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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB

v. 7 n. 1 janeiro/junho 2008
Brasília
ISSN – 1518-5494
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

Reitor
Roberto Armando Ramos de Aguiar
Vice-Reitor
José Carlos Balthazar

INSTITUTO DE ARTES

Diretora
Suzete Venturelli
Vice-Diretora
Glêsse Maria Collet Araújo

Programa de Pós-Graduação em Arte

Coordenadora
Elisa de Souza Martinez

VIS

Editora
Elisa de Souza Martinez

Conselho Editorial
Ana Maria Tavares (USP), Elisa de Souza Martinez, Elyeser Szturm, Maria de Fátima Burgos, Maria Eurydice
de Barros Ribeiro, Sandra Rey (UFRGS), Soraia Maria Silva,Vera Siqueira (UERJ)

Capa
Regina Silveira

Projeto Gráfico
Christus Nóbrega

Ilustrações das páginas 100, 101 e 105


Christus Nóbrega, a partir dos azulejos criados por Athos Bulcão para o Instituto de Artes (UnB) e para
o Instituto Rio Branco (MRE), em Brasília.

Revisão - Português
Rejane de Meneses
Yana Palankof

Agradecimentos: Leonardo Rodrigues, Flávio Araújo e Bárbara Duarte

ERRATA | v.6 n.1


Página 7 – 3ª. linha: onde se lê “Entrevista com o artista, em seu artista no Rio de Janeiro” leia-se
“Entrevista com o artista em seu ateliê no Rio de Janeiro”.

Programa de Pós-Graduação em Arte


V822 VIS Universidade de Brasília
- Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte. -
v. 7, n1, 2008. - Brasília: Editora PPG - Arte UnB, 2008. Campus Universitário Darcy Ribeiro
110 p. Prédio SG-1
Brasília, DF – 70910-900
Semestral Telefone: 55 (61) 3307-2656
ISSN: 1518-5494 Fax: 55 (61) 3274-5370
idapos@unb.br
1. Artes Visuais. 2. Arte Contemporânea. 3. Interdisci-
plinaridade. 4. Arte no Brasil. 5. Processos Artísticos
CDU 7(05)

• Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.
• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>
SUMÁRIO

5 EDITORIAL

7 HOMENAGEM

Regina Silveira

PONTOS DE CONTATO

22 Artificações, Inquietações e Experimenções em Sociologia da Arte


João Gabriel L. C.Teixeira

32 Que história da arte queremos?


Maria Amélia Bulhões

44 Ser ao vento
Rita de Almeida Castro

55 Entre o ativismo e a macumba: arte e afro-descendência no Brasil contemporâneo


Roberto Conduru

68 10 apontamentos sobre arte contemporânea e pesquisa


Sandra Rey

73 Depois do moderno e em plena contemporaneidade, o desafio de pensar a arte


brasileira do século XIX
Sonia Gomes Pereira

DESDOBRAMENTOS

96 Athos Bulcão, extramuros e intramuros: artista-capital


Grace Maria Machado de Freitas

107 DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 1/2008

108 NORMAS PARA COLABORADORES


EDITORIAL

Este número especial da VIS marca o início de uma nova etapa do Programa de Pós-Graduação
em Arte da Universidade de Brasília a partir da abertura do curso de Doutorado em Arte.

Desde o final dos anos 1980, quando um plano estruturador do Instituto de Artes foi elabo-
rado, espera-se que a consolidação do espaço para o ensino, a pesquisa e a extensão na UnB
seja plena com a oferta de cursos em todos os níveis de formação acadêmica. Em 1994, foi
iniciado o curso de Mestrado em Arte com uma única área de concentração: Arte e Tecnologia
da Imagem. Após algumas reestruturações, o PPG-Arte hoje é composto por quatro linhas
de pesquisa (Arte e Tecnologia, Poéticas Contemporâneas, Processos Composicionais para a
Cena e Teoria e História da Arte) vinculadas à área de concentração Arte Contemporânea.

Para marcar o início das atividades do Doutorado, realizamos o Seminário Avançado Pers-
pectivas para a Investigação da Arte, de 5 de maio a 7 de julho, no qual tivemos o privilégio
de receber um diversificado grupo de conferencistas para compor um panorama atual da
pesquisa, da prática e da reflexão crítica no país.

Reunimos neste número da VIS as contribuições que nos foram enviadas por alguns dos cola-
boradores do seminário, com o objetivo de compartilhar o rico conteúdo das palestras com
aqueles que não tiveram a oportunidade de assisti-las. A partir do conjunto de textos reunidos,
nosso projeto editorial foi ligeiramente alterado para caracterizar o valor que atribuímos à
generosa contribuição de nossos colaboradores.

Iniciamos nossa edição com uma homenagem a Regina Silveira, que com generosidade e entu-
siasmo nos enviou um presente duplo: o projeto da capa e um ensaio visual, ambos inéditos.
Consideramos importante reconhecer que a consolidação da pós-graduação em arte no Brasil
é resultado do trabalho de muitos outros pesquisadores pioneiros que nos antecederam.
Ao homenagear o trabalho da artista Regina Silveira, homenageamos todos os que como ela
contribuíram para a ampliação dos espaços de pesquisa e formação de pós-graduandos nas
universidades brasileiras.

Na seção Pontos de Contato, a diversidade de abordagens reflete a amplitude das pesquisas


desenvolvidas no PPG-Arte. Tendo em vista que as fronteiras entre as linhas de pesquisa de
nosso programa de pós-graduação não são barreiras intransponíveis, torna-se desnecessário
definir vínculos absolutos ou excludentes entre a contribuição de um autor para a nossa
revista e uma única linha de pesquisa. De fato, como nos foi possível comprovar nos relató-
rios do seminário elaborados pelos alunos do PPG-Arte, pode-se dizer que a diversidade da
programação, que se desdobrou nesta publicação, proporcionou o confronto com questões
divergentes e a ampliação de perspectivas de pesquisa.

Com o texto de João Gabriel L.C. Teixeira temos uma reflexão sobre as relações transdisci-
plinares no trabalho experimental em performance, realizadas a partir da articulação entre 5
sociologia da arte e os pressupostos das linguagens cênicas. O texto de Maria Amélia Bulhões
nos oferece um amplo contexto para pensar o modo pelo qual ocorre a formação do histo-
riador da arte no Brasil em seu campo específico, bem como seus compromissos institucionais.
Também sobre o campo das artes cênicas, Rita de Almeida Castro relaciona em seu texto a
contribuição das práticas corporais de tradição oriental ao trabalho de formação do ator no
Brasil. Roberto Conduru nos confronta com o desafio do historiador da arte, que, na contem-
poraneidade, se propõe a classificar um tipo de produção artística cuja única base comum seria
a identidade étnica de seus produtores. Nos apontamentos de Sandra Rey temos uma seqü-
ência de questões que dão origem a um método do artista como pesquisador profundamente
comprometido com a reflexão crítica e os desdobramentos de seu trabalho na formação de
novos artistas. O texto de Sonia Gomes Pereira oferece-nos a constatação de que há uma
significativa contribuição da pesquisa em história da arte para a revisão de periodizações e de
que classificações consolidadas na contemporaneidade não se limitam a uma análise de objetos
de arte recentemente produzidos.

Na estrutura diferenciada deste número, na seção Desdobramentos, que pode conter um


dossiê ou uma documentação histórica do Instituto de Artes ou da produção artística em
Brasília, temos o texto de Grace Maria Machado de Freitas sobre a contribuição de Athos
Bulcão para a integração das artes no projeto modernista para Brasília. Nossa homenagem
pertence ao conjunto de homenagens e pesquisas sobre sua obra que têm sido realizadas em
várias ocasiões na UnB.

Para realizar o Seminário Avançado Perspectivas para a Investigação da Arte e esta publicação,
tivemos a colaboração de algumas pessoas, além dos autores dos trabalhos que aqui publi-
camos, que merecem nosso sincero agradecimento. Além dos autores dos textos, tivemos em
nossa programação a participação dos conferencistas Martha Tupinambá de Ulhôa, que proferiu
a conferência de abertura do Doutorado em Arte, Nivalda Assunção e Ricardo Basbaum. Agra-
decemos também ao professor Humberto Abdalla Júnior, Diretor da Faculdade de Tecnologia
da UnB, quem nos cedeu generosamente o auditório no qual realizamos o seminário, à profes-
sora Dione Oliveira Moura, que, como Coordenadora de Apoio à Pós-Graduação da UnB, deu
apoio irrestrito à realização de nossa atividade, e ao professor Marco Antonio Amato, Decano
de Pesquisa e Pós-Graduação da UnB.

Finalmente, agradecemos uma vez mais a Comissão de Pós-Graduação, composta pelos profes-
sores Elyeser Szturm, Maria de Fátima Burgos, Maria Eurydice Ribeiro, Soraia Maria Silva e
Vicente Martínez, sem os quais não teríamos concluído com esta publicação o compromisso
que assumimos no início de nosso mandato na Coordenação do PPG-Arte.

Elisa de Souza Martínez


Editora
HOMENAGEM REGINA SILVEIRA Série Colgantes 7
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Pontos de Contato 21
Artificações, inquietações e experimentações em sociologia da arte1
Artifications, inquietudes and experimentations in Sociology of the Arts

João Gabriel L. C. Teixeira *

Resumo
Trata-se de reflexão sobre o uso de metodologias experimentais em pesquisas e estudos da performance levadas a
cabo na Universidade de Brasília. Procura-se descrever os procedimentos utilizados bem como alguns dos resultados
obtidos em experiências desenvolvidas ao longo das duas últimas décadas. Enfoca especialmente a utilização do novo
conceito “artificações” na condução de experimento realizado na Universidade de Brasília em 2006 e 2007. Demonstra
como o diálogo entre as ciências sociais e as artes pode beneficiar a construção de uma estética cognitiva.
Palavras-chave: performance, metodologia, sociologia da arte.

Abstract
This article reports on experiments about performance studies carried out at the University of Brasília. It describes the procedures
utilized as well as some of the results of experiences which have been developed in the last two decades. It focusses especially
the new concept of “artification”” used in the conduction of an experiment conducted at that University in 2006 and 2007. It
demonstrates how the dialogue between the social sciences and the arts can benefit the construction of a cognitive aesthetics.
Keywords: performance. methodology. sociology of the arts.

Apresentação

Com base nos trabalhos experimentais realizados nos últimos doze anos pelo Laboratório
Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance (TRANSE) da Universidade de Brasília, cujos
relatos podem ser encontrados em outros trabalhos da autoria deste pesquisador (TEIXEIRA,
1998 e 2006), tem-se procurado delinear uma teoria que destaque as múltiplas relações que
se podem estabelecer entre sociologia e teatro, na qual o campo dos estudos da performance,
conforme desenvolvidos no departamento pertinente da Universidade de Nova York – onde
despontam os trabalhos de Richard Schechner (1985, 1988, 1990 e 1993) –, tem-se mostrado
extremamente operacional .

Eles permitem a abertura de um imenso campo experimental que transcende os limites do


conhecimento sociológico, pela absorção de insights e informações proporcionadas pelas
diversas contribuições do domínio das ciências sociais, sejam da antropologia, da etnografia,
da etnometodologia, do interacionismo simbólico, das artes em geral, da etnomusicologia, da
psicanálise e da arquitetura, etc.

* Doutor em sociologia pela Universidade de Sussex (1984), Inglaterra e realizou estágios pós-doutorais em sociologia
da arte na New School for Social Research (1993/1994), em Nova Iorque e na Maison des Sciences de l´Homme,
Paris Nord (2003/2004). Atualmente é coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance
22 (TRANSE) na UnB. limacruz@unb.br
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

Essa experimentação, no que se refere particularmente à utilização de locais e à sua exibição


para públicos diferenciados, também tem permitido que o trabalho do TRANSE atinja novos
patamares de risco e exposição. Recorda-se que essas possibilidades em termos de publici-
zação e exposição da performance e dos performáticos fazem parte relevante da linguagem
denominada na literatura, genericamente, de arte da performance.

Essa experimentação praticamente também definiu as concepções de performance que o


TRANSE tem adotado: 1) a concepção de performance como linguagem artística (arte da perfor-
mance); 2) como manifestação cultural (performance cultural); e 3) a idéia goffmaniana de perfor-
mance no quotidiano (“o mundo é um palco”). Essas três concepções contemplam as variáveis
conceituais do campo da performance mais em voga e sua escolha tem-se mostrado operacional
para a condução das atividades desenvolvidas pelo/no mesmo.

Não obstante, constata-se que essas concepções não são exaustivas nem conclusivas. É preciso
que se leve em conta, nesta reflexão, que performance, em última análise, conforme afirma Taylor
(2003), é um termo que conota simultaneamente um processo, uma prática, uma episteme, um
modo de transmissão, uma realização e uma maneira de intervir no mundo e, portanto, suplanta
amplamente as possibilidades de significação encontradas em seus sinônimos: teatralidade, ação,
espetáculo e representação.

Essa conotação ampliada, por assim dizer, é encontradiça com maior freqüência e nitidez nos
experimentos estéticos estimulados por tal teoria. Ou seja, é com base nesses experimentos
que se constrói a citada episteme. Nesse intuito, a teoria da performance informa o substrato
sociocultural ao mesmo tempo em que utiliza práticas e técnicas artísticas na busca do sensível
no real e vice-versa. Argumenta-se que a esse processo dialógico pode-se atribuir a denomi-
nação de experiência vivenciada ou vivida.

As metodologias experimentais e a sociologia da arte

Esta reflexão foi catalisada pela descoberta recente de que na sociologia de língua francesa
já se podem identificar pelo menos dois sociólogos da arte que reconhecidamente utilizam
metodologias experimentais diferenciadas em suas pesquisas: Hennion (1993, principalmente)
e Mervant-Roux (1998, principalmente, e 2004). O primeiro acentua o pragmatismo de certas
práticas musicais, considerando que a música mesma é uma sociologia plena de instrumentos,
corpos e objetos que nos conduziria a uma mediação com uma dupla ultrapassagem, ou seja,
a de um pensar crítico que reduz os objetos musicais ao social e que somente aceita esses
mesmos objetos quando extraídos do social.

Já a Mervant-Roux (2004) vem cultivando a sobrevivência de formas artísticas em manifesta-


ções populares e realizando um escrutínio pormenorizado e recorrente sobre as audiências,
os espetáculos e os locais de apresentação (1998). Essa estudiosa dos públicos de teatro tem-
se preocupado de forma pormenorizada com a importância destes na representação teatral,
procurando responder à questão se eles são – como diriam os grandes diretores – os grandes
protagonistas do jogo, os parceiros primordiais do ator, os “terceiros homens”, os quartos cria-
dores do espetáculo, ou tudo isso não passa de uma mitologia?

Seu trabalho de campo nessa área, desenvolvido entre 1986 e 1994, baseia-se numa série
de exemplos variados de espetáculos, profissionais e amadores. Por meio da observação de
diversas representações, a pesquisadora (1998) leva também em consideração os discursos 23
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

da gente de teatro sobre seu público, abrangendo seus termos, expressões, relatos, metáforas
e lendas, além da – o que é digno de nota – análise das gravações sonoras dos silêncios e
dos ruídos das casas de espetáculo, em que se desenha e se esclarece a figura do espectador.
Segundo a pesquisadora, a assistência, quando diante da cena, torna-se uma rede de visões que
se transformam incessantemente, um curioso instrumento vibrante, ou o grande ressonador da
ação dramática. Segundo Mervant-Roux (op. cit.), os olhares da audiência, paradoxalmente, se
“escutam” mutuamente.

Embora esses trabalhos ainda não tenham logrado divulgação suficiente para exercer maior
influência no desenvolvimento recente da sociologia da arte francesa, de qualquer forma vale
a pena seu registro, tendo em vista que a sociologia mainstream jamais admitiu anteriormente
que pudesse vir a tornar-se uma ciência experimental (“gente não é cobaia”) ou que pudesse
utilizar-se dos métodos experimentais proporcionados pelas experiências informadas pelos
estudos das performances artísticas.

O TRANSE e as metodologias experimentais

Essa possibilidade encontra-se presente não apenas nas montagens dos espetáculos como nos
eventos acadêmicos realizados pelo TRANSE e que geraram várias publicações em que a preo-
cupação experimental é marcante.

Ora, segundo Vera Zolberg (2006), uma característica que parece definitiva nas metodologias
empregadas pelos sociólogos das artes em seus estudos é o uso necessário e ostensivo da
observação participante, em que o distanciamento e o antietnocentrismo estejam mesclados e,
ao mesmo tempo, limitados pelas características subjetivas próprias dos objetos artísticos, ou
seja, que os seus componentes estéticos estejam sempre considerados e explicitados, mesmo
quando importando procedimentos de outras disciplinas.

Essa necessidade, por sua vez, encontra espaço fértil para seu florescimento no caráter dialó-
gico encetado pelo experimentalismo inerente aos estudos da performance. Estes, ao tempo
em que proporcionam o substrato intelectual que provoca a reflexão sobre questões socio-
culturais concretas, perseguem as linhas artísticas, tornando público o produto alcançado e
buscando uma platéia com a qual interagir.

Há de se fazer referência também aos experimentos realizados em sala de aula durante o


oferecimento de disciplina optativa sobre arte e sociedade aos alunos de graduação da univer-
sidade em que textos acadêmicos sobre estudos da performance e da psicanálise são rein-
terpretados pelos alunos por meio de encenações e manifestações estéticas variadas. Esses
experimentos mais tarde passam a compor colagens de performances apresentadas ao público
no final do curso.

Artificações¹

No ano de 2006, por exemplo, o Núcleo teve a oportunidade de encetar essa forma de expe-
rimentação sob a denominação de “artificações”, segundo um neologismo lançado pela soció-
loga francesa Roberta Shapiro no citado Congresso de Sociologia de Língua Francesa (AISLF),
realizado na cidade de Tours, na França, em julho de 2004. Transcreve-se aqui, quase na íntegra,
o texto produzido para o programa da experiência, apresentada no horário de almoço no
24 Restaurante Universitário da Universidade de Brasília em 27 de julho de 2006.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

Na ocasião, a autora resumia o tema que propôs para discussão no congresso afirmando que
começou a refletir sobre essa noção num grupo de trabalho de antropólogos e sociólogos o
qual participara e que, em poucas palavras, esse novo conceito busca denominar o processo de
transformação da não-arte em arte. Na ocasião afirmava a autora:

Em suma, a transformação da não-arte em arte é uma transfiguração


das pessoas, dos objetos e da ação... O conjunto desses processos
conduz não somente ao deslocamento da fronteira entre arte e não-
arte, mas ainda a construir novos mundos sociais, habitados por enti-
dades inéditas e em número crescente (SHAPIRO, 2004, p. 2).

A seguir, a citada socióloga procurava demonstrar que ele não se refere apenas aos objetos, às
pessoas e às ações, mas também à reclassificação destas, ao enobrecimento das pessoas envol-
vidas e à edificação de novas fronteiras. Segundo Shapiro (op. cit.), a artificação implica também
modificações de conteúdo de formas de atividade e as qualidades psíquicas das pessoas, permi-
tindo a reconstrução dos objetos, a criação de novos e, mesmo, o rearranjo dos dispositivos
organizacionais.

A unificação desses processos, dos quais a nominação e a institucionalização são partes depen-
dentes, conduz não somente a um deslocamento da fronteira entre a arte e a não-arte, mas
também à construção de novos ambientes sociais, povoados de identidades até então inéditas
e em número crescente. Adiante, a aludida pesquisadora passa a ilustrar esses processos com
exemplos retirados de seus trabalhos e de seus colegas. Embora colocado sob a forma de
hipóteses a serem discutidas naquela ocasião, o experimento desenvolvido na Universidade
de Brasília, demonstrou seu caráter alternativo e seminal, pelo menos do ponto de vista da
experimentação artística.

Existem diversas variantes, nuances e componentes deste conceito-neologismo. Para o Núcleo,


ele significou, mesmo inadvertidamente, nesse momento, as experimentações possíveis em
sociologia da arte durante um semestre, no, já citado, curso optativo Arte e Sociedade. O
pressuposto básico era mostrar mais uma vez como os estudos sobre a performance podem
constituir-se numa possibilidade de utilização das metodologias experimentais em sociologia da
arte. Insistentemente, obcecadamente, imperiosamente.

Shapiro também aduzia, no texto em questão, citando Harold Fromm (2003), que a artificação
seria então uma função adaptativa específica do ser humano e que a continuidade e a evolução
da espécie dependerão, entre outras, da capacidade artística dos indivíduos. Em inglês, artifi-
cação é igualmente um termo técnico com o sentido geral de bonificação e melhoramento. Ele
ainda é inexistente na última edição da Enciclopédia Britânica.

Sem medo de ser feliz, um alunado de quase trinta alunos de graduação em ciências sociais
jogou-se na experiência, sobretudo pela vontade de sair da rotina e experienciar os processos
comunicativos das emoções e dos sentidos subjetivos dos textos acadêmicos. Nada de
seminários ou aulas expositivas, mas a tentativa despudorada de expor o que Evreinoff
(1996), Goffman (2002), Geertz (1978), Barroso (2004), Freud (1901, 1905, 1910 e 1917)
e Minois (2003) suscitaram reflexivamente. A promessa era apenas a da confiança mútua
e da vontade de aprender ludicamente, divertindo-se muito. O trabalho ora apresentado
certamente ficará entranhado no espírito de cada um, artificadamente, artimanhosamente,
astuciosamente. 25
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Inquietações

Em 2007, aos alunos da citada disciplina, em número de quarenta, foi oferecida a oportunidade
de performatizar temas sugeridos pelos textos (Cohen, 1989; Freud, 1901, 1907, 1908 e 1914,
IANNI,1996; LABAN,1978; e VILLAÇA e GÓES, 1998) e questões tratados durante o semestre.
Os textos em geral versavam sobre a dança, corpo e movimento, escolhidos de uma bibliografia
específica selecionada para leitura e discussão pelo grupo.

Neste processo, o grupo experienciou uma série de exercícios sistemáticos em dança contem-
porânea, com o auxílio de um coreógrafo e dançarino profissional que teve o objetivo central
de preparar tecnicamente o alunado para preparar as cinco miniperformances apresentadas no
final. Este apoio profissional facilitou sobremaneira a experiência no que se refere à localização
cênica dos alunos na apresentação final, nos seus processos de concentração e relaxamento. O
mote do trabalho corporal proposto foi dançar os textos, parafraseando o título do trabalho
de Garaudy (1980): Dançar a vida.

A apresentação dessas cinco performances no projeto Tubo de Ensaios, em sua sétima edição,
intitulada Inquietações, ocorreu durante o intervalo do meio-dia, em toda a extensão sul do
prédio do Instituto Central de Ciências (ICC), mais conhecido como Minhocão, na Universidade
de Brasília, em 29 de junho de 2007. Ao todo foram apresentadas 18 performances simultâneas,
coletivas e individuais, durante cerca de uma hora e meia, ao som de música eletrônica ao vivo,
com participação de percussionistas, que ecoava em todo o espaço cênico ocupado.

Esses eventos acontecem anualmente e visam a ocupar espaços públicos não convencionais
para apresentações performáticas simultâneas. Uma trilha sonora original é composta a cada
ano e executada ao vivo por instrumentistas, percussionistas e cantores. O público é induzido
a percorrer espontaneamente o espaço envolvendo-se com as performances que se repetem a
cada cinco minutos em média.

As Inquietações dos performáticos da UnB, inclusive dos estudantes de ciências sociais, causaram
um frisson sem precedentes no público presente, cambiante e caminhante, calculado em cerca
de mil pessoas, constituído em sua grande maioria por membros da comunidade universitária,
ou seja, alunos, professores, funcionários e visitantes.

A extensão desse frisson pôde ser avaliada com base nos 120 depoimentos escritos colhidos
de membros da audiência em urnas estrategicamente localizadas no espaço cênico utilizado. À
guisa de ilustração, listam-se alguns deles:

“Compreendo que a humanidade perece”.

“Façam isso sempre! Quebrem a monotonia da Universidade”.

“Fazer no teto da UnB da próxima vez, o norte...”.

“Muito show. Não se sabe quem é ator quem é espectador. Adorei”.

“Esse povo é doido”.

26 “Fiquei com medo!”


Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

“A humanidade é insana!”

“Muito bom. As imagens são chocantes. Focam o óbvio que ninguém quer entender”.

“As inquietações realmente mexeram com alguns sentimentos íntimos e profundos. É bom ver
trabalhos que causem imagem e sensação!”

“Interessante até mesmo nas cenas em que utilizaram artifícios melequentos”.

“O barulho atrapalha nosso trabalho”.

“Achei que a música tem tudo a ver com a proposta de inquietar o público”.

“Senti retratada a alma do mundo, o medo de tentar ser, e a ânsia de ter”.

Ainda visando a avaliar a recepção ao experimento, a treze alunos da disciplina Arte e Socie-
dade foi aplicada uma ficha de avaliação sobre a experiência performática, sua metodologia e os
resultados colhidos pela disciplina acadêmica. Vale a pena analisar alguns desses depoimentos,
classificados segundo os tópicos do programa do curso:

I - Sobre a relação entre arte/sociedade/corpo:

“Eu via a arte como sendo uma linguagem, a expressão máxima, a meu
ver, da cultura, do meio social em que está inserida. Não achava que a
linguagem corporal era tão poderosa para tal: o curso me mostrou isso.”

