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HISTÓRIAS COMPLETAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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1864 – A Morte do Capitão-Mor, Fagundes Varela (1841-1875)

Dados básicos

Título original: A Morte do Capitão Mor.

Autor: Fagundes Varela (1841-1875).

Nome do autor no manuscrito: Informação ausente (autoria atestada pela irmã do


poeta, Ernestina Fagundes Varela).

Gênero literário: Peça dramática.

Publicação: Manuscrito jamais publicado até esta data (22/12/2018); criado


provavelmente por volta de 1864.

Extensão original: 89 páginas.

Importância histórica: O único texto conhecido da produção dramática de


Fagundes Varela.

Observação: Há rasgões nas últimas duas páginas do manuscrito, que impedem a


transcrição integral do texto. Há também algumas falhas do manuscrito, em poucos
lugares.

Atualização do texto: Sérgio Barcellos Ximenes.

As notas, inseridas no próprio texto, estão indicadas pelos colchetes: [...].

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A MORTE DO CAPITÃO-MOR

3 Atos
Primeiro Ato

Cena 1

Mercedes ─ Não te deixes vencer pelo desespero, meu pobre Álvaro. Olha, eu estou
a teu lado, amo-te ainda como no primeiro dia de nossa união; amar-te-ei sempre,
sempre! Porventura já não me consagras o mesmo afeto? Enoja-te minha presença?
Minhas palavras te aborrecem? Fala.

Álvaro ─ Oh! Mercedes! Mercedes!

Mercedes ─ Sentes-te mal? Vejo-te tão pálido!

Álvaro ─ Os rugidos do trovão enchem-me a alma de tristeza e de amargura, o vento


da tempestade infiltra-me nas veias o frio da morte. Meu sangue está gelado, Mercedes.

Mercedes ─ Queres te aquecer ao fogo?

Álvaro ─ Não, deixa-me.

Mercedes ─ Nada mais sou para teu coração!

Álvaro ─ És tudo.

Mercedes ─ Então por que me tratas assim?

Álvaro ─ Se não foras tu, eu teria sido... nem sei o quê! Um amálgama confuso de
muitos vícios e muitas virtudes, um misto contraditório do bem e do mal, do erro e da
verdade. O que sou tu o conheces, o que poderia ou o que deveria ser, ignoras. Não
importa, amo-te muito... nada nos separará... Oh, se o tivéssemos junto de nós...

Mercedes ─ Se pudéssemos abraçar nosso filho! Há dez anos que desapareceu.

Álvaro ─ E nenhuma notícia dele ainda recebemos. Ah!...

Mercedes ─ Álvaro! Álvaro! O que tens?

Álvaro ─ Sossega. Foi uma ligeira vertigem. Ressinto-me ainda da terrível moléstia
que ia me levando à sepultura. Quanto não sofreste nestas longas noites perdidas à
minha cabeceira, Mercedes!

Mercedes ─ Não falemos nisso. Graças a Deus estás restabelecido. Desejava agora
ver-te feliz.

Álvaro ─ Já encontraste alguém que o fosse?

Mercedes ─ Pensa naqueles que por esta noite de tormenta caminham fustigados pela
chuva e pelos ventos, que se debruçam sobre a terra alagada e não acham outro leito
senão os pântanos e fossos lamacentos cavados pelas enxurradas.
Álvaro ─ Chamas a isso desgraça, não é? De que nos serve uma boa mesa quando
nos falta o apetite? Um bom leito quando nos foge o repouso? Fui soldado, caçador,
viajante; hoje sou um indigente: conheço por experiência própria as privações de que
falas.

Mercedes ─ Não as sofres, Álvaro.

Álvaro ─ Essas não.

Mercedes ─ Já não é pouco.

Álvaro ─ Para um pobre arrieiro [condutor de bestas de aluguel], concordo.

Mercedes ─ Não Álvaro, o homem de educação e de nascimento tem mais


necessidade de um asilo no dia do infortúnio do que um pobre arrieiro. Não
desconheçamos esse benefício da providência.

Álvaro ─ Nunca neguei a Providência, bem o sabes. Muito temos sofrido, tu com
paciência, eu... concentrado em meu sombrio desespero, mas enfim temos arrostado
[encarado sem medo] os furores da sorte...

Mercedes ─ Então?

Álvaro ─ Oh! Alguma coisa de mais acerbo do que nossas desgraças aparentes, mais
implacável do que a própria miséria tortura-me a todos os momentos. Agora mais do
que nunca! A não ser essa obstinada doença que me surpreendeu em uma terra
desconhecida e exauriu-me ao mesmo tempo as forças e os recursos, deixando-nos neste
lastimável estado, eu teria sido feliz, nós teríamos sido felizes, Mercedes. Poderia
sustentar a honra e o brilhantismo de minha casa, de meu nome, do nome de meu pai.

Mercedes ─ E teríamos encontrado nosso filho!

Álvaro ─ Sim, nós o teríamos encontrado! Fui sempre flagelado pela fortuna! Agora
mesmo, acaba ela de cercar-me em um lugar onde não posso ne defender, onde estou
enfermo, pobre e só!

Mercedes ─ Só, Álvaro?

Álvaro ─ Pior do que só!! Condenado a envolver, essa minha desgraça, tudo o que
amo!

Mercedes ─ Eu creio em Deus, Álvaro, ele nos restituirá nosso filho!

Álvaro ─ O reino da justiça de Deus não é este mundo, Mercedes!

Mercedes ─ Oh, se o é!

Álvaro ─ Que recursos temos nós?

Mercedes ─ Nunca fomos ricos.


Álvaro ─ Nasci para a riqueza, para o poder e para a glória. Uma mocidade
desordenada e louca torceu o curso do meu destino. [Expulso da casa de meu pai,
vaguei pelo mundo sem sossego e sem consolação ─ trecho cortado pelo autor.] A
maldição de meu pai fechou-me as portas do futuro, sua morte devia abri-las de novo, se
um parente maldito, um ente satânico cujos olhos não se arredam de mim, cujos passos
me seguem por toda a parte, não buscasse apropriar-se de meus direitos e não me
usurpasse uma fortuna de príncipe.

Mercedes ─ O Capitão-Mor.

Álvaro ─ O Capitão-Mor! A estas horas talvez ele contemple feliz o produto das
minas de ouro que me deviam pertencer, conte o número dos escravos que deviam ser
meus, levante maravilhosos castelos em um futuro que me estava destinado! E nós, e
nós Mercedes!... Oh! Isto é para enlouquecer!

Mercedes ─ Talvez nosso filho voltasse para junto de teu pai e reivindicasse teu
lugar.

Álvaro ─ Ilusão! Meu pai prometeu que sua cólera não passaria de minha pessoa,
que meu filho seria considerado seu herdeiro, e na falta de meu filho o Capitão-Mor. O
fado inexorável roubou-me meu filho!...

Mercedes ─ Mas ainda vive.

Álvaro ─ Talvez.

Mercedes ─ O coração materno não mente, nosso filho não morreu, Álvaro.
Confiemos na Providência. Ela já nos auxiliou ajudando-nos a iludir a vigilância do
Capitão-Mor.

Álvaro ─ Falaz seguridade [Segurança ilusória]! Agora mesmo parece que me vejo
cercado de seus espiões, rodeado de suas ciladas traidoras! Quem sabe se não nos
seguiu os rastros até aqui?

Mercedes ─ Nossa partida rápida de S. Paulo, tua mudança de nome, a alteração de


tua fisionomia pelo tempo e pela moléstia frustrarão todos os seus intentos. Os espiões
que nos perseguiam estão longe, talvez mesmo se nos encontrassem não te
reconhecessem mais. As pessoas deste lugar nos supõem o que parecemos ser.
Tranquiliza-te.

Álvaro ─ O que parecemos ser... dize antes o que somos, mendigos esfarrapados,
doentes, sem futuro mesmo a nossos próprios olhos. Ah! Ah! Ah!

Mercedes ─ Que risada amarga.

Álvaro ─ Quem descobriria sob estes andrajos o ânimo altivo do rebentão [filho] de
uma das mais ilustres casas de Portugal? O descendente dos heróis dos Lusíadas? O
herdeiro de um vasto domínio colmado [recoberto] de minas de ouro e de brilhantes? O
senhor de milhares de cativos?... A vida é uma comédia, Mercedes, eu sou um péssimo
ator, não represento bem meu papel.

Mercedes ─ É verdade, Álvaro. Não pensavas em títulos e riquezas quando


escolheste para esposa a filha de um pobre soldado brasileiro, velho e inválido.

Álvaro ─ A filha do velho soldado era pura, era virtuosa. Eu amava a filha do velho
soldado porque me apareceu como o anjo da salvação em meu caminho de loucuras e
desvarios. Além disso, esperava elevá-la à classe para a qual tínhamos nascido.

Mercedes ─ Teu pai não pensava assim, expulsou-te de sua casa por teres te casado
com uma mulher sem nascimento.

Álvaro ─ O que te entendes por nascimento, Mercedes?

Mercedes ─ O demônio de nossa desgraça.

Álvaro ─ O que dizes?

Mercedes ─ Se não fora a vaidade do nascimento, a nobreza do sangue, o orgulho de


cem avós ilustres, terias ganho tranquilamente o pão de cada dia como tantos pobres
felizes.

Álvaro ─ Um obeso estalajadeiro da beira da estrada, um bom sineiro de freguesia?


Não é?

Mercedes ─ Nobre ou plebeu, rico ou pobre, glorioso ou obscuro, serias sempre o


mesmo para mim. Amar-te-ei sempre.

Álvaro ─ Perdoa-me, anjo de minha vida! Perdoa-me!

Mercedes ─ Escuta.

Álvaro ─ Batem!

Mercedes ─ Quem nos procurará a estas horas, neste velho e arruinado convento?
Não recebemos visitas.

Álvaro ─ A pobreza nenhuma visita recebe que não a torne mais pobre. Abre, estou
prevenido.
Cena 2

Geraldo ─ Boa noite minha senhora, boa noite senhor... Como se chama?

Álvaro ─ Não receia ser indiscreto?

Geraldo ─ Se receio? Sim, receio.

Álvaro ─ Então?...

Geraldo ─ Dir-se-ia que lhe pergunto alguma coisa de mais difícil do que seu nome?

Álvaro ─ De mais difícil?

Geraldo ─ De mais ou de menos, não façamos questão de tais ninharias. Sabe que
sou administrador deste convento e mais propriedades anexas pertencentes aos padres
da Companhia de Jesus. É verdade também que eles entregaram há muito o velho
edifício aos morcegos e almas do outro mundo. Fazem, porém, dois meses que o Sr.
aqui está e ainda não lhe conheço o nome. Isto parece mal.

Álvaro ─ Tem razão. Chamo-me Leôncio Martins.

Geraldo ─ Muito bem. Não seria bom, para estreitar nossas relações, tomarmos um
bom copo de vinho?

Álvaro ─ Parece-me que o Sr. hoje já bebeu demais!

Geraldo ─ Que injustiça!

Álvaro ─ O Sr. sabe que sou pobre e doente, e não compreende que desejo estar só!
O que o traz aqui?

