Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
https://1drv.ms/u/s!Aj6kOBkyV630khcEvKdfnFl6K5aP?e=hcoacK
______________________
Dados básicos
__________________________________________
A MORTE DO CAPITÃO-MOR
3 Atos
Primeiro Ato
Cena 1
Mercedes ─ Não te deixes vencer pelo desespero, meu pobre Álvaro. Olha, eu estou
a teu lado, amo-te ainda como no primeiro dia de nossa união; amar-te-ei sempre,
sempre! Porventura já não me consagras o mesmo afeto? Enoja-te minha presença?
Minhas palavras te aborrecem? Fala.
Álvaro ─ És tudo.
Álvaro ─ Se não foras tu, eu teria sido... nem sei o quê! Um amálgama confuso de
muitos vícios e muitas virtudes, um misto contraditório do bem e do mal, do erro e da
verdade. O que sou tu o conheces, o que poderia ou o que deveria ser, ignoras. Não
importa, amo-te muito... nada nos separará... Oh, se o tivéssemos junto de nós...
Álvaro ─ Sossega. Foi uma ligeira vertigem. Ressinto-me ainda da terrível moléstia
que ia me levando à sepultura. Quanto não sofreste nestas longas noites perdidas à
minha cabeceira, Mercedes!
Mercedes ─ Não falemos nisso. Graças a Deus estás restabelecido. Desejava agora
ver-te feliz.
Mercedes ─ Pensa naqueles que por esta noite de tormenta caminham fustigados pela
chuva e pelos ventos, que se debruçam sobre a terra alagada e não acham outro leito
senão os pântanos e fossos lamacentos cavados pelas enxurradas.
Álvaro ─ Chamas a isso desgraça, não é? De que nos serve uma boa mesa quando
nos falta o apetite? Um bom leito quando nos foge o repouso? Fui soldado, caçador,
viajante; hoje sou um indigente: conheço por experiência própria as privações de que
falas.
Álvaro ─ Nunca neguei a Providência, bem o sabes. Muito temos sofrido, tu com
paciência, eu... concentrado em meu sombrio desespero, mas enfim temos arrostado
[encarado sem medo] os furores da sorte...
Mercedes ─ Então?
Álvaro ─ Oh! Alguma coisa de mais acerbo do que nossas desgraças aparentes, mais
implacável do que a própria miséria tortura-me a todos os momentos. Agora mais do
que nunca! A não ser essa obstinada doença que me surpreendeu em uma terra
desconhecida e exauriu-me ao mesmo tempo as forças e os recursos, deixando-nos neste
lastimável estado, eu teria sido feliz, nós teríamos sido felizes, Mercedes. Poderia
sustentar a honra e o brilhantismo de minha casa, de meu nome, do nome de meu pai.
Álvaro ─ Sim, nós o teríamos encontrado! Fui sempre flagelado pela fortuna! Agora
mesmo, acaba ela de cercar-me em um lugar onde não posso ne defender, onde estou
enfermo, pobre e só!
Álvaro ─ Pior do que só!! Condenado a envolver, essa minha desgraça, tudo o que
amo!
Mercedes ─ Oh, se o é!
Mercedes ─ O Capitão-Mor.
Álvaro ─ O Capitão-Mor! A estas horas talvez ele contemple feliz o produto das
minas de ouro que me deviam pertencer, conte o número dos escravos que deviam ser
meus, levante maravilhosos castelos em um futuro que me estava destinado! E nós, e
nós Mercedes!... Oh! Isto é para enlouquecer!
Mercedes ─ Talvez nosso filho voltasse para junto de teu pai e reivindicasse teu
lugar.
Álvaro ─ Ilusão! Meu pai prometeu que sua cólera não passaria de minha pessoa,
que meu filho seria considerado seu herdeiro, e na falta de meu filho o Capitão-Mor. O
fado inexorável roubou-me meu filho!...
Álvaro ─ Talvez.
Mercedes ─ O coração materno não mente, nosso filho não morreu, Álvaro.
Confiemos na Providência. Ela já nos auxiliou ajudando-nos a iludir a vigilância do
Capitão-Mor.
Álvaro ─ Falaz seguridade [Segurança ilusória]! Agora mesmo parece que me vejo
cercado de seus espiões, rodeado de suas ciladas traidoras! Quem sabe se não nos
seguiu os rastros até aqui?
Álvaro ─ O que parecemos ser... dize antes o que somos, mendigos esfarrapados,
doentes, sem futuro mesmo a nossos próprios olhos. Ah! Ah! Ah!
Álvaro ─ Quem descobriria sob estes andrajos o ânimo altivo do rebentão [filho] de
uma das mais ilustres casas de Portugal? O descendente dos heróis dos Lusíadas? O
herdeiro de um vasto domínio colmado [recoberto] de minas de ouro e de brilhantes? O
senhor de milhares de cativos?... A vida é uma comédia, Mercedes, eu sou um péssimo
ator, não represento bem meu papel.
Álvaro ─ A filha do velho soldado era pura, era virtuosa. Eu amava a filha do velho
soldado porque me apareceu como o anjo da salvação em meu caminho de loucuras e
desvarios. Além disso, esperava elevá-la à classe para a qual tínhamos nascido.
Mercedes ─ Teu pai não pensava assim, expulsou-te de sua casa por teres te casado
com uma mulher sem nascimento.
Mercedes ─ Escuta.
Álvaro ─ Batem!
Mercedes ─ Quem nos procurará a estas horas, neste velho e arruinado convento?
Não recebemos visitas.
Álvaro ─ A pobreza nenhuma visita recebe que não a torne mais pobre. Abre, estou
prevenido.
Cena 2
Geraldo ─ Boa noite minha senhora, boa noite senhor... Como se chama?
Álvaro ─ Então?...
Geraldo ─ Dir-se-ia que lhe pergunto alguma coisa de mais difícil do que seu nome?