“O que aprendi foi uma relação muito mais próxima entre a arte e os
indivíduos e sociedade... Que pode haver arte em coisas cotidianas
e banais. O corpo se insere como parte constante, pois através dele
podemos nos expressar melhor,”

“A arte está intimamente relacionada com o entendimento da socie-


dade e da sociologia. O corpo foi muito bem trabalhado, incluindo as
noções de domínio do mesmo para a produção artística.”

“É uma relação íntima e de referências simultâneas. Não existe um sem


a presença do outro. O corpo é objeto para ambos. É possível trabalhar
o corpo e compreender melhor as relações entre a arte e a sociedade.”

“A arte é uma forma de viver, a liberdade de se pôr no mundo, de


estar e transformar o convívio em sociedade. O corpo é o nosso
passaporte de entrada nessa brincadeira em que a ação faz o impos-
sível existir e o inacreditável acontecer.”

“A arte permeia todas as relações sociais, mesmo que à primeira vista


não consigamos distinguir. E o corpo é o palco dessas relações.”

“Arte e sociedade se relacionam de diversas formas, a arte sendo um


importante elemento de integração e comunicação entre os homens. 27
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O corpo se insere nessas relações na medida em que se torna também


um elemento de expressão artística.”

II - Sobre a relação entre performance e vida concreta:

“A performance está presente no cotidiano. Viver é performar. O


trabalho com a dança permitiu um contato consciente com a arte da
performance que domina a vida.”

“Performatizar é criar uma personagem, segurar uma postura. Na


dança tenta-se repassar impressões, o movimento é um exercício
com o mundo empírico não ego centrado, é, portanto, performance.
Na dança se emulam posturas cotidianas, é um rito, uma forma de
sublimação.”

“O mundo é um palco. Em cima dele estamos performando/atuando.


Em diversas situações, a performance perpassa a nossa vida cotidiana.
No trabalho com a dança não faltou oportunidade de perceber como
nós teatralizamos em forma de dança, a vida. Notamos que movi-
mentos dos braços/pernas/cabeça/ etc. vistos (praticados) nas aulas
práticas são realizados em diversos contextos do nosso dia-a-dia.”

“Foi uma experiência incrível, só que ainda não consegui interpretar e


internalizar tudo o que aconteceu nesse evento.”

III - Sobre a participação no evento/cognição/desenvolvimento estético:

“Que a sociedade está sempre na espera do cumprimento da perfor-


mance para a qual fomos preparados e o corpo físico corresponde a
essas expectativas.”

“O curso serviu para ver o quanto fazer arte é sofrido, mas ao mesmo
tempo delicioso.”

“Me senti cumprindo minha função social na sociedade, que é a de


mostrar que existem diversas formas de se interpretar uma mesma
ação e que sempre existiram diversas formas. Exemplos: textos,
músicas, ações. Hoje me sinto muito mais livre.”

“A apresentação foi o ponto alto da disciplina. Após toda teoria vista


e do treinamento corporal, conseguimos montar uma performance.
Acredito que o conhecimento dos textos junto com a aplicação de
toda essa teoria na apresentação proporcionou um maior domínio da
teoria, pois conseguimos sentir como um performático sente, literal-
mente sentir na pele o que o texto fala e também foi importante para
mostrar o que éramos possíveis em tão pouco tempo.”

“Estar em performance é um transe, uma permissão. Provocação e


28 vulnerabilidade. Dar-se à alteridade de si, assumindo os riscos. Buscar
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

o óbvio inencontrável. Bater-se no vento à carne viva. A pura cognição


da poesia.”

“O evento artístico foi uma excelente oportunidade de experienciar a


relação entre arte e sociedade de uma forma bem direta. Desde a prepa-
ração até a realização foi possível ver cada vez mais claro os elementos
que caracterizam a performance, a arte que cutuca, que questiona,
perturba, busca respostas e ao mesmo tempo não as quer.”

“Compreendi (tomei consciência) de uma nova dimensão do corpo,


aprendi a melhor explorá-lo e valorizá-lo. Primeiro li sobre o corpo,
depois experimentei, tornando o conhecimento completo.”

Considerações finais

Culminando os exemplos sobre o que se deseja denominar como experiência vivida


menciona-se o recurso metodológico empregado por doutorando em sociologia da Univer-
sidade de Brasília em sua pesquisa de tese. Neste caso, o que aconteceu foi a experimentação
sentida no próprio corpo do pesquisador da extensão física das técnicas empregadas nas
acrobacias ensinadas na Escola Nacional de Circo onde ele se matriculou como estratégia
de aproximação entre alunos e professores da Escola. Aqui, o que ficou patente foi o uso da
experimentação nas artes circenses como campo de produção social de processos sensoriais,
envolvendo os indivíduos em situações-limite nas quais a presença do risco físico é compo-
nente fundamental.

No caso da análise encetada pelo autor sobre o sonho dos acrobatas, este chega a admitir a
possibilidade de se formarem redomas sensoriais oníricas não previstas em seu projeto original,
abrindo novas possibilidades de experimentação em determinadas formas artísticas, até então
negligenciadas pela tradição sociológica no campo das artes.Veiga de Almeida (2004) finaliza sua
obra chegando a admitir que os casos identificados em sua pesquisa de deslocamento sensorial
parecem constituir a base tanto da teoria da performance como da própria sociedade atual.

Esta reflexão, entre outras conclusões, leva à consideração de que o experimentalismo aqui
defendido pode estreitar, como queria Brown (1977) as afinidades existentes entre arte e
ciência, ou, mais precisamente, entre arte e sociologia, colaborando na criação de uma estética
cognitiva propícia ao desenvolvimento de uma poética para a sociologia, além de arejar suas
lógicas de investigação.

Em princípio, argumenta-se que o saber sociológico se beneficiaria sobremaneira do empreen-


dimento estético no sentido de expandir as possibilidades de previsão e prognóstico sobre as
transformações sociais. Nisbet (1977), por exemplo, chama a atenção para a maior capacidade
das artes em geral em insinuar certas antecipações e profecias sobre o desenvolvimento das
sociedades humanas.

Turner (1982), a seu tempo, sugeriu que as performance culturais revelariam o caráter mais
profundo, genuíno e individual de cada cultura. Guiado pela crença em sua universalidade e rela-
tiva transparência, Turner, ademais, propunha que os povos poderiam compreender-se melhor
por meio de suas performances culturais. 29
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

No entanto, é bom que se esclareça que o que se está preconizando é a expansão das possi-
bilidades da lógica da descoberta, por oposição à lógica da demonstração, também constitutiva
do saber sociológico, mas que necessita de uma abordagem diferenciada para sua consecução.
Nesse sentido, as artes beneficiar-se-iam desse diálogo com a sociologia no que ela fornece de
rigor no tratamento dos dados e na redução das possibilidades de reducionismo e impressio-
nismo (HEINICH, 1998).

Bastide (1979, p. 200) esclarece este ponto de vista de forma definitiva ao afirmar que a arte
nos dá acesso a setores que o sociólogo interessado pelas instituições não consegue atingir:
as metamorfoses da sensibilidade coletiva, os sonhos do imaginário histórico, as variações dos
sistemas de classificação, enfim, as visões de mundo dos diversos grupos sociais que constituem
a sociedade global e suas hierarquias.

Finalmente, este relato tenta demonstrar que já é possível superar os constrangimentos


impostos à sociologia pela sua tradição de cunho mais positivista. Nesse intento, espera-se
que tenha ficado patente o papel a ser desempenhado pelas metodologias experimentais em
sociologia da arte, no qual as possibilidades das práticas em estudos da performance podem
desempenhar uma função decisiva.

Notas
¹ Artificiar: fazer ou executar com artifício ou ardil; maquinar, urdir, tramar.Artifício (substantivo), conforme
o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

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*Todas as obras de Sigmund Freud citadas neste artigo foram publicadas na Edição Standard das
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31
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Que história da arte queremos?


What art history do we want?

Maria Amelia Bulhões*

Resumo
Assim como o indivíduo se estrutura pela fala, também as comunidades se constroem por meio dos “relatos” que de
alguma maneira inventam de si. Narrar a história da arte não é algo inocente ou objetivo. O que dizemos e escrevemos
acerca da arte em nossa região, nosso país, nosso continente? Que idéia temos do que produzimos como arte? Em que
medida cada um de nós está comprometido com a história da arte que estamos construindo e ensinando nas escolas
e nas universidades. Como realizar a crítica radical deste campo de estudos? Quais os processos e os métodos para
essa ação? Partindo dessas questões desenvolvemos nossa reflexão.
Palavras-chave: história da arte. ensino. pesquisa.

Abstract
In the same way that an individual is construed by the language, the communities are also construed by the created tales about
themselves.Telling the history of art is not an objective issue, is not a naïve task.What do we say or write about art in our region,
country or continent? What do we mean by art production? To what extent are we aware of the History of Art that we are
construing and teaching at colleges and schools? How can we radically criticize this field of study? Which are the method and
processes to do this? These questions will the starting point of our reflections.
Keywords: art history. teaching. research.

Artes visuais no país nas últimas décadas

O que dizemos e escrevemos acerca da arte em nossa região, nosso país, nosso continente?
Que idéia temos do que produzimos como arte?

Questões como essas afligem constantemente a mente dos pesquisadores e também os dife-
rentes atores do sistema da arte. Para tentarmos explorar algumas possíveis respostas (ou
abrir, talvez, mais questões), faz-se necessária uma análise da situação atual das artes visuais
em nossa realidade. Em uma primeira abordagem, percebemos claramente, nas duas últimas
décadas, um grande crescimento, manifesto na diversificação e na ampliação numérica das
instituições e dos valores econômicos aplicados na área. No gráfico 1, por exemplo, podemos

* Doutora pela USP, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua no Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais e coordena o grupo de pesquisas Territorialidades e Subjetividade, é pesquisadora
do CNPq e vice-presidente da ABCA; organizadora de vários livros da área, publica regularmente artigos em revistas
32 nacionais e internacionais, participa da equipe administradora da plataforma IG.Art. mabulhoes@cpovo.net
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

verificar o surgimento de inúmeros museus a partir dos anos 1980, segundo dados obtidos
no Observatório Nacional de Museus, os quais abrangem diversas áreas de conhecimento,
mas inferimos por observação direta que as artes visuais têm recebido um grande aporte em
termos de novas instituições museológicas públicas e privadas.

Gráfico 1: Evolução
do número de
museus nas cinco
regiões do país, por
ano de fundação

O valor simbólico é uma condição que se estabelece no âmbito das relações que cada objeto
ou evento necessita ter com o sistema vigente para receber sua legitimação artística. A esté-
tica, a história da arte e a crítica de arte são os discursos que manejam os conceitos e as
significações que definem essas legitimações, e as instituições museológicas são os locais onde
estas se processam. Assim, uma peça exposta para venda em uma feira de artesanato tem uma
valoração simbólica bastante aquém de outra exposta em um museu. Desvinculando implica-
ções de custo, é possível afirmarmos que a obra apresentada no museu é considerada mais
significativa, dentro de padrões culturais, do que a colocada na feira. Isso porque a inserção de
um objeto no museu passa a ter uma conexão com todos os demais objetos que ali se encon-
tram e que, de alguma forma, constituem a tradição da arte na sociedade. Assim, o significativo
crescimento do número de museus no país nas últimas décadas deve ser pensado dentro
do seu significado como novas possibilidades que se abrem de valoração dos objetos e das
práticas artísticas no contexto nacional.

O aumento numérico das instituições museológicas faz-se acompanhar de um incremento de


investimentos econômicos nas artes visuais, que se verifica de forma bem objetiva no quadro
1, que mostra a captação de recursos de verbas pela Lei Rouanet e a quantidade de projetos
enviados, aprovados e captados na área. O expressivo aumento de recursos para a área signi-
fica um maior número de exposições, de publicações e de todo o tipo de projeto envolvendo
as artes visuais. Com isso também se amplia a quantidade de pessoas envolvidas nessas ativi-
dades e fazendo delas seu trabalho profissional.

Esse conjunto de alterações numéricas caracteriza, assim, uma mudança que se faz acompanhar
de novas demandas em termos de diferentes atores para as novas funções que se inauguram,
tais como produtores, curadores, restauradores, montadores e muitos outros. Também se
evidenciam, nesse novo panorama, inovadoras formas de atuação empresariais e os grandes
eventos, fugindo à tradicional exposição individual do trabalho do artista. 33
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Quadro 1: Número
de projetos enviados,
aprovados e captados
pela Lei Rouanet

O que percebemos, entretanto, é que não há ainda um preparo específico para essas diversas
atuações na área por meio de cursos que construam uma formação básica, com reflexão crítica
destinados aos inúmeros atores do campo artístico. Os cursos de artes visuais espalhados
pelo país são específicos para artistas ou professores de arte, sem nenhuma terminalidade
ou abordagem mais especializada para as outras tarefas que passaram a integrar esse circuito.
Não há cursos de graduação em história da arte, em curadorias, em produção de artes visuais,
em restauração, em administração de museus de arte, etc. Conseqüentemente, esses outros
atores se formam com a experiência, como auxiliares ou monitores, de forma autodidata vão
vivenciando uma prática que, na grande maioria, não vem subsidiada por um suporte teórico
e metodológico. Isso ocorre mesmo quando estamos falando de alunos saídos das faculdades
de arte, pois, como dissemos, a estrutura dos cursos é dirigida para a formação de artistas e
professores. Uma situação de exceção que exemplifica bem esse contexto é a existência de
dois únicos cursos de graduação em restauração — um na Bahia e outro no Rio de Janeiro —,
o que, certamente, não preenche as necessidades criadas, sobretudo a partir da proliferação de
museus e centros culturais entre nós, acompanhando o boom mundial no setor.

Apesar da fragilidade do campo de formação, percebemos uma crescente especialização por


parte daqueles que executam as diferentes tarefas em sistemas das artes visuais e, conseqüen-
temente, uma maior qualificação profissional, mesmo à revelia da inexistência de espaços de
formação especializada. Esse processo corresponde a uma organização do trabalho que já se
realiza, em geral, nas regiões mais desenvolvidas e que se faz necessária para um enquadra-
mento mais eficiente das práticas locais com as exigências da ordem contemporânea inter-
nacional. Essa nova organização propicia uma ampliação numérica das pessoas envolvidas
nas produções artísticas, superando as limitações e as restrições das tradicionais produções
centradas na figura do artista.

Novas demandas conceituais também decorrem das grandes mudanças pelas quais passa o
segmento das artes visuais atualmente no Brasil. Alterações de conceitos são exigidas para
dar conta tanto de uma produção local, cujas referências fogem aos modelos e aos padrões
europeus, como do fenômeno da arte contemporânea, com seu questionamento das catego-
rias tradicionais e da própria arte. É importante que haja uma reformulação do campo teórico
e da pesquisa, criando novos referenciais e ampliando estudos sobre a produção local.3 Essas
tarefas têm sido assumidas nos cursos de pós-graduação, cuja estrutura flexível aceita mais
facilmente novas dinâmicas, entretanto mudanças mais radicais exigem ser implementadas
também nas graduações.

Uma importante constatação é que quanto mais frágil se encontra a área reflexiva mais o campo
da arte como um todo se empobrece. O fato de hoje, no país, apesar do grande crescimento da
área de artes visuais, não contarmos com cursos específicos para a formação na área teórica e
34 de termos ainda muito pouca produção de estudiosos é preocupante. Isso evidencia os limites
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

de pensarmos sobre a arte local assim como de desenvolvermos conceitos para refletir sobre
ela. Sabemos que um objeto ou evento se torna uma obra de arte por meio das interlocuções
que pode estabelecer com os discursos do campo artístico, conquistando, assim, determinado
significado. A Gioconda, de Leonardo da Vinci, por exemplo, tem seu valor definido com base
em todos os livros que já se escreveram sobre ela e dos inúmeros estudos que ela oportu-
nizou. Não é a peça em si que significa um conteúdo, mas, sim, o conjunto das interpretações
que sofre, das citações que possibilita e das relações que com ela podem ser estabelecidas. O
Abapuru, obra de Tarsila do Amaral, por sua vez, tem seu valor estético estreitamente ligado ao
fato de ser um símbolo da modernidade brasileira e ao que operou naquele momento histórico.
Esse significado também se construiu com base nas inúmeras exposições importantes de que
essa pintura participou pelas quais se escreveu a história da arte moderna no Brasil.

Como observa Arthur Danto, uma obra transforma-se em obra de arte pelo efeito de uma
interpretação que instaura seu significado. O autor estabelece o seguinte enunciado: Io = OA.
Nessa fórmula, (I) a interpretação de uma (o) obra é igual a sua transformação em (OA) obra
de arte. Ele evidencia, assim, o fundamental papel que as interpretações desempenham no
sistema da arte. Devemos destacar que essa interpretação não se efetiva de maneira isolada,
nem meramente teórica, mas também no âmbito das exposições consagratórias e, portanto,
no espaço de museus, bienais e outras importantes instituições museológicas.

Assim, o crítico de arte Paulo Herkenhoff, na curadoria da 24ª Bienal Internacional de São
Paulo (1998), ao definir como fio condutor da mostra o conceito de antropofagia, estabeleceu
uma interpretação que articulava trabalhos tão diversos em termos formais quanto Espaçonave
Óvulo, de Ernesto Neto, e Livreiro Saraiva, de Rochele Costi. Nesse caso, as semelhanças visuais
não constituem o aspecto de conexão entre os objetos de arte, uma vez que elementos bem
mais complexos podem conectar obras aparentemente antagônicas. A crítica com elaboração
conceitual constrói o valor simbólico das obras pelas conexões que pode estabelecer entre as
propostas das obras e seus processos de instauração. Essa tendência pode ser percebida, por
exemplo, na crescente adoção de curadorias artísticas para a realização de exposições temá-
ticas, o que demonstra que está sendo fomentado o uso de profissionais especializados para
o controle organizacional de eventos e que isso vem estabelecendo novas dinâmicas, fugindo
à mera indicação de nomes de artistas. Atividades de curadoria têm realizado experiências
de sucesso, evidenciando um cuidado detalhado com a escolha das obras apresentadas, bem
como um compromisso reflexivo dos organizadores com uma proposta conceitual, expressa
em textos e imagens dos catálogos.

Os trabalhos de curadoria envolvendo equipes em que vários técnicos especializados atuam em


conjunto apresentam resultados que vão além dos limites pessoais. Algumas vezes, a intenção
do artista pode mesmo ser alterada na concepção geral da mostra. Se isso pode ser conside-
rado como uma interferência em seu trabalho individual pode ser também pensado como uma
superação do individualismo, aproximando-se de tipologias mais coletivas de criação, como se
encontra no teatro, na dança ou na música. De qualquer maneira, esse tipo de ordenamento
social das artes visuais está se impondo na esfera internacional globalizada e também em
termos de Brasil, sem, com isso, se enfraquecerem os resultados da produção em termos de
qualidade artística. Essa profissionalização das tarefas vem responder às demandas de especia-
lização típicas do desenvolvimento da sociedade contemporânea.

Devemos destacar, ainda, que a ampla divulgação de uma história da arte internacional faz
com que o público identifique artistas e obras que nunca viram como dignos de mérito, rele- 35
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

gando a produção local a um limbo que advém de seu desconhecimento. Enquanto a história
internacional se difunde por meio de publicações para especialistas e de coletâneas para o
grande público, nossa produção permanece desconhecida e pouco compreendida. Existe uma
demanda para o conhecimento dessa história da arte que não está sendo suprida, nem com
publicações destinadas ao grande público, nem com aquelas destinadas a um público mais
interessado. Embora a atividade analítica de arte se tenha aperfeiçoado, encontrando espaço
de desenvolvimento em revistas especializadas (principalmente ligadas aos cursos de pós-
graduação), estas, em sua maioria, têm vida curta. Mesmo proliferando de forma significativa
nos últimos anos e evidenciando em geral um excelente nível analítico, essas publicações não
chegam a cumprir realmente uma função de difusão mais ampla.

As novas possibilidades de trabalho no campo das artes visuais têm atraído indivíduos oriundos
de diferentes formações acadêmicas. Isso pode caracterizar um significativo aporte em termos
de dinamização e ampliação de perspectivas de enfoque, superando as formações tradicional-
mente conservadoras do sistema das belas artes. Em países desenvolvidos, isso pode ser criti-
cado como tendência a uma excessiva hierarquização e rigidez; no caso do Brasil, no entanto,
podemos pensar na possibilidade de tornar mais ampla e efetiva a significação social dessas
práticas, fugindo, assim, ao seu caráter meramente decorativo, tão ao gosto das elites locais.

Dentro desse panorama complexo que acabamos de esboçar, devemos nos perguntar: que
história da arte estamos construindo e ensinando nas escolas e universidades? Como realizar
a crítica radical desse campo de estudos? Quais os processos e os métodos para essa ação?
Em que medida cada um de nós está comprometido com essas tarefas? Essas são algumas das
premissas de nossa reflexão.

A posição da história da arte

Apesar de termos apresentado, neste sucinto levantamento das problemáticas do campo artís-
tico, inúmeras questões, centramos nossa análise na história da arte pelo contexto desta no
Seminário Avançado A Fragmentação da Arte: Narrativas Excêntricas Para o Estudo da Arte
no Centro-Oeste. Gostaríamos de observar que não estamos deixando de lado, nesta análise,
nem a estética, nem a teoria, nem a crítica, uma vez que a conexão entre essas disciplinas, que
sempre existiu, tem hoje uma imbricação muito mais intensa,

Inicialmente, a inquietação que nos parece mais importante compartilhar é a da necessidade


premente e atual que percebemos no país de consolidar o campo de reflexão da área de
história, teoria e crítica. Isso não significa a defesa de ampliação de seu espaço por inte-
resses pessoais ou corporativos. Partimos da clara evidência de que a consolidação da área de
reflexão reverte no fortalecimento do campo da arte como um todo. O indivíduo estrutura-
se pela fala; também as comunidades se constroem por meio dos “relatos” que, de alguma
maneira, inventam sobre si. Narrar a história da arte não é algo inocente ou objetivo. Segundo
vários autores, dentre os quais destacamos Anne Cauquelin (2005), constata-se que a arte
contemporânea introduziu a circunstância de que todos os participantes da rede são criadores
da arte, e não só o artista. Com isso, tomam novo impulso os papéis do crítico, do curador, do
colecionador e do marchand na produção artística e na sua repercussão social.

A importância de desenvolvermos uma história da plástica local está em darmos a essa


produção uma visibilidade, um sentido, um significado, uma interpretação. Georges Didi-
36 Huberman afirma que Vassari criou o conceito de arte e sua história porque queria salvar as
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obras de uma segunda morte, da morte pelo esquecimento. Muito da produção simbólica no
país está morta pelo esquecimento, portanto temos de lhe dar uma nova vida pela sua docu-
mentação e análise. Dessa forma, o público poderá reconhecer e identificar essa produção
e sua história como legítimas. O que propomos é o desafio da construção de uma história
da arte local, crítica e reflexiva, e também sua divulgação e sua difusão, por meio de material
(imagens e textos) acessível e amplamente distribuído.

Hoje, o próprio conceito de história está sendo repensado de forma crítica, conseqüente-
mente, urge que adotemos novas maneiras de abordar de história da arte. Ao pensarmos uma
crítica da disciplina, estamos pensando em outras leituras que dêem conta de outros fenô-
menos na orientação da nova história, que permite que cada objeto ou evento seja visto na sua
circunstância, em sua perspectiva; uma história que não seja construída como um relato único
e hegemônico, em que toda a produção que foge à linha estilística dominante fica esquecida
e marginal. Na revisão crítica, vamos encontrar suporte teórico para enfrentar os desafios
propostos. É com novos conceitos que podemos pensar as diferentes produções artísticas em
sua realidade e salvá-las do esquecimento.

A história da arte que queremos passa fundamentalmente pela crítica radical da disciplina e
pela alteração de seus objetos de estudo, por meio de novas estruturas de ensino. A partir dos
dois desafios que consideramos decisivos para o estabelecimento de um novo patamar nos
estudos da disciplina no Brasil, propomos algumas estratégias de ação para serem discutidas
e, se possível, implementadas a partir de experiências inovadoras e corajosas. São propostas
objetivas que não pretendem em si mesmas reverter o quadro complexo das fragilidades de
reflexão teórica no campo das artes visuais, mas, sim, focar o problema e atuar no sentido
de sua superação. A desconstrução ideológica da disciplina passa pelo questionamento de
sua linearidade e de suas hegemonias simbólicas, apostando na diversidade, no hibridismo e
nas pequenas memórias, o que podemos fazer somente com revisões historiográficas e com
importantes alterações dos objetos de estudo, estimulando e desenvolvendo estudos regionais
que recuperem uma historiografia local e seus conceitos operacionais.

A bagagem da história da arte interfere no ideário dos estudiosos da cultura ocidental, que
tratam de analisar a atual produção artística de forma marcante e, muitas vezes, contraditória.
No Brasil, onde não há uma tradição analítica em razão da inexistência de cursos de graduação
nessa disciplina, os cursos de pós-graduação têm se evidenciado como espaços para desen-
volver e difundir corpos teóricos e ferramentais específicos da área. Cumprem uma tarefa
difícil, uma vez que faltam muitos conhecimentos específicos para seus alunos, a maioria deles
oriunda de diferentes áreas e carentes de uma fundamentação básica.

