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Aula 04 – A Grande Batalha Escatológica

Leandro Lima
Disciplina: Escatologia

Na sequência do Evangelho de Marcos, os confrontos de Cristo com essas


criaturas malignas continuam (Mc 1.32-34, 39; 3.11-12). Transparece, portanto, mais
uma vez que o Novo Testamento pinta um mundo dominado por forças malignas hostis
a Deus, lideradas pelo “maioral dos demônios” que é reconhecido por Jesus como sendo
Satanás (Mc 3.22-23). Esses demônios impõem doenças sobre os homens, escravizam-
nos, cegam-nos, roubam a palavra semeada, e exigem certos direitos sobre as pessoas
(Mc 4.15, Lc 13.16, Lc 22.31). Portanto, a vinda de Cristo a este mundo se configurou
antes de tudo como uma atitude de confronto com esses poderes malignos.

1. A derrota de Satanás

No capítulo 3 de Marcos, Jesus se encontrava sob forte acusação. Seu caráter


estava sendo atacado tanto por seus familiares, quanto pelas autoridades religiosas. Os
familiares de Jesus reagiram, provavelmente, ao fato de Jesus ter escolhido discípulos, e
ter-lhes conferido a “autoridade” (ἐξουσίαν) de expelir demônios (Mc 3.15). E após ter
voltado para sua casa, uma grande multidão estava lá: “E, quando os parentes de Jesus
ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si” (Mc 3.21). Quase
que imediatamente, “os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele está
possesso de Belzebu. E: É pelo maioral dos demônios que expele os demônios” (Mc
3.22). Não pode haver dúvidas de que ambos os grupos estavam fazendo o papel do
acusador. Eram instrumentos de Satanás, tentando denegrir o caráter de Jesus e de sua
missão. Digno de nota é o fato de que estavam atacando a “autoridade" dele, a qual vinha
sendo reconhecida pelas pessoas até aquele momento (Mc 1.22,27). Os religiosos,
especificamente, argumentaram que Jesus estava expulsando demônios pelo poder do
“príncipe dos demônios” (τῷ ἄρχοντι τῶν δαιμονίων), o que era uma terrível difamação.
No entanto, a resposta de Jesus mostrou o quanto aquela acusação era ilógica:

"Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de parábolas: Como pode
Satanás expelir a Satanás? Se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não
pode subsistir; se uma casa estiver dividida contra si mesma, tal casa não poderá
subsistir. Se, pois, Satanás se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode
subsistir, mas perece. Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens,
sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa". (Mc 3.23-27).

Os termos usados por Cristo denotam o verdadeiro confronto que estava


acontecendo. Não era um confronto entre demônios, mas entre o reino de Deus e reino
dos demônios liderados por Satanás. Mateus acrescenta uma importante expressão de
Jesus: “Se Satanás expele a Satanás, dividido está contra si mesmo; como, pois, subsistirá
o seu reino?” (Mt 12.26). Ou seja, não se pode negar que Jesus atribuiu a Satanás um
reino. Há, portanto, um “reino de Satanás” neste mundo, o qual Jesus compara a uma casa
onde há um chefe. O argumento de Cristo é que não faz sentido pensar que Satanás
estivesse lutando contra sua própria casa. Ao contrário, o fato de Cristo expulsar
demônios pelo Espírito de Deus, como complementa Mateus, é evidência de que
"certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (Mt 12.28). Portanto, o que temos aqui
é o confronto de dois reinos. O reino de Deus chegou na pessoa do rei Jesus para entrar
em confronto com o reino de Satanás.
Toda a “autoridade" daqueles demônios de possuir pessoas ou fazer algum tipo de
mal a elas era derivado do poder de Satanás, que é descrito como “o valente” da casa.
Nesse sentido, a “vinda" de Cristo a este mundo foi um ato de “entrar na casa do valente”.
E, naquele exato instante, Cristo já considerava que o valente estava “amarrado”. Talvez,
isso tenha relação direta com o triunfo de Cristo na tentação do deserto, e a repreensão
que ele impôs sobre o maligno. Amarrando o valente, era possível, segundo Cristo,
saquear a casa dele. É claro que a obra completa de Cristo deve ser reconhecida como o
ato final de “amarrar o valente”, pois a descrição da chegado do reino de Deus no ato de
expulsar demônios “é uma metáfora do que Jesus está fazendo com o reino de Satanás,
enquanto ele está introduzindo seu próprio reino: ele está em processo de derrotar a
autoridade de Satanás”1. Esse processo ainda não estava completo naquele momento, mas
como o reino de Deus é uma antecipação do mundo vindouro, os efeitos desse reino
entraram em ação imediatamente quando Jesus pisou este mundo. Podemos, portanto
dizer que, o fato de Jesus ter se encarnado e já vencido a primeira tentação de Satanás,
lhe conferiu um direito inicial de saquear a casa do valente, expulsando os demônios das
pessoas. Por isso, os demônios se revoltavam, mas não podiam resistir a Cristo. Não era
apenas o “poder" divino que os expulsava, era também o “direito" divino que estava sendo
posto em ação, mesmo que de forma antecipada, e ainda limitadamente. A grande batalha
escatológica estava em curso, e como já dissemos, tratava-se de uma batalha muito mais
jurídica, do que de força bruta.
Outra passagem que ajuda a entender os efeitos da primeira vinda de Cristo sobre
o reino de Satanás é Lucas 10.17-20.
Quando Cristo enviou seus discípulos para que fossem e pregassem nas cidades e
vilas, no retorno, eles expressaram sua alegria: “Então, regressaram os setenta, possuídos
de alegria, dizendo: Senhor, os próprios demônios se nos submetem pelo teu nome!” (Lc
10.17). Eles utilizaram uma expressão forte para descrever o efeito do “nome" de Jesus
sobre os demônios: se submetem (ὑποτάσσεται). A ideia da expressão é de exercer um
domínio forte e efetivo sobre alguém. É evidente que não era uma questão de força ou
poder, pois os discípulos não eram mais fortes do que os demônios. A questão,
obviamente, era legal. A autoridade do nome de Jesus impunha sobre os demônios
submissão. Isso quer dizer que os apóstolos estavam conseguindo expulsá-los do mesmo
modo como Cristo fazia. Essa era a razão da alegria deles.
Em resposta, Jesus deu a explicação para o fato: “Mas ele lhes disse: Eu via
Satanás caindo do céu como um relâmpago. Eis aí vos dei autoridade para pisardes
serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamente, vos
causará dano” (Lc 10.18-19). Como é bem percebido na tradução da versão Almeida
Revista e Atualizada, Jesus disse “eu via Satanás caindo do céu”. De fato, o verbo "ver"
está no “imperfeito" no grego (ἐθεώρουν). O uso do verbo “ver” no imperfeito pode se
referir tanto a ideia de que Jesus estava vendo2 isso enquanto os discípulos estavam
expulsando demônios, quanto ao fato de que aquela não era uma ação totalmente acabada.
Tecnicamente falando, Satanás ainda não havia sido destronado e expulso, mas os efeitos

