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A Traição como possibilidade de desenvolvimento psicológico.

Este artigo busca ampliar a percepção que usualmente se tem da traição,


desmistificar o tabu que a envolve e observá-la por diversos ângulos com base no
texto “Traição”, de James Hillman (1981).
Traições há muitas, desde aquela que pensamos de forma mais imediata
como nos relacionamentos amorosos, até as que se estendem de forma muito
mais ampla, como as que se passam entre amigos, irmãos, pais e filhos, crenças
religiosas e ao país, por exemplo.
Traição é uma palavra que assusta, geralmente causa medo, desconforto,
desconfiança. De forma geral é associada a algo pejorativo, tanto pelo lado do
traído, muitas vezes identificado como a vítima, como pelo lado do traidor,
apontado como o algoz. Traição implica na quebra de uma confiança, de uma fé
intensificada e idealizada que se tem em alguém ou em algo. Quando
estabelecemos um relacionamento profundo temos o desejo de sermos contidos
por ele, de podermos nos expressar mesmo através das nossas formas mais
sombrias, nas nossas próprias ambivalências, e sermos totalmente
compreendidos. “Queremos a segurança do Logos, onde a palavra é Verdade e
não sofre abalos”, conforme esclarece Hillman (1981, p. 81).
Mas essa é a condição pueril da consciência, na qual tudo se sabe e não
há conflito. Conforme explica Jung, o ser humano não funciona dessa maneira, e
precisa lidar com a tensão entre opostos e com a compensação de algumas
disparidades consteladas em ideias e comportamentos. A psique é composta por
uma dimensão consciente, e outra, inconsciente e, segundo Jung (2013 p. 13),
elas normalmente não concordam entre si, podendo se comportar de forma
complementar e compensatória. Jung explica que o inconsciente guarda
conteúdos que antecedem a passagem do indivíduo a uma nova consciência e
essa, por sua vez, inibe o que considera incompatível com seus desejos e normas,
“empurrando” o que o ego entende como conflitivo para o inconsciente. Desse
modo, podemos depreender que o homem que se apresenta ao mundo como o
mais fiel dos parceiros contém um traidor dentro de si, o qual, na maioria das
vezes não é reconhecido, assim como a mulher de mil amantes guarda no seu
interior a castidade.
A confiança e a traição constituem uma antinomia arquetípica, um par de
opostos, na qual uma contém a outra, portanto só podemos ser de fato traídos
quando confiamos excessivamente, conforme explica Hillman:
Onde quer que exista confiança em uma união o risco de traição
torna-se uma possibilidade real. E a traição, como uma
possibilidade que se deve sempre contar, é parte integrante da
confiança, da mesma forma que a dúvida integra uma fé viva.
(HILLMAN, 1981, p. 82)
Assim, é de se esperar que quando há confiança excessiva num
relacionamento, possa ocorrer traição, e isso pode levar a um amadurecimento
do relacionamento, quando um ou ambos parceiros conseguem mudar a forma de
enxergar-se a si mesmos e ao mundo, em suas inúmeras multiplicidades. Quando
se vê o mundo, a pessoa, a relação, apenas pelo lado da confiança, sem admitir
as diversas possibilidades, inclusive de uma traição, trata-se a situação de forma
unilateral, sem saber ou lembrar que somos muitos dentro de nós mesmos.
O ego na cultura Moderna, acredita ser único, é levado a se sentir, se
constituir e se experimentar como se apenas ele existisse, conduzindo a um
monoteísmo da consciência, sem conseguir considerar os aspectos inconscientes
que muitas vezes nos tomam, agindo de forma relativamente autônoma e
compulsiva, por conta dos complexos.
Como explica Jung (2013, p. 278) “a consciência pode ser entendida como
um estado de associação com o eu”, sendo o eu composto por vários elementos
heterogêneos, “constituído de imagens provindas das funções sensoriais que
transmitem os estímulos tanto de dentro como de fora”, e que tem um forte poder
de coesão. Jung (2013, p. 279) esclarece que “a consciência do eu é um complexo
que não abrange o ser humano em sua globalidade”, que o ser humano ouve e vê
muitas coisas das quais não toma consciência, que não faz ideia dos processos
orgânicos que ocorrem no interior do seu corpo, e que “há pensamentos que se
desenvolvem à margem da consciência, plenamente configurados e completos e