Além disso, ainda se encontram em disputa duas posições acerca do tipo de base teórica a
utilizar nos estudos e nas pesquisas da área. Uma delas suscita adesões incondicionais daqueles
que tentam de forma impositiva abordar toda e qualquer produção com base em critérios e
classificações tradicionais, omitindo o caráter arbitrário destas. Escamoteiam que a história
da arte é uma disciplina recente, fundada sob as imposições do gosto neoclássico europeu,
e que a maioria de seus conceitos deriva dessa condição. Em posição oposta, estão aqueles
que negam completamente a tradição dessa disciplina e todo o ferramental analítico ardua-
mente construído por seus estudiosos, buscando estabelecer possibilidades totalmente novas
de apreensão de diferentes produções artísticas. Essa tendência procura corresponder de
forma quase ortodoxa ao fato de que a arte contemporânea se propõe a romper com toda
a tradição ocidental, caracterizando o que Athur Danto denomina o “fim da arte”, devendo, 37
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

portanto, dispensar em sua análise conceitos e metodologias anteriormente utilizadas. Nesse


caso, muitos ferramentais e recursos conceituais são desvalorizados e desaproveitados.

Uma séria revisão crítica dessas posturas antagônicas necessita ser desenvolvida pelos pesquisa-
dores com vistas à formação de um substrato capaz de fomentar estudos competentes e apro-
fundados no campo da arte. Projetos em que se evidencie o uso de metodologias e conceitos
específicos necessitam ser publicados a fim de consolidar melhor essa linha de trabalho e, ao
reatualizá-la, fortalecerem a área das artes visuais como um campo de conhecimento funda-
mental para o mundo contemporâneo. Se alguns conceitos básicos, tais como beleza, gênio,
imanência, transcendência, originalidade, permanência, e muitos outros que constituíam o arca-
bouço teórico da história da arte acadêmica, encontram-se realmente superados pelo desen-
volvimento criativo ante as novas condições de vida que o mundo globalizado impõe, muitos
referenciais analíticos, metodológicos e conceituais ainda podem ter vigência e decisiva utilidade
ferramental. Estudiosos como Didi-Huberman, Annatereza Fabris, Mario Perniola, Maria Lucia
Kern e outros estão relendo autores clássicos — e também aqueles marginalizados pela histo-
riografia da arte oficial — em busca dos vários suportes que podem, ainda hoje, contribuir para
o difícil exercício de compreensão das imagens no universo simbólico.

A retomada dessa tradição dos estudos teóricos da produção artística também necessita
ser mais valorizada. Em termos internacionais, a presença da história da arte na análise de
obras da atualidade pode ser observada em duas vertentes conceituais. Uma busca estabelecer
diálogos com a tradição, identificando interlocuções com posturas, interesses ou orientações
semelhantes. Esse é o caso de todas as análises na linha da pós-modernidade, que recuperam
na produção contemporânea os elementos do passado intencionalmente reutilizado pelos
artistas hoje. Ao dialogar com a bagagem formal e conceitual de um passado recente, ou
mesmo distante, críticos e artistas evidenciam que a visão evolucionista da arte calcada nos
ideais positivistas, que marcou o início da modernidade, está superada e que os anacronismos
e as retomadas do passado dão testemunho de uma temporalidade bem mais complexa.Alguns
estudiosos também procuram, de forma mais sutil, a presença, nas imagens, de elementos de
um conjunto de memórias, persistentes através dos tempos e reutilizados de forma incons-
ciente pelos artistas. Nesse caso, interessam a sobrevivência de determinadas formas e o signi-
ficado que isso evidencia em termos da sociedade em que o artista se insere.Vale aqui a idéia
de um certo anacronismo e mesmo atemporalidade das imagens, que seriam responsáveis por
sua vitalidade peculiar.

Seja como for, é preciso termos sempre em mente, ao utilizarmos os conceitos da disciplina,
que estamos tratando com uma tradição que, em muitos casos, se opõe aos princípios que
estruturaram a disciplina em sua origem. Portanto, devemos ter muito cuidado para não
nos orientarmos por leituras apressadas ou generalistas que alteram e deturpam as idéias
originais dos artistas. Mas também não podemos abandonar toda uma herança de análises,
como se os questionamentos dos artistas inviabilizassem essa área de estudos e se iniciasse
do zero, recriando todos os conceitos a partir das próprias obras, como postulam alguns
críticos mais superficiais.

Destacamos como básicos dois desafios específicos para a história da arte no Brasil, hoje. O
primeiro é a realização de um amplo e diversificado levantamento da produção plástica local,
considerando estudos que contemplem as diversidades regionais em termos tanto históricos
como contemporâneos. O segundo é o desenvolvimento de uma crítica da sua tradição posi-
38 tivista e classificatória para repensar novas possibilidades de sua construção. Articulados entre
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

si esses dois desafios apontam a necessidade de dar visibilidade à produção local, pelo levanta-
mento empírico e documental sustentado em uma ampla discussão conceitual.

Esses desafios já eram sinalizados por Aracy Amaral (1993, p. 10) quando afirmava que “A arte
dos artistas dos países da América Latina sempre foi considerada pelos europeus como arte
de segunda classe, uma arte periférica que segue de longe ou de mais perto as tendências
artísticas da Europa e, neste século, dos Estados Unidos”. Era a visibilidade e a legitimidade que
ela estava exigindo. Uma legitimidade que necessita ser construída aqui dentro, por estudiosos
locais. Para Amaral,

Não basta rever as fontes da pintura brasileira, seria importante ao


nosso ver tentar encontrar uma nomenclatura mais condizente com
o que elas realmente são, do ponto de vista visual......uma necessidade
de encarar nossa própria contribuição artística de acordo não mais
com cânones importados, porém de acordo com nossa circunstância
e nossa produção plástica (1993, p. 11-12).

A revisão conceitual que se coloca em paralelo e articulada a esse levantamento documental,


Aracy Amaral também já indicava, quando dizia da necessidade de novas nomenclaturas e
cânones próprios. Nos tradicionais, todas as obras devem entrar em gavetas que foram criadas
a partir de outro contexto que não o nosso. Faz-se, pois, necessária, cada vez mais, a discussão
conceitual da própria disciplina, pois estamos num momento em que mesmo no âmbito inter-
nacional a história positivista, linear e classificatória está sendo questionada. Nesse sentido,
temos de nos engajar nesse questionamento que nos favorece, pois abre brechas no discurso
fechado de uma arte europeizante e evolucionista da qual somos meros apêndices. A história
da arte que aprendemos e que ainda hoje se ensina em todos os níveis de ensino foi cons-
truída na Europa e para a Europa. Nossa produção é periférica, é marginal aos grandes centros.
Nela, só vamos entrar em compartimentos já existentes. Responder à necessidade que temos
de conhecer mais a produção local e dar visibilidade a essa plástica seria um desafio que se
encontra articulado ao de desenvolver uma história da arte que articule as diferentes produ-
ções das diversas regiões com uma estrutura conceitual dinâmica e adequada a essa realidade.
São exatamente os necessários conceitos e suportes reflexivos que nos tornam capazes de dar
conta dessa visualidade específica que somos desafiados a construir pelo seu conhecimento.

Questões ainda em aberto

Alguns aspectos ainda se encontram a exigir atuações para propor alterações mais radicais.
O estudo das questões conceituais demanda cruzamentos para poder abarcar produções
que, mesmo elaborando-se dentro de um quadro internacional (afinal nossa realidade se
inaugura com a descoberta do Brasil no marco da expansão européia), detêm especifici-
dades que a história da arte tradicional não consegue abordar devidamente. Revisões histo-
riográficas e questionamento dos tradicionais conceitos europeizantes pedem a formação
de especialistas com sólida bagagem de conhecimento e práticas reflexivas criativas e autô-
nomas. Esse tipo de mudança faz parte de um processo de ruptura com o ciclo reprodutivo
com que estamos acostumados a trabalhar, não é fácil, nem natural, exige posicionamentos
conscientes e muito trabalho.

Vale lembrar que a Arte é uma categoria que instaura um valor e que este é arbitrado por
meio de um sistema de relações que não é estabelecido aprioristicamente. Pelo contrário, 39
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

constrói-se historicamente, modificando-se em conseqüência de lutas internas que se travam,


articuladas às necessidades da sociedade em que se inserem. As disputas pelo poder simbólico
envolvem valores estéticos, mas também interesses políticos, econômicos e sociais. Segundo o
sociólogo Pierre Bourdieu (1982), os indivíduos que estão estabelecidos no sistema lutam para
garantir seus privilégios e o valor de seu capital cultural. Os que estão fora lutam para entrar
e também para alterar os mecanismos de valoração simbólica. Dessa forma, processaram-se as
transformações que levaram à passagem do sistema acadêmico ao moderno e contemporâneo.
Essa seqüência de mudanças, entretanto, não pressupõe o desaparecimento consecutivo de
cada um dos sistemas anteriores. Embora os novos passem a deter certa hegemonia, vestígios
dos demais persistem. Além disso, os circuitos local, nacional e internacional também estabe-
lecem disputas pela dominação simbólica, articuladas às relações entre centro e periferia e
integradas a uma gama de diferentes interesses e poderes.

Por isso, é importante a atuação crítica por parte dos atores e das instituições envolvidas na
produção, na difusão e no ensino de arte para garantir um equilíbrio de forças que possibilite
a realização das suas funções sociais. Uma atuação que efetive a promoção de eventos, a publi-
cação de materiais documentais, a integração com outras instituições na construção de uma
história da arte comprometida com os valores humanos locais e internacionalmente integrada.
Nesse labirinto de espelhos que a cultura contemporânea constrói, elaboram-se possibilidades
de reconhecimento, dizendo de um descompasso local com uma ordem internacional estabe-
lecida, desde o início, à revelia dos interesses daqueles que não compõem o bloco hegemô-
nico, em uma busca estéril de padrões homogeneizadores, autênticos ou originais, que servem
muito mais aos interesses mercadológicos de uma ordem internacional interessada em objetos
exóticos. Autenticidade e originalidade não existem aqui da maneira como são solicitadas, uma
vez que a nossa própria história é fragmentada, cheia de mestiçagem, de dominações étnicas
e de resistências dolorosas. Talvez por isso mesmo a fragmentação e o hibridismo sejam as
temáticas mais presentes no universo das artes visuais.

É sempre bom lembrar que a internacionalização, nessa região, se faz em um caminho de duas
mãos que mantém e estimula fortes heterogeneidades e relações desiguais de poder. Mas
nesse caminho de duas mãos o outro está dentro, e as questões de identidade tornam-se
muito mais complexas. Os parâmetros de interno ou externo já não servem para análise. E
essa premissa torna-se mais presente quando se trata da contemporaneidade. É necessário
trabalharmos com novos enfoques que abordem essa cultura que se instaura sobre as dife-
rentes regionalidades, como uma rede articuladora, e, dentro dela, percebermos o papel que
a arte desempenha.

Para construir referenciais eficientes, é preciso, em muitos casos, recorrermos a subsídios


de outras áreas do conhecimento, pois os problemas complexos da contemporaneidade
não se explicam somente com base no campo das artes visuais. Encontramos aqui um sério
problema: o grande desconhecimento teórico por parte da maioria dos integrantes do
meio de arte. Temos como tônica desse campo uma postura romântica, que desacredita
das considerações de ordem sociológica e louva um espontaneísmo ingênuo. Esse tipo de
posição tem sido responsável por muitos dos numerosos enganos cometidos por artistas e
críticos, que, desprovidos de referenciais teóricos sólidos e adequados, tateiam, realizando
seqüências de ensaio e erro lentas e dolorosas. Experiências muito ricas ficam soltas ao
sabor de circunstâncias momentâneas, não contribuindo verdadeiramente para a fertili-
zação do campo. Trabalha-se com modelos importados, sem o domínio de instrumental
40 reflexivo capaz de fazê-los passar pelo crivo de uma crítica que desmonte suas estruturas
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

e evidencie suas condições de vigência e de validade na realidade local. Assim, quando


procuramos pensar as novas condições dos países periféricos dentro da ordem globali-
zante e dos sistemas comunicacionais em rede, não encontramos parâmetros específicos
que permitam fugir à tradição das teorias construídas fora dessas realidades que queremos
explicar. As artes visuais, desprovidas de referenciais críticos, permanecem como mero
instrumento de distinção das elites da região, que pretendem participar, de alguma forma,
da cultura internacional.

No entanto, é impossível pensar a arte no Brasil fora de uma internacionalização que se dá sob
o signo da dominação cultural desde o período colonial, e que não pode ser diminuída dentro
desse debate. É necessário pensá-la como mecanismo interno de uma megaestrutura que
se expande. A dominação ideológica no campo das artes visuais introduziu o barroco como
prática simbólica, em oposição à visualidade indígena e africana, cujos objetos foram destruídos
ou relegados à categoria de artesanato. Posteriormente, o academicismo, trazido por escolas
européias, impôs-se sobre os regionalismos nascentes, criando uma sistema de arte e estabele-
cendo hierarquizações. Sempre em ondas de atualização, foram-se construindo novos modelos
artísticos, buscando seus referenciais na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos, nos
mesmos pólos onde o país busca também seus modelos econômicos; introjetando concepções
de subalternidade e dependência. Esquecemos, muito facilmente, que a modernidade européia
se alimentou de modelos pré-colombianos e africanos e que a presença de latino-americanos,
como Torres Garcia, Thomas Maldonado ou Julio Le Parc, foi fundamental para o desenvolvi-
mento das correntes abstratas em nível internacional.

Assim, uma fundamental alteração na estrutura da área de história da arte no País parte de
uma revisão radical das práticas e das estruturas de ensino, buscando romper com a linea-
ridade fictícia de uma história ocidental para dar conta do que se processou em termos de
produção artístico-visual. Esse tipo de reforma curricular deve abranger o ensino de primeiro
e segundo graus, mas principalmente o das escolas de arte, pois é ali que se formam os profes-
sores dessa área. Temáticas como a das manifestações imagéticas da pré-história local, com
ênfase na arte rupestre, que se apresenta rica e diversificada em todas as regiões do país, deve
ser incluída ao lado dos estudos sobre as produções coloniais. Os diferentes barrocos com
suas manifestações regionais devem ser concatenados com a introdução do academicismo e
do sistema da arte, a partir da atuação da Missão Francesa no século XIX. O Modernismo e sua
conexão com os ideais da modernidade nacional e seu questionamento pela globalização e a
emergência de uma arte contemporânea internacionalizada em seus circuitos. Essas propostas
de alterações curriculares não pretendem fomentar xenofobismo nem propor leituras nacio-
nalistas, mas apontar a necessidade de voltarmos nossos olhares para uma produção local que
se encontra há muito relegada a um segundo plano, sem difusão e sem suportes conceituais
para sua legitimação.

Um importante indicador de que essas mudanças de foco em termos temáticos já se estão


implementando pode ser observado no programa do Colóquio Nacional do Comitê Brasi-
leiro de História da Arte em 2008.4 Primeiramente, podemos verificar uma predominância de
comunicações que abordam pesquisas relativas a produções artísticas nacionais e regionais.
Segundo, as comunicações agrupam-se em torno dos seguintes temas: historiografia da arte,
arte colonial, academicismo, modernismo e arte contemporânea. Os focos das comunicações
correspondem às temáticas das pesquisas que se desenvolvem nos cursos de pós-graduação
do país, demonstrando que, nesse nível de formação, já se evidencia o interesse por novos
objetos de pesquisa e bases conceituais. Entretanto, em geral, os resultados dessas investiga- 41
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

ções ficam restritos ao âmbito específico da universidade, sem uma efetiva disseminação pela
sociedade e pelos diferentes segmentos do circuito artístico.

Para podermos desenvolver um tipo de programa mais voltado à produção local, é necessária
a existência de novos materiais didáticos para o professor utilizar em aula e também meios
para sua atualização pessoal. Na produção desse tipo de insumo, tais como revistas, livros e
todo tipo de material visual, os cursos de pós-graduação e as editoras universitárias podem
ser importantes colaboradores. Afinal, é ali que se processam os projetos de pesquisa que
estão estudando esta realidade e que podem e devem fazer sua divulgação, seja em termos de
exposições com interpretações de curadorias especializadas, seja na produção de materiais
didáticos. Vale lembrarmos ainda a possibilidade que detêm de produzir e distribuir materiais
para ensino a distância. Esse é um recurso importante, uma vez que nesse imenso território
geográfico as comunicações por meios tradicionais nem sempre são as mais efetivas, e as
novas tecnologias de comunicação podem ser importantes aliadas.

As propostas de ampliação das bases sociais das artes visuais passam sempre por um fator
determinante, que é o da significação que se estabelece pela difusão de informações. Não
podemos esperar adesão a práticas simbólicas que trabalham com códigos não socializados.
E socialização é um tema muito mais amplo do que os limites das artes visuais, pois perpassa
todo tipo de relação e envolve questionamentos que muitos não desejam ampliar. Se a ordem
hegemônica, principalmente por meio da publicidade, tenta impor um universo simbólico
universal esvaziado de significação, a arte deve propor sua inserção nas conjunturas locais,
desenvolvendo formas de refletir sobre a realidade. O desenvolvimento de estudos sobre
a arte local e sua ampla divulgação são tarefas importantes, uma vez que revertem também
na ampliação de público. Enquanto existe a popularização de uma história da arte interna-
cional por meio de diversas publicações, inclusive de coletâneas para o grande público, nossa
produção é desconhecida. Mesmo especialistas surpreendem-se com algumas publicações e
exposições que mostram uma realidade pouco divulgada e difundida.

O desenvolvimento dos estudos na área de história, teoria e crítica, assim como sua ampla
difusão, é decisivo na legitimação da produção local. Essa arte de diferentes épocas e origens
necessita de uma reflexão que lhe dê suporte. Uma reflexão que não pode ser feita só pelos
artistas, que trabalham dentro do contexto conceitual do campo artístico. Os críticos e os
curadores com uma formação sólida em história e teoria da arte capacitam-se com compe-
tências específicas para essa tarefa. Fortalecer a área de pesquisa e reflexão teórica tem
conseqüências na legitimação da arte e implicações diretas na ampliação do público. Devemos
perguntar-nos em que medida estamos comprometidos com essas tarefas.

Notas
¹ Gráfico apresentado na dissertação de mestrado de Nei Vargas da Rosa, Estruturas emergentes:institui-
ções culturais bancárias, produtores e curadores. Defendida em 2008, no PPGAVI da UFRGS, sob minha
orientação.
² Quadro igualmente apresentado na já citada dissertação de mestrado de Nei Vargas da Rosa.
³ O estudo de Almerinda Lopez (2006) sobre a formação do historiador de arte no Brasil apresenta
alguns exemplos mais recentes de integração da universidade com museus para o desenvolvimento de
pesquisas aplicadas.
4
A lista completa das comunicações pode ser acessada no site do Comitê Brasileiro de História da Arte.
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Referências
AMARAL, Aracy. Indefinições a enfrentar e prioridades na pesquisa sobre arte brasileira.
Pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: EDUFRGS/Anpap, 1993.
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.
BULHÕES, Maria Amélia. Considerações sobre o sistema das artes plásticas. Porto Arte, n. 7,
Porto Alegre, UFRGS, 1990.
CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant l’ image. Paris: Les Editions de Minuit, 1990.
LOPES, Almerinda. Reflexões sobre a história e o historiador da arte no Brasil. VIS, Revista do
PPGA da UnB, v. 5, n. 1. jan./jul. 2006.
ROSA, Nei Vargas. Estruturas emergentes: instituições culturais bancárias, produtores e cura-
dores. Dissertação de mestrado defendida no PPGAVI/UFRGS, 2008.

43
Ser ao vento ¹
Being in the wind

Rita de Almeida Castro *

Resumo
O artigo consiste na abordagem antropológica do fazer teatral, mais especificamente a fase do treinamento, espaço de
preparação do ator para a cena. Como treinamento, alguns grupos de atores da cidade de São Paulo elegeram técnicas
orientais como o seitai-ho e o yoga ashtanga. O seitai-ho foi criado no Japão no começo do século XX por Haruchika
Noguchi e foi introduzido no Brasil, em São Paulo, no ano de 1994, por Toshi Tanaka. O seitai-ho é um conjunto de
técnicas que visam a assegurar os processos naturais de transformação do corpo. Sei significa “equilíbrio correto”,
tai, “corpo”, e ho, “técnica”. O yoga ashtanga é de origem indiana. Na trajetória de alguns artistas brasileiros, que se
propõem a uma aproximação com essas abordagens orientais, constrói-se a perspectiva de uma “cultura do caminho”,
uma sensação do corpo em processo, um constante vir-a-ser em que as fronteiras entre arte e vida cotidiana não
aparecem tão demarcadas.
Palabras clave: arte. antropologia. ator. técnicas orientais.

Abstract
The present article comprises an anthropological approach of theater production, more specifically, the training phase, the space
for the actor to prepare for the theatrical scene. As training, some acting groups from São Paulo have chose oriental techniques
such as seitai-ho and yoga ashtanga. The seitai-ho technique was created in Japan in the beginning of the 20th century by
Haruchika Noguchi, and was introduced in São Paulo, in 1994 by Toshi Tanaka. It is a set of techniques which allows the natural
processes of the body´s transformation. Sei, means “correct balance”, tai “body” and ho “technique”. The yoga ashtanga tech-
nique is originated from India. During the trajectory of a number of Brazilian actors who use these oriental approaches, one
builds the perspective of a “pathway culture”, a body transformation feeling and a steady “becoming a new being” in which the
frontiers between art and daily life are not so delineated.
Keywords: art. anthropology. actor. oriental techniques.

O ator teatral tem a vivência cotidiana na qual, como ator social, se posiciona, e existem
os espaços de criação, de treinamento, nos quais esse ator se coloca em situação de criar,
de se expressar de uma maneira intensa, lúdica e passível de ser compartilhada. Essa fase
do processo de atuar existe de forma diferenciada para os atores: para alguns, treinar está
vinculado ao período de formação e restringe-se a uma época; para outros, o treinamento é
cotidiano e estende-se por toda a vida. Busco compreender um pouco mais esses caminhos
internos da criação.

* Atriz, diretora e antropóloga. Doutora em antropologia pela USP, com a tese Ser em cena. Flor ao vento. Etnografia de
olhares híbridos, sobre o trabalho do ator e as relações com as técnicas orientais. É professora do Departamento de
44 Artes Cênicas da UnB desde 1995. cassiacas@uol.com.br
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Na cultura oriental e nos grupos de pesquisa no Ocidente, o trinômio treinamento—ensaio—


espetáculo é recorrente. Mesmo nos grupos que se encontram para uma produção teatral
determinada e depois se separam há muitas vezes a necessidade de criar um repertório
comum, o que se caracteriza como uma fase de treinamento dentro do espaço do ensaio para
um espetáculo teatral.

Um dos campos etnográficos para a minha tese de doutorado em antropologia foi o processo
de montagem da peça Hamlet, de William Shakespeare, sob a direção de Chiquinho Medeiros,
em 2002. A partir dessa observação e vivência cotidianas, questões relativas às técnicas e às
práticas corporais ficaram muito presentes, particularmente em relação à técnica corporal
codificada na tradição oriental como o yoga ashtanga, de origem indiana.

No processo de ensaios da peça Hamlet tive oportunidade de participar, com o grupo, da


prática do yoga ashtanga como parte da preparação corporal e de saber da existência, por
intermédio de alguns atores, da prática japonesa chamada seitai-ho. O seitai-ho é um conjunto
de técnicas elaboradas para a manutenção da saúde, assegurando os processos naturais de
transformação do corpo. Sei significa “equilíbrio correto”; tai,“corpo”; e ho,“técnica” — técnica
de equilíbrio do corpo. O seitai-ho foi criado no Japão no começo do século XX por Haruchika
Noguchi (1911-76) e foi intrduzido no Brasil, em São Paulo, no ano de 1994, por Toshi Tanaka.
O que há no yoga e no seitai-ho, técnicas orientais, que mobilizam e contribuem para o trabalho
do ator no contexto brasileiro?

Estamos no Brasil, temos um modo de pensar e de ver o mundo próprio, e tanto o seitai-ho
como o yoga são técnicas de outros contextos — Japão e Índia. Então a questão também é de
reapropriação, como esses atores de São Paulo, começo do século XXI, se aproximam dessas
técnicas de tradição oriental e as adaptam tanto para si mesmos como para o outro.

Na trajetória de alguns artistas brasileiros, que se propõem a uma aproximação com essas
abordagens orientais, constrói-se a perspectiva de uma “cultura do caminho”, uma sensação do
corpo em processo, um constante vir-a-ser em que as fronteiras entre arte e vida cotidiana não
aparecem tão demarcadas. A proximidade com essas técnicas orientais possibilita um exercício
de deslocamento, constroem-se um outro olhar, uma outra vivência corporal, um outro tipo
de eficácia nesse trânsito entre a vida cotidiana e as situações de performance estética.

Já a década de 1960, com a contracultura, foi marcada por um interesse pela espiritualidade
oriental e por uma busca por novas idéias e modos de vida. Sabemos que não é uma particu-
laridade dos atores praticar essas técnicas orientais, há hoje uma grande disseminação do yoga
em academias, e pessoas das mais diferentes profissões e estilos de vida têm adotado essa
prática, que parece ter-se intensificado após a década de 1970.

A partir do acompanhamento do processo de montagem de Hamlet, foi possível conhecer,


por um lado, uma abordagem para o treinamento do ator — o modo como ele se forma e se
prepara para a cena — e, por outro, a estética utilizada pelo grupo, em sintonia com o diretor,
para transformar o texto dramático em texto teatral.

Registrei fotograficamente o processo do grupo que montou Hamlet, o treinamento do yoga


ashtanga e, com outro grupo de pessoas, a prática do seitai-ho por entender que a imagem,
como referencial, como elemento do discurso, amplia as possibilidades de captar o universo
imaginário e a metamorfose por que passa o ator teatral no seu percurso criativo. A imagem 45
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

permite, com sua capacidade de reter instantes, um outro olhar sobre o efêmero e o instan-
tâneo, presentes tanto na vivência cotidiana como na performance estética.