1
G. K. Beale. A New Testament Biblical Theology: The Unfolding of the Old Testament in the New.
Grand Rapids: Baker Academic, 2011, p. 435.
2
θεωρέω pode ser usado no sentido literal de algo que se está vendo, ou como uma percepção mental, o
reconhecimento de algo, como aparece nos seguintes textos 14:29; 21:6; 23:35, 48; 24:37, 39 (Ver I.
Howard Marshall. The Gospel of Luke: a commentary on the Greek text. New International Greek
Testament Commentary. Exeter: Paternoster Press, 1978, p. 428.
desse destronamento e expulsão, os quais já eram dados como certos da perspectiva
profética de Cristo, estavam em ação. Mais uma vez, isso denota uma espécie de
antecipação das conquistas da cruz3.
Em linhas gerais, a maioria dos cristãos acredita que a “queda de Satanás do céu”
aconteceu em algum momento do passado, talvez até mesmo antes da fundação do
mundo. Porém, essa é uma posição difícil de ser mantida pela Escritura. Se Satanás
tivesse sido expulso do céu antes da queda do homem, então, como ele poderia se
apresentar perante o Senhor, juntamente com outros filhos de Deus, conforme relata o
primeiro capítulo do livro de Jó?
Geralmente, os textos de Isaías 14 e Ezequiel 28 são utilizados para defender uma
queda acontecida em algum momento do passado remoto. O texto de Isaías 14.12
proclama: “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado
por terra, tu que debilitavas as nações!”. Uma vez que Cristo disse que viu Satanás
“caindo do céu”, então as ideias parecem associadas. No entanto, Cristo não mencionou
“estrela” na passagem, a expressão “relâmpago” (ἀστραπήν) representa um brilho forte
de luz que subitamente cai do céu para a terra. Além disso, deve ser lembrado que o texto
de Isaías 14 está, antes de tudo, fazendo referência ao rei de Babilônia, e utilizando-se de
termos altamente simbólicos para descrever a queda daquele rei.
Algo semelhante é feito por Ezequiel no capítulo 28, que descreve a queda do rei
de Tiro. Porém, é verdade que esses textos parecem extrapolar a descrição daqueles reis
humanos, e parecem apontar para uma figura maior, a qual seria a figura de Satanás, da
qual aqueles reis seriam como que “tipos”. Então, se Cristo estava apontando para isso,
ao usar a expressão “caindo do céu” para Satanás, em semelhança do que diz Is 14.12,
deve ser notado que essa expulsão estava acontecendo naquele exato momento em que os
discípulos estavam triunfando sobre os demônios. A vinda de Jesus a esse mundo
desencadeou os eventos que culminariam com a definitiva expulsão de Satanás do céu.
Assim, os textos de Isaías 14 e Ezequiel 28 podem ser profecias da expulsão futura de
Satanás, tipificada na queda daqueles dois reis do passado. Elas, portanto, são profecias,
e não relatos de fatos já acontecidos. Até porque, quando Isaías 14 foi escrito, segundo a
datação conservadora, o rei de Babilônia ainda não havia caído. Portanto, era também um
profecia em relação à queda daquele rei.
No entanto, ainda é necessário fazer uma distinção entre “queda moral” e
“expulsão”. É evidente que a “queda" moral de Satanás se deu antes de Gênesis 3, afinal,
ele se apresenta ao casal humano como o tentador, portanto, já era um ser moralmente
caído. Porém, sua expulsão do céu, de fato, não aconteceu antes da primeira vinda de
Cristo.
Finalmente, nessa passagem de Lucas, ainda deve ser notada a transferência de
autoridade que Jesus começou a fazer com seus discípulos. Ao conceder o direito ou a
legitimidade que o termo “autoridade” denota, aos seus discípulos, para pisarem serpentes
e escorpiões, Jesus estava compartilhando sua própria missão com eles, como o
descendente da mulher (Gn 3.14-15, Gl 4.4, Rm 16.20). Ele disse que havia amarrado o
valente, e, portanto, podia saquear a casa dele. Agora, seus discípulos também poderiam

3Beale nota que a vitória de Jesus sobre Satanás, descrita no texto, pode ter acontecido na tentação, ou
pode ser uma visão proléptica referindo-se à cruz ou à segunda vinda (G. K. Beale. A New Testament
Biblical Theology: The Unfolding of the Old Testament in the New. Grand Rapids: Baker Academic, 2011,
p. 435). E, na verdade, talvez seja uma mescla disso tudo, pois num sentido, Jesus começou a vencer
Satanás na tentação, porém, só consumou isso na cruz. E, a segunda vinda será o momento do
banimento definitivo dele. Todos esses eventos, portanto, estão interligados.
fazer isso4, com base no direito de Cristo. Portanto, o real estado da batalha não diz
respeito a uma guerra onde vence o mais forte, mas uma guerra onde vence quem tem
mais “direito”, ou mais “autoridade legal”. Jesus chegou a este mundo para impor o
direito divino sobre Satanás. É desse modo que ele liberta seus cativos.

