizonte de ideais. O
stúeito só se reconhece como sujeito quando pode dar uma
descrição ideal de si, sem o que não poderia julgar o que é.
Este é o jogo de linguagem da idealidade como condi.ção
da subjetimda~. Sem idealização da imagem" do sujeito
moral, não teríamos como saber o que é um sujeito ou se o
stúeito que temos diante de nós é um stúeito corno nós. E,
sem esta habilidade, dificilmente teríamos condição de
definir "crueldade corno aquilo que de pior podemos fazer .
ao semelhante". Quando pensamos em assassinatos com-
pulsivos; em extermínio sistemático de seres humanos,
aflultos ou crianças; na indiferença desumana com que
somos capazes de tratar aqueles que o preconceito ensina
que são ''homens inferiores", uma explicação impõe-se: o ·
!NTROU\JÇÀO

autor da violência não vê na vítima um sujeilo corno ele.


Que pode sofrer corno ele; amar corno ele; ser feliz ou infe-
liz corno ele.

Abdicando da idéia de s~eito moral em favor de iden-


tidades parcializadas, construídas pelas regras do mercado
de bens ou pelas marcas da reali'd ade em nossos corpos,
atravessamos uma fronteira sem conhecer o outro lado.
Nada mais fácil do que gozar com a crueldade infligida ao
outro. Basta que o vejamos como objeto, como alguém que
não é um stúeito corno nós porque não possui os mesmos
bens materiais, os mesmos traços físicos ou as mesmas
crenças morais que possuímos. O que Freud chamou de _..
pulsão de morte é esta tendência a gozar com o sofrimento
ou a destruição do outro, visto como objeto de uso para
nossa excitação pulsional. O que ele chamou de pulsão de
vida são todos os artifícios da linguagem que nos fazem
<.· rer em realidades lingüísticas como a da existência de um
sujeito moral a quem devemos a obrigação de respeitar físi-
ca e moralmente. Não se abandonam impunemente estas
crenças. É preciso que o que entendemos por amor, amiza-
de, solidariedade, fraternidade, generosidade e, inversa-
mente, por crueldade, indiferença etc., nada mais signifi-
quem para que uma outra forma de vida possa tornar o
lugar da atual. Se isto vier a acontecer, o mundo não será o
mesmo. MUitos dentre nós não saberiam o que fazer de um
mundo assim. Como viver num mundo assim?
ÉTICA PÚBLICA
A FACA NO CORAÇÃO

Paulo Braga tinha 27 anos. Era run jovem brasileiro, como


milhões de outros. Morava num bairro periférico do Rio,
onde, com a ajuda da farrulia, alugara um pequeno quarto e
voltara a estudar. Para algwts, isto seria muito pouco; para
Paulo, não. Aos 14 anos, aproximadamente, foi hospitaliza-
do com graves problemas psíquicos. Desde então, começou
a descida aos infernos da psiquiatria pública, de onde não
mais saiu. Corno tantas outras pessoas sem recursos, neste
país, submeteu-se a inúmeras internações e tratamentos
ambulatoriais, sem apresentar qualquer melhora. Há quatro
anos, chegou ao Hospital Gustavo Riedel, runa das múda-
des do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro.
O quadro era desalentador. Com enorme esforço, os técni-
cos de sua enfermaria conseguiram reverter a situação.
Depois de inúmeras tentativas frustradas de altas precoces,
perceberam que a melhor forma de ajudá-lo era conceder-
lhe pequenas e freqüentes licenças, sem desvinculá-lo da
instituição. Paulo, enfim, ao cabo de três anos, reagia favo-
ravelmente ao tratamento.
A assistência seguia seu curso, quando, no mês de
fevereiro deste ano, muda a direção do Centro. Com a
mudança, uma nova diretora assume a chefia do Gustavo
Riedel, e, em cornrun acordo com o diretor geral, afasta a
equipe que se ocupava de Paulo. Os motivos alegados eram
a incompatibilidade do tratamento até então oferecido com
o que chamavam "modelo médico de atenção psiquiátrica",
e a ordem do Ministério da Saúde para que as finanças
públicas fossem saneadas. Os técnicos do Gustavo Riedel,
junto com alguns outros colegas do Centro, SP'), de início,
GO A ÉTI CA E O ESP~~J.HO DA C l JLTll RA

ameaçados de demissão, e em seguida transferidos para a


Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Paulo é desliga-
do do Centro e enviado ao Posto de Assistência Médica em
Irajá. Tenta resistir ao desligamento. Volta algumas vezes
ao Gustavo Riedel, à procura de sua pbicotcrapeuta Cláudia
Corbusier. Não lhe dão o endereço nem a maneira de entrar
em contato com ela. A psicoterapeuta, por seu turno, não
tinha como reencontrá-lo, a não ser através do hospital, que
estava impedida de freqüentar. Tempo psíquico e tempo
burocrático não são medidas do mesmo sistema. O desen-
contro foi fatal. No final de abril, Paulo se mata com uma
faca no coração.
Do ponto de vista legal, nada a declarar. A equipe foi
dispensada em nome da contenção do déficit público e da
"ciência médica" dos dois diretores. Paulo foi desligado do
Centro e mandado a Irajá, em nome da regionalização do
atendimento e das normas que regulam a ocupação dos lei-
tos hospitalares. Além do que, em nome das estatísticas clí-
nicas, ele também poderia ter-se suicidado, independente-
mente das circunstâncias político-admi.rústrativas envolvi-
das no caso. Tudo está em ordem. Tudo corre macio no co-
tidiano do asilo. Desordem era a vida de Paulo. Desordem
era o desejo de seus terapeutas, que queriam vê-lo melhor e
mais feliz.
Não há razão para espanto, pode-se dizer. Que diferen-
ça faz entre morrer pelas próprias mãos ou esperar que,
mais dia menos dia, a miséria e a subvida terminem seu tra-
balho? Quantos Paulos morrem diariamente nas favelas e
subúrbios, ou nos serviços de urgência e enfermarias de
nossos hospitais públ!icos? Por que Paulo e não os outros
Paulos? É que a morte de Paulo mostra, de maneira dura, a
tragédia brasileira Ele e..~va sob cuidados psiquiátricos e
lutava desesperadamente para viver, com os frágeis meios
de que dispunha. Foi vencido impiedosamente pelos buro-
cratas da saúde.
O horror brasileiro nada tem de lovecraftíano. Não é
fantástico, espetacular, nem espera as meias-noites para
aparecer. É banal e tem a cara do vizinho. Seu nome é irres-
ponsp.bilidade e impunidade; seu padrinho é um etlws
social que parece ter perdido completamente o sentido de
A FACA .:-.10 CORAÇÃO 61

justiça. Com que direito e em nome de quem urna institui-


ção psiquiátrica, supostamente encarregada de proteger e
tratar os que estão sob sua tutela, acua alguém como Paulo,
ao ponto de levá-lo a ver no suicídio a única saída para seus
tonnentos? É a situação econômica, que recomenda auste-
ridade nos gastos públicos? Quantos dólares vale a vida de
Paulo? São a•; querelas de escola e os ressentimentos entre
técnicos, que levam alguns a desconhecer o trabalho te!a-
pêutico de outros? O que Paulo tinha a ver com isso? E o
lobby de certos técnicos, cuja ética profissional é artigo
exclusivo para "cidadãos de primeira classe", e, no asilo, só
têm compromissos com interesses corporativos? São os
burocratas do asilo, arrogantes, ociosos e alérgicos à lou-
cura, que só conseguem ver clientes atrás da<; grades ou
expedidos para longe, depois de carimbados e protocola-
dos, confonne normas e regulamentos feitos, antes de mais
nada, para proteger e justificar a intocabilidade de que
gozam nos serviços públicos? Ou, finalmente, é a pressão
dos donos de hospitais privados, que, aliados a políticos
inescrupulosos, também querem uma cadeira no banquete
do descalabro, e tentam convencer a opinião do país de que
a opressão psiquiátrica privada é superior econômico-ideo-
logicamente à opressão psiquiátrica pública? E Paulo em
tudo isto? Por que os inconseqüentes fazem a festa e ele
paga a conta com a própria vida? Que terra é esta; que
gente é esta; que psiquiatria é esta?
Paulo morreu, e nós que o conhecemos e dele gostáva-
mos não podemos "explodir Manhattan". Temos que conti-
nuar trabalhando. O que não nos impede de perguntar ou
diir.er com Carlos Dnurunond:

O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil


é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhwn Brasil
existe. E acaso existirão os brasileiros?

,Jornal do Brasil, 516/AA


A RAZÃO CÍNICA

A psicanálise tern condições de dizer para. onde vai o Brasü?


Uso o instrumental da psicanálise, é verdade. Mas não es-
tou explicando o Brasil psicanaliticamente. Estou dizendo:
face a essa desorgarúzação que existe, veja como a gente
começou a se comportar. O que eu quero é apontar que, for-
mado esse círculo vicioso de desestruturação da sociedade,
começa a existir wn dado novo que escapa ao controle
puramente político, econômico ou social, que é o dado psi-
cológico.

E qual é a sua análise?


Indica que se precipita sobre todos nós essa situação de
desesperança, de descrença, de desespero. Ou se consegue
restituir a possibilidade de investir num projeto futuro e
nas realizações de ideais, ou então vamos ter um dado
incontrolável, que é o medo, o pânico das pessoas, que
levará o indivíduo a querer se defender a qualquer custo,
permanecendo o mais fechado possível e abrindo mão da
intervenção no social

Como é que se percebe ü;so no dia-a,-dia,?


Na transformação dos brasileiros em indivíduos social e
moralmente supérfluos. Por isso, essa sensação nacional de
que nada mais lem valor. Pa..'>sa a proliferar a idéia de que o
valor não existe, que tudo é igual. Ou seja, passa a imperar
a filosofia, que eu chamo de razão cínica, que, no nível polí-
tico, do dia-a-dia, diz que, seja eu um mau-caráter, seja eu
um homem de bem, é exatamente igual. Ou pior, do ponto
de vista do usufruto individual, até há mais vantagens em
ser um cafajeste.
A RAZÃO CÍNTCA

Como é que se chegou a essa moral do desespero?


A queda do autoritarismo trouxe, no seu bojo, uma desor·
ganização muito grande. Urna vez desestruturada a socieda-
de, os indivíduos se precipitaram nesse regime de econo-
mia egonarcísíca, que, por sua vez, faz com que ele reali-
mente o processo de desorganização, criando um círculo
vicioso. Ou seja, as pessoas foram empurradas para um
regime de economia mínima- o eu mínimo-, que real-
çou seu narcisismo em detrimento da sua possibilidade de
exercício da cidadania. No momento em que elas começa-
ram a funcionar dessa maneira, passaram, por outro lado, a
retroalimentar o processo de dissolução do social.

O que o narcisismo tem a ver com a realidade nacional?


Por natureza, o homem não é um ser social. Não existe
nele, como nas abelha., e nas formigas, um instinto de pre-
servação da espécie - apenas u de autopreservação.
Somos então, por natureza, narcísicos, porque só vemos,
prioritariamente, nosso bem-estar individual. O convívio
social, e mais ainda o convívio social democrático, nos
impõe, portanto, wn trabalho enorme.

Como assi:m?
É simples. A instância p1imeira do homem é o seu narcisis-
mo, o seu instinto de autopreservação. Mas existe uma
segunda instância, igualmente importante, que poderiarnos
chamar de ideais - o que eu quero vir a ser, aquilo que eu
poderia ser, o que eu gostaria de ser. O bom funcionamen-
to de urna sociedade é ditado pela eficiência com que ela
agencia esses ideais, como lida com essa espécie de subor-
no que Viabiliza a vida em sociedade.

lt essa eficiência ((Ue falta à soc-iedade brasileira?


É. O que me toma aflito em relação ao projeto da socieda-
de brasileira é quando esses ideais entram em falência.

Alg-uma vez o lrrasileiTo e;rperimentou essa perspect-iva de


futu'ro, de re.al:ização de ideais?
Claro. Pelo menos a classe média. Sempre, no Brasil, houve
uma imensa rna..c;;sa que, ao longo da hí~tória, foi despida de
51 A f:TIC:\ ~: O ESP~:LIIO DA CULTURA

qualquer possibilidade de particípa~:ão social. O problt-ma é


que essa situação de superfluidade - termo concebido
pela brilhante Hannah Arendt -, de que nada que a gente
faça, nada que a gente diga, nada que a gente queira impor-
ta para a sociedade está, agora, atingindo também a classe
média.

E qual a conseqiUJnda. da cassação dos ideaL<> da classe


·~nédia ?
É bom lembrar que ela sempre foi o colchão de ar entre as
elites e os exchúdos, uma guardiã da moralidade, em cima
da ,qual sP. incutia e genninava a ética do trabalho, do
respeito, da moralidade, do hom comportamento, que a elite
nunca teve e que os despossuídos nunca precisaram ter.

Contaim:ínada a. classe m.édia, o que acontece?


Acontece o que estamos vendo todos os dias. O comporta -
mento das elites, agora sem amort.edmento da classe
média, tem um efeito de demonstração, no sentido de
aguçar o comportamento marginal da clao:;se pobre, que é o
da delinqüência assassina, mortífera.

Q'UeT dizer, pode piorar?


Esse questionamento, por sinal, está intimamente rela-
cionado com a razão cínica. São mecanismos de aco-
modação histórica que fazem eom que o cidadão acredite
que nunca a coisa é tão grave, que não é verdade que o país
cst.eja tão mal, que isso é pânico antes do tempo, que· ele
vai conseguir escapar. Por força disso, gerrninou entre nós
a idéia de que, neste país, em tudo se dá um jeitinho. O que
não tem nada de verdade. Existem sociedades que se
tornaram inviáveis, mesmo. E o perigo não é, a mP.u ver,
apenas o prolongamento desse estado de coisas por mais
algum tempo, e sim chegarmos a ponto de perdermos a
idéia de sociabilidade e o país se fragmentar em gomos.

O q-ue seria ·i sso, exat.amente'!


É o estado em que, acho eu, está mergulhada a Colômbia.
Ela está um pac;;so à rrent.e do Brasil. Num ponto em que j á
perdeu o sentido de representatividade e a.c; pessoa.'5 estão
A RAZÃO CiNICA 65

dominadas pelo império do tráfico de drogas, que desestru-


turou a sociedade.

O senhor atribui o p·roblema brasileiro à crise posteri.c'r à


queda do au.tori.tmi.smo. De qu.e ti.po de crise o senhor
(ala?
·Basicamente, esse processo detonou por meio da irrespon-
sabilidade dos que assumiram o poder depois do fim dos
governos militares.

11 razão cín'i.ca prol'ife mu. sob a düadu:ra?


Ela estava latente. Ma'5 sua manifestação estava represada
pela perspectiva de concretização de um id~al, o ?-~ que
tudo iria mudar e de que, com o fim do reg1me nnhtar, a
gente iria fazer uma democracia verdadeira e construir o
Brasil com que a gente sonha.

Seda corret.o d·izer que a razão C'inica se acentua durante


as r.rü;es er.onômv-a.c;?
Sim se acentua, porque não há mais condição de bancar
scq~er wna promessa de conforto que, no Brasil, foi repre-
sentada pelo carro fmanciado em 36 meses, a casa própria
via BNH e o acesso facilitado a diversos bens de consumo.
Por que isso? Nas c1ises, o homem habituado a delegar
podei es à elite para decidir o que é melhor para o hem
comum perde a confiança na Justiça e a apatia política se
acentua e toma direções inquietantes, podendo levar as
pessoas, em maior ou menor grau, à perda do sentido da
responsabilidade social.

Essa 'reação já foi estudada pela psicanálise?


F~tu dada, não. F'reud tentou, numa espécie de ensaio com
tinturas de ficção, antever o que aconteceria a uma
sociedade que ent rasse numa crise de autoridade e
perdesse a noção da transcendência da Justiça Valeu-se
pam isso de um romance inglês, When it 'lUas dark, como
fom1a de ilustração. Nesse livro, teriam sido descobertos
fatos históricos que negavam a ressurreição de Cristo. A
m01te de J esus , e portanto de Deus, teve na hislória o efei-
to de desmantelar completamente a vida social, pelo
66 A ÉTICA E O ESPF:LHO DA CUI,TliRA

aumento da violência. Os indivíduos, sem Deus, passaram a


descrer das leis e a agir pressionados simplesmente por
seus medos ou interesses privados.

Não é esse o q'uadro da criminalidade no Rio, por exem-


plo?
Não é possível, nem exato, transpor uma situação retratada
numa ficção para a realidade brasileira. Certamente, não
chegamos a esse ponto. Mas, se o pânico narcísico ainda
não se instaurou, há indícios sociais que apontam para lá.

Quais?
Diante de uma sociedade em degradação, o egodelinqüente,
fruto do pânico narcísico, tem a tendência de manifestar-se
de duas maneiras: ou como absolutamente impotente, ou
como onipotente. Quando impotente, ele se traveste no
modelo da subserviência burocrática, onde a regra é a obe-
diência devida, qualquer lei é lei, autoridade e autoritaris-
mo são indissociáveis e o que move é o medo. Na outra
ponta, encontramos a arrogância onipotente que tem a
desobediência à lei como lei. Desse lado estão o marginal
que não vacila em matar alguém por um relógio de plástico
ou um par de tênis, o cidadão que estaciona em fila tripla,
paralisando o trânsito de toda uma rua só para apanhar seu
filho na escola, o político ladrão e o empresário fraudulen-
to. Engravatado ou descamisado, o delinqüente aiTogante
considera-se acima da lei e desafia todos os que não que-
rem transfom1ar-se em apêndice de sua onipotência.

Bw;ca instaum.·r sua própria lei?


Exato. Chamo de legislar em causa própria. A lei passa a
ser a de um só, a lei do banditismo. Porque lei a gente
aprende na prática. Não por meio da teoria. É vendo e agin-
do o tempo todo. Só observando nossos companheiros da
sociedade é que vamos introjetando as nomtas da conduta
social.

E os ·rwssos e:).;ernplos de hoje são o político corrupto, o


empresário sonegador, o marginal e o ·motorista que elege
sua pTópria /.e-i do t1"ânsito ...
A RAZÃO CÍNICA 67

Posso acrescentar outros exemplos tão ou mais graves. A


responsabilidade do funcionalismo público nesse estado de
coisas, por exemplo. A meu ver, o funcionário público é o
protótipo do indivíduo narcísico e um fato absolutamente
abominável neste país. Ele tem ainda uma dupla ação
social: a de exemplo vivo da cultura de levar vantagens e a
de germe da dissolução do social.

O senhor se refere ao empreguismo?


Sejamos diretos. Esses lugares são todos cabides de empre-
go, onde se entra basicamente pelo nepotismo, pelo cliente-
lismo e onde se demole diariamente qualquer sentimento
de dignidade que possa ainda resistir.

Como assim?
Porque os funcionários públicos - e aí, obviamente, estou
falando de maneira genérica - não se enganam: Eles
sabem que são parasitas, que não fazem jus aos salários que
recebem. Eles sabem que não trabalham e as elites brasilei-
ras habituaram gerações e gerações de pessoas - que não
são poucas - a viverem nessa situação de indignidade, em
que prevalece, exclusivamente, o interesse corporativo, de
extorquir cada vez mais, num reflexo imediato ao compor-
tamento dessa mesma elite. Em setores como educação e
saúde, isso é pavoroso, para não falar na administração do
Estado. Eles estão, no dia-a-dia, mostrando ao cidadão
como se vive de forma parasitária, criando, portanto, um
sentimento de ir\iustiça atroz. Basta ver como um operário
que trabalha e, de fato, produz 1iqueza - e tem consciência
da dignidade do que ele faz para a sociedade - é tratado
dentro da burocracia do aparelho de Estado, ou no setor de
saúde, ou no de educação.

O exemplo, então, é o pior possível?


Na burocracia, na obediência cega, que confunde, como eu
.iá disse, autoridade com autoritarismo c segue a ordem
pela ordem, está um dos pioneiros germes da dissolução do
soeial, que é o genne do fascismo e do nazismo. Numa
sociedade autoritária, ditatorial, a opressão é fundada ba..<:;i-
<.'<Hnent.e na roüna e na burocracia. São aqueles que obede-
A ÉTICA F: O ESPELHO DA CULTURA

cem até o ponto de torturar e matar os outros. Quando se


passa a obedecer cegamente, você perde o sentimento do
que é a lei, na medida em que as regras são frutos da discus-
são pública. As leis mudam, somos nós que as fazemos e
elas são sempre melhores em função do interesse comum.
Se não as discutimos, e advogamos que qualquer lei é lei,
então estamos ao lado da marginalidade e somos capazes de
desprezar as regras e instaurar nossa própria lei.

E o exemplo dos políticos?


Bem, as promessas não cumpridas ou frustradas - que
tiveram grandes momentos do fim do autoritarismo para
cá, com a morte de Tancredo Neves e o fim do cruzado-
podem estar entre as maiores causas da desesperança.
Acho que os políticos têm uma responsabilidade muito
grande. A meu ver, é preciso existir um espaço onde a refle-
xão sobre a ética e o bem comum seja possível, e esse lugar
privilegiado é o político, na sua verdadeira dignidade. É
preciso quebrar essa }magem - e que já virou senso
comwn - de que todo político é um ladrão, wn parasita.

Um i lustre representante do "centrão" lançou mão da,


frase "é dando que se receb'e". Ele não passa a se-r um
militante dessa razão cínica que ameaça o país?
Nem é cinismo - é des façatez elevada à milésima potên-
cia. Primeiro, subverteu-se, de uma maneira inconcebível,
uma figura como são J:i'rancisco de Assis. Depois, como
polítjco, dizer isso dentro deste país, no momento atual,
nmn contexto de troca de favores, de pilhagem, de insensi-
bilidade absoluta em relação ao estado em que está o
Brasil, é uma irresponsabilidade.

A ve-rsão mai,s bern-a.cabada da razão cínica ...


Não, a versão mais bem-elaborada está nas universidades,
nos meios acadêmicos. Mas eu faria papel de tolo se disses-
se que são teorias prodlllZida'5 no Brasil ou adaptações fei-
tas, propositadamente, para a realidade brao;ileira Elas são
basicamente idéia-, produzidas na Europa e nos Estados
Unidos, mas, transpostas e aceitas por um ce1to número de
pessoas, são nocivas por engrossar o caldo de irresponsabi-
A RAZÃO CÍNICA 69

Iidade. Essas teses a que se poderiam chamar de relativis-


mo ou racionalismo procuram justilicar por meio de argu-
mentos - muitos extraídos com impropriedade de autores
como Nietzsche e Foucault - urna critica à existência de
valores. Como se dissesse: sempre foi assim e sempre será.

Corn o que o senhor não concorda.


Para mim, não é preciso ser idealista, nem metafísico
grego, para afmnar que os valores foram feitos por nós e,
portanto, não são hiper-humanos, nem perfeitos. Mas estão
longe de serem apenas, como advogam os adeptos da razão
cínica, mecanismos exclusivamente de coação, ou, corno
dizem, instmmentos de dominação. Existem leis e valores
que sLrrgem do consenso, como o conceito de democracia
- em que se procw-a assegurar o espaço para a divergên-
cia de opiniões e a proteção aos mais fracos - , e mecanis-
mos de obediência consentida, como as leis de trânsito.
Que não existem leis divinas, eu concordo com eles. Mas
que todas as leis são violentas e servem apenas para a defe-
sa de interesses particulares dos mais poderosos, isso eu
conside ro um erro primário e perigoso.

O senrwrnão é tão cético quant,o essas pessoas?


Eu sofri ácidas críticas por estar desenhando um panorama
absolutamente negro do país. Não é isso. Tenho certeza de
que existem pessoas que se estão associando, que estão
defendendo seus interesses de maneira legítima, que estão
lutando por algumas coisas melhores. Como um amigo meu
me lembrou, em certos subúrbios. comunidades de bairro,
você ainda vê práticas de solidariedade, certos objetivos
que se tentam cumprir coletivamente. Há políticos que eu
respeito, que têm um projeto nacional, como há colegas
que eu respeito. Eu não diria que o país inteiro está mergu-
lhado nisso. Se assim fosse, seria a hecatombe. As pessoas
qw:~ estão na contramão, contudo, são pessoas muito acua-
da.•::;. Quando escrevi meu artigo sobre o assunto, quis me
<.:omunicar com essas pessoas, dizer que há outras pessoas
que se importam, que querem reagir e que adianta, sim.
Aqui dentro da wúversidade, por exemplo, onde chefio o
Departamento de Medicina Social, meus colegas não vão
70 A ÉTICA E O ESPELliO DA Ct:LTURA

parar de dar aula9 e não vão parar de dar expediente, não.


'fenho os instrumentos institucionais e, se precisar, a gente
obriga, sim. O aluno vai fazer prova. O professor vai dar
aula, vai ser responsável pela produção.

Dá para iniciar uma mudança de rota?


O desfecho eu não sei, porque parto de um pressuposto
radical, no modelo de Hannah Arendt. Acho que, quando a
gente prevê o desfecho, está muito perto de criar o que se
chama de sociedade autoritária.

Não é poss'ivel, então, apontar uma sa.í da?


A saída, não. O que eu poderia dizer é o que não é saída,
por exemplo, achar que podemos, individualmente, encon-
trar a solução. Também não é saída continuannos achando
que é tudo culpa do Estado e não da sociedade, que nós,
como cidadãos, não temos nenhwna responsabilidade
sobre isso e que compete exclusivamente aos governantes
resolver os nossos problemas. Por essa demissão, a gente
paga caro. Foi a derrússão do povo alemão que os levou à
derrocada da República de Weimar e ao nazismo. Também
não é saída a esperteza. Não vai demorar e as pessoas per-
ceberão que, para cada trambique que derem, tem dez
outras para dar trambique nelas. Então, pouco a pouco,
elas vão querer a ordem. E será a ordem fascista.

É pa-ra isso que podemos nos encaminhar?


Sim. Essas pessoas não vão mais aceitar a desordem, e os
resultados eleitorais vão começar a apontar isso, para a
eleição de políticos que tenham esse tipo de perfil, com
maior ou menor dose populista, mas que não vão vir para
isso. Será o ápice da demissão.