O mestre de zen-budismo Daisetz Suzuki dizia que quando se aprisiona o vento em uma caixa
ele vira ar estagnado. O grande desafio está em fazer com que a reflexão, a escrita e as imagens
sobre essas práticas não as classifiquem, cataloguem e estagnem em uma caixa hermética, mas
que se mantenham nesse processo o frescor e a dinâmica inerentes ao vento e ao fazer teatral.

Uma das características desses nossos tempos é que de tanto ver imagens em filmes, vídeos,
fotos nós nos sentimos como se de certa forma conhecêssemos esses outros mundos, essas
outras culturas. Sendo assim, este trabalho é de leitura e apropriação de um certo oriente no
contexto brasileiro, paulistano. Poderíamos pensar, com Renato Ortiz, a partir do seu livro O
próximo e o distante (2000), sobre a transformação da noção de espaço nas sociedades contem-
porâneas. As distâncias podem ser vistas como encurtadas, e muitas das fronteiras se apagam.
Nesse sentido, o Japão não é um país “exótico”, “distante”, “oriental”. O olhar desterritoria-
lizado pode apreendê-lo como “vizinho”, “próximo”, parte da modernidade-mundo. Não há
uma visão idílica de harmonia, da ordem e integração com a natureza por parte dos orientais
em contraponto à complexidade dos ocidentais. Vivemos em um espaço-tempo em que a
diversidade e a heterogeneidade se fazem presentes em todas as direções.

Muitos criadores e teóricos teatrais buscam suas inspirações e referências na tradição oriental,
interpretando esses códigos e deles se apropriando, trazendo-os para um novo contexto. Para
Antonin Artaud, por exemplo, a encenação teatral pode ser vista sob o ângulo de uma utili-
zação mágica e transcendente, sendo o teatro asiático uma expressão dessa possibilidade.

De fato, o Oriente — visto pelos olhos do ocidental — descortina-se como um campo infin-
dável de referência, fonte de muitos encenadores ao longo do século xx: Brecht e sua relação
com o teatro chinês;Antonin Artaud e sua visão do teatro de Bali; Jerzy Grotowski e o kathakali
indiano; Ariane Mnouchkine e as máscaras balinesas e japonesas; Peter Brook e o Mahabha-
rata; Eugenio Barba e o intercâmbio com mestres japoneses, balineses e indianos. No Brasil,
o diretor Antunes Filho revela-se profundamente influenciado pelo pensamento zen-budista,
pela proposta artística de Suzuki Tadashi e pela postura do mestre japonês Kazuo Ohno e sua
proposta contemporânea do buto.

No intuito de construir sua linguagem cênica, criadores e teóricos teatrais que buscam suas
inspirações e referências na tradição de teatro oriental o fazem por meio tanto da codificação
extrema dessa expressão cênica — que é transmitida sem interrrupção, com base no processo
de imitação — como pela caracterização do Oriente como o outro, o diferente, que poderá
proporcionar para o trabalho do ator uma ampliação gestual e imagética.

O mais significativo de todo esse intercâmbio com o Oriente é o modo como se dá a apro-
priação artística no contexto brasileiro. A partir dos diálogos e da observação, o que parece
efetivamente singular é o redimensionamento das fronteiras, seja do que é arte e vida coti-
diana, seja da própria noção do que venha a ser Oriente e Ocidente.

Ao lado dessa busca de referenciais de outros contextos, como das culturas japonesa e
indiana, encontra-se a criação de uma expressão singular, que não está circunscrita ao modelo
original, tendo sido metamorfoseada nesse intercâmbio, e abrindo novas perspectivas de
46 diálogo e troca.
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Quando está em situação de representação, o artista convive ao mesmo tempo em várias


esferas, como comenta Schechner: “O performer não deixa de ser ele mesmo ou ela mesma
quando ele ou ela se torna outro — múltiplos eus coexistem em uma tensão dialética não
resolvida” (1985, p.103). A noção de corpo que se constrói está sempre vinculada a um
contexto sociocultural e a uma apropriação individual.

Há muitos tratados e estudos aprofundados sobre o yoga. Comecemos por expor o sentido do
termo yoga: etimologicamente ele deriva da raiz yuj, “ligar”, “manter unido”, “atrelar”, “jungir”,
que originou o termo latino jungere, jugum e o inglês yoke, etc. (ELIADE, 1996, p. 20).

Como afirma Eliade, o yoga clássico, formulado por Patanjali no século ii antes de nossa era, é
o mais conhecido no Ocidente e é definido por uma prática que tem por objetivo a “supressão
dos estados de consciência”.

A técnica do yoga, segundo Patanjali, inclui práticas e exercícios espirituais (chamados anga,
“membros”) que devem ser aprendidos por quem deseja a concentração suprema. Como
nos mostra Eliade, o grupo de técnicas ou etapas desse processo são: 1) os refreamentos
(yama), não matar, não mentir, não roubar, abstinência sexual, não ser avaro; 2) as disciplinas
(niyama) corporais e psíquicas; 3) as atitudes e as posições do corpo (asana); 4) o ritmo da
respiração (pranayama); 5) a emancipação da atividade sensorial da influência dos objetos
exteriores (pratyahara); 6) a concentração (dharana); 7) a meditação (dhyana); 8) o êxtase
(samadhi) (1996, p. 54).

No yoga de Patanjali é freqüente a idéia de densidade: deve-se partir dos aspectos mais densos do
corpo e de comportamentos no mundo material para os mais sutis, alcançados com a meditação.

Talvez esse processo de caminhar dos aspectos mais densos do corpo para os mais sutis seja o
espaço maior de encontro entre as práticas do yogui e do ator, que muitas vezes também parte
de um trabalho físico preliminar para chegar a lidar com a força da imaginação e da criação,
em um plano mais sutil (Fig. 1).

Os artistas em processo de investigação teatral buscam penetrar em diferentes estados de


consciência sem ter de renunciar à lucidez. Empenham-se em acessar estados não cotidianos
e expressá-los em cena, não só pela forma, mas pela vivência.

Na perspectiva trabalhada por Iyengar (2001), o iogue, assim como o artista, precisa respeitar
o corpo. Para ele, o artista, independentemente dos temas que expressa com sua manifestação
artística, depende das experiências interiores e das ações com as quais um iogue também
trabalha.

Essas reflexões de Iyengar introduzem tanto as dimensões do iogue como as do ator ou


dançarino. O desafio para o artista contemporâneo que pratica as técnicas e a filosofia do yoga
é como compatibilizar em uma só pessoa essas duas dimensões. Como o caminho proposto
pelo yoga pode contribuir para o artista?

Como afirma o ator Marcos Damigo, que atuou como Hamlet, o yoga trabalha com o sentido
de purificação, tanto que a primeira série de asanas (posturas) no yoga ashtanga (suryana-
maskara A, “saudação ao sol”) é uma série terapêutica de desintoxicação do corpo, a pessoa
sua, saem pelos poros todas as sujeiras, inclusive a da comida ruim que a pessoa come. 47
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 1.
suryanamaskara A,
“saudação ao sol”.

48
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Essa busca de conexão do ator, estar com os sentidos presentes no aqui e agora, é traba-
lhada em muitos dos asanas, posturas, como no asana urdhva dhanurasana (Fig. 2), usualmente
chamado “ponte”, que coloca o praticante em uma relação de apoio, as duas mãos e os dois pés
em relação com o chão. Na figura 3, um detalhe do asana utthita hasta padangusthasana, relação
com o céu, com o transcendente. Esses dois asanas trazem para o praticante a dimensão dialé-
tica entre o celeste transcendente e o terrestre onde ele se situa no momento. O praticante
de yoga, a partir da sua vivência, lida com essas dimensões.

A partir da percepção da própria respiração presentifica o seu ser no mundo, no estado em que
se encontra e, ao mesmo tempo, amplia a sua percepção para um campo transcendente. Há algo
em comum na visão de algumas práticas orientais. O mestre Liu Pai Lin, ao referir-se à prática do
tai chi chuan, diz que “o homem é o microcosmos – o céu fica na nossa cabeça e o baixo-ventre
é a nossa terra. Quando relaxamos, o sol na nossa cabeça desce e ilumina a nossa terra. Isso é
a união do yin e do yang no homem. Essa união gera em nosso corpo nova energia” (fragmento
de texto do encarte do CD Tai chi, gestos de equilíbrio, da musicista Priscilla Ermel).

No contexto da montagem de Hamlet, com quinze atores de diferentes trajetórias, em fases


de vida distintas, criou-se uma situação peculiar no treinamento dos atores, estabeleceu-se
a prática cotidiana do yoga ashtanga e a adequação ou não dos atores a essa dinâmica, para
alguns incorporada, para outros imposta. Alguns atores já faziam a prática há muitos anos,
outros foram apresentados a ela no contexto da montagem. Há uma limitação da eficácia de
uma prática oriental quando situada em contextos específicos de montagem. Diferente de uma
prática como a esgrima ou a mímica, técnicas como o yoga ashtanga parecem trazer à tona
em seu processo dimensões mais sutis de percepção, que não só o treino físico, e devem ser
constantemente redimensionadas como práticas esporádicas.

Parece haver um certo consenso por parte dos atores entrevistados de que técnicas como
o yoga ashtanga têm a sua eficácia cênica comprometida se ficam circunscritas ao tempo dos
ensaios. Como uma técnica oriental com implicações além do mero exercício físico, ela pode
desequilibrar no curto prazo o praticante, não o colocando no estado de prontidão e alerta
necessário para a performance. Os atores que têm essa prática internalizada em seu cotidiano
ao longo de anos têm uma leitura diferenciada, e podem vir a praticar o yoga antes do espetá-
culo sem nenhum comprometimento de sua atuação (Fig. 3).

Tanto a prática do teatro como a do yoga ashtanga parecem evidenciar a experiência da


repetição, como se requeressem do ator e praticante uma disponibilidade para fazer do
mesmo o diferente todos os dias, por meio da construção de uma presença, no aqui e
agora, com a respiração própria a cada momento. Pois, como diz Jorge Luiz Borges, sempre
sentimos aquela antiga perplexidade experimentada por Heráclito: “Por que ninguém desce
duas vezes o mesmo rio? Em primeiro lugar porque as águas correm”. E complementa que,
em segundo lugar, porque “nós mesmos somos igualmente um rio, nós também somos flutu-
antes” (2002, p. 62).

O processo de gerar uma criança nos traz muito viva a percepção de que cada momento é
único, de que “somos flutuantes”. No espaço de nove meses, a metamorfose do embrião ao
bebê apto a nascer faz com que cada dia seja singular. A cada semana o feto reage de uma
maneira peculiar, e essa dinâmica é captada a cada instante. Talvez não tenhamos a capacidade
de apreender com a mesma intensidade a mutação da vida no ser adulto, a impermanência, a
transitoriedade dos estados. Na experimentação cotidiana da arte, vida de palco e vida de rua 49
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 2.
asana urdhva
dhanurasana.

Figura 3.
asana utthita hasta
padangusthasana.

se interpenetram em uma “zona fronteiriça” para criar outros modos de ver e, quem sabe,
resgatar essas dimensões de ventre em processo de gestação.

Uma das questões que surgem do trabalho com o seitai-ho é o que se pode apreender como
referência do corpo japonês ou oriental hoje, no Ocidente. O que atrai na maior parte das
vezes alguns atores brasileiros em suas pesquisas com o corpo é a representação dos “corpos
tradicionais”, detentores de uma disciplina e de uma perfeição já há muito perdida tanto no
corpo do ocidental como no do oriental contemporâneo.

A pesquisa do corpo do ator se nutre de vestígios, rastros e sombras do que foi esse corpo
construído e idealizado e investiga como se dá a existência desse corpo processual nos
espaços de pesquisa teatral e os desmembramentos dessas releituras dos corpos orientais,
por exemplo, no caso do seitai-ho, técnica de equilíbrio do corpo, no contexto brasileiro.

O tipo de trabalho que se desenvolve no seitai-ho leva o praticante a entrar num tipo de
sintonia fina com o próprio corpo e os sentidos, propiciando uma escuta diferente da viven-
ciada no cotidiano. Fazer essa prática é se predispor a entrar em contato com dimensões
internas do seu próprio ser. A finalidade mais geral dessa técnica está ligada ao bem-estar e à
saúde, no entanto a maior parte dos praticantes do seitai-ho hoje em São Paulo são pessoas
que desenvolvem atividades artísticas.

Nesse trabalho a pessoa adquire um rigor consigo mesma, pois ele requer disciplina e concen-
tração para perceber pequenas alterações de respiração, temperatura, vibração, canal de
entrada para o nível dos micromovimentos, micropercepção das sensações que aparecem,
desaparecem e se transformam. Talvez se possa dizer que com o trabalho de percepção dá
para sondar os estados de um corpo impermanente e feito de fluxos.

É construída então uma capacidade de concentração a que você não tem acesso no cotidiano,
uma hipersensibilidade em relação à alteração das vibrações internas. O praticante acessa
estados que não são facilmente traduzíveis em palavras, como no ideograma japonês, em que
uma imagem representa um objeto ou uma idéia. Criam-se maneiras de externar em imagens
estados e sensações em relação ao próprio corpo e sua concepção do corpo do outro (Fig. 4).

Há uma movimentação precisa que se repete a cada encontro, as aulas se iniciam com todos
50 os praticantes em seiza, sentados no chão sobre as pernas, com os joelhos dobrados. Em um
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

51
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 4.
Rei

círculo, todos fazem ao mesmo tempo um cumprimento, rei, tanto para começar como para
terminar a aula ou a cada exercício proposto, em duplas ou trios.

Essa mesura inicial na aula tem também como objetivo marcar a interrupção do que ocorria
antes e colocar a pessoa em nova sintonia consigo mesma e com os outros que participam da
aula, como uma fronteira do estado cotidiano para um outro estado de trabalho e atitude. O
cumprimento final tem a função de fechar o ciclo da aula, colocando o praticante disponível
para o retorno à sua vida cotidiana.

Como nos diz Marcel Mauss (2003, p. 415), a maneira de sentar-se é fundamental. Podemos
distinguir a humanidade de cócoras e a humanidade sentada. A mesa, a trapeza grega, está longe
de ser universal. Em todo o Oriente usa-se normalmente um tapete, uma esteira. E Mauss
acrescenta que a criança se agacha normalmente. Nós não sabemos mais nos agachar.

Em relação ao seitai-ho, percebe-se que existem níveis distintos de abordagens. Por um lado,
você tem os katas, que incluem essas formas básicas de andar, sentar, deitar, que têm uma
expressão externa formalizada, e têm-se, por outro lado, o katsugen undo, por exemplo, que
tende a uma movimentação espontânea, involuntária.

Como nos diz Lévi-Strauss (1982), tudo o que é universal no homem depende da ordem da
natureza e se caracteriza pela espontaneidade, ao passo que tudo o que está ligado a uma norma
pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular. Essa experiência do
Katsugen undo, apesar de toda a especificidade contextual em que se insere, pretende resgatar
a ordem da natureza, da espontaneidade, “a camada de animal que existe no ser humano”,
como aponta o mestre de seitai-ho Toshi Tanaka. A resposta a questionamentos como: onde
52 acaba a natureza? onde começa a cultura? é, como nos diz Lévi-Strauss, decepcionante, pois
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

“a cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente super-
posta à vida. Em certo sentido substitui-se a vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma
para realizar uma síntese de nova ordem”(1982, p. 42).

Quando pensamos em gestualidade, nos vem à mente o movimento externo, expressão da


ação, periferia do corpo. Uma das dimensões do trabalho do seitai-ho é despertar o movimento
do corpo interno, o caminho interno da ação antes que ela se expresse em forma gestual. Para
isso a pessoa deve deslocar a sua percepção cotidiana, condicionada num contexto, na direção
de ampliar as sensações do corpo interno.

Na vivência do seitai-ho fala-se todo o tempo de percepção, dessa dimensão em que se propicia
aos sentidos serem tocados pelo odor, pelo som e pelo situar-se no aqui e agora. O momento
presente é realçado para desenvolver-se plenamente, e toda a atenção é dada ao que se está
vivendo, ao mundo que nos cerca, às estações do ano, à temperatura do dia, ao calor ou ao frio
do corpo. Para o ator em cena, uma das coisas mais importantes é que ele consiga estar pleno
no momento da ação, com todos os seus sentidos alertas. Treinar essa presença faz parte do
ofício do ator e é uma das eficácias da prática do seitai para o trabalho do ator. Despertam um
tipo de conexão com o tempo dos ciclos vitais, em uma vivência que rompe com os automa-
tismos cotidianos.

Há uma conexão entre as práticas meditativas que tanto o seitai-ho como o yoga ashtanga
estimulam, e o vazio criador tão propício ao trabalho de arte.

Uma das características da performance é ser fugaz e efêmera, algo que não se repete. Como
no conceito de Zeami: Jo-há-kyu, há um ciclo com começo, meio e fim. A arte está em conseguir
construir a presença do intérprete no instante da apresentação. Algo similar ocorre com as
práticas meditativas, a pessoa é estimulada a ficar no aqui e agora, com todo o seu ser alerta,
não estar no futuro, nem no passado, constrói-se um estado de presença, que é também muito
desejado pelos atores.

A respiração recebe um foco de atenção especial, é ela que oxigena, nutre, ponto fulcral, via
de acesso a essa integração como um todo. Todo ser humano respira, sem se dar conta, sem
se preocupar no cotidiano com o ato de respirar. No fazer cotidiano a pessoa cria padrões
respiratórios, há pessoas que têm a respiração mais presa nos pulmões. Fala-se muito no
teatro de observar os bebês enquanto respiram, usam a barriga inteira, toda a potenciali-
dade da carga respiratória. Com a vida adulta nós condicionamos a respiração e criamos
hábitos com respirações curtas, entrecortadas, contidas. E o estresse, o sedentarismo, o
estilo de vida condicionam como respiramos. Para o ator em geral, é senso comum que
para ter domínio da fala, do canto, para articular bem as palavras e estar em cena é preciso
estar com a carga respiratória trabalhada e expandida, e essas práticas orientais têm um
foco na respiração.

Respirar e só por meio desse ato acessar essa percepção de um campo mais sutil. Como afirma
Antonin Artaud, “conhecer as localizações do corpo significa assim refazer a cadeia mágica. E com
o hieróglifo de uma respiração posso reencontrar uma idéia do teatro sagrado” (1987, p. 171).

A imagem do vento quando citada pelos praticantes do seitai-ho vem repleta de ambigüidades,
tanto pode ser rajada de vento, vendaval, como sopro calmo, sutil. E sugerem a imagem do
corpo como vento, aquele que tudo sente e nada retém, capaz de infindáveis transformações. 53
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

A imagem da flor é recorrente na história do teatro oriental. O ator não pode abster-se da
semente, que é o processo de aprendizagem ao longo de sua vida, nem se restringir ao mero
acúmulo de técnicas. É a partir do aprimoramento do seu ser que se expressará a flor, que
está ligada ao espírito, à alma. O essencial nessa perspectiva é que ele se aprimore como ser
humano, e sua arte será a expressão desse depurar dos estados internos.

A imagem da flor no vento é elucidativa. A flor tem de ser regada, nutrida para que floresça. E
o vento é a intempérie, é o inusitado, pode ser sopro, ventania, furacão. Aspectos sutis e dilace-
rantes que compõem o elemento vento. Com seu grande poder de metamorfose, tanto pode
ser sopro sutil como arrebatador e voraz. A flor vai interagir com o vento no aqui e agora. A
flor vai ter de estar com essa raiz profunda para que possa dialogar, interagir com o vento e
se manter no lugar ou voar com o vento, pelo vento, por meio do vento. A flor e o vento têm
como característica a impermanência.

O teatro traz uma dimensão de foco de resistência no mundo contemporâneo. Ao lado da era
digital e midíatica a experiência teatral coloca o ser humano na frente de outro ser humano.
Essa situação de troca, de intercâmbio entre homens, que singulariza o teatro e a cena perfor-
mática depende de como essas pessoas se encontram a cada dia. Não existe a obra dada ou o
produto acabado, as artes cênicas só se estabelecem nesse encontro cotidiano, atualizado por
esse corpo em processo, por esse ser em cena, por essa flor ao vento.

Notas
¹ Este texto tem por base a minha tese de doutorado em antropologia: Ser em cena. Flor ao vento. Etnografia
de olhares híbridos, defendida na USP, em abril de 2005, com orientação da Profª. Drª. Sylvia Caiuby Novaes.
Todas as imagens deste artigo são de minha autoria e foram realizadas para a tese de doutorado.

Referências
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1987.
BORGES, Jorge Luiz. Cinco visões pessoais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.
ELIADE, Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.
IYENGAR, B. K. S. A árvore do ioga. São Paulo: Globo, 2001.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis:Vozes, 1982.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
ORTIZ, Renato. O próximo e o distante. São Paulo: Brasiliense, 2000.
SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Philadelphia: University of Pennsyl-
vania Press, 1985.

54
Entre o ativismo e a macumba: arte e afro-descendência no Brasil
contemporâneo
Between activism and macumba: art and African ancestry in
contemporary Brazil

Roberto Conduru *

Resumo
Depois de apresentar um breve panorama com os momentos em que se intensificam os diálogos entre arte e proble-
mática cultural afro-descendente no Brasil, especialmente no processo de modernização artística, o texto enfoca
obras realizadas desde os anos 1990, concentrando-se em duas tendências: os diálogos com mitos e práticas das
religiões afro-brasileiras e aqueles mais ou menos engajados no movimento negro. Depois de apresentar intervenções
artísticas realizadas recentemente no Morro da Conceição, no Rio de Janeiro, o texto aponta os riscos desses diálogos
para artistas, críticos, historiadores.
Palabras clave: arte contemporânea. religiões afro-brasileiras. movimento negro. arte e cultura. arte e política.

Abstract
After presenting brief panorama with the intensified moments of dialogue between art and the afro-descendent cultural
problematic in Brazil, principally in the process of artistic modernization, the text focuses on works made since the 1990’s,
concentrating in two tendencies: the dialogues with myths and practices of the afro-brazilian religions and those engaged in the
black movement. After presenting recent artistic interventions made at Morro da Conceição in Rio de Janeiro, the text indicates
the risks of these dialogues for artists, critics and historians.
Keywords: contemporary art. Afro-brazilian religions. black movement. art and culture. art and politics.

A relação entre arte e problemática cultural afro-brasileira é um tópico que caracteriza a


história da arte no Brasil, podendo ser percebida como uma de suas constantes. Entretanto,
essa relação apresenta-se de diferentes modos e com intensidades diferenciadas ao longo do
tempo e do espaço, tendo alguns momentos e lugares especiais no processo de modernização
artística.

Um deles delineia-se entre o final dos oitocentos e o início do século XX, na conjuntura
constituída pelo acirramento do processo abolicionista, o fim da escravatura e o início do
regime republicano, quando, no meio artístico acadêmico, no Rio de Janeiro e em São Paulo,
são produzidas obras com imagens de si e do outro, elaboradas por negros (Estevão Silva,
Antônio Firmino Monteiro, Antônio Rafael Pinto Bandeira, os irmãos João e Arthur Thimótheo
da Costa) ou não (Belmiro de Almeida, Pedro Américo, Modesto Brocos, Antônio Parreiras),

* Autor de Arte Afro-Brasileira (C/Arte, 2007), Willys de Castro (Cosac & Naify, 2005) e Vital Brazil (Cosac & Naify, 2000),
co-autor de A Missão Francesa (Sextante, 2003) co-organizador de Um Modo de Ser Moderno (Cosac & Naify, 2004).Atual-
mente, dirige o Instituto de Artes da UERJ e preside o Comitê Brasileiro de História da Arte. rconduru@uol.com.br 55
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

em processos intricados de representação e auto-representação (CONDURU, 2008). Outro


instante singular desse processo ocorre no modernismo, de 1910 a 1930, entre São Paulo,
Recife e Rio de Janeiro, em obras de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Cícero Dias,
Oswaldo Goeldi, Di Cavalcanti, Cândido Portinari e Guignard, entre outros.A arte passa, então,
a expressar outra valorização do componente africano na formação da cultura brasileira: em
vez de negativa, degeneradora, a miscigenação étnica tornou-se positiva; em vez de mazela
social a ser erradicada, emblema e paradigma das relações artísticas e culturais.

Uma abordagem nova da questão pode ser percebida a partir dos anos 1950, na vertente que
é, ao mesmo tempo, um desdobramento étnico-cultural no âmbito da arte moderna e uma
resposta plástico-artística ao processo de construção de outra visada da problemática afro-
descendente no Brasil, tal como delineada no movimento negro então. Vertente aberta por
Rubem Valentim a partir de Salvador, articulando, sobretudo, princípios e formas do Constru-
tivismo e de religiões afro-brasileiras, a qual se desenvolve até hoje, alcançando outras regiões
(Rio de Janeiro e Minas Gerais), com os trabalhos e as trajetórias de Abdias do Nascimento,
Emanoel Araújo, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos.

Também a partir do final da década de 1960, nas marés da contracultura, encontra-se outro
momento de intensificação nos diálogos artísticos com as culturas afro-brasileiras. Realizações
de Antonio Henrique Amaral, Hélio Oiticica e Lygia Pape anunciam especiais conexões com
a problemática sociocultural afro-descendente, em particular com as religiões afro-brasileiras,
estabelecidas no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos 1970, quando, segundo Yvonne
Maggie, esses cultos passaram por “uma espécie de revival” nas artes e nos estudos universitá-
rios: cinema, música, teatro, artes plásticas, ciências sociais (MAGGIE, 2001, p. 158). Nas artes
plásticas, além dos trabalhos de Amaral, Oiticica e Pape, o diálogo com o universo afro pode
ser percebido em obras de Antonio Manoel, Artur Barrio, Cildo Meireles, Regina Vater, José
Roberto Aguilar e Waltercio Caldas (CONDURU, 2007, p. 48-99).