2. A batalha na cruz

Quando Judas se aproximou com a escolta de soldados, o momento decisivo havia


chegado. O que Cristo faria? Lutaria juntamente com seus discípulos, com armas e
espadas, contra a escolta? Cristo se renderia ao medo da morte? Satanás, conseguiria,
desse modo dissuadi-lo da missão de libertar Israel? Evidentemente que não. Aquela não
era a batalha de Cristo. Uma luta com espadas e escudos seria totalmente inútil. Cristo
nunca pegaria em armas, nem para se defender, nem para libertar Israel dos romanos. Sua
única arma seria um pedaço de madeira. Ela seria uma arma contra ele mesmo, porém ao
final, seria também a arma letal contra o grande inimigo.
Lucas relata: “Falava ele ainda, quando chegou uma multidão; e um dos doze, o
chamado Judas, que vinha à frente deles, aproximou-se de Jesus para o beijar. Jesus,
porém, lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” (Lc 22.47-48). A
pergunta de Cristo serviu como um alerta para os discípulos e eles perguntaram: “Senhor,
feriremos à espada?”. De fato, antes disso Cristo dissera que era hora de ter uma espada
(Lc 22.35-38). Mas provavelmente, Cristo pensasse na segurança pessoal dos discípulos,
e não em sua própria segurança. Porém, sem esperar pela resposta, um dos discípulos
(Pedro - Jo 18.10) se adiantou e cortou a orelha do servo do sumo sacerdote. Porém,
Cristo interrompeu o ataque e curou a orelha do homem. Naquele momento, segundo
Mateus, Cristo disse: “Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria
neste momento mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras,
segundo as quais assim deve suceder?” (Mt 26.53-54). Ou seja, se aquela fosse uma luta
que se resolvesse através de espadas, Cristo poderia chamar guerreiros mais eficazes. Mas
aquela era uma luta por legitimidade. E, nesse sentido, ele tinha que lutar sozinho. Ela só
seria vencida se todas as exigências legais fossem cumpridas, inclusive as profecias.
Na sequência, Jesus fala com os captores:

“Então, dirigindo-se Jesus aos principais sacerdotes, capitães do templo e anciãos


que vieram prendê-lo, disse: Saístes com espadas e porretes como para deter um
salteador? Diariamente, estando eu convosco no templo, não pusestes as mãos sobre mim.
Esta, porém, é a vossa hora e o poder das trevas” (Lc 22.52-53).

O questionamento de Jesus aos captores indica não só a covardia deles, pelo medo
de prendê-lo diante do povo, como também as limitações deles, ou seja, durante o tempo
em que Jesus estivera diariamente no templo, eles não tinham “poder” para fazer isso.
“Vocês não puseram as mãos em mim”, diz Jesus enfaticamente, “porém esta é a hora de
vocês” (ἀλλ̓ αὕτη ἐστὶν ὑμῶν ἡ ὥρα), ou seja, é o momento em que vocês têm o direito
de fazer isso, pois é a “autoridade das trevas” (ἡ ἐξουσία τοῦ σκότους). Portanto, Jesus

4
É interessante que um livro apocalíptico escrito entre os séculos 1 e 2 antes de Cristo tenha a seguinte
“profecia” sobre o messias: “E ele abrirá as portas do paraíso, e removerá a espada que tem feito ameaças
desde Adão, e ele garantirá aos seus santos o comer da árvore da vida. O espírito de santidade estará
sobre ele. E Beliar será amarrado por ele. E ele dará a seus filhos a autoridade para pisar espírito malignos
(Testamento de Levi 18.10-12. In James H. Charlesworth. The Old Testament pseudepigrapha. New
York; London: Yale University Press, 1983, 1:795).
foi aprisionado porque as trevas haviam alcançado “autoridade” para fazer isso. Nesse
ponto, temos mais um reforço ao que já foi dito sobre Satanás ter sido o instrumento
principal da morte de Cristo. O próprio Cristo disse que sua prisão estava na conta dessa
autoridade.
Durante aquele dia, Jesus foi levado diante de Pilatos, Herodes, e novamente para
Pilatos. Apesar dos interrogatórios, os evangelhos mostram que as autoridades romanas
não encontraram motivo justo para condená-lo, e só fizeram isso para agradar as
autoridades judaicas (Lc 23.14-25). João relata que Pilatos tentou dialogar várias vezes
com Cristo, e, diante do silêncio de Jesus, tratou de adverti-lo: “Não me respondes? Não
sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar?” (Jo 19.10).
Provavelmente, o termo usado por Pilatos, “autoridade”, fez Jesus romper o silêncio. De
fato, Pilatos não podia entender que aquele era o motivo de todos aqueles acontecimentos.
Era a razão pela qual Cristo havia vindo ao mundo, e agora se submetia ao poder das
trevas. A resposta de Jesus foi categórica: “Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias
sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado
tem” (Jo 19.11). Essa, sem dúvida, é uma daquelas expressões de Cristo que os teólogos
podem passar a vida toda tentando esgotar o significado5. Satanás exibia alguma
autoridade sobre o mundo. Os judeus também acreditavam exercer autoridade religiosa.
Pilatos e os romanos também acreditavam que tinham autoridade. Mas, acima de tudo,
paira uma autoridade soberana, suprema, que inclui todas essas autoridades menores: a
autoridade de Deus. Essa grande e suprema autoridade decretou que o filho tivesse que
se submeter ao poder das trevas, para finalmente desbancar a autoridade das trevas. E,
desse modo, Jesus foi colocado debaixo da autoridade de Pilatos. No entanto, apesar de
ser o representante do senhor do mundo (César), Pilatos não teria nenhuma autoridade
sobre Cristo se isso não fosse concedido por Deus. Por outro lado, Jesus acusou os
religiosos judaicos de terem uma culpa maior do que a de Pilatos. Não é difícil entender
a razão. Eles diziam agir em nome de Deus. Eram teoricamente os representantes de Deus
no mundo. Porém, quando entregaram Cristo a Pilatos para que fosse morto, embora
estivessem fazendo exatamente aquilo que Deus havia determinado, estavam por si
mesmos fazendo aquilo que Satanás desejava. Eram servos dele. Porém, nem Satanás,
nem seus servos judeus e romanos, podiam imaginar que estavam contribuindo para a
redenção do povo de Deus, e para a destruição do poder das trevas sobre este mundo. A
autoridade divina é soberana.
Quando Cristo deixou o pretório romano, no pátio do Pavimento chamado de
Gabatá (Jo 19.13), e tomou a direção do Gólgota carregando sua cruz (Jo 19.17), todos
os olhos de uma numerosa multidão (Lc 23.27) estavam fixos nele. Mas, não é exagero
dizer que todos os olhos do céu e dos reinos espirituais também estavam fitos naquele
homem que carregava a cruz pelas ruas, saindo de Jerusalém. Não há nenhuma descrição
de possessão demoníaca que possa ter ocorrido naquele momento, e é de se supor que
todos os demônios estavam quietos, na expectativa de que seu algoz seria morto, e assim,
não mais os ameaçasse. Igualmente, Satanás não aparece mais, tendo cumprido sua
missão de usar Judas para traí-lo e Pedro para negá-lo. Porém, no momento em que Cristo
está na cruz, ele precisa ouvir desafios da multidão, que bem poderiam vir de lábios
demoníacos: “O povo estava ali e a tudo observava. Também as autoridades zombavam
e diziam: Salvou os outros; a si mesmo se salve, se é, de fato, o Cristo de Deus, o