Entrevista a IstoÉ, lln/88


ERA UMA VEZAAMÉRICA

Buffalo, norte do estado de Nova York. No fim da tarde, ruas


desabitadas pareciam sem destino ou utilidade. Pedestres
apáticos, raros e entregues ao nada caminhavam diante de
lojas que imploravam por fregueses. Só os edifícios de tijolos
vennelhos, animados pelo poente, insistiam ~m dizer que o
tempo passava. Tudo tinha o ar de coisas esquecidas; tudo era
desalento, solidão, enfun, puro Hopper.
No hotel, cortinas velhas e persianas estragadas pediam
apenas ventiladores de teto para que o ruído das pás trouxes-
se de volta Hammett e Chandler. Porteiros indolentes; chaves
de quarto trocadas; telefones defeituosos; mau humor dos ge-
rentes e comida cara e ruim completavam o cenário involun-
tário de wn fascinantejilm noir. Um turista espanhol, toma-
do de espanto, disse: "Que cidade feia e triste. Era uma vez
a América."
Não foi preciso muito. A alusão ao fllme de Sergio Leone
fez-me ver, de imediato, um dos traços marcantes da cultura
americana. Quem vê os Estados Unidos, na grandeza ou na
rrúséria, reconhece o que, de certa fonna, já sabia. Não pelo
contato com a realidade, mas por meio da ficção. A surpresa
do espanhol, como a minha, estava em constatar: de fato, é
como nos filmes, nos romances, na música, na pintura etc.
À primeira vista, a observação é acaciana. Que novida-
de existe em se afmnar que toda e qualquer realidade só se
torna "realidade" quando interpretada? O que de extraordiná-
rio pode haver no fato de os Estados Unidos, como qualquer
país rico e exportador de cultura, terem difundido sua ima-
gem por meio da ficção? Mas é justamente a aceitação tácita
deste modo de ver as coisas que se trata de discutir. Nem sem-
pre notamos a peculiaridade daquilo que nos é familiar. Uma
72 A ÉTICA 1!: O F.S PELHO DA CCLTVRA

coisa é admítii que todas as culturas conhecidas retrataram-


se, de uma ou de outra maneira, nas art.cs, mitos, ciências, fi-
losofias, literaturas etc.; outra coisa é entender como uma
cultura pôde fazer do comentário sobre si matéria de critica
e reinvenção permanente de crenças e costumes. Isto impli-
ca dar à imaginação cultural autonomia para criar alternati-
vas de mundo c força para que tais invenções sejam respeita-
das e levadas a sério.
De tal modo habituamo-nos a pensar na cultura critica
como um valor evidente por si mesmo que temos dificulda-
des em entender o que seria um universo cultural privado
deste ideal. No entanto, práticas intelectuais desta ordem
nada têm de naturais, necessárias ou obrigatórias. Podemos
adquirir a habilidade para exercê-las como podemos perder
esta habilidade. Poucas culturas deram liberdade aos st.Uei-
tos de fazerem o que Magritte fez ao escrever sob o cachim-
bo de sua célebre tela: cec·i n'est pas une pipe.
Para que o discurso critico possa descolar-se da realida-
de, muitas vezes a ela se opondo sob a forma de hipóteses ou
versões imaginárias do real, é preciso que os indivíduos acei-
tem falar do ponto de vista do valor ideal, mesmo contrarian-
do o senso comum dos fatos e evidências. É preciso que se
sintam livres e incentivados a conceber o inexistente e, prin-
cipalmente, que possam tomar-se capazes de escolhf>..r entre
o real e o ideal. A prática crítica requer e fundamenta-se na
idéia do sujeito moral. Sujeito que é uma realidade lingüísti-
ca como tantas outras, mas sem a qual é impossível a qual-
quer um de nós decidir entre o pior e o melhor, independen-
te do peso da realidade material, do que pensam maiorias e
minorias e do que impõe a tradição, salvo aquela que lhe deu
origem.
A crença no valor desta prática surgiu na antigüidade
clássica, foi retomada nos projetos dos revolucionários ame-
ricanos e franceses, persistiu no pensamento dos socialistas
democráticos e tom ou-se um dos grandes princípios de
nossa tradição moral. Apostar num futuro melhor, distinto do
passado e do presente, converteu-se no objetivo central da
clitica fi ccional, científica, filosófica etc. Durante séculos,
nosso heróis foram os inventores, descobridores ou aquel es
que lutaram para que os ideais pemlaneces.<:;em vivos. Lendas
I!:lU UMA VEZ A A.."IÉRICA

e sagas; odisséias e cruzadas; grandes c pequenos descobri-


mentos; experimentações bem ou malsucedidas no campo
das ciências, da política, da reflexão moral ou da produção
artística, toda esta atividade humana convergia para o hori-
zonte da glorificação do novo. A imaginação critica era a mo-
rada do extraordinário.
Hoje, tudo isto é pouco a pouco esquecido. O mundo en-
trou no transe do ncolibcralismo econômico e da eficácia tec-
nológica. A civüização, como disseram os alemães; a socie-
dade, como disseram os franceses, devoram a cultma.
Visionários revolucionários são vistos como personagens tão
improváveis quanto príncipes e princesas de c ontos de fada.
Fala-se ruidosamente de ética. Porém se trata de uma ética
caseira, submissa ao que já é. A ética da ousadia, do atrevi-
mento e da defesa radical do humano foram desinvestida~.
Quem lembra do que disseram Thomas Paine, Jefferson,
Montesquieu, Saint-Just, Rosa Luxemburgo ou Sartre fora
dos estreitos corredores acadêmicos? Quem lembra que
estes homens e mulheres, postos no panteão congelados dos
ídolos obsoletos, dedicaram a vida a imaginar um mundo me-
lhor e mais justo para todos?
As grandes causas e as grandes narrativas, diz-se, chega-
ram ao fim. A busca louca da verdade foi trocada pela sensa-
tez da utilidade. O tempo é o das aventuras c alculadas e do
elogio à repetição. Dá certo o que dá lucro e o que dá lucro está
cmto. Inventar, portanto, não é mais lidar com o imprevisto e
o impensado. É reeditar, da maneira mais rápida, o que existe
e se sabe, de antemão, que é vendável. Marx, neste aspecto,
tinha total razão. Na lógica do mercado tudo se toma merc..a-
dmia, inclusive a atividade imaginativa. O maravilhoso, o que
empolga, está, agora, no "real" das coisas. O desafio reduziu-
se à exploração das possibilidades antecipadan1ente vistas
como comercializáveis. Decifrar senhas e fabri car soPs é o úl-
timo e pequeno abrigo dos inquietos e audaciosos. O sonho
cabe no computador; o Eldorado, a L'topia, nagadget city.
Pode-se perguntar o que a América do capitalismo; do
racismo; da obsessão pelo dinheiro; do individualismo pos-
sessivo; da sociedade de massas; do consumo desenfreado;
das intervenções brancas ou sanguinolentas em países po-
bres; da violência urbana das drogas, do desemprego e dos
74 A ÉTICA~ O ~~SPELHO DA CULTURA

sem-teto tem a ver com ideais e utopias. É simples. Os


Estados Unidos foram provavelmente a nação capitalista in-
dustrializada mais crítica em relação ao poder que o Estado
ou a máquina econômica pode exercer sobre a moral coleti-
va ou individual. Um rápido exemplo ilustra o que penso. Na
América, af1rma-se, nasceu a sociedade de massa<;. Entre-
tanto, em que outro lugar do Ocidente rico a massificação dos
indivíduos foi mais debatida e condenada? Antes mesmo que
a "massa", enquanto realidade socioeconômica, existisse a
cultura crítica já havia descrito todas as causas c conseqüên-
cias de suas mazelas políticas e pessoais. Historicamente, o
resultado foi único. A ''massa" americana é a "massa" mais di-
versificada em gostos e preferências ético-estéticas que co-
nhecemos. À massificação pelo consumo, a imaginação críti-
ca respondeu com uma diferenciação ímpar nos estilos de
viver e pensar. A cada passo na uniformização dos corpos e
espíritos induzidos por mudanças científico-tecnológicas ou
por interesse do capitalismo, a ficção cultural replicou com
experimentos morais e estéticos que se opunham ao nivela-
mento da identidade dos sujeitos.
Argumentar que uma ética idealista deste gênero jamais
existiu, dado que convicções morais nunca estão isentas de
contágio por interesses materiais, é irrelevante. Mesmo su-
pondo que crenças éticas possam justificar-se racionalmente
a partir de fundamentos extra-éticos - tese discutível -,
saber o que causa uma crença só importa quando se trata de
defender a crença que está em risco. Do contrário, especular
sobre as origens pré-éticas ou paraéticas da ética é olhar para
uma caixa preta fechada ou colar os ouvidos numa porta à
prova de som, esperando ver e ouvir um segredo que não está
em lugar algum. Se o interesse pela função critica da cultura
é provocado pelo narcisismo, hedonismo ou puritanismo,
então, boas-vindas a tais hóspedes. Do mesmo modo, não faz
sentido julgar o valor desta prática cultural pela maior ou
menor capacidade que teve de barrar os descaminhos dos
processos socioeconôrnicos. Urna coisa não está atrelada à
outra. Além do que, a história é feita de acasos, e nem sempre
o melhor e o mais justo são os vencedores.
Mais interessante, a meu ver, é comparar a imagem de
stúeito e sociedade associados à América com o que nos
ERA lH\V, VEZ A AMÉRICA 75

chega do rico Oriente asiático. Tentemos imaginar que figura


do sujeito moral pode ser derivada ou construída sobre a ci-
vilização dos multimídias. No que me conceme, feita a tenta-
tiva, fico com a tradição: "O sonho americano está morto;
viva o sonho americano!"

Folha de S. Paulo, 211.194


MORAL BY TECHNICOLOR

Certas idéias que, à distância, parecem desbotadas, vistas de


perto mudam de cor. É o caso do pensamento da Escola de
Frankfurt. Bombardeada à esquerda e à direita, por estrutu-
ralistas, neo-estruturalistas, historicistas e neopragmáticos,
mesmo assim Frankfurt resistiu. Muita coisa ficou de pé,
como, por exemplo, a questão cultura .T civilização. Não pre-
ciso retomar, na íntegra, toda a argumentação que dá supor-
te à teoria. Outros, mais competentes, encarregaram-se da ta-
refa Vou direto ao que importa. No capitalismo avançado,
mostraram os frankfurtianos, a cultura vem sendo absorvida
pela civilização. Ou seja, a esfera de valores (cultura) tende a
desaparecer, tragada pelo mundo da necessidade, da produ-
ção e reprodução materiais (civilização).
Embora recusando a visão idealista da cultura como um
campo autárquico da atividade humana, aqueles pensadores
procuraram defender sua independência frente aos interes-
ses instrumentais e de dominação da natureza, típicos da ci-
vilização. Em suma, admitiam que o universo de valores fosse
motivado, ou, o que dá no mesmo, movido por interesses
mnndanos e materiais. Porém, lutavam contra sua destrui-
ção, pois sem ele perderíamos a possibilidade de criticar prá-
tico-teoricamente o real em nome de princípios ideais. A cul-
tura, resumindo, é a morada da ética; nela habitam nossas
mais elevadas aspirações morais.
Despida dos traços universalistas, racionalistas e funda-
cionalistas, a concepção de cultura franldintiana aproxima-
se do que julgo ser uma das principais fontes da reflexão freu-
diana sobre os ideais morais. Freud, nos momentos em que
discutiu o tema dos ideais morais coletivos, abordou-o na
perspectiva da cultura. Por que, perguntava ele, construímos
MORAL BY TECIINICOLOR 77

ideais morais? Urna das respostas foi: para proteger-nos dos


danos que a natureza pode causar a nosso corpo e dos sofri-
mentos psíquicos que podem advir de nossas relações com os
outros. Os ideais morais e as atividades sublimadas respon-
dem por esta função presente no equipamento culturaL Além
disso, os princípios morais devem ser suficientemente está-
veis e firmes para preservarem a manutenção e a reprodução
dos dispositivos culturais em seu papel de proteção aos indi-
víduos.
No cm'So da histórta, a busca desse equilíbrio entre so-
brevida das instituições culturais e atenção para com o bem-
estar dos indivíduos vartou em relevância, intensidade e qua-
lidade. Mas só na democracia veio a ocupar integralmente o
coração da vida pública, obtendo, talvez por isso, razoável su-
cesso em sua pretensão. A democracia, ao aceitar que o ser
social não tem substância, e que os indivíduos têm o direito de
modelar suas vidas com vistas à auto-realização, limitou-se a
prescrever uma moral coletiva mínima, expressa na injunção:
o direito de um cessa onde começa o direito do outro. A moral
democrática, portanto, é urna moral em aberto, sujeita a mu-
danças históricas, e que não dispõe de qualquer garantia
transcendental para exercer-se. Por esta razão, ao mesmo
tempo em que permite a criação de novos consensos sobre a
defmição do bem comum e a invenção de novos estilos de
existência individual, exige a permanência de princípios. Os
indivíduos são livres para experimentar novas fomlas de go-
verno de si e de uso de prazeres; as instituições estão autori-
zadas a modificar-se de acordo com a realidade social, porém,
sob lúpótese alguma, nenhum indivíduo, grupo ou classe tem
direito a rnanipl}lar as regras da moral pública em benefício
de interesses privados, assim como nenhum indivíduo pode
impor seu bem-estar à custa do bem-estar do ouitro. É o que
faz com que, nos sistemas democráticos, a dor e a humilha-
ção, nas palavras de Rorty e Shklar, sejam "aquilo que de pior
podemos fazer ao outro"; é o que faz com que o respeito àdíg-
nidade física e moral do sujeito tenha se tomado a insígnia de
nosso maior bem. Esta é a moral "não-moralista", a ética que,
até segunda ordem, diferencia o viver democrático da vida
sob regimes totalitários, ditatoriais, teocráticos ou entregues
ao caos e ao banditismo, oficial e oficioso.
78 A ÉTICA E O ESPI'~LHO DA Cl'J,TIJRA

Transpostas para o Brasil, penso que essas questões per-


manecem atuais. Antes, durante e depois das eleições presi-
denciais, falou-se e fala-se em rec onstrução do futuro demo-
crático do país. Mas, por força da crise econômica ou pelos
interesses ideológicos, apresenta-se a socialdemocracia so-
bretudo como sinônimo de desenvolvimento material, o que
só em parte é verdade.
Dito de outra forma, na democracia o que conta é a civi-
lização. Com a prosperidade, a cultura virá por acréscimo.
Deixem aos tecnocratas a realização de seus sonhos! Do in-
teresse técnico nasce o interesse ético. Ora, este tipo de dis-
curso é enganoso e perigoso. Enganoso porque insinua que a
produção material é o Zeus de ctija cabeça emerge a Atenas
democrática; perigoso porque praticamente subordina os
princípios morais à pretensa eficiência da produção, prome-
tendo repetir, em meio à carência, o que em meio à abundân-
cia vem sendo acusado de solapar tais princípios.
Como seria de esperar, os efeitos deste pragmatismo de
ocasião surgem de imediato. Um deles é a "moral em techni-
color". Segundo esta moral bifronte, cultura é um affaire de
talão de cheques. Na face "techni", ela afirma o que já disse-
mos: dê~se liberdade à indústria e ao comércio do pão e, por
um milagre econômico, a fome de ética será saciada. Na outra
face, a "colorida", ela afirma o que ternos sobejas razões para
temer e repudiar: já que moral é um subproduto da expansão
material, tudo é permitido desde que se atii'\jam os fins pre- .
vistos. Em outros termos, corno a amizade colorida da gíria
brasileira, esta moral dá·se o luxo de ser volúvel, descartá.vel
e desobrigada de suas promessas, salvo aquelas contraídas
com planilhas de custos e coeficientes de produtividade.
Em meio ao processo eleitoral, quem não é cego ou
surdo assistiu a uma infeliz exibição deste espetáculo. Com a
desenvoltura própria à moral em technicolor, certos órgãos
da imprensa, candidatos à presidência e figuras de proa de
nossa elite politica, econômica e social não hesitaram um se-
gundo em mentir, distorcer informações e abusar da falta d e
escrúpulos a pretexto de implantar a socialdemocracia no
Brasil. Da exploração do preconceito de classe à incursão
sórdida na vida privada de adversários, tudo era remédio
para. a saúde socialdcmocrática.
MORAL BY TECHNICOLOR 79

Exagero, dir-se-á. Por que transformar inocentes exces-


sos de campanha em pecados sem direito a perdão? Afmal,
isso acontece nas melhores nações socialdemocráticas.
Além do que, só um espírito puritano e fora do ar pode pin-
tar um processo eleitoral feito de anjos e meninos cantores,
ensaiando nússas de Beethoven e paixões de Bach! Chega de
choro, pé atrás e tempos sombrios. O importante é o que nos
espera Pra frente, Brasil! É possível que assim seja Com fé,
esperança e boa vontade, torço mesmo para que o melhor
aconteça Mas não custa lembrar: o tamanho do pecado
mede-se pelas circunstâncias em que foi cometido.
Mais uma vez, se o que foi dito é verdade, tomamos da
democracia o pior, atirando fora o melhor. Número um, men-
tir, chantagear, sonegar informações o u bloquear a locomo-
ção de cidadãos em dia de eleição podem ser práticas even-
tuais e, concedamos, incontornáveis nas democarcias que
conhecemos. Mas, quando ocorrem, não são acolhidas com o
silêncio cúmplice dos que têm a obrigação de exercer hones-
tamente a liberdade de informar que tanto prezamos. Só atrás
do muros de Berlim, antes da queda, e nas fortalezas armadas
dos sistemas pinochetianos podem tais práticas ser justifica-
das como naturais. Número dois, acabamos de sair de um pe-
ríodo ditatorial seguido de um período de "nada". Ainda es-
tamos bem perto do estágio em que, como na piada celebri-
zada por Brecht, fica difícil distinguir um assalto a banco da
fundação de um banco.
Por incômodo que seja, é impossível não ver no Brasil o
banditiSmo ocupando as brechas deixadas por um Estado
castrado e urna sociedade desorganizada. Da economia para-
lela ao tráfico de drogas, por todo canto respiramos a presen-
ça inquietante desta ilegalidade a céu aberto. Sem contar com
sintomas menores, como a circulação de personagens de
nossas elites, que passam das colunas sociais às páginas po-
liciais, ostentando risos de chá das cinco. A delinqüência,
hoje, não se contenta mais em freqüentar a periferia do
poder, como sempre fez. Instalou-se na sala de visitas. E
daqui a pouco, quem garante, em vez de hóspede pode querer
tornar-se anfitriã.
Neste contexto, convenhamos, brincar de transgredir
regras morais, comprometendo o ideário socialdemocrátko,
A ÉTICA F. O ESI'!-~LHO DA GlJLTCRA

significa jogar azeite na caldeira do diabo. Que, apesar de


burro, como disse Hélio Pellegrino, dá muito trabalho antes
de ser moralmente alfabetizado. No Brasil, o único "efeito
Orloff" a ser evitado não é o argentino. Outros, de um gênero
diferente, mas igualmente nocivos, farejam nosso futuro,
prontos para dar o bote na democracia: efeito Panamá, efei-
to Colômbia etc. Para isso não é preciso muito. Basta que
continuemos a tratar a questão ética como um artigo supér-
11uo ou, confonne alguns ironizam, como sinal da irresistível
atração de intelectuais pelo palavrório e pela miséria.
Insistindo nisso, podemos acordar amanhã com Noriega em
Brasília. Ai sim era uma vez a socialdemocracia ..
Para concluir, um último adendo. Já vejo o cínico per-
guntando: mas e dai, moral aplica-se no o-ver1 Resposta: não,
não se aplica. Mas, para quem quiser saber qual o preço da
imoralidade, sugiro que se consulte uma de suas vítimas, o se-
nhor Bmis Lerner. Perguntem a ele quanto custam a estupi-
dez do lucro fácil e o desrespeito pela vida dos outJ:os. Sua
dor, um ano depois do Batea,u. Mou.che, ainda fala mais alto
que qualquer eloqüência.

J&nwl d~ Hrasi.t, 21/1190


ABOMINÁVEL MUNDO NOVO

O trem, sossegado, percorria as belas margens do Elba O


outono frio e distribuído em amarelos completava a harmo-
nia da paisagem. Tudo parecia anunciar o tranqüilo encanto
de Praga, ponto final da viagem. De repente, no vilarejo de
fronteira, gritos quebram a ingenuidade da paz aparente.
Uma família de asiáticos estava sendo retirada à força do
vagão. Um casal, entre tapas, pontapés e porretes, debatia-
se com policiais, enquanto duas crianças apavoradas chora-
vam pedindo o pai e a mãe.
No corredor do trem, três mulheres alemãs observa-
vam a cena, e uma delas, transtornada, gritou: "Porco es-
trangeiro!" O tom era de rancor e insensatez. O episódio
durou pouco. A viagem continuou. Na cabine, uma afável
senhora tcheca, com llll1 tímido sorriso, comentou: "Os pa-
péis não estavam em ordem." Foi tudo. O amigo brasileiro
com quem eu viajava olhou-me, calado. Tínhamos visto, de
perto, o ódio e a indiferença; a brutalidade que se aproxima
da morte e quase faz da palavra um gesto inútil.
Depois de Orwell e HuxJey, o imaginário ocidental habi-
tuou-se a projetar no totalitarismo a figura do Mal O fantas-
ma da "sociedade totalmente administrada", concebido pelos
pensadores da Escola de Frankfurt, durante certo tempo apa-
receu como ameaça quase real Afinal, o nazismo e o stalinis-
mo tinham acontecido, e a gestão técnica das massas consu-
midoras dos países ocidentais caminhava, a passos largos,
para o controle dos corpo..c;; e desejos dos sujeitos. O Ad:rni:rá-
vel mundo novo, pensava-se, chegara antes do tempo. Não
E>..sperara 1984. Mas, disse Hannah Arendt, os homens são
plurais e imprevisíveis. Algun..c:; lances do ac-aso predpitaram
a queda do Muro de Berlim e, para surpresa de muitos, do
82 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

marketing montado em cima do produto liberdade. De um só


golpe, a lüstória desfez a farsa das burocracias totalitárias
comunista..c; e o mito do paraíso capitalista europeu. Dos des-
troços emergiu o direitismo racista, núlitante e fanático.
A Europa politicamente responsável treme, de novo,
diante do perigo nazista No entanto, este velho sentido do
horror não nos pode fazer esquecer o que existe em nome
do medo do que pode vir a ser. Uma multinacional nazista é,
certamente, uma possibilidade hedionda Contra ela toda
precaução é pouca. Thdo é possível quando a estupidez se
toma pensável. Mas, se a ascensão do nazismo ao poder é
uma hipótese, a degradação do corpo político europeu já é
wn fato. O problema é mais grave. Não se resume ao futuro,
diz respeito ao presente. A Europa está com um pé na bar-
bárie, e é difícil decidir o que é pior: se wn Admi rá?Jel
mundo novo, ou se um "Abominável mundo novo", entregue
à fúria cega dos bandos dedicados à morte e à destruição.
Em um ano, na Alemanha, 1.800 atentados racistas
contra imigrantes redWldaram em 16 mortes. Na França, In-
glaterra, Bélgica, Itália do norte etc., o panorama é apenas
um pouco melhor. Em todos os quadrantes da Europa rica,
párias do regime econônúco se convertem ao banditismo
social, sob o olhar complacente da maioria apática ou cúm-
plice, que não vê mais saída para a multiplicação de mendi-
gos, desocupados, desempregados, camelôs, traficantes e
consumidores de drogas que ocupam rapidamente as gran-
des cidades. Sem falar na impressionante decadência do
equipamento de saúde, educação e assistência social, por
muito tempo apresentado como a vitrine do "Estado do
Bem-Estar" ou da socialdemocracia européia. Por enquan-
to, o ntiserável, submisso e esfarrapado imigrante é wn
bom álibi. A questão é: até quando?
Até quando a idiota e obscurantista ideologia racista
será capaz de conter a frustração consumista, a superficiali-
dade política e a total descrença nos ideais democráticos
mostradas pelo lúmpen social europeu? Falta pouco ou
muito pam que nossos conJ1ecidos seqüestros, arrastões e
a..<;saltos venham mostrar a outra face da delinqüência racis-
ta, hoje encampada ideologicamente pelo neonazismo e di-
reitismo de sorte?
ABOM IN.Á.VEL.MUNDO NOVO

Para um "brasileiro da periferia do capitalismo", este


quadro tem qualquer coisa de inquietante e familiar. Lá,
como aqui, é dilicil acreditar que, um dia, povos, nações e
Estados modernos perderiam legitimidade e autoridade mo-
rais diante de hordas delinqüentes que, sem controle, pilham
a céu aberto wn patrimônio humano e cultural penosamente
construído ao longo de séculos. Lá, como aqui, é amedronta-
dor constatar a ausência de uma instância normativa capaz
de impor ideais éticos consensualmente aceitos.
A violência tomou o lugar da persuasão e da solidarie-
dade. O interesse particular sobrepôs-se ao interesse públi-
co, mostrando que, sem uma ética do bem comum, nenhu-
ma moral privativa pode construir um mundo minimamente
humano para todos. É esta. a herança de um sistema socioe-
conômico em dívida com a tradição democrática que, supos-
tamente, estar.ia em sua origem. Traindo os compromissos
com o passado político, a Europa, fascinada pela tecnologia
e pelo lucro, fez da justiça e do respeito moral pela pessoa
letra morta.. O resultado veio rápido, cruel e avassalador.
Certas idéias, disse uma. vez Borges, nascem doces e
envelhecem ferozes. Outras, diria, já são ferozes ao nascer.
Ensinar e fazer crer aos homens que eles nada mais são do
que seres de aquisição, consumo, fabricação e competição
tem um preço. A Europa começa a pagá-lo. "Liberdade
custa caro", dizia o esperançoso trabalhador tcheco, refe-
rindo-se à sua pátria livre da opressão totalitária. De fato,
custa. Só que seu preço não se mede em dólares. A liberda-
de, não obstante os ideólogos, não é uma mercadoria. É um
modo de vida em que o homem vale mais que o lucro e a
justiça não negocia o bem comum por trinta. dinheiros.

O Estado de S. Pauw, 7/ 1219'2


PANORAMA VISTO DO MURO

Berlim, dois anos após a unificação. Na ex-Berlim Oriental


as mudanças são espetaculares. A grandiosa Unter-den-Lin-
den, longo tempo dominada pela soturna embaixada sovié-
tica, parece correr livre em direção à Porta de Brandembur-
go. Na Friedrichstrasse, hotéis e porteiros de luxo disputam
o visual com carros reluzentes, antiquários, butiques, joa-
lherias e o col01ido universalmente ambulante dos turistas.
O Pergamon, que já era um esplêndido museu, compete
agora com o que de melhor existe no mundo; o Altes-Mu-
seum exibe uma bela retrospectiva de Rembrandt, e, na cé-
lebre Alexanderplatz, a velha, pobre e vazia loja de departa-
mentos transformou-se em mais um santuário do consumo,
como tantos outros, em qualquer rica capital européia.
A prospe1idade está em toda parte, e só os berlinenses
ocidentais, saudosos da pacata Berlim de antes, não conse-
guem vê-la Finalmente, na antiga passagem de fronteira
entre o Leste e o Oeste, nada da aura melancólica que John
Le Carré delicadamente lhe havia emprestado em seus ro-
mances. Em vez disso surge, de repente, o Mlll·o; ou melhor,
suas sobras. Como um morto-vivo, ele está lá, lembrando
que todo o imaginário ocidental, durante anos e anos, acre-
ditou que o mundo e os homens dividiam-se entre comunis-
tas e não-comunLc;tas. Ao lado, prosaicamente, turcos e ro-
menos, alguns imigrantes ilegais, vendem pedaços do Muro,
em pacotes de plástico ordinário; bonecas russas; quinqui-
lharias diversa<;, e, por fim, o mais importante, os espólios
do Exército Vermelho: gon·os de frio, quepes, relógios de al-
gibeira, souvenirs de familia etc.
À beira da ·miséria, os filhos do sonho socialista de
Trotski desfazem-se do que possuem para comer e sobreviw
PANORAMA Vl~I'O DO MURO 85

ver. Assim parece terminar o século XX, como sugeriu Dah-


rendorf. Assim parecem apagar-se os traços da resistência
de Stalingrado, dos milhões de soldados mortos na luta
contra o nazismo e da..q luminosa..c; imagens da liberdade so-
cialista idealizadas por Eisenstein e Pudovkin. É como se
t.udo nunca tivesse existido. É como se tudo isto tivesse
sido subitamente esquecido graças à corrupta e totalitária
burocracia stalinísta. Graças a ela, o Exército Vermelho, de
símbolo da utopia libertária, passou a simbolizar a escravi-
dão; o militarismo soviético; a ocupação de Berlim; o mani-
quoísmo da guerra fria e as bn1tais invasões de Budapeste,
Praga e do Meganistão. A Europa respira aliviada vendo o
inimigo abatido. Olha para o futuro, dá adeus à história e
volta-se para coisa'> mais sérias: o Japão, a Comunidade Eu-
ropéia, a organização do exército franco-germânico e o pla-
nejamento econômico para os próximos dez, cem... quem
sabe, mil anos!
Goya disse, em um dos seus Caprichos, que "o sono da
razão produz monstros". Com Rorty, não penso assim. A
razão, mostrou Freud, é sempre sonolenta. E, tal qual a co-
ruja de Hegel, só desperta para voar quando a tarde cai.
Vista do Muro, pelo menos em seu eixo continental - Ale-
manha- França - , a razão européia está bem acordada. O
que parece adonnecida não é a razão: é a memória. Memó-
ria de frases como a que Sartre gravou no monumento às ví-
timas da Segunda Guen·a, em Paris: ''Perdoa, mas não es-
queças.'" Este lapso de memória coletiva é tanto mais im-
pressionante quanto ocotTe em um continente engarrafado
por museus, sítios históricos, arquivos, bibliotecas, livrarias
e ruínas de guerra. Estranhamente, é nesta Europa saturada
de passado que os ideais democráticos parecem correr o
risco de sair de cena.
Em Paris, as hostilidades contra "os invasores", termo
cômico-pejorativo usado recentemente em francês para de-
signar o inúgrante pobre, em especial o árabe norte-africano,
crescem a olhos vistos. Desde declarações il\iuriosas de polí-
ticos de primeiro escalão do governo socialista, passando
por manifestações fascistóides do gênero bleu-bla?U-muge
(com ênfase no blanc), orquestradas por Le Pen, até o dnis-
mo de universitários éclairés, que, entre 1isos e vinhos, co-
A ÉTICA E O ESPELHO DA Cl"LTURA

mcntam despudoradamente que seus empregados domésti-


cos clandestinos logo logo serão expulsos, tudo cheira a
passado. No aeroporto de Frankfurt, os banheiros pichados
de cruzes suástica...;; e telefones da Klu-Klux-Klan de Dres-
den mostram a desinibição da direita nazista. Em Berlim, o
ataque a bairros de imigrantes não-brancos é apenas o sin-
toma ruidoso de um rancor surdo contra o estrangeiro
pobre, sempre prestes a explodir. Numa farmácia, por
exemplo, a vendedora alemã, grosseira e arrogantemente,
mandou dois turcos calarem a boca pelo simples fato de es-
tarem falando em turco.
Os democratas franceses e alemães, liberais ou socia-
listas, estão perplexos. Menos pelo estardalhaço das gan-
gues nazistas e da direita racista do que pelo silêncio dos
políticos, intelectuais e da população em geral. Silêncio
cúmplice; silêncio dos indiferentes; silêncio daqueles que
perderam toda capacidade de identificar-se com a dor e a
hunúlhação do outro, razão de ser do "ethos democrático",
como argumenta freudianamente Rorty. As tentativas de ex-
plicação multiplicam-se: é a crise econômica; é a resistên-
cia do imigrante a integrar-se; é a competição dos gigantes
asiáticos; é o medo da onda imigratória do Leste europeu
etc. Todas são, de fato, plausíveis; nenhuma justifica mini-
mamente o racismo xenófobo que se alastra pela Europa
Com a queda do Muro, é verdade, desabou a fachada
apodrecida do stalinismo; mas, junto, ruiu também o mito
do cidadão democrata dos países capitalistas ricos. Priva-
dos do Muro e do inimigo comunista, os países ocidentais
mostram que a vitrine democrática era só uma vitrine. Nos
bastidores das instituições inegavelmente democráticas,
por tradição e funcionamento, crescia aquilo que Habermas
e Hannah Arendt há muito tempo previram, ou seja, uma
sociedade de massas e consumidores, amorla enquanto
corpo político e descomprometida com a história das cren-
ças que lhe deram origem.
Assim como o "novo homem socialista" era uma men-
tira dos governos e governantes comunistas do Leste Euro-
peu, o cidadão democrata do Ocidente era um mito que a
queda do Muro enterrou. Quando impedidos de consumir,
os supostos herdeiros de Jefferson e Voltaíre não reagem
PANORA,1A VJiSTO DO MURO 87