Desde a década de 1990 e, sobretudo, nos anos 2000, outros adeptos, com fôlego renovado,
têm mantido contatos com a afro-brasilidade. Nas realizações mais recentes, como dito ante-
riormente, “as conexões estabelecidas com as culturas africanas e afro-brasileiras não chegam
a constituir uma vertente específica, nem um conjunto imediatamente destacável na produção
de arte contemporânea no Brasil” (CONDURU, 2007, p. 79). São diálogos em sua maior parte
conscientes, estabelecidos pelos artistas com base em experiências com diversas das Áfricas
presentes nas cidades brasileiras, heterogêneos, muitas vezes esporádicos, pontuais em suas
obras, dispersos pelo território brasileiro, embora apareçam com mais força aqui e ali, além de
poderem ser agrupados em subvertentes.

África e Brasil: conceitos, matérias, problemas

Na amplitude das aproximações da arte contemporânea no país com o universo cultural


afro-brasileiro, continua-se a ver e pensar África. É uma África evocada a partir de paisagens
e cultura material, a que se ilumina em telas de Gonçalo Ivo como Rio Zaire, 2007, e Tissu
d’Afrique, 2006 (IVO, 2007), cujos títulos ancoram abstratos como imagens do exotismo produ-
zido entre Europa, África e América. Outra é a mirada Denise Millan em Améfrica, o novo conti-
nente, escultórico, com o qual ela revê a história da natureza e a história humana, imaginando
uma reunificação geológico-cultural de América e África (MILLAN, 2003); obra que se conecta
à cartografia geopolítica de Anna Bella Geiger. A África está fortemente presente na singular
56 pesquisa de Viga Gordilho, dedicada, entre outras questões, às continuidades e ressonâncias
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

entre contextos socioculturais africanos e brasileiros, como em Muda memória, 2002, e Renda
e tempo, 2003 (GORDILHO, 2004, p. 58-59, 185-194, 266).

Outra entrada no universo afro é o uso de materiais com acento étnico-cultural que são
referências culturais menos ou mais circunscritas, agregando ressonâncias outras às obras, em
suas relações lúdicas e críticas com os meios de produção artística. Em Porto Alegre, Leandro
Machado compõe com velas multicores, frequentemente usadas em cultos afro-brasileiros,
arranjos cromáticos singelos que podem ser conectados às telas de Alfredo Volpi e aos bambus
e ripas de Ione Saldanha, e pinta com henê (cremes para alisamento de cabelos) retratos
duplamente afro-descendentes. Em Salvador, Ayrson Heráclito produziu com azeite de dendê,
em 2002, Regresso à pintura baiana, reprocessando regionalismo, minimalismo, pintura de ação
e maquinismo, entre outras referências e questões.

Entretanto, em sua maioria, os diálogos com o universo cultural afro no Brasil focam as reli-
giões de matrizes africanas e na problemática social da negritude.

Arte e religiões afro-brasileiras

O modo mais freqüente de conexão dos artistas contemporâneos às culturas afro-brasileiras


é lidar com o imaginário religioso. Dá-se continuidade, assim, à tradição de representação figu-
rativa de práticas das religiões afro-brasileiras, a qual se inicia ainda no período quando o Brasil
era uma colônia portuguesa, passando por obras de Jean-Baptiste Debret, Modesto Brocos,
Cecília Meireles, Antonio Gomide, Djanira, Cândido Portinari, Maria Helena Vieira da Silva e
José Medeiros, entre muitos outros, delineando uma vertente que chegou a ser um dos tópicos
centrais e caracterizadores das obras de Carybé, Pierre Verger e Abdias do Nascimento. Não
dedicadas à figuração da cultura material e de ritos afro-brasileiros, mas à exploração da
semântica própria aos signos (formas, cores, ícones) presentes nestes, são as pesquisas de
Rubem Valentim, Emanoel Araújo, Ronaldo Rego e Jorge dos Anjos.

Recentemente, o que se observa é a exploração de imagens das religiões afro-brasileiras por


meio de apropriações imediatas ou transformadas, dialogando com o imaginário, os mitos
e os ícones afros difundidos na paisagem e na cultura contemporânea do país. É o caso das
instalações de Nelson Leirner, que conjugam o imaginário religioso afro-brasileiro e as imagens
de outros cultos e ícones culturais, caminho seguido por Rodrigo Cardoso, que usa imagens
de Iemanjá, Oxumarê e outras divindades e santos na obra Invocações, de 2003, e em Iemanjá
posto 6, de 2006. Em uma de suas intervenções comunitárias, o Jamac (Jardim Miriam Arte
Clube), segundo as diretrizes de Mônica Nador, também se valeu de figuras de orixás (Iemanjá
e Ossãe) como motivos para constituir um padrão decorativo usado na renovação da fachada
de um edifício na periferia paulistana.

Essas apropriações podem resultar de pesquisas feitas diretamente em terreiros, nos transbor-
damentos destes nas paisagens urbana e rural, ou na história da arte no Brasil, em diálogos que
reafirmam positivamente a tradição artística projetivamente afro-brasileira, delineada a partir
de Valentim. É o caso de Ronald Duarte e suas Tatuagens urbanas, de 2006:

[...] através de oficina de Interferência Urbana pela Rede Nacional


de Artes Visuais da Funarte, reúno vários artistas locais da Baixada
Fluminense em Nova Iguaçu para pesquisarmos as imagens existentes
no arquivo do imaginário popular e conseguimos através do livro 57
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

de Abdias do Nascimento as imagens de ícones yorubás que foram


levados para o local através dos escravos que fugiam das senzalas e
iam para a baixada se esconder.

O Jacaré de duas cabeças que divide o mesmo estômago é o signo


das diversidades e da tolerância com as diferenças, sendo uma das
tatuagens escolhidas para ser impressa por ser Nova Iguaçu uma das
cidades mais populosas do Brasil (DUARTE, 2008).

Em outras obras, o que se percebe são aproximações não intencionais, mas também não de
todo inconscientes, com o mundo afro-brasileiro gerando similitudes plásticas, como os panos
dobrados ou estendidos de Martinho Patrício, que ressoam, com opacidades e velaturas, visua-
lidades que podem ser remetidas ao imaginário e à cultura material popular e, particularmente,
aos altares de Umbanda.

No caso de Macumbanonsite – trabalho para Maria Padilha, rainha da encruzilhada, as referências


são explícitas, assim como a liberdade no manuseio destas, pois Alexandre Vogler vale-se tanto
de imagens de pomba-gira (Maria Padilha) quanto de um de seus atributos (o anis), mistu-
rando-os a equipamentos eletrônicos, plasmando sons, imagens, cheiros, com bom humor e
alguma reverência. Superpondo a noção de obra artística com a de trabalho religioso, mistu-
rando instalação, macumba e rap, faz-nos perguntar: para qual divindade trabalha o artista? É a
arte sua rainha, sua pomba-gira? Ou é esta sua musa afro-brasileira? Quer agradar ao público?
É para seu próprio proveito o trabalho?

O que leva a pensar em trabalhos de artistas cujas obras têm maior proximidade e envolvi-
mento com os rituais religiosos afro-brasileiros. Com efeito, similitudes rituais estão presentes
nas placas configuradas, um tanto casualmente, por Leandro Machado, a partir da queima de
velas coloridas, como as usadas em práticas votivas afro-brasileiras.

Similitudes rituais são observáveis também em aproximações explicitamente conscientes de


Ronald Duarte às religiões de matrizes africanas no Brasil, especialmente o Candomblé. O
artista articula os processos de desmaterialização típicos da arte contemporânea – perfor-
mances, instaurações, instalação – a práticas dessas religiões nas quais é crucial a indisso-
ciabilidade entre ritos e coisas, uma vez que raramente os rituais acontecem sem o uso e a
apresentação de determinados objetos, os quais, segundo a tradição, devem ser feitos e dados
a ver em rituais específicos.

Em Nimbo/Oxalá, de 2004, o título articula acontecimento físico-químico à divindade, reme-


tendo a breve e incontrolável nuvem gerada pela liberação da carga total de equipamentos
extintores de incêndio ao orixá da criação para os nagôs. Conexão confirmada por alguns dos
atributos de Oxalá: o dia de realização da instauração – sexta-feira –, a cor da fumaça, também
predominante nos trajes das pessoas – branco –, o elemento formado temporariamente –
nuvem – e uma qualidade deste – onipresença difusa. Assim, o artista explora a multiplicidade
semântica das religiões e a prática socialmente difundida de difusão sub-reptícia de seus signos
em meio aos códigos culturais brasileiros.

De modo semelhante – sem representações icônicas, explorando a amplitude semântica de


signos ambíguos e com intervenção performática transitória –, Marepe realizou Pérola de água
58 doce, em 2006, lançando 13 mil pérolas de água doce no rio Tietê, em São Paulo. Nas fronteiras
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

entre o artístico e o religioso, a performance foi apresentada como um ritual de oferenda a


Oxum, a divindade das religiões afro-brasileiras mais direta e fortemente associada às águas
doces, que se pretendia também como um manifesto contra a poluição do rio e a degradação
ambiental, como um protesto ecológico.

A referência aos rituais é explícita, revelando apropriação e desdobramento artístico de rituais reli-
giosos, na apresentação feita por Ronald Duarte de outra de suas intervenções, Pisando em ovos:

É na verdade um grande “ebó” (limpeza, comida, oferenda), uma troca,


como se diz no Candomblé. Realizada no gramado da Esplanada dos
Ministérios em Brasília /outubro de 2005, durante o acontecimento do
“Mensalão”... Espécie de interferência urbana mística, mágica, que acon-
tece ao meio-dia com a participação de vinte e oito artistas locais inscritos
na oficina de Interferência Urbana oferecida durante a Rede Nacional de
Artes Visuais – Realizada pela Funarte–Minc (DUARTE, 2008).

Essas ações de Ronald Duarte e Marepe conectam-se mais diretamente com obras de artistas
que vivenciam as religiões afro-brasileiras, sem que isso implique iniciação nelas e afastamento
da problemática da arte contemporânea. Nesse caminho estão Ayrson Heráclito, atuante
em Salvador, de quem se poderia falar das cerimônias coletivas preparatórias de comida ou
lavagem ritual, com ressonâncias sociais não necessariamente confortáveis e confortadoras,
como Lavagem da América, de 1999, Transmutação da Carne, 2000, e O condor do Atlântico: a
moqueca, de 2002.

A partir do Pará, Arthur Leandro propõe vínculos, rebatimentos e descontinuidades entre


práticas artísticas, religiosas e midiáticas, entre arte, religião e cultura, universal e local, ao
conectar a reflexão sobre a morte contemporânea do artista à cerimônia do axexê, ritual
fúnebre do culto nagô, em suas Notícias falsas da própria morte implantadas no obituário do jornal
O Liberal e pagas com cheque, débito em conta telefônica ou cartão de crédito do pretenso falecido.
Poética para futuros historiadores...

Ao enveredar pela questão da visibilidade das religiões afro-brasileiras, essa obra de Arthur
Leandro não deixa de tocar em questões políticas. Também Pérola de água doce de Marepe,
com sua dimensão ecológica, tem sentidos políticos, assim como Tatuagens urbanas, de Ronald
Duarte e as ações citadas de Ayrson Heráclito, ao remeterem a questões da situação social
dos afro-descendentes e suas práticas culturais, o que leva a pensar em obras e intervenções
vinculadas à causa da negritude, as quais também variam quanto à origem geográfica, ao foco,
às intenções e ao modo de ação, uma tendência que ganhou maior relevância recentemente.

Arte e causa negra

Articular arte, política e negritude no Brasil conduz às ações no campo das artes do Movi-
mento Negro no país e, conseqüentemente, à figura de Abdias do Nascimento, com sua vida
engajada na defesa da igualdade para as populações afro-descendentes.Tendo atuado no campo
das artes, a partir da poesia e do teatro, e da representação política, tendo sido deputado
federal (1983-1987) e senador da República (1997-1999), quando se dedicou à produção artís-
tica, a partir da década de 1960 Nascimento produziu obras com temática, sobretudo, religiosa,
dando continuidade à prática de conquista de presença pública da cultura afro-brasileira por
meio da visibilidade de seus mitos religiosos. Semelhante é o caso de Emanoel Araújo, cuja 59
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

obra dialoga de modo não figurativo com as dimensões religiosas e cuja ação política se vem
fazendo no campo institucional da arte, especialmente na edição de livros, curadoria de expo-
sições, direção e criação de museus.

Obras como Valentine, a mais rápida e Jacinte adora suco de laranja, de Vik Muniz, ambas de
1996, levam a pensar em outro modo de relação entre arte política. Com tom compungido e
humanitário, em suas imagens da infância marginalizada nas cidades brasileiras ecoam certas
figurações do compromisso social de artistas com o povo, os populares, os marginalizados e os
excluídos em momentos precedentes. Isso permite pensar em uma tradição na história da arte
no Brasil internamente variada, de denúncia artística não agressiva, discreta e até suave, que
pode ser delineada com obras de diferentes momentos. Um deles é a obra de Johann Moritz
Rugendas, que, muitas vezes, configura cenas do terrível cotidiano da servidão com bran-
dura e quase sem dramaticidade, conjugando situações abjetas em ambientes plácidos. Outro
momento é Mãe preta, de 1912, tela na qual Lucílio de Albuquerque aborda a figura social da
mulher afro-descendente no Brasil, mais especificamente a da mãe-preta, apresentando em luz
cálida a dor de uma ama-de-leite presa ao chão, que deve dividir vitalidade e amor entre uma
criança negra (seu filho?) e uma branca (filho dos senhores, dos patrões?). A figuração crítica
conduz ao retrato resignado. Nesse caminho, é possível destacar Cabeça de preto, pintura
na qual Henrique Bernardelli configura um perfil da sabedoria humilde dos negros idosos,
derivada da mistura de culturas ancestrais ao sofrimento, resistência e marginalidade gerados
pela escravidão, a partir da qual é fácil chegar à figura social do preto-velho e, assim, retornar
ao universo religioso afro-descendente no Brasil, o que remete aos negros sofridos de Lasar
Segall: homens e mulheres, idosos, jovens e crianças e às negras melancólicas de Cândido Porti-
nari. Com menor ou maior talento, essas visadas adocicadas dos marginalizados em situações
brutais são conectáveis ao modo como, atualmente, Sebastião Salgado concilia em suas fotos
temas aviltantes e modos clássicos de representação, o que indica a persistência, na arte enga-
jada na denúncia social, da prática de criticar o abjeto tornando-o visualmente aceitável.

Outro foi o caminho adotado por Antônio Henrique Amaral, em 1967, em Brancos x negros
ou diálogo frustrado, ao figurar a problemática racial, explicitando tensões e impossibilidades,
denunciando o mito da integração racial brasileira. Contudo, as referências mais constantes
para os jovens artistas atuantes no país hoje são Caixa Brasil, de Lygia Pape, e Inserções em
circuitos ideológicos, de Cildo Meireles, as quais seguem as tendências da arte contemporânea
quanto à lingüística e ao modo de abordar a problemática sociocultural.

Na Caixa Brasil, de 1968, que Lygia Pape incluiu em seu livro Gávea de tocaia como um poema
visual, ela mais uma vez ataca o museu, a instituição artística. Nessa obra, a artista revê com
ironia crítica o mito segundo o qual a nação brasileira foi construída harmonicamente por
portugueses, nativos e africanos, bem como as tentativas de monumentalização deste.¹ Repre-
sentando as etnias por meio de mechas de cabelo louro, castanho e negro, ela explora tanto
a hierarquia das raças, evidente na valoração dos tipos de cabelo – desde a superioridade dos
cabelos claros e lisos ao desprezo relegado a carapinhas pretas, pixaim, cabelo-de-cupim, etc.
–, quanto o enclausuramento, o controle, a acomodação e o fetichismo voyeurista dos museus.
Como paródia poético-crítica, Caixa Brasil constitui-se tanto como precedente importante
para diálogos contemporâneos entre os campos da arte e da cultura afro-brasileira quanto
como crítica artística aos processos de domesticação institucional da arte.

A montagem com elementos apropriados que remetem à temática da negritude, embora não
60 só a ela, é uma estratégia encontrada em Divisor 2, de Ayrson Heráclito, que nos interroga com
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três grandes caixas de vidro, cada qual com 100 x 200 x 25 cm, contendo água, óleo e sal. É
um experimento a investigar densidades, pesos e relações físico-químicas dessas substâncias?
É uma peça de demonstração dessas propriedades?

A princípio, não. Como o artista atua no meio de arte a partir de Salvador e a obra foi apresen-
tada na III Bienal de Artes Visuais do Mercosul, realizada em Porto Alegre, em 2001, conclui-se
que não é uma experiência científica ou um dispositivo didático, mas uma proposição artística
baseada na ampliação atual dos limites e dos meios da arte.

Como obra de arte, pretende ir além da literalidade daqueles compostos e de suas rela-
ções, explorando dimensões metafóricas. Entretanto, para pensar a que se refere essa obra,
é necessário partir dos elementos que a compõem, observando como eles nela interagem.
Primeiro, é preciso lembrar que água e sal estão indissociáveis no mar. Depois, deve-se notar
que a substância oleaginosa empregada é o óleo de palma, que é fabricado com os cocos do
dendezeiro (Elaeis guineensis), uma árvore que tem múltiplos sentidos e usos nas práticas das
religiões afro-descendentes no Brasil. Conhecido como azeite-de-dendê, ou azeite-de-cheiro e
epô, esse óleo ganhou a gastronomia no Brasil, sendo usado na feitura da moqueca, do vatapá
e de outros pratos da culinária largamente conhecida como baiana, apesar de também ser feita
e comida em outras regiões do Brasil e da América. Por fim, é imprescindível não esquecer os
continentes vítreos: cristalinos e grandiosos aquários de mar coberto por azeite-de-dendê.

Vale ainda citar uma chave de leitura incluída pelo artista em um catálogo referente ao seu
trabalho, o poema “O Divisor”, de Myra Albuquerque:

É oceânica a solidão negra / Em dias atlânticos sabemos ser nosso o


/ que está distante, / submerso em travessias absurdas, / em náuseas
intermináveis. // Foi Atlântico o medo do mar, / a adivinhação da
tempestade, a expectativa da rotina. // Foi Atlântica a dissimulação
de Esperança: “sou vítima do terrível crime / da escravidão”. / Disse
ser ela Esperança da Boaventura, / como os Aleluia, os Bomfim, os
da / Cruz, os do Espírito Santo. // Mergulhamos num flagelo Atlân-
tico. / Desde então, estamos todos assentados / no fundo do oceano
(ALBUQUERQUE apud HERÁCLITO, 2003, p. 42).

É óbvio, portanto, que Divisor 2 se refere ao oceano Atlântico. Contudo, essa obra ajuda-nos
a ver que um oceano, mais do que uma parte da geografia física da Terra, é um domínio de
espaço e tempo que deve ser pensado por outra geografia: cultural, histórica, antropológica.
Assim, devemos conectar a obra aos processos sociais estabelecidos por meio do Atlântico
a partir da transposição forçada de africanos para serem escravizados na América, do século
XVI ao XIX, bem como dos intercâmbios entre esses continentes, que persistem até hoje, e a
conseqüente constituição da problemática cultural afro-americana.

Mas o que nos diz o artista pelo modo como articula os elementos na obra? Água, azeite e sal
estão justapostos, deliberadamente reunidos, em um mesmo recipiente, mas permanecem estan-
ques, separados em camadas em razão de suas particularidades físico-químicas; em suma: em
processo de interação parcial, conflituosa.Tudo isso remete à impossibilidade de pensar o oceano
Atlântico sem levar em conta os impasses da diáspora e de suas conseqüências, o mar sem o
sangue nele e a partir dele derramado.Transparentes e racionalmente geométricas, as caixas falam
de mais do que dão a ver: simbolizam conexões e disjunções de pessoas, grupos sociais, reli- 61
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

giões e culturas entre África e Brasil; tempos passados, presentes e futuros; práticas e realizações
complexas, densas, turvas, ainda que também instigantes e, muitas vezes, como nessa obra, belas.

Com sentido social menos metafórico, mais incisivo, direcionado explicitamente à problemá-
tica cultural afro-brasileira é a proposta de Cildo Meireles Inserções em circuitos antropológicos:
Black Pente, de 1971-1973, que é vinculada à série Inserções em circuitos ideológicos, do mesmo
artista, também do início da década de 1970. Como ele a apresenta:

Projeto de produção e distribuição a preço de custo de pentes para


negros. Na série Inserções em circuitos ideológicos, o dado fundamental
é a constatação da existência do(s) circuito(s), e a inserção verbal
constitui uma interferência nesse fluxo de circulação, isto é, sugere
um ato de sabotagem ideológica contra o circuito estabelecido. Já
nas Inserções em circuitos antropológicos (Black Pente, Token), importa
mais a noção de ‘inserção’ do que a de circuito: a confecção de
objetos, elaborados em analogia com os do circuito institucional,
tem por objetivo induzir a um hábito e, daí, à possibilidade de
caracterizar um novo comportamento. No caso específico de Black
Pente, o projeto trabalharia no sentido de afirmação de uma etnia
(MEIRELES, 1981, p. 26).

Caso tivesse sido realizado, Black Pente atacaria de modo bem humorado as políticas de desva-
lorização de penteados, cabelos, corpos e culturas negras imiscuídas cotidianamente na socie-
dade. Enquanto Meireles participaria da valorização da negritude por um flanco geralmente tido
como secundário, investindo contra os cerceamentos à alteridade comportamental, algumas
ações de Leandro Machado, Cabelo e Frente 3 de Fevereiro se engajam nessa luta por meio
da inserção de mensagens não necessariamente menos lúdicas e bem humoradas, em circuitos
e práticas urbanas, atacando questões mais gerais e supostamente centrais da condição social
dos afro-descendentes no Brasil. Não é estranho, portanto, que a referência mais forte dessas
intervenções recentes seja a série Inserções em circuitos ideológicos.

A partir do Rio Grande do Sul, é crítico o modo como Leandro Machado brinca com o nome
e o logotipo das Lojas Americanas em suas sacolas e camisetas das fictícias Lojas Africanas, ques-
tionando processos tanto de desvalorização da África e da africanidade quanto de eleição de
referências simbólicas em sociedades culturalmente colonizadas embora politicamente inde-
pendentes como a brasileira.

De São Paulo, o coletivo Frente 3 de Fevereiro questiona também lúdica e publicamente


o racismo entranhado na sociedade brasileira. Em sua Ação Bandeiras, realizada em estádios
de futebol, o coletivo provoca e discretamente convida a multidão ao combate, ao fazê-la
desfraldar e ler imensas bandeiras que amplificam questões como valorização, visibilidade
e abrangência da afro-brasilidade com breves dizeres: “Brasil negro salve”, “Onde estão os
negros?”, “Zumbi somos nós” (FRENTE 3 DE FEVEREIRO, s.d., p. 63), o que leva a pensar no
Zumbi de Cabelo, do sítio eletrônico Santo Forte, que também se apropria, funde, transforma e
difunde imagens em sua chamada urbana à luta. Justapondo a pose convocatória do Tio Sam de
James Flagg a uma imagem do busto de um homem negro maduro, aparentemente sem autoria,
que circula como Zumbi na rede eletrônica e em impressos, ele atualiza a dimensão combativa
do herói em cartazes que, dispostos em postes de iluminação e transportes públicos pela
62 cidade, recrutam voluntários para sua “causa justa” (SANTOFORTE, 2006).
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Fé + política +

Entretanto, deve-se destacar que religião e política estão misturadas nessas obras, entre si e com
questões diversas, sejam da arte, da problemática sociocultural afro-descendente e de outros
domínios. Com efeito, na maioria dos diálogos artísticos com a cultura material e simbólica da
África e da África no Brasil, raramente as referências africanas e afro-brasileiras são exclusivas.

A princípio focadas na religião, as intervenções de Alexandre Vogler como Fé em Deus / Fé em


Diabo, de 2001, e Cruzeiro, de 2006, revelam-se mais vinculadas à questão política, seja em si, na
articulação entre elas e com outras ações do artista, seja no modo como ele as inscreve no
circuito de arte, como fez, recentemente, na seção “Ensaio de Artista”, da edição especial da
revista Concinnitas, dedicada ao tema “Arte e Política” (VOGLER, 2007, p. 133-142). A partir de
causas particulares ou gerais (religião, mulher, governo, corpo), suas intervenções tensionam,
geralmente com humor cáustico e longe das cartilhas politicamente corretas, situações de
micro e macropoder.