5Aparentemente, Jesus está falando de Caifás, o Sumo Sacerdote, quando diz que era mais culpado do
que Pilatos. Como Pilatos, foi-lhe dada autoridade sobre Jesus, mas ele abusou dela, e por conveniência
política entregou Jesus a Pilatos em uma acusação forjada de sedição para garantir a sua morte. Por esta
razão, Pilatos, embora um homem culpado, não era tão culpado como o Sumo Sacerdote de Deus
(George R. Beasley-Murray. John. Word Biblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated, 2002, 36:340.)
escolhido. Igualmente os soldados o escarneciam e, aproximando-se, trouxeram-lhe
vinagre, dizendo: Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo” (Lc 23.35-37). Por certo,
havia nessas palavras um eco daquelas palavras de Satanás na primeira tentação: “se és o
filho de Deus…”. Mateus relata que eles usaram realmente essa expressão: “Os que iam
passando blasfemavam dele, meneando a cabeça e dizendo: Ó tu que destróis o santuário
e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da cruz!”
(Mt 27.39-40). A confiança que Cristo depositou em Deus, mas que não o levou a se jogar
do pináculo do templo, agora é escarnecida:
“De igual modo, os principais sacerdotes, com os escribas e anciãos,
escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel!
Desça da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato,
lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus” (Mt 27.41-43).

É difícil dizer o quanto há de humano ou demoníaco nessas palavras cheias de


escárnio. Provavelmente seja uma mescla de ambos, o resumo de um mundo decaído,
dominado pelas trevas, reagindo com desdém ao Filho de Deus. É claro que todos
consideravam aquele momento a grande derrota do pregador da Galiléia, e não perdiam
tempo em tripudiar sobre ele. Cristo aguentou pacientemente as ofensas e o sofrimento
físico. Ele não reclamou em momento algum a respeito dessas coisas, ao contrário,
chegou a pedir a Deus que perdoasse o pecado do povo (Lc 23.34).
Porém, num dado momento de seu sofrimento, ele parece fazer uma espécie de
reclamação contra Deus: “Desde a hora sexta até à hora nona, houve trevas sobre toda a
terra. Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni?
O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.45-46). Sem
dúvida, este foi o momento mais decisivo da grande batalha apocalíptica. A presença das
trevas durante as três horas que antecederam à morte de Jesus são um símbolo dos
tormentos que ele sofria. Aquele era o momento das trevas. Não se tratava apenas de
sofrimento físico. O clamor de Jesus demonstra isso. A expressão é uma citação
praticamente literal do Salmo 22.1, onde o salmista lamenta todo o seu sofrimento, o
abandono e a ridicularização que sofreu por parte dos inimigos, mas demonstra confiança
no governo soberano de Deus sobre as nações, e nos seus propósitos para o futuro.
Portanto, a expressão, em si mesma, não é uma reclamação contra Deus, mas um
reconhecimento do verdadeiro e profundo sofrimento a que Cristo foi submetido, não
apenas um sofrimento físico, mas acima de tudo um sofrimento espiritual. A certa altura,
o salmista disse: “Mas eu sou verme e não homem; opróbrio dos homens e desprezado
do povo. Todos os que me vêem zombam de mim; afrouxam os lábios e meneiam a
cabeça: Confiou no SENHOR! Livre-o ele; salve-o, pois nele tem prazer” (Sl 22.6-8).
Esse, por certo, era o sentimento de Cristo ao final daquelas três horas de trevas. Na
linguagem do Novo Testamento, ele havia recebido sobre si os nossos pecados (1Pe 2.24),
foi contado com os malfeitores (Lc 22.37), foi levantado da terra como um maldito (Gl
3.13). Aquele foi o momento em que, ainda na cruz, de certo modo, Cristo experimentou
os tormentos do inferno, ou seja, quando Cristo sofreu sob a ira de Deus, tendo que pagar
tanto em seu corpo quanto em sua alma o preço da nossa reconciliação com Deus6. Foi
quando, como diz Calvino, Cristo “ao entrar em luta pessoal com o poder do diabo, com
o horror da morte, com os tormentos dos infernos, resultou que não só alcançasse a vitória