como a tradição democrática exigiria que reagissem, isto é,


pedindo pão, mas, também, igualdade e fratem.id.ade; reagem
pedindo cabeças. No pac;sado, os culpados da ntiséria alemã
de Wcirnar eram os ricos e/ou integrados: banqueiros judeus;
capitalistas vendidos a franceses, ingleses e americanos; polí-
ticos liberais; intelectuais socialistas; núlitantes comunistas;
sindicalistas etc. No presente, os culpados do desemprego na
Europa são os pobTeB que não se Ül-tegram: árabes, negros,
tmcos, romenos, enfim, todos os de pele escura ou "inferi~
res", todos os invasores.
O que espanta na Europa de novos pobres e mendigos é,
em primeiro lugar, a estupidez simplista da explicação da
crise econômica e social. Uma vez mais, recorrendo a Hannah
Arendt, a invenção do problema do imigrante visa apenas
criar um supersentido para tudo o que de mau acontecer.
Este supersentido, por caricato e idiota que seja, é no entanto
eficiente, pois fabrica uma causa visível, palpável e, em prin-
cípio, fácil de eliminar: a pessoa do imigrante. Basta expulsá-
lo e tudo se resolve. E, se ele resiste à expulsão, por que não
outras "soluções"? Em segundo lugar, o que inquieta a Em·opa
é que, para justificar o irUustifi.cável, retoma-se aos slogans de
superioridade da raça e da civilização européias, cl\io destino
histórico Modris Eksteins, em sua recente publicação, A sa-
gração da primavera (Rocco, 1991), encarregou-se de lem-
brar. Numa Europa que inventou-se a partir da idéia de pr~
gre.sso, de brancura e da superioridade de sua civilização, e
que viu, atônita, os nazistas voltarem a criatura contra o cria-
dor, retomar aqueles jargões é dizer sim ao previsível resulta-
do do jogo. A história, concedo, não se repete. Mas a história
da intolerância, do fanatismo e da violência homicida contra
os mais fracos está aí para provar que a sensibilidade paranói-
ca das massas ao diferente, "aos que não são como nós", não
precisa repetir-se, pois nunca deixou de existir. Vide as pala-
vras de Freud.
De volta ao Brasil, as comparações são inevitáveis. Aqui,
pobreza, ir\justiça, violência e o racismo que nos é próprio
pedem democracia Pedem as vozes dos Zola, dos Malmux,
dos Sartre, dos Bertrand Russell, dos Willy Brandt e dos nos-
sos Betinho, Barbosa Lima Sobrinho, Hélio Pellegrino, Alceu
de Amoroso Lima etc. Lá, as mesmas misérias recebem essas
88 A ÉTICA E O ~SPBJ.HO DA ctTJ:rt;RA

vozes com indiferença e sarcasmo. Aqui, a indignidade huma-


na, com ou sem vale-tudo, aproxima-nos da realidade, por
dura e cruel que seja; lá, a mesma indignidade irrealiza a reali-
dade. 'lfansfomm-a em estereótipo e dá-lhe a coloração fan-
tasmagórica de um pesadelo; de um perseguidor onipotente
que só existe na fantasia do opressor que se acredita, quase
delirantemente, oprimido. Paradoxalmente, a violência dos
fora-da-lei, como a que temos entre nós, parece muito menos
monstruosa que a violência dos que se julgam donos da lei.
Os primeiros, embora cínicos, sabem que transgridem a lei
moral maior que eles; os segundos não põem absolutamente
em dú,ida a ignomírúa de seus propósitos, pois agem de acor-
do com a lei da superioridade da raç:a e da cultura.
É óbvio que tinha de ser assin1, dirão os sa.c:erdotes da
seita do Primeiro Mundo, esta curiosa versão high tech das
seitas de evasão. De tão arcaicos e atrasados, continuamos
com o vocabulário político dos séculos XVIII e XIX! Porém,
pergwlto, o que é atraso? Atraso é levar a sério democracia e
solidariedade? Ou atraso é ressuscitar Gobineau, Lapouge e
extratos sojt de Mein Kampj ? Do mesmo modo, continuo,
atra..~o é repetir que todos são iguais perante a lei, ou procla-
mar que "a rd.Ça se levanta" e embriagar-se de brancura, nwn
mundo em que pelo menos três gnmdes cidades americanas,
Míanú, Nova York c Los Angeles, tomaram-se prd.ticamcnte
bilíngües? Está bem, insistirão os sacerdotes, não é atraso. É
pior que isso; é mais um surto de patriotês e nacionalês, doen-
ça infantil endêmica no 'l'erceiro Mundo. Neste caso, não per-
gwtto; respondo! Primeiro Mundo e Thrceiro Mtmdo são um
mito de algumas tribos da Europa.. Nada impede algwnas tri-
bos brasileiras de falar a partir dele, mas nada também obriga
todos nós a acreditar nele. Com menos preguiça ii.ntelectual e
mn pouco de esforço imaginativo, como aconselha Rorty, po-
demos inventar ou acreditar no mito de wn mlllildo sem pri-
meira c segunda divisão, onde todos sejam aceitos, sem dis-
tinção de cor, credo ou sotaque.
Aliás, quando o time do Brasil jogou c ganhou, wBtiu
esta camisa e não a strrrada eanúsa do Terceiro Mundo, feita
de encomenda 'pra brasileiro ver'.

,Jornal do Brasil, 17/11/<Jl


OS IMORAIS

O ideal da virtude democrática, diz Richard Rorty, está na


busca do bom equilíbrio entre decência pública e auto-reali-
zação na vi<la privada A sociedade que promove a justiça e
a eqüidade, deixando aos indivíduos a tarefa de inventar o
melhor eslilo possível de existência pessoal, aproxima-se
deste equilíbrio. Ao contrário, se permite que o público asfi-
xie o privado ou vice-versa, afasta-se dele. As regras da de-
cência pública, quando hipertrofiadas, trar\Sformam-sc em
opressão e intolerância, e a autonomia individual, livre de
compromissos públicos, conduz à anomia ou ao banditismo
social.
Nos últimos meses, rnernbros da farru1ia Collor vêm
dando um caricato exemplo de degradação de hábitos cívi-
cos e de moralidade pessoal. No poder, os Collor e sua en-
toumge fizeram da política sinônimo de delinqüência; fora
do poder, insistiram em continuar em cartaz, fazendo da in-
timidade do ex-presidente e seus familiares matéria de lite;
ratura subpomográfica para os aficcionados do gênero. E
hora de perguntar: a quem interessam essas confissões pre-
t.ensamente biográficas sobre o que se passou nos porões
de Brasília no governo anterior'? Deixemos de lado o co-
mentário sobre o despudor de quem publica ou escreve ma-
térias dessa ordem. Mais importante é pensar na responsa-
bilidade do corpo .social que aprova a divulgação desses re-
latos e tem estômago para consumi-los.
A edição desses livros mostra, uma vez mais, como
podem comportar-se as massas e líderes nas .sociedades
modernas. De um lado vemos os formadores de opinião
venderem torpezas a pretexto de respeitarem o "direito à
informação" do cidadão. Puro cinismo! De outro, vemos o
!XI A f:'nGA F.: O ESPELHO DA CULTURA

voye-urisrno e a hipócrita "ira santa" dos que, at.rás da indig-


nação, ocultam o gozo com a miséria humana dos podero-
sos que, ainda há pouco, admiravam, invejavam e idealiza-
vam. Puro farisaísmo!
A impressão deixada por esse evento é a de que boa
parte da imprensa e das elites quer lucrar em cima do pre-
juízo. Quer ressareir-se da tolice de ter ajudado a família
Collor a instalar-se no Planalto, faturando espertamente o
que sobrou do desastre. Impressão semelhante vale para o
público leitor. O m.ea, C?.Üpa dos que elegeram Collor e senti-
ram-se traídos em suas expectativas conservadoras, mora-
listas ou arrivistas tomou-se ressentimento e desejo de re-
vanche. Nos dois casos perde-se o sentido do político ou,
simplesmente, do sentimento de decência. Política é o reino
da experimentação; da opinião sujeita a mudanças sem que
seja necessário revogar os princípios morais que orientam
sua prática A prmição política do mau governante, além do
desprezo, é a retirada do mandato que lhe foi concedido, e
não a agressão suja e indiscriminada à sua vida privada
Vistos com atenção, no entanto, todos esses sintomas
de rebaixamento de nossa moralidade político-individual
são efeitos da descrença atual na atividade política e do
concomitante fascínio das massas urbanas por questões de
inclinação, traços ou características pessoais. Pouco a
pouco fomos ensinados a crer que a personalidade privada
de quem nos governa é mais relevante para a política do
que suas atitudes públicas diante de assuntos que dizem
respeito ao bem comum. Donde a atração pela intimidade e
pelas idiossincrasias morais dos políticos. Porém, o grotes-
co episódio das desavenças da fanulia Collor mostra que a
exploração da intinúdade, levada ao extremo da discussão
e exposição públicas, não só é politicamente desprezível
corno abastarda o próprio valor da idéia de intimidade. Re-
velações sórdidas como as publicadas são um ataque à de-
cência pública e ao direito que temos à proteção de nossas
vidas privadas.
Com esse tipo de informação corremos o risco de abo-
lir a tênue fronteira entre o conhecimento de fatos que per-
mitem o julgamento moral do que é indigno e a cumplicida-
de na difusão do que devia ser condenado ao esquecimento.
OS IMOJ:{AJS !JI

Onde começam o justo direito à liberdade de informar e o


atentado à privacidade quando aceitamos discutir em públi-
co supostas preferências religiosas e eróticas do ex-presi-
dente? É ou não imoral associar de forma equívoca e irres-
ponsável fatos da esfera da intimidade do ex-presidente às
conseqüências ilegais de suas atitudes políticas?
Não custa lembrar aos esquecidos que o hábito faz o
monge. Um dos mais odiosos procedimentos da campanha
presidencial do então candidato Fernando Collor foi o de
manipular inescrupulosamente acontecimentos da vida pri-
vada de seu adversário para tentar desmoralizá-lo politica-
mente aos olhos de alguns eleitores. Agora é a vez dos
oportunistas e ex-aliados provarem o gosto da escroqueria
e da violência. Resultado: nossa cultura política nivela-se
por baixo. Jogamos todos o jogo da canalhice e no fmal,
perdendo ou ganhando, tomamo-nos imorais. Não é desse
tipo de produto editorial que a nação precisa. Francamente,
nosso povo e nosso país são dignos de coisa muito melhor.
Vide a campanha pró-impeachment.

Folha de S. Paulo, 2813/93


OH! QUE DELÍCIA DE MÁQUINA

O fato passou quase despercebido. Um jornal do Rio de


Janeiro, há dois ou três meses, publicava a notícia de mais
uma estripulia dos chamados hackers. Um garoto de 16
anos teria descoberto a senha que dava acesso à rede do
IMPA - Instituto de Matemática Pura e Aplicada. Além do
mais, teria mandado aos usuários do IMPA a seguinte men-
sagem: "Normalmente, os usuários usam como password
uma password idiota." Segundo a matéria, o instituto teria
perdido vinte dias de trabalho, a "sociedade" teria sido pre-
judicada e a principal queixa do administrador da Internet
para o IMPA era "a virtual ausência de legislação específica
no país para punir este tipo de crime". Até aqui, o evento.
Passemos ao julgamento. O administrador da Internet, ape-
sar de reclamar da '\rirtual ausência de legislação para o
crime", já sabia que o acontecimento era um "crime", com-
parava o garoto a um suposto "ladrão" de livros em biblio-
tecas públicas e "acreditava na necessidade de uma legisla-
ção "olho por olho". O jornalista, por sua vez, chamava o
garoto de "geninho do crime"; úmerdinha"; "mauricinho", e,
para concluir, queixando-se de uma emissora de televisão
que, tempos atrás, fizera um programa sobre os hackers,
dizia: "É, a gente sabe: tem muita gente que, em vez de
enfocar, preferia enforcar esses porca.ri(ls ..Mas fique frio,
[citava o nome do administrador]. Como os grafiteiros, os
ha.ckers não passam de adolescentes mal resolvidos, cheios
de complexos e problema..c; sexuais."
Na minha opinião, ninguém ·p ode achar correto o que
o garoto fez. O IMPA é uma instituição científica, o trabalho
dos profissionais dá área é árduo, e como qualquer traba-
lho, por princípio, deve ser respeitado. O problema é o de
como avaliar a incorreção da conduta. Em primeiro lugar,
OH! QUE DELÍCIA DE MÁQIIINA 93

por que chamar de crime uma coisa que ainda não está
legislada? Infração à norma de condutas só é crime quando
está juridicamente estabelecido que assim é. Fora disso,
pode-se lamentar, "achar feio", e procurar convencer o
infrator de que tal conduta é indesejável. A informação, a
persuasão e a educação vêm antes da punição. Em segundo
lugar, por que comparar a atitude infratora a roubo? Roubo
é apropriação privada e ilegal de um bem pertencente a
outrem. O que o garoto roubou? Em terceiro lugar, vem a
reação ao fato, e isto é o mais importante. As injúrias dirigi-
das ao hacker são ou não uma infração às nossas normas
morais? Ninguém tem o direito de humilhar de modo osten-
sivo quem quer que seja, mesmo quando se trata de um cri-
minoso, o que, em absoluto, é o caso. Especialmente quan-
do o agressor moral está escudado no poder de um jornal
de grande divulgação e credibilidade pública. Isto é arro-
gância; isto é abuso de poder! Também faz parte de nossa
tradição moral saber que adolescentes são curiosos e, às
vezes, rebeldes e enragés. Na democracia, isto nunca foi
motivo para que fossem postos no pelourinho, no paredón
ou para que tivessem seus nomes publicamente escritos em
dazibaos. Mas intolerância não é prerrogativa de regimes
comunistas, nazistas, ou ditatoriais, nem existe só na políti-
ca. Conhecemos intolerância moral, religiosa, racial, sexual
e, agora, ao que tudo indica, começam os tempos da "into-
lerância informática".
O que salta à vista na matéria é, sobretudo, o fascínio
com que os ''juízes" do "crime" velam pela honra das
sacrossantas máquinas que cultuam. Nem por wn segundo,
ao que parece, pensaram no que pode significar para um
adolescente ou para sua família ver-se comparado publica-
mente a grafiteiros, ladrões, criminosos, "merdinhas", "por-
carias", "complexados sexuais" etc. Numa cultura onde a
imaginação deixou de ser artística, política ou moral, o bem
e o mal passaram a concentrar-se no reino da computação.
Não se pensa mais em "enforcar" dissidentes polítkos ou
em insultá-los de modo grosseiro. A política já não interes-
sa às elites intelectuais. Imaginar, polemizar, discutir o que
seria um mundo melhor e mais justo saíram de moda. A
grande preocupação é ficar up to date com as últimas novi-
A ÉTICA !<~O J<~SPRLHO DA CULTUHA

dadcs americanas e japonesas em matéria de informática. É


assim no "Primeiro Mundo"; tem de ser assim entre nós.
Mas, como somos seres inventivas, e imprevisíveis, um dia
um garoto de 16 anos resolve conhecer, por dentro, o que,
cá fora, dizem a ele e a outros garotos corno ele que é tudo
o que de interessante existe a fazer e a conhecer no mundo
de hoje. Então decifra senhas, causa pânico, raiva e pedi-
dos de retaliação absolutamente descabidos para quem não
está convertido à moral das máquinas maravilhosas e
seus servidores humanóides.
Até segunda ordem, e na falta de melhores idéias, tudo
isto é excessivo, despropositado e equivocado. Na "velha
moral" da liberdade e dos direitos individuais, a solução
seria outra. Chamava-se o garoto e dizia-se que sua atitude
não fora justa porque poderia ter conseqüências que ele tal-
vez não tivesse podido prever. Em seguida, mostrava-se que
sua maneira de dizer que o indivíduo ainda é bem mais
interessante do que a máquina não foi boa, pois prejudi-
cou o trabalho da instituição. Finalmente, pedia-se sua
colaboração para, quem sabe, fazer melhor o que os outros
não souberam fazer tão bem. Aqui, sim, cabe evocar a psi-
canálise. "Narcisismo informático" não se resolve a golpes
de humilhações contra adolescentes inteligentes e não-con-
formistas.

Folha de S. Paulo, 2712194


O SILÊNCIO DE UM PENSADOR DE BEM

Em 1979, A cultura do narcü;;ismo explodiu no meio edito-


rial norte-americano. Os universitários torceram o nariz,
mas a crítica jornalística cobriu o livro de elogios. Seu
autor, Christopher Lasch, tornou-se, em breve, sinônimo de
"cultura do narcisismo". No início deste ano Lasch morreu.
A imprensa dedicou algumas linhas ao evento, a academia
desconheceu o assunto c quanto ao público leitor... quem é
mesmo Lasch? É isto "a cultura, do na·rcis·ismo"! A incapa-
cidade que têm os indivíduos de reter do passado o que
merece ser lembrado no futuro. Desde que escreveu A ago-
nia da esquerda americana, (1969), Lasch viu no declínio
da tradição uma das fontes do desconforto cultural moder-
no. A violência e o radicalismo dos anos 60, dizia ele, es-
condiam um descrédito na tradição política que só poderia
converter-se em conservadorismo. Acertou! O yupisrno dos
anos 80 veio dar-lhe razão. Em 1974/1975 foi a vez da fanú-
lia. Numa série de artigos, posteriormente reunidos em
Refúgio num mundo sem compai:rão (1977), Laseh voltou
ao tema da tradição, desta feita na esfera do privado. A
renúncia à tradição levava os pais a se imaginar incompe-
tentes para lidar com os filhos e a delegar aos técnicos a
tarefa de educá-los moral e emocionalmente. Lasch cba-
mou este fenômeno de "proletarização da paternidade",
dando relevo à expropriação da autoridade dos adultos lei-
gos na sociedade de massas. Por fim, em O rn·í nimo eu
(1984), escrito depois de A cultura do narcisismo, analisou
a "moral da sobrevivência" na cultura atuaL Corno epígrafe
do trabalho escolheu uma citação de William James: "A dei-
ficação da sobrevivência p er se( ...) é seguramente o mais
estranho ponto de chegada intelectual jamais proposto por
um homem a outro."
96 A f:TICA E O ESPELHO UA CULTUl.A

Para La.seh, quando o presente dá as costas ao passa-


do e recusa-se a considerar o futuro como objeto de preo-
cupação, a tradição desmorona e, com ela, a noção de valor
que conhecemos. O bom, o justo e o verdadeiro passam a
ser descritos como instrumentos de utilidade ou interesse
de classes, indivíduos, grupos ou corporações descompro-
metidos com princípios válidos para todos. É o reinado do
"mínimo eu" apolítico e hiperpsicológico; dos sujeitos que
contentam-se apena., em olhar para si ou, no máximo, para
o petit c01nilé encarregado de satisfazer suas necessidades.
Esta tese evoca irresistivelmente Hannah Arendt. Porém, a
marca patente frankfu.rtiana cortou-lhe o fô1ego. O freudo-
marxismo tem limitações, e a principal é a de confiar em
critérios transistóricos para o julgamento do bem e do mal.
Em última instância, Lasch era um racionalista. Acreditava
que Freud e Marx haviam descobe1to a pedra filosofa] da
moral pública e privada. Depois deles, era o dilúvio. Por
isso, abriu o flanco a criticas de conservadores, radicais,
pós-modernistas e todos quantos não cessaram de pergun-
tar: se a moral contemporânea é "narcisista", onde está ins-
crita a verdadeira moral pública e privada? Em O capüal
ou em A ·interprct.ação dos sonhos? O que é uma moral não
narcisista? É a moral patriarcal, machista, racista, diserimi-
nadora de minorias sexuais como a de nossos avós e bisa-
vós? Ou é a moral imperialista, colonialista, stalinista, esta-
tizante, totalitária e opressora do exercício das liberdades
individuais? Em que e por que a velha moral, com ou sem
verniz marxista e freudiano, seria melhor do que wna moral
voltada para o culto do corpo, da sensibilidade terapêutica
ou da obse_<;são pela sobrevivência e pelo consumo? O que,
na idéia de "tradição", pode garantir a moral idealista de
Lasch?

Se houvesse lido mais atentamente William James ou


o contemporâneo Richard Rorty, Lasch talvez não tivesse
encontrado diticuldades em refutar tais argumentos. Seu
impulso Oiiginal, na defesa das virtudes cívicas e pessoais,
poderia ter recebido uma tradução teóric..a mais feliz.
Defender a tradição não é, como querem os conservadores,
O SILÊNCIO DE U:VI PENSADOR DE BEM !}7

congelar o mundo no status quo. É procurar preservar


pragmaticamente tudo aquilo que nos torna indivíduos
capazes de agir eticamente com autonomia. Muito disto
acha-se recomendado em Marx e Freud, mas também em
numerosos outros pensadores sem proximidade intelectual
com os dois. O fundamental, na idt>ia de tradição, Lasch
poderia ter explicado, é manter os experimentos morais
que modelaram nossa imagem de sujeitos éticos. Não se
trata de ir contra toda e qualquer mudança; trata-se de lutar
contra aquelas que agridem a integridade dos seres huma-
nos que vêm na dor física e na humilhação o limite para
qualquer proposta ou imposição de formas de viver. Tudo
isto está implícito em Lasch; tudo isto poderia ter sido mais
claramente mostrado em sua ohra sensível e intransigente
na defesa da cultura humanística e democrática
Hannah Arendt disse, citando Cfcero: "Como tudo
seria diferente se vencessem na vida aqueles que venceram
na morte." Lasch certamente está entre os últimos. Foi um
homem com qualidade, um pensador de bem, cujo nome
deve ser rememorado e não silenciado pela "cu1tura do nar-
cisismo".

Folha di? S. Paulo, 10/4194


A USTA DO BETINHO

Betinho recebeu dinheiro da contravenção. A notícia explo-


diu como uma bomba. De um lado, cínicos, delinqüentes,
enfim, todo coro de ratos e vermes bate palmas e pede bis.
Dia de festa na sarjeta! Do outro lado, surpresa e conster-
nação. Os brasileiros honrados perguntam-se: será que nin-
guém, neste triste pais, escapou impune da lama? É a estes
que me dirijo; aos que acreditam num país melhor, mais
justo e mais livre. Aos primeiros, aos imorais, Biscaia, Fros-
sard e Bangu I, 11, III ... ou quantas existirem. Em dose du-
pla, de preferência.

Um erro político? Certamente. O próprio Betinho, com


a honestidade que lhe é caracteristica, afirmou. Um erro
moral? Isto merece discussão. Um ato moralmente errado é
aquele que contradiz princípios éticos universalmente váli-
dos para uma dada tradição. Aceitar dinheiro espúrio, vin-
do do mais baixo banditismo, suspeito inclusive de fman-
ciar o tráfico de drogas, é contra nossos princípios morais.
Fora do contexto histórico, a sentença é perfeita. Acontece
que o dinheiro recebido foi transferido para a ABIA. Isto
não é justificativa, pode-se dizer. Ele cedeu à facilidade; os
fins não justificam os meios! De fato, a afmnação é justa,
salvo em casos excepcionais. Mas existem exceções à
ética; isto não é casuísmo moral? Replico, não existem
exceções à ética; existem decisões que não são reconheci-
das de imediato como éticas, dadas as circunstâncias em
que são tomadas. Estas circunstâncias são aquelas em que
o fi-m ·visado é a p'reservação da vida ou da rna'is elemen-
t.ar d·i .gnidafle da pessoa humana. Falemos em português
A LISTA DO m:TINHO f)!J

claro. Betinho - será preciso gritar! - não recebeu dinhei-


ro para construir casa'5 em Angra dos Reis ou Búzios; para
mandar os filhos esquiar em Courchevel, Gstaad ou St.
Moritz; para importar BMW ou Mercedes; para ser fotogra-
fado em colunas sociais ou para engordar os cofres de
Zurique ou Nova York, prevendo o possível estouro da "rou-
balheira". O dinheiro da contravenção foi usado na ajuda
ao tiatamento e à prevenção da Aids. Alguém sabe o que é
Aids no Brasil? Aids no Brasil não é feita de Tom Hanks,
Antonio Bandera.<5, óperas cantadas por Maria Callas, bala-
das de Bruce Springsteen, amigos carinhosos e famílias
moralmente perfeitas, corno em Filadélfia. Aids no Brasil é
mais feio, sujo e degradante do que a mágica hollywoodia-
na dos bons sentimentos em busca do Oscar. É uma praga
de rrúlhares de "Zés da Silva", portadores de uma doença
epidêmica e letal e, em muitos casos, da etiqueta infame e
preconceituosa de "homossexualidade", que os condena a
morrer à míngua, em meio à indiferença das "boas cons-
ciências éticas". Aids no Brasil quer dizer morte ao relento
pela carência de assistência pública ou pela recusa fre-
qüente da medicina privada em assistir doentes que não
dão lucro. Tem mais, o caso da Aids, da ABIA e do dinheiro
recebido pelo Betinho é o retrato mesquinho de uma nação
cuja elite apodreceu e arrasta tudo ao redor para o dilema
sórdido de "a bolsa ou a vida" ou "sem bolsa nada de vida"!

Às favas com o farisaísmo! Quem tem poder e instru-


mentos para dar proteção ao tráfico de drogas no Rio será,
por acaso, o Betinho ou a ABIA? Quem mantém o comércio
de drogas nesta cidade é a ABIA ou as festinhas e fms de
semana dos que estão acima dos 1O mil dólares por mês e
sua "periferia"? Pois bem, quanto deste dinheiro, em boa
parte sonegado de impostos, chega até à rede de assistên-
cia médica? Falo grego? Ou digo o que todo mundo sabe?
Quando uma sociedade alcança este estágio de imoralidade
consentida e incentivada, quem pode prever o que se toma
necessário para defender o valor da vida? Retórica? f~ntão
vejamos. Negociar com assassinos stalinistas para salvar a
vida de dissidentes políticos é imoral ou moralmente corre-
100 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

to? Fazer seguro anti-seqüestro, na Dinamarca ou na Ingla-


terra, para resgatar a vida de vítimas de bandidos mons-
truosos, com o dinheiro que vai realimentar o tráfico e o
consumo de drogas pelos bem-nascidos, que, por sua vez,
vão exigir novos seqüestros de inocentes, é imoral ou
moralmente correto? Sentar à mesa com bestas nazistas,
recebe r dinheiro de nazistas, para salvar a vida de judeus é
imoral ou moralmente correto?

Muitos aplaudiram A lista de Schindler. Muitos vão às


lágrimas quando adolescentes seqüestrados são soltos em
troca de pagamento a traficantes! A vida dos judeus e dos
milionários são "mais vidas" do que a dos portadores de
AIDS? Sotisma, dir-se-á. Nos exemplos descritos, os que
negociaram com os criminosos o fizeram sob coação; não
tinham escolha! Mas de que escolha se fala'? Qual a escolha
do Betínho? A escolha de Sofia? Há momentos em que é
pegar ou largar. Em tempos de paz, a honra pode valer a
vida; em tempos sombrios, sobreviver, honrando a vida,
pode ser tudo que de mais justo pode ser feito . .Eppu.r si
muove, em Brecht e na boca de Galileu soa edifi.cante; por
que não na boca de cada um de nós? Quem age e não se
omite, aqui e ali suja as mãos, dizia Sartre.
Nenhuma escolha humana é eticamente infalível. So-
mos s ujeitos morais justamente porque temos a capacidade
de deliberar entre alternativas sem garantia da verdade
absoluta. do que escolhemos. Não estaríamos discutindo
nada disso se falássemos a língua dos 31\ios. Mas existe
uma diferença - e ela é enorme - ent1·e errar luta.ndo
pela vida de todos e errar contra todos e em exclusivo pro-
veito próprio. Só os homens de bem cometem erros visan-
do ao bem comum. Os canalhas calculam exatamente os
riscos que valem a pena correr, até a hora do avião para os
paraísos fiscais. Equivocam-se apenas quando pensam que
todos são como eles, e tropeçam em brasileiros como Bi&-
caia, Denise Frossard etc.
Betinho errou? Antes do veredito, perguntemos a
quem de direito o que pensam. Perguntemos às vítimas da
Aids, à lista do Betinho, o que acham dele, assim como per-
A USTA DO RBTINHO 101

guntamos aos judeus o que achavam de Schindler_ Quem


sabe o cisco nos olhos dos outros toma-se trave nos nossos
olhos'? Em frente, Betinho! A fraternidade e a solidariedade
que você ajudou a milhões de brasileiros redescobrir e que
parecia esquecida tem mão dupla. É sua vez de receber o
benefício da ca·rit.as que semeou. Quanto aos ratos e ver-
mes, não comemorem antes do tempo. Para vosso descon-
solo este país está mudando. Homens como o Betinho vêm
dando a vida pela vida de todos nós, mesmo ao preço de
eventuais enganos. Aos justos a justiça.

Jornal do BrasiL, 1014194


HERMÓGENES E REINALDO

O tempo e o acaso criaram o racismo científico no século


XIX. Desde então, milhões de seres humanos passaram a
descrever-se como "negros" e "brancos", e os brancos a
humilharem os negros, por acreditarem que são humana-
mente superiores a eles! Poucos parecem ver que os negros
são tão "negros" e brancos são tão "brancos" quanto peles-
vermelhas são "vermelhos" ou amarelos são "amarelos". A
cegueira do preconceito é autocomplacente e consentida.
O tempo e o acaso tomaram o Brasil uma das mais vio-
lentas cidades capitalistas modernas. Aqui, crianças morrem
de fome ou, a golpes de miséria e abandono, convertem-se
em pequenos assaltantes ou marginais ferozes. Na maioria
são negras e, depois de cuspidas nas ruas e favelas imundas,
são aniquiladas como ratos, por bandos de extermínio.
O tempo e o acaso fizeram com que Hermógenes de
Almeida Silva Filho e Reinaldo Guedes de Miranda nasces-
sem "negros" no Brasil, lutassem pelo direito das núnorias,
participassem da corrússão que investiga o assassinato de
adolescentes na Candelária e fossem trucidados com 15
tiros de pistola 9 milímetros, na madrugada de domingo,
1216/94.
Por fim, o tempo e o acaso fizeram com que este hor-
ror acontecesse em tempos de Copa do Mundo, quando
quase todos - é natural - só têm olhos e ouvidos para
futebol. É a "história feita destino pessoal", diria Hanna
Arendt.