Geraldo ─ O que me traz aqui?

Álvaro ─ Ignoro, porém prevejo o que pode fazê-lo saber.

Mercedes ─ Álvaro, tem paciência.

Geraldo ─ Dou-lhe uma triste notícia.

Álvaro ─ Fale.

Geraldo ─ O rio encheu extraordinariamente, temos uma tremenda inundação.

Álvaro ─ Por isso ainda estou aqui, devera partir ontem.

Geraldo ─ Já sabe, mas ignora que um figurão, um ilustre fidalgo acompanhado de


uma linda menina, seis pajens, quatro criados, uma récua de formosos cavalos,
morreram afogados?

Mercedes ─ Grande Deus! Está bem certo disso?


Geraldo ─ Quanto a dois criados e alguns cavalos estou certo, quanto ao fidalgo e à
menina, não. No momento em que falo lá estão dois robustos nadadores a ver se pescam
o ilustre personagem e sua filha. Eles se hão de salvar. Esta gente tem fôlego de gato.

Álvaro ─ Estou inteirado do que me diz. Pode agora deixar-me?

Geraldo ─ Virgem santa! Espere, ainda não acabei meu recado. Um moço da
comitiva pediu-me que corresse a preparar um aposento... ou uma sepultura para seu
amo.

Mercedes ─ E os recebe aqui?

Geraldo ─ Aqui não. Lá em cima no quarto onde dormia o provincial da Companhia


de Jesus. Ainda tem alguns móveis, úmidos, velhos, descolados, porém de noite fazem
efeito. Havia apenas perigo de constipar-se o grande homem, porém depois do banho é
impossível.

Álvaro ─ Sabe seu nome?

Geraldo ─ Seu nome? Grande Deus! Quem sabe se ele ainda tem um nome? Devia
fazer esta pergunta quando ela ainda podia responder, ou reservá-la para quando tiverem
de fazer o seu epitáfio. Ainda há pouco o Sr. achou mau o costume de se indagar nome
das pessoas.

Álvaro ─ É verdade. Responde-me sabiamente. Minha boa Mercedes, retira-te, quero


sondar o espírito deste parvo.
Cena 3

Conrado ─ Pascoal, solta o meu cavalo, ele não arredará destes lugares, não há
perigo de sumir-se. Entre, minha senhora.

Geraldo ─ Um banco, aqui está um banco, sente-se.

Conrado ─ Boa noite, meus amigos.

Álvaro ─ A voz deste moço penetra-me até o coração! Estranho sentimento desperta-
me na alma sua fisionomia.

Geraldo ─ O Sr.... o Sr.... que caiu no rio.... Como se chama?

Conrado ─ Não sei. Está salvo. Minha senhora, descanse sem receio, eu vou ver seu
pai.

Sílvia ─ Oh! sim! vá!

Conrado ─ O pai desta senhora ficou a cinquenta passos daqui, mudando de roupa
em uma choupana perto do rio. Os Srs. terão a bondade de preparar-lhe um cômodo por
esta noite. Creio que já foi feito o pedido, não importa.

Geraldo ─ Sim, senhor. Ele não quererá cear?

Conrado ─ Penso que prefere dormir. (Para Bruno) Vamos?

Bruno ─ Não, fico. A noite está fria, o chão encharcado. Mudei de roupa, não quero
molhar-me de novo.

Geraldo ─ Ah! o Sr. é que salvou o homem?

Bruno ─ O primeiro que se atirou ao rio fui eu, mas quem tirou o marquês das ondas
foi o moço que daqui saiu...

Geraldo ─ Ah! É um marquês!

Álvaro ─ Um marquês?

Bruno ─ Ou conde, barão, comendador, pouco me importa.

Geraldo ─ Não lhe sabe o nome?

Bruno ─ Não.

Geraldo ─ E o seu?

Bruno ─ Meu o quê?

Geraldo ─ Seu nome?

Bruno ─ Que lhe importa?


Geraldo ─ Diabo! Todo o mundo se faz anônimo hoje.

Bruno ─ Veja se nos arranja um bom copo de aguardente, é o melhor, deixe-se de


interrogatórios.

Geraldo ─ Este indivíduo é seco e reservado, duas qualidades que não me convêm.
Vou, contudo, buscar a aguardente que pede, ela lhe desembaraçará a língua. A menina
dorme no seu banco. (Sai.)
Cena 4

Bruno ─ Se não me engano, aquele amigo é o administrador destas propriedades.

Álvaro ─ Acertou. Mora a poucos passos daqui, atrás do edifício do convento.

Bruno ─ Pertence aos jesuítas esta casa?

Álvaro ─ Pertence.

Bruno ─ Está muito arrumada!

Álvaro ─ O aposento que destinam à pessoa que o Sr. salvou é mais cômodo e
resguardado do que este.

Bruno ─ Por que não o ocupou então? O Sr. parece enfermo.

Álvaro ─ O que diz?

Bruno ─ Perdoe-me se o agasto. O administrador disse-me que estava aqui de


passagem, como eu e meus companheiros. Conheço os contratempos que sofrem os
viajantes, não pude deixar de me interessar pela sua pessoa. Também ando pelo mundo.

Álvaro ─ É verdade, sou um pobre doente.

Bruno ─ Fui soldado, por isso tenho ainda os modos grosseiros.

Álvaro ─ Fui também soldado, conheço a franqueza militar.

Bruno ─ Ah! também foi soldado? Já ouviu o sibilo das balas!

Álvaro ─ Mais de uma vez.

Bruno ─ Ainda tenho recentes cicatrizes de meu último combate! Não foi no campo,
face a face, peito a peito, porém no meio das brenhas e das serranias...

Álvaro ─ No meio das brenhas e das serranias?

Bruno ─ Sim. Pois não tem conhecimento dessas quadrilhas de salteadores que se
põem de alcateia nas gargantas das cordilheiras para agredirem os negociantes, as
bagagens carregadas de ouro do governo, que descem de Minas Gerais?

Álvaro ─ Ouço às vezes falar nelas.

Bruno ─ Pois estive em uma escolta que levava ordem de exterminá-las...


Exterminados íamos ficando eu e meus companheiros. Quando não for negócio de ir
atacá-las, não tenho medo, passeio calmo e tranquilo. Quase nada tenho a perder.

Álvaro ─ E eu nada absolutamente!


Bruno ─ O Sr. foi soldado, disse-me. Os soldados devem sempre ser camaradas. É
pobre e doente, eu não sou rico, porém gozo de uma saúde invejável, posso dispensar
muitas coisas. Eis aqui a minha fortuna, dividamos entre nós.

Álvaro ─ Quem lhe autorizou a fazer-me esta oferta?

Bruno ─ O Sr. mesmo.

Álvaro ─ Não me conhece.

Bruno ─ Como poderei conhecê-lo se há poucos minutos que o vejo?

Álvaro ─ Obrigado, Sr. Sou mendigo de fato, mas não o sou de profissão. Quando
precisar de alguma coisa, sei a quem me dirigir.

Bruno ─ Não se encolerize comigo. É de coração que lhe fiz este oferecimento.

Álvaro ─ Agradecido. Reconheço.


Cena 5

Geraldo ─ Ora, eis aqui o aguardente. É o melhor desta província. Beba depressa,
que o fidalgo e sua comitiva não tardarão.

Bruno ─ À saúde de sua encantadora esposa.

Geraldo ─ Encantadora? Pode ser.

Bruno ─ A linda senhora que encontrei na sala vizinha, não é sua esposa?

Geraldo ─ Bem desejara que o fosse! É daquele pobre viajante.

Bruno ─ Excelente aguardente! Parece de um príncipe.

Geraldo ─ A aguardente?

Bruno ─ A mulher, bruto!

Geraldo ─ Viajante, eu tenho estudos!

Bruno ─ Ah! aí vem o nosso ilustre hóspede. Menina, menina acorde, seu pai chega.
Cena 6

Sílvia ─ Meu pai!

Conrado ─ Entre, senhor, seu cômodo deve já estar preparado, há de desejar


descansar.

Capitão-Mor ─ Minha filha.

Conrado ─ Ei-la, tranquilize-se.

Álvaro ─ Ele! Sempre ele!

Capitão-Mor ─ Estás mais tranquila, Sílvia?

Sílvia ─ Sim, meu pai.

Geraldo ─ Tenha a bondade de sentar-se, desculpe-me se lhe ofereço um banco, não


temos cadeiras por aqui.

Capitão-Mor ─ Não importa. O viajante acostuma-se a tudo.

Álvaro ─ Sempre a mesma expressão altiva, arrogante, insolente! Sempre a mesma


voz odiosa.

Capitão-Mor ─ Quem são estas pessoas?

Geraldo ─ Uma delas não lhe é estranha.

Álvaro ─ Quem lhe disse isto?

Geraldo ─ Ninguém fala com o Sr. Eis ali alguém que não lhe deve ser estranho.

Capitão-Mor ─ É sem dúvida um de meus salvadores.

Bruno ─ Nada tem que me agradecer. Quando me lancei ao rio, já este valente
mancebo [jovem] o tinha livrado.

Capitão-Mor ─ Meu amigo, aperte minha mão, eu lhe saberei mostrar que não sou
ingrato. O Capitão-Mor Guilherme de Almeida não desconhece um benefício.

Geraldo e Bruno ─ Capitão-Mor!

Sílvia ─ Sim, Senhor, nós guardaremos sempre a lembrança de meu benfeitor. Em


minhas orações sempre murmurarei... seu nome?

Conrado ─ Conrado, minha senhora.

Álvaro ─ Conrado!
Cena 7

Mercedes ─ (À porta.) Conrado!

Geraldo ─ Sr. Capitão-Mor...

Mercedes ─ O que ouço, meu Deus!

Geraldo ─ O Sr. parece incomodado, sua filha está bastante cansada. Não quer se
retirar ao aposento que lhe preparei?

Conrado ─ Vamos, Sr. Capitão-Mor, esse homem bem tem razão. Convém repousar
depois do contratempo que sofreu.

Mercedes ─ É a fisionomia, o olhar, a voz de Álvaro há dez anos!

Capitão-Mor ─ Vem, minha filha. Meu amigo, tenha a paciência de nos acompanhar.

Conrado ─ Às suas ordens, Sr. Capitão-Mor.

Capitão-Mor ─ (em pé, depois de olhar Álvaro) Não há dúvida. Há dez anos que não
o vejo, porém acabo de reconhecê-lo. Como está mudado!... É ele!... Sim, é ele!... Por
que deixei eu em S. Paulo aqueles que me podiam auxiliar! Não importa... Convém não
arredar dele os olhos... espreitar-lhe os menores movimentos... Porém, prudência: a
precipitação transtornará tudo!

Sílvia ─ O que tem, meu pai? Está pensativo?

Capitão-Mor ─ Nada, Sílvia. Meu amigo.

Álvaro ─ Não tenho amigos, senhor.

Geraldo ─ Fale melhor ao Sr. Capitão-Mor!

Capitão-Mor ─ Cale-se.

Geraldo ─ Estou mudo.

Capitão-Mor ─ Chegou aqui há muito tempo?

