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Jurandir F. Costa - A Ética e o Espelho Da Cultura PDF
Jurandir F. Costa - A Ética e o Espelho Da Cultura PDF
E ." O ·
A chamada crise da ética ultrapas· dade, o respeito à vida e à liber-
sou os tratados de filosofia p ara dade individual, em nome de que
chegar à imprensa e ao cidadão estamos falando: d e uma essência
comum. As razões estão no dia- ou natureza humana que se reali-
a-dia: a erosão das utopias políti- za nesses atos e valores? Ou de
cas o renascimento do racismo, urna experiência cultural particu-
a d~gradação da esfera pública lar que os engendrou e os tor~~u
por interesses privados, o abismo preferíveis? Rec~sar uma v~s~o
crescente entre miséria absoluta fundacional implica um relattvts-
e fruição do supérfluo, a banali- mo dos preceitos éticos?
zaçâo da violência nos espaços ur- Apoiado em Wittgenstein,
banos são alguns dos problemas Davidson, Rorty, Sellars, o autor
para os quais percebe·se não haver repõ e em discussão os.f';ffid~en
solução que prescinda de uma dis- tos das reflexões tradic10nats so-
cussão partilhada sobre os ideais bre a ética, submetendo à crítica
projetados em nossos horizontes concepções essencialistas, metafí-
políticos e sociais. sicas ou fundacionais. Com urna
Além disso, as inovações tec- perspectiva neo~rag~áti~a, anali-
nológicas no campo da eng~nh~ sa a crise e suas tmphcaçoes a par-
ria genética e no campo da mteh- tir do compromisso com os valo-
gência artificial redesenham a res da tradição democrática, hu-
auto-imagem que cultivamos du- manitária pluralista e individua-
rante milênios. Quando se trata de lista da c~ltura ocidental. A ética
pensar sobre o ser humano e a vi- e o espelho da cultura é um livro
da entre os membros de sua espé- claro e sucinto, rico em observa-
cie, a natureza já não
. serve
. mais ções originais, pr~ciso . na .argu-
de espelho, nem de guia. mentação. Uma leitura mstigante
Não se podem enfrentar os e extremamente útil para os que se
problemas do mundo em que vi- interessam pelos impasses éticos e
vemos sem discutir os valores que os destinos de nossa cultura.
sustentam nossas soluções. Quan-
do lutamos contra o totalitarismo,
Benilton Bezerra Júnior
a desigualdade social, ou quando Psicanalista c professor
pregamos a tolerância, a solidarie- do Instituto de Medicina Social da UERJ
AÉTICA
E
OESPELHO DACULTURA
JURANDIR FREIRE COSTA
AETICA
E
OESPELHO DA CULTURA
3~ EDIÇÃO
re~t,rvru:loo à
Dirl"ito;o; desta edição
F.mTOHA HOCCO LTDA.
Rua Rolirigo Silva, 26 -- !;7 andar
20011.{140 Rio dt• Janeiro. RJ
Td.: 507-2000 - f'ax; 507-2244
Cll'-l:lrasil. Cat<~logação-na-Jonl.l'
SiJldl~aJo Nacional dos F..dl!on>.~ dt• Livros, lU.
Clll >-170
94-1061 CDU -17
Para Célia, Ciça e Guga, pelo que pude, pelo que não pude.
Em memória do mestre, amigo, Philippe Paumelle, willwut
wlwmwt.
Em memória de Bubi, doze anos depois.
SUMÁRIO
ÉTICA PÚBUCA
ÉTICA PRIVADA
JOSÉ CASTELLO
INTRODUÇÃO
COMO NOS ESPELHOS, EM ENIGMAS
1. Sobre a ética
Como assi:m?
É simples. A instância p1imeira do homem é o seu narcisis-
mo, o seu instinto de autopreservação. Mas existe uma
segunda instância, igualmente importante, que poderiarnos
chamar de ideais - o que eu quero vir a ser, aquilo que eu
poderia ser, o que eu gostaria de ser. O bom funcionamen-
to de urna sociedade é ditado pela eficiência com que ela
agencia esses ideais, como lida com essa espécie de subor-
no que Viabiliza a vida em sociedade.
Quais?