Mas, continuo com Arcndt, se não formos "des..c;;es re-


matados oportunistas que sempre aceitam o aqui-e-agora",
HERM ÓGENS E ltEINALDO 103

a história não pára neste fun esto episódio. Que cultura é


esta; que pais é este? Urna escola de bufões? Estes homens
morreram por aquilo que diz respeito a todos! Por que o
silêncio em torno de suas vidas e memórias? Por que noti-
ciar as mortes em fundos de jornais, como anônimos fatos
policiais? Onde está nossa televisão, sempre prestes a cair
em "orgias patrióticas" por qualquer "vitória brasileira!",
nos esportes! Onde estão as matérias lamurientas e ruido-
sas dos horários nobres, quando a tragédia atinge, infeliz-
mente, os ricos e famosos? Morte de "negros", lutando por
justiça, não vende automóveis de luxo ou produtos de lim-
peza? É isto? Então, o que queremos com isto? Apontá-los
corno tolos que morreram por nada e por nenhwna causa?
Ou queremos mostrar a nossos filhos que o desprezo e o
esquecimento são o destino dos que encarnam nossos ide-
ais morais, enquanto o reconhecimento é privilégio dos que
têm dinheiro e sucesso publicitário, pouco importando o
mérito do que dizem ou fazem? Como podemos lamentar o
descrédito na "política", na "ética" e na "lei" se ocultamos
da luz do público aquilo que é a mais alta expressão da dig-
nidade política: morrer p elo bem comum! Um povo sem
heróis é um povo infeliz; um povo incapaz de reconhecer
seus heróis é infeliz e estúpido!

Não penso na canalha cínica que seqüestrou esta


nação. Ou seja, na corja de traficantes e vendidos de toda
sorte ou naqueles empresários brasileiros que posam de
vítimas do Estado enquanto "exigem", com a maior desfa-
çatez, que a sociedade pague os lucros inflacionários que
perderam e querem manter, com ou sem inflação! Esta ralé
é incorrigível. A solução é a cadeia. Penso nos que ainda
querem fazer deste pais um lugar digno de se viver. Por que
comportar-se como ovelhas diante dos chacais? Há pouco,
a Itália, sacudida pelos escândalos da Máfia e da democra-
cia cristã, saía às ruas, em Palenno e outras cidades, gritan-
do: A Itália é nossa e não da Cosa Nostra! Onde estão o par-
lamento, a UIÚversidade, a imprensa, os intelectuais, os par-
tidos políticos, as associações, os grupos de cidadãos, os
"caras-pintadas", que não vêem que mortes corno esta..c;; são
104 A ÉTICA E O ESPBLHO DA Çt:LTURA

algo muito mais sério do que trocas de moedas ou de caras


em Brasília? Quem pode governar um pais onde Hermó-
genes e Reinaldo são assassinados, por quem foram e como
foram, em pleno Rio de Janeiro, e dias depois a polícia vem
à imprensa dizer que se tratou de um crime passional!

É tudo; e como é pouco! Estamos aprendendo a viver


em guetos, cantando como rãs em charcos. O cerco da mar-
ginalidade estreita-se. E ao chegar nossa vez, vamos idiota-
mente perguntar o que outros um dia perguntaram, quando
resposta alguma fazia mais sentido: como Hitler ou o Cartel
de Medellín tomaram-se possíveis? Nesta hora, talvez Her-
mógenes e Reinaldo venham a ser lembrados. Só que não
haverá "Dia D", onde não existe desejo de libertação. Não
estaremos em luta contra nazistas, stalinistas ou qualquer
outro totalitarismo que se venha, por acaso, a inventar. A
"Normandia ocupada" está dentro de cada um. Está no con-
forto bovino que nos prende à indecência da especulação,
do consumo, do desperdício e do imobilismo moral enquan-
to homens como nós morrem por nossa honra e nossa vida.
Se o "basta!'' não chegar a tempo, logo logo virá o "tarde
demais".

Folha de S. Paulo, 317194


ÉTICA PRIVADA
O GOVERNO DOS SEXOS

De repente, o nu apareceu na televisão brasileira. Nos fil-


mes, seriados e telenovelas, as relações heterossexuais tor-
naram-se cada vez mais explícitas e menos sugeridas. Práti-
cas sexuais minoritárias, como o homoerotismo, o sadoma-
soquismo e o incesto deixaram o espaço do segredo e ga-
nharam o da exibição. Quase ao mesmo tempo, ministros
de Estado caem porque tornam públicos seus pretensos
amores, e o Ministério da Justiça, respaldado pelo próprio
presidente, restabelece a censura classificatória. Afmal, o
Brasil, para quem governa, é puritano ou liberal? A socieda-
de brasileira, sexualmente falando, é conservadora, moder-
na ou anômica?
Evidentemente, qualquer resposta genérica seria im-
prudente. Vivemos na era das relativizações e do repúdio a
qualquer afirmação individual sobre a natureza dos predica-
dos humanos. O que vale para um indivíduo ou grupo social
x não faz sentido quando aplicado a outros grupos ou indi-
víduos. O Brasil é um universo de galáxias morais e, depen-
dendo do ângulo observado, pode-se encontrar nele tudo
ou quase tudo em matéria de subcultura se>...'llal. Resta, por-
tanto, extrair destes episódios o que, à primeira vista, apa-
rece sem ambigüidades, ou seja, o que pensam os governan-
tes do sexo dos governados.
Antes, entretanto, uma breve consideração introdutó-
lia. Toda cultura cria seus sistemas morais em função de
ideais históricos. Por conseguinte, nenhuma moral sexual é
definitiva. Mas justamente porque entendemos que as mo-
rais sexuais são eontingentes, estabelecemos códigos de
condutas e sentimentos que, em cada época, dizem o que é
permitido, o que é proibido e o que é indiferente diante das
108 A ÉTICA F: O F:SPF:LHO DA CCLTURA

regras morais. Por relação a estes códigos, as culturas são


mais ou menos conservadoras ou liberais. Uma cultura con-
servadora é aquela que não tolera as condutas socialmente
desaprovadas e procura impedir que os indivíduos conhe-
çam o que se considera moralmente transgressor ou des-
viante. A moral conservadora é basicamente negativa e vol-
tada para a defesa da tradição. Sua maior expressão é o mo-
ralismo, isto é, a atitude intolerante que busca justificar o
status quo recorrendo ao argumento de que o que é bom
tem que continuar sendo, pois assim ordena a "natureza'' ou
a "vontade divina".
Ao contrário desta moral, a moral liberal entende que
o respeito pelos ideais culturais e a desobediência consenti-
da a certas leis não significam intolerância ou desrespeito
pela diversidade dos estilos de vida possíveis. Deste plisma,
as preferências sexuais distintas dos ideais da maiolia
devem ser tratadas com respeito e solidariedade e não com
menosprezo, zombaria, perseguição ou piedade, o que não
é melhor. Sabendo que o minoritário ou dissidente de hoje
poderá ter sido ou poderá vir a ser o dominante de hoje ou
amanhã, a cultura liberal prefere orientar-se pelo p1incípio
ético-político que inspirou a grande revolução norte-ameri-
cana: "Todos os homens têm direito à Vida, à Liberdade e à
Busca da Felicidade." No cotidiano, esta injunção pode tra-
duzir-se por algo mais ou menos assim: se a Vida e a Liber-
dade são um problema de todos, e por todos deve ser discu-
tido e resolvido, a Busca da Felicidade é problema de cada
um. Só a cada um compete decidir qual a melhor maneira
de ser feliz, desde que não atente contra a vida e a beleza
do outro, fazendo-o sofrer física e morahnente.
A obediência a este princípio caracteriza o ethos indi-
vidualista e democrático da tradição ocidental. A moral li-
beral que nele se baseia condena, deste modo, tanto o mo-
ralismo conservador quanto a permL~sividade. O primeiro
porque tenta fossilizar os ideais morais afirmando que tudo
é proibido, exceto aquilo que "eu prefiro"; a segunda por-
que, a pretexto de revolucionar a tradição, procura afim1ar
que tudo é permitido porque "nada· nem ninguém tem o di-
reito de proibir o que quer que seja". Historicamente, do
moralismo conservador nasceram a intolerância e a cruel-
O COVI::l:lNO DOS SEXOS 109

dade; da pennissividade nasceu a monstruosidade. Pois,


neste último caso, quando deixamos o sonho florido do "é
proibido proibir" para a prática do "nada é proibido, faça o
que hem entender", ganha o mais violento, e o resultado são
os gulags, os campos de extermínio, ou, para lavar a roupa
em casa, os assassinatos de crianças ou de travestis, metra-
lhados, degolados e incendiados com gasolina, nas valas
imundas dos sujos subúrbios cariocas.
Tendo em vista estes princípios liberais, vejamos como
podem ser observadas as atitudes do governo e das emiSS<r
ras de televisão. Ao abordarem a sexualidade, nos termos
referidos, as cadeias de televisão não escondem o interesse
que comanda o espetáculo: deliberadamente peiL~am rnarú-
pular nossa vida privada com vista à disputa de mercado.
Vendem o que acham vendável, pouco importando os meios
e os resultados. Até aí, tudo seria mais ou menos inocente,
não fosse o caldo de cultura moral existente em nosso país.
Uma andorinha só não faz verão. Acontece que, produzindo
sexo televisivo, a televisão dança conforme a música Entra
no compasso atual do "tudo é bom contanto que me dê
lucro". Proibido é apenas o que é ineficiente economica-
mente. Por acaso, um competente arquiteto não disse re-
centemente que o Rio só sairá da falência quando souber
explorar o potencial de sexo e sol que possui? Abençoado
por natureza, o Rio receberu de mão beijada os dois S que
fazem a alegria dos turistas. Basta, então, incrementar o ter-
ceiro 8 (serviços) para que a alegria se estenda aos donos
dos hotéis e aos donos da noite. Portanto, do ponto de vista
da lógica empresarial, nada a acrescentar. A cada público a
. promessa do gozo possível ou merecido. Nas ruas, calçadas
e portas de hotéis ou boates, o sexo turístico, para quem
tem dólares; no aconchego dos lares, canalhice, estupro, in-
cesto, sadomasoquismo e preconceito em dose dupla, para
quem só tem cruzeiros a oferecer. Quem vai ser mercadolia
de tulista ou quem vai consumir sordidez nos horários no-
bres, estes não são problemas para nossos eficientes e dinâ-
micos empresários.
Do outro lado está o Estado, que também concorre
para a produção de moral sexual, seja transformando fritu-
ra política em culto à fidelidade monogântica e co{\jugal,
liO ,, ~:TJ<.'A E O t;SPI~LIIO I..>A (TLTPRA

seja combatendo por dent:>to.s o "dinamismo" inescrupulo-


so da indústria cultural que tru1to incentiva. As eventuais
perdas em dinheiro de uns são compensadas com os lucros
políticos de outros. Os ganhos continuam entre amigos que,
após os arrufos da praxe, logo logo voltam a trocar favores
quando a situação exige.
Para quem insiste em pensar com a própria cabeça,
tudo isso é deprimente. O moralismo governamental e o des-
caramento dos empresários do sexo apenas confirmam o
que, de longa tlala, .suspdl.a.mu.s: as eliles no poder são vam-
pirescas. Depois de negar-nos a cidadania política a que
temos direito, buscam agora lesar nossa digrúdade de pes-
soas morais. Querem imbecilizar-nos de alto a baixo. Tratar
de temas como o homoerotismo, o incesto ou o sadomas~
quismo, como quem exibe curiosidade em circos de hono-
res, não significa liberalização de costumes sexuais, mas
sinal verde pru-a a pennissividade que, embora colorida c en-
feitada com cartões-postais do Rio, não consegue dissimular
suas baixas origens e a desfaçatez de seus propósitos.
E não se venha argumentar que isso é calvinismo fora
de hora e lugar. Não se trata de fazer o Brasil regredir ao
tempo da caça às bruxas ou às fogueiras da Inquisição, mas
de perguntar até onde vai o direito das redes de televisão
de explorar nossas fantasias ou possibilidades de gozar
com montagens perversas, sem prestar contas ao bom sen-
so ou ao consenso moral da nação. Já que esse direito não
tem limites, por que não avançar um passo e apimentar o
prato com fetichismo, coprofilia, necrofilia, canibalismo ou
sadismo sexual contra crianças'? O público não ilia gostar?
Isto é o de menos; gosto se aprende e se cultiva. Em breve,
com o hábito, criaríamos mercado consumidor para estes
acepipes refinados.
A televisão abusa, sim, do direito de informar e diver-
tir quando, sem pedir licença, invade nossa privacidade e
impõe-nos cabeça adentro a marca do desrespeito que seus
mentores intelectuais têm por nossas vidas morais. Mais
que isso, manipulam o VOlJe'Urisnw, o sadismo ou qualquer
outra perversão latente em todos nós, exclusivamente de
olho nos índices de audiência e nas contas bancárias. Con-
tando com a passividade dos indivíduos reduzidos ao esta-
O GOVERNO DOS SEXOS 111

do de massas, vendem escroqueria, sabendo que a maioria


é incapaz de desligar o botão ou passar para outro canal
quando se vê moralmente agredida
Por princípio, sou contra a interdição da pornografia,
contanto que ela diga o que é e contente-se de estar à dispo-
sição de quem dela necessita para excitar-se sexualmente.
Mas fabricar pornografia "versão familiar" e travesti-la de
diversão bem-pensante é desonestidade e abuso de força.
Pois os managers da televisão brasileira sabem muito bem
que se dirigem a um público sedado pela publicidade e pela
propaganda, portanto incompetente, na maioria das vezes,
para reagir aos excessos programados em estúdios. Em
conseqüência, preparam o teneno para a reação conserva-
dora e abrem as portas para as decisões autoritárias. Ao
abuso segue-se a repressão. O moralismo que chega é
aplaudido com a mesma apatia e indiferença de antes,
quando não incita à intolerância com a diferença. O público
continua ínfantiliz.ado enquanto é amamentado pela tutela e
preparado para novas investidas e investimentos.
Esta infantilização não é figura de retórica. Pensemos
bem no que representa fazer de um namorico extraconjugal
motivo para remanejamento de escalões executivos. Pouco
importa, aliás, que o tal namoro seja ou não "pra inglês ver".
Que adulto, neste pais, veria neste suposto ajjaire razão
para queda de ministros? Para um povo habituado a engolir
diariamente o lixo programado pela televisão, relações
extraconjugais chocan1 tanto quanto ursinhos que batem
palmas. No melhor dos casos, este tipo de moralismo chei-
ra a filisleísmo. Cheira à mofada hipocrisia das 1'U.líng clas-
ses que teimam em praticar o que Tournel, personagem de
Peyrefitte, cinicamente aconselhava: "Entre nós, o impor-
tante não é a virtude, é a reputação." Censurando amores
ministeriais e programas de televisão, o governo, como o
rei da fábula, está nu, e apenac;; dá mostras do que pensa
sobre a moral de seus governados. Para Brasília, ou somos
todos moralmente deseerebrados ou todos desmemoriados.
Pois há um ano, aproximadamente, boa parte da equipe go-
vernamental, ora empenhada nesta cmzada moral, despia-
se da candura de hoje para expor, sem nenhum pudor, fatos
112 A ÉTICA E O f-~SPF.I.HO DA CULTURA

absmdamente constrangedores envolvendo a vida privada


do então candidato adversário à. presidência da República.
O mais grave, contudo, é qut:' toda esta desmoralização
de nossa sociedade, de nossa..c;; ca.-,a'> e de nossa-, famílias
acontece com nossa conivência. As elites brasileiras j á con-
seguiram converter-nos à moral do vale-tudo no que concer-
ne ao respeito por nossas instituições políticas e sociais:
nossa degradação como seres morais. Já deixaram nossas
cidades chegarem perto de Medellín e tentam, no momento,
tomá-las réplicas da Havana de Fulgencio Batista ou da Ná-
poles de Curzio Malaparte. Antes, para obter o que queriam,
exploraram nossa força de trabalho, nossas esperanças no
futuro e nossa crença num país melhor; agora, exploram
nossos corpos, nossos sexos, nossas angústias e nossos
conflitos afetivos, violentando moralmente adultos e crian-
ças, homens e mulheres, pais e filhos. E, quando nossas ci-
dades se tornarem cópias exatas do universo moral pintado
nas telinhas, não duvidem, os senhores proprietários das in-
dústrias artisticas e culturais anuman1 as malas, juntam o
resto dos dólares que ainda estão aqui e vão instalar-se em
outros mercados mais promissores. Eficiência oblige.
Nós outros, no entanto, ficaremos aqui. E, certamente,
nosso suor e nossa'5 mãos serão poucos para tanto trabalho.
Jornal do Bmsít, 11/11/90
HOMOSSEXUALISMO/ IIOMOEROTISMO

De que tmta o hmnoerotismo?


Com o estudo sobre o homoerotismo pensei contribuir para
a discussão ele nossa ética rla vida ptivada. Em suma, minha
preocupação é de como prese1var o modo de viver demo-
crático de nossa lradição cultural e de como a psicanálise
pode contribuir para isso. Tudo converge para uma mesma
pergunta de teor ético: qut:' direito temos nós, sociedade,
gmpos ou indivíduos, de obrigar quem qu er que seja a ser
sociomoralmente identificado em sua aparênc-ia pública por
sua<; preferÉ'nciac;; eróticas?
Como nasceu o e::;tud.o sob1·e o homoemtismo?
Nasceu de duas preocupações básicas: a incidência do pre-
conceito sexual sobre a conduta dos su.jeitos passíveis de
serem infectados pelo vírus da Aids, os "homossexuais''; e o
uso que fazemos das noções de "perversão" ou "neurose"
quando aplicadas ao fenômeno da atração erótica entre
pessoas do mesmo sexo biológico.
Nã.o se'ria apenas uma mudança de ter·mos?
Retomei o termo homoerotismo, criado por F. Karsch-Haack,
em 191 1, e utilizado neste mesmo ano por Sandor Ferenczi,
um grande psicanalista, em um trabalho sobre o tema. Não
pretendi de forma algun1a - c is~o fica bem claro no texto
(do livro) - simplesmente rcbatlzar moralmente a chanla-
da "homossexualidade". Fcrenczi, com o termo, teve justa-
mente a int.enção de criticar o saber psicanalítico da época,
que tentava pôr uma camisa-de-força em qualquer tipo de
fenômeno percebido como "atração pelo rnesmo sexo".
Freud, em seu Três ensaios sobre a t.em-io da se-.:cuahdarle,
de 1920, avalizou o emprego do termo.
li.J A ÉTICA E O B~l't;LI!o DA CULTll~A

Qual a diferença entre os dois tennos?


Quando empregan1os a palavra "homossexualidade", inevi-
tavelmente pensamos em duas coisas: ou que o "homosse-
xualismo" é uma condição natural, um tipo específico de
sexualidade comum a certos indivíduos, em qualquer perío-
do histórico ou circunstância cultural, ou então que se trata
de uma "condição psicológica'' igualmente universal c típi-
ca de certos sujeitos. Assim, usei o tem10 homoerótico para
aludir ao que designamos como "homossexualidade", e pro-
curar evitar que o leitor moderno, preso aos nossos hábitos,
desse o sentido de "homossexualidade" a quaisquer práti-
ca.<:; eróticas entre indivíduos do mesmo sexo biológico.
E nãu é istu?
Ora, o que procurei mostrar, pelo contraste de cult.urar; di-
versas, como a greco-romana, por exemplo, é que esta cren-
ça não tem nenhum sustentáculo técnico plausível e, ainda
menos, fundamentos científicos, como se supõe. A pederas-
tia grega e o "homossexualismo moderno" são duas fonna..,
absolutamente díspares de se descrever, sentir e avaliar
moralmente as relações ou atração erótica entre pessoas do
mesmo sexo.
Qual u pmcesso homosse.1·:ual, então?
Não há um tipo de processo pelo qual as pessoas tornanHse
homossP.xuais, assim como não existe um único tipo de
processo ps íquico pelos quais as pessoas tornam-se hete-
rossexuais. É equivalente ao p rocesso que tom a alguém jo-
gador de futebol ou músico. Querer encontrar a "h omosse-
xualidade comum" a todos os homossexuais é uma tarefa
tão vã quanto querer procurar a ''politicidadE' comum a
todos os políticos"_
O senhor defm1.de u.nw bisse:-x·twlidade de todas as pessoas?
Não defendo a idéia da bissexualidade de todas as p essoas,
pois seria manter-me preso ao vocabulário da homossexua-
lidade versus heterossexualidade. Defendo a idéia, junto
com Frell(l, de que nossos rtes~jos eróticos nada t.f>m de na-
turais. São apenas realidades lingüísticas, runmjo.s cult.u-
nli!:\, que ctctC'nninam aquilo qut> será o objeto da atração se-
l i! l:\11)SSI-: \ 1.:\I.IS:\11 ) f li< 1:\J( JEI~I >TIS:\I\ I [I.-,

xual. Cada cultura organiza esl<.'s d<'S<'j os t'm códigos mo-


rais qm• d izem o que é aprovado t' rep rovado.

/I.'!as, e ua nosso í' Ulf u m.)


:\ossa cultura é majoritariamente heteroerótica, o que não
significa que outros modos <IE' ordenação elo rlPsejo não
possam existir. Isto não quer dizer qu<' tenho uma proposta
para a reronna da sexualidade. ~ão creio que possamos es-
colher n ossa sexualidade, assim como nào podemos esco-
lher nossa língua materna. Mas podemos, isto sim, redes-
crever moralmente, avaliar de novo, as consPqüênda.<; so-
eiomorais de preferências sexuais que n ingu(~m é livre para
razer.
É depreciai i vo o IP.IiHO homosse.ntol?
Seria intolerante, injusto, \.iol~nto e falso dizer que todas as
pessoas que usam a palavra homossexual sào preconceituo-
sas. O que digo é que, inrlependentR. rla intenção de quem
fala , o tenno torna um sentido que desqualiíka moralmente
o homoerotismo, como sendo um rlesvio, uma anonnalida-
de, uma doença, um vício, uma perversão. E tem este senti-
do porque foi criado e inventado (no século XIX, através de
uma concepção médieo-sexológica) para ser usado com
este sentido. Cada vez que dizemos "a lguém é homosse-
xual", definimos a identidade da pessoa, etiquetada por sua
p referên cia erótica. Não temos o háhito de nos referir à
maioria dos indivíduos dizendo "fulano é heterossexual",
mas, sim, professor, industrial...
Qual o seu real objetino, e.rpondo suas conclus6es?
É o de combater o preconceito, a intolerâneia, pois, a parti r
dos estu dos de casos, pude pN ceber que, quam.o mais os
indivíduos apresentam conflitos com s uas inclinações ho-
moeróticas, mais facil mente tendem a se expor ao risco de
contá.gío pelo víms da Aids. Mas nào tenho a wla pretensão
de mudar o preconceito simplesmente rediscutindo a ques-
tão homossexual Usando o termo homoerotismo, procuro
fazer ver que, ao trocarmos de vocabulário, trocamos as
perguntas e, eventualnlf>nt e, podPn~m os encontrar rcspos-
I !li

l.é.IS que não podem s er t•ru:ontradas quando nos Sf'IVimos


da terminologia homossexual ou hcterossP.xual.
O st>nlwr adw qu r> podP. m od ~lira r nlgo no sociedade a
p ari ir(/(> Sf?-US es t u du~'!
É óbvio que não podemos modificar voluntariamente a reali-
dade do mundo, ou o imaginário sexual d<.' uma época, num
laboratório de idéia<;. Como diz Ri\hard R01ty, quando troc·a-
mos de voc-abulário, trocamos de problemas e, eom a troca,
algumas coisas da realidacle, quE> antf>s parP.dam ahsolu1a-
mente importantes, passam a não ter mais importância.
Entrf>vi sta til! ,fom o / do Contnwn·io. ()/10/~J~
HOMOEROTISMO: A PALAVRA E A COISA

Em 1484, o papa Inocêncio VII publicava uma bula conde-


nando a excomunhão, interdição e outras penas e castigos
"sem apelação" todos os que se opusessem às atividades
inquisitoriais de Heiruich Kramer e James Sprenger, mon-
ges dominicanos alemães. 1 Neste mesmo ano, os monges
haviam escrito O martelo das feiticeiras, manual dedicado
à prática da Inquisição de mulheres possu:íslas. No manual,
era considerado heresia não acreditar em feitiçaria, pois
"as leis eclesiásticas demonstravam que negar a existência
de bruxas era contrário ao sentido óbvio do Cânon".2
Seguia-se, então, um roteiro de como reconhecer uma feiti-
ceira, compreender sua tendência para o mal, interrogá-la e
torturá-Ia, já que, mesmo tendo confessado seu "crime", a
feiticeira devia ser supliciada antes de morrer.:1
Quase cem anos depois, em 1570, o médico francês
Jean Wier escrevia Da impostura dos diabos, tratado polê-
mico, onde era dito que nem todas as mulheres que se com-
portavam como feiticeiras eram, de fato, possuídas.
Algumas eram doentes, loucas, e por isso, antes de julgadas
e mandadas à fogueira, deveriam ser examinadas pelos
médicos, os únicos, "segundo o preceito de Deus", habilita-
dos a entender "quais as diferenças, regras e causas de
qualquer mal engendrado contra a ordem da naturez;a".' No
século XIX, Pinel, o pai da psiquiatiia, dizia que Wier mos-
trava uma "crença cega" no demonismo, e que sua "obra
podia ser vista como médica, mas também como teológica;
um erro do tempo".; Em 1970, Marc Lamesi, comentando a
reedição do livro de Wier, afirmava: ''O 'Diabo' de Jean
Wier, este 'diabo' que faz agir as feiticeiras e que provocou
l i~

tanto escândalo. não seria o 'inconsciente', a 'peste' sobre a


qual não paramos mais de falar'?"';
Um mesmo fato e diversas interpretações? Penso dife-
rente. De acordo como o cientificismo dominante, o fenô-
meno da feitiça1ia é só uma prova (ou mais uma) da supers-
tição de almas pré-científicas. Atualmente, diz-se, com o
progresso do conhecimento, sabemos de que sofriam feiti-
ceiras e inquisidores. Eram todos vítimas da ignorância; do
desconhecimento ou do recalque da realidade sexual do in-
consciente. Isto é, no saber de hoje está a chave do enigma
de ontem. O presente c:ientífico é a nom1a de julgamento da
errônea concepç.ã.o passada. A Verdade, envolta durante
tanto tempo na ilusão, por fim revela-se. Nós, espíritos
modernos, somos seus patronos.
Contra este ponto de vista, sugiro que toda época pro-
duz crenças sobre a "natureza" do bem e do mal, do sujeito
e do mundo, que, aos olhos dos contemporâneos, sempre
aparecem como óbvias e indubitáveis. Os séculos XIV, XV,
XVI c XVII criaram a feitiçruia. E, porque a crença na bru-
xaria existia, e.risf'iarn bru,·ms. As bruxa..<:; eram um efeito
da crenç..a em bruxaria. Sem a crença em bruxas, não have-
ria mulheres que sentissem, agissem, se reconhecessem e
fossem reconhecidas como bruxas. Tampouco haveria reli-
giosos, moralistas, médicos etc. que se debatessem em
infmdáveis querelas sobre as causas e as manifestações do
diabolismo ou sobre a competência dos que estavam auto-
rizados a distinguir as falsas das verdadeiras feiticeiras.
Com o advento do imaginário racionalista e dentificista
dos séculos XVIII e XIX, pereceram as crenças na feitiçaria
e, com elas, as feiticeiras. Outros tempos, outras crenças,
outros sujeito..;;.
Nossas crenças a re-<5peito da sexualidade, como as
crenças na feitiçaria, também nos são apresentadas como
ftmdadas em "fatos evidentes por si mesmos". Ac;sim, desde
o século XTX, p:1ssamos a erf::'r na exic;;tência de uma divisão
natmal dos st.Ueitos em "heterossexuais, bissexuais e
homossexuais". Esb;i crença impõe-se à maioria de nós
como um dado imediat.o da cons ciência, como algo "intuiti-
vo", e, po:r.1anto, como algo lmiversaJmente válido para to-
dos os sujeitos em qualquer circunstância espaço-temporal.
HOMOEROTISMO: A PALAVRA E A COJSA ll9