Geraldo ─ De mais ou de menos, não façamos questão de tais ninharias. Sabe que
sou administrador deste convento e mais propriedades anexas pertencentes aos padres
da Companhia de Jesus. É verdade também que eles entregaram há muito o velho
edifício aos morcegos e almas do outro mundo. Fazem, porém, dois meses que o Sr.
aqui está e ainda não lhe conheço o nome. Isto parece mal.
Geraldo ─ Muito bem. Não seria bom, para estreitar nossas relações, tomarmos um
bom copo de vinho?
Álvaro ─ O Sr. sabe que sou pobre e doente, e não compreende que desejo estar só!
O que o traz aqui?
Álvaro ─ Fale.
Geraldo ─ Virgem santa! Espere, ainda não acabei meu recado. Um moço da
comitiva pediu-me que corresse a preparar um aposento... ou uma sepultura para seu
amo.
Geraldo ─ Seu nome? Grande Deus! Quem sabe se ele ainda tem um nome? Devia
fazer esta pergunta quando ela ainda podia responder, ou reservá-la para quando tiverem
de fazer o seu epitáfio. Ainda há pouco o Sr. achou mau o costume de se indagar nome
das pessoas.
Conrado ─ Pascoal, solta o meu cavalo, ele não arredará destes lugares, não há
perigo de sumir-se. Entre, minha senhora.
Álvaro ─ A voz deste moço penetra-me até o coração! Estranho sentimento desperta-
me na alma sua fisionomia.
Conrado ─ Não sei. Está salvo. Minha senhora, descanse sem receio, eu vou ver seu
pai.
Conrado ─ O pai desta senhora ficou a cinquenta passos daqui, mudando de roupa
em uma choupana perto do rio. Os Srs. terão a bondade de preparar-lhe um cômodo por
esta noite. Creio que já foi feito o pedido, não importa.
Bruno ─ Não, fico. A noite está fria, o chão encharcado. Mudei de roupa, não quero
molhar-me de novo.
Bruno ─ O primeiro que se atirou ao rio fui eu, mas quem tirou o marquês das ondas
foi o moço que daqui saiu...
Álvaro ─ Um marquês?
Bruno ─ Não.
Geraldo ─ E o seu?
Geraldo ─ Este indivíduo é seco e reservado, duas qualidades que não me convêm.
Vou, contudo, buscar a aguardente que pede, ela lhe desembaraçará a língua. A menina
dorme no seu banco. (Sai.)
Cena 4
Álvaro ─ Pertence.
Álvaro ─ O aposento que destinam à pessoa que o Sr. salvou é mais cômodo e
resguardado do que este.
Bruno ─ Ainda tenho recentes cicatrizes de meu último combate! Não foi no campo,
face a face, peito a peito, porém no meio das brenhas e das serranias...
Bruno ─ Sim. Pois não tem conhecimento dessas quadrilhas de salteadores que se
põem de alcateia nas gargantas das cordilheiras para agredirem os negociantes, as
bagagens carregadas de ouro do governo, que descem de Minas Gerais?
Álvaro ─ Obrigado, Sr. Sou mendigo de fato, mas não o sou de profissão. Quando
precisar de alguma coisa, sei a quem me dirigir.
Bruno ─ Não se encolerize comigo. É de coração que lhe fiz este oferecimento.
Geraldo ─ Ora, eis aqui o aguardente. É o melhor desta província. Beba depressa,
que o fidalgo e sua comitiva não tardarão.
Bruno ─ A linda senhora que encontrei na sala vizinha, não é sua esposa?
Geraldo ─ A aguardente?
Bruno ─ Ah! aí vem o nosso ilustre hóspede. Menina, menina acorde, seu pai chega.
Cena 6
Geraldo ─ Ninguém fala com o Sr. Eis ali alguém que não lhe deve ser estranho.
Bruno ─ Nada tem que me agradecer. Quando me lancei ao rio, já este valente
mancebo [jovem] o tinha livrado.
Capitão-Mor ─ Meu amigo, aperte minha mão, eu lhe saberei mostrar que não sou
ingrato. O Capitão-Mor Guilherme de Almeida não desconhece um benefício.
Álvaro ─ Conrado!
Cena 7
Geraldo ─ O Sr. parece incomodado, sua filha está bastante cansada. Não quer se
retirar ao aposento que lhe preparei?
Conrado ─ Vamos, Sr. Capitão-Mor, esse homem bem tem razão. Convém repousar
depois do contratempo que sofreu.
Capitão-Mor ─ Vem, minha filha. Meu amigo, tenha a paciência de nos acompanhar.
Capitão-Mor ─ (em pé, depois de olhar Álvaro) Não há dúvida. Há dez anos que não
o vejo, porém acabo de reconhecê-lo. Como está mudado!... É ele!... Sim, é ele!... Por
que deixei eu em S. Paulo aqueles que me podiam auxiliar! Não importa... Convém não
arredar dele os olhos... espreitar-lhe os menores movimentos... Porém, prudência: a
precipitação transtornará tudo!
Capitão-Mor ─ Cale-se.
Álvaro ─ Dirija-se a estas paredes. Não costumo responder às pessoas que não
conheço, quando têm a indiscrição de interrogar-me a respeito de minha vida.
Capitão-Mor ─ O administrador disse-me que o Sr. estava aqui retido por moléstia...
Desejava ser útil... quem sabe se viajamos na mesma direção?
Álvaro ─ Engana-se.
Capitão-Mor ─ Entretanto, não sabe qual é a minha viagem.
Capitão-Mor ─ Parece-lhe?
Geraldo ─ Não tive intenção de contrariá-lo, queira apenas ser-lhe útil. Como,
porém, o Sr. agasta-se, desculpe-me. Sr. administrador, preparou também um quarto
para minha filha?
Capitão-Mor ─ Espere. Ah! ali vejo uma senhora. É sua esposa, talvez... Minha
senhora, tenha a bondade de conduzir minha filha ao quarto que me está destinado, eu
esperarei que o Sr. administrador me veja outro.