6John Calvin e William Pringle. Commentary on a Harmony of the Evangelists Matthew, Mark, and Luke.
Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010., 3:316–317.
sobre eles, mas até celebrasse o triunfo, para que na morte já não temamos aquelas coisas
que nosso Príncipe tragou”7.
A frase do Salmo 22 não foi a única que Jesus proferiu enquanto estava na cruz8.
Outra expressão altamente significativa foi dita por Jesus na hora da agonia, conforme
relata João: “Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e,
fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o
vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19.29-30).
Em seguida, de acordo com Marcos: “o véu do santuário rasgou-se em duas partes, de
alto a baixo” (Mc 15.37-38). A primeira expressão “está consumado” é uma única palavra
no grego, a língua original do Novo Testamento: tetélestai (τετέλεσται). A ideia de “está
terminado ou consumado” revela apenas “metade do significado” do termo9. Jesus usou
um verbo passivo perfeito em terceira pessoa do verbo “teleō”. Esse verbo tem a
conotação de algo que foi plenamente cumprido, um propósito que foi alcançado, “e em
contexto religioso sustenta a concepção de cumprimento de uma obrigação religiosa”10.
Portanto, não aponta apenas para o cumprimento em si de uma obrigação, mas da
específica necessidade do cumprimento daquela obrigação11. Podemos, portanto,
interpretar que o brado “tetélestai” de Cristo, talvez o último que ele tenha dado antes de
morrer, era o reconhecimento de que ele havia cumprido tudo o que era necessário, toda
a obrigação religiosa ou jurídica da qual ele fora incumbido pelo Pai. Ele carregou os
pecados, e pagou plenamente por eles no corpo e na alma. Como consequência e uma
espécie de resposta divina à declaração de Cristo, o véu do santuário se rasgou de cima
para baixo, mostrando que a barreira que separava Deus de seu povo havia sido rompida.
Este deve ser visto como o grande momento da derrota de Satanás, o instante em
que “sua cabeça foi esmagada”. Toda a atuação de Satanás desde o Gênesis, foi no intuito
de separar e garantir essa separação do homem em relação a Deus. Atuando como
“sedutor (enganador) das nações” (Ap 12.9), e como “acusador de nossos irmãos” (Ap
12.10), ele esforçava-se por evitar a comunhão da criatura com seu criador. Ele interpunha
objeções jurídicas, baseadas na Lei Divina, para que não houvesse verdadeira aliança
entre Deus e os homens. Porém, quando ele conduziu Cristo à cruz, provavelmente no
intuito de amedrontá-lo num primeiro momento, e depois de se livrar de Cristo, ele acabou
cumprindo a antiga profecia de Gênesis 3.15. Ele picou o calcanhar do descendente,
ferindo-o mortalmente, porém o efeito disso foi ter sua própria cabeça esmagada pelo
descendente da mulher. A morte de Cristo matou a serpente.

7João Calvino, Institutas, (II,16,11). Calvino também disse: “Nada teria acontecido se Jesus sofresse
apenas a morte temporal. Pois era necessário que sentisse em sua alma o rigor do castigo de Deus, para
se pôr sob a sua ira e satisfazer a seu justo juízo. Pelo qual convinha também que combatesse com as
forças do inferno e que lutasse com o horror da morte eterna” (Institutas, (II,16,10). Bavinck disse: “de
fato, não em um sentido espacial, mas em um sentido espiritual, ele desceu ao inferno”. (Herman
Bavinck. Teologia Sistemática: Fundamentos teológicos da fé cristã. São Paulo: SOCEP, 2001, p. 401).
8 O total de frases que os Evangelhos relatam de Jesus chegam a sete: “Pai, perdoa-lhes, porque não

sabem o que fazem” (Lc 23.34); “Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19.26); “Tenho sede!” (Jo 19.28); “Em
verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso”. (Lc 23.43); “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt 27.46); “Está consumado!” (Jo 19.30); “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”
(Lc 23.46).
9 George R. Beasley-Murray. John. Word Biblical Commentary. Dallas: Word, Incorporated, 2002, 36:352.
10 D. A. Carson. The Gospel according to John. The Pillar New Testament Commentary. Leicester,

England; Grand Rapids, MI: Inter-Varsity Press; W.B. Eerdmans, 1991, 621.
11 C. H. Dodd diz que o termo é aplicado na literatura extra-bíblica como o “cumprimento exato dos ritos

religiosos, como nos sacrifícios ou iniciações”. O autor demonstra isso em textos herméticos (C. H.
Dodd. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Teológica, 2003, p. 561).
3. A expulsão do príncipe deste mundo

A cruz foi o grande momento da derrota de Satanás, quando este teve sua cabeça
esmagada. Para entendermos melhor essa derrota, tanto a realidade dela, quanto seu
significado, duas passagens do Novo Testamento são elucidativas. Começaremos com a
passagem que não deixa qualquer dúvida quanto à “morte do diabo” na cruz, e que
portanto, estabelece a realidade dela. Hebreus 2.14-15:

“Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes
também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem
o poder da morte, a saber, o diabo, e livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam
sujeitos à escravidão por toda a vida”.