Álvaro ─ Há muito tempo?

Capitão-Mor ─ Desejo uma resposta, e não um eco.

Álvaro ─ Dirija-se a estas paredes. Não costumo responder às pessoas que não
conheço, quando têm a indiscrição de interrogar-me a respeito de minha vida.

Capitão-Mor ─ O administrador disse-me que o Sr. estava aqui retido por moléstia...
Desejava ser útil... quem sabe se viajamos na mesma direção?

Álvaro ─ Engana-se.
Capitão-Mor ─ Entretanto, não sabe qual é a minha viagem.

Álvaro ─ Há apenas um caminho em que o rico e o pobre se encontram. O Sr.


afastou-se dele há poucas horas, eu há poucos dias.

Capitão-Mor ─ Sua linguagem é superior à sua posição.

Capitão-Mor ─ Parece-lhe?

Geraldo ─ Não tive intenção de contrariá-lo, queira apenas ser-lhe útil. Como,
porém, o Sr. agasta-se, desculpe-me. Sr. administrador, preparou também um quarto
para minha filha?

Geraldo ─ Meu Deus! Esqueci-me, porém ainda estamos em tempo.

Capitão-Mor ─ Espere. Ah! ali vejo uma senhora. É sua esposa, talvez... Minha
senhora, tenha a bondade de conduzir minha filha ao quarto que me está destinado, eu
esperarei que o Sr. administrador me veja outro.

Mercedes ─ Sim, Senhor.

Capitão-Mor ─ Vai, minha filha.

Geraldo ─ Meu amigo, Sr. Leôncio Martins, pode-me fazer o favor de ajudar-me a ir
preparar um outro quarto para o Sr. Capitão-Mor? Estou só, bem vê.

Álvaro ─ Vamos.

Bruno ─ O Sr. Capitão-Mor precisa agora de mim?

Capitão-Mor ─ Não, desejo mesmo estar só com o meu amigo.

Bruno ─ Vou esgotar a garrafa com a comitiva que está na sala vizinha. (Saem.)
Cena 8

Capitão-Mor ─ Generoso mancebo! O que posso fazer para mostrar-vos meu


agradecimento pelo benefício que me fez?

Conrado ─ Conceda-me sua estima, estarei pago.

Capitão-Mor ─ Oh, já a tem!...

Conrado ─ Obrigado, Sr.

Capitão-Mor ─ Para dar-lhe uma prova de minha dedicação, posso confiar-lhe um


segredo, pedir-lhe um favor?

Conrado ─ Fale, Sr. O que não farei para o servir?

Capitão-Mor ─ Já me salvou a vida.

Conrado ─ Não falemos mais nisso.

Capitão-Mor ─ Conhece este viajante que daqui saiu com o administrador?

Conrado ─ É a primeira vez que o vejo.

Capitão-Mor ─ Circunstâncias misteriosas, que agora não lhe posso explicar,


tornam-me importuna a presença deste homem... ele pode me ser fatal.

Conrado ─ Como, Sr.?... Um pobre doente.

Capitão-Mor ─ Pode ser que me engane,... não importa. Se é a pessoa que desconfio
ser... devo livrar-me dela o mais breve possível.

Conrado ─ E o que tenho eu com isso?

Capitão-Mor ─ Tenho ordem do vice-rei para prendê-lo. Vou mandar à cidade mais
próxima buscar uma força conveniente, a fim de tornar efetiva essa ordem. Esta maldita
inundação, porém, transtorna-me os planos.

Conrado ─ A enchente diminui.

Capitão-Mor ─ Tanto melhor.

Conrado ─ Diga, porém, que interesse tenho eu com essa prisão?

Capitão-Mor ─ Oh, não pode ser indiferente a um negócio que é para mim mais
importante que a própria vida que lhe devo. Não perca de vista esse homem, espreite-o
como se espreita um animal feroz acuado pelos cães... Como um animal feroz, é
necessário que ele sucumba.

Conrado ─ Por quê?


Capitão-Mor ─ Porque é um estorvo que me veda de entrar na posse de uma herança
soberba! Oh! Se o Sr. a pudesse ver! Mas há de ver!

Conrado ─ Pode ser.

Capitão-Mor ─ A mais rica propriedade da província de Minas Gerais! Uma vasta


extensão de terreno, gado sem número, mais de três mil escravos, minas de ouro e
diamantes que valem um império!

Conrado ─ Oh! Se é assim!

Capitão-Mor ─ Quando eu for senhor de todas essas riquezas, peça-me as


recompensas que quiser. Verá se cumpro minha palavra!

Conrado ─ Então este homem doente, pobre, atribulado, este viajante miserável
disputa-lhe a posse de tantos tesouros?

Capitão-Mor ─ É verdade.

Conrado ─ E tem ele direitos?

Capitão-Mor ─ Nenhum. É um filho pródigo, amaldiçoado, que há vinte anos


desonrou sua família, por um procedimento ignóbil, suas relações com saltimbancos e
jogadores, sua frequência nos bordéis e sobretudo por um casamento.

Conrado ─ Ah! Ele é casado?

Capitão-Mor ─ E com que mulher! Uma mameluca libertina, filha de um velho


soldado devasso e crapuloso [dado à libertinagem].

Conrado ─ Mas não tem filhos?

Capitão-Mor ─ Tiveram sim. O avô o tinha chamado para sua companhia e prometia
deixar-lhe a herança. Esse obstáculo não existe mais para mim. O rapaz desapareceu há
dez anos.

Conrado ─ Há dez anos!... Oh! Terrível suspeita!

Capitão-Mor ─ Sim, há dez anos. Ninguém sabe para onde ele foi, seguiu o exemplo
do pai, ou... talvez já tenha morrido... Ainda mesmo que reaparecesse, não me
incomodaria muito... Suas pretensões são infundadas... mas o Sr. ri-se?

Conrado ─ De vossos vãos temores.

Capitão-Mor ─ Devemos tudo temer quando tudo temos a ganhar, diz a sabedoria do
povo.

Conrado ─ É verdade! E, por isso, tudo devemos também tentar.

Capitão-Mor ─ Posso contar com o seu auxílio?


Conrado ─ Ainda duvida? Não o perderei de vista um momento.

Capitão-Mor ─ Obrigado! Obrigado, meu amigo!

Conrado ─ Estranho mistério! Pasmosa coincidência!


Cena 9

Geraldo ─ Está pronto o quarto do Sr. Capitão-Mor.

Capitão-Mor ─ Não me enganei. É ele!

Álvaro ─ Seus olhos estão fixos sobre mim, como os da serpente sobre o pássaro
incauto!... Miserável!

Conrado ─ Vamos, Sr. Capitão-Mor.

Capitão-Mor ─ Espere. Perdi no trajeto do rio para aqui uns papéis de suma
importância. Já prometi uma boa recompensa a quem os achar. Se alguém os tiver
encontrado, quero que me entreguem hoje mesmo. Não importa que esteja dormindo,
acordem-me. Vamos.
Cena 10

Álvaro ─ Eis-me nas mãos de meu mais encarniçado inimigo! Que fazer? Como sair
daqui, fraco, enfermo, sem o mínimo recurso!... Miséria desgraçada! Agora compreendo
tudo: o administrador, o indivíduo que me ofereceu sua bolsa eram espiões!... O próprio
mancebo que conduzia a filha do Capitão-Mor... Oh!... não serei porventura vítima de
uma alucinação? Conrado!... se fosse ele... se fosse meu filho!...

Mercedes ─ Álvaro, não te enganaste, é nosso filho!...

Álvaro ─ Loucura. Há muitos Conrados no mundo.

Mercedes ─ Mas a voz, o olhar, a expressão do rosto e, sobretudo, meu coração,


Álvaro, dizem-me que é ele!

Álvaro ─ Insensata! Nosso filho, se vivesse, seria ainda uma criança.

Mercedes ─ Teria vinte anos.

Álvaro ─ Pensas bem: esse mancebo não conta mais de vinte anos.

Mercedes ─ Como sou feliz!

Álvaro ─ É ainda uma irrisão [zombaria] da sorte, Mercedes!... Não creias. Nós
nunca veremos a aurora da felicidade: aquele que chamas de filho, que te faz tão
docemente palpitar o coração, é um miserável! É um infame espião do Capitão-Mor!

Mercedes ─ Não, Álvaro, a voz da natureza, a voz de Deus falam-me aos ouvidos. É
ele!

Álvaro ─ Cedo te desenganarás.

Mercedes ─ Oh! Meu filho! Conrado!


Cena 11

Conrado ─ Seu filho!

Álvaro ─ Mercedes!

Conrado ─ Perdão, senhora, eu ouvi...

Álvaro ─ Desculpe-a, é uma pobre mãe que se lembrava de seu filho ausente.

Conrado ─ Senhor, há muitos anos que não vejo minha mãe... as palavras da senhora,
seu tom de voz...

Mercedes ─ Meu filho!

Álvaro ─ Mercedes! O que fazes!

Conrado ─ Oh! Pelo amor de Deus!... Mercedes!... deixe-me olhar para seu rosto...
deixe-me!... Eu tenho ainda uma lembrança dela!... Sim, ela me contemplava assim...
ela tinha este sorriso... ela... Minha mãe!

Mercedes ─ Conrado! Meu querido Conrado!...

Álvaro ─ A mentira não fala deste modo! A mentira persuade... não convence! É ele!

Conrado ─ Meu pai!...

Mercedes ─ Meu Deus, bendito seja o teu nome!

Álvaro ─ Não é um filho que encontramos! É um salvador. Dize-me quando deixaste


meu pai?

Conrado ─ Há dez anos!

Álvaro ─ Não te falava de mim?

Conrado ─ Para amaldiçoar-vos.

Álvaro ─ Por onde tens andado até hoje? Como saíste de sua casa?

Conrado ─ Um desconhecido arrebatou-me dali. Levou-me para uma companhia de


ciganos... com eles vivi seis anos, depois...

Álvaro ─ Depois...

Conrado ─ Meu Deus... sim... tenho corrido o mundo até hoje.

Álvaro ─ Oh! Sr. Capitão-Mor!...

Conrado ─ Falais do Capitão-Mor?...


Álvaro ─ Sim. Sabes nossa história? A maldição de meu pai? A herança que te devia
caber?

Conrado ─ Sei.

Álvaro ─ E que agora pertence ao Capitão-Mor, a quem salvaste a vida, a quem


adulas, a quem lambes os pés como um rafeiro [cão que vigia o gado para o dono].

Conrado ─ Meu pai!... Meu pai, o que dizeis?... Meu avô é morto?... Seus bens
passam para as mãos do Capitão-Mor? E vós sois indigentes?... E eu...

Álvaro ─ Cala-te. Cala-te!...

Conrado ─ Oh! desgraça!

Álvaro ─ Salvaste a serpente que nos deve perder a todos!

Conrado ─ É verdade. Ele me incumbiu de vigiar-vos, de espreitar vossos mínimos


atos, de seguir todos os vossos passos, de cortar-vos todos os meios de fuga...

Álvaro ─ Eu bem o dizia, Mercedes!