Geraldo ─ Meu amigo, Sr. Leôncio Martins, pode-me fazer o favor de ajudar-me a ir
preparar um outro quarto para o Sr. Capitão-Mor? Estou só, bem vê.
Álvaro ─ Vamos.
Bruno ─ Vou esgotar a garrafa com a comitiva que está na sala vizinha. (Saem.)
Cena 8
Capitão-Mor ─ Pode ser que me engane,... não importa. Se é a pessoa que desconfio
ser... devo livrar-me dela o mais breve possível.
Capitão-Mor ─ Tenho ordem do vice-rei para prendê-lo. Vou mandar à cidade mais
próxima buscar uma força conveniente, a fim de tornar efetiva essa ordem. Esta maldita
inundação, porém, transtorna-me os planos.
Capitão-Mor ─ Oh, não pode ser indiferente a um negócio que é para mim mais
importante que a própria vida que lhe devo. Não perca de vista esse homem, espreite-o
como se espreita um animal feroz acuado pelos cães... Como um animal feroz, é
necessário que ele sucumba.
Conrado ─ Então este homem doente, pobre, atribulado, este viajante miserável
disputa-lhe a posse de tantos tesouros?
Capitão-Mor ─ É verdade.
Capitão-Mor ─ Tiveram sim. O avô o tinha chamado para sua companhia e prometia
deixar-lhe a herança. Esse obstáculo não existe mais para mim. O rapaz desapareceu há
dez anos.
Capitão-Mor ─ Sim, há dez anos. Ninguém sabe para onde ele foi, seguiu o exemplo
do pai, ou... talvez já tenha morrido... Ainda mesmo que reaparecesse, não me
incomodaria muito... Suas pretensões são infundadas... mas o Sr. ri-se?
Capitão-Mor ─ Devemos tudo temer quando tudo temos a ganhar, diz a sabedoria do
povo.
Álvaro ─ Seus olhos estão fixos sobre mim, como os da serpente sobre o pássaro
incauto!... Miserável!
Capitão-Mor ─ Espere. Perdi no trajeto do rio para aqui uns papéis de suma
importância. Já prometi uma boa recompensa a quem os achar. Se alguém os tiver
encontrado, quero que me entreguem hoje mesmo. Não importa que esteja dormindo,
acordem-me. Vamos.
Cena 10
Álvaro ─ Eis-me nas mãos de meu mais encarniçado inimigo! Que fazer? Como sair
daqui, fraco, enfermo, sem o mínimo recurso!... Miséria desgraçada! Agora compreendo
tudo: o administrador, o indivíduo que me ofereceu sua bolsa eram espiões!... O próprio
mancebo que conduzia a filha do Capitão-Mor... Oh!... não serei porventura vítima de
uma alucinação? Conrado!... se fosse ele... se fosse meu filho!...
Álvaro ─ Pensas bem: esse mancebo não conta mais de vinte anos.
Álvaro ─ É ainda uma irrisão [zombaria] da sorte, Mercedes!... Não creias. Nós
nunca veremos a aurora da felicidade: aquele que chamas de filho, que te faz tão
docemente palpitar o coração, é um miserável! É um infame espião do Capitão-Mor!
Mercedes ─ Não, Álvaro, a voz da natureza, a voz de Deus falam-me aos ouvidos. É
ele!
Álvaro ─ Mercedes!
Álvaro ─ Desculpe-a, é uma pobre mãe que se lembrava de seu filho ausente.
Conrado ─ Senhor, há muitos anos que não vejo minha mãe... as palavras da senhora,
seu tom de voz...
Conrado ─ Oh! Pelo amor de Deus!... Mercedes!... deixe-me olhar para seu rosto...
deixe-me!... Eu tenho ainda uma lembrança dela!... Sim, ela me contemplava assim...
ela tinha este sorriso... ela... Minha mãe!
Álvaro ─ A mentira não fala deste modo! A mentira persuade... não convence! É ele!
Álvaro ─ Por onde tens andado até hoje? Como saíste de sua casa?
Álvaro ─ Depois...
Conrado ─ Sei.
Conrado ─ Meu pai!... Meu pai, o que dizeis?... Meu avô é morto?... Seus bens
passam para as mãos do Capitão-Mor? E vós sois indigentes?... E eu...
Conrado ─ O Capitão-Mor ignora completamente os laços que nos ligam, tanto que
me incumbiu de vigiar-vos.
Álvaro ─ Quem nos diz que não é uma cilada que esse demônio nos arma, uma
cilada em que devemos cair eu, tu e tua mãe?
Conrado ─ Partir esta noite mesmo. Não precisais em vossa fuga atravessar o rio,
deveis seguir o caminho que sobe pela margem esquerda. Eu ficarei para arredar as
suspeitas.
Conrado ─ Tomai este anel, tem uma pedra preciosa de grande valor. Pertenceu a
vosso pai, pertence-vos agora.
Álvaro ─ Meu filho.
Mercedes ─ E tu?
Conrado ─ Oh! Não vos inquieteis por minha causa. Não corro nenhum perigo, não
me faltam os recursos. Fácil me será encontrar outra cavalgadura. Aí vem o
administrador. Eu me retiro, experimentai-o. (Sai.)
Cena 12
Geraldo ─ Eu?
Geraldo ─ Oh, fale, fale. Que magnífica pedra!... Nunca vi tão grande, tão pura!
entretanto sou entendido na matéria.
Geraldo ─ Mas não estarei enganado? Será mesmo uma pedra preciosa? Deixe-me
examiná-la de novo. É verdade! É um brilhante de subido [alto] preço!
Álvaro ─ Posso confiar no Sr.? Sabe agora que meu nascimento é superior ao que
anuncia meu estado atual.
Álvaro ─ Tenho bastantes razões para ocultar meu nome e viajar disfarçado.
