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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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A primeira crônica brasileira sobre a falta de inspiração do cronista (1836)
Não demorou muito. Na terceira crônica da literatura nacional, ela chegou: a falta de
inspiração. E, espertamente, o cronista se valeu da falta de assunto como o assunto de
sua crônica, iniciando uma prática atualmente secular. O último recurso do cronista
incompetente para cumprir a sua obrigação estava criado.
A Caixa e o Tinteiro, crônica de Justiniano José da Rocha (1812–1862), o primeiro
(obviamente) cronista brasileiro, saiu no periódico O Cronista em 26 de novembro de
1836.

http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=702811&pagfis=130
O tinteiro do título referia-se ao recipiente de tinta, no qual o escritor molhava a sua
pena. A caixa referia-se ao recipiente de rapé, no qual o infeliz cronista buscou a
inspiração, via nariz (nada muito diferente dos tempos modernos, para certos escritores).
O conceito de falta de inspiração, nesses dois casos, é uma denominação perfeita da
situação aflitiva e da solução desesperada.
Há crônicas famosas sobre a falta de assunto.
O poeta Vinicius de Moraes reconheceu-o implicitamente no título O Exercício da
Crônica. Não havendo nada para escrever, escreva-se sobre a crônica.
O início:
“Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a
prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis”.
http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/prosa/o-exercicio-da-cronica-0
E lá vamos nós mais uma vez.
Rubem Braga, na crônica O Desaparecido (1959), desculpou-se de maneira elegante:
“Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me
achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica
muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz, e, entretanto, eu hoje não me
sinto um rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e
comprido de um menino lírico”
http://www.releituras.com/rubembraga_desaparecido.asp
Mais recentemente (2014), Carlos Castelo escancarou a situação constrangedora no
título Não Tive Nenhuma Ideia para Escrever esta Crônica.
O início:
“Aquele dia quando acordei, logo percebi: tinha perdido a inspiração”.
https://emais.estadao.com.br/blogs/cronica-por-quilo/nao-tive-nenhuma-ideia-para-
esta-cronica/
Lê-se.
Luís Antônio Giron, em dia de escritor de autoajuda, escreveu a matéria Sobreviva
ao Bloqueio Criativo (2011).
O início:
“O pior tipo de crônica é aquele em que o escritor condena os cronistas que, por não
terem assunto, escrevem sobre a crônica”.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI255935-15230,00-
SOBREVIVA+AO+BLOQUEIO+CRIATIVO.html
Uma saída supostamente criativa, porque ao invés de reconhecer a própria
incompetência, ela é projetada nos colegas e serve de assunto para o texto.
Mas o crítico (esse crítico), acabou passando para o outro lado da questão. Em 2014
escreveu a crônica É Hoje!, subtítulo: “Chegou o dia de postar uma crônica que não será
lida por ninguém, exceto pelo autor”.
Adivinha qual era o assunto?
O início:
“A literatura é uma selva de lugares-comuns. E um dos chavões mais triviais na
atividade de cronista é produzir a crônica que trata da ausência de assunto para uma
crônica; a famosa metacrônica”.
https://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/luis-antonio-giron/noticia/2014/06/e-
bhojeb.html
Metacrônica. Não falta criatividade alternativa na hora da falta de criatividade
essencial.
A era da informática ampliou o exercício dessa criatividade alternativa: na falta de
assunto, culpa-se… o computador. Duvida?
O início:
“Acabo de perder a crônica que havia escrito”.
Na "metacrônica" O Senhor Computador (2007), João Paulo Cuenca informa a seus
leitores que o computador está travado (e não ele mesmo, é claro), daí eles não lerão
outro assunto senão a falta da crônica habitual (na página de destino do link abaixo,
clique em Mostrar texto associado).
https://www.fonteconcursos.com.br/questoes-de-
concursos/filtrar?ORGAO_INSTITUICAO_ID%5B%5D=228&pagina=89
Nesse ponto, a poesia ganha fácil da prosa. Leia este poema de Augusto dos Anjos
sobre a falta de inspiração.

O martírio do artista
Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!
*
Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
*
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
*
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
http://www.jornaldepoesia.jor.br/augusto11.html#martirio
Fronetais refere-se às fronetas, termo filosófico para as áreas cerebrais onde a
associação de ideias permitiria a formação de pensamentos.
Mas vamos logo à crônica (ou metacrônica) pioneira.
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A CAIXA E O TINTEIRO
Quoiqu’en dise Aristote et sa docte cabale
Le tabac est divin…
[“Não importa o que dizem Aristóteles e sua douta cabala
O tabaco é divino…”
Dom Juan, ou le Festin de Pierre (Don Juan ou o Banquete de Pedra, 1665),
tragicomédia de Molière.]