Em toda a carta aos Hebreus, o autor está falando sobre as grandezas de Cristo e,
consequentemente, da fé cristã, e mostrando como tudo isso é o cumprimento do que foi
predito no Antigo Testamento. Nesse sentido, o autor está exortando seus leitores a não
se deixar fascinar por objetos ou rituais da Antiga Aliança, os quais provavelmente eram
utilizados naqueles dias em muitos círculos religiosos, para tentar cativar os cristãos
recém-convertidos com uma religião mais pomposa e pretensamente mais significativa.
O papel de Cristo como sumo-sacerdote é frequentemente evocado na carta para
demonstrar a condição superior do crente da nova aliança em relação ao crente da velha
aliança, no que tange ao fato de que agora mesmo, Cristo está no céu, fazendo sua obra
de manutenção e expansão em favor de sua igreja, uma vez que já consumou de uma vez
por todas a redenção de seu povo. Especificamente, ele está mostrando que Cristo é
superior aos anjos, e faz isso demonstrando que justamente por ter tomado um corpo ele
é superior, sendo que seus leitores pareciam ter uma opinião oposta nesse sentido.
A superioridade da pessoa de Cristo, nesse sentido, é demonstrada nessa passagem
pelo fato de ele ter realizado o ato supremo, o feito definitivo da salvação, a vitória total
e completa sobre as forças das trevas. Mas, para fazer isso, ele teve que cumprir etapas.
E a primeira delas foi justamente a “encarnação”, como já mostramos nesse trabalho. O
autor aos Hebreus diz: “Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e
sangue, destes também ele, igualmente, participou”. Uma vez que a humanidade
compartilha uma essência, a qual é composta de “carne e sangue”, Cristo também
precisou participar dessa essência ou natureza, para poder realizar sua obra. Ou seja, se
ele quisesse redimir homens de carne e sangue, ele precisa se tornar um homem de carne
e sangue. Assim, mais uma vez vemos que todas as etapas da vida de Jesus foram
necessárias para que ele vencesse a grande batalha escatológica. E o nascimento foi a
primeira das etapas, quando ele se qualificou para a verdadeira batalha.
Porém, o nascimento foi um meio para um fim, uma etapa inicial para concretizar
uma etapa final, e a etapa final foi o “tetélestai”, ou seja, a morte de Cristo. É isso o que
o autor aos Hebreus está dizendo: Cristo se fez carne e sangue por causa de pessoas desta
mesma natureza, para morrer, e assim, realizar duas coisas: destruir o grande inimigo e
libertar os cativos dele. Os termos utilizados são extremamente fortes: Cristo, “através da
morte”, aniquilou (καταργήσῃ) aquele que…”. O verbo “aniquilou” está no aoristo
subjuntivo, porém, o conteúdo não sugere a ideia de uma ação ainda a ser realizada ou
condicional em relação ao futuro. A condicional do destruir estava na necessidade de
Cristo se encarnar e morrer. Ao fazer isso, ele cumpriu os requisitos e destruiu ou
aniquilou “aquele, o que tem o domínio da morte” (τὸν τὸ κράτος ἔχοντα τοῦ θανάτου).
E a passagem esclarece: “este é o diabo”. O termo “krátos” (κράτος) é frequentemente
atribuído ao próprio Deus no Novo Testamento, aquele que têm domínio sobre o mundo
(1Pe 4.11, Jd 25, Ap 1.6). É uma palavra, portanto, que demonstra a relação do diabo com
a morte. Ele é descrito como uma espécie de “senhor da morte”. Evidentemente, isso deve
ser visto da perspectiva de um “senhorio usurpado”, porém, ainda assim, trata-se de um
“senhorio juridicamente legal”, o qual foi mantido através de sua tarefa de acusador. Ele
tem o direito de exigir a morte como condenação pelo pecado dos homens. Porém, em
relação aos crentes, esse direito lhe foi completamente cassado por Cristo.
Então, a segunda tarefa realizada pela morte de Cristo foi: “e livrasse todos que,
pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por toda a vida”. Essa sem dúvida é
uma das frases do Novo Testamento mais difíceis de serem traduzidas da língua grega.
Em termos absolutamente literais, ele disse o seguinte: “e libertasse aqueles, todos
quantos, no temor da morte, por toda a vida, culpados estavam da escravidão”12. Apesar
da dificuldade da tradução, fica evidente que ele está falando de uma libertação jurídica,
de um ato de remover a culpa da escravidão do pecado, a qual exigia a morte, e mantinha
as pessoas nessa condição por toda a vida.
Portanto, o senhor da morte foi derrotado, e a própria morte não nos aprisiona
mais no temor, pois fomos absolvidos. Note-se, entretanto, que “aquele que tem o poder
sobre a morte é em si mesmo reduzido a impotência, mas a morte em si mesma ainda não
foi destruída (cf. 1Co 15.26, 54)”13. A morte continua na vida dos crentes, porém não
mais através de uma exigência legal pela autoridade daquele antigo “senhor da morte”, o
qual foi destruído na morte de Cristo. Portanto, o sentido em que ele foi destruído deve
ser visto como sendo em relação à sua função, e não ao seu ser ou personalidade. Nesse
sentido o diabo continua existindo, mas como diz João, “para isto se manifestou o Filho
de Deus: para destruir as obras do diabo” (1Jo 3.8).
Agora precisamos olhar com mais detalhe o significado dessa derrota ou “morte”
de Satanás. E para isso precisamos voltar ao Evangelho de João.
João narra uma significativa explicação de Cristo sobre esse assunto no capítulo
12 do Evangelho (vs. 20-33). Após a manifestação do desejo de alguns gregos de verem
a Jesus de perto, sendo isso levado ao conhecimento do Senhor por André e Felipe (Jo
12.21-22), o Senhor se conturbou em espírito, percebendo que aquilo apregoava a
aproximação do momento da sua morte: “Respondeu-lhes Jesus: É chegada a hora de ser
glorificado o Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo,
caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto” (Jo 12.23-
24). Por certo, os dois discípulos que foram levar o pedido dos gregos não puderam
entender o motivo de tanta comoção por parte de Cristo, e de todo o monólogo que ele
inicia naquele momento, revelando as pressões íntimas de sua alma, e o desejo de ser
livrado daquele fardo (Jo 12.25-26). Toda a angústia despertada por aquele aparentemente
tão simples pedido dos gregos foi exposta com as seguintes palavras: “Agora, está
angustiada a minha alma, e que direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente
com este propósito vim para esta hora” (Jo 12.27). A compreensão da inevitabilidade da
aproximação de sua morte maldita o levou a falar deste modo, no que certamente deixou
seus discípulos confusos, pois eles não compartilhavam das angústias íntimas de Cristo.
Curiosamente, João não diz se Jesus atendeu ao pedido dos gregos ou não. Porém, o
próprio Cristo explica-nos a razão da necessidade da sua morte, e assim, revela também

12 καὶ ἀπαλλάξῃ τούτους, ὅσοι φόβῳ θανάτου διὰ παντὸς τοῦ ζῆν ἔνοχοι ἦσαν δουλείας. (Matthew
Black, Carlo M. Martini, Bruce M. Metzger, e Allen Wikgren. The Greek New Testament. Federal Republic
of Germany: United Bible Societies, 1997, Hb 2.15).
13 Paul Ellingworth. The Epistle to the Hebrews: a commentary on the Greek text. New International

Greek Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: W.B. Eerdmans; Paternoster Press, 1993, p.
173.
o caminho através do qual os gregos poderiam finalmente se aproximar dele: “Chegou o
momento de ser julgado este mundo, e agora o seu príncipe será expulso. E eu, quando
for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo. Isto dizia, significando de que gênero
de morte estava para morrer” (Jo 12.31-33). Aqui, portanto, temos a descrição do real
estado da batalha que seria travada na cruz. Tratava-se de uma batalha jurídica. Cristo
precisava morrer dependurado numa cruz para poder julgar o mundo e expulsar o seu
príncipe, obtendo como consequência de sua obra, o poder de atrair todos a si mesmo,
inclusive, os gregos que estavam solicitando a audiência com ele.
Portanto, um duplo julgamento, no sentido de condenação, aconteceu na cruz.
Nela, Cristo foi julgado e condenado pelas autoridades humanas, porém de forma injusta
e covarde. Ao mesmo tempo, Cristo foi julgado e condenado pela Lei de Deus, uma vez
que estava substituindo seu povo. Essa foi uma condenação justa, no sentido de que
Cristo, carregou a culpa dos pecados do seu povo. Porém, Satanás e o mundo também
foram julgados naquele momento. O reino do mundo, o reino da morte, cujo rei ou
príncipe era Satanás, recebeu um julgamento e uma condenação. Na cruz, Satanás foi
julgado e condenado, teve seu poder como príncipe deste mundo revogado, seu posto de
acusador no céu removido, e foi expulso de todas essas posições de autoridade. É nesse
sentido que sua cabeça foi esmagada. Cristo não foi o único a beber o cálice naquele dia.
Satanás também teve que beber.
Assim, em prospecção do futuro, quando o Espírito viria, ainda antes de morrer,
Cristo já podia dizer: “Quando ele vier, convencerá o mundo do pecado, da justiça e do
juízo: do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para o Pai, e não me
vereis mais; do juízo, porque o príncipe deste mundo já está julgado” (Jo 16.8–11). A
primeira vinda de Jesus foi esse julgamento. Por isso nela se travou a grande batalha
escatológica.