Álvaro ─ Não sou quem ele procura. Se me confundissem, entretanto, com essa
pessoa, grandes contrariedades poderíamos sofrer, eu e o Capitão-Mor. É para evitar
esse duplo inconveniente que desejo partir quanto antes.
Geraldo ─ Pouco me importa que o senhor seja ou não seja o tal indivíduo. Nada
tenho com isso. Além disso, não obteria nem a décima parte do que me oferece,
servindo esse velho vaidoso e avarento. Pode contar comigo. Deixe-me ainda uma vez
ver o brilhante.
Geraldo ─ Oh, gloriosa pedra! Oh, estrela sublime que me clareias o caminho do
futuro! Serás minha!... Sinto-me grande e poderoso como um rei!... Tome, tome, e até
logo. Vou dar as providências necessárias para sua partida.
Cena 13
Álvaro ─ Dorme.
Álvaro ─ É verdade.
Bruno ─ Quero satisfazer-lhe a vontade. Por onde subirei para ir ter com ele?
Álvaro ─ A escada grande da entrada está escura, não chegaria hoje lá sem uma luz.
Há grande número de salas e passagens.
Bruno ─ Então?
Álvaro ─ Entre por aqui. Bem no fundo deste corredor tem uma porta à esquerda.
Abra. Encontrará uma escada, depois um outro corredor, no fim uma saleta com
diversos quartos. No primeiro à direita está o Capitão-Mor.
Bruno ─ Obrigado.
Álvaro ─ Tenha cuidado de cerrar as portas. O vento que se engolfa por esta
passagem pode me fazer mal.
Álvaro ─ Mercedes repousa, infeliz! Não serei quem interrompa seu sono! Dorme,
companheira desditosa, anjo celeste cujas asas divinas cobrir-se-ão da poeira de minha
infausta romaria neste mundo! Dorme! Nos raros momentos em que cerras as pálpebras
para descansar, ainda tua alma é feliz! Porém eu, eu sou condenado a sofrer a todos os
momentos! Meus dias são uma cadeia de martírios, minhas noites um tecido de
pesadelos atrozes! Ah! Por que não nasci no tugúrio [casebre] grosseiro de um pobre
operário? Por que não me acostumei desde criança aos pesados trabalhos do corpo? Por
que em vez dos livros e da espada não aprendi a manejar uma enxada ou uma alavanca?
Então teria sido feliz! Minhas ambições não passariam de uma cabana humilde e da
certeza do pão quotidiano. Não conheceria a grandeza e a opulência, por isso não as
desejaria! A noite adianta-se. Não tenho sono, porém preciso repousar. Encostar-me-ei
mesmo aqui! Geraldo não deve tardar... Amanhã estaria livre... porém... talvez por bem
pouco tempo! A tempestade passou, o céu deve estar limpo... limpo, claro, recamado de
estrelas... como o céu que eu admirava nas noites de minha infância... belos tempos...
Como ainda tenho saudades!... e passou, passou como tudo nesta vida... não voltará...
mais. (Dorme.)
Cena 16
Bruno ─ Dorme! É necessário que eu saia quanto antes desta casa maldita!... Oh!
horror! horror!...
Mercedes ─ Senhor!
Bruno ─ Silêncio!
Bruno ─ Não acorde seu marido... alguma coisa de horrível acaba de suceder hoje
aqui. Deus!...
Mercedes ─ Oh!...
Mercedes ─ Olha... ele saiu por aquela porta... agora mesmo... a expressão de seus
olhos causava horror!...
Álvaro ─ Conrado!
Mercedes ─ Ah!...
Conrado ─ Passei por seu quarto... olhando para a cama, vi uma onda de sangue que
ensopava os lençóis... cheguei-me... o infeliz estava frio... imóvel... traspassado por duas
punhaladas certeiras... na região do coração!... Meu pai... meu pai!...
Mercedes ─ Conrado!
Conrado ─ Oh! Parece que ainda o vejo!... seus olhos ainda estavam abertos...
fixos... seus lábios pareciam sorrir...
Mercedes ─ Tu?
Álvaro ─ Sim! Deixei penetrar o assassino até seu quarto. Ainda é tempo. Acorda a
comitiva do Capitão-Mor, podemos prendê-lo...
Mercedes ─ Se o vi!...
Conrado ─ Sua filha!...dorme... não sabe o que sucedeu... é horrível!... Vamos, meu
pai, partamos quanto antes... é impossível ficarmos mais tempo nesta casa. Mudei de
intento: acompanho-vos também.
Cena 19
Álvaro ─ Ei-la.
Mercedes ─ Partamos.
Segundo Ato
Cena 1
Pascoal ─ Então?
Pascoal ─ Era...
Pascoal ─ Ah!
Rodrigo ─ Quero dizer. Olhe este Sr. Conrado: quando ficar velho há de ser o retrato
vivo do avô.
Rodrigo ─ Sr., vou ser claro. Sabe que conheço o Sr. Conrado há muito tempo. Veio
para a companhia do falecido patrão muito criança. Passou aqui alguns anos, depois
desapareceu não se sabe como, da noite para o dia, sem mesmo se descobrir para onde
fora.
Rodrigo ─ Não assevero, não sou eu que diz, declaro-lhe já, mas ouvi contar que
tinha sido levado por um bando de ciganos que vivem conluiados com os ladrões...
Rodrigo ─ Sim. Que se foi levado por esses ciganos, que vivem com esses ladrões,
que moram nos altos das serras, que...
Pascoal ─ E que deviam segurar-te e arrancar-te a língua para não repetires tais
baboseiras.
Conrado ─ Enganas-te. Os cães estão atrelados, os cavalos arreados, nada nos falta,
vês que estou preparado.
Conrado ─ Rodrigo, vás puxar os animais para junto do portão. Os outros caçadores
que me esperam na sala de baixo podem seguir com os cães.
Pascoal ─ Ora...