No entanto, com um pouco de imagina~:ão, podemos con-


ceber um futuro em que esta classificação fosse flexibiliza-
da e enriqueeida. Além dos "tipos sexuais" conhecidos,
havelia os "multissexuais", os "assexuais" e os "alien-
sexuais", estes últimos, homens e mulheres que se sentiriam
atraídos por seres extraterrestres. Neste universo remoto,
ideologicamente copiado de nossa cultura moral, as novas
gerações aprenderiam como é que se sente, sabendo que
sente, mna atração multissexual ou alien-sexual; "como é
que alguém pode reconhecer-se ou reconhecer outros como
sendo um exemplar do tipo multissexual ou alien-sexual" e,
fmalmente, muitos aprenderiam a responder à pergunta
"o que você é?", dizendo: "eu sou multissexual" ou "eu sou
alien-sexual". Livros, videos c programas computadoriza-
dos, com irúormações sobre o assunto, seriam editados, e
congressos, encontros e corúerências seriam realizados
tendo como tema as causas e as origens genéticas, psicoló-
gicas, antropológicas, sociológicas, hlstóricas etc. daquelas
características sexuais "doentes", "anômalas" ou "anor-
mais". Certos especialistas afirmariam ter "descoberto", por
redução analítico-conceitual, quais as invariantes psíquicas
comuns ao desejo de cada um dos tipos, e outros "prova-
riam" pela experimentação quais os correlatos genéticos ou
anatomocerebrais das preferências sexuais "desviantes" ou
"mutantes". Movimentos em defesa dos direitos civis dos
"alien-sexuais" surgiriam, e movimentos alienófobos acusa-
riam aquela "minoria" de ter uma tendência sexual antinatu-
ral, posto que, se todos se atraíssem por extraterrestres, a
reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada.
Mas, se neste futuro hipotético, pensadores como
Freud, Wittgenstein, Foucault ou Richard Rorty ainda fos-
sem lidos, alguns de seus leitores seguramente diriam que
todas estas questões eram tliviais e equivocadas em rela-
ção a uma outra mais fundamental: qual o interesse ou
valor moral de tais divisões? Em que e por que - deixemos
agora a ficção - importa dividir moralmente os sujeitos
humanos com base em suas inclinações sexuais? Por que
tomar a classificação da.c; pessoas em "heterossexuais, bis-
sexuais e homossexuais" como um imperativo. atemporal
da "razão científica" e não como uma gestalt descritivo-
li O A ~:TH 'A ~;O J-:SPf.LHO OA C! IL11 "RA

valorativa das experiências sexuais, tão datada hi~to rica­


ment.e quanto qualquer out.ra'? Por que, em vez da pergunta
fasLidio~a, repetitiva e circular sobre "as causas", "a estru-
tura", "ac:; particularidades genéticas ou cerebrais" dos
"tipos sexuais" que inventamos, não perguntamos: qual o
pressuposto ético que orienta esta divisão'? O que ganha-
mos ou perdemos, em solidariedade para com nosso próxi-
mo, quando fazemos de s~eitos elementos lógicos destes
grupos, classes ou cof\juntos de "espécime~ sexuais'"?
Finalmente, em que semelhante arranjo imaginário das
sexualidades contlibui para a construção de uma vida
melhor, mais bela, mais virtuosa ou mais comprometida
com nossos ideais de dcc~ncia pública c auto-realizru;ão
individual?
A meu ver, fora deste enfoque, toda discussão sobre a
chamada "homossexualidade" corre o risco de tomar-se um
exercício fútil para mentes acadêmicas ou um a-rtigo em
prornoção para o florescente e obsceno mercado publicitá-
rio do "produto sexo". Com os pensadores antes citados,
creio que somos seres de linguagem. Nada, em nossas sub-
jetividades ou sexualidades, escapa ao modo como apren-
demos a perceber, sentir, descrever, definir ou avaliar
moralmente o que somos. Nossa subjetividade e nossa
sexualidade são realidades lingüísticas. Não penso, por
conseguinte, que exista uma coisa sexual objetiva que
preexista à forma como a conhecemos lingüisticamente. A
palavra não é aquilo que diz, falsa ou verdadeiramente, o
que a suposta coisa sexual é em si. A sexualidade é aquilo
que a palavra diz que ela é. Acreditamos que somos ou que
outros são "heterossexuais, bissexuais e homossexuais"
porque nosso vocabulário sexual nos coage a identificar-
mo-nos desta maneira Este vocabulário, entretanto, não
surge do nada, nem representa, para nossa razão, a "verda-
de" sobre a sexualidade, ignorada pelo obscurantismo dos
que nos anteeederam. Verdade, como disse Rorty, retoman-
do Dewey c James, é uma crença da qual não temos, no
rnornento, nenhuma boa razão para duvidar. É um cumpri-
mento vazio que fazemos às idéias que nos são úteis. Ou, se
~e quer, é o simples estado da conversação atual, no qual os
últimos terrnos do debate não necessitam de argumentos
H0:\10EROT1S\ f0 : A PALAVRA E A COISA I:! I

suplementares para se afirmarem como uma crença plausí-


vel. Nossa verdade sexual é filha da moral burguesa oito-
centista.. Ela surgiu e estabilizou-se, não por força dos eter-
nos decretos da razão científica, mas pela força das monta-
gens institucionais, políticas, dentífica'3, econômicas etc.
que, no século anterior, disputavam a posse e a fabricação
de um stúeito adequado às suas estratégias de reprodução,
expansão e hegemonia culturais.
É verdade, uma vez criados, os dispositivos lingüísti-
cos de crenças, ou, dito de outro modo, os hábitos morais e
intelectuais, tom am-se quase absolutos na demarca<s:ào do
limite de possibilidades das identificações sexuais de cada
indivíduo. Não podemos escolher nossas preferências
sexuais assim como não podemos escolher nossa língua
materna. As inclinações sexuais, como disse Freud, são
contingentes, arbitrárias e casuais, mas isto não quer dizer
que sejam gratuitas. Estamos presos ao repertório sexual
de nossa cultura, até que novas práticas lingüísticas produ-
zam novos modos de identificação moral dos indivíduos.
Porém, se não somos senhores em nossa morada sexual,
podemo-nos tomar livrE>.s para redescrever moralmente a
versão imposta à nossa forma de amar e desejar sexual-
mente. Ninguém pode escolher que tipo de desejo ou atra-
ção sexual será a sua, mas qualquer um pode aprender a
definir o que sente conforme seus padrões éticos.
Continuar discutindo s obre "homossexualidade", partindo
da premissa de que todos somos "por natureza heterosse-
xuais, bissexuais e homossexuais", significa tomar-se cúm-
plice de um jogo de linguagem que mostrou-se violento, dis-
criminado r, preconceituoso e intolerante, pois levou-nos a
crer que pessoas hmnanas como nós são "moralmente infe-
riores" só pelo fato de sentirem atração por outrac; do
; mesmo sexo biológico.
Este vocabulário é, em meu entender, viciado nas per-
guntas que faz e nas respostas que obtém. As conclusões a
que podemos chegar, quando o empregamos, es tão todas
post.ac; de saída. No fim da argumentação, encontramos
sempre o que já era sabido: os seres humanos são, foram e
serão sub speci.e aet.emi.t.ati.s "heterossexuais, bi~exuais e
homossexuais". Para muitos, esta crença é indiscutívf>l f>
A RTJCA E O ESPJ:.:LIIO DA (:t:J.TIIRA

suficiente para entender o problema. Outros, entretanto)


pensam, como Rorty, que nenhum vocabulário é imortal E
com estes que concordo. Em minha opinião, é possível e
desejável que abandonemos o vocabulário de onde extraí-
mos a idéia de "homossexualidade", a..:;sim como nos recu-
samos a discutir sobre bruxas e bruxarias com o vocabulá-
rio da Inquisição. Só assim, penso, chegaremos, um dia, a
perder o interesse por pergnntas sem sentido e problemas
sem solução. Neste dia, veremos nossas crcnça.o; presentes
como vemos as crença.o; em feitiçaria, ou seja, como produ-
tos obtusos e obsoletos da imaginação; como "um erro do
tempo". Os indivíduos, nesta cidade ideal da ética humani-
tária e democrática, serão livres para amar sexualmente de
tantas fomlas quantas lhes seja possível inventar. O único
limite para a imaginação amorosa será o respeito pela inte-
gridade física e moral do semelhante. "Heterossexuais, bis-
sexuais e homossexuais" serão, então, figuras curiosas, nos
museus de mentalidades antigas. Na vida, terão desapareci-
do como "rostos de areia no limite do mar".

Jornal do Commercio, 416193

'KRAMER, Heínrich e SPRBNGi'~H., James. O martelo dasfeiticei.ras- MaJJ.eus


11-fuleficarurn. Rio, Rosa dos Tempos, IH9l, :3" ed.
'Ibid. p.53.
'Tbid. p.5.5.
• WIER, Jean De l'Irnpo.~ture de.ç LJin.ble8, Paris, Coleç·ão Analedes, 1970, edição
nà().COllll'rrial, p. 6.
·Joid. p. 7.
; Ibid.
A CRUELDADE E A ÉTICA

Crueldade é o ato ou desejo de fazer sofrer física e moral-


mente a si ou ao outro. Fazer mal ao outro, humilhando-o
ou agredindo sua integridade corpórea, é uma conduta
indesejável ou hedionda, conforme o grau da ofensa, mas
que pode ser facilmente aceita Basta desumanizar o próxi-
mo. Basta acreditar que ele não é um sujeito moral como
''nós" para que a crueldade cometida não seja percebida em
seu horror. Ao longo da história, o racismo, o preconceito
sexual, a intolerância étnico-religiosa, a indiferença dos
opulentos face aos miseráveis etc. mostram com que facili-
dade podemos desumanizar o "diferente", o "inferior", sem
perder uma só noite de sono.
Mais difícil é entender a crueldade dirigida ao seme-
lhante ou a si mesmo. Neste caso, nos escandalizamos ou,
progressivamente, fazemos do idêntico "um outro", um
estranho, a fim de que a crueldade seja humanamente su-
portável. Quando, por exemplo, vemos pessoas nas quais
reconhecemos "iguais em humanidade", por partilharem
nossos hábitos morais e intelectuais, serem assassinadas,
torturadas ou sujeitas a maus-tratos, indignamo-nos porque
a vítima merecia viver e não ser exposta a sofrimentos gra-
tuitos. O mesmo acontece com o sujeito que atenta contra
o próprio bem-estar físico-moral. Uma conduta deste tipo
só é compreendida quando imaginamos o sujeito privado
de razão, alheio a si mesmo, movido por causas e motivos
que desconhece.
A tradição cultural burguesa à qual pertencemos o:ga-
nizou o· jogo da crueldade de modo a poupar de seus efe1tos
o núc:le~ formado por "sujeitos de primeira classe'', supos-
1<:!1 A ~:TICA f, O ESJ>ELIIO DA CU:I'I ~ fi.A

tos representant.e s da verdadeira essência ética da humani-


dade. Os ricos, brancos, "heterossexuais", poderosos, bem-
sucedidos, jovens, bonitos, inteligentes etc. são a nata do
núcleo. Suas vidas são protegidas, e seus sofrimentos res-
peitados. Quanto aos demais, a "maioria dcsviante", como a
chamou Basaglia, se quiser ou puder, que chegue até lá. Do
cont1·ário, nada lhes é devido.
Paradoxalmente, porém, a manutenção deste ideal,
mesmo reservado aos ha.ppy je-w, permitiu que muitos con-
testa'5sem a legitimidade de seu monopólio por parte de
uns poucos. A.c; lutas em favor dos oprimidos ou as campa-
nhas pelos direitos civis das chamadas minorias baseavam-
se nessa idéia de d·ireitos h·u manos iguais para. sujeitos
d~ferentes.
Ora, a recente primazia ideológica da lei do mercado,
do consumo e da avidez pelo sucesso publicitário vem tor-
nando esta hierarquia moral obsoleta. Conseqüentemente,
certas palavras de ordem políticas tendem a cair no vazio.
Hoje, exigir entrada livre no clube privado dos sujeitos com
direito a vida e bem-estar pouco significa, pois, mesmo
eles, estão entregues à brutalidade da forma de exic;têncía
que ajudaram a criar. Das elites econômicas, políticas, inte-
lectuais etc., já não mais se pede que sejam também elitE>.s
morais. Não mais se exige que saibam distinguir entre o
vício c a virtude e que possam agir segundo esta distinç.ão.
Delas pede-se que consumam, ostentem e "não saiam do
ar", sob pena de amargarem o anonimato. É a "síndrome do
Zeca Buúna", do medo de ser "mais um" ou "qualquer um"
diluído na massa de consumidores produzida pelo mercado
que os sustenta.
De ninguém é exigido o exercício das virtudes públi-
cas ou pr;vadas; mas todos devem desejar ser heróis, de
quadrinhos ou quadrilhas. Resultado: negocia-se tudo, des-
de que o posto de inquilino no galpão da fama esteja garan-
tido. Mas, como o sucesso é feito para envelhecer na
manhã seguinte, o fantasma de "ficar de fora" persegue a
todos, obrigando-os a funcionar como a engrenagem da
fama ordena. E só há um meio de ingressar e pennanecer
no drctúto da publicidade: aprender a descrever-se ou a
considerar-se como um novo tipo de objeto. Ou seja, renun-
dar a pensar e a agir em função de deliberações éticas que
levem em conta o bem e o mal, o justo e o injusto, para de-
sejar apena'3 aquilo que o cálculo do maior int.eresse publi-
citário recomenda. A crueldade e a desumanizaçào des-
troem o que, até então, era preservado, sem se deixarem
ver como tais. Na linguagem do aparecer publicitário bana-
lizam-se e convertem-se em sinônimo de interesses indivi-
duais. Os "vencedores" mastigam batatas, achando que por-
tam louros, enquanto os "vencidos" sequer têm batatas para
mastigar.
Quando a mídia se espanta porque um artilheiro do
futebol carioca não exibe o esperado apetite pelo sucesso
mundano; quando as vidas das elites são seguradas contra
seqüestros organizados por bandidos que vivem, em grande
parte, à custa do consumo de drogas destas mesmas elites;
quando a miséria humana se integrou à paisagem urbana e
já faz prui:e de roteiros turísticos, tudo tem de ser revisto
do início. Pouco adianta incentivar "as massas" a adotar
comportamentos de elites, esperando resultados econômi-
cos ou de responsabilidades sociais para com a coletivida-
de, pois as elites já se "mac;sificaram". Pouco adianta igual-
mente recorrer ao compromisso moral daqueles que perde-
ram todo o respeito por eles próprios. Betinho entendeu
isso. Temos que começar do beabá. Temos que recuperar o
nível mínimo de solidariedade que pode barrar a expansão
da cultura da crueldade. Temos que reaprender que deixar
pessoas como nós morrerem de fome, em meio ao nosso
desperdício, é crueldade; que privar crianças de assistência
e cuidados dos adultos é crueldade; que tratar seres huma-
nos como pedaços de corpos e sexos, semelhantes a garra-
fas de refrigE>..rantes ou embalagens de cosinéticos, é cruel-
dade; que, por fim, fazer-nos acreditar que toda essa violên-
cia é sinal de progresso, modernidade e que é o único cami-
nho para tjrar-nos do atoleiro em que estamos não é só
crueldade, é monstruosidade.
Política não é igual a lobby ou marketing de corrup-
tos; nossos corpos, sexos e sentimentos não são aitefatos
de lojas pomô; as vidas de muitos c as consciências de
todos não são artigos em liquidação nas pontas de estoque.
Ainda ('xist.em aqueles que sabem respeitar a si c aos ou·
l:..!i > A 1·:-n cA E O ~:S PJ.: I.I JO DA l TLTl 'liA

tros, como suj~itos morais. Nem todos l.'~t.ão à V f>Jtda; nem


todos são c:ães de aluguE>!.

.f umai do Rmsil. !)fii!)~~


MORRER AQUI E AGORA

SegWlda-feira, 5 de julho, 20:30h, aproximadamente. O a-


presentador do noticiário Aqui e agora anuncia a exibição
de wna cena de suicídio. Em tom circense e empolado, re-
comenda aos aduJtos não deixarem as crianças verem o
que vai ser exibido. A câmara aproxima-se de urna garota
de 16 anos de idade, chamada Danielc Alves Lopes, sentada
n~ parapeito de um edifício. Como wn esquilozinho assus-
tado, ela olha para os lados, segura a bolsa, vê os pedestres
na rua e pula. O desfecho do episódio é acompanhado de
farisaicas exclamações de consternação por parte do repór-
ter. Em seguida, novas misérias e atrocidades, até o próxi-
mo comercial.
É assim que se mon e, aqui e agora, na TV; é isto que
somos ou nos tomamos para a indústria do espetáculo.
Os objetivos e efeitos de notíeias deste tipo todos
conhecemos. Em primeiro lugar, a vida social aparece
como um museu de história natural dos horrores. Os indiví-
duos mostrados na tela, não obstante serem "seres" fisica-
mente parecidos conosco, seqüestram, estupram, torturan1,
matam-se e assassinam num ritmo vertiginoso. A insinua-
ção é evidente. O mWldo de fora é povoado por bestas
humanas, portanto, não se arrisque! Omita-se; demita-se;
fique em c.asa, assistindo à televisão. Em segundo lugar,
explora-se comercialmente a capacidade que temos de
excitar-nos com a violência, dosando exatamente o que
deve ser consumido. A morte deve provocar o .frisson
necessário e suficiente para garantir os índices de audiên-
cia, mas ser comentada com ares de compaixão e indigna-
ção, para que o "consumidor" não se sinta urn "ta.racto" e
I~
A .:TJ('A E O ESPELIIO DA CTLTURA

continue sendo um hom freguês do programa. O ideal é que


os mortos e mutilados pareçam-se vagamente r.om os
sobreviventes, mas nunca a ponto de evocar angústia ou
solidariedade e, s im, distanciamento e indiferenc;a. Assim
como quem reage a dublês e bonecos de borracha, cspan-
cactos, trituractos, esquart~jados por socos, tiros e bombas
nos enlatados.
O cinismo do mercado, obviamente, dá outra interpre-
tação dos seus produtos. Trata-se da "liberdade de infor-
mar".. Seus porta-vozes dizem que apenas apresentam fatos.
Não inventam a violência: fotografam-na tal qual é. Por-
tanto, só intelectuais, moralistas c outros clitista'> chocam-
se com a realidade cotidiana. O "povo" não. Por isso, gosta
c não se espanta com o que lhe é servido a t.ít.ulo de infor-
mação '"verdadeira". Pergunto, porém, que realidade é esta'?
A realidade, disse Godard, depende do ângulo em que é Lil-
mada. No caso do suicídio, que realidade foi-nos mostrada?
O corpo de urna infeliz garota, perdida no anonimato urba-
no e que atentou contra a vi da'? É isto a realidade ·de um
suicídio? Ou existe alguma coisa a mais, que nos foi sonc~
gada pelos fabricantes da "realidade televisiva'"? Alguém,
por acaso, viu ou foi levado a pensar no que sente uma pes-
soa quando toma a decisão de matar-se'? Isto faz ou não
parte dos "fatos" e da "realidade" do suicídio? Se faz, e afir-
mo que sim, por que este dado não foi levado a público em
nome da mesma liberdade de infonnação'? Não penso que
acontecimentos desta ordem ajudem-no..c:;, no que quer que
seja, a construir uma sociedade mais livre e mais justa,
razão de ser da liberdade de informar e opinar. Mac:;, admi-
tindo que "suicídios ao vivo" pudessem cumprir esta fun-
ção, por que mostrá-los com um olho só, o olho do sensa-
cionalismo lucrativo?
Os senhores produtores de shows de suicídio em ca-
deia nacional sabem o que é desejar morrer, por iniciativa
própria? Decidir matar-se é conviver com a agonia extrema
de que não há mais tempo para tentar de novo. É acreditar
que a última vez já passou; que nenhuma vontade de acer-
tar, por louca que seja, é possível e que nada e ninguém
podem remediar um desespero sem consolo. Querer matar-
MOHHI!:R AQUI t: AGOltA 1:!!1

se é acreclit.ar que o que perdemos ou nos foi arrancado dói


tanto que não cabe na vida, c ser levado a responsabilizar a
própria vida por este exccss.o que e_la não pod~ ~~onter. ~1a­
tar-se é encenar no corpo o Impossivel de ser 1etto em v~da
e que só o milagre da linguagem pode fazer-nos ~~nh~er
sem jamais ter vivido: o sentimento de que tudo e mt1til e
nada resta. É, por fim, dizer em gestos sem retomo e sem
chances de correção o que Emily Dickinson disse em ver-
sos: "Basta a saudade como Inferno", embora só saibamos
"do Céu que é Adeus". , . .
Sobre isto, sobre esta "realidade , a cuptdez necrofih-
ca do mercado cala. Subitamente, toma-se discreta, pudica.
Este escândalo não dá lucros. A fragilidade de que todos
somos feitos não vende, nem rende. Nossa impotência é
estimulada para despertar o gozo com a crueldade, o medo
de investir na vida ou a voracidade por produtos com~r­
ciais; jamais é pensada como algo que nos una no propóstto
de maior tolerância e solidariedade para com as fraquezas e
sofrim entos nossos e de nosso próximo. Ninguém é ingê-
nuo. Sabem~s que tais produtos não entram na dieta dos
arautos do "tudo é negócio", "tudo é produto", tudo é mer-
cado". Mas quem disse que somos obrigados a engolir, cala-
dos, o que a ganância e a canalhice tentam empurrar-nos
goela abaixo?

Jornal do Brasil, 2217/93


INOCÊNCIA ÚTIL

Há vinte anos, mais ou menos, Habennas perguntava se as


sociedades complexas seriam capazes de formar uma iden-
tidade racional de si mesmas. O problema, então, era o de
saber: primeiro, como os grupos sociais, separados por
diferenças de interesses, poderiam aceitar um ponto de
vista ético posto acima das diferenças; segundo, como os
indivíduos, descritos como joguetes de forças ocultas - a
luta de cla.c;ses; a evolução das espécies; as leis da econo-
mia; as leis da história; as moções inconscientes etc. - ,
poderiam guardar a noção de responsabilidade por suas
escolhas hwnanas. A reabilitação do valor político na esfe-
ra pública, dizia ele, seria a solução. O tempo passou; a
questão continua. A política persiste em baixa, os indiví-
duos se atomizam, os grupos radicalizam seus particularis-
mos e do vazio moral vêm emergindo a engenharia humana
e a tecnologia dos corpos.

Nos últimos meses, a imprensa publicou sucessivas


matérias sobre a determinação genética e o controle psico-
farrnacológico das condutas humanas. Os chamados "depri-
nüdos" C' · ~s supostos "homossexuais" são as estrelas do
espetâcult l·. Os deprimidos, diz-se, são pessoas com distúr-
bios no funcionamento do neurotransmissor conhecido por
serotonina; os "homossexuais" são portadores de especifi-
cidades genéticas no cromossoma X. Para os primeiros, já
sabemos,. Prozac!; para os segundos, bem, aí varia confor-
me o gosto de cada um. Os militantes gays acham que isto é
motivo para reivindica rem respeito moral por suas prefe-
rências sexuais; j á alguns "heterossexuais" vêem nisto uma
INOCf:NCL>\ (TIL

boa razão para abortarem fetos com tal "malformação


genética".

A tolice beira a insensatez. Só wna cultura sonambúli-


ca é incapaz de ver as conseqüências desta redescrição
cient.ífic.a de nossas subjetividades. Nada, na imagem de
sujeito que t.ernos de nós mesmos, é fixo e imutável. Assim
corno aprendemos a ver-nos como seres que falam e agem
segundo intenções moralmente dirigidas! podemos apren-
der a ver-nos como feixes nervosos que reagem a estímulos
mecânicos ou neuroquímicos. A psicofarmacologia pode
muito bem descobrir drogas que diminuam a "depressão"
dos indivíduos; a genética pode determinar qual a origem
cromossômica de cada suspiro, grito ou gemido que venha-
mos a dru: O que nenhuma das duas pode fazer é criar um
sujeito moralmente responsável pelo que faz, diz ou sofre se
insistir em desconhecer ou não discutir as razões de nossos
feitos, discursos ou sofrimentos. Muitos cientistas sabem
disso; a maioria dos ideólogos faz de conta que não. Para
estes, a "felicidade" pode ser comprada em pílulas e consi-
deração moral pelo outro é urna questão de aminoácidos.

Vou direto ao noves fora! Em que importa saber qual a


pretensa singularidade genética de homens e mulheres que
sentem atração sexual e amorosa por outros do mesmo
sexo biológico? Alguma vez, na história, os oprimidos con-
seguiram a benevolência dos opressores reclamando igual-
dade de tratamento humano, em nome da "naturalidade" de
suas características físico-morais? O que conhecemos são
justamente exemplos contrários; as desigualdades naturais
servindo de álibi para desigualdades morais! Só a invenção
da dignidade moral da vida e da pessoa pôde evitar a vio-
lência do preconceito baseado em argumentos naturais. Do
mesmo modo, faz diferença - e muita - dizer que pode-
mos sentir tristeza por vários motivos e que, em alguns
casos, é moralmente aconselhável usar medicamentos para
aliviar o sofrimento, e dize r que "depressão" é uma questão
de reequilíbrio do metabolismo da serotonina. A serotonina
132 A ÉTICA E O ESPELHO DA Cl.ILTCRA

"não sabe" o que é sentir ansiedade depressiva por conta da


concorrência alucinada por dinheiro c poder; porque se
perdeu a pessoa amada; porque se é ·vítima de preconceitos
raciais, sexuais, étnicos etc. ou porque supomos a existên-
cia de um eventual di.stúrb·io neuroquírnico, causa da
depressão imotivada.. Todos são casos de "depressão";
todos possuem causas e razões completamente diversas,
que pedem intervenções diversificadas.
Inventando a idéia de que existe Kuin deprimido" ou
"um homossexual", criamos ficções teóricas que, em segui-
da, tomam-se realidades humanas. Om dia, para os que não
sabem, a psiquiatria criou "regícidas", "loucos morais" ou
"crim~<:>sos natos" reconhecíveis pelo rosto, pelo tam~ho
do cramo, pelo peso do cérebro, e tudo isto "cientificamen-
te comprovado". Tais idéias caducaram e nenlmm ganho
moral surgiu desta definição do st_tieito enquanto realidade
biológica Hormônios e genes não criam valores. Não sabe-
mos o que é sofrer porque conhecemos a físico-química da
serotonina; temos interesse no conhecimento da serotonina
porque sabemos o que é sofrer. Da mesma maneira só
temos interesse em conhecer "genes de homossexuais" por-
.que discriminamos moralmente pessoas que amam outras
do mesmo sexo biológico. Sem isso, esta pesquisa seria
absolutamente inútil e sem sentido.
A inocência moral de nosso corpo só é útil aos que
nos percebem como relés no circuito das mercadorias. Já
nos ensinaram que somos obj etos consumidores de outros
objetos; agora começam a ensinar como nossos sentimen-
tos são fab!ícados e quais são os armazéns de peças de
reposição. E preciso mais do que cadeias genéticas e anti-
depressivos para se faze r homens responsáveis por seus
atos morais.

Folha d~ S. Paulo, 13/4/HO


EROS NA GRÉCIA ANTIGA

A homossexualidade .Q'rega, de K. J. Dover, tem o porte dos


grandes clássicos sobre a sexualidade. Evoca, pela erudi-
ção, rigor e elegância de argumentos, Christianity, social.
tolerance, and lwmosexu.alily, de John Boswell, ou os estu-
dos de Paul Veyne e Peter Brown. Sua originalidade deve-
se, sobretudo, à exploração de processos judiciálios e pin-
turas de vasos decorativos, fontes de pesquisa até então
inéditas. Analisando processos de cidadãos acusados de
praticar ·a prostituição masculina e a iconografia erótica,
Dover confirma e dá novo relevo ao que era conhecido pela
a ná lise de textos cômicos, filosóficos ou poéticos. Na
Antiguidade grega, a "pederastia", ou seja, a relação sexual
entre o homem mais velho, o erastes, e o rapaz jovem, o
erômenos, era aprovada, incentivada e tomada como mode-
lo de ética amorosa.

Porém o leitor engana-se se projetar no passado os


hábitos mentais do p resente. A relação ''pederástica" não
coincide com a moderna relação "homossexual". Na Grécia
não existiam palavras para designar o que chamamos de
"homossexualidade" e "heterossexualidade" porque sim-
plesmente não existia idéia de "sexualidade". A sexualidade
é uma construção cultural recente, como mostrou Fou-
cault No mundo helênico havia um e-ros múltiplo, heterogê-
neo, sem contrapartida no imaginário de hoje. Assim, o
eros da "pederastia" era, em sua '"natureza", diverso do eras
presente entre homens e mulheres ou mulheres e mulheres.
Por princípio era -vi:rtuoso, ao contrário da "homossexuali-
dade" contemporânea, tida como vício, doença, "degenera-
A l~TI('A F: O ESPELHO DA Ct:I.T'l'RA

ção'' ou perversão, desde que roi inventada pelas ideologia<;


j urfdi<.:o-médico-psquiát.ricas do século XIX.
Entretanto, justamente porque era dirigida para a. vir-
tude, a "pederastia" era draconianamente regulada em seu
exercício. O que estava em jogo era a educação do cidadão,
portanto, toda conduta que cvocac;se passividade e e.xcesso
era considerada indigna. O e1·ôrnenos não podia ser pa..c;,•:;ivo
na relação amorosa, isto é, não podia ser penetrado, pres-
sionado física ou moralmente a ceder aos avanços s exuais
do erastes, subornado com dinheiro ou presentes etc. Do
mesmo modo, toda desmedida, toda hulnis, era igua!lmente
reprovada po r ser pouco viril. Os amantes devia m s e r
comedidos, evitando exageros lúbricos ou apaixonados. A
boa vida era a vida política. Em conseqüência, o us o dos
prazeres devia estar a seniço da honra do cidadão. A liber-
dade sexual privada, como a concebemos, era impensável
na Grécia.