Fé em Deus / Fé em Diabo e Cruzeiro são intervenções diretamente conectadas a Exu e ao processo


de demonização deste por vertentes da religião cristã: a católica e a neopentecostal. Fé em Deus /
Fé em Diabo não poderia ser mais distante de uma obra de arte sacra, apesar de lidar com a temá-
tica religiosa. Nessa obra, o artista joga com a profusão de mensagens que povoam o ambiente
urbano do Rio de Janeiro, algo comum a muitas cidades brasileiras, especialmente com os textos,
escritos manualmente ou impressos, em diferentes suportes, que pregam de modo ostensivo,
embora subliminar, a conversão às igrejas neopentecostais. Mais do que um tema, a religião é uma
questão sociopolítica. Fumacê do descarrego, realizado pelo Rradial (parceria de Vogler com Luís
Andrade e Ronald Duarte) nas ruas cariocas durante o carnaval há alguns anos, explora, de modo
festivo e irreverente, na escala urbana, tanto as práticas de descarrego de energias negativas com
defumação de ervas, tal como feitas nos cultos afro-brasileiros, como a incorporação dessas
práticas em cultos neopentecostais, realizados para “limpar” os fiéis provenientes de outras reli-
giões, o que ajuda a ver como Vogler aborda o universo das religiões afro-descendentes no Brasil
com distanciamento, um tanto de crítica e muito humor, com respeito irreverente. O que se
expande em Cruzeiro, intervenção também intitulada pelo artista como Tridente de Nova Iguaçu,
que foi realizada como parte de uma oficina de arte pública, que Vogler ministrou no projeto
Interferências Urbanas, da prefeitura do município de Nova Iguaçu, na baixada fluminense, região
de forte presença de terreiros e adeptos das religiões afro-brasileiras, assim como de templos
e fiéis de religiões que àquelas se opõem. Nessa obra, ele aumenta o tom e o risco de sua ação,
ao se inserir aberta e provocativamente na guerra religiosa ali em curso há algum tempo. Sem
abandonar a ironia crítica, parece propor Exu como patrono das mídias táticas ao pintar com
cal um tridente na encosta da serra do Vulcão, atrás e acima do Mirante do Cruzeiro, que domina
a paisagem da região e é forte referência cultural. Assim, explora a ambigüidade do signo, que
remete ao cetro mitológico de Netuno, mas também ao tridente dos Exus afro-brasileiros, para
desafiar a intolerância religiosa e o populismo político, que investiu contra Cruzeiro e o artista,
destruindo a primeira e ameaçando processar o segundo.

Também as obras de Rosana Paulino, com seus impressos e manufaturas que remetem a
fetiches e mandingas, podem ser vinculadas às religiões afro-brasileiras, embora não só a elas.
Radicada em São Paulo, a artista tem um papel pioneiro na dinâmica recente de intensifi-
cação dos diálogos com a problemática afro-descendente no país, com um trabalho original
derivado da amplitude de sua vivência como artista negra. Constituída por imagens de seus
antepassados impressas em patuás, Parede de memória, de 1994, é uma obra vinculada tanto às 63
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

crendices quanto às questões da memória e da transmissão de saberes e fazeres de geração


a geração que possibilitam permanências culturais em contextos adversos. Seus Bastidores, de
1997, não se reportam explícita e diretamente à religião, mas à política, com suas linhas pretas
costuradas sobre pontos cruciais para a comunicação (garganta, boca, olhos) em imagens de
rostos femininos impressas sobre tecidos estendidos em bastidores de bordar, abordando os
interditos cotidianos às falas da mulher negra, tratando de amarras sociais, das impossibilidades
de expressão como artista, mulher, afro-descendente. Original, a visada de Paulino transita
entre o individual e o coletivo, articulando processos e modos da arte contemporânea com
problemas da inserção dos afro-descendentes na sociedade, alcançando, a partir de tópicos
de micropolítica, discussões macro. Uma obra recente, em progresso, postada no blogspot da
artista em janeiro de 2008, ajuda a delinear um caminho no qual a artista minimiza as referên-
cias individuais e acentua a revisão crítica de práticas pretéritas de exploração humana, sem
perder o foco na articulação entre afro-descendência e gênero, especialmente, o feminino.
Na instalação “sobre as mulheres negras que cuidavam dos filhos de seus senhores no Brasil,
durante o período da escravidão no Brasil” (PAULINO, 2008), fitas de cetim brancas fluem
dos seios de amas-de-leite do corpus iconográfico da escravidão no Brasil, cujas imagens estão
impressas em negro sobre tecidos presos à parede, para “alimentar” pequenas e transparentes
garrafas de vidro. Fios a vincular brancos e negros permanentemente: antes, durante a vigência
da escravidão e ainda hoje, quando descendentes daquelas mulheres aguardam reparação
histórica como modo de refluxo de energia vital antes forçadamente concedida. Instalação
que traz à mente a tela já citada de Lucílio de Albuquerque e as fotografias de cujas imagens a
artista se apropria, o que permite evidenciar como os diálogos sobre arte e problemática afro-
brasileira se têm valido de uma reflexividade sobre a vertente artística na qual se inserem.

Diálogos com a Pedra

Novos diálogos focados em tópicos religiosos e sociais das culturas afro-brasileiras foram
estabelecidos por alguns artistas, recentemente, no Rio de Janeiro, na realização do projeto
Intervenção Artística no Morro da Conceição, que Rafael Cardoso propôs em resposta ao
Edital Arte/Patrimônio, lançado em 2007 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional para fomentar propostas de reflexão sobre o patrimônio cultural brasileiro pelas
artes contemporâneas. A partir de sua curadoria, 18 artistas criaram ações temporárias e
específicas para espaços públicos do Morro, promovendo a interação entre artistas e comu-
nidade do local. Entre as intervenções realizadas em 12 e 13 de abril de 2008, quatro foram
direta ou indiretamente vinculadas a questões da cultura afro-brasileira: Hidraera, de Davi Cury,
Até onde o mar vinha, Até onde o rio ia, de Guga Ferraz, Tombamento, de João Modé, e a instau-
ração sem título de Marcos Chaves, ao serem pensadas para a Pedra do Sal.

Localizada no sopé do Morro da Conceição, no bairro da Saúde, na área central do Rio de


Janeiro, a Pedra do Sal foi local de chegada e permanência de africanos e afro-descendentes,
estando vinculada à diáspora africana, à escravidão e à migração interna, sobretudo da Bahia
para o Rio de Janeiro no século XIX. Em torno dela se constituiu uma comunidade funda-
mental nas histórias das religiões afro-brasileiras e do samba. Por ser um “testemunho cultural
mais que secular da africanidade brasileira”, no dizer de Ítalo Campofiorito (CAMPOFIORITO
apud FERRAZ, 1997, p. 336), em 1984 a Pedra do Sal foi tombada pelo Instituto Estadual do
Patrimônio Cultural. Seu processo de tombamento é paradigmático, pois, segundo Eucanaã
Ferraz,“ao incluir em sua lista de bens a serem protegidos um ‘monumento negro’, a instituição
reavaliava o papel dos negros como produtores de bens culturais e, simultaneamente, procedia
64 à crítica de seus pressupostos teóricos” (FERRAZ, 1997, p. 336).
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Valendo-se dos cruzamentos sensoriais da arte contemporânea, a intervenção de Guga Ferraz


instaurava uma sonoridade plástica ao se compor de duas caixas que amplificavam sons inusi-
tados. Quem chegava à Pedra vindo de cima, descendo o caminho curvilíneo do Morro, ou
de baixo, dobrando as esquinas próximas, se surpreendia com o som de ondas marítimas
quebrando em pedras. Assim, o artista lembrava-nos que a Prainha, que dá nome ao largo
contíguo, anteriormente chegava até a Pedra do Sal, fazendo-nos reavaliar os sucessivos aterros
que afastaram a orla da cidade de seus limites naturais.

No processo de redesenho urbano, a Pedra não saiu ilesa, pois foi ocupada e parcialmente
destruída pela especulação imobiliária. Hoje, diferencia-se bastante da imagem aprazível que
tem do desenho rememorativo da Pedra, no fim do século XIX, feito por João da Baiana em
1947. Exatamente no Largo cujo nome homenageia esse grande sambista, situado na base da
Pedra do Sal, João Modé armou uma banca para apresentar seu projeto, que joga com a ambi-
güidade do termo tombar e tenta minimizar os estragos feitos na Pedra do Sal. Nessa banca,
com estudos, gráficos, fotos, maquetes e conversas, ele apresentou sua proposta: demolir o
edifício construído sobre parte da rocha e que a oculta do entorno, reconstituir sua topografia
e criar um espaço público, prolongando o referido Largo.

Desenhando um arranjo tricolor e tridimensional de mangueiras conectadas em casas da vizi-


nhança para capturar água e liberá-la na rocha, Davi Cury também tinha um sentido crítico e
poético. Era simbólica sua lavagem. Quem esperava jorros intensos de água sobre a Pedra do
Sal surpreendeu-se com os discretos filetes que rolaram sobre sua pele, fazendo emanar um
vapor, uma suave quentura com cheiro próprio, que evocou o antropomorfismo entranhado
naquela rocha, levando a pensar em dor e sofrimento afro-descendentes, mas não só neles.

Marcos Chaves também realizou uma intervenção pensando nos negros que penaram na Pedra
do Sal. Assim, distribuiu velas de citronela (em função do surto de dengue que assolava a
cidade) para que as pessoas presentes as acendessem sobre a rocha em memória dos que ali
padeceram. No anoitecer, o arranjo casual e movente de pessoas e pontos amarelos e lumi-
nosos instaurou um clima evocativo das práticas religiosas no local.

Da rememoração à homenagem, em tom crítico, solene, lúdico e/ou irônico, essas interven-
ções abrem questões. Permitem pensar na ampliação dos processos e das modalidades da arte
contemporânea, no manancial de leituras e ações latentes no patrimônio cultural afro-descen-
dente e em como os diálogos artísticos com as culturas afro-brasileiras se concentram nas
religiões e, secundariamente, na problemática social.

Ao analisar os sentidos presentes no tombamento da Pedra do Sal, Eucanaã Ferraz diz que
“Sua presença na cidade é fundamental porque resistiu, e resiste, a todas as significações que
lhe emprestamos” (FERRAZ, 1997, p. 339). Tal fato nos obriga a pensar como a Pedra resiste
aos diálogos abertos pelos artistas que com ela conversaram no projeto Intervenção Artística
no Morro da Conceição e como essa resistência da Pedra é paradigmática da resistência da
problemática afro-descendente no Brasil diante das investidas atuais dos artistas.

Riscos (afro-brasileiros) para a arte e a crítica

Do que foi apresentado até aqui, é possível afirmar que não é tranqüilo o processo de diálogo
entre arte e afro-brasilidade. Assim como a condição social dos afro-descendentes continua
sendo injusta, revoltante, os modos como é pensada podem reincidir em mitos, estigmas e 65
caricaturas, ou seja, o campo é minado.
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

A partir da expressão “macumba para turista”, que designa simulações de coisas e práticas reli-
giosas afro-brasileiras, ações “para inglês ver”, podemos perguntar se os diálogos artísticos não
se resumem por vezes a “macumba de artista”: explorações dessas religiões, ainda um tanto
exóticas, com vistas a alcançar efeitos estéticos e/ou artísticos. Com certeza, a recorrência de
obras vinculadas às religiões afro-brasileiras é significativa, pois participa de um movimento de
resposta ao processo persistente de ameaça e marginalização destas, contribuindo para outro
tipo de visibilidade pública, de incorporação social delas. Entretanto, a estetização artística
dessas religiões não deixa de ser, por um lado, uma dimensão da espetacularização em curso
há algum tempo no meio de artes, enquanto, por outro lado, se conecta à “hipertrofia ritual
das religiões afro-brasileiras” graças à ênfase nos aspectos mercadológicos e estéticos desses
cultos (PRANDI, 2000).

De modo semelhante, pode-se pensar em que medida os diálogos focados na problemática


social afro-descendente no Brasil se constituem como “ativismo de artista”: ações políticas
circunscritas ao âmbito artístico sem pretensão de interagir com as demais forças do campo
político. O que estaria conectado no dito “a(r)tivismo” (MONACHESI, 2003) seria uma moda-
lidade atual, auto-restrita, da arte panfletária, da arte social que Rodrigo Naves qualificou
“como uma simples tradução visual de uma sociologia de fancaria” (NAVES, 2007, p. 184).
Com certeza, as realizações nessa tendência estão conectadas ao momento brasileiro atual,
contribuindo para a maior visibilidade da questão da negritude na sociedade, mais ou menos
engajadas às políticas afirmativas para afro-descendentes. A questão não é só medir se a arte
consegue efetivamente agir e transformar o campo social para além de si, mas perceber como
se procura, atualmente, revigorar as modalidades de ação política a partir da arte.

Sem pretenderem seus trabalhos como arte religiosa ou ação política, os artistas correm o
risco de reduzi-los a ilustrações de temas religiosos e políticos. O desafio enfrentado com
maior ou menor sucesso pelos artistas é, tentando responder artisticamente à problemática
sociocultural afro-brasileira, sem produzir obra sacra, ou panfleto artístico, embora por vezes
se constituindo como realização engajada religiosa e/ou politicamente, alcançar o estatuto
poético-crítico da arte na contemporaneidade.

Uma fala de Ronald Duarte explicita o dilema: “Penso que o processo de construção dessa
nova cartografia (simbólica) se dá através de uma constante negociação com o sistema de
poder, seja ele político, cultural ou econômico, sendo que essa negociação acontece no limite
da ética e com o maior rigor estético possível” (DUARTE, 2008). A imagem que surge é, obvia-
mente, a do fio da navalha entre ética e estética.

Dinâmica e riscos aos quais críticos e historiadores não estão imunes, nem têm garantias de
enfrentar e sair ilesos. Assim como os artistas, também quem se dedica a pensar a produção
artística que dialoga com a problemática afro no Brasil pode recair em condescendências, inge-
nuidades, em nome da fé ou da causa negra. O que permitiria falar em “macumba de crítico”,
“ativismo de historiador”, na história como reles exploração do exótico, na crítica como mera
denúncia de injustiças sociais, o que seria pernicioso para todos os elementos e campos envol-
vidos. Contudo, os diálogos entre arte e problemática social afro-brasileira constituem uma
vertente na produção de arte no Brasil hoje, à qual a crítica e a história da arte não podem se
furtar de pensar e fruir.

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Nota
¹ Dois exemplos. Em Às Três Raças, da década de 1930, Belmonte ilustra com planos graficamente recor-
tados os preconceitos da época: o africano é um guerreiro cabisbaixo, cujas armas pouco se diferenciam
de seu corpo – indícios da fraqueza de sua cultura, vista como primitiva –, e está subjugado pela caravela
portuguesa – signo da potente cultura tecnológica européia –, pela montanha e pelo indígena – símbolos
da natureza pujante e atemporal americana. No Monumento às Três Raças, situado no centro da Praça
Cívica de Goiânia, feito por Neuza Fernandes em 1966, o tom é outro, celebratório da união: o mito
da pátria em construção pelo labor coletivo das três etnias é representado pela soma de esforços
masculinos que erguem uma coluna. Essa união ainda pressupõe, contudo, desigualdades, dominâncias.
O africano aparece novamente a meio caminho entre a natureza e a cultura, pois enquanto, ao centro, o
homem branco aparece vestido com calças compridas, o negro está com uma calça arregaçada à altura
dos joelhos e o índio surge praticamente nu.

Referências
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Sites
www.santoforte.com.br
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10 apontamentos sobre arte contemporânea e pesquisa
10 notes on contemporary art and research

Sandra Rey *

Resumo
O artigo apresenta notações sobre especificidades da pesquisa em arte colocando em foco certas particularidades na
abordagem conceitual do texto do artista. Os apontamentos, assim intitulados por sua natureza processual e cons-
tante reelaboração, buscam afinar percepções que amparem o artista-pesquisador na construção de uma metodologia
própria para abordar seu objeto de estudo, que se constitui um processo, não um objeto acabado.
Palabras clave: arte contemporânea. pesquisa. criação. escrita.

Abstract
The article provides notations about specifities of the art research, putting into focus certain peculiarities in the conceptual
approach of the artist’s text.The notes, thus entitled by its procedural nature and constantly redesigning, seek to sharp percep-
tions that support the artist-researcher in the construction of its own methodology to address the object of study, which is a
process, not a finished object.
Keywords: contemporary art. research. creation. writing.

Apontamento 1

Por que vincular produção de arte com pesquisa?

Constatações
• Na arte contemporânea os limites entre arte e não-arte são fluidos, sendo grande parte das
propostas marcada pela ausência de fronteiras entre arte e vida.
• Museus e galerias não se constituem mais como lugares privilegiados de veiculação das obras
de arte. A arte imuscui-se nas mais prosaicas esferas da vida cotidiana — os artistas conta-
minam seus processos criativos com informações, técnicas, conceitos e conhecimentos de
outras áreas de conhecimento.
• As produções de arte contemporânea envolvem atitudes ambíguas que se opõem ao moder-
nismo das primeiras décadas do pós-guerra. É uma tentativa de aludir, em termos simbólicos, a
um momento da cultura, dos problemas, complicações e convulsões do nosso tempo.
• Não podemos abordar a arte contemporânea como uma corrente estética ou como se fosse

* Doutora em Artes e Ciências da Arte pela Universidade de Paris I, França. Artista multimídia. Professora da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul, atua principalmente nos seguintes temas: reflexões metodológicas sobre processos
de criação artística nos textos de artistas e abordagens teóricas que envolvem a fotografia, multimídia, arte e tecnologia.
Editora da Revista Porto Arte. Coordena o grupo de pesquisa com diretório no CNPq Processos Híbridos na arte
68 contemporânea. Coordena o Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS. sandrareybrb@yahoo.fr
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

um conceito preciso: não se trata de uma corrente, nem de um estilo, nem de escola.
• Muntadas : “É preciso romper os limites das disciplinas para romper com os limites do
pensamento”.

Decorrências:
• Dificuldades de consenso quanto à noção de arte contemporânea e as fronteiras que deter-
minam as práticas artísticas.
• A arte contemporânea não se contém nos limites das disciplinas ou das categorias da arte.
• Não existe nenhum conjunto de regras pelo qual a produção se possa pautar, se opor ou se
contradizer.
• Na concepção de seu projeto, o artista deve conceber os dispositivos que regulam o trabalho
e asseguram a eficácia na relação com o campo da arte e com o espectador.

Apontamento 2

Delimitações do campo de pesquisa


• Na arte contemporânea, a produção artística e a reflexão teórica avançam cruzando seus
campos epistemológicos, delimitando zonas de confluência.
• A pesquisa em Artes Visuais, desenvolvida em ambiente universitário, organiza-se a partir
de dois eixos fundamentais: pesquisas cujo objeto enfocam obras acabadas e pesquisas sobre
processos de criação.
• Como se cruzam os campos epistemológicos das duas pesquisas?

Os três campos epistemológicos: Poiética, Poética e Estética efutuam constantes trocas e retro-
alimentam-se constantemente. O artista constantemente busca subsídios na poética e na esté-
tica em seus processos criativos; o crítico e historiador, além de se ater às disciplinas próprias
ao seu campo, busca ampliar seu entendimento das obras no campo da poiética e da poética. 69
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Apontamento 3

De que maneira pode o artista fazer avançar procedimentos de par com reflexão?
• Conceitos e modos operatórios estabelecem processos dialéticos: ao trabalhar idéias e
conceitos, o artista concebe o modo operatório para o desenvolvimento de seu projeto. Mas
não se pode descartar o caminho inverso: nos procedimentos são identificados conceitos
(operatórios) que serão investigados por um viés teórico e a posteriori poderão alimentar os
procedimentos artísticos.

Apontamento 4

A operacionalidade dos conceitos; a conceitualidade dos procedimentos


• Desvios, deslocamentos, repetições, apropriações, sobreposições, justaposições e cruza-
mentos constituem procedimentos de instauração nos processos artísticos tão válidos quanto
qualquer aparato técnico que deu sustentação às práticas da pintura ou da escultura durante
quatro séculos.
• A produção artística contemporânea carrega consigo a necessidade de interrogar sua natu-
reza epistemológica para examinar sua validade.

Apontamento 5

Que limites podem delinear a diferença entre o texto do artista e o texto do crítico?
A escrita do artista
• Que parâmetros podem pautar a escrita do artista?
(A escrita do artista é uma análise que se instaura a partir do ponto de vista da criação. O
artista está sempre do lado do processo: na criação da obra e na escrita.)
• Deve o texto do artista ser concebido como um reflexo do trabalho prático ou este avan-
çaria interrogando os critérios de sua própria validação?
(O texto do artista será tanto mais relevante na medida em que este souber colocar o trabalho
nos critérios de validação e de invalidação de sua prática.)
• No caso de uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado, em que medida deve esse
texto se submeter às normas da Academia e em que medida deve transgredi-las?

Apontamento 6

Qual o estatuto dos conceitos na produção artística contemporânea?


• Idéias: uma idéia é uma representação da mente. É um objeto interior que se apóia e se
constrói por meio de imagens difusas e oníricas. Uma idéia só existe quando expressa, senão
permanece como uma elaboração mental e fugidia.
• Conceitos: algo concebido pela mente, pelo pensamento; noção que abarca várias coisas
parecidas, derivadas do estudo de exemplos particulares.
70 • Procedimentos: conjunto de ações que conduzem o processo criativo.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

Apontamento 7

Os conceitos como ferramentas da subjetividade


• Facilitam o diálogo ao estabelecer uma linguagem comum. São representações abstratas
de um objeto, porém, como acontece com todas as representações, por si só não são nem
simples nem suficientes.
• Os conceitos distorcem, desestabilizam e deformam o objeto.
• Utilizar os conceitos para etiquetar, isto é, declarar que uma imagem é uma metáfora, uma
história ou qualquer outra coisa é um ato que não serve para grande coisa.
• Os conceitos são, ou melhor dizendo, fazem muito mais. Se os colocarmos em trabalho exami-
nando-os com profundidade, impulsionam os processos criativos, facilitam a análise do objeto e
de situações; funcionam como âncoras para estabelecer relações com o campo teórico.
• Os conceitos podem ser enormemente produtivos para as artes visuais.
• Os conceitos, no processo de instauração do trabalho de arte, não estão fixos nem isentos
de ambigüidade.
• Os conceitos também não se submetem a nenhuma legislação metodológica claramente deli-
mitada, mas se apresentam como um território a explorar com um certo espírito aventureiro.

Apontamento 8

Ambigüidades e contradições no trabalho com os conceitos


• Para que os conceitos sejam fundamentais para o entendimento intersubjetivo, necessitam,
num primeiro momento, ser claros e definidos.
• Se claros e definidos, permitem articular um certo entendimento sobre as implicações das
ações e dos procedimentos que constituem o ato criativo, com o campo da arte e campos afins;
permitem estabelecer relações com obras contemporâneas ou da história da arte, expressar
uma interpretação, controlar uma imaginação desenfreada e promover un debate fundamen-
tado em terminologias comuns e na conciência de suas ausências e exclusões.
• Isso não é tão fácil quanto parece, uma vez que os conceitos são flexíveis: deslocam-se e
distorcem-se no processo de instauração da obra.
• Diante das condições dos processos artísticos contemporâneos, os conceitos realizam uma tarefa
metodológica anteriormente ao encargo das tradições disciplinares, porém sob outras condições:
ao invés de normativos, demandam submeter-se ao escrutínio constante para avaliar sua pertinência
em face dos eventuais deslocamentos da proposta operados durante o processo de criação.

Apontamento 9

Escritos de artistas: dificuldades epistemológicas


• Uma vez que os escritos de artistas são elaborados a partir desse lugar que pertence
somente ao artista — o processo de criação —, por essa via enfrenta outra dificuldade epis-
temológica, que consiste no fato de que seu objeto não se encontra completamente consti-
tuído no tempo. É preciso levar em conta que as idéias se deslocam durante o processo de
criação, conseqüentemente é preciso avaliar constantemente a pertinência do mapeamento de
conceitos envolvidos na produção.
• Os escritos do artista não são meramente descritivos, levam em conta que os conceitos
quase nunca se utilizam da mesma forma, às vezes são programáticos durante certo tempo
para em seguida se desativarem ou perderem sua validade.
• Mas o importante é que permitem trazer à luz problemas subjacentes ao campo artístico e
podem provocar reflexões e debates em diversos níveis das ciências humanas. 71
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Apontamento 10

Estatuto do texto do artista


• Os escritos de artistas circunscrevem as condições e tecem considerações sobre os dispo-
sitivos adotados na instauração do trabalho de arte, indicam o mapeamento de referências no
campo da arte e suas incursões interdisciplinares, fornecem dados para espectadores e para os
teóricos identificarem a eficácia do pensamento que a obra pretende materializar.
• Os conceitos, no texto do artista, se bem trabalhados por um viés teórico e transdisciplinar,
servem para revelar aproximações e diferenças históricas e culturais. Nessas condições, os
conceitos passam a desempenhar a função de ferramentas no processo de instauração do
trabalho de arte, tanto quanto o pincel ou o formão o foram para a arte de outrora.
• Certamente não se constitui como objetivo dos escritos de artistas a interpretação do
próprio trabalho, mas sua existência e divulgação contribuem com elementos para a compre-
ensão dos processos mentais e simbólicos envolvidos na obra acabada.

Referências
BRITES, Blanca; TESSLER, Elida (Org.). O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em
artes plásticas. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. O que é filosofia? Lisboa: Editora Presença, 1992.
DUCHAMP, Marcel. Le processus créatif. Paris: l’Echoppe, 1992.
MORIN, Edgar. O método 3: conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir da Silva.
Porto Alegre: Sulinas, 2005.
FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecilia (Org.). Escritos de artistas, anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2006.
GROUPE DE RECHERCHES ESTHETIQUES CNRS. Recherches Poïétiques,Tome I. Paris: Kinckli-
sieck, 1975.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. O meio como ponto
zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002
(Coleção Visualidade).
__________. Cruzamentos entre o real e o (im)possível: transversalidades entre o “isso foi”
da fotografia de base química e o “isso pode ser” da imagem numérica. Revista Porto Arte. , v.13,
p. 37-48, 2005.
­­__________.A instauração da imagem como dispositivo de ver através. Revista Porto Arte, 2004.