Diante de uma sociedade em degradação, o egodelinqüente,
fruto do pânico narcísico, tem a tendência de manifestar-se
de duas maneiras: ou como absolutamente impotente, ou
como onipotente. Quando impotente, ele se traveste no
modelo da subserviência burocrática, onde a regra é a obe-
diência devida, qualquer lei é lei, autoridade e autoritaris-
mo são indissociáveis e o que move é o medo. Na outra
ponta, encontramos a arrogância onipotente que tem a
desobediência à lei como lei. Desse lado estão o marginal
que não vacila em matar alguém por um relógio de plástico
ou um par de tênis, o cidadão que estaciona em fila tripla,
paralisando o trânsito de toda uma rua só para apanhar seu
filho na escola, o político ladrão e o empresário fraudulen-
to. Engravatado ou descamisado, o delinqüente aiTogante
considera-se acima da lei e desafia todos os que não que-
rem transfom1ar-se em apêndice de sua onipotência.
Como assim?
Porque os funcionários públicos - e aí, obviamente, estou
falando de maneira genérica - não se enganam: Eles
sabem que são parasitas, que não fazem jus aos salários que
recebem. Eles sabem que não trabalham e as elites brasilei-
ras habituaram gerações e gerações de pessoas - que não
são poucas - a viverem nessa situação de indignidade, em
que prevalece, exclusivamente, o interesse corporativo, de
extorquir cada vez mais, num reflexo imediato ao compor-
tamento dessa mesma elite. Em setores como educação e
saúde, isso é pavoroso, para não falar na administração do
Estado. Eles estão, no dia-a-dia, mostrando ao cidadão
como se vive de forma parasitária, criando, portanto, um
sentimento de ir\iustiça atroz. Basta ver como um operário
que trabalha e, de fato, produz 1iqueza - e tem consciência
da dignidade do que ele faz para a sociedade - é tratado
dentro da burocracia do aparelho de Estado, ou no setor de
saúde, ou no de educação.
por que chamar de crime uma coisa que ainda não está
legislada? Infração à norma de condutas só é crime quando
está juridicamente estabelecido que assim é. Fora disso,
pode-se lamentar, "achar feio", e procurar convencer o
infrator de que tal conduta é indesejável. A informação, a
persuasão e a educação vêm antes da punição. Em segundo
lugar, por que comparar a atitude infratora a roubo? Roubo
é apropriação privada e ilegal de um bem pertencente a
outrem. O que o garoto roubou? Em terceiro lugar, vem a
reação ao fato, e isto é o mais importante. As injúrias dirigi-
das ao hacker são ou não uma infração às nossas normas
morais? Ninguém tem o direito de humilhar de modo osten-
sivo quem quer que seja, mesmo quando se trata de um cri-
minoso, o que, em absoluto, é o caso. Especialmente quan-
do o agressor moral está escudado no poder de um jornal
de grande divulgação e credibilidade pública. Isto é arro-
gância; isto é abuso de poder! Também faz parte de nossa
tradição moral saber que adolescentes são curiosos e, às
vezes, rebeldes e enragés. Na democracia, isto nunca foi
motivo para que fossem postos no pelourinho, no paredón
ou para que tivessem seus nomes publicamente escritos em
dazibaos. Mas intolerância não é prerrogativa de regimes
comunistas, nazistas, ou ditatoriais, nem existe só na políti-
ca. Conhecemos intolerância moral, religiosa, racial, sexual
e, agora, ao que tudo indica, começam os tempos da "into-
lerância informática".
O que salta à vista na matéria é, sobretudo, o fascínio
com que os ''juízes" do "crime" velam pela honra das
sacrossantas máquinas que cultuam. Nem por wn segundo,
ao que parece, pensaram no que pode significar para um
adolescente ou para sua família ver-se comparado publica-
mente a grafiteiros, ladrões, criminosos, "merdinhas", "por-
carias", "complexados sexuais" etc. Numa cultura onde a
imaginação deixou de ser artística, política ou moral, o bem
e o mal passaram a concentrar-se no reino da computação.
Não se pensa mais em "enforcar" dissidentes polítkos ou
em insultá-los de modo grosseiro. A política já não interes-
sa às elites intelectuais. Imaginar, polemizar, discutir o que
seria um mundo melhor e mais justo saíram de moda. A
grande preocupação é ficar up to date com as últimas novi-
A ÉTICA !<~O J<~SPRLHO DA CULTUHA
co. É algo simples sem ser banal; importante sem ser mor-
tal ou vital. É assim como jogos e brincadeirac;. Não pode-
mos pass ar sem eles, mas aprendemos que nada neles deve
ser levado muito a sério. As personagens de Newell fazem
sexo e falam de sexo em tom lúdico, desmontando comica-
mente velhos totens e tabus sexuais. Nwna dada cena, urna
delas narra, com um riso lindo e cândido, como e quando
teve relações sexuais com os 33 homens de sua vida. O
mundo não vem abaixo, e o candidato a namorado, embora
surpreso, não responde em tom de rivalidade narcísica.