Mas, como disse eerta vez Hannah Arendt, só wn gran-


de pensador é capaz de grandes contradições. Dover mos-
tra de forma magistral a peculiaridade histórica da "pede-
rastia"; por que, então, denominá-la "homossexualidade"?
Po rque, penso - como quase todos em nossa cultura - ,
ele acredita na existência de algo chamado "sexualidade",
"heterossexualidade" e "ho mossexualidade", independente
dos elementos implicados na definição dos termos. Explico
melhor. Sexualidade é um termo aplicado a uma série de
realidades lingüísticas e não-lingüísticas como: descrições
médico-biológicas do aparelho reprodutivo; descrições de
sentimentos como amor, paixão, afeto etc.; descrições de
sensações corpóreas como orgasmo, excitação física, eja-
culação etc.; descrições de regras e instituições de paren-
tesco, corno família, casamento, maridos, esposas, filhos,
namoro, "paquera" etc.; descrições de julgamentos e atitu-
des morais diante do que é permitido, proibido, desejado,
condenado, rebaixado, ridicularizado etc.
Imaginar que existe uma "sexualidade" além do con-
junto de itens constittúntes de seu domínio de uso lingüísti-
co faz tanto sentido quanto alguém perguntar "o que é ou
i!:HO~ NA (;RÉCTA ANTIGA

onc1e está. a universidade", depois de localizar e identificar


alunos, professores, salas de aula, laboratórios, cantinas,
bibliotecas, edifícios, horário de aulas, provas , exames de
t.it.ulação, como no exemplo de Gilbert Ryle. Não existe um
"s ubs trato" da universidade assim como não existe uma
"substância" da sexualidade, com um atributo universal,
recon hecível em t.odos os ele mentos que fazem parte de
~ma definiçã o.
Com a palavra "homossexualidade" ocorre a mesmís-
sima coisa. Dovcr acha que o que existe de comum entre a
"p cdcrac:;t.ia" e a "homoss exualidade" é a. "di.<;posição para
buscar prazer sensorial por meio rlo contato corporal com
pessoas do próprio sexo, de preferência ao contato com o
outro sexo". Mas o que é ''buscar prazer sensorial com pes-
soas do mesmo st>xo ou do sexo oposto"? Buscar prazer
sensorial, sentir-se atraido po r outro do mesmo sexo bioló-
gi<.:o, pode ser descrito da mesma forma como descrevemos
a "atraçã o" de um planeta por outro ou o tropismo de uma
planta pelo sol'?
Uma "homosse xualidade" com o a grega, que impedia
contatos físicos entre homens adultos, coito anal e manifes-
tações apaixonadas dos parceiros e que, além disso, fazia
da "pederastia." a mais nobre foqna de aparecimento de
m·os a os mortais é a mesma "homossexualidade" descrita
co mo "perversão", "desvio" o u produto de "disposições
genéti cas", conforme a ideologia do momento? Mais ainda.
Uma uhomossexualidade" recomendada corno louvável e
praticada por toda elite moral, intelectual, política, artísti-
ca, guerreira, religiosa de uma s ociedade cult ura lmente
sofistic.ada como a grega seria a mesma "homossexualida-
de" das minorias gays; dos encontros clandestinos em gue-
tos; da culpa e da vergonha presentes na esmagadora maio-
ria dos que sentem tal tipo de inclinação erótica?
Como e por que ver na "pederastia", pensada desta
fonna, uma ocorrência particular de uma "homossexualida-
de" universal? Bac;ta falar de ''disposição ao prazer senso-
rial com pessoas do mesmo sexo", para homogeneizar a
"pede rastia" e a "homossexualidade"? Duvido. Uma frase
como esta não resistiria minimamente ao teste do valor
erótico diferencial dos objetos, em Freud; da inescrutabili-
A tTICA 1:: O ~;sp};LHO DA CtiLTUlA

dade do referente, em Quinc; da autonomia do sentido, em


relação ao suporte referencial, em Wittgenstcin ou ao pro-
blema do referente sem realidade, em Davidson. A crença
de Dover numa ''homossexualidade" transistóriea, igual a
ela mesma no tempo e no espaço, é produto de nossa "dis-
posição imaginária" para crer numa essência da "homosse-
xualidade" que, no entanto, só existe e tem sentido quando
holisticamente articulada ao vocabulário moral da sexuali-
dade burguesa oitocentista. Foi a partir do momento em
que a família nuclear organizou-se em tomo das figuras no
homem-pai; da mulher-mãe; da criança-pai psicológico do
adulto etc., que todos os indivíd1.ws do 'mundo passaraw a
dividir-se em "heterossexuais" e "homossexuais" e esta divi-
são pa.:;sou a tomar-se "natural" e "e\idente por si mesma".
Desde então, médicos, psiquiatras, higienistas, pedagogos,
juristas, moralistas, psicanalistas e a 'VOX populi começa-
ram a caça à "homossexualidade" escondida ou manifesta
dos "homossexuais", descobrindo-a em "estruturas"; "dis-
posições"; "traumas" ou em qualquer outra invenção esta-
pafúrdia, plausível aos olhos do preconceito.

O uso do termo "homossexualidade", num estudo do


quilate de A homosse.."CUalidade grega, surpreende e mos-
tra, ao mesmo tempo, a força performativa das palavras na
construção lingüística de nossas crenças, des~jos e subjeti-
vidades. Mas, como mostrou Freud, dizemos sempre mais
do que queremos dizer. Para quem ainda não está totahnen-
te convertido à cultura do sexo-rei, com suas homossexua-
lidades, heterossexualidades e bissexualidades, a leitura
deste livro fas cinante é obrigatória. Em suma, uma obra-
plirna com urna etiqueta infeliz.

Folha de S. Pauto, 1/5/94


RICHARD RORTY E A PSICANÁLISE

Riehard Rorty é um dos mais notáveis pensadores da atuali-


dade. A leitura neopragmática que faz da filosofia da lingua-
gem, da filosofia da mente, da teoria do con.hec.imenlo, da
filosofia moral etc. é ousada, nova e admiravelmente inven-
tiva. Por isso abre um horizonte intelectual que vai muito
além das disciplinas investigadas. Exemplo típico é o caso
da psicanálise. Rorty nWtca tomou explicitamente a psica-
nálise como objeto de estudo. Entretanto alguns de seus
trabalhos (por exemplo, "Contingence, irony and solida-
rity", .....reud and Moral Reflexion", "Non-reductive physica-
lism" etc.) renovam, de modo inédito e surpreendente, no-
ções psicanalíticas como a do slijeito na relação com a lin-
guagem e a verdade. Para Rorty, o que denominamos de
sujeito não é um dado preexistente aos elementos lingüísti-
cos constitutivos de sua descrição. O "sujeito", ou "eu" ou o
"self" são um efeito de linguagem. Mas linguagem, aqui, não
equivale à competência abstrata para produzir falas pruticu-
lares, como em Chomsky, ou à estrutura fonnal de todas as
falas possíveis, como em Saussure. Na tradição pragmática
de Wittgenstcin, Austin, Quine e Davidson, linguagem é sim-
plesmente o conjunto de atos de fala empregados pelos
usuários competentes de uma língua. O que distingue o
sujeito enquanto rede lingüística de outros efeitos de lin-
guagem, sem referência a estados ou processos subjetivos,
é o fato de ser pensado corno "a parte da rede de crenças e
desejos postulada como r:ausa interior do cornpo-rtanumto
Un,qüi.stico de wn m-gan:isrno s·ingular". Em outros termos,
o eu é a fração da linguagem entendida como aquilo que é ·
causa ou que está na origem da linguagem.
L;l8 A ÉTICA E O ESI'J::UIO DA CLIL'I'U {.-\

As cons~fJíi~ndac;; rtesta afirmação são inúmeras. Em


primeiro lugar, o sujeito é despojado de todo suporte
"essencial", idealista ou realista. ~em COITJO, nem conceito;
nem sensível, nem inteligível; nem superficial, nem profun-
do, o sl,\jeito é uma "rt>alidade lingüística" - realidade psí-
quica, disse Freud. E por ser lingüístka, de.pende de con-
textos historicamente t:ontingenles. A~sim nenhuma identi-
dade subjetiva - emocional, intelectual, sexual etc. - é
"natural" ou "univ~rsal". Nossa.<; crenças sobre o que é nor-
mal ou anormal, natural P antinatural nas condutas huma-
nas não design<m:l uma "realidade extralingi.iístü:a" anterior
ou heterogênea à linguagem; exibem opções e preferências
morais da cultura a que pertencemos. Em segundo lugar, o
sujeito descrito desta forma não possui centro ou núcleo
verdadeiro, nem estrutural nem histórico. Flexionando
pragmaticamente a teoria semântica ela verdade de Quine e
Davidson, Rorty afirma que verdadeiro é a.q-uil{J que é apro-
vado num sisterna de t~renças válido para a maioria dos
fatos na mo,iorio dos casos. Dito de outra maneira, verda-
deira é a descrição d.o sujeito que satisfaça as exigências
morais do certo e do errado, do bom e do mau, numa dada
forma de vida.

No neopragmatismo, portanto, o fu ndamental, em


Freud, não é a descoberta de explicações causais dctemü-
nistas e supostamente c:ientíficas do que sentimos, pensa-
mos e fazemos: é a construção da imagem do sujeito como
um retecer perrnanente de crenças e desej os que cessa,
provisoriamente, quando um dado estado de satisfação
moral é obtido. Na clínica como na vida podemos desejar
alterar estados subjetivos por diversos motivos. Porém,
quando alcançamos a alteração desejada, e ela é satisfató-
ria, "nada mais é preciso, nada mais é possível", como disse
Davidson.

O critério da satisfação monll é, deste modo, decisivo


no julgamenio que fazemos sobre a "normalidade" ou
"anormalidade" das organizações psíquicas, bem como
lUCllARD ROHTY E A PSICANÁLIS~ 139

sobre o sucesso ou insucesso do processo psicanalítico.


Qualquer outro critério pretensamente fundado em argu-
mentos racionais independentes de práti<:as culturais espe-
cíficas pressupõe, sem tomar claro, o acordo em torno de
crenças éticas compartilhadas na linguagem ordinária. É o
adeus prosaico, wittgensteiniano, dado por Rorty à metafí-
sica da falta, do desejo ou do verdadeiro sujeito, contida
em tantas versões da psicanálise. A meu ver, sua interpreta-
ção neopragmática do sujeito restitui a força original do
pensamento freudiano. Ou seja, primeiro a escuta solidária
das existências individuais em conflito com os vocabulá-
rios morais dominantes; depois as rnetapsicologias. Estas
serão sempre bem-vindas, desde que não pretendam apo-
sentar precocemente vidas e desejos em "pequenas nosolo-
gias" e "pequenas teorias". Fazendo filosofia, Rorty fez o
que de melhor pode ser feito em psicanálise; entender
Freud. É um autor de gênio, comprometido com o humana-
mente digno. Pode haver maior elogio?

Folha de S. Paulo, 8151H4


SITUAÇÕES
FREUD: ONTEM, HOJE, AMANHÃ

O que dizer de Freud, cinqüenta anos após sua morte?


Ivluita coisa, certamente. De minha parte, penso ver o que
Freud tem a dizer sobre a. crueldade c a solidru.icdade entre
nós. M~, antes de tudo, uma prech;ão. Freud há. muito dei-
xou de ser apenas um nome próprio. Tomou-se a abrevia-
ção de um vocabulário, co1no diria .Horty; de uma celta
maneira de des crever coisas e eventos ou de produzir c
solucionar enigmas. Com l''reud, novas metáforas sobre o
homem e a experiência humana foram inventadas. Algnma..c;
cst<\.o definitivamente incorporada5 ao senso comum, e por
isso mesmo são cumprimentadas e festejadas como verda-
des fora de discussão. Outras permanecem no portão de
entrada da cultura, enquanto esperarn o título de sócio do
clube das v.e rdades. Entre estas, a sexualidade.
Como assim, pode-se protestar, então os psicanalistas
ainda insistem na ladainha da revolução sexual freudiana?
Não se cansam de buzinar em nossos ouvidos a enjoada
lenda da "peste"? Quem, hoje em dia, leva a sétio a preten-
são da psicanálise de ser uma "peste sexual"? Por acac;;o o
sexo-rei, como apelidou Foucault, não se tomou o cafezi-
nho de pacatos jantares burgueses, e um capítulo obrigató-
rio de manuais edif1cantes e telenovelas soporíferas'? A
quem mais o sexo incomoda, exceto talvez aos psicanalis-
tas preocupados em provar que oferecem lebres a um mer-
cado saturado de gatos'? Queiram ou não os pupilos de
Freud, a sexualidade atualmente escandaliza tanto quanto
um palavrão sussurrado no Morumbi ou no Maracanã
durante o grito de gol. O mais é retórica; conversa para
inglês ver.
É verdade, num cetto sentido a sexualidade foi dessa-
144 A ÉTICA 1!: O ESPELHO DA CULTI :RA

cralizada. Nem pura, nem impura, a etiqueta sexual passou


a ser vendida e comprada como qualquer outra mercadoria
na sociedade dos que podem consumir. Porém, pergunto, o
que esta sexualidade tem a ver com o 1:1exual psicanalítico?
Não custa lembrar, o sexual em Freud é fundamentalmen te
a afmnação da não-identidade do cu ou do sujeito consigo
mesmo. Ao dizer que o sujeito é sujeit.o do sexual e ao
sexual, Freud quis afirmar que somos uma contingência
dos destinos dos desejos. Este é o sentido de sua sentença:
o ego não é senhor em sua própria casa. O Sl~eito freudia-
no, ao contrário da concepção corrente, não tem nenhuma
essência sexual. A sexualidade é o princípio não-essencial,
a partir do qual descreve-se o Slijeito como uma mera rede
de crenças -e desejos, para falar como Davidson e Rorty. O
sujeito do sexual nada mais é que um lugar onde se entre-
cruzam imagens e enunciados libidinalmente investido2
que dão contornos psíquicos únicos a corpos biológicos.. r;
isto o sujeito. E é desta redeseríção da subjetividade que
podemos extrair certas hipóteses sobre a crueldade e a
solidariedade.
A contingência do sujeito, tese central de Freud, impli-
ca negar qualquer afirmativa sobre sua suposta natureza
universal. Não nos concebemos como humanos ou como
homens porque partilhamos, com nossos semelhantes, uma
propriedade existente fora do tempo e do espaço, em qual-
quer mundo possível. A "essência do sl.ijeito" é uma variá-
vel de seu hábitat, que pode ser uma sociedade tribal; uma
sociedade capitalista avançada ou emperrada; uma socieda-
de burocrático-totalitária enferrujada ou uma sociedade
que pemüta a construção do sonho de um mundo Livre e
democrático. Não somos humanos, diz Freud, porque)
como sujeitos. possuímos todos uma mesma Razão; uma
mesma Alma; uma mesma Mente; uma mesma Consciência
- ou porque somos todos filhotes de uma mesma Lingua-
gem. Estas idéias podem ter-nos ajudado imensamente a
viver melhor, em certos momentos ou situações histólicas,
mas não podem ser garantias transcendentais de que per-
t.encemos com exdusidade a um reino ou dasse lógica de
entidades irredutíveis às circuns tâncias soeioculturais.
Todas elas fizeram ou fazem parte do que Rorty chamou
FRF:Un: ONTI:M, HOJB, A..\1ANlL.\ 14ú

"vo<:abulários fmais". Ou seja, todas pertencem a jogos de


linguagem c formas de vida que, em última instância, recor-
rem a modos circulare.s de justificação, ilust.ratjvos de cren-
ças básicas não ju~iificáveis pela argumentaç:ão. Por conse-
guinte, o inconsciente sexual não ~ mais um disfarce da
idéia de "essência natural ou sobrenatural do sujeito".
Inconsciente não é 'liDla "mente opaca", uma ''consciência
obscura", tampouco uma clar a e Lógica estrutura.
Inconsciente é tessitura; arquitetura móvel, instável, hete-
rogênea, que faz-se e de.sfaz-se na circulação dos desejos e
das imagens, palavras e atos que lhe dão vida.
Part..indo desta constntção, l''reud perguntou por que,
mesmo assim, o sujeito tem de si um sentimento de identi-
dade e singularidade inamovível, salvo em caso de graves
pe1turbações psíquicas. A resposta, todos sabemos, veio da
histólia sexual de cada um. Ma.c; esta ruh1ica genérica enco-
bre, de fato, duas soluções bastante distintas para o proble-
ma. Na primeira, Freud tomou o rumo da universalidade. A
singularidade do sujeito seria um ponto de interseção entre
os eixos da diferença dos sexos e das gerações. Os grandes
temas do Complexo de Édipo e de Totem e tabu, por exem-
plo, dão substrato empírico a esta noção, apresentada de
maneira abstrata. Neste trilho, corre o pensamento psicana-
lítico que se ocupa em descrever quais as lógicas ou estru-
turas que fundam os universais psíquicos. Seguindo esta
mesma·direção, mas em outro sentido, Freud dispensou
por vezes a busca dos universais simbólicos, para amarrar
sua teoria no evolucionismo ou no materialismo vulgar do
século XIX. O fundamento do humano, nesta ótica, era
visto como sendo a irracionalidade, a agressividade instinti-
va, a mentalidade pré-lógica, em suma, o parentesco do
homem com os demais animais. Esta solução é, a meu ver,
a menos interessante e a mais comprometida com o racio-
nalismo cientifieista então dominante.
A segunda solução parece-me mais atraente, porquan-
to mais rica de sugestões pragmát.icac;. O que faz do homem
um homem? Ou, o que confere ao s ujeito a ilusão da identi-
dade consigo mesmo'? Desta perspectiva, Freud respondeu:
o pertencimento a uma dada tradição etnocênt.rica. A
noção-chave, aqui é a da relatividade das id-entificações
1-115 A ÉTICA E O EHP~~LHO DA CULTUHA

nardsicas, e não a da universalidade das estruturas subjeti-


vas. O sl\ieito adere à ilusão da identidade, fazendo da for-
mação imaginária egonarcísica sinônimo de sua "essência".
Esta identidade subjetiva é moldada no interior de um
gmpo, C'l\ia identidade sodocultural tem origem e mantém-
se pelo "narcisismo das pequenas diferenças". A tribo, cole-
tividade ou sodcdade afirma a unicidade de sua feição por
oposição a outras comunidades, e, em função dos mitos de
origem ou dos mitos da superioridade cult.uraJ comparada,
cria a imagem do "nós" face aos "outros" ou a "eles". Ser
homem, pensa .F:reml, antes de ser "igual ou semelhante ao
outro, por possuir tal ou qual prop1iedade em comum", sig-
nifka "ser diferente do outro, por possuir tal ou qual pro-
priedade que o outro não tem''. ~a diferença está a mat.ri%
da identidade. Ela produz a ilusão narcísic:a da superiorida-
de ou irúerioridade cult.ural, pa~teira da tolerância ou inlo-
l~rfulcia, crueldade ou solida1iedade com que o estranho, o
não-fami liar, será tratado. Porque é parte integrante de wn
"nós", o sujeito aprende a ver os "outros" como tendo um
teor de "humanidade a mais ou a menos", e só dilkilmcnte
consegue abrir mão do monopólio de defmições de "huma-
nidade", ao qual julga ter direito, por legítima herança. E,
quando acontece de se achar superior aos outros, em virtu-
de de constelações históricas casuais, aprende a gozar com
a dor e a humilhação ''deles", com a mesma naturalidade
<.:om que se emociona e sofre com suas próprias dores e a
dos seus iguais em "humanidade". O desprezo e a insensibi-
lidade para com o sofrimento alheio nada têm de insensato,
inumano ou irracional A crueldade é humana, símplesmen-
te humana. É uma possibilidade inscrita na contingência do
sujeito ou, o que dá no mesmo, em sua forma de humanizar-
se. O soflimento e a humilhação dos outros podem deixar-
nos indiferentes ou fazer-nos gozar, porque aprendemos a
descrevê-los como sujeitos cujas experiências são incom-
paráveis à<\ nossas, P. n~o porqnP os b.llixos instintos podem
corromper o uso reto da Razão ou a bondade intrínseca de
nossos princípios morais inatos. Esta é a surpreendente
banalidade do mal; a inocente face do horror, um dia diag-
nosticada por Hannah Arendt. Quem oprime e humilha
pode perfeitamente não ver nu soflirncnto do humilhado
motivo para eulpa, remorso, compaixão ou solidariedade.
Cn1el, disseram Shklar e Rorty, é todo aquele que não sabe
ou não pode identificar-se com a dor e a humilhação dos
outros; solidário é o que aprendeu a imaginar-se na posição
de quem sofre, e a descrever a crueldade como a pior coisa
que podemos fazer ao outro.
A crueldade, port,anto, pode vir a tomar-se mna práti-
ca absolutamente corriqueira, dependendo do modo como
aprendemos a descrever os outros e a nós mesmos. No
Brasil da concentração de renda; da dívida externa; da cor-
rupção dos poderosos e do deserédito das leis, o exercício
da crueldade aproxima-se do virtuosismo. A pequena elite
governante e endinheirada, por razões históricas que não
me cornpete analisar, fabricou e exportou para o resto da
sociedade um modelo de definição de "nós" que, agora, em
tempos de crist>, mostra toda sua violênda e atrocidade.
Descre vendo-se corno branca, ocidenta l e civilizada, esta
elite conseguiu aprisionar grande parte do imaginário
socia l na estereotipada ficção dos "dois povos". De um
lado, diz a ficção, está o "povo brasileiro" por ela represen-
tado, que deve ser a cópia caricata do que se imagina ser o
europeu ou o norte-americano; do outro, está o ''outro povo
brasileiro", negro, mestiço, inculto e abastardado, com
quem, por destino ou má sorte, a elite tem que conviver no
mesmo espaço geográfico.
Dadas estas premissas, todo salário mínimo e qualquer
favela já é muito para essa massa informe, feia, suja, estúpi-
da e desdentada de "crioulos", "parrubas" ou "suburbanos".
Ao mesmo tempo, como todo "povo supetior fora do lugar",
reevocando Roberto Schwartz, a regra de conduta básica
desta elite é o alheamento diante da miséria dos "nativos".
O que Hannah Arendt tão bem observou quanto à atitude
da burocracia impe1ialista inglesa na Áf1ica colonial parece
coincidir, em grande medida, com o comp01tamento da
elite brasileira. O que é bom para ela não serve para os
outros. Para que aumentar o salário mínimo de um povo
tecnicamente desqualiticado, sem disciplina de trabalho, e
que, além do mais, gasta todo dinheiro que ganha em bebi-
da, futebol, rádios de pilha, e agora, em aparelhos de som,
signifícat.ivamente apelidados de "paraibão"'? Para que justi-
148
A f.'TICA E O ESPELHO OA CULTU{A

ça, se "eles" utilizam as prerrogativas dos direitos humanos


para assalt.ar n ossa~ casas, nossos filhos, nossas lojas e
nossos automóveis? Para que educação, se são "bWTos" e
"preguiçosos" por natureza? Para que habitação, se são
incapazes de trabalhar para manter a casa limpa e comple-
tamente inaptos para saber o que é ou não confortável?
Para que saúde, enfim, se proliferam aos milhares, entupin~
do nossas ruas de mendigos e crianças abandonadas? Não,
essa gente não é como nós; não ama como nós, não come
como nós, não sofre como nós, nem precisa viver como
vivemos. Sempre foram e serão assim, porque são cria.c;; de
ladrões e degredados portugueses, índios indolentes e
negros escravos. Portanto, como nada pode mudar, resta
fazer deste país o que ele sempre foi , e o que seu nome de
batismo, como pontuou Calligaris, bem indica: um produto
de exploração. ·
Só que o "produto de exploração" esgotou-se ou está
em vias de esgotar-se. Excluindo a solidariedade da prática
descritiva do "n ós", a elite brasileira fez da crueldade um
fato trivial em nosso cotidiano. Pior que isso, fomentou a
idéia do descompromisso e da irresponsabilidade para com
o futuro deste povo, pondo em risco o próprio projeto de
realização da democracia no Basil. De maneira inconse-
qüente, impôs a esta sociedade uma fronteira social e sim-
bólica, cttio corolário é a fantasia absurda de uma "trinchei-
ra de cidadãos inocentes e de primeira classe", sitiados por
hordas de delinqüentes e descamisados. Esta ficção para-
nóica, neste momento, corrói a sociedade, fazendo com que
grande parcela dos grupos sociais só conceba a defesa de
interesses específicos ou a negociação de conflitos, como
uma guerra sem trégua possível. Do corporativismo das
associações profissionais, de patrões ou empregados, até
as gangues de ruas ou corredores atapetados dos centros
de poder, a palavra de ordem é a desconsideração a qual-
quer objetivo social maior. Em vez disso, o que se diz é que,
se ~interesse do povo" é uma sigla vazia; se solidariedade
ou fraternidade são uma invenção burguesa, franciscana,
mantrópica ou, em bom português, de "babacas", tiremos a
máscara e dancemos confom1e a música.
A imagem da "dança à beira do abismo", que Peter
FRF.IJD: ONTI::M. HOJE, AMANHÃ 149

Gay fez de Weimar, não precisa ser importada na ínte_gra


para funcionar como sinal de alerta N~en: sequer ~r~ISa­
mos viajar no tempo c atravessar o ~t.lanuc.o p~a falar do
que importa. A Colômbia serve. O trag1~0 e infeliz exemplo
colombiano mostra o nível de devasta~·ao que u~a s~c~~~a­
de pode atingir quando não mais dispõe, em seu tmagmano,
da idéia de interesse comum ou interesse do povo em geral.
Todo mn patrimônio humano, material e cultural voa em
pedaços nas mãos de bandos criminosos, qu: perderam. o
sentido de compromisso com o povo ou a naçao. Se dese.Ja-
mos a democracia como forma de viver, tal como a defi-
nem, entre outros, Arendt, Castoriadis, Chauí, Lefort e~c. , é
preciso admitir que um princípio qualquer possa servir de
árbitro que garanta o pluralismo de inte:esse~, ~re~ç~ ~m
opiniões, assegurando o direito ao conflito e a diss•~encra, .
mas sem fazer da divel'gência sentenç:a de morte do s1stema
democrático. E, se a democracia recusa prin~ípios ~:histó­
ricos que de fora pretendam encarnar o corpo ou a
' da sociedade,
"substância" ' parece-me que so' wn "nós, povo
brasileiro" pode ocupar este lugar de juiz. N~o v:jo,. no pre-
sente horizonte de possibilidades, que outra mstãnc1a pode-
ria manter a sociedade em equillbrio democrático, a menos
que optemos pela tentação totalitária do .Rei, da_Razã.?, ?~
Estado do Partido ou do Egocrata leforttano. So um nos
ampliado, que se oponha à ficção el_itista. ~o~ "dois, povos",
pode fazer ~a solidariedade barretra ~u.fa ct~~te cont.ra a
crueldade. E isto, penso eu, ou a barbane; e JSto ou uma
outra noite dos generais. .
Pode-se dizer, a esta altura, que ninguém precisa de
Freud para repudiar a injustiça social brasileira. Obvie-
dades deste tipo apenas mostram o p â~üco d31s ~lass es
médias, p er~cguidas pelo fantasma da 1mpot~n ~1a e da
catástrofe. E possível. Ma'> sem Freud talvez _tJves~emos
mais dificuldade em entender como podemos tão facLlmen-
te tomarmo-nos "cúmplices inocentes" da cruelda~e: S~m
Freud talvez fosse mais difícil entender como ~s yl_lvllegJa-
dos deste país convivem com a mais negra_m1scr~a, gu~r­
dando a consciência tranqüila de quem só nao cstã no ceu
por descuido de algum deus distraído, ou osten~do o, ~r
cândido de quem está prest.~s a entrar num VItral. Nao
lõO

penso, como preveniu Sartre certa ve;r., eom respeito à


França, em fazer de "Brasil" nome de neurose em vez de
nome de nação. Penso apenas, já que se trata de rememo-
rar Freud, ern insistir no que ele disse no texto sobre "O
futuro de uma ilusão": "Quando urna civilização não ultra-
passou o estágio em que a satisfação de uma parte de seus
membros tem por condição a opressão dos outros, talvez
da maioria ( ... ), esta ddlização não tem perspectiva alguma
de manter-se de modo durável, e não merece ser mantida."
O baú de Freud, para usar a expressão de Mezan, tem
sempre rnuitas surpresas. Ontem como hoje, acredito, ele
ainda tem muito a nos ensinar. Continuará tendo amanhã?