a consciência os ignora totalmente”.
Esses pensamentos inconscientes, configurados e completos podem ser
complexos afetivos que, às vezes, constelam, ou seja, perturbam o estado de
consciência, rompendo a sua suposta unidade e dificultando as intenções da
vontade, nos colocando num estado privado de liberdade, com pensamentos
obsessivos e ações compulsivas, conforme explica Jung (2013, p. 43). Segundo
Jung, um complexo afetivo:
é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga
emocional e, além disso, incompatível com as atitudes ou
disposição habitual da consciência. Esta imagem é dotada de
poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de
uma grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está
sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo
limite (JUNG 2013, p. 43).
Os complexos estão presentes nos indivíduos, e, também nas suas
relações interpessoais, que são compostas dos aspectos conscientes e
inconscientes, individuais e coletivos. Assim, pode-se ter uma ideia de quão
complexo é um relacionamento e de seus inúmeros possíveis desdobramentos.
Essa ampliação da consciência pode levar o indivíduo a perceber de forma
mais clara o mundo em que vive e a sua responsabilidade de como estar nele,
podendo de alguma forma escolher não viver apenas no mundo das fantasias, dos
seus desejos pueris de confiança inquebrantável, por mais sedutores que eles
possam parecer.
Mas as coisas não são tão fáceis assim... o indivíduo traído sente-se, nas
palavras de Hillman (1981, p. 85), ao se referir às traições que Jesus sofreu
culminando na sua crucificação: “Em cada uma dessas traições ele vê-se forçado
ao terrível reconhecimento de ter sido traído, abandonado e deixado só. Seu amor
foi recusado, sua mensagem mal entendida, seu chamado negligenciado e seu
destino proclamado”.
Tais sentimentos são de difícil digestão para nós, mortais, por mais que
nossa cultura nos leve a acreditar ilusoriamente que somos deuses e que
podemos, portanto, agir como eles. Para o mortal, o sentimento da traição é
muitas vezes dolorido e humilhante, implica em lidar com sentimento de rejeição,
por termos sido preteridos em favor de algo ou alguém, de sermos rebaixados
perante o nosso próprio ego que acreditava ser super poderoso.
Nesse momento de sofrimento os complexos sombrios podem ser
constelados na forma de ideias de vingança, buscando ferir o outro como o
indivíduo se sentiu ferido, na esperança de lavar a própria honra, e, com isso,
restituir um pouco o narcisismo ferido. O problema do sentimento de vingança é
que ele fica restrito a uma visão unilateral do traído que se identifica com a imagem
arquetípica da vítima, inibindo a ampliação da sua consciência e negando os
aspectos positivos que até então eram parte do objeto de amor. Então, aquele que
traiu perde completamente seu valor no relacionamento e passa a ser tratado
como um rival que precisa ser destruído, em função de uma compensação das
emoções.
Outra forma negativa de lidar com a traição é o cinismo, conforme explica
Hillman (1981, p. 88), onde se nega o valor do outro, da relação, mas a mesma é
mantida de uma forma falsa a fim de esconder as feridas. Em consequência disso,
o indivíduo que sofreu a traição diz a si mesmo que não voltará a confiar, sem
perceber que pode estar traindo suas próprias aspirações e desejos. Quando o
indivíduo trai a si mesmo ele considera que o outro, a relação com o outro e tudo
que foi gerado, desenvolvido, conquistado nessa relação é ruim, estéril, sujo, feio,
desagradável. Assim, o que era considerado o melhor é agora vivido como se
fosse o pior, a pessoa vai contra si-mesma e contra seus próprios valores.
Distanciamo-nos de nós mesmos e do que acreditamos, pois entendemos que a
forma como somos e como lidamos com as pessoas e com a vida nos gera
sofrimento, e precisamos nos proteger. Escolhemos fingir para nós mesmos que
aquilo que considerávamos tão valioso na verdade não tinha valor algum e que
fomos tolos ao acreditar naquilo, e assim traímos o que sentimos, o que foi
importante, a nossa maneira de ser e de agir no mundo. Traímos a nós mesmos
e decidimos agir diferente, tentamos mudar nossos valores ou nos privamos de
novas tentativas em busca do que considerávamos (e, de fato, muitas vezes,
ainda consideramos) valioso, deixando um vazio, um buraco, uma mentira em nós