Em urna outra cena, urna mulher pergunta à vizinha de
mesa que acabara de conhecer se ela era lésbica, e tem
como resposta: "Fui lésbica na escola, durante 15 minutos!"
Num outro momento uma mulher observa que o irmão mais
jovem do herói é um gato e um outro rapaz replica: "É ... , eu
também sempre achei!"
O sexo faz rir, chorar ou gozar, mas não qualifica nin~
guém de "qualquer-coisa-sexual" nem precipita os indivíduos
no inferno da posse e do controle de ''suas verdades sexuais".
As personagens defmem-se pelos sentimentos, e aqui está a
novidade de Newell. Numa espécie de revolução "à inglesa",
o diretor, sem espem eios, passeatas ou manifestos, leva-nos
a wn romantismo de pés no chão, junto com sujeitos senti~
mentais adoravelmente simpáticos. Faz o que Neil Jordan
procura fazer, mas com vidas e cotidianos ao alcance da
mão. Propõe novos horizontes e frontelras de sentimentalida-
des onde a sexualidade não seja déspota e soberana. Em
Quatro casamentos e um funeral, runguém exibe a identida-
de com a etiqueta "sexual" colada ao nome ou à pessoa.
Todos têm sexo, gostam de sexo, fazem sexo e são sexual-
mente diferentes nas preferências e inclinações, mas runguém
é '"isto-ou-aquilo-sexual". Não por silêncio ou recalque purita-
nos, mas porque o "sexo-rei", na história de Newell, ficou nu.
A mudança é sutil, porém vira de ponta-cabeça nossos
cacoetes mentais. Sexo nada mais é do que aquilo que po-
demos dizer dele. Podemos defmi-lo corno anjo, demônio,
ou mer~ente como um ingrediente agradável de nossa
vida sentimental. Somos "seres sexuais" como podemos ser
"seres sentimentais", mostra Newell. Basta uma leve volta
do parafuso.
O SP.XO MODRRNO E A Ct:J.TURA DO SENT!Mt:NTO
153
Como assim?
Eu explico. Nunca, no Brasil, como nesses últimos tempos,
17 1 A ~;riCA l~ fl ~:SPEI.ll ll DA t 'L' LTl I~ A
De que forma?
A metáfora é simples: uns não param por achar que sua
pressa provavelmente é maior que a dos outros; outros os
seguem ne.ssa desobediência. Até que, quem normalmente
pararia, se vê também obrigado a infringir, caso contrário
não terá instrumento de proteção caso abalroem seu carro
ou seja assaltado. "Mas também, onde já se viu parar num
sinal vermelho a essa hora?", diria um policial. Isso é teni-
vel, uma idéia extremamente daninha; a de que a soma de
interesses individuais pode form ar um interesse coletivo. A
única coisa que pode brotar dessa desobediência caótica é
uma terra de ninguém.
O BHASII..IA :\'11-:tU:n: O RRASJI, lTD
/
erwmenu:
As pessoas que votaram em Collor foram enganadas por um
dis.:-mso típico dos delinqüentes, que é o di~nmso do <:ini:s-
mo. Em sua campanha, Collor mentia apostando na creduli-
dade das massa~. tamanho é o desprezo que nutre por elas.
Collor e seu gmpo manipulararn eticamente a eleição, cer-
tos de que o markcting seria capaz de lahricar tudo. Com
base nessa crença, começaram a repetir exaustivamente
tudo o que as pessoas queriam - e at.é precisavam - ouvir
naquele momento. Diziam que acabariam com os marajá'.>,
que os corruptos iriam para a cadeia, que modemhr.ariam o
país. Faziam o povo acreditar que tratavam do bem comum
quando, como bandidos que se prezam, zelavam apenas por
seus interesses privados. Além disso, souberam lidar muito
bem com o medo que os empresários nacionais, e também
a maior parte da imprensa, nutria por Lula, um candidato
com propostas de esquerda. Nesse sentido, podemos dizer
que a Globo, um império de comunicações, foi altamente
responsável pela ascensão de Collor ao poder. Ela pavimen-
tou seu caminho junto à opinião públiea.
A[)UAGNANO, "'icoln. f)il'iomírio <lefi/o;;<!{Ítr , São Pau to, J~ditora Mt>Sii't'.Jou. Hl8"2.
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