Conrado ─ O Capitão-Mor ignora completamente os laços que nos ligam, tanto que
me incumbiu de vigiar-vos.

Álvaro ─ Quem nos diz que não é uma cilada que esse demônio nos arma, uma
cilada em que devemos cair eu, tu e tua mãe?

Conrado ─ Não, meu pai, vós vos enganais.

Mercedes ─ Queira Deus!

Conrado ─ Ouvi-me. As águas do rio baixam, o Capitão-Mor tem ordem do vice-rei


para vos prender. Amanhã sairá um portador a requisitar a força que mais perto
encontrar, e estaremos perdidos.

Álvaro ─ Que fazer?

Conrado ─ Partir esta noite mesmo. Não precisais em vossa fuga atravessar o rio,
deveis seguir o caminho que sobe pela margem esquerda. Eu ficarei para arredar as
suspeitas.

Mercedes ─ E nos deixas.

Conrado ─ Mais tarde vos encontrarei em nossa propriedade.

Álvaro ─ Mas como sairemos daqui, se não temos recursos.

Conrado ─ Tomai este anel, tem uma pedra preciosa de grande valor. Pertenceu a
vosso pai, pertence-vos agora.
Álvaro ─ Meu filho.

Conrado ─ Tratai de ganhar as boas graças do administrador. Mostrai-lhe a joia, ela


mergulhará em sua alma como um pedaço de chumbo no oceano. Através de sua
fisionomia estúpida e grosseira, vi claramente a venalidade de seu espírito. Ele vos
facilitará a fuga. Tenho dois cavalos que deixo à vossa disposição.

Mercedes ─ E tu?

Conrado ─ Oh! Não vos inquieteis por minha causa. Não corro nenhum perigo, não
me faltam os recursos. Fácil me será encontrar outra cavalgadura. Aí vem o
administrador. Eu me retiro, experimentai-o. (Sai.)
Cena 12

Geraldo ─ Pensei que dormia, receava incomodá-lo.

Álvaro ─ O Sr. nunca me incomoda.

Geraldo ─ Muito obrigado. Estava então meditando?

Álvaro ─ É verdade, procurava um meio de sair de um grande embaraço. Talvez o


Sr. encontre esse meio.

Geraldo ─ Eu?

Álvaro ─ Sim, eis aqui o que lhe pode ajudar.

Geraldo ─ Quê! Um brilhante!

Álvaro ─ Pertence-lhe se me fizer um favor que lhe vou pedir.

Geraldo ─ Oh, fale, fale. Que magnífica pedra!... Nunca vi tão grande, tão pura!
entretanto sou entendido na matéria.

Álvaro ─ É uma joia de família.

Geraldo ─ Da vossa família! A surpresa tolhe a respiração!

Álvaro ─ É necessário que antes de amanhecer me facilite a saída deste lugar. O


moço que veio com [o] Capitão-Mor, aquele que o salvou, põe dois cavalos à minha
disposição. Quero-os à porta, e um guia seguro e fiel que me conduza.

Geraldo ─ Mas não estarei enganado? Será mesmo uma pedra preciosa? Deixe-me
examiná-la de novo. É verdade! É um brilhante de subido [alto] preço!

Álvaro ─ Posso confiar no Sr.? Sabe agora que meu nascimento é superior ao que
anuncia meu estado atual.

Geraldo ─ Não há dúvida, esta joia revela um nobre sangue.

Álvaro ─ Tenho bastantes razões para ocultar meu nome e viajar disfarçado.

Geraldo ─ O Sr. é talvez o homem que o Capitão-Mor procura?

Álvaro ─ Ah! Ele procura alguém?

Geraldo ─ Já me fez um grande interrogatório a seu respeito. Desconfia...

Álvaro ─ Não sou quem ele procura. Se me confundissem, entretanto, com essa
pessoa, grandes contrariedades poderíamos sofrer, eu e o Capitão-Mor. É para evitar
esse duplo inconveniente que desejo partir quanto antes.

Geraldo ─ Pouco me importa que o senhor seja ou não seja o tal indivíduo. Nada
tenho com isso. Além disso, não obteria nem a décima parte do que me oferece,
servindo esse velho vaidoso e avarento. Pode contar comigo. Deixe-me ainda uma vez
ver o brilhante.

Álvaro ─ Pode vê-lo à sua vontade. Quando a condução estiver à pronta, eu o


entregarei.

Geraldo ─ Oh, gloriosa pedra! Oh, estrela sublime que me clareias o caminho do
futuro! Serás minha!... Sinto-me grande e poderoso como um rei!... Tome, tome, e até
logo. Vou dar as providências necessárias para sua partida.
Cena 13

Álvaro ─ (depois de pausa) Sempre perseguido! Fugitivo sempre!... Nunca um


momento de repouso!... Basta! Basta, gênio cruel que me torturas, tenho assaz expiado
minhas faltas!... Ah! Capitão-Mor!... Capitão-Mor!...(levanta-se) Ele dorme agora, no
fim daquele corredor, a última porta à esquerda. Por baixo da torre há uma escada,
subindo a escada um outro corredor, no fundo uma saleta. A primeira porta à direita é o
seu quarto... Oh! desta vez ele está nas minhas mãos! Nunca me poupou, não [o]
pouparei também!... Ânimo!... Meu punhal está bem afiado... Um movimento apenas,
rápido... instantes, e todas as barreiras estão derrubadas!... Mas sua filha! Oh, nunca!
nunca!... Não mancharei as mãos no sangue de um homem adormecido! Vai-te para
longe de mim, arma tentadora. Parece que no teu brilho sinistro vejo alguma coisa
semelhante ao olhar de Satã!
Cena 14

Bruno ─ Onde está o Capitão-Mor?

Álvaro ─ Dorme.

Bruno ─ Preciso falar com ele.

Álvaro ─ Espere que amanheça.

Bruno ─ Encontrei os papéis que perdeu.

Álvaro ─ Onde estão?

Bruno ─ Ei-los. Ele recomendou que aquele que os achasse entregasse


imediatamente.

Álvaro ─ É verdade.

Bruno ─ Quero satisfazer-lhe a vontade. Por onde subirei para ir ter com ele?

Álvaro ─ A escada grande da entrada está escura, não chegaria hoje lá sem uma luz.
Há grande número de salas e passagens.

Bruno ─ Então?

Álvaro ─ Entre por aqui. Bem no fundo deste corredor tem uma porta à esquerda.
Abra. Encontrará uma escada, depois um outro corredor, no fim uma saleta com
diversos quartos. No primeiro à direita está o Capitão-Mor.

Bruno ─ Obrigado.

Álvaro ─ Tenha cuidado de cerrar as portas. O vento que se engolfa por esta
passagem pode me fazer mal.

Bruno ─ Não me esquecerei.


Cena 15

Álvaro ─ Mercedes repousa, infeliz! Não serei quem interrompa seu sono! Dorme,
companheira desditosa, anjo celeste cujas asas divinas cobrir-se-ão da poeira de minha
infausta romaria neste mundo! Dorme! Nos raros momentos em que cerras as pálpebras
para descansar, ainda tua alma é feliz! Porém eu, eu sou condenado a sofrer a todos os
momentos! Meus dias são uma cadeia de martírios, minhas noites um tecido de
pesadelos atrozes! Ah! Por que não nasci no tugúrio [casebre] grosseiro de um pobre
operário? Por que não me acostumei desde criança aos pesados trabalhos do corpo? Por
que em vez dos livros e da espada não aprendi a manejar uma enxada ou uma alavanca?
Então teria sido feliz! Minhas ambições não passariam de uma cabana humilde e da
certeza do pão quotidiano. Não conheceria a grandeza e a opulência, por isso não as
desejaria! A noite adianta-se. Não tenho sono, porém preciso repousar. Encostar-me-ei
mesmo aqui! Geraldo não deve tardar... Amanhã estaria livre... porém... talvez por bem
pouco tempo! A tempestade passou, o céu deve estar limpo... limpo, claro, recamado de
estrelas... como o céu que eu admirava nas noites de minha infância... belos tempos...
Como ainda tenho saudades!... e passou, passou como tudo nesta vida... não voltará...
mais. (Dorme.)
Cena 16

Bruno ─ Dorme! É necessário que eu saia quanto antes desta casa maldita!... Oh!
horror! horror!...

Mercedes ─ Senhor!

Bruno ─ Silêncio!

Mercedes ─ O Sr. faz-me tremer!

Bruno ─ Não acorde seu marido... alguma coisa de horrível acaba de suceder hoje
aqui. Deus!...

Mercedes ─ Oh!...

Bruno ─ Senhora, acautele-se. Eu parto, eu parto quanto antes! (Sai.)


Cena 17

Mercedes ─ Álvaro... Álvaro!...

Álvaro ─ Céus! O que tens?...

Mercedes ─ Olha... ele saiu por aquela porta... agora mesmo... a expressão de seus
olhos causava horror!...

Álvaro ─ Ele quem?


Cena 18

Conrado ─ Meu pai...

Álvaro ─ Conrado!

Conrado ─ O Capitão-Mor acaba de ser assassinado!

Mercedes ─ Ah!...

Álvaro ─ O que dizes!...

Conrado ─ Passei por seu quarto... olhando para a cama, vi uma onda de sangue que
ensopava os lençóis... cheguei-me... o infeliz estava frio... imóvel... traspassado por duas
punhaladas certeiras... na região do coração!... Meu pai... meu pai!...

Mercedes ─ Conrado!

Conrado ─ Oh! Parece que ainda o vejo!... seus olhos ainda estavam abertos...
fixos... seus lábios pareciam sorrir...

Mercedes ─ Basta... basta, não prossigas... tu me matas de medo!...

Álvaro ─ Fui eu o culpado!

Mercedes ─ Tu?

Álvaro ─ Sim! Deixei penetrar o assassino até seu quarto. Ainda é tempo. Acorda a
comitiva do Capitão-Mor, podemos prendê-lo...

Mercedes ─ Ah! é tarde! Ele passou por aqui... saiu.

Conrado ─ Vós o vistes, mãe?

Mercedes ─ Se o vi!...

Álvaro ─ Ah!... E a pobre filha do Capitão-Mor?

Conrado ─ Sua filha!...dorme... não sabe o que sucedeu... é horrível!... Vamos, meu
pai, partamos quanto antes... é impossível ficarmos mais tempo nesta casa. Mudei de
intento: acompanho-vos também.
Cena 19

Geraldo ─ Está pronta a condução. A minha recompensa agora.

Álvaro ─ Ei-la.

Mercedes ─ Partamos.
Segundo Ato

Cena 1

Pascoal ─ Que tal então a vida com os novos amos?

Rodrigo ─ Mais alegre do que no tempo do defunto.

Pascoal ─ Então ele te tratava mal?

Rodrigo ─ A respeito da botelha [bebida] e da papança [alimentação], nada tenho


que me queixar.

Pascoal ─ Então?

Rodrigo ─ É que... que ele... ele era...

Pascoal ─ Era...

Rodrigo ─ Um mocho [indivíduo taciturno que gosta de solidão], uma espécie de


bruxo, vivia só metido no seu quarto.