mesmos.
Para nos afastarmos dessas armadilhas de vingança, cinismo, autotraição,
Hillman faz uma analogia simbólica com a experiência de traição sofrida por Cristo
na Cruz, apontando “a exigência essencial de que se assuma e se carregue o
próprio sofrimento e de que seja o que se é não importa o quanto isso possa doer”.
E, ainda, que “É o traído quem de alguma forma deve cuidar da própria
ressureição, dar o passo adiante, por meio de sua própria interpretação do que
aconteceu” (HILLMAN 1981, p. 90 e 91).
E quanto aquele que trai? Bem... todos também traímos, por mais que às
vezes isso possa ser incômodo de admitir. Quebramos promessas, traímos
segredos, nos omitimos quando esperam de nós que nos coloquemos, ignoramos
pessoas que nos querem bem, temos atitudes que traem nossos próprios valores.
Fazemos isso ora de forma mais consciente, ora menos, ora de maneira mais
brutal, ora de modo mais sutil. E quando traímos precisamos lidar com a nossa
culpa, nosso lado mais sombrio, que custamos a reconhecer que faz parte de nós,
pois está longe do que idealizamos a respeito de nós mesmos, nos aproximando
dos nossos traços mais arcaicos e da nossa natureza amoral.
Se aquele que trai assume a responsabilidade pelo seu ato, carrega a sua
culpa, reconhece o seu lado sombrio, talvez aquele que foi traído possa em algum
momento, após um trabalho de ampliação de perspectiva, considerar perdoar
quem o traiu. Perdoar uma traição pode ser fruto de perceber que a confiança era
excessiva e que quem traiu pode ter sido tomado por seus próprios complexos
sem poder conter a autonomia deles, é compreender que todos somos frágeis,
que todos podemos eventualmente cometer uma traição, e que a consciência não
está só quando tomamos decisões.
Nas palavras de Hillman (1981 p.95): “Da mesma forma que a confiança
possui a semente da traição, a traição contém em si a semente do perdão”.
Perdoar não é esquecer, pois o remorso e o arrependimento de quem trai e o
ressentimento e a raiva de quem sofreu a traição não permitirão o esquecimento
do ocorrido como explica Hillman (1981 p.96), mas perdoar pode levar a
reconciliação com o fato que aconteceu.
Temos dificuldade de perceber que a traição é arquetipicamente inerente
à confiança e que todos estão sujeitos a sofrê-la e a cometê-la. É complexo
observar que temos desejos, necessidades e consequentemente atitudes
contraditórias em nós mesmos, as quais são refletidas nas relações que vivemos,
sejam elas de que natureza forem, amorosas, de trabalho, de fé, de amizade, de
analista e analisando, de líderes políticos e religiosos, e assim por diante. Porém,
se nos dermos ao trabalho de avaliar os contextos nos quais a traição ocorreu, se
observarmos o fenômeno também na perspectiva de quem cometeu a traição
quando assume a sua culpa e a sua fragilidade, e no papel desempenhado por
aquele que foi traído, mas que também pode trair; enfim, se considerarmos a
multiplicidade de partes da personalidade que existe em cada um e em toda
relação, talvez possamos transcender a imagem estereotipada do algoz e da
vítima, e perceber como a traição pode servir à vida dos envolvidos, motivar
reflexões, mudanças e amadurecimento psicológico.
Naturalmente, nem tudo são flores e nem todos serão capazes de superar
plenamente as traições, ser transformados por elas ou se reconhecer como
potencial traidor, mas se pudermos ampliar nossas perspectivas, teremos mais
chances de lidar de forma mais consciente com essas situações tão dolorosas. A
psicoterapia pode ser um espaço protegido para lidar com questões dessa
natureza, onde existe o papel do terapeuta, um terceiro não envolvido com a
situação, que pode auxiliar a vê-la por diversas perspectivas, trabalhando e
refletindo junto com o cliente para uma possível ressignificação da traição.

Referências:
HILLMAN, James. Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé,
1981.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10a.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

TARSILA DE NÍCHILE – Engenheira química, pós graduada em gestão de


projetos, mestre em administração de negócios (MBA), pós graduanda em
psicologia junguiana e analista junguiana em formação pelo IJEP. São Paulo.

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