Conrado ─ É o que tenho pensado, porém sejamos prudentes. Mais tarde e em lugar
mais seguro conversaremos.
Conrado ─ Qual?
Sílvia ─ Sim, mas não gosto deste título. É tão frio! Parece-me que quando o
pronuncia só pensa no nosso parentesco, nos laços de sangue...
Conrado ─ De sangue?
Sílvia ─ Sim, meu Deus, por que falando em sangue seu rosto empalidece?
Conrado ─ Ah! É porque sua presença o faz refluir todo para o meu coração, que só
palpita por minha encantadora prima.
Sílvia ─ Ainda!
Conrado ─ Querida Sílvia! Não vê que minha voz foi o eco da sua?
Sílvia ─ Querida Sílvia! Chame-me sempre assim! Porque lhe pertenço, porque não
tenho outra afeição neste mundo depois que meu pobre pai...
Sílvia ─ Infortunado pai!... Não pude receber o seu último suspiro!... Quando me
levaram para junto de seu leito...
Sílvia ─ E tinha-lhe salvado a vida!... Nem teve tempo de reconhecer seu sobrinho!...
Conrado ─ Sim... não reconheceu, nem mesmo podia reconhecer!
Sílvia ─ Oh! Por mais uma hora tinha [teria] sido duas vezes seu salvador!
Sílvia ─ O sonho mente às vezes, porém outras vezes fala a verdade. Muitas vezes,
em sonho vejo meu pai... lívido... com a fisionomia combalida, banhado em seu próprio
sangue... vejo diante dele um homem de punhal alçado, de rosto ameaçador!...
Conrado ─ Dize a Pascoal que me espere por alguns minutos, e depois vai participar
a meu pai que desejo falar-lhe.
Rodrigo ─ Está também aí um pobre homem que deseja falar ao Sr. Dr. Álvaro.
Rodrigo ─ Já pensei que fosse um mendigo, porém ele diz que tem negócio
importante a comunicar.
Conrado ─ Manda-o então entrar e vai avisar meu pai. Ele aí vem, é inútil. Faze
entrar o homem.
Cena 6
Álvaro ─ Que esperem. Já se esqueceu que amanhã chega a Vila Rica o novo
governador e que não devemos faltar à sua recepção?
Conrado ─ É verdade.
Álvaro ─ Se for a essa caçada, só amanhã à tarde é que deve estar de volta.
Conrado ─ Meu pai representará suficientemente nossa falta. Eu não gosto dessas
festas oficiais.
Álvaro ─ Porém, meu filho, as principais pessoas do distrito, tanto velhos como
mancebos, hão de estar presentes. Tua ausência dará nas vistas.
Sílvia ─ Meu pai tem toda a razão, Conrado. Depois devemos ir ao templo agradecer
ao céu a restituição da herança de nossos maiores [antepassados]. Temos adiado sempre
este sagrado dever.
Conrado ─ Deu agora para beato e santarrão. Nada mais lhe faltava! Está bem, meu
pai, obedeço-lhe.
Sílvia ─ Com duas palavras, meu pai, conseguiu o que eu não alcançaria com um
discurso.
Álvaro ─ Não te zangues por isso: desejavas que ele obedecesse a ti, só? Há de vir o
dia em que terás mais império do que eu.
Álvaro ─ Ainda não foste dar os bons dias à tua mãe. Ela te espera na sala de jantar.
Geraldo ─ Sim, Sr., sou eu mesmo. Há um ano que não nos vemos, Sr. Leôncio...
perdão: Sr. D. Álvaro de Almeida!
Álvaro ─ E quem lhe disse meu nome? E como soube que eu morava aqui?
Geraldo ─ Ah! Meu Senhor! Depois daquela noite infernal em que aquele demônio
chamado Bruno assassinou o pobre Capitão-Mor e fugiu, e que o Sr. Leôncio... perdão,
o Sr. D. Álvaro saiu de minha casa... tenho sofrido o que há de pior neste mundo. Os
primeiros três meses, ainda os passei, mas quando lá chegou um batalhão ou um
regimento comandado por um terrível homem de polícia que ia em nome do Sr. Álvaro
de Almeida para trazer a menina, a filha do Capitão-Mor, e perseguir o assassino, fui
agarrado, maltratado, injuriado como se tivesse parte no negócio!... Custou-me a
escapar dos malvados!
Álvaro ─ A mim?
Geraldo ─ Andei escondido pelo mato algum tempo... escapei de ser assassinado
pelos ladrões das serras, que diziam que eu era um homem comprometedor. Ora vejam
só! Eu, um homem comprometedor. Consegui chegar a estes lugares. Hospedei-me em
casa de um caboclo, aí estive até antes de ontem. Saí à noite a dar um passeio e vi o Sr.
Leôncio... perdão, o Sr. D. Álvaro que passeava a cavalo. Quis falar-lhe, mas ia mais
gente e receei ser importuno. Voltando à cabana, contei o encontro ao meu hóspede
caboclo, e ele me disse que o Sr. Leôncio Martins era D. Álvaro de Almeida, o homem
mais rico e mais poderoso daqui.
Conrado ─ Depois?
Conrado ─ Comigo?
Conrado ─ É impossível!
Conrado ─ Daqui!
Álvaro ─ Meu amigo. Siga por este corredor. Vou mandar lhe dar um lugar para
descansar e alguma coisa para comer. Rodrigo!
Rodrigo ─ Sr.?
Conrado ─ Oh! Isto sucede à maior parte dos homens. Basta uma pessoa não
partilhar os preconceitos vulgares, ou não sujeitar-se às convenções interesseiras de uma
sociedade egoísta para sofrer a pecha de mau. O vigário não está livre dos falatórios do
sacristão, o fidalgo das intrigas de seu lacaio, o rei das novelas de seu criado-grave
[camareiro].