Confidente discreta de minhas mágoas e de meus prazeres, consoladora de minhas
aflições, conselheira prudente nos lances apertados de minha vida, permite, ó minha
caixa, permite que eu patenteie teus ocultos atrativos, que minha gratidão transborde e
te tribute pública homenagem: sim, que de tanto és credora.
E tu, meu precioso tinteiro, tu, dentro do qual vai tantas vezes minha imaginação
solicitar ideias, buscar palavras que as exprimam no mesmo passo que minha pena vai
buscar o líquido preto que as deve fixar no branco papel, tu também, ó meu tinteiro,
deves ter parte neste elogio: mas antes perdoa-me se alguma vez, desesperado por não
saber o que deva escrever, impaciente te arranho com mais violência; se alguma vez,
irado, esqueço-me dos benefícios passados, e em meu furor te amaldiçoo.
Não sejamos mal agradecidos — que, como diz o provérbio, de mal agradecidos está
o inferno cheio; que a ingratidão é vicio que desfeia [enfeia] a alma mais bem formada,
que embota as mais agradáveis prendas: a ingratidão é crime, e assim a castigavam os
antigos legisladores da Pérsia, (como se pode ler no insigne autor da Ciclopédia).
Sejamos bem agradecidos, que é esse um dos primeiros deveres do homem social: e
assim, quem mais do que tu, ó minha caixa, quem mais do que tu, ó meu tinteiro,
merece os meus louvores, pois que
— C’est par vous que je vaux, si jo vaux quelque chose; diz um poeta francês
[Boileau Despréaux], que tomo a liberdade de traduzir e de vos dedicar
— Se tenho algum valor, a vós o devo.
[Citação correta: “C’est par là que je vaux, si je vaux quelque chose”.]
Realmente, quem se mete no duro ofício de jornalista; quem se obriga a ter
regularmente à sua disposição em horas certas e aprazadas, duas vezes por semana,
ideias que interessem, expressões que as representem; quem se compromete a ter
espírito e imaginação obedientes e dóceis como os membros do corpo (quando alguma
paralisia, algum reumatismo ou qualquer outro inconveniente não lhes vem embargar os
movimentos), faz dó, excita a compaixão se não sabe recorrer à sua caixa e a seu
tinteiro, se não sabe avaliar quanto lhe odeia ser[em] úteis esses socorros: às vezes há de
lhe acontecer o que me aconteceu hoje, e o coitado não terá os recursos que tive.
Há dias aziagos, dias em que o espírito do homem vê tudo através de um denso véu
de descontentamento e aflição, diz Macbeth na insigne tragédia de Shakespeare. Ontem
foi para mim um desses dias: chegou a noite e ― para mais dobradas mágoas — todos
os gatos da vizinhança passaram palavra para virem no meu telhado reunirem-se em
concerto infernal, que causaria inveja aos estrondosos retumbantes compositores de
música moderna: mal pude conciliar o sono, tive de me levantar, que era dia e já me
batia à porta um sujeito a buscar originais para a imprensa, e eu nada tinha pronto:
disse-lhe que voltasse dali a duas horas. E ponho-me a escogitar [imaginar,
preocupado], a pensar, a meditar; baldado [inútil] esforço! As ideias fugiam-me, a
imaginação tinha sucumbido, o corpo estava lânguido, o sangue em agitação febril,
ardiam-me os olhos, a cabeça, prenhe de maléficos vapores que o sono não havia
dissipado, pesava-me peso insólito. Nesse estado, como escrever? Oh caixa, abençoada
caixa, eu te avisto, e rápido te abro, rápido alongo e junto o polegar e o índice
[indicador], rápido tiro uma pitada, rápido a sorvo.
Oh caixa, bendita caixa! Eis que já se me alivia a cabeça, dissipam-se os vapores que
a obstruíam, e que nela fizera fermentar uma noite mal dormida: sinto-me mais
disposto. Agradecido, lanço-lhe os olhos amorosos, sorvo segunda pitada, e vou-me
sentar à banca: já sem receio, encaro o cândido papel que vai receber o depósito de
meus pensamentos, já minhas ideias se vão classificando, já minha imaginação não foge
espavorida. O que é que devo escrever? Eia, meus conselheiros, respondam-me.