4. Autoridades despojadas

Não apenas Satanás foi julgado e deposto na cruz, mas também todas as suas
hostes. O Apóstolo Paulo descreveu detalhadamente a respeito dessa grande vitória
jurídica de Cristo sobre os demônios na carta aos Colossenses capítulo dois, verso 1514.
Após estabelecer que, através do batismo, os crentes têm sinalizado claramente
seu perdão judicial diante de Deus, ele menciona o despojamento dos principados e
potestades:

"E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela
incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os
nossos delitos; tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava
de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu- o inteiramente, encravando-o na
cruz; e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo,
triunfando deles na cruz” (Cl 2.13-15).

Não pode ser ignorada a forte terminologia jurídica da passagem. Ele diz que os
crentes estava mortos por causa das “transgressões” (παραπτώμασιν), que representam
um “desviar-se” da lei divina. Fala também do termo “incircuncisão”, que é o termo legal
da antiga aliança aplicado aos que estão excluídos dela, e esclarece que através de Cristo,

14 Schreiner acredita que, provavelmente, esse seja o mais importante texto que descreve a vitória de
Cristo sobre os poderes malignos (Thomas Schreiner. New Testament theology: magnifying God in
Christ. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, p. 370).
simbolizado pelo batismo, os crentes receberam “vida" e perdão gracioso (χαρισάμενος)
dos “delitos" (τὰ παραπτώματα).
Em seguida, ele explica mais detalhadamente essa questão legal que precisou ser
plenamente resolvida por Cristo, pois menciona o “escrito de dívida”, literalmente, o
manuscrito, ou “escrito à mão” (χειρόγραφον). Esse documento legal é, sem dúvida, a
causa da necessidade de Cristo entregar sua vida na cruz. Ao morrer crucificado, Cristo
impôs três ações sobre o tal "documento": 1) cancelou; 2) removeu-o inteiramente; 3)
encravou-o na cruz. A primeira expressão literalmente significa “borrou ou rasurou”
(ἐξαλείψας), conduzindo à ideia de que ele o cobriu, impedindo que sua acusação fosse
lida. A segunda expressão significa literalmente que Cristo retirou ou suspendeu o
documento do meio do caminho, ou seja, eliminou o impedimento causado pelo
documento. E a terceira expressão literalmente significa que ele o “pregou”
(προσηλώσας) na cruz. Essa última, sem dúvida, faz um jogo de palavras com o próprio
corpo de Cristo que foi pregado na cruz.
O termo “manuscrito" ou "escrito de dívida”, não pode ser aplicado diretamente à
Lei de Deus, pois em nenhum lugar o Novo Testamento diz que Cristo “borrou ou anulou”
a Lei, nem que a removeu do caminho, ou a encravou na cruz. Antes, ele deve ser visto
como o documento de acusação produzido por Satanás contra o povo de Deus, com base
nas estipulações e exigências da lei divina. Como fez com Jó no passado, e como tem
feito ao longo da história com todos os fiéis do Antigo Testamento, Satanás os acusa
diante de Deus (Ap 12.10). Satisfazendo, portanto, a exigência legal da morte expiatória
pelos pecados do seu povo, Cristo destruiu completamente o “escrito de dívida”, ou seja,
o poder maligno de acusar o povo de Deus. Todos os argumentos satânicos que podiam
estar naquele “papel" foram silenciados na cruz de Cristo.
Por esse motivo, Paulo completa: “e, despojando os principados e as potestades,
publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”. Geralmente, esse triunfo
de Cristo sobre os acusadores é visto como uma descrição que usa termos militares.
Segundo essa interpretação, a vitória de Cristo se assemelha à vitória de um exército sobre
outro exército, quando o derrotado é despojado, humilhado e conduzido para um desfile
triunfal em honra do exército vencedor. A sequência seria: Cristo desarmou (despojou)
os principados, e expôs a derrota deles publicamente, desfilando triunfalmente com eles.
Porém, entendo que os termos são mais jurídicos do que militares. É evidente que há uma
vitória militar em toda essa história, mas ela é sustentada por uma vitória jurídica. O
primeiro termo utilizado para descrever o efeito direto da destruição do “escrito de
dívida” é “despojamento” (ἀπεκδυσάμενος). O termo literalmente significa “despir”. Por
esse motivo, praticamente todas as traduções estabelecem que Cristo “despojou”,
“despiu" ou “desarmou” os principados e potestades. Mas há uma dificuldade oculta por
essa escolha de tradução. É o fato de que, no grego, o verbo está na voz “média”. Isso
implica num forte teor reflexivo do verbo15. Ou seja, o sujeito do verbo é que está se
despindo. Quem é o sujeito da ação? Paulo não estabelece claramente, mas certamente é
Deus ou Cristo, como os versos 12-13 estabelecem. Parece que Paulo está dizendo que
Deus realizou todas essas ações através de Cristo, o que obviamente não exclui o próprio
Cristo de ser também o agente delas. Então, literalmente, Paulo está dizendo que “Cristo
se despojou”. Em outros dois lugares, Paulo usa essa expressão na carta aos Colossenses.
A primeira é um verbo cognato usado no mesmo contexto deste texto, quando ele