Pascoal ─ Ah!

Rodrigo ─ Dizia poucas palavras, e essas mesmo de que modo!...

Pascoal ─ Ainda não se levantou o Sr. Conrado?

Rodrigo ─ Creio que ainda dorme.

Pascoal ─ E o Sr. D. Álvaro de Almeida?

Rodrigo ─ Esse é matinal como um passarinho... o filho...

Pascoal ─ O que tem o filho?

Rodrigo ─ Ora o que tem. É um moço, é...

Pascoal ─ Que diabo! Não acabarás com tuas malditas reticências!

Rodrigo ─ Quero dizer. Olhe este Sr. Conrado: quando ficar velho há de ser o retrato
vivo do avô.

Pascoal ─ Por quê?

Rodrigo ─ Tens uns modos... depois, eu... sim.

Pascoal ─ Continuas tratante?

Rodrigo ─ Sr., vou ser claro. Sabe que conheço o Sr. Conrado há muito tempo. Veio
para a companhia do falecido patrão muito criança. Passou aqui alguns anos, depois
desapareceu não se sabe como, da noite para o dia, sem mesmo se descobrir para onde
fora.

Pascoal ─ E o que tem isso?

Rodrigo ─ Nada. Mas é que ouvi dizer.

Pascoal ─ O que ouviste dizer, cascavel?

Rodrigo ─ Não assevero, não sou eu que diz, declaro-lhe já, mas ouvi contar que
tinha sido levado por um bando de ciganos que vivem conluiados com os ladrões...

Pascoal ─ Ah! tu ouviste dizer isto?

Rodrigo ─ Sim. Que se foi levado por esses ciganos, que vivem com esses ladrões,
que moram nos altos das serras, que...

Pascoal ─ E que deviam segurar-te e arrancar-te a língua para não repetires tais
baboseiras.

Rodrigo ─ Não sou, não sou eu que diz, já lhe adverti.


Cena 2

Conrado ─ Bom dia, meu bravo Pascoal.

Pascoal ─ Convida-me para uma caçada de veados e agora é que se levanta.

Conrado ─ Enganas-te. Os cães estão atrelados, os cavalos arreados, nada nos falta,
vês que estou preparado.

Pascoal ─ Mas já é tarde.

Conrado ─ Não é mister irmos muito longe.

Pascoal ─ Como quiser.

Conrado ─ Rodrigo, vás puxar os animais para junto do portão. Os outros caçadores
que me esperam na sala de baixo podem seguir com os cães.

Rodrigo ─ Sim, senhor.


Cena 3

Pascoal ─ Sabe das mais recentes notícias?

Conrado ─ Sobre quem?

Pascoal ─ Ora...

Conrado ─ Ah! sei... Cala-te.

Pascoal ─ Convém tomarmos as mais sérias providências.

Conrado ─ É o que tenho pensado, porém sejamos prudentes. Mais tarde e em lugar
mais seguro conversaremos.

Pascoal ─ Não guardemos para amanhã os negócios urgentes!

Conrado ─ Sim... mas...

Pascoal ─ Desconfio que seremos traídos!

Conrado ─ Suspeitas?... Silêncio, aí vem minha prima.


Cena 4

Conrado ─ Acordou hoje cedo, minha querida prima.

Sílvia ─ Porventura minha presença lhe importuna?

Conrado ─ Oh! não!...

Sílvia ─ Quero lhe pedir um favor.

Conrado ─ Qual?

Sílvia ─ Não me chame de prima.

Conrado ─ Não somos primos?

Sílvia ─ Sim, mas não gosto deste título. É tão frio! Parece-me que quando o
pronuncia só pensa no nosso parentesco, nos laços de sangue...

Conrado ─ De sangue?

Sílvia ─ Sim, meu Deus, por que falando em sangue seu rosto empalidece?

Conrado ─ Ah! É porque sua presença o faz refluir todo para o meu coração, que só
palpita por minha encantadora prima.

Sílvia ─ Ainda!

Conrado ─ Está bem, eu lhe chamarei minha irmã, acha melhor?

Sílvia ─ Pior! Prouvera a Deus que não fôssemos parentes.

Conrado ─ Sim! Prouvera a Deus!

Sílvia ─ Também pensa assim?

Conrado ─ Querida Sílvia! Não vê que minha voz foi o eco da sua?

Sílvia ─ Querida Sílvia! Chame-me sempre assim! Porque lhe pertenço, porque não
tenho outra afeição neste mundo depois que meu pobre pai...

Conrado ─ Oh! Ainda lhe resta o meu, minha mãe... eu...

Sílvia ─ Infortunado pai!... Não pude receber o seu último suspiro!... Quando me
levaram para junto de seu leito...

Conrado ─ ... Era horrível!...

Sílvia ─ Sim, horrível!... Não assistiu também seus últimos momentos?

Conrado ─ Eu?... Que[m] lhe disse isto, Sílvia?

Sílvia ─ E tinha-lhe salvado a vida!... Nem teve tempo de reconhecer seu sobrinho!...
Conrado ─ Sim... não reconheceu, nem mesmo podia reconhecer!

Sílvia ─ Oh! Por mais uma hora tinha [teria] sido duas vezes seu salvador!

Conrado ─ É verdade!... fui o primeiro que descobri[u] o crime!...

Sílvia ─ O sonho mente às vezes, porém outras vezes fala a verdade. Muitas vezes,
em sonho vejo meu pai... lívido... com a fisionomia combalida, banhado em seu próprio
sangue... vejo diante dele um homem de punhal alçado, de rosto ameaçador!...

Conrado ─ E vê o rosto desse homem, Sílvia?

Sílvia ─ Engano-me. Não, não o vejo... mas diga-me: vê?

Conrado ─ Eu? Por que me pergunta isto?

Sílvia ─ Porque seu rosto neste momento é de quem vê um assassino.

Conrado ─ Loucura! Impressão de criança! Sua fraqueza e seus vãos terrores


comunicam-se a meu espírito. Mudemos de conversa, criança!

Sílvia ─ Criança! Já completei quinze anos.


Cena 5

Rodrigo ─ Senhor, os animais estão prontos, os caçadores já partiram.

Sílvia ─ Sempre estas caçadas!...

Conrado ─ Perdoe-me, querida prima, estou hoje comprometido.

Sílvia ─ Não é só hoje. Esteve ontem e estará amanhã.

Conrado ─ Dize a Pascoal que me espere por alguns minutos, e depois vai participar
a meu pai que desejo falar-lhe.

Rodrigo ─ Está também aí um pobre homem que deseja falar ao Sr. Dr. Álvaro.

Conrado ─ Dai-lhe esta esmola e manda-o embora.

Rodrigo ─ Já pensei que fosse um mendigo, porém ele diz que tem negócio
importante a comunicar.

Conrado ─ Manda-o então entrar e vai avisar meu pai. Ele aí vem, é inútil. Faze
entrar o homem.
Cena 6

Conrado ─ Sua bênção, meu pai.

Álvaro ─ Deus te abençoe.

Conrado ─ Tenho apenas duas palavras a dizer-lhe, e peço-lhe desculpa de o deixar


já: os caçadores e convidados há quinze dias [minutos] esperam-me.

Álvaro ─ Que esperem. Já se esqueceu que amanhã chega a Vila Rica o novo
governador e que não devemos faltar à sua recepção?

Conrado ─ É verdade.

Sílvia ─ Felizmente, hoje não sairá daqui.

Álvaro ─ Se for a essa caçada, só amanhã à tarde é que deve estar de volta.

Conrado ─ Meu pai representará suficientemente nossa falta. Eu não gosto dessas
festas oficiais.

Álvaro ─ Porém, meu filho, as principais pessoas do distrito, tanto velhos como
mancebos, hão de estar presentes. Tua ausência dará nas vistas.

Sílvia ─ Meu pai tem toda a razão, Conrado. Depois devemos ir ao templo agradecer
ao céu a restituição da herança de nossos maiores [antepassados]. Temos adiado sempre
este sagrado dever.

Conrado ─ Deu agora para beato e santarrão. Nada mais lhe faltava! Está bem, meu
pai, obedeço-lhe.

Sílvia ─ Com duas palavras, meu pai, conseguiu o que eu não alcançaria com um
discurso.

Álvaro ─ Não te zangues por isso: desejavas que ele obedecesse a ti, só? Há de vir o
dia em que terás mais império do que eu.

Sílvia ─ Quem sabe?...

Álvaro ─ Ainda não foste dar os bons dias à tua mãe. Ela te espera na sala de jantar.

Sílvia ─ Já vou neste instante. (Sai.)


Cena 7

Geraldo ─ Meus Srs.?

Conrado ─ Este homem!

Álvaro ─ O administrador da fazenda dos jesuítas!...

Geraldo ─ Sim, Sr., sou eu mesmo. Há um ano que não nos vemos, Sr. Leôncio...
perdão: Sr. D. Álvaro de Almeida!

Álvaro ─ E quem lhe disse meu nome? E como soube que eu morava aqui?

Geraldo ─ Ah! Meu Senhor! Depois daquela noite infernal em que aquele demônio
chamado Bruno assassinou o pobre Capitão-Mor e fugiu, e que o Sr. Leôncio... perdão,
o Sr. D. Álvaro saiu de minha casa... tenho sofrido o que há de pior neste mundo. Os
primeiros três meses, ainda os passei, mas quando lá chegou um batalhão ou um
regimento comandado por um terrível homem de polícia que ia em nome do Sr. Álvaro
de Almeida para trazer a menina, a filha do Capitão-Mor, e perseguir o assassino, fui
agarrado, maltratado, injuriado como se tivesse parte no negócio!... Custou-me a
escapar dos malvados!

Conrado ─ E como escapou?...

Geraldo ─ Devo a Deus e ao Sr. Álvaro.

Álvaro ─ A mim?

Geraldo ─ Sim, com aquele brilhante que me deu, comprei o alferes.

Álvaro ─ E como veio aqui?

Geraldo ─ Andei escondido pelo mato algum tempo... escapei de ser assassinado
pelos ladrões das serras, que diziam que eu era um homem comprometedor. Ora vejam
só! Eu, um homem comprometedor. Consegui chegar a estes lugares. Hospedei-me em
casa de um caboclo, aí estive até antes de ontem. Saí à noite a dar um passeio e vi o Sr.
Leôncio... perdão, o Sr. D. Álvaro que passeava a cavalo. Quis falar-lhe, mas ia mais
gente e receei ser importuno. Voltando à cabana, contei o encontro ao meu hóspede
caboclo, e ele me disse que o Sr. Leôncio Martins era D. Álvaro de Almeida, o homem
mais rico e mais poderoso daqui.

Conrado ─ Depois?

Geraldo ─ Depois?... Eu tenho também que conversar com o Sr...

Conrado ─ Comigo?

Geraldo ─ Sim, mas em segredo.

Álvaro ─ Finalmente. O que quer de mim?


Geraldo ─ Meu Deus! Eu sou um homem pobre, perseguido... o Sr. já foi pobre e
perseguido, dei-lhe minha casa, protegi-o... agora quero que mostre que não esqueceu
do pobre administrador da fazenda dos frades jesuítas.