72
Depois do moderno e em plena contemporaneidade, o desafio de pensar a
arte brasileira do século XIX
After modernism, and from our contemporary times: the challenge of
thinking about 19th century Brazilian art

Sonia Gomes Pereira *

Resumo
Este artigo pretende discutir algumas questões relevantes na retomada atual dos estudos sobre a arte brasileira do
século XIX. Partindo da premissa de que com a superação da historiografia modernista é possível reavaliar criti-
camente aquela produção de forma mais consistente, o artigo enfoca três conceitos básicos para essa reavaliação
historiográfica: a designação de acadêmico e as noções de estilo e narratividade.
Palabras clave: Arte brasileira. século XIX. acadêmico. estilo. narratividade.

Abstract
This article focus on some important discussions about the ultimate retaking of the Brazilian 19th art´s studies. It begins with
the premise of the overcoming of the modernist point of view and intends to enlarge the analysis of this period, discussing three
major concepts: the designation of academic and the notions of style and narrative.
Keywords: Brazilian art. 19th century. academic. style. narrative.

Os estudos sobre a arte brasileira do século XIX e início do século XX estiveram estagnados
durante bastante tempo em função dos estigmas que lhe foram lançados pela crítica moder-
nista. É justamente a partir dos anos 1960 e 1970, quando se consolidam as críticas ao moderno
e novos paradigmas de análise da contemporaneidade, que tem sido possível repensar aquele
período, tanto na historiografia européia e norte-americana quanto na brasileira.

Dessa nova leva de estudos realizados nas últimas décadas podem ser tiradas algumas cons-
tatações importantes. A primeira diz respeito à rejeição da visão dicotômica que prevaleceu
antes, dividindo a arte rigidamente entre vanguarda e academicismo. Vários trabalhos vêm
demonstrando que as fronteiras entre essas duas categorias nunca estiveram demarcadas de
forma absolutamente nítida; ao contrário, os limites são muitas vezes movediços na prática dos
artistas, apesar do discurso sobre a arte caminhar freqüentemente para a radicalização.

* Sonia Gomes Pereira é professora titular de História da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Fez o mestrado na Universidade de Pennsylvania, nos Estados Unidos, o doutorado na UFRJ e o pós-
doutorado em Paris. É autora de livros, como a Reforma urbana Pereira Passos e a construção da identidade carioca
(1998) e A arte brasileira do século XIX (2008), além de vários capítulos de livros e artigos de revistas em geral sobre
a arte brasileira do século XIX e início do XX. Nos últimos anos, tem-se dedicado, em especial, à pesquisa sobre a
formação do artista, sobretudo a partir do acervo da antiga Academia Imperial do Rio de Janeiro, conservado no
Museu D. João VI da EBA/UFRJ. sgomespereira@gmail.com 73
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

A segunda constatação importante refere-se à compreensão do século XIX não como um


período de transição para a modernidade, mas, sim, já efetivamente moderno, uma vez que
ali já se encontram todas as características essenciais de uma sociedade convivendo com as
mudanças provocadas pela Revolução Industrial e com as idéias liberais após a Revolução Fran-
cesa. No entanto, nesse período, o moderno é pensado de forma diferente, de maneira plural
e na maioria das vezes sem ruptura com a tradição – ao contrário do que acontecerá, mais
tarde, depois da Guerra de 1914, quando o rompimento com o passado passará a ser um dos
alicerces do pensamento moderno.

A terceira constatação volta-se para o reconhecimento da dificuldade de se continuar lidando


com a arte do século XIX utilizando certos conceitos e critérios – muitos deles cristalizados
posteriormente com um significado diferente do que tinham na época. Aqui, neste artigo,
vamos examinar alguns deles: a designação de acadêmico, a noção de estilo e a questão da
narratividade.

Repensando a questão do academicismo

O primeiro conceito problemático é o de acadêmico. No início de sua existência durante o


Renascimento, a maior preocupação das academias européias era a consolidação de uma nova
posição para as artes plásticas, tirando-as da posição inferior que tinham até então como
atividades mecânicas e reivindicando a postura superior de artes liberais, como a poesia e a
música. Para essa ascensão, era preciso que o artista fosse um intelectual, quer dizer, que sua
obra mecânica tivesse origem numa atividade espiritual – como indica a famosa afirmação do
pintor italiano Leonardo da Vinci de que “a pintura é uma coisa mental”.

Certamente, até o século XIX houve uma grande aproximação entre as academias e o clas-
sicismo, isto é, a preservação das idéias da Antigüidade greco-romana, que entendiam a arte
como imitação da natureza. Imitar a natureza significava que a arte deveria seguir as mesmas
leis eternas e imutáveis que regiam a organização do mundo. Ordem, equilíbrio, harmonia,
serenidade seriam, portanto, os objetivos maiores dos artistas.

No entanto, nos meios acadêmicos, se havia consenso em torno de alguns pontos fundamen-
tais – tais como a supremacia do desenho sobre a cor –, em muitos outros pontos doutriná-
rios as polêmicas eram freqüentes, indicando a dificuldade em normatizar o verdadeiro sentido
da palavra classicismo. A diversidade das obras antigas e as divergências entre escritos teóricos
e os levantamentos de ruínas estavam sempre impondo limites às doutrinas e evidenciavam
aquilo que tem sido mostrado pelos historiadores recentes: que a memória do passado é, na
verdade, uma construção do presente, e que o classicismo, entendido como um corpo rígido e
coeso de idéias e formas, existia apenas na cabeça desses teóricos e artistas acadêmicos.

A produção artística acadêmica, portanto, nunca foi uniforme e nem sempre acompanhou rigida-
mente a teoria que lhe dava sustentação. Mas certamente as polêmicas e a defasagem entre teoria
e prática tornaram-se maiores no século XIX. Muitos fatores podem ser apontados para essa
maior problematização do sistema acadêmico nessa época, mas o que parece ser o fator primor-
dial encontra-se na própria crise do pensamento clássico. Acima das divergências de fontes e de
interpretações, o classicismo estava ancorado basicamente na concepção de um mundo ordenado
por leis imutáveis e eternas – idéias abaladas, a partir do século XVIII, por novos conceitos, como
o evolucionismo e o historicismo. A partir de então, o mundo passava a ser visto em constante
74 transformação, e os valores, encarados como relativos à cultura de cada época.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

Freqüentemente, os estudiosos da arte do século XIX escreveram uma história polarizada


entre modernos e acadêmicos. Acreditavam que essas discussões perturbadoras sobre o
rompimento entre arte e classicismo tivessem sido prerrogativa exclusiva dos artistas dissi-
dentes, que assim, fora das academias, anunciavam as futuras vanguardas da modernidade. No
entanto, pesquisas mais recentes vêm mostrando que essas discussões estavam também nas
academias, gerando polêmicas e conflitos em termos doutrinários e uma grande diversidade na
prática artística. Dessa forma, o campo artístico do século XIX revela-se muito mais complexo,
em que modernos e acadêmicos se interligam, configurando inúmeras nuanças que precisam
ser examinadas pontualmente.

Outro ponto fundamental que deve ser destacado sobre o academicismo diz respeito à
relação entre a doutrina e o método de ensino. Sabemos que a doutrina acadêmica sempre
enfatizou a importância do desenho na constituição da obra de arte, motivando sua prioridade
na formação do artista. Mas é preciso enfatizar que o desenho é tomado aqui não apenas como
técnica, mas, sobretudo, como projeto inicial da obra. Mantinha-se intacto, portanto, o conceito
forjado durante o Renascimento de que as artes visuais eram precedidas por uma idéia, e era
exatamente este a priori mental que justificava a reivindicação de reclassificá-las como liberais,
e não mais como mecânicas, como se fazia até então (PANOFSKY, 1994).

O método de ensino acadêmico explicitava este processo de trabalho, com duas etapas claramente demar-
cadas: a primeira, em que se concebia a idéia da obra, e a segunda, com sua concretização técnica.

Na École des Beaux-Arts de Paris, todo o sistema de ensino se concentrava na realização e no


julgamento de concursos a que se submetiam os alunos. Todos esses concursos, tanto os mais
simples – como os concursos mensais de emulação – quanto os mais complexos – como o
concurso anual do Grand Prix de Rome – se estruturavam da mesma maneira: na primeira fase,
o aluno, isolado numa cela na École, fazia um esboço com sua solução ao problema proposto
para o concurso; depois, na fase seguinte, desenvolvia a idéia inicial chegando à obra final, que
era entregue para julgamento. A primeira tarefa do júri era compará-la com o esboço inicial: se
o aluno se tivesse afastado da idéia original, era imediatamente desclassificado.

Fica evidente que esse método de ensino pretendia desenvolver nos alunos a capacidade
conceitual em primeiro lugar e que o desenho estava diretamente ligado à idéia da obra – inde-
pendentemente do tratamento plástico que a obra pudesse receber na sua etapa seguinte.
Apesar de existir desde o Renascimento, esse procedimento tornou-se mais geral no século
XIX, com a expansão do ensino artístico acadêmico e sua internacionalização, de tal maneira
que é possível afirmar que nessa época praticamente todo artista – pelo menos no mundo
ocidental – era treinado para proceder dessa forma.

Logicamente esse método de ensino apresentava limitações evidentes. A mais importante era,
sem dúvida, a facilidade com que os alunos podiam recorrer a idéias já consagradas – verda-
deiros estereótipos, que eram treinados nos ateliês e repetidos indefinidamente. A “acade-
mização” generalizada no século XIX estava, em boa parte, implícita na própria metodologia
de ensino. Ao mesmo tempo, a demonstração do talento – e sua conseqüente consagração
– muitas vezes ficava evidenciada logo no primeiro esboço, portanto na idéia. Não deixa de
ser interessante pensar na repercussão desse tipo de treinamento conceitual do artista para o
desenvolvimento futuro de algumas das vanguardas modernas, apesar da ruptura do impressio-
nismo e sua condenação de vários dos elementos constitutivos dessa metodologia de ensino:
o esboço a priori e a obra dentro do ateliê (PEREIRA, 2003). 75
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Mudanças no conceito de estilo

Outro conceito problemático nessa revisão historiográfica da arte do século XIX é a questão do estilo.

Toda a discussão de estilo entre os antigos pertencia ao campo da retórica, que analisava,
sobretudo, a escolha das palavras e sua pertinência às diferentes ocasiões, seguindo a doutrina
do decorum, mas essas noções espalharam-se para outros campos, como a música, a arquite-
tura e as artes plásticas.

A partir do Renascimento, os termos estilo, maneira e gosto apareceram com maior freqüência,
alternando-se com significações praticamente simétricas, desde Vasari até Winckelmann.

É interessante analisar como Vasari (1550) entendia estilo. Ele atribuía à maniera uma varie-
dade de significados, tanto para identificar um artista ou grupo de artistas quanto um período
cronológico, mas certamente a questão de um estilo nacional estava fora de suas preocupa-
ções. Imprimia à sua teoria do belo ideal um sentido de continuidade, em analogia à natu-
reza. Assim, organizava as biografias dos artistas numa seqüência que evidenciava uma lógica
interna: sua concepção de que a arte seguia o mesmo ritmo dos seres vivos, passando pelo
processo de infância, maturidade e declínio. Estando Vasari convencido da finalidade da arte
como construção do belo ideal, seu maior interesse voltava-se logicamente para a fase do
apogeu, que ele localizava nos romanos, entre os antigos, e em Michelangelo, entre os seus
contemporâneos.

Winckelmanni¹ retomava várias das posições deVasari. Sua teoria também repousava na procura
do belo ideal. Entendia igualmente a arte como um processo contínuo, seguindo o ciclo vital de
desenvolvimento na natureza. Mas, em outros pontos, sua postura diferia totalmente de Vasari.
Considerava que o padrão mais alto de beleza havia sido alcançado pelos gregos, e não pelos
romanos, como defendia Vasari, acompanhando, assim, o interesse crescente pela Grécia entre
seus contemporâneos.

A valorização dos antigos como os povos que tinham atingido o mais alto grau de perfeição
na construção do belo ideal era uma unanimidade entre praticamente todos os artistas e
teóricos desde o Renascimento. Mas quase todos localizavam essa fase áurea da Antigüidade
entre os romanos, como vimos no exemplo de Vasari. No século XVIII, sobretudo entre os
românticos alemães, cresceu o interesse pela Grécia. Gerd Bornheim chama atenção para o
isolamento em que a Alemanha tinha vivido até então em relação à cultura latina, propiciando,
em muitos casos, um verdadeiro sentimento de inferioridade cultural. Winckelmann tinha
uma necessidade imperiosa de afastar-se de seu país, pois se dizia incapaz de suportar a sua
“terrível e deprimente paisagem”. Sofria de uma “perene e insubstituível nostalgia – quase
mórbida – pelo sol mediterrâneo”. Também Goethe compartilhava do mesmo sentimento
pelos gregos: em sua viagem à Itália, fez questão de dirigir-se até as “praias da Sicília, onde,
de pé, nas margens do Mediterrâneo, voltado para a Grécia, recitava os versos de Homero”
(BORNHEIM, 1998).

Winckelmann explicava o gênio grego pela influência do clima:“Minerva escolheu por residência
de seu povo favorito o clima aprazível da Grécia como o mais apropriado aos progressos do
espírito e do gênio, graças à temperatura amena e ditosa que reina ali durante as diferentes
estações do ano” (BORNHEIM, 1998). Não foi o inventor dessa teoria que relacionava a
76 cultura ao meio geográfico, pois a idéia da influência do clima sobre a cultura dos povos já tinha
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

sido formulada antes – aparece, por exemplo, em Montesquieu em L’esprit des lois de 1748 e,
diretamente relacionada à atividade artística, já havia aparecido em 1719 em Refléxions critiques
sur la poésie et la peinture, do padre Du Bos (BAZIN, 1989, p.111-115) –, mas essa relação
tomou, em seu sistema, um relevo significativo.

No entanto, em outro aspecto, a abordagem de Winckelmann era completamente inovadora


e teve uma enorme repercussão no desdobramento futuro das teorias sobre arte: não consi-
derava a arte grega em isolamento, mas, sim, no contexto da civilização grega tomada como
uma totalidade. Um século antes de Winckelmann, já aparecera uma história das artes: em
1698 Pierre Monier escrevera a Histoire des arts qui sont rapport avec le dessin divisée en trois
livres, où il est traité de son origine, de son progrès, de sa chute et de son rétablissment, incorpo-
rando vários povos, numa seqüência de egípcios, hebreus, babilônios, gregos, romanos, deca-
dência da arte romana, gosto gótico, Idade Média e Renascimento. Entretanto, não há em
Monier o mesmo conceito de cultura global como em Winckelmann (BAZIN, 1989, p.56).

Portanto, ao se constituir como disciplina, a história da arte consolidou uma série de noções já
esboçadas anteriormente – como belo ideal, estilo, continuidade e analogia com o ciclo vital. A
elas acrescentou algumas idéias contemporâneas – tais como influência do clima, concepção de
povo e cultura e interesse pela história. Assim, imbricado nas noções de relativismo, evolução
e nacionalidade, o objetivo da história da arte concentrava-se em torno do conhecimento dos
estilos artísticos históricos e sua diferenciação regional (PEREIRA, 2005).

É preciso enfatizar que o objetivo maior da disciplina, nesse momento, era, sobretudo, o conhe-
cimento e a classificação do imenso acervo do passado – trazido pelas viagens arqueológicas
ou pelas campanhas militares, ou ainda proveniente das coleções reais – que passava a consti-
tuir os museus nacionais.

É importante notar, ainda, que a noção de estilo, nessa época, ficava circunscrita mais à questão
geográfica – características do local e do povo – do que propriamente à questão histórico-
cronológica, que era simplificada grosso modo na divisão entre antigos e modernos. Estilo signi-
ficava, então, a maneira particular de expressão plástica de um povo num determinado lugar,
reunindo características comuns que passavam a constituir a noção de escola, havendo sempre
o destaque de alguns artistas que eram identificados como grandes mestres.

A repercussão dessa concepção de estilos e escolas instalou-se plenamente no Brasil, com a


ação dos franceses na criação da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro, estando explícito
no projeto original de Lebreton (BARATA, 1959).Vamos examinar a concepção de história da
arte expressa por Félix-Émile Taunay, que foi professor de pintura de paisagem desde 1824 e
diretor da Academia de 1834 a 1851. As fontes teóricas do pensamento de Taunay são expli-
citadas num documento de 1842: Aristóteles, além de Winckelmann; “...tanto elle como outro
vosso contemporâneo a quem o illustre professor Cousin intitula sucessor de Winckelmann,
tratam da teoria das bellas artes independentemente do das letras...”, referindo-se a Victor
Cousin, criador do Ecletismo filosófico; quanto “ao sucessor de Winckelmann”, trata-se certa-
mente de Lessing, que escreveu o Laokoonte em 1766, estabelecendo a diferença entre pintura
e poesia e defendendo a autonomia da pintura.2

Taunay compartilhava com Winckelmann a crença na superioridade da arte grega e na atri-


buição ao clima dessa superioridade: “...a raça hellenica, a mais favorecida entre todas as asso-
ciações humanas, tanto pela pureza de sua origem como pelo clima em que floresceu...”.3 77
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Ou ainda:

Huma nação houve, a grega, que excedeu e excede a todas na cultura


das belas artes. Não foi esta superioridade filha de um desígnio formado;
foi resultado da organização especial de uma raça privilegiada, e não
menos do momento em que se constitui como nação do que do clima
do solo, enfim de todas as influencias de tempo e de lugar....4

Apoiado nessa concepção que relacionava arte e clima, Taunay chegava a prever um futuro
promissor para a arte brasileira: “Também climas rígidos nutrem grandes artistas, mas em geral
o verdadeiro viveiro deles são as regiões quentes... Estas verdades não sofrem controvérsias.
O clima e o povo são tais incontestavelmente premissas pode se dizer triviais!”.5

E referindo-se diretamente ao Brasil, afirmava:“A natureza do nosso clima, a índole poética dos
seus habitantes, a riqueza do Império, prometem a esta arte um desenvolvimento notável...”.6

Como os teóricos acadêmicos franceses,Taunay estabelecia uma espécie de genealogia em que


a herança dos gregos antigos passava para os italianos do Renascimento e depois para a França
a partir do século XVII:

Temos pois estes três povos, o grego, o italiano e o francês, entre os


quais nasce, se desenvolve e se conserva o bom gosto artístico... estu-
dando profundamente as feições salientes das suas nacionalidades e
conferindo-as com o caracter brasileiro ... este povo... deve se sobres-
sair e fazer se notável no mundo civilizado.7

A história da arte para Taunay era, portanto, o estudo das características peculiares das diversas
escolas regionais, destacando-se aí os artistas que melhor concretizaram essas feições. Para o
pintor, esse conhecimento era imprescindível, o que levou Taunay a traduzir em 1836 uma obra
inglesa sobre os mestres das escolas italiana, inglesa e francesa.8

Estilo, tipologia e retórica

É importante nessa discussão sobre estilo relacionar sua conceituação não apenas à influência
da retórica, mas também à noção de tipo, pois, como veremos a seguir, esses conceitos se
encontram freqüentemente imbricados nos discursos dos artistas e dos teóricos da época.

Na Sessão Pública de 1842, Taunay indicava com clareza as características das diversas escolas
artísticas e seus principais mestres:

...seja-nos suficiente mencionar Leonardo da Vinci, Peruggino, Gior-


gione, precursores das escolas de pintura Florentina, Romana e Vene-
ziana, como della forão fundadores verdadeiros os Michel Angelo
Buonarroti, Raphael Sanzi e Tiziano Vecelli. Todos três influirão umas
sobre as outras. A escola romana pedio emprestada muita força do
desenho à florentina e alguma sciencia do colorido a Veneziana: nem
esta deixou de se aperfeiçoar à vista das produções rivais: entretanto,
as três conservam um caráter bem distinto, análogo ao das individuali-
78 dades que presidião aos seus destinos. Quem representasse fielmente
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as feições moraes de Michel Angelo, de Raphael, de Tiziano daria a


conhecer as qualidades notáveis das suas escolas: o primeiro, triste, soli-
tário, de gênio altivo, austero e independente, apaixonado pelo grande; o
segundo, tenro, dócil, amável, apaixonado pelo belo; o terceiro alegre, social,
brilhante, apaixonado pela harmonia exterior e relativa. Temos a indi-
cação dos três merecimentos especiais, força de desenho e de claro
escuro na Escola Florentina, pureza de formas e de tons na escola
romana, brilho, suavidade e bela fusão de cores na escola veneziana...
Da escola romana nasce a alemã contemporânea; da florentina, a qual
se liga principalmente a estatuária moderna, nasce a escola francesa
com mestre Rosso e João Cousin; a veneziana modifica felizmente a
flamenga e se infunde na Hespanhola. Todas três ellas renascem com
novo esplendor na escola bolonheza. Annibal Carracci, chefe desta,
recebeu da natureza antes disposições enérgicas que brandas, e provavel-
mente teria imprimido outro sello que não a eclética maneira geral dos
seus adeptos, se não tivesse por collaboradores os seus irmãos e até
por mestre o seu primo Luiz Carracci, de gênio mais flexível e suave;
entretanto, addicionou aos meios da arte o da magia dos effeitos
geraes da luz, exagerado logo depois pelo Caravaggio. A mais bela
expressão da escola de que tratamos reside nas obras de Domenico
Zampieri, dito o Domenichino, victima durante a sua vida da inveja e
da calunnia: ao resto ella certamente offerece a colecção mais nume-
rosa de nomes ilustres da história das bellas artes: o Albano, o Guido,
o Guercino, o Pesarese, os Procaccini, e tantos outros; alguns delles
fundarão novas escolas mais ou menos chegados nos três tipos primi-
tivos: e não devemos esquecer a Genovesa, nem tampouco a Napoli-
tana, em certo sentido companheiro da Hespanhola.9 (grifos nossos).

A caracterização que Taunay faz das diversas escolas artísticas misturava elementos estrita-
mente pictóricos, tais como “a força do desenho”, “a sciencia do colorido” “claro escuro”, com
termos típicos da crítica literária, em especial da retórica, em que o estilo era definido pela
adequação à finalidade do discurso: “Triste, solitário, de gênio altivo, austero e independente,
apaixonado pelo grande”; “tenro, dócil, amável, apaixonado pelo belo”; “alegre, social, brilhante,
apaixonado pela harmonia exterior e relativa”.

Além disso, Taunay estruturava sua classificação em escolas com base em “três tipos básicos
de caráter distinto”. Esses tipos básicos – que o autor identificava em Michelangelo, Rafael e
Tiziano – eram formados por características tanto plásticas quanto retóricas.

É notória, nas citações anteriores, a mistura entre as noções de tipo e estilo. A tipologia era,
naquela época, um recurso historiográfico freqüente. A partir do século XVIII, tornaram-se
bastante comuns os levantamentos de monumentos históricos, agrupando-os por tipologias,
que tanto podiam ser ditadas pela função comum quanto pela recorrência a um mesmo padrão
formal. Certamente, esse procedimento foi sugerido pelos novos métodos científicos da época,
em que a exposição conjunta das espécies era fundamental para a identificação de semelhanças
e diferenças, levando à sua classificação.

Mas, apesar de decorrentes inicialmente de um conhecimento histórico, acabavam gerando


uma tipologia acima da história e da geografia, exatamente o contrário da noção de estilo. Pois 79
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

se o estilo era determinado temporal e espacialmente, tal não acontecia com o tipo, que se
ancorava em características comuns em termos de função ou partido. Diante dessas pranchas,
é como se o arquiteto tivesse exposto diante de si toda uma tradição arquitetônica à sua
disposição para ser reutilizada nos prédios contemporâneos. Sua exemplaridade avalizava as
escolhas do arquiteto e garantia a legitimidade de sua arquitetura.

Assim, a composição passava a ser entendida como a escolha do artista entre várias soluções
possíveis, tomadas dos modelos nobres da tradição européia, que constituíam uma verdadeira
tipologia. Nesse processo de retomada da tradição, é importante fazer aqui a distinção entre
tipo e modelo, estabelecida por Quatremère de Quincy (1788-1825) em meados do século
XIX e retomada por Argan (1973, p.29-36) nos anos 1960: o modelo é uma coisa, e o tipo é
uma idéia; somente o tipo e não o modelo deveria ser tomado pelo artista como referência
– conceito que aparece também nos escritos de Ingres (1989).

É provável que o mesmo processo de escolha tipológica ocorresse na pintura e na escultura,


só que nesse caso o conhecimento da tradição não chegou a ser codificado como na arqui-
tetura. Ele continuava a ser feito pela observação direta das obras, no caso das viagens, ou
por meio das cópias. Ou, ainda, quando da exposição conjunta dos trabalhos por ocasião dos
concursos escolares para o julgamento do júri (Fig. 1). Assim, a tipologia tinha de ser uma cons-
trução mental do artista, aproximando e colocando juntas obras de mesma temática ou com
recursos plásticos próximos. Mas aqui também a tipologia servia para disponibilizar ao artista
obras exemplares, que lhe serviriam para a escolha de um partido compositivo.

Por composição entendia-se muito mais do que a solução formal da obra. Logicamente, o resul-
tado formal do conjunto era muito importante, pois o artista deveria demonstrar a habilidade
em reunir os diversos elementos constitutivos da obra, atendendo às regras de proporção e
harmonia. Mas a composição envolvia também a adequação da solução formal ao tema, respei-
tando as exigências de natureza iconográfica para os diversos gêneros: religioso, mitológico,
alegórico, histórico, retrato, natureza-morta, paisagem entre outros.