Folha de S. Paulo, 2319/89


O SEXO MODERNO E A CULTURA
DO SENTIMENTO

Amor e restos huma'rws, de Denys Arcand, e Quatro casa-


mentos e um jun,e'ra.l, de Mike Newell, são filmes interes-
santes. Ambos tratam de um mesmo assunto: as relações
afetivo-sexuais entre indivíduos urbanos. Mas a dist.âncja
entre os dois é enorme. O primeiro descreve o que é; o se-
gundo antecipa ou inventa o que pode ser. Em Amor e res-
tos hv. ma,nos a vida gira em tomo do modemo mito da se-
xualidade. As personagens têm o sexo nos poros e gargan-
tas. Tudo vem do sexo e chega ao sexo. O sexo é o "mana".
Ordena a hierarquia do que se faz, do que se diz, e define
quem é quem na cidade sexual; nns são "heterossexuais",
outros "bissexuais", outros "homossexuais", outros "qual-
quer-coisa-sexuais" etc. A proliferação dos "sexuais" é infi-
nita, pois, como todo mito, o mito da sexualidade está no
princípio e no fim de todas as coisas. Em conseqüência, re-
lações humanas e disputa pelo sexo tornaram-se sinônimos.
Quem domina o sexo domina a si e ao outro. A posse do
"mana" sexual dá ao proprietário o poder de reter ou distri-
buir sexo a quem quer e corno quer. Quanto aos despossuí-
dos, resta a submissão, a infelicidade ou a morte. O univer-
so dos "seres sexuais" é desesperado, cruel, competitivo e
insossamente monotemático. Sem sexo ou fora do sexo,
tudo são "restos humanos".
No filme de Mike Newell ocorre o exato oposto. O
sexo é dessacralizado. Sua nova visibilidade, entretanto,
não é a do mistério que se revela, ofuseando o.o;; mortais.
Tampouco é a do sexo científico, objetivado, de.smembrado
em conceitos e fómmlas, rapidamente postos a serviço da
pornografia ou da publicidade. O sexo em Quatro ca •;a.- 4

m,e-ntos... não é mais fetiche religioso, comercial ou científi-


152 A ÉTICA F: O 1-.:SPI!:LilO DA CCLTl lRA

co. É algo simples sem ser banal; importante sem ser mor-
tal ou vital. É assim como jogos e brincadeirac;. Não pode-
mos pass ar sem eles, mas aprendemos que nada neles deve
ser levado muito a sério. As personagens de Newell fazem
sexo e falam de sexo em tom lúdico, desmontando comica-
mente velhos totens e tabus sexuais. Nwna dada cena, urna
delas narra, com um riso lindo e cândido, como e quando
teve relações sexuais com os 33 homens de sua vida. O
mundo não vem abaixo, e o candidato a namorado, embora
surpreso, não responde em tom de rivalidade narcísica.
Em urna outra cena, urna mulher pergunta à vizinha de
mesa que acabara de conhecer se ela era lésbica, e tem
como resposta: "Fui lésbica na escola, durante 15 minutos!"
Num outro momento uma mulher observa que o irmão mais
jovem do herói é um gato e um outro rapaz replica: "É ... , eu
também sempre achei!"
O sexo faz rir, chorar ou gozar, mas não qualifica nin~
guém de "qualquer-coisa-sexual" nem precipita os indivíduos
no inferno da posse e do controle de ''suas verdades sexuais".
As personagens defmem-se pelos sentimentos, e aqui está a
novidade de Newell. Numa espécie de revolução "à inglesa",
o diretor, sem espem eios, passeatas ou manifestos, leva-nos
a wn romantismo de pés no chão, junto com sujeitos senti~
mentais adoravelmente simpáticos. Faz o que Neil Jordan
procura fazer, mas com vidas e cotidianos ao alcance da
mão. Propõe novos horizontes e frontelras de sentimentalida-
des onde a sexualidade não seja déspota e soberana. Em
Quatro casamentos e um funeral, runguém exibe a identida-
de com a etiqueta "sexual" colada ao nome ou à pessoa.
Todos têm sexo, gostam de sexo, fazem sexo e são sexual-
mente diferentes nas preferências e inclinações, mas runguém
é '"isto-ou-aquilo-sexual". Não por silêncio ou recalque purita-
nos, mas porque o "sexo-rei", na história de Newell, ficou nu.
A mudança é sutil, porém vira de ponta-cabeça nossos
cacoetes mentais. Sexo nada mais é do que aquilo que po-
demos dizer dele. Podemos defmi-lo corno anjo, demônio,
ou mer~ente como um ingrediente agradável de nossa
vida sentimental. Somos "seres sexuais" como podemos ser
"seres sentimentais", mostra Newell. Basta uma leve volta
do parafuso.
O SP.XO MODRRNO E A Ct:J.TURA DO SENT!Mt:NTO
153

No filme de Denys Arcand, por exemplo, as ami~ades


são pactos instrumentais de condenados do sexo. No filme
de Newell, são laços autónomos em suas origens e objeti-
vos. Às vezes são mais fortes e persistentes do que os laços
sexuais. O romantismo amoroso, por seu turno, aposentado
no ftlrne de Arcand corno obsoleto e ridículo, em Newcll
volta a trabalhar.
Mas, desta feita, contra o monopólio das imagens que
tradicionalmente encamparam sua significação. A família
ou a vida familiar não são mais a.'5 concessionárias exclusi-
vas do amor romântico. Todos podem representá-lo, desde
que apostem em sua viabilidade sentin1ent.al.
Por fim, a mmie que aparece em Amor e restos huma-
nos como seqüela de desencontros, frustrações e obsessões
sexuais, em Newell é término e apogeu de vidas amorosa.'5
exemplares. O funeral de um dos amigos mostra o que pode
ser um ritual de adeus na "cultura do sentimento". A despe-
dida, com trechos do poema "1\vo Songs for Heidli Ander-
son", de Auden, comove, emociona e faz ac.:redit.ar nwn
mundo mais delicado, mais bonito e diferente para melhor.
Newell inventa uma nova crença, cujos referentes,
causas e justificações são colhidos no que é visto como ir-
relevante e minoritário. Pinça nas frestas da cultura o que
existe e não é notado ou o que é novo, ma.c:; ouvido como
música antiga. As parcerias amorosas dadas corno exemplo
são fonnadas por pessoas que se amam e não por "hPteros-
sexuais" ou "homossexuais", como costumamos ver em fil-
mes sobre "maiorias" ou "rrúnorias".
Do mesmo modo, o modelo de compromisso senti-
mental é o da promessa feita na encantadora cena do happy
end. Debaixo de chuva, cmnrne ü fall.ail , Andie MacDowell
e Hugh Grant invertem a fórmula canõnica do casamento
religioso, pondo o sexo e a lei sob as asas de novos desejos
e sentimentos. Newell cria uma despretensiosa "utopia do
presente", desfazendo o nó que nos aprisiona ao exa.c;pera-
do mito da sexualidade. Mais do que isso, sua deliciosa his-
tória é protagonizada por gente como nós. O que muda é a
forma preguiçosa e viciada de di:t;er quem somos. Seu olhar
criativo viu scnUmentalidades onde só vemos sexualidades.
Comparada à mesmice sufocante dos "sexos e resto",
154 A ÉT1CA E O ESPELHO DA CL:LTUUA

a fábula de Newell é puro oxigênio em terra poluída. Um


convite aos melhores sentimentos; um doce sopro no cora-
ção. A democracia dos sentimentos, ele nos convence, é
bem mais suave do que a tirania dos sexos. Por que não ex-
perimentá-la fora das telas'?

Folha de S. Paulo, 31nl94


O OCASO DA FAMíLIA

Chrtstopher Lasch é um historiador americano, autor de A


cultura do narcisismo e de O m·ínimo eu, ambos já edita-
dos no Brasil. Refúgio num mundo sem coTação, que data
de 1977, é anterior a estes dois livros. Nele, o autor analisa
o declúlio da autoridade familiar, terna que será retomado
nos estudos posteriores. Para Lasch, vivemos na era da de-
cadência da autoridade e dos ideais. A degradação da auto-
ridade familiar é, ao mesmo tempo, efeito e instrwnento
deste ethos. A racionalização e a burocratização da socieda-
de, no capitalismo moderno, procuram continuamente con-
verter os indivíduos e-m consumidores e, para tanto, pro-
moveranl a "socialização da reprodução" ou "proletarização
da paternidade". Isto é, assim como no capitalismo dos pri-
mórdios os produtores foram expropriados do saber sobre
a fabricação dos produtos, os pais de hoje estão sendo ex-
propriados da competência para educar os fill\OS, em favor
do saber dos técnicos em relações hmnanas e saúde men-
tal.
Mas, pode-se perguntar, por que a fanu1ía? Porque, res-
ponde Lasch, a família é um dos últimos guardiões do pas-
sado. Na socialização tradicional, cujo centro era a família,
a educação da infância centi·ava-se no respeito à autoridade
paterna e aos ideais do bem comum. As crianças desde
cedo aprendiam a desejar tudo aquilo que o adulto deveria
cultivar como virtudes, ou seja, compromisso com o lraba-
lho, austeridade no..c; costumes, preocupação com as futura.c;
gerações e sentido de obediência às leis válidas para todos.
Diante da dureza e da frieza do mundo do trabalho r
do capital, a fanu1ia servia de abrigo para o mundo dos va-
lores, de refúgio num mundo sem compaixão. Em seu inte-
1~6 A ~~TICA F. O ESPELHO DA CULTt: Ri\

rior, tradição c autoridade impunham-se por si mesmas, em-


bora à custa dos inevitáveis eonfiitos e culpas "Vindos da re-
lação do indivíduo com o superego pat.emo, representante
destes ideais. Ora, esta família e este individuo tornaram-se
obsoletos diante da moral do consumo, alavanca do capita-
lismo atual. Por isso, a fanúlia começou a ser acusada de
produzir adultos neuróticos, que assim se tomavam porque
foram, na infância, educados não pelo que emrn mas con-
fm·me o que deveriam ser.
Acontece, diz Lasch, que este pretenso respeito à es-
pontaneidade infantil nada mais é que a inculcação dos há-
bitos que formam o perfil psicológic:o do futw-o consumi-
dor. A criança, na sociedade permissiva, aprende a ver toda
autoridade, toda tradição e toda renúncia à satisfação ime-
diata dos desejos como sinal de autoritarismo e repressão.
Resultado: em vez de personalidades neuróticas, criam-se
personalidades nru·císicas; em vez de corúlitos e culpas
frente à autoridade, ansiedade e insatisfação crônicas, mo-
tores da voracidade consumista. Esta é a lei do mereado,
posta no lugar da lei de Deus ou da lei da Pólis. Hipnotizada
pelo consumo, a "massa" de sujeitos só se deixa mobilizar
pelo que reverte de imediato em hem-estar físico, mental ou
sexual, fazendo da "sensibilidade terapêutica" substituto da
sensibilidade política.
Criticando a cultw-a terapêutica e consumista, Lasch
leva de roldão toda a chamada contracultura americana dos
anos 60-70, incluindo aí o movimento feminista, o movimen-
to gay, o culto à droga, os m9dos de vida alternativos ete. A
seu ver, todos tinham em comum o mesmo ataque ideológi-
co à fanulía, o mesmo desprezo pela esfera pública e a
mesma apatia silenciosa diante das grandes questões cívi-
cé:IS, como a luta contra as desigualdades econômicas e as
injustiças sociais.
As teses de Lasch, quando publicadas nos Estados
Unidos, causaram um grandejrisson. A direita aplaudiu seu
apelo à ordem, mas só não sabia o que o "inocente" merca-
do tinha a ver com tudo aquilo; a esquerda tachou-o de mar-
xista tipo "capa-preta", moralista e conservador. À distân-
cia, de fato, vê~se que Lasch tropeça aqui e ali, pela pressa
em generalizar fatos sociais circunscritos e pela desenvol-
O OCASO DA FAMÍLIA lfii

t.ura eom que combinou hist.ória com psicanálise. Entre nós,


por exemplo, Octávio de Som~a mostrou C?I~o a idéja da
cultw-a narcísica, em La-:;h, enfraquece e d1lm a noçao de
narcisismo em Freud.
Mas estas pequenas e médias transgressões teórieas,
que aliás fazem parte do "gênero intelectual" na tradição
americana, não lhe retiram o mérito de ter trazido à tona a
importantíssima questão da erise de autoridade e do des-
crédito dos ideais no Oeidcnte.
Ao que entendo, a fragilidade de Lasch não está no fa·
to de recorrer à autoridade e à tradição para denunciar a fa-
lácia da liberdade narcísica de consunúr; está em achar que
pode fundar deei..c;;ões ou pr~ferênci~ ~tí_cas com ~ase em
critérios racionais, universrus e apnonshcos. Expheo me-
lhor. Laseh, quando critica a cultw-a narcísi~a~ da sobre~­
vência, apóia-se, sem dúvida alguma, na t.radiçao democra-
tica e individualista que é a sua. Mas, ou por medo de ser
visto como muito liberal e pouco socialista; ou para não ser
olhado com desdém pela academia, ou, enfim, por não
poder aceitar totalmente a contingência hlstórica ~os, i~eais
morais, como Freud, "esquece" a fonte de seus pnn~aptos e
fala da história como se estivesse fora dela. Aluga o mcons-
eiente freudiano c a versão que dá da luta de classes mar-
xista para, de lá, dizer o que não ia bem no passado e o que
vai mal no presente.
Não dá outra. Na hora de propor o que deve ser, Lasch
emudet'.e ou vê-se obrigado a dizer, nas entrelinhas, algo
mais ou menos assim: no mundo de Elia Kazan as coisas
eram ruins, mas no de David Lynch são muito piores; o jeito
então é voltar ao ealvinismo de Vidas arnarga,ç e Clarnor do
sexo. O caso da auto-realização mostra hem este equívoco.
Lasch vê na idéia da auto-realização mais um sintoma
da obsessão narcísica pelo próprio umbigo. Mas, pergunto,
em que e por que a preocupação com o bem-estar fLSico ou
mental faria Marx perder o sono ou Freud reescrever sua
teoria dos sonhos? Por que querer viver melhor, seja lutan-
do contra o preconeeito sexual seja pratic:ando_io~a, p~ica­
nálísc, alimentação natural ou meditação zen significa ·tpso
fact.o ajudar a demolir a autoridade patcma ou ficar surdo
diante das irüustiça'> sociais?
A l:~T!C A E O ESPELHO DA CTLTl"l{A

Las<:h joga fora a água suja com o bebê dentro. Uma


coisa, diria, é a lei do mercado que, por exemplo, faz-nos
engolir docemente a idéia de que direito de comprador é si-
nônimo de Código do co-n.<;?lm-i.dol; eomo se o ato de com-
prar resumisse a "essênda" do individuo; outra coisa é des-
qualificar os esforços feitos pelos indivíduos para viverem
melhor, em nome de uma abstração subjetiva conceitual
que ninguém sabe e ninguém viu. Se, em vez de falar do
Olimpo, Lasch dL~c;;esse que, em nome da tradição democrá-
tica ocidental que é a sua e de milhões de outros Sl~eitos, é
moralmente odioso querer reduzir famüia ao conjunto de
bípedes aparvalhados que assistem juntos à televisão; adul-
to a wmbi de shopping centers; pai a suplente de caixa re-
gistradora; rn<i.e a "orelhão" para desaforo e grosseria de
adolescente; criança a cabide de artigos da moda etc., e
tudo isso para multiplicar lucros, pois bem, assumindo ex-
plicitamente esta tradição, talvez Lasch pudesse conciliar o
velho e o novo, sem prejuízo das virtudes públicas e sem
parecer vestal da ética protestante e do espírito do capita-
lismo. Esta foi uma hesitação infeliz num livro de rara cora-
gem intelectual e de imensa relevância para nossos tempos.
.Torru1l do BrtMil, 617191
MURILO SALLES
E A ÉTICA DO ALHEAMENTO

O que dirão os críticos, não sei. Para um leigo, como eu, a


.Faca de do·is gumes, de Murilo Salles, é certamente um dos
mais interessantes produtos do recente cinema brasileiro.
O filme, livremente baseado num conto de Fernando Sabi-
no, narra wna história com os ingredientes comuns ao gê-
nero policial: ciúme, crime, culpa e castigo. As primeiras
imagens evocam A hora e a vez de Augusto Matraga e pre-
vinem o espectador de que um acerto de contas está por vir.
A seguir, tudo corre em ritmo de suspense. Mas longe do es-
tilo whodunot, como chamava pejorativamente Hitchcock,
desde o irúcio sabemos quem é o culpado. A surpresa está
nas razões da culpa. Personagens e público esperam a reso-
lução de um crime, quando o que está em causa é um outro
crime. Na expectativa do desfecho, a tensão cresce, e, no
final, quando tudo se desvenda, entendemos que a faca não
tem dois, tem muitos gumes.
Até aí, pode-se pensar, nada além de um thriller, como
tantos outros: tempo da narrativa adequado; enredo plausí-
vel e solução convincente. Falsa impressão. Como no ro-
mance noir ou nos romances de Chandler ou Hanunett, al-
guma coisa transborda a intriga e fala do mundo social e
humano em que se movem mocinhos e bandidos. Já se
disse que o mérito da literatura e do cinema policiais feitos
nos Estados Unidos nos anos 30 e 40 foi mostrar o avesso
do sonho americano. Detetives e criminosos, perseguindo
uns aos outros, acabam revolvendo e trazendo à tona a sor-
didez subjacente à riqueza das nações e dos donos do
poder. Grand monde e bas fond, unidos, montaram uma so-
ciedade inabalável no culto ao dinheiro e na exploração
inescrupulosa das fraquezas humanas. A contraface da de-
lGO A f::TICA E O F.SPF,LHO DA Cl'l.Tl.JRA

mocrada institucional, mostrava a fic(ão, era o medo, a in-


segurança, o arrivismo, a hipocrisia c a canalhicc dos con-
veitidos ao mit.o do mnerican way of l{{e.
Na .Faca de dois gumes, ao contrário do sonho, fala-se
do pesadelo: da galhofa geral bra..'lileira. Além do fuso horá-
rio, outra..'i pequenas coisas distinguem as duas situações.
Uma é fundamental. Lá se esbarúava dinheiro; aqui, falta
muito. Por isso as disputas são talvez mais ferozes, c o que
sobra dela..<>, mais feio. Ninguém pode permanecer indife-
rente ao que se passa neste país, adverte Murilo Salles. E,
tendo ou não consciêneia dil:lt.o, cedo ou tarde paga-l:lc o
preço. Este é o dran1a dos personagens. Alheios ao que
acontece ao redor, Paulo José e Marieta Severo - sober-
bos! - perguntam, numa certa cena: por que nós? Nós que
fomos educados na Suíça! Nós que aprendemos tudo que
era converúente saber e tudo o que convinha ignorar! Por
que agora, parecem dizer, esta terra e esta gente pedem-nos
o que não podemos dar? Implacável, Murilo Salles manda
que olhem em volta. E, como um clínko diagnosticando a
doença, aponta para o principal sintoma: a ligação do pai
com o filho.
Com sensibilidade, a câmara vasculha pai e filho, pelo
interior, perguntando: o que não deu certo? Por que em vez
de s e an1arem eles sempre foram tão infelizes? O que é ser
pai e o que é ser filho naquela exata circunstância social'? O
pai, complacente na autocomiseração, vive para o tédio
blasé dos que se habituaram a ter tudo sem perguntar por
quê. Bastam-lhe o pequeno sofrimento de hoje, o ciúme de
amanhã e o gozo Me et nunc. O resto é resto. Com dinheiro
no bolso e sobrenome famoso, tudo o mais vem por acrés-
cimo. Quando o filho pede reconhecimento, responde com
o olhar vago de quem não sabe se, de tato, é o destjnatário
do pedido. Quando o filho insiste na demanda de amor,
ameaçando-o de trocar de time, reage com a apatia de
quem nada tem a defender. Nem mesmo a suposta paixão
pelo Botafogo contra o arquiinimigo Flan1engo. Quando,
por fim, dá-se conta de que o mundo em tomo ruiu, ainda
assim é incapaz de reconhecer no filho um filho. Aproxi-
ma-se dele, mas para suborná-lo; para fazê-lo cúmplice de
uma culpa que é sua, c não para restituir-lhe o amor negado.
M lJRfLO SALLF.S E A ÉTICA DO AlliEAMENTO lfll

Do desencontro do mau encontro nasce a tragédia. Em


Nunca fomos t.ã.o felizes foi preciso que o pai morresse
para que o filho pudesse dizer "este é o meu pai". Agora, é
preciso que o filho aceite o pacto de culpa em troca da ilu-
são do acesso ao pai. Tudo é preferível ao alhean1ento pa-
terno. A violência que se segue seria excessiva se não mcta-
forizasse o subsolo social brasileiro e o sacrifício como
prova de amor. As cenas truculentas dizem que o alheamen-
to é o grande crime; a mais dura das impiedades. É uma
faca de dois gumes, que não poupa os indiferentes nem as
vítimas de suas inconseqüências.
Vivendo parasitariamente da corrupç.ão e da inju~iiça,
os personagens centrais do filme são perfeitos inocentes
inúteis, para parafrasear um jargão da direita política dos
anos 60. Belos em modas c aparências, existem para enfei-
tar as fachadas de um mundo sujo. Sem tempo para amar
ou para pensar, fazem da vida wn desfile de modas, na
crença tola de que o mal é sempre destino dos outros, dos
que não são de chez nous. Até que a miséria invade a sala
de jantar. Neste instante, como os Finzi Contini, perguntam:
por que nós? E espantam-se com as respostas cínicas de
seus pares.
No trecho do filme em que a trama se esclarece, cinis-
mo e incredulidade confrontam-se num diálogo empolgan-
te. Mas como?, diz o corrupto. Então você não sabia? Não
acredito! Na tela é só isso: ou pouco mais que isso. Na ca-
deira, o eco da conversa prossegue: então você não sabia
de onde vem seu dinheiro e seu bem-estar? Não lhe ensina-
ram que abaixo do equador não existe pecado? Pois bem,
aprenda: entre nós não se morre por amor. Vive-se e mata-
se por dinheiro e ppder. Se desconhecia a regra, por que
sentou-se à mesa? Ao mau jogador, as contas do jogo!
O inocente inútil compreendeu, tarde demais, a estupi-
dez da vida vivida e a crueldade da inocência. Reservaram-
lhe o papel de fantoche, sem direito a voz e sentimentos
próprios. Por comodidade, ele aceitou. Só que, na hora H,
quem puxa os fios di~ como, onde e quando quer ser obede-
'cido. O que aconteceu não tinha conserto. O crime era sem
perdão, porque quem poderia perdoar não tinha como estar
presente ao julgamento. Restava asstmlir a culpa e repre-
162 A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTIJRA

sentar a farsa do crime punido, destinada a reabilitar a lei,


quando a lei já não mais importava. No universo da desfaça-
tez, as vítimas têm carteira de identidade, mas o crime não
se paga com a prisão de wn e sim com a responsabilidade
de todos. Coisas que muitos teimam em não entender.
Faca de dois gumes é um filme dos tempos presentes
para os homens presentes, como diria Drummond. Dele
pode-se dizer tudo, salvo que pecou por alliearnento.
.Jornal do Brasil
A CRENÇA COMO EXPERIMENTO

Um judeu sern Deus, de Peter Gay, traz a marca registrada


de seu autor: concisão, erudição, solbriedade e elegância de
estilo. O livro reproduz as conferências feitas em 1986, no
Jewish Institute of Religion de Ohio. Na introdução, Gay
põe em paralelo as idéias de Freud e as de William James,
um dos pais da filosofia pragmática americana. A seguir,
em três capítulos, aborda a discussão de Freud com o pas-
tor e psicanalista Oskar Pfister; a oposição da psicanálise
ao pensamento católico francês e, por fim, a questão da
irredutibilidade da teoria freudiana em relação à religião e
à tradição judaicas.
A tese central é simples e direta: a psicanálise é anti-
religiosa e em boa parte um produto do anticlericalismo de
seu criador. Sem esta postura intransigente, comum às eli-
tes cultas do século XIX, Freud provavelmente teria diluído
sua doutrina na massa das psicologias românticas e espiii-
tualístas do jin-de-síecle europeu. Como Darwin, a quem
costumava comparar-se, ele repelia o senso comum religio-
so de seu tempo, e até na hora de '"exaltar sua capacidade
de resistir à maioria compacta" elegeu um herói não-religi~
so e não-judeu como símbolo da resistência: o médico "ini-
migo do povo", de Ibsen (p.l35).
Gay, quando mostra a anti-religiosidade de Freud, no
debate com teólogos protestantes, católicos e judeus, é
convincente. Entretanto, quando tenta desvincular a psica-
nálise da tradição cultural judaica, as coisas se complic.am.
Tradição cultural é uma noção ctüa extensão é difícil de
precisar. Se admitimos, por exemplo, que a tradição cultu-
ral inclui o papel intelectual dos judeus nos séculos XVIII e
164 A ÉTICA E O ESPEUIO DA et:LTIJRA

XIX, sobretudo na Europa central, e a transmissão incons-


ciente ou não~onscientemente explicitada dos mitos e len-
das que formam uma cultura, então o argumento de Gay
perde muito de sua consistência e poder de persuasão.
Deste ângulo, suas teses seriam seguramente contestadas
por autores como Hrumah Arendt e Renato Mezan.
De qualquer forma, o livro vai além do objetivo visado
pelo autor. Aproximando William James de Freud, Gay
revela uma dimensão da psicanálise certamente inédita
para muitos leitores brasileiros interessados no assunto.
No Brasil estamos pouco habituados a levar a sério o prag-
matismo. O termo, ora assimilado ao utilitarismo, ora gros-
seiramente manipulado por cúúcos e oportunistas de toda
ordem, acabou, talvez. por isso, sendo expurgado das dis-
cussões sobre psicanálise. Pondo Jarnes ombro a ombro
com Freud, Gay ajuda a desfazer este equívoco ou desco-
nhecimento. Estes pensadores, mostra ele, foram grandes
críticos do racionalismo triunfalista do século passado,
embora cada um a seu modo. Freud, para analisar o não-
racional no humano, recorreu aos instrumentos e à imagem
da ciência patrocinados pelo positivismo; James, ao contrá-
rio, escolheu justamente esta ciência como alvo do ataque
de sua psicologia espiritualista. Teria, assim, tomado o cami-
nho inverso ao de Freud, não obstante perseguir tins seme-
lhantes.
É pena que, neste estudo, Gay tenha se limitado a pon-
tuar o cientificismo de Freud e a religiosidade de James,
sem enfati7..ar o suficiente que estas foram as facetas menos
interessantes do pensamento dos dois. É verdade, Freud
pensou inúmeras vezes como um positivista, e James, em
seu espiritualismo, derivou muitas vezes para o irraciona-
lismo. Nem por isso o primeiro deixou de ser psicanalista e
o segundo, pragmático. Isto quer dizer que, malgrado a
diversidade de convicções sobre as causas e os efeitos cul-
turais da religião, ambos concordavam em vê-la como
manifestação do desamparo humano diante do indizível e
incognoscívcl. Freud, no entanto, acreditava que a ciência
ou a psicanálise poderiam liberar o stúeito desta "ilusão".
E, se isto não ocorria, era porque os crentes, como os neu-
A CRENÇA COMO EXPERIMENTO 165

róticos, re<.:usavam-se inconscientemente a abrir mão do


consolo que lhes sedava a consciência, mesmo que isso
implicasse a alienação do verdadeiro desejo. Ou seja, o
positivista, em matéria de religião, ganhava disparado do
psicanalista. Como psicanalista, Freud sabia que toda vida
cultural ou psíquica reque r mitos de origem ou fundação;
como cientificista, ouvia seus preconceitos e só admitia
conviver com mitos científicos ou artísticos, depreciando
os religiosos.
James, neste sentido mais ousado, extraiu de suas
hipóteses conseqüências mais radicais. A religião, pensava
ele, era de fato uma cren<,: a racionalmente infundada Mas
submeter a legitimidade da..c:; crenças ao critério da evidên-
cia suficiente, como queria o positivista Clifford, parecia-
lhe algo excessivo e injustificado. Mais do que isso, defen-
der tal pretensão significava esquecer que o "rastro da ser-
pente humana" - sua célebre metáfora - está em tudo
que o homem diz ou faz. Aliás, dizia .Jarnes, a crença na ver-
dade da ciência, ela própria, confim1ava a banalidade desta
exigência. Crer que a ciência é a portadora da Verdade é
antes de tudo "uma apaixonada afumação do desejo".
Aqsim, quando escreveu A vontade de crer, disse certa vez
a Bradley, outro filósofo, que o livro deveria intitular-se
"Direito de crer". Para James, não se podiam dissociar con-
dições de produção de verdade de condições de aceitação
da verdade. O "sentimento de racionalidade" de uma cren-
ça, para empregar seu vocabulá.Iio, não era, portanto, ape-
nas o resultado de cof\jeturas, provas e refutações, mas
também uma questão de familiaridade com pressupostos,
argumentos e intuições. Crenças, por conseguinte, eram
somente regras para a ação, e verdade,· um cumprimento
que fazemos às idéias que nos são úteis. O que não é o
mesmo que dizer: os homens agem sempre em função de
seus melhores interesses ou razões.
Em suma, aceitando que a crença baseia-se na espe-
rança de "banir as incertezas do futuro", James, como
Freud, viu na religião uma invenção humana eticamente
motivada. Porém, diferente de Freud, virou de ponta-cabe-
ça a hlerarquia das verdades positivistas, pondo no topo o
irracionalismo de sua psicologia. Neste momento, foi traído
166 A ÉTICA E O ESPELHO UA CULTURA

pelo desejo que não soubera reconhecer e que a "tristeza"


da psicanálise poderia ~udar-lhe a analisar. James esque-
ceu ou recalcou o que Holmes, um de seus predecessores,
havia dito, e que pode ser tido como wn dos princípios do
pragmatismo moral: na vida como nas crenç..as, a lei nã.o é
a lógica, é o experimmto. Freud achava que a humanidade
havia eÃ'Perirnentado a religião e não dera certo; propôs,
e ntão, a experiência da psicanálise. Se fosse vivo, por tudo
o que vemos e sabemos, talvez tivesse mudado de opinião.
Hoje, talvez dissesse prosaicamente, como o poeta, que W\S
gostam do azul e outros do amarelo. Sendo assim, por que
não experimentar'? Por que não desejar que mil flores flo-
resçam?
Resta agradecer a Gay a chance de mostrar que há
mais coisas na psicanálise do que sonha a vã filosofia de
alguns de seus praticantes.