Álvaro ─ Tem razão.

Geraldo ─ Me[..] [...]esmo eu posso lhe ajudar a achar o assassino do Capitão-Mor.

Conrado ─ É impossível!

Geraldo ─ Desconfio que ele não está longe daqui!

Conrado ─ Daqui!

Álvaro ─ O que diz.

Geraldo ─ Antes de chegar à casa do caboclo onde me hospedei, vi apear-se em uma


taberna um indivíduo que se não é Bruno, é o diabo por ele!

Conrado ─ Ah!... e é muito longe essa taberna?

Geraldo ─ Três quartos de légua, quando muito, daqui.

Álvaro ─ Meu amigo. Siga por este corredor. Vou mandar lhe dar um lugar para
descansar e alguma coisa para comer. Rodrigo!

Rodrigo ─ Sr.?

(Falam baixo, e Geraldo segue.)


Cena 8

Pascoal ─ Sr. D. Álvaro!...

D. Álvaro faz uma cortesia.

Conrado ─ Dê-me licença, meu pai. (Falam baixo. Sai Pascoal.)


Cena 9

Álvaro ─ Este indivíduo é um dos companheiros suspeitos sobre que tenho de


aconselhar-te.

Conrado ─ É um moço inteligente, afável.

Álvaro ─ Não se trata agora de inteligência, nem de afabilidade. Algumas pessoas


respeitáveis falam dele de uma maneira desfavorável.

Conrado ─ Oh! Isto sucede à maior parte dos homens. Basta uma pessoa não
partilhar os preconceitos vulgares, ou não sujeitar-se às convenções interesseiras de uma
sociedade egoísta para sofrer a pecha de mau. O vigário não está livre dos falatórios do
sacristão, o fidalgo das intrigas de seu lacaio, o rei das novelas de seu criado-grave
[camareiro].

Álvaro ─ Queres [que] te fale mais claramente? Correm certos boatos a respeito
deste Pascoal. Por exemplo: dizem que está conluiado com salteadores que depredam as
rendas do governo... que faz parte de um grupo de insurgentes que não querem pagar os
impostos do quinto de ouro e...

Conrado ─ E meu pai presta atenção a esses boatos?

Álvaro ─ Por que não?

Conrado ─ Oh, uma acusação vaga e caluniosa não é uma sentença definitiva!

Álvaro ─ Conrado, meu filho, escuta meus conselhos!... Eu não escutei os de meu
pai!

Conrado ─ Já me mostrei algum dia desobediente?

Álvaro ─ Não... Obedeces-me sempre, porém friamente, sem esta solicitude afetuosa
que faz a felicidade, a glória do coração paterno. Tu não me amas, Conrado!

Conrado ─ Quem lhe disse isto?

Álvaro ─ Eu. Ninguém mais. Todos louvam tua submissão, porém...

Conrado ─ Oh! Não estou habituado a manifestações externas de ternura. Separado


de meus pais há dez anos, não é de estranhar que assim proceda.

Álvaro ─ E eu também não passei dez anos consumindo comigo mesmo a mágoa de
tua ausência? Tenho uma natureza porventura diferente da tua?... Mas bem vejo que te
falo debalde [inutilmente]. Os conselhos e as exprobrações [recriminações] não mudam
a índole dos homens. Mudemos de assunto. Estas amizades de moços violentos,
sediciosos, inimigos de toda a ordem, podem te arrastar.

Conrado ─ Tenho bastante discernimento. Não me deixo guiar por ninguém.


Álvaro ─ Por isso não deves também guiar ninguém.

Conrado ─ E a quem guiarei eu?

Álvaro ─ Não sei. Sou teu pai, tenho bastante experiência do mundo, sei que uma
afeição sincera e firme vale mais do que todos os conselhos. Achei conveniente dar por
esposa tua prima Sílvia. Não a amas?

Conrado ─ Seguirei sempre suas ordens, já disse. Ainda que me obrigue a desposar a
morte, obedecer-lhe-ei.

Álvaro ─ Não, um filho nunca responde assim. Por que não me dizes se amas Sílvia,
"quero, meu pai"? Ou, se não, "não quero"? Em tua idade eu teria falado deste modo.

Conrado ─ Meu pai não se casou por conveniência, casou-se por amor.

Álvaro ─ Tens razão. Este amor foi a minha consolação em todos os infortúnios.

Conrado ─ Infortúnios que não existiriam se não fosse este casamento por amor.

Álvaro ─ Tua lógica é atroz!

Conrado ─ Há uma só lógica... Ser e não ser ao mesmo tempo é impossível.

Álvaro ─ Que moço de vinte anos conhece semelhante objeção?

Conrado ─ Não me recomenda sempre meu pai que não siga o seu exemplo?

Álvaro ─ Obstinado sofista! Amas ou não amas Sílvia?

Conrado ─ E que lhe importa isto, se estou pronto a obedecer-lhe?

Álvaro ─ Ah! Que me importa? Para ti pode ser indiferente esta união, mas para ela,
pobre criança ingênua, crente, é uma questão de vida ou de morte!... Ela é bela, ama-te,
Deus lhe deu tudo o que pode fazer a felicidade de um homem. Quem tem tudo isto,
quem dá tudo isto deve também esperar alguma coisa em paga. Não quero que seu
coração se parta de encontro a um homem sem coração. Ela é filha...

Conrado ─ ... do Capitão-Mor, seu maior inimigo, meu pai. Porém, não importa,
caso-me com ela, uma vez que é seu desejo. Não são novas estas uniões monstruosas.

Álvaro ─ Mas ela te ama!

Conrado ─ Eu também a amo.

Álvaro ─ Então.

Conrado ─ Então? É porque a amo que [deves] reconsiderar esta proposta.

Álvaro ─ Ah! O verdadeiro amor não tem tais evasivas!


Conrado ─ Pois então ainda está o verdadeiro amor em tempo de arrancar ou
conservar a venda nos olhos.

Álvaro ─ Para quando marcas o dia do casamento?

Conrado ─ Converse com minha mãe e Sílvia, são os que devem resolver sobre o
negócio.

Álvaro ─ Responde por elas.

Conrado ─ Este casamento é obra sua, meu pai: faça o que bem entender. Quando
tudo estiver pronto e vier[em] o padre e as testemunhas, chame-me e eu me casarei.
Agora desculpe-me, vou conversar alguns momentos com minha mãe. Tinha um
negócio particular a expor a meu pai, porém não é mais tempo. Deseja que fique
encerrado nas salas da fazenda a fazer o papel de namorado de romance ou de pajem
pudico, sempre debruçado à fímbria dos vestidos das castelãs da Idade Média. Obedeço-
vos. Quer que me acostume às frivolidades da casa, que espreite um sorriso ou um olhar
como um guerreiro antigo espreitando a estrela vespertina no dia antecedente ao de uma
batalha, seja. Os exercícios varonis, as lutas em que possa tomar a responsabilidade, o
desenvolvimento de meu espírito livre nada valem. Bem.
Cena 10

Álvaro ─ Ah! é demais! Tanta submissão e tanta frieza! Tanto desamor!... Será
possível que a maldição de meu pai chegasse até meu filho! Porventura a sombra desse
pérfido Bruno, desse assassino gira ainda em torno de nós? Estará o crime desse
aventureiro incansável ligado a nosso destino?... O Capitão-Mor! Eu era teu inimigo,
mas sou inocente! Meu filho é inocente também!... Por uma triste imprudência, por ter
irrefletidamente aberto a porta a teu bárbaro algoz, será minha família responsável por
tua morte?...
Cena 11

Rodrigo ─ Senhor, o velho padre que mandou ontem convidar ao vir aqui está à
porta.

Álvaro ─ Faze-o entrar.


Cena 12

Frei Januário ─ Deus abençoe todos os que habitam sob este teto.

Álvaro ─ Sede bem-vindo, padre, [...] o Senhor nossos votos.

Frei Januário ─ Tendes todo o direito a nossas orações. Nosso convento foi sempre
protegido por vossa família.

Álvaro ─ Sentai-vos.

Frei Januário ─ Mandastes me chamar, era um caso de consciência, dizíeis na carta


que me escreveste, que tínheis a decidir. Falai, irmão.

Álvaro ─ É verdade, meu padre. Desejava, desejo livrar dos suplícios do purgatório
um infeliz que, pertencendo à nossa igreja, morreu sem os socorros espirituais que
facilitam a entrada das almas na eterna bem-aventurança... eis uma doação que vos faço
a fim de obter, por meio de vossas santas orações e missas, o repouso eterno da alma
desse mal-aventurado. (Dá um cartucho de ouro.)

Frei Januário ─ Recebo este dinheiro porque sei que, recusando-o, vos ofenderia. Ele
será também distribuído em esmolas. As missas serão ditas, as orações feitas. Nosso
convento não precisará de doações graças às que fizeram nossos maiores
[antepassados]!... e ao legado que me deixou à viva voz para salvar um filho perdido,
amaldiçoado.

Álvaro ─ Sei disto, padre, sei disto. Ele deixou-vos este legado? Arrependeu-se?

Frei Januário ─ Sim, arrependeu-se... porém não posso trair os segredos da confissão.
Por quem direi as missas que me encomenda?

Álvaro ─ Por... Por... Por um morto.

Frei Januário ─ Mas é necessário saber-lhe o nome.

Álvaro ─ Não é um nome, é uma alma que desejo salvar das penas do outro mundo.

Frei Januário ─ Respeitarei vosso segredo, orarei por um desconhecido, não é assim?

Álvaro ─ Não! Eu não tenho segredos, enganai-vos. Meu pai podia tê-los... senão
esse legado de que falais... porém, desculpai-me, piedosas intenções movem-me a dar-
vos esta soma.

Frei Januário ─ É um ato louvável. Quererás que ore por um amigo morto. Entendo.

Álvaro ─ O morto não era meu amigo. Pelo contrário, era meu mortal inimigo!

Frei Januário ─ Melhor ainda. Alcançar as graças do céu para nossos mortais
inimigos é uma virtude de primeira ordem. Quem assim faz também sabe perdoar em
vida.
Álvaro ─ Não, eu não perdoei esse homem. Votei-lhe ódio até seu último momento,
assim como sempre ele me odiou. Perdoo-lhe agora.

Frei Januário ─ Oh! Mil vezes melhor! É justamente o que aconselha o Evangelho!
Não é uma sensibilidade mal entendida que vos faz rogar por ele, é a consciência do
dever e das virtudes cristãs!... Ah! Se da prática de um bom ato resultasse sempre o
prazer [...] recompensa, nenhum mérito teria o desinteresse cristão.

Álvaro ─ Sabeis o que quero, padre?

Frei Januário ─ Esquecia-me de vos fazer uma pergunta, perdoai-me: este dinheiro
não está manchado de sangue?

Álvaro ─ Não, padre, juro-vos por Deus que nos ouve, não há sangue, mas há um
eterno remorso!

Frei Januário ─ A pessoa pela qual rogais morreu em seu leito?

Álvaro ─ Morreu! Ah!