15
James D. G. Dunn. The Epistles to the Colossians and to Philemon: a commentary on the Greek text.
New International Greek Testament Commentary. Grand Rapids, MI; Carlisle: Eerdmans; Paternoster
Press, 1996, p. 167.
menciona o batismo cristão como uma substituição da circuncisão: "Nele, também fostes
circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que
é a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11). A outra ocorrência está em Colossenses 3.9: “Não
mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos”.
Em ambas, é o sujeito quem está se despojando. Porém, a primeira menção é mais
importante, pois está ligada diretamente ao contexto do verso 15. Paulo está dizendo que
os crentes têm sido despojados de seu corpo carnal através do batismo. Ele chama isso
de a “circuncisão de Cristo”. Na cruz, Cristo se despojou de seu corpo, por isso, os crentes
também podem se despojar do corpo, de maneira a não serem mais escravos do pecado,
conforme Colossenses 3 assevera.
Portanto, o texto está dizendo que Cristo se despojou. Porém, como entender então
a referência imediata aos “principados e potestades”? E deve ser notado que esses dois
termos aparecem no acusativo no grego, mostrando que também houve uma ação sobre
eles. A solução pode estar em manter os dois significados. Para poder despojá-los, ele
teve que também se despojar. Cristo e os demônios foram à cruz. E nela, todos foram
despojados. Portanto, Paulo está falando do preço que Cristo teve que pagar. Tratava-se
de um preço jurídico. Uma exigência da Lei, enfatizada pela acusação registrada no
escrito de dívida. Como os acusadores exigiam, Cristo se despojou. Assim, a exigência
formal dos acusadores foi satisfeita quando Cristo entregou seu corpo para ser pregado
na cruz, porém, ao mesmo tempo, ele pregou lá o “escrito de dívida”, então, despojou
também lá os principados e potestades.
A próxima ação sofrida por eles foi uma “pública e vigorosa exposição”
(ἐδειγμάτισεν ἐν παρρησίᾳ). Certamente, a linguagem militar está presente mais uma vez,
pois a derrota no campo de batalha era seguida da ridicularização pública do exército
derrotado. Porém, deve ser notado que há um jogo de imagens na passagem, pois a
crucificação era também uma exposição pública. Não se tratava de uma simples execução,
mas de um show público, um momento de execração do condenado, sendo também uma
forma de prevenir que outros seguissem o exemplo dele. Aqui, especificamente, deve ser
lembrado o que foi dito sobre o papel de Satanás na morte de Jesus. Como argumentamos,
é nossa convicção de que Satanás não sabia que a cruz seria o instrumento legal da
redenção. Portanto, sem conseguir fazer com que Cristo pecasse, o inimigo o conduziu à
cruz. Mais uma vez deve ser lembrado que Lucas e João narram o papel de Judas na morte
de Cristo como algo potencializado por Satanás, o qual efetivamente possuiu o tesoureiro
do grupo apostólico. Lucas narra que Satanás entrou em Judas antes da preparação da
páscoa, e, então ele foi procurar os sacerdotes para acertar a venda de Jesus (Lc 22.3-6).
E João narra que isso aconteceu também durante a própria ceia, quando Jesus indicou o
traidor como aquele que comeria o pedaço de pão molhado: “E, após o bocado,
imediatamente, entrou nele Satanás. Então, disse Jesus: O que pretendes fazer, faze-o
depressa” (Jo 13.27). Como consequência, Judas saiu (Jo 13.30), e retornou mais tarde
com a escolta para prender a Jesus (Jo 18.1-3). Então, nos dois momentos cruciais da
entrega de Jesus às autoridades judaicas, Judas agiu possuído por Satanás. Portanto, se
Satanás quisesse desviar Jesus da cruz, ou mesmo se imaginasse que a cruz poderia ser o
instrumento da redenção, parece ilógico que ele possuiria Judas no momento da traição.
Disso concluímos que Satanás empreendeu todos os esforços para que Cristo fosse
crucificado, e assim, exposto ao vexame público. O que ele não podia imaginar naquele
momento é que o tiro sairia pela culatra. Por um lado, ele conseguiu a exposição pública
de Cristo, conseguiu que o Filho de Deus fosse humilhado pelos homens. Mas, ele não
contava que, ao final, a cruz revelasse uma humilhação muito maior, a do próprio Satanás
e seus demônios, que se viram despojados de todos os seus direitos, e expostos ao ridículo
perante os anjos e perante todos aqueles que viriam a compreender o Evangelho. Nesse
sentido, a vergonha de Cristo acabou no Domingo, mas a de Satanás e seus demônios
não.
E, finalmente, o texto diz que Jesus “triunfou” deles na cruz. O termo “triunfou”
(θριαμβεύσας) é utilizado em 2Co 2:14: “Graças, porém, a Deus, que, em Cristo, sempre
nos conduz em triunfo e, por meio de nós, manifesta em todo lugar a fragrância do seu
conhecimento”. O sentido do verbo “conduzir em triunfo” evoca realmente a ideia de um
“desfile triunfal”. De fato, após a vitória e o despojamento dos inimigos, o exército
vencedor costumava desfilar em triunfo pelas ruas de Roma. Assim, a vitória de Cristo é
consumada nesse desfile triunfal, o qual começou na cruz, e por certo, se estendeu até a
subida de Cristo ao céu16. Ao final do desfile triunfal em Roma, geralmente havia uma
execução dos inimigos17. A expulsão de Satanás do céu na ascensão de Cristo (ver
capítulo sobre ascensão), ou mesmo seu lançamento para o lago de fogo, de algum modo,
se encaixam com essa ideia.

16
Douglas Moo entende que na cruz Deus “desarmou” os principados e potestades, mas foi através da
ressurreição e ascensão que Que Deus colocou em pública evidência essa vitória de Cristo sobre os
poderes malignos (Douglas J. Moo. The letters to the Colossians and to Philemon. The Pillar New
Testament Commentary. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Pub. Co., 2008, p. 215.). Essa ideia é
correta, como demonstraremos a seguir, porém, como também já demonstramos, a morte vergonhosa de
Cristo na cruz representa a humilhação de Satanás. Portanto, o desfile triunfal começou na cruz.
17 Thomas Schreiner. New Testament theology: magnifying God in Christ. Grand Rapids: Baker Academic,

2008, p. 371.

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