Pego numa pena, examino-lhe os bicos, acho-os a meu contento, levo-a ao meu
tinteiro e remexo-o, e do tinteiro salta a resposta. Escrevo para experimentar a tinta: —
FOLHA LITERÁRIA. O oráculo falou, há de ser uma folha literária, mas qual será seu
assunto, qual sua ideia geradora? Introduzo de novo a pena no tinteiro e, remexendo-o
de novo, continuo o meu solilóquio ou monólogo (se gostardes das etimologias gregas,
sirva-vos o segundo; se das latinas, sirva-vos o primeiro: deixo isso a vossa escolha).
Tomarei por tema alguma dessas grandiosas palavras ocas de significado, que tanto
outrora nos estrugiram [perturbaram] os ouvidos? Tratarei de alguma dessas profissões
lucrosas [lucrativas] ou gratuitas, que tantos ambicionam? Pintarei esse pobre cidadão
pacífico que um conselho de disciplina manda dormir três noites em uma fortaleza,
porque ele não quis passar em claro metade de uma, deixando-se ficar em casa em vez
de ir apanhar defluxo [inflamação da mucosa nasal] rondando pelas ruas? Descreverei o
agradável sobressalto com que acorda e se levanta esse desgraçado juiz de paz, que
foram despertar à meia-noite para participar-lhe que em seu distrito se havia cometido
um assassínio, e que viesse formar o corpo de delito? Mostrar-vos-ei esse empregado
público, para quem só é dia das 8 horas da manhã por diante, que só então desperta,
estende os braços, espreguiça-se e põe-se a examinar se não padece algum incômodo
que o dispense de ir para a sua ocupação? Ou então, deixando em paz as diferentes
classes de cidadãos com seus vícios e suas prendas, acompanhar-vos-ei a alguma
reunião familiar em que se converse e brinque, e em que vos faça ver moços e moças
entretidos nos tão queridos jogos de prendas, que os franceses chamam jogos inocentes?
Ou, antes, assistirei convosco a um grande baile, notando-vos as mãos que se apertam,
os pés que por casualidade se encontram, fazendo-vos ouvir essas tão preciosas
conversas em que tantos segredos se revelam? Preferirei trajar lutuosas vestes e,
inspirando-me com a lúgubre leitura das melancólicas páginas do choroso [Edward]
Young [poeta inglês do século XVII], descer a algum cemitério, a essa morada dos
mortos, mansão do silêncio eterno, do perpétuo descanso? Ou, emprestando-me os
poetas descritivos suas cores, irei convosco passear numa bela noite de luar e fazer-vos,
gozosos, respirar a fresca e pura e balsâmica emanação das flores que se abrem com o
benéfico influxo da lua?
Então cessei de revolver a pena no tinteiro: ele já me havia prestado o auxílio que lhe
pedia. E tratando de decidir-me sobre um de tantos assuntos, dei-me pressa de procurar
minha caixa, minha amiga, minha conselheira. Acho-a, ponho-a diante de mim, e com
vagar religioso — qual o do sacerdote que se dispõe a consumar o divino sacrifício — ,
eu a fui abrindo, abrindo até que ela patenteasse a meus olhos esse pó umedecido e
aromático a que a arte do homem e seu engenho sabe reduzir a planta benéfica, que o
Brasil agradecido adotou e fez resplandecer em suas armas.
Oh! minha caixa! bendita caixa! quanto não te devo. Sim, tu me lembras bem, e eu
sigo teu conselho: queres que, no lugar do título, eu escreva ― noite de luar — . Eis-te
satisfeita, e eu também. E na verdade, sob esse título, que lindas descrições não poderei
eu fazer; com que cores tão finas não pintarei eu esse ameno painel; quantos variados
incidentes não acharei eu para animar a minha cena! Sim, minha caixa, sim, meu
tinteiro: eu vos agradeço, e desde já vou escrever minha folha literária sobre a noite de
luar.
Mas, amigo leitor, enquanto assim divago, enquanto assim converso com meus dois
conselheiros, enquanto vos ponho na confidência dos conselhos que me eles dão, o
tempo, que por ninguém espera, vai passando, e eis que chega o impressor em busca dos
prometidos originais, e por ora oh! desgraça! só o título tenho escrito! Que remédio, que
volta hei de dar-lhe? Sirvam por hoje essas rabiscadelas, e na ocasião mais próxima
conversarei convosco sobre a noite de luar. Então vagueará com o meu o vosso espírito.
Por ora, contentai-vos (que eu também me contento) com esta conversação que tive com
minha caixa, com meu tinteiro.
Bendita caixa, bendito tinteiro! Ainda mais essa obrigação vos devo: destes-me fácil
assunto para uma folha literária.
http://memoria.bn.br/DocReader/702811/130

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