Frei Januário ─ Meu filho, vós reincidis em vosso crime de vingança! Quem sabe se
desejaríeis que vosso inimigo morresse de morte violenta?

Álvaro ─ Sua morte foi sanguinolenta e medonha!

Frei Januário ─ Mas dissestes que morreu em seu leito, e não em um campo de
batalha.

Álvaro ─ Oh! Morreu, apenas sei como. Foi assassinado nas trevas, esfaqueado em
sua cama. Sabeis agora tudo. Olhai para mim, vede se fui seu assassino!

Frei Januário ─ Não tiveste nenhuma parte em sua morte?

Álvaro ─ Nenhuma, pelo Deus que premia e castiga.

Frei Januário ─ Não suspeitais quem seja o assassino?

Álvaro ─ Desconfiei apenas de um homem. Era-me desconhecido, nenhum laço nos


unia. Apenas o vi uma noite.

Frei Januário ─ Estais então puro de toda culpabilidade?

Álvaro ─ Oh!... Oh! Estarei? Falai, padre!

Frei Januário ─ Vós o dissestes. Deveis saber.

Álvaro ─ Falei-vos a verdade, padre. Nada vos ocultei. Oh! Dizei-me que não sou
culpado porque a morte deste homem pesa sobre minha alma... Eu o teria defendido se
pudesse... Mas orai por ele, por mim, por toda a minha casa! Sou inocente, vos disse,
mas sinto alguma coisa que se assemelha ao remorso, talvez porque o odiasse, porque
mesmo desejasse sua morte!... Mas não o odeio mais! Daria tudo o que possuo para
ressuscitá-lo! Orai, padre, eu tenho bastante orado!

Frei Januário ─ Tranquilizai-vos, eu farei o que pedis. Sede calmo, inocente!

Álvaro ─ Oh! Nem sempre a calma foi a partilha da inocência.

Frei Januário ─ Mas há de ser, depois de bem meditardes, depois que conversardes
francamente com vossa consciência. Deixai o remorso aos culpados: nem o que sentis
pode se chamar remorso, é uma doença de imaginação. Adeus, filho! Deus fique
convosco.

Álvaro ─ Adeus, padre!


Cena 13

Mercedes ─ Álvaro!...

Álvaro ─ Mercedes!...

Mercedes ─ Ouvi tudo!

Álvaro ─ Tudo?... O que ouviste?

Mercedes ─ Perdoa-me!... Como me sinto feliz!... Álvaro, eu duvidava de ti!...

Álvaro ─ O que dizes?

Mercedes ─ Nunca supus que fosses o autor de tão horrível delito... julguei, contudo,
que tivesses cumplicidade nele!

Álvaro ─ Tu, Mercedes!...

Mercedes ─ Perdoa-me, meu marido! Meu Álvaro!

Álvaro ─ Santa! (Abraçam-se.)


Terceiro Ato

Cena 1

Geraldo ─ Então o Sr. Dr. Álvaro já mandou procurar pelo homem? O tal célebre
Bruno?

Rodrigo ─ Penso que sim. Ontem ouvi ele estar conversando com uns indivíduos e
parecia-me que dava todos os sinais.

Geraldo ─ E esses indivíduos?

Rodrigo ─ Disseram que haviam de descobrir o malvado. Creio que não terão muito
trabalho, o Sr. Conrado jurou que o acharia.

Geraldo ─ Se o Sr. Conrado jura, acham, não há dúvida nenhuma.

Rodrigo ─ Por quê?

Geraldo ─ O Sr. Conrado tem recursos, é ativo.

Rodrigo ─ É...

Geraldo ─ Meu amigo, o melhor é darmos um nó cego na língua.

Rodrigo ─ Então... pensa...

Geraldo ─ Eu penso, tu pensas, ele pensa... foi até onde cheguei na gramática...

Rodrigo ─ Não sei onde é essa terra, deve ser para as bandas da Europa.

Geraldo ─ Ou da China.

Rodrigo ─ Também não sei onde é.

Geraldo ─ Então o que acha? O Sr. D. Álvaro vem chegando com a família, olhes.
Não sabe também disto?

Rodrigo ─ É verdade. Vamos lá para dentro, temos alguma coisa mais para
conversar.

Geraldo ─ Vamos. (Saem.)


Cena 2

Mercedes ─ Devo estar cansada, filha. Passar até ao meio-dia em pé a assistir


paradas, cumprimentos e outras coisas aborrecidas, vestida de roupas incômodas, depois
montar a cavalo e andar duas léguas!

Sílvia ─ Oh, não me incomodei, minha mãe. A festa estava tão bonita!

Mercedes ─ Minha mãe. Como é doce este nome! Chama-me sempre assim!

Sílvia ─ Não sou já sua filha?

Mercedes ─ É e não é.

Sílvia ─ Como?

Mercedes ─ Por ora, amo-te de coração como se fosses minha filha, porém falta... tu
sabes.

Sílvia ─ Eu não conheci minha mãe. Conto minha idade desde o ano de sua morte.

Mercedes ─ E não posso eu substituí-la? Amo-te tanto!

Sílvia ─ Minha mãe! (Abraçam-se.)

Mercedes ─ Como achaste Conrado com seu novo uniforme?

Sílvia ─ Nenhum dos moços que estavam na festa era mais belo do que ele... Como
olhava sobranceiro para todos!... Como todos o contemplavam!...

Mercedes ─ É bom que não digas isto, pode ficar muito ancho [orgulhoso].

Sílvia ─ Não sou capaz de dizer-lhe a metade.

Mercedes ─ Por quê? Não o amas? Não te ama ele?

Sílvia ─ Sim, minha mãe, mas às vezes tenho medo.

Mercedes ─ Dele?

Sílvia ─ Dele. Não sei o que sinto quando o vejo. Às vezes tenho vontade de adorá-
lo, outras vezes, desejo fugir...

Mercedes ─ Como assim?

Sílvia ─ Há momentos, minha mãe, em que uma nuvem sinistra obscurece seus olhos
azuis, em que sua fisionomia toma uma expressão... que não posso definir, então tenho
medo.

Mercedes ─ Não te assustes. Os homens têm mais em que pensar do que nós, pobres
mulheres.
Sílvia ─ Eu só penso nele.

Mercedes ─ Vamos despir estas incômodas saias. Teu pai e Conrado não devem
tardar. Eles têm negócios a decidir depois da chegada do governador. Vamos.

Sílvia ─ Vamos, minha mãe.


Cena 3

Álvaro ─ Vi o assassino.

Conrado ─ Que assassino?

Álvaro ─ O assassino do Capitão-Mor.

Conrado ─ Tinha-me esquecido.

Álvaro ─ Podes te esquecer do assassino do pai da tua esposa?

Conrado ─ O assassino... do pai de minha esposa!... Sim, tem razão... mas onde o
viu? Meu pai sonha ou delira!...

Álvaro ─ Não deliro nem sonho. Vi-o como te vejo!

Conrado ─ Como me vê? E por que não o prendeu?

Álvaro ─ Sabes, durante o tempo de nosso infortúnio mudei de nome. Chamava-me


Leôncio Martins.

Conrado ─ Recordo-me. Porém não é mais o seu nome. Esqueça-o.

Álvaro ─ Esquecer-me? Nunca! Todo o meu destino está ligado a este nome! Não
está [estará] gravado em meu túmulo, é verdade, mas pode levar-me ao túmulo!

Conrado ─ Voltemos ao caso. Como se chama o assassino?

Álvaro ─ Bruno.

Conrado ─ De quê?

Álvaro ─ De quê? Apelidos... alcunhas... atributos... predicados... o que vale tudo


isto?

Conrado ─ Pode acrescentar algum artigo a mais a um tratado de sinônimos, é o


mais.

Álvaro ─ Conrado, os filhos nunca devem zombar dos pais, lembra-te de...

Conrado ─ De Cham [?], depois que o pai tomou uma bebedeira.

Álvaro ─ Ao menos respeita um velho.

Conrado ─ Depois que meu pai lida com frades e faz da Bíblia sua leitura favorita,
ninguém o pode mais aturar. Não temos ursos no Brasil, nem meu pai é o calvo criado
do profeta Elias, nem mesmo sou criança.

Álvaro ─ Tens razão! Escuta.

Conrado ─ Estou mudo como um pelourinho.


Álvaro ─ Estávamos na parada, tocava-se o hino português, sempre aplaudi esta
música. O governador que percebeu que eu apreciava e que tinha os olhos fitos sobre
diversos manejos, que ainda não podem bem desempenhar os boçais soldados
brasileiros, mandou, por meio de seu ajudante de ordenes, convidar-me para ir
conversar com ele. Ao levantar-me do lugar onde estava, ouvi uma voz dizer: ― Sr.
Leôncio Martins. Voltei-me e vi... vi o assassino do Capitão-Mor! Vi o aventureiro
Bruno!...

Conrado ─ Seria ele! O assassino!

Álvaro ─ Era.

Conrado ─ Continue, meu pai.

Álvaro ─ Fui para onde estava o governador... o miserável assassino seguiu-me!


Mostrei-o ao governador, disse alguma coisa... quanto pude na ocasião, a respeito do
assassinato do Capitão-Mor...

Conrado ─ E o miserável, meu pai?

Álvaro ─ Olhava para mim com uma impudência indescritível!

Conrado ─ Oh! É demais! Esse homem deve ser punido! Não se pratica um crime
horrível como o que ele praticou e depois alardeia-se a impunidade!

Álvaro ─ Ao menos o princípio da justiça ainda não desapareceu de teu espírito, meu
filho, meu Conrado. Ainda podes ser a honra de tua família!

Conrado ─ Sossegue, meu pai. Até amanhã esse miserável estará em nossas mãos.

Álvaro ─ Como me alegras com o que dizes, meu filho! Fazes um duplo serviço: à
justiça em primeiro lugar, depois à consciência de teu pai! Deus escreve direito por
linhas tortas!

Conrado ─ Ah! Bruno! Bruno, ainda que te hospedes no inferno te buscarei!


Cena 4

Bruno ─ Ah! não precisa ter tanto trabalho. Aqui estou.

Conrado ─ Agora acredito na Providência!

Bruno ─ Também eu e com mais fundamento... Na verdade é Leôncio Martins!

Álvaro ─ Usei desse nome. Hoje sou D. Álvaro de Almeida.

Bruno ─ Não importa. Conheço a ambos: o pai e o filho. Sr. D. Álvaro de Almeida,
sei que me mandava procurar por toda parte, que tinha prometido uma boa paga a quem
me encontrasse. Quis poupar-lhe o trabalho e a despesa: eis-me aqui.

Álvaro ─ Procurei-o, havia de procurá-lo ainda se o remorso, o anjo vingador, a


fatalidade não o trouxesse aqui. Seu crime... bem sabe...

Bruno ─ Seja conciso. Carrego como [comigo] a consequência de meus atos.

Álvaro ─ Necessariamente.

Bruno ─ Mas, saibamos, quem me acusa?

Álvaro ─ Eu...

Bruno ─ Ah! O Sr.!

Álvaro ─ A voz pública...