Álvaro ─ Queres [que] te fale mais claramente? Correm certos boatos a respeito
deste Pascoal. Por exemplo: dizem que está conluiado com salteadores que depredam as
rendas do governo... que faz parte de um grupo de insurgentes que não querem pagar os
impostos do quinto de ouro e...
Conrado ─ Oh, uma acusação vaga e caluniosa não é uma sentença definitiva!
Álvaro ─ Conrado, meu filho, escuta meus conselhos!... Eu não escutei os de meu
pai!
Álvaro ─ Não... Obedeces-me sempre, porém friamente, sem esta solicitude afetuosa
que faz a felicidade, a glória do coração paterno. Tu não me amas, Conrado!
Álvaro ─ E eu também não passei dez anos consumindo comigo mesmo a mágoa de
tua ausência? Tenho uma natureza porventura diferente da tua?... Mas bem vejo que te
falo debalde [inutilmente]. Os conselhos e as exprobrações [recriminações] não mudam
a índole dos homens. Mudemos de assunto. Estas amizades de moços violentos,
sediciosos, inimigos de toda a ordem, podem te arrastar.
Álvaro ─ Não sei. Sou teu pai, tenho bastante experiência do mundo, sei que uma
afeição sincera e firme vale mais do que todos os conselhos. Achei conveniente dar por
esposa tua prima Sílvia. Não a amas?
Conrado ─ Seguirei sempre suas ordens, já disse. Ainda que me obrigue a desposar a
morte, obedecer-lhe-ei.
Álvaro ─ Não, um filho nunca responde assim. Por que não me dizes se amas Sílvia,
"quero, meu pai"? Ou, se não, "não quero"? Em tua idade eu teria falado deste modo.
Conrado ─ Meu pai não se casou por conveniência, casou-se por amor.
Álvaro ─ Tens razão. Este amor foi a minha consolação em todos os infortúnios.
Conrado ─ Infortúnios que não existiriam se não fosse este casamento por amor.
Conrado ─ Não me recomenda sempre meu pai que não siga o seu exemplo?
Álvaro ─ Ah! Que me importa? Para ti pode ser indiferente esta união, mas para ela,
pobre criança ingênua, crente, é uma questão de vida ou de morte!... Ela é bela, ama-te,
Deus lhe deu tudo o que pode fazer a felicidade de um homem. Quem tem tudo isto,
quem dá tudo isto deve também esperar alguma coisa em paga. Não quero que seu
coração se parta de encontro a um homem sem coração. Ela é filha...
Conrado ─ ... do Capitão-Mor, seu maior inimigo, meu pai. Porém, não importa,
caso-me com ela, uma vez que é seu desejo. Não são novas estas uniões monstruosas.
Álvaro ─ Então.
Conrado ─ Converse com minha mãe e Sílvia, são os que devem resolver sobre o
negócio.
Conrado ─ Este casamento é obra sua, meu pai: faça o que bem entender. Quando
tudo estiver pronto e vier[em] o padre e as testemunhas, chame-me e eu me casarei.
Agora desculpe-me, vou conversar alguns momentos com minha mãe. Tinha um
negócio particular a expor a meu pai, porém não é mais tempo. Deseja que fique
encerrado nas salas da fazenda a fazer o papel de namorado de romance ou de pajem
pudico, sempre debruçado à fímbria dos vestidos das castelãs da Idade Média. Obedeço-
vos. Quer que me acostume às frivolidades da casa, que espreite um sorriso ou um olhar
como um guerreiro antigo espreitando a estrela vespertina no dia antecedente ao de uma
batalha, seja. Os exercícios varonis, as lutas em que possa tomar a responsabilidade, o
desenvolvimento de meu espírito livre nada valem. Bem.
Cena 10
Álvaro ─ Ah! é demais! Tanta submissão e tanta frieza! Tanto desamor!... Será
possível que a maldição de meu pai chegasse até meu filho! Porventura a sombra desse
pérfido Bruno, desse assassino gira ainda em torno de nós? Estará o crime desse
aventureiro incansável ligado a nosso destino?... O Capitão-Mor! Eu era teu inimigo,
mas sou inocente! Meu filho é inocente também!... Por uma triste imprudência, por ter
irrefletidamente aberto a porta a teu bárbaro algoz, será minha família responsável por
tua morte?...
Cena 11
Rodrigo ─ Senhor, o velho padre que mandou ontem convidar ao vir aqui está à
porta.
Frei Januário ─ Deus abençoe todos os que habitam sob este teto.
Frei Januário ─ Tendes todo o direito a nossas orações. Nosso convento foi sempre
protegido por vossa família.
Álvaro ─ Sentai-vos.
Álvaro ─ É verdade, meu padre. Desejava, desejo livrar dos suplícios do purgatório
um infeliz que, pertencendo à nossa igreja, morreu sem os socorros espirituais que
facilitam a entrada das almas na eterna bem-aventurança... eis uma doação que vos faço
a fim de obter, por meio de vossas santas orações e missas, o repouso eterno da alma
desse mal-aventurado. (Dá um cartucho de ouro.)
Frei Januário ─ Recebo este dinheiro porque sei que, recusando-o, vos ofenderia. Ele
será também distribuído em esmolas. As missas serão ditas, as orações feitas. Nosso
convento não precisará de doações graças às que fizeram nossos maiores
[antepassados]!... e ao legado que me deixou à viva voz para salvar um filho perdido,
amaldiçoado.
Álvaro ─ Sei disto, padre, sei disto. Ele deixou-vos este legado? Arrependeu-se?
Frei Januário ─ Sim, arrependeu-se... porém não posso trair os segredos da confissão.
Por quem direi as missas que me encomenda?
Álvaro ─ Não é um nome, é uma alma que desejo salvar das penas do outro mundo.
Frei Januário ─ Respeitarei vosso segredo, orarei por um desconhecido, não é assim?
Álvaro ─ Não! Eu não tenho segredos, enganai-vos. Meu pai podia tê-los... senão
esse legado de que falais... porém, desculpai-me, piedosas intenções movem-me a dar-
vos esta soma.