Jornal dll Brasil, 2212192


UM NOME PRÓPRIO DA PAIXÃO

Sobre Drácula quase tudo foi dito. Entretanto, a força do


cinema, por meio de Goppola, trouxe de volta à discussão ·a
inquietante estranheza da personagem de Bram Stoker. O
"não-Morto", na ~xpressão do autor, retoma, e leva-nos,
wna vez mais, a produzir disclrrsos sobre a insensatez. O
que nesta figura de linguagem tanto fascina? O que nela
empolga nosso imaginário, fazendo-nos comentar o que foi
mil vezes comentado?
À primeira vista., Drácula é apenas uma versão ficcio-
nal dos manuais de edificação moral do século XIX. Enredo
e personagens, como nwn catecismo leigo, dispõem-se em
colunas claras, ilustrativas da boa e da má vida De um
lado, o demoníaco, "nosferatu", a verdadeira encarnação da
razão perdida na irracionalidade do Mal; de outro, a mole
gentileza do ethos burguês, feita dos amores e anseios dos
pequenos comerciantes de lã. A imagem mesma da felicida-
de vitoriana Do Bem ao alcance de todos, sem dores ou
contorções do espírito. O Bem triunfa. MUIÚdo de hóstias,
crucifixos dourados, c oroas de flores, alho, estacas de
madeira, balas abençoadas etc., o caçador de vampiros
decepa a cabeça da besta e dilacera-lhe o coração. Drácula
desaparece. É a vitória da ciência, do método, da modera-
ção do saber que, passo a passo, analisa as fraquezas do
monstro e destrói a peiVersão da vontade.
Nada, portanto, que escape à súmula prescritiva da
norma moral burguesa. A morte do vampiro é o desfecho
esperado na luta da temperança puritana contra o êxtase, a
dissipação malsã A subjetividade oitocentista, mostrou
Figueiredo,' deve ser individualista e libe ral, mas comedida.
t68 A ÉTICA E O ESPF.J.HO DA CEJ.TIJRA

Pode, se quiser, cultivar o romantismo das proftmdezas da


alma, contanto que se submeta às disciplinas formadoras
dos corpos, sexos e afetos dos cidadãos exemplares.
Drácula é um capítulo da teia discursiva que manteve a
consciência burguesa longe dos excessos da velha ordem
social, representada na nobreza do conde Drácula Mas não
há como falar da virtude sem falar do pecado. No final da
novela, os compostos heróis e heroínas tenninam casados
e felizes. Antes, porém, descem aos infernos, mostnmdo o
macabro do sexo, da loucura e da morte. O "Eros de casaca
preta", como disse Peter Gay,Z irrompe no vocabulário da
"paixão tema" e deixa-nos cara a cara com a pulsão de
morte.
Drácula fascina porque é paixão totalmente selvagem.
Porque é a volúpia que a ética amorosa obriga-nos a recal-
car. "Você jamais amou", diz, a certa altura, uma das "não-
Mortas" ao conde. Ao que ele responde, debruçado sobre o
rosto de sua presa, o agente imobiliário Harker: "Eu tam-
bém sou capaz de amar... quando não mais precisar dele,
vocês podem beijá-lo à vontade." Duas fonnas de paixão
disputam o sttieito. Na primeira, a paixão amorosa, o dese-
jo detém-se nos limites do discurso. Melhor dito, faz dele
sua matéria. Amar é saber usar a palavra amor. E, como
para haver amor tem que haver vida, amor e vida são
modos de dizer Que a morte é o fim da possibilidade de
amar. A segunda é a paixão de Drácula Paixão que está
fora da linguagem e, por isso, não distingue entre vivos e
mortos. Nela, a vida deixa de ser a rede de metáforas cons-
titutivas de nossos sonhos e desejos para tomar-se real.
Para correr, de boca em boca, sem desperdício, na espessu-
ra do sangue sugado.
"O sangue é a vida", dizia o louco Renfield, possuído
pelo vanlpiro. Donde a estranheza do desejo do conde. O
alvo de sua paixão é a vida, reduzida ao objeto sangue.
Drácula é um nome próprio cujo referente é a paixão indi-
ferente à vida e ao desejo do outro. Ele é o desejo total de
um outro reduzido à parcialidade do objeto da excitação.
Assim, no amor vampiresco, não existe sedução. Não exis-
tem acenos, olhares, gestos ou persuasão do ser amado; há
posse imediata do objeto do gozo, no transe hipnótico da
l IM NOME PRÚPRlO DA PAIXÃO 169

vítima. Em vez da ética, o ato despido do comentário. Em


vez do pedido de amor, paixão sem fantasia; pulsão sem
legenda que elimina da cena an1orosa os riscos do desen-
canto, do desencontro, enfim, de tudo aquilo que faz do
amor amor.
Mas, porque desconhece a ética do amor, o van1piro
não é um stijeito. Não projeta sombras ou imagens no espe-
lho. Drácula é o relé de um fluxo passional insaciável, que
só a linguagem da vida e do amor poderia estancar, pois só
a part.ir dela é possível enunciar: porque amo, não mato
quem desejo. O vampiro é a imagem da violência do desejo
que encontra seu objeto e a promessa sombria de um amor
seguro, sem equívocos e sem a aposta da recusa.
No amor dos vivos, ao contrário, o outro, porque fala c
é chamado a consentir, pode mentir, dizer não e perder-se
na ausência e no esquecimento. Este amor quer sempre que
o outro diga "sim", mesmo quando isto é impossível e a dor
da falta soa corno um eco inútil: "Fica sempre comigo ...
assume qualquer forma, pouco importa... torna-me louco
mas não me deixes neste abismo onde não posso encon-
trar-te."~j A paixão amorosa de Heathclüf por Catherine, o
amour fou, mesmo na morte ainda é desejo que o outro
deseje; incerteza final quanto ao amor da amada; súplica
feita linguagem. No amor de Drácula, não e.xistem dúvidas
ou perguntas, porque o outro não quer. O outro é somente
aquilo que se devora, em quem não se pode arnar.a
Nas hrecllas do ingênuo playdoyer pela moral burgue-
sa, Stoker deixa passar o elogio freudiano da ótica amoro-
sa Nem paixão tema, nem paixão nua, diz Freud. Aprender
a amar é sobretudo o exercício de fazer a paixão falar. Só
ac;;sim ela pode ir e vir, no eterno retorno de sua fixação a
um objeto, sem jamais apresentar-se como desejo do
mesmo. Na eloqüência amorosa, o obscuro objeto da pai-
xão desaparece sob as espécies do amor único e inaugural
para quem ama. Os sonhos do amor não envelhecem. Não
porque, como no corpo passional do vampiro, neguem o
tempo e a morte, mas porque, pelo milagre da linguagem,
sempre podem ser ditos de outra forma e sempre outia vez.
A pahão muda, em vez disso, é idêntica, estática e coagula-
da como a vida condensada em sangue.
170 A ~;TJCA E O ESr'ELHO DA CULTURA

Na paixão de Drácula jaz a cruel inocência do desejo,


presente em todo amor. Donde, talvez, o charme ambíguo,
maligno, do eterno vampiro.

Folha de S. Paulo, 27/12192

' F1GUE!Rf;no, Luís Cláudio. A inVPIIÇõo do psü·ológico - Quatl-o séculos de


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' 13RONTE, Emily. O ·mo?·m dos 1Hmto.~ uivmtles.
A MORAL QUE OUSA DIZER SEU NOME

Bruec Wilton é um clérigo metodista, diretor do National


Center of Bioethics. Seu livro A hornojobia tem C'u·ra? pre-
tende esclarecer as razões do preconceito contra o homoe-
rotismo à luz da doutrina cristã. O trabalho é intencional-
mente claro c didático. Sem rodeios, o autor diz o que quer
dizer: não existem fundamentos para a moderna intolerân-
cia face aos sujeitos homoeroticamente inclinados nos tex-
tos originais do cristianismo. Na palavra dos primeiros
intérpretes de Jesus Cristo, as referências diretas ao homoe-
rotismo são escassas. E, quando esta prática sexual é expli-
citamente mencionada, a dureza do julgamento a ela dirigi-
da não é maior nem menor que aquela dirigida a pecados
como: injustiça, inveja, calúnia, impiedade, deslealdade,
anogância, insolência, fraude, malícia, perversidade, fari-
saísmo etc.
Wilton admite que a inclusão do homoerotismo na
lista dos vícios é uma posição moral inaceitável, mas enten-
dível, dado o contexto histórico do tempo. Afinal, assim
como se condenavam as relações eróticas entre pessoas do
mesmo sexo biológico, também se condenava a mistura da
carne com o leite ou de tecidos diversos na fabricação de
roupas. Mais difícil, a seu ver, é justificar por que a moral
moderna consegue relativizar o valor de certas proibições
sem conceder ao homoerot.ismo o mesmo tratamento. Com
a ajuda de mgumentos históricos, antropológicos, psicoló-
gicos, médicos, sociológicos etc., Wilton vai sem grandes
esforços ao cerne da questão. Na origem do preconceito
sexual t.•stá uma escolha ética aparentemente legitimada
como "constatação" científica da "infcrioridadt>", da "anor-
malidade", do "desvio" ou de qualquer outra etiqueta p~jo-
172 A i:'flU. E O F.:SPF.LHO OA C'lTI;f\JH.A

rativa aplicada a quem age, pensa, sente ou procede de


modo a contrariar os costumes eróticos da maioiia.
Para um espírito leigo, é possível que esta apresenta-
ção do lhTo desperte suspeitas. Na forma e no conteúdo,
em que estudos de.sta ordem distinguem-se dos caducos
manuais edificantcs, volt<1<los para a conversão de almas
pecadora..~? Wilton está longe de wna tal cruzada salvaeio-
nista. Não se trata de inverter a mão da moralidade ordiná-
ria, passando a ver vício onde se via virtude e vice-versa. A
ética cristã por ele defendida é apenas a ética do amor civi-
lizatório, como a definiu rreud. Do amor posto a serviço
das pulsões de vida, contra a.;; manifestações do gozo com a
morte, a dor ou a humilhação do outro. A détnar·che de seu
pcn~amento simplesmente mostra o que ocultamos cada
ve:~: que falamos em linguagem culta sobre o sexo: não exis-
te conhecimento ou opinião moralmente neutra sobre as
práticas sexuais. A idéia de que podemos conhecer "objeti-
vamente" ou "realmente" o que é a boa ou a má sexualidade
é uma invenção tão datada historicamente qmmlo qualquer
outra. Em matéria de moral sexual, chega-se sempre ao
ponto de onde se partiu. Preconceito ou aceitação da dife-
rença, no domínio da s~xualidade, não são "descobertas"
ou "revelações" de verdades científicas, psicológicas, filo-
sóficas ou outras.
Nenhwna étka é redut.ível a constituintes extra-éticos
ou paraéticos. Os ptincípios de cada moral anunciam seus
iins. Comprometido com a ética cristã do amor ao próximo,
Bruce Wilton mostra, a cristãos e nã<>-cristãos, que moral-
mente errado é ottiar, usar, abusar e cercear a liberdade do
pareeiro na relação amorosa. No mais, em sua.c;; próprias pala-
vra.;;, "se o amor for verdadeiro, a união pode ser sagrada".
Em resumo, o autor é lúcido, quando pensa teorica-
mente, e corajoso, quando opina eticamente. Seu ponto de
vista não é o do interesse de dentes afiados, que exibe a
luva da ciência para esconder a bofetada do preconceito.
Seu compromisso é com a solidruiedade entre os homens,
por isso sua moral não é envergonhada; é uma moral que
ousa dizer seu nome.

Jomal do Bms-il, l3!W3


O BRASIL JÁ MERECE O BRASIL

l'el.a primeira. 1.x~z em s-ua hi.,tória, o Brasil reUmu do


poder um. presi.dente em nome da ética. Muito::; brasilei-
1'0i>, no entanto, não sabem exatamente o que essa exp?·es-
são sign;~fica. O que é a ética, afinal?
É um termo filosófico, que significa uma reflexão sobre o
bem. Costuma-se dizer que o terreno dos valores - ou seja,
daquilo que não são os fatos - divide-se em três domínios.
Um, o lógico, nos diz o que é verdadeiro c falso. Outro, a
estética, o que é belo e feio. A ética é o terceiro - e r efere-
se ao bem e ao mal, ao certo e ao errado.

A ética é uma co·isa abst'rata?


Pelo contrário. Ela está presente na vida da gente das mais
variada-, maneiras. Há uma ética na relação pai e !ílho, por
exemplo; há outra na rE>Jação matido/mulher, governan-
te/governado. Exist.e a noção de bem e de mal em todos
esses campos da vida humana. Hoje, já se fala até em uma
bioética, a ética da vida, que diz respeito àS manipulações
genéticas, em uma ética da natureza ou, prindpahnente em
nosso caso, em uma étka na política.

Essa última di.z mu·ito ·respeito, hoje em dia, a todo~<; nós,


brasüeims. Pergunta-se: sabendo ou não as pessoas P.xa-
tamente o que ela significa., como 1Jai a ética na politica
no Brasi-l?
Vai muito bem, por mais incrível que isso possa parecer...

Como assim?
Eu explico. Nunca, no Brasil, como nesses últimos tempos,
17 1 A ~;riCA l~ fl ~:SPEI.ll ll DA t 'L' LTl I~ A

estivemos tão entregut>s ao valf'-tudo. Nossos govf'rnantes


estavam agindo com a de~e nvo ltu ra de gâ.ngstercs. O povo,
por sua vez, abandonado pelo E..o;;t.ado à sua própria sorte,
acossado pela misé-ria c absolutamente descrente rlf' qual-
quer soluç·ão de caráter coletivo, tmtava, antes de mais
nada, de defender a si mesmo. Estávan1os ,,i vendo na base
do cada um por si e De us contra todos. A roubalheira tor-
nava-se uma rotina imptme entre as classes politicas e,
entre os cidadãos, a delinqüência no dia-a-dia virou uma
estratégia de sobrevivência. Já não encarávamos o próximo
como uma pessoa potencialmente solidária. mas sim como
alguém que, a qualquer momento, poderia n~s atacar.

Está mnws ass-im tão 1nal'?


Talvez até pior. Nas últimas décadas, os ideais democráti-
cos andavam totalmente desacreditados no Brasil. O cresci-
rnento da miséria nos tornou muito menos sensíveis à des-
truição da vida. Criamos wna colll'aça e acostumamo-nos a
olhar com frieza as pessoas na rua- velhos, crianças - ,
irrecorrivelmente condenados à morte ou à mais absoluta
miséria. Nossa idéia de solidariedade com o sofrimento do
outro se banalizou. Como ninguém individualmente tem
capacidade para absorver tanto sofrimento, passamos a
negar essa realidade sombria O sofrimento estrcssa - e a
tendência de todos nós, quando nossa capacidade de supor-
tá-lo atinge o limite, é sempre dizer: "Isso não é comigo."

Como, então, e.rplica-r que tanta gente tenJw se ·rnan:ifesia~


do a favor da. deposição de urn presidente corrupto? .
Aí é que está a grande magia de nosso momento político.
Depois de tanto tempo de selvageria e indiferença para
com a dor alheia, e de absoluto descrédito nas instituições
democrática<;, começa a haver outra vez o respeito por um
símbolo de identidade que pode unificar novan1ente todos
os cidadãos. O impeachment de Collor tem esse enorme
valor - o de trazer de volta para o povo a esperru1ça de ser
tratado como gente por seus governantes. O mais notável,
porém, é que esse debate ético, que eletrizou o país, tenha
na..':icido num ambiente tão adverso, em que as estratégíaq
O BRASIL .JÁ MERECI<~ O BRASIL 175

de sobrevivência pura e simples sufocavam qualquer busca


coletiva de soluções. Pois bem: quando se achava que tudo
estava pronto para que o Brasil se transformasse de vez em
um covil de ladrões, para que vi rássemos uma sociedade de
bandidos organizados, a exemplo do que ocorreu em países
corno a Colômbia e o Panamá, as pessoas foram par-.1 as
ruas exigir algo que, em princípio, nem sequer sabiam com
exatidão o que signifieava: ética na política Ma., repito o
que era - e por um tempo ainda será - o maior risco para
o Brasil: o de virarmos uma sociedade de bandidos, criada
a partir de grupos de delinqüentes organizados que assal-
tam o Estado conforme seus interesses privados.

Como o brasileiro, que sempre se gabou de ser um povo


cordial, pôde chegar a esse ponto?
Esse desajuste é algo que nos acompanha ao longo da his-
tória Nas sociedades democráticas, a política atinge seu
sentido mais nobre quando o político encara o outro como
alguém cujo olhar e julgamento ele teme. O prêlTÚo para um
homem público é a glória e o reconhecimento. É ele saber
que não desapareeerá quando sua vida terminar. Essa, diga-
mos, aspiração à imortalidade é legítima, pois os s eres
humanos devem deixar marcas de sua passagem pela vida
para não se confundir com a natureza E a maneira de se
deixar marcas num sistema democrático é figurar entre
aqueles que mais lutaram pe lo bem comum. Em uma demo-
cracia verdadeira, isso é automático. Todas as pessoas que
cultuamos, os chamados heróis, são figuras que sempre
caminharam politicamente nessa direção. Não é à toa que,
na Grécia antiga, heróis eram justamente "aqueles que
saíam", que deixavam o universo do privado, para ir à ágora
(praça) discutir os problemas públicos. O universo do pri-
vado, por sua vez, referia-se exatamente àquelas pessoas
privadas de direitos - mulheres, criança.-;, escravos e
estrangeiros -, seres que não tinham qualquer influência
nos rumos da comunidade.

E como fica essa questão na realidade brasileira?


Na cultlll'a brasileira nunca houve esse respeito pelo públi-
1713 A É.TICA F. O BSPELHO UA Clii;J'l IRA

co. Por duas razõeB. A primeira é que a elite política brasi-


leira sempre foi voltada pam o estrangeiro. Portanto, aque-
le olhar que poderia provocar a vergonha em nossos gover-
nantes sempre veio de fora. Nossos políticos nunca olha-
ram o homem do povo como um igual e sim corno um infc-
tior que merece desprezo ou compaixão. Desde o início, o
povo brasileiro sempre dependeu de um gesto de "piedade"
de seus governantes para "merecer" alguma coisa. O deta-
lhe importante é que o governante só exerdtava essa com-
paixão quando bem desejava, assim como alguém que pode
ou não dar esmola para outm pessoa Então, a~ coisa<s sem-
pre se pautaran1, por uma lado, pela vergonha voltada para
fora e, por outro, por uma, chamemos assim, c:ulpa para
com o povo, aquele contingente miserável com o qual se é
ou não piedoso_ Essa cultura de culpa, no entanto, tem um
enorme risco bá.,ico.
.. ?
Qua l, é. o r1.sco.
O de que os governante-'> percam um dia a compaixão por
seus governados. Nesses casos, desembocamos em uma
ditadura E, no Brasil, isso acaba acontecendo com os pio-
res resultados que se possam imaginar. Pouco a pouco, à
medida que nossa sociedade se tornou mais complexa, os
governantes foram perdendo o escrupulo c deixaram de
disfarçar a violência de seu domínio através da compaixão.
Eles assumiram sua própria impiedade e seu desrespeito
pelo próximo como uma opção que lhes foi facultada.
Agora, o govemante não quer mais ter compaixão, o que
conta é a lei do mais forte. E, como no momento o mais
forte não quer ter compaixão pelo mais fraco, ele, povo,
que trate de sair da frente.

Com. os próprios go1Jernantes dando o exernplo, essa '7.ei"


se ala.<;t.r ou ma·i..sjacüm.ente?
gxalamente. E o resultado foi uma tragédia em tem\Os
democráticos: o povo tornando os políticos como um bando
de abutres que se revezavam no poder só para meter a mão
no dinheiro- <:oisa que, diga-se de pas,c;;agem, era verdade
- ou, na melhor das hipóteses, como dirigentes que se
dividiam entre bons e maus, dependendo sempre da sua
O BRASIL JÁ :\1ERECE O BRASIL l í7

grande compaixão para com o povo. Na visão que os políti-


cos tinham do povo, as coisas não eram diferentes. Aos
olhos desses dirigentes, a massa do povo brasileiro não
passava de um aglomerado de vagabundos, mestiços, pre-
guiçosos c ignorantes. Ou, então, caso fossem adeptos do
paternalismo esclarecido, eles múrentavam uma culpa,
como a esquerda populista t.ipo Jango ou Brizola: "Esse
nosso povo é tão sofrido que eu vou tratá-lo bem, para
poder devolver um pouco do que ele perdeu." Mesmo
assim, trata-se de compaixão, de piedade~ de pena Não
muda o fato de que, na cultura política brasileira, nunca
ninguém respeitou genuinamente ninguém.

Até qua,ndo dumu a cultum da. cu.lpa e da compaü;ão?


Até o golpe militar de 1964, que impôs uma modernização e
urbanização erescentes no Brasil. Diante de um proletaria-
do e de populações urbanas que aumentaram vertiginosa-
mente, o paternalismo perdeu seu sentido. É nesse ponto
que a compaixão dos governantes dá lugar à selvageria
Não acreditando mais na bondade dos governantes, o povo
passa a pe..nsar tão-somente em garantir o seu. Nesse perío-
do, por conta dos episódios traumáticos da modernização
brasileira, a., tensões sociais aumentaram brutalmente. A
resposta do poder público passou a ser cada vez mais a
repressão. Ao mesmo tempo que inibia os focos de oposi-
ção ao regime, mantinha o padrão desejável de organização
social. Dois fenômenos são de sun1a importância nessa
época. Do lado do governo, começou a aflorar a con-upção
em larga escala. O silêncio ajudava essa modalidade de
banditismo reservada a muito poucos. Do lado do povo,
como contrapartida, a delinqüência também aumentou. Só
que os governos militares se incumbiram de manter o ban-
ditjsmo oficial oculto, enquanto enfrentavam a delinqüên-
cia social com o uso inten..c;ivo da repre.ssão policial (os
esquadrões da morte surgiram nessa époea). Dessa forma,
toda a sujeira socioeconômica desta fase foi varrida para
debaixo do tapete.

As co·i.sas tnelhorarmn ccnn o fhn da ditadum.?


Pode pareeer estJ·anho, mas, de certa forma, elas se agrava-
178 A BTICA E O ESPEUIO DA CULTURA

ram. No momento em que a democracia fomlal foi restau-


rada, a sl.\ieira toda reapareeeu. Só que com uma agravante:
como as liberdades democráticas surgiram numa sociedade
absolutamente desarticulada, despreparada para que os
cidadãos a.c;;sumissem publicamente suas responsabilida-
des, os próprios governantes, por trás de um discurso prc-
tensamente democrático, começaram a se valer da fragilida-
de de nossas instituições e do descompasso entre a moder-
nização urbanizadora e os direitos ainda tínúdos dos cida-
dãos para impor seus interesses privados sobre os públicos.
Os governantes eomeçaram a roubar como mmca, sabendo
que as instituições judiciárias estavam fragilizadas e, com
isso, sua impunidade estava garantida. Esse fenômeno foi
muito claro no governo Sarney, quando os brasileiros ainda
não tinham a noção do que estava acontecendo no país.
Viam, apenas, que a.c;; coisas não iam nada bem, sem saber
que diagnóstico dar à situação. Só com a chiadeira generali-
zada na imprensa é que as coisas começaram a ser entendidas.

Foram esses os anos do "vala-tudo"?


Exatamente. Nessa época a visão cordial que o brasileiro
tinha de si próprio se esfarelou por completo. O povo viu
que os governantes roubavam sem parar e começou tam-
bém a aderir, do seu modo, à delinqüência institucionaliza-
da. Não só o povo, mas também a classe média. As pessoas
passaram a tomar as rédeas nas mãos, num fenômeno
muito bem exemplificado pela desobediência aos sirtais
vermelhos.

De que forma?
A metáfora é simples: uns não param por achar que sua
pressa provavelmente é maior que a dos outros; outros os
seguem ne.ssa desobediência. Até que, quem normalmente
pararia, se vê também obrigado a infringir, caso contrário
não terá instrumento de proteção caso abalroem seu carro
ou seja assaltado. "Mas também, onde já se viu parar num
sinal vermelho a essa hora?", diria um policial. Isso é teni-
vel, uma idéia extremamente daninha; a de que a soma de
interesses individuais pode form ar um interesse coletivo. A
única coisa que pode brotar dessa desobediência caótica é
uma terra de ninguém.
O BHASII..IA :\'11-:tU:n: O RRASJI, lTD

Cmno explicar a efeiçiio do camlidol.o Collor à luz desse


• A •)

/
erwmenu:
As pessoas que votaram em Collor foram enganadas por um
dis.:-mso típico dos delinqüentes, que é o di~nmso do <:ini:s-
mo. Em sua campanha, Collor mentia apostando na creduli-
dade das massa~. tamanho é o desprezo que nutre por elas.
Collor e seu gmpo manipulararn eticamente a eleição, cer-
tos de que o markcting seria capaz de lahricar tudo. Com
base nessa crença, começaram a repetir exaustivamente
tudo o que as pessoas queriam - e at.é precisavam - ouvir
naquele momento. Diziam que acabariam com os marajá'.>,
que os corruptos iriam para a cadeia, que modemhr.ariam o
país. Faziam o povo acreditar que tratavam do bem comum
quando, como bandidos que se prezam, zelavam apenas por
seus interesses privados. Além disso, souberam lidar muito
bem com o medo que os empresários nacionais, e também
a maior parte da imprensa, nutria por Lula, um candidato
com propostas de esquerda. Nesse sentido, podemos dizer
que a Globo, um império de comunicações, foi altamente
responsável pela ascensão de Collor ao poder. Ela pavimen-
tou seu caminho junto à opinião públiea.

Por que hoje soa tão estra:nho que tamanha enganação


tenha pa-rec·ido r-azoá·vel?
Só a lógica do banditismo explica esse fato. E Collor e seu
grupo a fizeram valer em sua ação tática. Essa lógica con-
siste em se dissociar totalmente do corpo social, no total
desprezo com relação à realidade. A verdade é que nada
que se discute numa quadrilha de bandidos pode vir a
público. É isso que confere uma aparêneia louca aos gestos
dessas pessoas; o total cinismo c falta de escrúpulos na
marúpulação da verdade. Só uma coisa interessa ao bandi-
do: a concentração cada vez maior dos fmtos da pilhagem.
Ele nem sequer se dá o trabalho de achar que tem de ser
discreto. Com isso, acaba perdendo o sentido de realidade.
Parece-me que foi isso, exatamente, o que aconteceu com
Collor c seu grupo. Uma vez revelada uma fatia de sua.c;;
ações, todo o resto dE-sabou com uma rapidez a...,sustadora.
Para quem não sabia o que estava acontecendo, foi espan-
tosa a vt-locirlade eom que fatos de tamanha gra\idadr. vie-
IBU A I~TH'A E o J~SPJ-;L!tO DI\('( I{;I'('HA

rarn a público na CPL Mas, volto a dizer, é essa a lógica dos


bandidos: esquecer totalmente que existe um corpo social
que pode criticá-los.

Não seria essa lógica muito mais um atributo dos psico-


patas?
Eu acho que, se Collor e sua turma são psicopata..;;, é irrele-
vante. O que nos interessa saber é que raio de cultura políti-
ca pennitiu que loucos e psicopata.., chegassem a Brasília.
Creio que, nesse ponto, há um detalhe de suma importân-
cia, que precisa ser salientado. Curiosamente, se nós, brasi-
leiros, não estivés...,emos em tamanho estado de urgência
por uma rede11nição ét.iea de nossa realidade política, eles
jamais teriam chegado ao poder. Eu diiia que Collor se
valeu do moment.o de nossa perplexidade, disparou seu
marketing em cima, manipulou muito bem o conteúdo ético
da discussão e chegou lá. Graças a Deus conseguimos des-
pertar a tempo.

O que, na sua opiniã.o, pode 'IYÍT daqu·i para a frente ? O


senhor é otirn·i sta quanl.o ao ju/.u ro do Brasil?
Sou. Cabe agora a todos os brasileiros conscientes potencía-
lizar os resultados dessa mobilização ética Nossa demons-
tração de responsabilidade precisa seguir em frente, abrin-
do o eaminho. O novo está aí, diante de nossos olhos: essa
nova geraç:ão que está sendo criada numa atmosfera de
profundo respeito e re$ponsabilidade pela'i coisas públicas.
Nunc:a, jamais, vimos isso() em nossa história. Por essa e
outras, só pos..<>o saudar (e des~jar sorte) aos bravos cara..;;-
pintadas. E aos seus filhos, netos e bisnetos.

Entrevista a Ma-rie Clait-e, dezembro/92


O AUTOR

Jurandir Freire Costa nasceu em 1944 no Recüe e graduou-se em


medicina pela Universidade Federal de Pernambuco. Fez mes-
trado em etnopsiquiatria na École Pratique des Hautes Études
de Paris e livre-docência na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. É professor adjunto do Instituto de Medicina Social da
UER.J e pskanalista. Publicou a História da psiquiatria no
Bmsil, Ordem médica e norma,fam.iliar, Violência e psica,ná-
Use, Psicanálise e contexto (~ultm-al e A inocência e o vício -
estudos sobre o homoerotismo. É autor de "Narcisismo em tem-
pos sombrios", ensaio publicado na coletâneaPe-rcu.rsos da his-
tótia. da psicanálise c que se tomou referência nas discussões
sobre ética.
HIBLIOGRAFIA

A[)UAGNANO, "'icoln. f)il'iomírio <lefi/o;;<!{Ítr , São Pau to, J~ditora Mt>Sii't'.Jou. Hl8"2.
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:'v1t'dic<L~ l!.l!.JO.
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l'élhiquc. P;u·is, Gall!martl. 1!171.
A ÉTICA E O ESPELHO DA CULTURA

Discussões sobre ética e crise' de valores têm pro-


liferado nos últimos anos. Notava-se, no entan-
to, a ausência de urna análise que conjugasse a
reflexão sobre os problemas práticos com a dis-
cussão dos fundamentos das premissas éticas.
Este livro vem, assim, preencher uma lacuna.
Num estilo claro, imaginativo e rigoroso na ar-
gumentação teórica, e preciso nas observações
empíricas, o autor articula urna fina discussão
conceitual com uma vigorosa análise dos pro-
blemas contemporâneos referidos à ética.
A perspectiva neopragmática de Jurandir \
Freire Costa permite-lhe extrair as conseqüên-
cias dos princípios éticos que constituem a he-
rança democrática, pluralista, tolerante da tra-
dição ocidental moderna, e enfatizar o papel do
sujeito moral, aquele a quem se atribui o poder
de escolher e inventar o próprio destino.

ISBN 85·325-0493·0

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