Bruno ─ Eu não sei bem o que é esta voz pública, uma vez é a voz de Deus, outra a
voz do Diabo... A sabedoria popular tem suas contradições capazes de fazer embatucar
o argumentador mais loquaz. Continue.

Álvaro ─ Minha presença no lugar do delito, o teatro do crime, as provas


circunstanciais...

Bruno ─ Sei um pouco de francês. Qu'est que cela prouve? [O que isso prova?]

Álvaro ─ Perverso! Fazes um brinco [uma brincadeira] de teu crime! Ninguém


melhor do que tu conhece a inocência daquele sobre quem queres fazer recair uma
insinuação tão malévola! Não [vou] pois perder palavras com um assassino como tu.
Defende-te da acusação que te faço!

Bruno ─ Com duas palavras: é falsa, falsíssima.

Álvaro ─ E quem diz isto?

Bruno ─ Digo eu.

Álvaro ─ Tu? E que provas aduzes à tua asserção?

Bruno ─ Nada mais fácil: mostrando o assassino.


Álvaro ─ Qual é seu nome?

Bruno ─ Não sei bem, talvez tenha mais de um. Eu o conheci no tempo em que o Sr.
tinha dois.

Álvaro ─ Se te diriges a mim, desprezo tuas insinuações.

Bruno ─ Não me dirijo ao Sr., esteja descansado, outro é o assassino, e eu o conheço.

Álvaro ─ Onde está ele?

Bruno ─ Mais perto do que pensa. (Conrado faz gesto de se atirar sobre Bruno.
Álvaro interpõe-se.)

Álvaro ─ Infernal embusteiro! Aqui estás em segurança, aqui não há assassinos


como tu! Não te irrites, Conrado, repila como eu repeli esta calúnia infame. O malvado
fará sua refutação. Não toques neste homem, ele é sagrado, pertence à Justiça.

(Cena muda de Conrado.)

Bruno ─ Olhe para a minha fisionomia, D. Álvaro. Olhe depois para aquela. Qual se
parece ser mais com a de um assassino?

Álvaro ─ O mundo é o grande mestre, a fisionomia do homem um pequeno mundo.


Conrado! Por que empalideces? Por que tremes?

Conrado ─ Olhe para ele!...

Bruno ─ Empalideço também? Tremo?

Álvaro ─ Conrado, tu tens a mesma expressão!

Conrado ─ Que expressão, meu pai?

Álvaro ─ A que tinhas na noite em que saímos do velho convento dos jesuítas!...

Conrado ─ Ah! Quem sabe se pensa que o homem muda de feições todos os anos...
As cobras mudam de casca... as árvores de folhas...

Bruno ─ [...] ao Sr. que era mais pobre do que eu, tanto que lhe ofereci minha bolsa,
e que com a morte do mesmo Capitão-Mor tornou-se um milionário? Não consta que
roubassem ao Capitão-Mor coisa alguma, roubaram-lhe apenas a vida. Essa vida que eu
ajudei a salvar poderia servir de estorvo a alguma pretensão minha? Não. O Sr. teria
mais razões para...

Álvaro ─ Continua a fazer vagas insinuações contra mim e contra meu filho?

Conrado ─ Prossiga.

Álvaro ─ Há um ponto de contato entre os homens, os répteis e as plantas... A casca


do homem é a expressão! A manifestação moral sobre o físico.
Bruno ─ Eu não o procurei, Sr. D. Álvaro, foi o Sr. quem me procurou. Satisfiz
prontamente o seu afano; deve, portanto, agora ouvir-me. Quando assistia aos festejos
feitos em honra do novo governador, não pensei encontrar na pessoa de D. Álvaro de
Almeida o indigente e desgraçado Leôncio Martins, meu conhecido... Procurei mesmo
afastar-me destes lugares, mas sabendo quão grande era seu empenho em estar comigo,
apressei-me apesar de todos os perigos que deste passo me podiam resultar, em vir
procurá-lo.

Álvaro ─ Continue, Sr.

Bruno ─ Permita-me em primeiro lugar que lhe pergunte a quem seria mais
proveitosa a morte do Capitão-Mor: a mim, que fui pobre e que as suspeitas desse crime
me tornaram ainda mais pobre, ou [...]

[...]

Bruno ─ Não abusarei por muito tempo de sua preciosa atenção. Muito cedo entrei
no drama da vida. [Sou] o que os homens me fizeram. Não achando meio de vida mais
fácil, tornei-me soldado. Combati, tenho cicatrizes honrosas. Brasileiro de nascimento
como é o Sr. Conrado, levantei sempre minha espada contra os inimigos de minha
pátria. Não tínhamos mais holandeses e franceses que profligar [derrotar], o governo
licenciou as tropas... O Sr. D. Álvaro serviu, ao menos disse-me. Sabe o que é ser
soldado. Uma outra praga pior do que inimigos invasores começou a assolar a terra de
Santa Cruz: eram os quilombolas de escravos fugidos, estabelecidos nos Palmares, eram
bandos de salteadores na serra da Mantiqueira, do Espinhaço, e outros na Pavuna, onde
consta que vivera um terrível Gregório Martins, sobre o qual um escritor de meia tigela
escreveu uma desastrada novela intitulada O Roubo na Pavuna. Acaba a guerra, servi
nos diversos corpos de polícia. Tive de ir em uma escola à serra da Mantiqueira...

[...]

Bruno ─ Caiam as consequências do que acabo de estabelecer contra o culpado. A


culpa não é minha, é da verdade, se a verdade pode ser culpada. Dirijo-me ao Sr. D.
Álvaro de Almeida, ao Sr. que é inocente, que é justo... porém, garante a minha
segurança individual se eu continuar?

(Conrado tira a espada e começar a riscar com ela no chão.)

Conrado ─ Por que não diz a ele que continue, meu pai? Tem medo da minha
espada? Aí está ela! (Atira ao chão.)

Bruno ─ Perdoe-me, Sr. D. Álvaro, eu estava desarmado.

Álvaro ─ Não, meu filho, devemos estar aqui todos desarmados. Não convém que
inimigos temam nossas espadas, senão nos combates.

Conrado ─ Prossiga, a narração é digna de quem a faz. Meu pai, está resolvido a
escutá-la até o fim?
Álvaro ─ Sou inocente, Conrado, e nenhuma suspeita tenho de ti. Prometi, porém,
ouvir este homem. Tem paciência.

Conrado ─ Foi então à serra da Mantiqueira.

Bruno ─ Vi aí pobres sertanejos completamente despidos de ânimo, que atiravam aos


passantes, fazendo bateria dos troncos de árvores velhas. Vi também desertores e vi que
toda esta corja tinha uma direção inteligente... Para encurtar razões, fomos batidos, nós
a gente do governo, porque o chefe ou subchefe dos salteadores era homem de tática...
Uma vez que o vi, era ainda uma criança, devia ter dezoito anos... parecia-se muito com
o Sr. Conrado!

Conrado ─ Parecia-se comigo?

Bruno ─ Sim.

Conrado ─ Não viu mais esse mancebo, o que supôs ser chefe dos ladrões?

Bruno ─ Se o vi!... Fui a Barbacena assistir umas cavalhadas. Estava tranquilamente


sentado em um canto da praça onde tinha lugar o divertimento, quando ouço um grupo
de povo gritar: "Lá está ele!..." Levanto-me, olho e sem pensar grito: "É ele mesmo!".

Álvaro ─ Ele quem?

Bruno ─ O moço que se parecia com o Sr. Conrado, que tinha visto no meio dos
salteadores da Mantiqueira!

Álvaro ─ É divertida a história!

Bruno ─ Ainda não é tudo. O ano passado, voltando eu de S. Paulo, encontrei na


estrada um moço que se parecia ainda mais com o Sr. Conrado do que as duas vezes que
o tinha visto.

Conrado ─ Então já me havia visto duas vezes?

Bruno ─ Espere, não me interrompa. Cheguei em uma noite de tempestade horrível à


margem do rio Paraíba. Cinco minutos antes, tinha se afoitado a entrar no Rio um velho
Capitão-Mor com sua filha e alguns criados...

Conrado ─ Lembra-me, lembra-me.

Bruno ─ Estava o Capitão-Mor a afogar-se, prometia mundos e fundos a quem o


salvasse.

Conrado ─ Atirei-me logo no rio!

Álvaro ─ Está descoberta a verdade.

Bruno ─ Eu me atirei depois. Salvou-se o Capitão-Mor. Foi recebido no velho


convento que faz parte de uma velha fazenda dos padres jesuítas, ele e sua filha. Perdera
alguns papéis, dava uma boa recompensa a quem os achasse e entregasse a qualquer
hora, embora ele estivesse dormindo. Achei esses papéis... então Sr. D. Álvaro de
Almeida deve se lembrar que entrei no seu quarto, e o Sr. mostrou-me onde podia ir dar
com o Capitão-Mor.

Álvaro ─ É verdade.

Bruno ─ Entrei pelo corredor que me indicou, achei a porta dos fundos, subi a
escada, atravessei a passagem, fui a dar à saleta e...

Conrado ─ Céus!...

Álvaro ─ Continue.

Bruno ─ Vi a porta do quarto do Capitão-Mor aberta, vi a cama ensanguentada... vi...

Álvaro ─ Viu o assassino?

Bruno ─ Não estava mais no quarto.

Álvaro ─ Onde estava então?

[Observação do autor da transcrição: A partir deste ponto as folhas estão rasgadas.]

Bruno ─ Escuto a primeira [...] todo o movimento [...] medo, com que [...] da saleta
[...] ensanguentados [...] como quem [...] bem da [...] Mor [...] perto da [...] Conheci o
assassino.

[?] ─ [...] é ele?

[?] ─ [...] Conrado ─ ei-lo!

[?] ─ Conrado!

[?] ─ Ele disse a verdade! [...] quem assassinou o Capitão-Mor!

Álvaro ─ Monstro!

Conrado ─ Fez bem em ouvir este homem, meu pai. Para evitar-se uma desgraça é
preciso conhecê-la. Convém que este homem fique mudo!

Álvaro ─ Oh, nossos bens não bastam para emudecê-lo!

Conrado ─ Não temos tempo para conjecturar. O que ele disse é a verdade, o que
devemos fazer é tapar-lhe a boca.

Álvaro ─ Como?

Conrado ─ Como fiz com o Capitão-Mor.

Álvaro ─ Quem te deu o direito de [...]. Fui cúmplice [...]


Conrado ─ Tu! [...] cumprida!

Mercedes ─ Álvaro [...]

Sílvia ─ Meu [...]

Álvaro ─ Não [...]

Sílvia mostrando Conrado [...] [...] xe me beijar-lhe [...]

Álvaro ─ Sílvia [...] manchada de sangue [...]

Sílvia ─ Se for o meu [...] meu sangue.

Álvaro ─ É o teu, tu o [...]

Conrado ─ Foge! É o sangue [...] Pai!

Sílvia ─ Ah!

Álvaro ─ O desgraçado matou o Pai e a filha! Minha Mercedes, estamos sós, sós
estamos neste mundo. Agora meu Pai, abre-me tua sepultura, tua maldição foi pior
porque recaiu sobre meu filho!

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