Frei Januário ─ É um ato louvável. Quererás que ore por um amigo morto. Entendo.
Álvaro ─ O morto não era meu amigo. Pelo contrário, era meu mortal inimigo!
Frei Januário ─ Melhor ainda. Alcançar as graças do céu para nossos mortais
inimigos é uma virtude de primeira ordem. Quem assim faz também sabe perdoar em
vida.
Álvaro ─ Não, eu não perdoei esse homem. Votei-lhe ódio até seu último momento,
assim como sempre ele me odiou. Perdoo-lhe agora.
Frei Januário ─ Oh! Mil vezes melhor! É justamente o que aconselha o Evangelho!
Não é uma sensibilidade mal entendida que vos faz rogar por ele, é a consciência do
dever e das virtudes cristãs!... Ah! Se da prática de um bom ato resultasse sempre o
prazer [...] recompensa, nenhum mérito teria o desinteresse cristão.
Frei Januário ─ Esquecia-me de vos fazer uma pergunta, perdoai-me: este dinheiro
não está manchado de sangue?
Álvaro ─ Não, padre, juro-vos por Deus que nos ouve, não há sangue, mas há um
eterno remorso!
Frei Januário ─ Meu filho, vós reincidis em vosso crime de vingança! Quem sabe se
desejaríeis que vosso inimigo morresse de morte violenta?
Frei Januário ─ Mas dissestes que morreu em seu leito, e não em um campo de
batalha.
Álvaro ─ Oh! Morreu, apenas sei como. Foi assassinado nas trevas, esfaqueado em
sua cama. Sabeis agora tudo. Olhai para mim, vede se fui seu assassino!
Álvaro ─ Falei-vos a verdade, padre. Nada vos ocultei. Oh! Dizei-me que não sou
culpado porque a morte deste homem pesa sobre minha alma... Eu o teria defendido se
pudesse... Mas orai por ele, por mim, por toda a minha casa! Sou inocente, vos disse,
mas sinto alguma coisa que se assemelha ao remorso, talvez porque o odiasse, porque
mesmo desejasse sua morte!... Mas não o odeio mais! Daria tudo o que possuo para
ressuscitá-lo! Orai, padre, eu tenho bastante orado!
Frei Januário ─ Mas há de ser, depois de bem meditardes, depois que conversardes
francamente com vossa consciência. Deixai o remorso aos culpados: nem o que sentis
pode se chamar remorso, é uma doença de imaginação. Adeus, filho! Deus fique
convosco.
Mercedes ─ Álvaro!...
Álvaro ─ Mercedes!...
Mercedes ─ Nunca supus que fosses o autor de tão horrível delito... julguei, contudo,
que tivesses cumplicidade nele!
Cena 1
Geraldo ─ Então o Sr. Dr. Álvaro já mandou procurar pelo homem? O tal célebre
Bruno?
Rodrigo ─ Penso que sim. Ontem ouvi ele estar conversando com uns indivíduos e
parecia-me que dava todos os sinais.
Rodrigo ─ Disseram que haviam de descobrir o malvado. Creio que não terão muito
trabalho, o Sr. Conrado jurou que o acharia.
Rodrigo ─ É...
Geraldo ─ Eu penso, tu pensas, ele pensa... foi até onde cheguei na gramática...
Rodrigo ─ Não sei onde é essa terra, deve ser para as bandas da Europa.
Geraldo ─ Ou da China.
Geraldo ─ Então o que acha? O Sr. D. Álvaro vem chegando com a família, olhes.
Não sabe também disto?
Rodrigo ─ É verdade. Vamos lá para dentro, temos alguma coisa mais para
conversar.
Sílvia ─ Oh, não me incomodei, minha mãe. A festa estava tão bonita!
Mercedes ─ Minha mãe. Como é doce este nome! Chama-me sempre assim!
Mercedes ─ É e não é.
Sílvia ─ Como?
Mercedes ─ Por ora, amo-te de coração como se fosses minha filha, porém falta... tu
sabes.
Sílvia ─ Eu não conheci minha mãe. Conto minha idade desde o ano de sua morte.
Sílvia ─ Nenhum dos moços que estavam na festa era mais belo do que ele... Como
olhava sobranceiro para todos!... Como todos o contemplavam!...
Mercedes ─ É bom que não digas isto, pode ficar muito ancho [orgulhoso].
Mercedes ─ Dele?
Sílvia ─ Dele. Não sei o que sinto quando o vejo. Às vezes tenho vontade de adorá-
lo, outras vezes, desejo fugir...
Sílvia ─ Há momentos, minha mãe, em que uma nuvem sinistra obscurece seus olhos
azuis, em que sua fisionomia toma uma expressão... que não posso definir, então tenho
medo.
Mercedes ─ Não te assustes. Os homens têm mais em que pensar do que nós, pobres
mulheres.
Sílvia ─ Eu só penso nele.
Mercedes ─ Vamos despir estas incômodas saias. Teu pai e Conrado não devem
tardar. Eles têm negócios a decidir depois da chegada do governador. Vamos.
Álvaro ─ Vi o assassino.
Conrado ─ O assassino... do pai de minha esposa!... Sim, tem razão... mas onde o
viu? Meu pai sonha ou delira!...
Álvaro ─ Esquecer-me? Nunca! Todo o meu destino está ligado a este nome! Não
está [estará] gravado em meu túmulo, é verdade, mas pode levar-me ao túmulo!
Álvaro ─ Bruno.
Conrado ─ De quê?
Álvaro ─ Conrado, os filhos nunca devem zombar dos pais, lembra-te de...
Conrado ─ Depois que meu pai lida com frades e faz da Bíblia sua leitura favorita,
ninguém o pode mais aturar. Não temos ursos no Brasil, nem meu pai é o calvo criado
do profeta Elias, nem mesmo sou criança.
Álvaro ─ Era.
Conrado ─ Oh! É demais! Esse homem deve ser punido! Não se pratica um crime
horrível como o que ele praticou e depois alardeia-se a impunidade!
Álvaro ─ Ao menos o princípio da justiça ainda não desapareceu de teu espírito, meu
filho, meu Conrado. Ainda podes ser a honra de tua família!
Conrado ─ Sossegue, meu pai. Até amanhã esse miserável estará em nossas mãos.
Álvaro ─ Como me alegras com o que dizes, meu filho! Fazes um duplo serviço: à
justiça em primeiro lugar, depois à consciência de teu pai! Deus escreve direito por
linhas tortas!
Bruno ─ Não importa. Conheço a ambos: o pai e o filho. Sr. D. Álvaro de Almeida,
sei que me mandava procurar por toda parte, que tinha prometido uma boa paga a quem
me encontrasse. Quis poupar-lhe o trabalho e a despesa: eis-me aqui.
Álvaro ─ Necessariamente.
Álvaro ─ Eu...
Bruno ─ Eu não sei bem o que é esta voz pública, uma vez é a voz de Deus, outra a
voz do Diabo... A sabedoria popular tem suas contradições capazes de fazer embatucar
o argumentador mais loquaz. Continue.
Bruno ─ Sei um pouco de francês. Qu'est que cela prouve? [O que isso prova?]
Bruno ─ Não sei bem, talvez tenha mais de um. Eu o conheci no tempo em que o Sr.
tinha dois.
Bruno ─ Mais perto do que pensa. (Conrado faz gesto de se atirar sobre Bruno.
Álvaro interpõe-se.)
Bruno ─ Olhe para a minha fisionomia, D. Álvaro. Olhe depois para aquela. Qual se
parece ser mais com a de um assassino?
Álvaro ─ A que tinhas na noite em que saímos do velho convento dos jesuítas!...
Conrado ─ Ah! Quem sabe se pensa que o homem muda de feições todos os anos...
As cobras mudam de casca... as árvores de folhas...
Bruno ─ [...] ao Sr. que era mais pobre do que eu, tanto que lhe ofereci minha bolsa,
e que com a morte do mesmo Capitão-Mor tornou-se um milionário? Não consta que
roubassem ao Capitão-Mor coisa alguma, roubaram-lhe apenas a vida. Essa vida que eu
ajudei a salvar poderia servir de estorvo a alguma pretensão minha? Não. O Sr. teria
mais razões para...
Álvaro ─ Continua a fazer vagas insinuações contra mim e contra meu filho?
Conrado ─ Prossiga.
Bruno ─ Permita-me em primeiro lugar que lhe pergunte a quem seria mais
proveitosa a morte do Capitão-Mor: a mim, que fui pobre e que as suspeitas desse crime
me tornaram ainda mais pobre, ou [...]
[...]
Bruno ─ Não abusarei por muito tempo de sua preciosa atenção. Muito cedo entrei
no drama da vida. [Sou] o que os homens me fizeram. Não achando meio de vida mais
fácil, tornei-me soldado. Combati, tenho cicatrizes honrosas. Brasileiro de nascimento
como é o Sr. Conrado, levantei sempre minha espada contra os inimigos de minha
pátria. Não tínhamos mais holandeses e franceses que profligar [derrotar], o governo
licenciou as tropas... O Sr. D. Álvaro serviu, ao menos disse-me. Sabe o que é ser
soldado. Uma outra praga pior do que inimigos invasores começou a assolar a terra de
Santa Cruz: eram os quilombolas de escravos fugidos, estabelecidos nos Palmares, eram
bandos de salteadores na serra da Mantiqueira, do Espinhaço, e outros na Pavuna, onde
consta que vivera um terrível Gregório Martins, sobre o qual um escritor de meia tigela
escreveu uma desastrada novela intitulada O Roubo na Pavuna. Acaba a guerra, servi
nos diversos corpos de polícia. Tive de ir em uma escola à serra da Mantiqueira...
[...]
Conrado ─ Por que não diz a ele que continue, meu pai? Tem medo da minha
espada? Aí está ela! (Atira ao chão.)
Álvaro ─ Não, meu filho, devemos estar aqui todos desarmados. Não convém que
inimigos temam nossas espadas, senão nos combates.
Conrado ─ Prossiga, a narração é digna de quem a faz. Meu pai, está resolvido a
escutá-la até o fim?
Álvaro ─ Sou inocente, Conrado, e nenhuma suspeita tenho de ti. Prometi, porém,
ouvir este homem. Tem paciência.
Bruno ─ Sim.
Conrado ─ Não viu mais esse mancebo, o que supôs ser chefe dos ladrões?
Bruno ─ O moço que se parecia com o Sr. Conrado, que tinha visto no meio dos
salteadores da Mantiqueira!
Álvaro ─ É verdade.
Bruno ─ Entrei pelo corredor que me indicou, achei a porta dos fundos, subi a
escada, atravessei a passagem, fui a dar à saleta e...
Conrado ─ Céus!...
Álvaro ─ Continue.
Bruno ─ Escuto a primeira [...] todo o movimento [...] medo, com que [...] da saleta
[...] ensanguentados [...] como quem [...] bem da [...] Mor [...] perto da [...] Conheci o
assassino.
[?] ─ Conrado!
Álvaro ─ Monstro!
Conrado ─ Fez bem em ouvir este homem, meu pai. Para evitar-se uma desgraça é
preciso conhecê-la. Convém que este homem fique mudo!
Conrado ─ Não temos tempo para conjecturar. O que ele disse é a verdade, o que
devemos fazer é tapar-lhe a boca.
Álvaro ─ Como?
Sílvia ─ Ah!
Álvaro ─ O desgraçado matou o Pai e a filha! Minha Mercedes, estamos sós, sós
estamos neste mundo. Agora meu Pai, abre-me tua sepultura, tua maldição foi pior
porque recaiu sobre meu filho!