Assim, a composição exigia do artista o conhecimento de toda uma tradição, compreendida,


sobretudo, pelos modelos antigos e do Renascimento, que ilustravam como os grandes mestres
resolveram os problemas de adequação da forma às características do tema. Isso implicava, em
termos de formação do artista, a necessidade de ver os modelos; daí o esforço de realizar,
sempre que possível, as viagens à Itália e de copiar aqueles modelos, seja in loco, seja por meio
de cópias pintadas, gravadas, esculpidas ou moldadas. As academias de arte, mesmo as mais
longínquas dos modelos europeus, sempre procuraram prover suas coleções desse material
didático, imprescindível nessa estrutura de ensino.

O termo tipo nem sempre aparece de forma explícita no caso da pintura. No entanto, é
possível reconhecer o mesmo significado sendo aplicado às escolhas do pintor, de acordo com
o caráter do tema. É o que acontece numa carta de 1647, em que Poussin explicava a diferença
de soluções formais em suas obras, argumentando que os temas tinham de ser representados
de uma maneira própria:

É nisso que consiste todo o artifício da pintura...Os gregos antigos,


inventores de todas as coisas belas, encontraram diversos modos por
meio dos quais eles produziram efeitos maravilhosos. A palavra modo
80 significa justamente a razão ou a medida ou a forma que utilizamos
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Figura 1.
Concurso para
o Grand Prix de
Rome em 1805
em Paris. Tema:
A Morte de
Demóstenes. Obras
dos concorrentes:
1- Boisselier
(vencedor);
2- Anônimo; 3-
Anônimo;
4- Rouget; 5-
Drölling;
6- Drölling. Fonte:
Grunchec, Philippe.
Les Concours des
Prix de Rome:
1797-1863. Paris:
École Nationale
Supérieure des
Beaux-Arts, 1986,
vol. II, p. 34.

81
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

para fazer alguma coisa...uma certa maneira, ou ordem, determinada


e firme, de acordo com o procedimento segundo o qual a coisa se
conserva em seu ser. Sendo os modos dos antigos uma composição
de várias coisas reunidas em um conjunto, de sua variedade nascia
uma certa diferença de modo, pela qual se podia compreender que
cada um deles retinha em si um não-sei-quê de variado, principal-
mente quando as coisas que integravam a composição eram reunidas
de maneira proporcional, de onde procedia o poder de induzir a
alma dos espectadores a paixões diversas. Decorre daí que os sábios
antigos atribuíam a cada modo a propriedade dos efeitos que deles
se originavam.10

Poussin passava, então, a descrever os modos gregos. O dórico era estável, grave e severo e
cheio de sabedoria. O frígio era agradável, alegre, mais sutil e mais incisivo, ou então impetuoso
e violento, sendo adequado aos temas de guerras. O lídio adequava-se às coisas desagradáveis,
pois era sem modéstia e sem rigor. O hipolídio continha uma certa suavidade e doçura que
enchia de alegria a alma dos espectadores; convinha a temas divinos, à glória e ao paraíso. O
jônico tinha uma natureza lúdica, representando bem danças, bacanais e festas.

Estilo, tipo, modo, maneira – todos são, portanto, formas de se referir a uma função comum à
retórica e à pintura: a questão da narração (PEREIRA, 2007).

A função narrativa da pintura

A preocupação com o efeito da pintura sobre os espectadores é evidente e enfatiza a função


narrativa da pintura, aproximando-a da poesia. Poussin refere-se explicitamente ao exemplo
dos poetas:

Os bons poetas usaram de grande diligência e de um maravilhoso arti-


fício para adaptar as palavras aos versos e dispor as sílabas segundo a
conveniência do falar.Virgílio o observou inteiramente em seu poema,
pois a seus tipos de falar, ele adapta o próprio som do verso com
habilidade (LICHTENSTEIN, 2005, p. 37).

A comparação entre a poesia e a pintura foi recorrente na teoria artística desde o Renasci-
mento, sobretudo após o Tratado de Pintura de Alberti. Remontava, na verdade, a uma longa
tradição, que nos foi transmitida por Horário no século I. Jacqueline Lichtenstein (2005, p. 10-
11) define com grande competência as razões da força e da permanência dessa doutrina:

A doutrina do Ut pictura poesis, tal como se constituiu no Renasci-


mento...baseia-se, na verdade, num erro de interpretação da frase...
“Ut pictura poesis erit”. Em Horácio, essa frase compara a poesia à
pintura ... um poema existe tal como um quadro. Dessa forma, a frase
cria um privilégio em favor das artes da imagem... Ao retomarem a
frase de Horácio, os teóricos do Renascimento inverteram o sentido
da comparação... Ut pictura poesis erit (a pintura é como um quadro)
tornou-se Ut poesis pictura (o quadro é como um poema). E foi ..
essa inversão de sentido que a tradição conservou, fundando uma
82 doutrina que ninguém ousaria realmente contestar antes da segunda.
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metade do XVIII, embora algumas reservas ou mesmo críticas tenham


se manifestado desde muito cedo [...].

Mas essa inversão era muito mais de um simples erro de tradução. Respondia às novas exigências
que surgiam no campo da arte, como nos mostra mais adiante Lichteinstein (2005, p. 11-12):

Foi um dos meios – e um dos mais importantes – para a pintura gozar


do reconhecimento até então reservado às artes da linguagem, isto
é, ter acesso à dignidade de atividade liberal, pois questionava uma
hierarquia metafísica e social, que pesava sobre a pintura há séculos.
Por um lado, desagravava a pintura da suspeita platônica, demons-
trando que ela não é essa prática ilusória e sofística, mas sim um saber,
talvez até a forma mais perfeita do saber. Por outro lado, desfazia o
vínculo social que, desde a Idade Média, a prendia às chamadas artes
mecânicas, provando que ela não era um ofício, uma ocupação servil,
mas uma arte liberal, isto é, uma atividade digna de um homem livre.
Portanto, o Ut pictura poesis é a peça essencial de um imenso empre-
endimento de legitimação social e teórica da pintura. Sua finalidade
é estabelecer que a pintura provém da Idéia e não da matéria, do
intelecto e não da sensibilidade, da teoria e não da prática.Tal objetivo
não poderia ser alcançado sem uma ligação constitutiva entre as artes
da imagem e as da linguagem, pois a linguagem gozava, desde a Antigui-
dade, do privilégio de ser ao mesmo tempo a ordem do discurso e a
da razão. A exigência de legitimidade só pode ser obtida pela pintura
estabelecendo sua relação com o discurso. Com essa comparação, a
pintura reintegra finalmente o universo do Logos e o pintor passa a
ter acesso à condição do orador ou do poeta.

No entanto, o Ut pictura poesis tanto modificava o estatuto da pintura como lhe impunha as cate-
gorias da poética e da retórica, concedendo-lhe a mesma finalidade que Aristóteles atribuía à
poesia dramática: a de contar história. Desde então, pintar consistia em transpor uma seqüência
narrativa – e portanto temporal – para o espaço imóvel do quadro. O problema, então, passava
a ser como transmitir as ações e os sentimentos que a história envolvia para um meio “instan-
tâneo” – assunto discutido por vários teóricos, como Du Bos (1993), que comenta: “Como o
quadro que representa uma ação nos permite ver apenas um instante da sua duração...o pintor
... pinta seus personagens uma única vez e não pode empregar senão um traço para exprimir
uma paixão em cada parte do rosto na qual essa paixão deve ser ressaltada”.11

Nessa difícil passagem da seqüência narrativa para o espaço imóvel do quadro, o pintor contava
com um recurso fundamental: a representação das emoções pelos movimentos e pelas expres-
sões corporais (BAXANDALL, p. 63-79). Se a pintura devia narrar uma história – que necessa-
riamente compreende uma seqüência temporal e um dinamismo dramático –, tinha de fazê-lo
no espaço imóvel do quadro e dispondo também de formas imóveis. Como passar para o
espectador a noção de tempo e de emoção num meio estático por natureza? Os movimentos
do tempo e da alma só poderiam ser mostrados pelos movimentos dos corpos na pintura. Sem
fazer uso da palavra, nem mesmo sob a forma de legenda, o espectador deveria compreender a
pintura, reconhecer os personagens e emocionar-se com a cena. O pintor precisava, portanto,
ser muito hábil na construção dos movimentos corporais, da gestualidade e da expressão facial
de seus personagens (PEREIRA, 2007). 83
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 2.
Provas de alunos
da École des
Beaux-Arts
de Paris: Dor
concentrada, de
Étienne Dubois
(1822); Melan-
colia, de Léon
Benouville (1843);
Melancolia, de
Thomas Couture
(1835); Medo,
de François-
Éloy Biennoury
(1842); Desdém,
de William
Bourguereau
(1850); e Terror,
Xavier-Alphonse
Monchablon
(1860). Fonte:
Grunhec, Philippe.
Les Concours des
Prix de Rome:
1797-1863. Paris:
École Nationale
Supérieure des É interessante observar que no cubismo é justamente a composição albertiana que é destruída.
Beaux-Arts, 1986, Não é gratuito que nas pinturas de Picasso e Braque de 1907 a correlação entre membros
vol. I, p. 53. e corpos, recomendada por Alberti, seja esfacelada e essas partes espalhem-se pelo quadro
completamente autônomas. Além disso, a introdução das palavras no campo da pintura – não
como um acessório complementar à trama narrativa, como poderia acontecer no esquema de
Alberti, mas como parte substantiva de sua construção – é uma espécie de prova do fracasso
da pintura na concepção albertiana. Assim, o problema que se coloca para o pintor após o
Cubismo é, sobretudo, o da supressão da narração.

Dada a importância da representação da expressão, faziam parte da pedagogia do ensino acadê-


mico os concursos de expressão facial, como aparecem em provas de alunos da École des Beaux-
Arts de Paris: Dor concentrada, de Étienne Dubois (1822); Melancolia, de Léon Benouville (1843);
Melancolia, de Thomas Couture (1835); Medo, de François-Éloy Biennoury (1842); Desdém, de
William Bourguereau (1850); e Terror, Xavier-Alphonse Monchablon (1860) (Fig. 2).

Os concursos acadêmicos de pintura são particularmente interessantes, pois a definição dos


temas, a escolha dos ganhadores e o comentário das obras revelam a teoria implícita tanto na
proposta pedagógica quanto na prática artística.

Acompanhemos a trajetória de Vitor Meireles aluno. Em 1852, vence o prêmio de viagem com
a obra São João no cárcere. Depois de uma temporada em Roma, vai para Paris, onde realiza em
84 1855 a Degolação de São João Batista (Fig. 3), que é enviada à Academia.
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Figura 3.
Degolação de São
João Batista,Vitor
Meireles, óleo
sobre tela, envio
de Paris de 1855,
Museu Nacional
de Belas Artes,
Rio de Janeiro.

Numa carta desse mesmo ano, Porto Alegre faz uma análise da obra:

Vamos ao essencial que é o seu quadro. O aspecto geral é agradável,


harmônico e sem confusão nas linhas e na luz; porém, há aquillo que se
observa em todos os moços: o algoz está em posição acadêmica, e a 85
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

filha do rei, a inimiga do Baptista, não exprime a sua alegria em se ver


livre do homem, cuja cabeça ella pedira, afim de poder estar mais alegre
e melhor dançar. A figura do algoz tem uma boa cabeça: o pescoço, o
thorax, e o abdômen estão soffrivelmente modelados e melhor colo-
ridos, por que não tem tons sujos, porém parece-me que há uma falha-
sinha miológica na região intercostal. O braço direito, no que toca ao
antebraço não está mau, porém não está accentuado com energia, nem
tem clareza na musculação: o deltóide deveria ser mais fibroso, assim
como mais marcado o tríceps brachial; quanto ao antebraço, punho
e mão, esses não foram estudados com tando amor como o tórax e
abdomem. O pannejamento está bem lançado, bem dobrado, e de um
bonito tom: porém, o esbatimento, ou a sombra que lhe projecta o
braço, não está muito exacto: devia seguir as curvas das pregas e não
apresentar uma linha recta, como a que figura em sua generalidade. As
pernas me parecem curtas, e um tanto incertas no modo de accentuar
a musculação: o que está perfeitamete modelado é a parte externa da
região poplítea, e sobre tudo a inserção posterior do tríceps da coxa.
O seu pé está bom, mas o do escuro está um tanto confuso. O corpo
troncado do Evangelista (sic) foi pouco estudado. É necessário grande
attenção nos escorços! Esta é a parte mais fraca de seu painel, e sobre
tudo a perna que está dobrada, por que a sua musculação está toda
incorrecta: o colorido, pelo contrário, é suave e bem degradado em
suas mesclas...Ha estudo, há gosto, há intelligencia e aquella fineza, que
denota uma alma predestinada para a percepção do bello. 12

E, mais adiante, indica o caminho para avançar no domínio da pintura histórica:

Antes de compor, veja a acção em geral, veja depois cada uma das
suas personagens; estude-as moral e physiologicamente para que
ellas possam, cada uma de per si, compor um todo harmônico e
verdadeiro. ..Estude bem a theoria da sombra e a perspectiva, por
que sem estas bazes muito terá que lutar; a ellas deverá o perfeito
conhecimento das modificações da luz, dos planos, dos relevos; copie
desenhos scenográphicos, por que nesse estudo está o dos fundos
dos painéis ... Estude o nu, estude anatomia, estude bem o desenho...
Estude cavallos, por que as nossas batalhas exigem este estudo; e lá
(Paris) achará bellíssimos modelos, já como pintura, nas obras de meu
mestre, o Barão Gros, já nas de Mr. H.Vernet, que conhece as raças e
o animal melhor do que ninguém; faça copias de cabeças de cavallos
em ponto grande... Anatomia e perspectiva, muito desenho....13

Passemos, agora, a observar a questão da função narrativa da pintura mais no final do século
XIX, com a geração formada por artistas como Visconti, Rodolfo Amoedo, Castagneto,Almeida
Júnior, Belmiro de Almeida entre outros.

Salvo algumas poucas exceções, a produção artística dessa geração é muito heterogênea, tanto
formal quanto tematicamente. Os artistas não se filiam estritamente a um ou outro movi-
mento; ao contrário, utilizam diversos estilos, movimentando-se com desenvoltura num largo
86 campo de possibilidades de linguagem (PEREIRA, 2008).
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Vamos examinar alguns exemplos. Tomemos inicialmente o seguinte grupo de obras: Judite
rende graças a Geová por ele ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holofernes (1880) (Fig.
4), A Carioca (1882) (Fig. 5), Rabequista Árabe (1884) (Fig. 6), todas de Pedro Américo, e O Último
Tamoio (1883) de Rodolfo Amoedo (Fig. 7).

Figura 4.
Judite rende graças
a Geová por ele ter
conseguido livrar sua
pátria dos furores de
Holofernes, Pedro
Américo, óleo sobre
tela, 1880, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro.

Figura 5.
A carioca, Pedro
Américo, óleo sobre
tela, 1882, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro.

Figura 6.
Rabequista árabe,
Pedro Américo, óleo
sobre tela, 1884,
Museu Nacional de
Belas Artes, Rio de
Janeiro.

Figura 7.
O Último Tamoio,
Rodolfo Amoedo,
óleo sobre tela,
1883, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro.

Em todos esses trabalhos, o conteúdo histórico ou alegórico está presente tanto nos temas
estranhos quanto nos diretamente ligados ao Brasil e ao Rio de Janeiro. Mantêm-se aqui várias
regras neoclássicas que destacam a superioridade da pintura histórica e a prioridade dos temas
nobres. Mas existe também o gosto romântico pelos temas exóticos e nacionalistas, em geral 87
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 8.
Ateliê do artista
em Paris, Rodolfo
Amoedo, 1883,
aquarela sobre
cartão, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de
Janeiro.

por meio de um tratamento idealizado. Em todas essas obras, verificamos a primazia do desenho
estruturando a composição, e a cor é secundária, mesmo quando as obras revelam uma maior
riqueza cromática. Os motivos principais da narração são centralizados e obedecem a uma
distinção rigorosa entre figura e fundo. Essas obras evidenciam, portanto, a mescla de valores
neoclássicos e românticos, assim como sua permanência em finais do século XIX, quando outros
movimentos estéticos já se encontravam em pauta, tanto na Europa quanto no Brasil.

Passemos, agora, a um outro grupo de obras: Ateliê do artista (1883) (Fig. 8), Estudo de Mulher
(1884) (Fig. 9), ambos de Rodolfo Amoedo, Descanso do Modelo (1882) de Almeida Júnior (Fig.
10) e Arrufos (1887) de Belmiro de Almeida (Fig. 11).

Nesse grupo, salta de imediato aos olhos a mudança na temática tirada do cotidiano, com
o evidente abandono dos chamados temas nobres, que norteavam a pintura neoclássica.
Mesmo no caso de um estudo de modelo vivo, como Estudo de mulher, esse tradicional exer-
cício na formação do artista acadêmico toma uma feição nova, pela ambientação contempo-
rânea. O interesse pelo trabalho do artista é evidente na forma descritiva como são apre-
sentados os interiores do ateliê. Ateliê do artista e Descanso do modelo revelam-nos ambientes
decorados ao gosto burguês, como espaços de convívio social, mas denotam também, por
um certo desalinho e a presença marcante de instrumentos musicais e obras de arte, que
se trata de um lugar em que a liberdade do artista e o gosto pela arte são primordiais. O
mesmo interesse pela descrição minuciosa dos interiores aparece em relação à vida domés-
tica, chegando-se até a cenas de briga de um casal, como em Arrufos. Nada aqui ecoa da
idealização e da retórica do grupo anterior. O realismo abriu caminho para a vida comum e
88 espalha sobre ela um olhar aproximado. A tradicional distância entre a obra e o espectador
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Figura 9.
Estudo de mulher,
Rodolfo Amoedo,
óleo sobre madeira,
1884, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de
Janeiro.

Figura 10.
Descanso do
modelo, Almeida
Júnior, óleo sobre
tela, 1882, Museu
Nacional de Belas
Artes, Rio de
Janeiro.

89
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Figura 11.
Arrufos, Belmiro
de Almeida, óleo
sobre tela, 1887,
Museu Nacional
de Belas Artes, Rio
de Janeiro.

é rompida por essa tomada íntima, que permite o compartilhamento e a identificação entre
artista e público.

Esse segundo grupo traz, portanto, grandes inovações temáticas. Vejamos agora como essas
obras se apresentam do ponto de vista formal. Em pelo menos três dessas cinco obras – Estudo
de mulher, Descanso do modelo e Arrufos –, podemos observar um tratamento plástico seme-
lhante: a composição é estruturada primordialmente pelo desenho, e os motivos principais
da temática são centralizados, como na pintura neoclássica, mas os elementos secundários
– colchas, almofadas, papel de parede, objetos de decoração – recebem um tratamento cromá-
tico destacado, igualando ou até mesmo superando o tratamento das figuras humanas. É como
se o olhar do artista pousasse sobre cada um desses objetos com enorme cuidado, fazendo
desses elementos parte constitutiva da composição. Ateliê do artista, até mesmo porque não
apresenta nenhuma figura humana, exacerba essa exposição apaixonada de objetos em que
a narração é suspensa, ficando o conteúdo expresso na própria aparência da pintura. Nessa
obra, apesar de o desenho ter também o caráter estrutural, a cor está muito mais fragmentada,
evidenciando a absorção de técnica impressionista.

Assim, podemos verificar que, se até o período anterior as artes plásticas brasileiras tinham-
se mantido dentro dos limites do neoclassicismo e do romantismo, agora, a partir da década
de 1880, houve realmente entre os artistas brasileiros uma ânsia de atualização: sobretudo
a pintura absorveu concomitantemente todos os demais movimentos, que a Europa e em
especial a França haviam formulado ao longo do século XIX – o realismo, o impressionismo e
90 o simbolismo.
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Da análise desses exemplos, é possível concluir que do ponto de vista da prática artística
– e o ensino acadêmico estava particularmente atento a esse fato – as escolhas dos artistas
eram muito mais tipológicas do que estilísticas. Isso explica por que os artistas dessa geração
apresentam esse comportamento eclético: o estilo ou a tendência formal era escolhido pela
sua adequação ao tema e à função, apoiando-se num repertório de tipologias compositivas
sugeridas pela tradição pictórica européia ou pelos modelos modernos que estavam sendo
incorporados à cultura visual.

As obras examinadas mostram, ainda, a permanência e a diversificação da função narrativa da


pintura. Apesar de a paisagem crescer de importância nesse mesmo período, ainda predomina
aí a questão da narratividade. Aliás, esta terá uma longa duração na pintura brasileira, atraves-
sando o primeiro e o segundo modernismos, evidenciando a dificuldade, tanto dos artistas
quanto do público, em eliminá-la.

Notas
¹ WINCKELMANN, Johan Joachin (1713-1783), em sua obra mais importante: História da arte antiga, de 1764.
² Ata de 17/3/1842 – Museu D. João VI da EBA / UFRJ.
³ Ata de 20/3/1837 – Museu D. João VI.
4
Sessão Pública de 19/12/1845 – Museu D. João VI.
5
Sessão Pública de 19/12/1848 – Museu D. João VI.
6
Ata de 2/4/1849 – Museu D. João VI.
7
Sessão Pública de 19/12/1844 – Museu D. João VI.
8
Em 1836,Taunay fez a tradução da 13ª edição da obra de Thomas Bardwell,The Practice of Painting and Pers-
pective Made Easy, editada pela primeira vez em 1756 em Londres: Arte de pintar a óleo conforme a prática
de Bardwell, baseada sobre o estudo e a imitação dos primeiros mestres das escolas italiana, inglesa e francesa.
Obras Raras da Biblioteca da EBA/UFRJ.
9
Sessão Pública de 1842 – Museu D. João VI.
10
Nicolas Poussin em uma carta de 24/11/1647: Lettre à Chantelou. Lettres et propos sur l´art. Paris, Hermann,
1989, p. 134-137. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline.A pintura, textos essenciais. São Paulo: Editora 34, 2005, v. 7.
11
DU BOS, Jean-Baptiste. Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture. Paris: École Nationale Supérieure
des Beaux-Arts, 1993, parte I, seção 13.
12
Carta de Manuel de Araújo Porto-Alegre de 6/8/1855. In: SAMPAIO, João Zeferino Rangel de. O quadro da
Batalha dos Guararapes, seu autor e seus críticos. Rio de Janeiro: Serafim J.Alves Ed., 1880. p. 125-126.
13
Ibid., p. 126-127.

Referências
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Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1973.
BARATA, Mário. Manuscrito inédito de Lebreton sobre o estabelecimento de uma dupla escola
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BAXANDALL, Michael. O olhar renascente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
BAZIN, Germain. História da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BORNHEIM, Gerd. Introdução à leitura de Winckelmann. Páginas de filosofia da arte. Rio de
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__________. Desenho, composição, tipologia e tradição tradição clássica – uma discussão
sobre o ensino acadêmico do século 19. Revista Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, PPGAV/EBA/
UFRJ, n. 10, p. 40-49, 2003.
__________. História, arte e estilo no século XIX. Revista Concinnitas. Rio de Janeiro, IA/UERJ,
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QUINCY, Quatremère de. Encyclopédie méthodique: Architecture. Paris: Panckoucke, 1788-1825
(verbete type)
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VASARI, Giorgio (1511-1574). Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos
de Cimanue ao nosso tempo, descritas em língua toscana por Giorgio Vasari, pintor aretino, com uma
introdução útil e indispensável sobre as diferentes artes,1550, 2 volumes.

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desdobramentos
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Athos Bulcão, extramuros e intramuros: artista-capital
Athos Bulcão, outerwalls and innerwalls: capital-artist

Grace Maria Machado de Freitas *

Resumo
Retraçar o pensamento do legado construtivista é pensar a possibilidade de assimilação e transformação pelo qual
esse atravessou, durante o século XX. Entre muitas propostas que surgiram, em vários países, é Brasília - do traçado
da cidade ao planejamento urbano, arquitetônico e artístico -, o lugar e o espaço onde esse pensamento se concretiza.
A relação entre espaço, tempo e movimento, a aproximação com a indústria e a geometria abstrata e, principalmente,
o desejo utópico de integrar e revolucionar, pela linguagem da arte, a sociedade e o habitat humano, é o que move
a produção do artista Athos Bulcão, tanto em obras de integração com a arquitetura - extramuros-, quanto em sua
obra intramuros.
Palavras-chave: integração das artes. projeto construtivo brasileiro. Brasília. estruturas modulares. azulejos.

Abstract
Retracing the thought of the constructivist legacy is thinking of the possibility of assimilation and transformation through which
it has gone through during the 20th Century. Among the many proposals that surfaced in many countries, it is Brasilia - from its
city layout to its urban, architectural and artistic planning - the place and the space where this thought is made concrete. The
relationship between space, time, and movement, the approximation with industry and abstract geometry and, most of all, the
utopic desire to integrate and revolutionize, through the language of art, the society and the human habitat, is what sets the
production of artist Athos Bulcão in motion, both in his works that integrate art and architecture - outdoors - and his works that
are located inside the architectural structures.
Keywords: integration of the arts, Brazilian constructivist projetct. Brasilia. modular structures. ceramic tiles.

“[...] encontramo-nos, pela força das coisas, no estado de invenção e


de equivalência e somente aí está a razão plástica. Todas as épocas de
invenção são belas, as outras não existem.”
Fernand Léger

Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Athos Bulcão são a tríade que, por meio do saber e da expe-
riência, do risco ao traço e da superfície ao volume, foi capaz de criar uma cidade-capital em
toda a sua aparente simplicidade e beleza. Complementados pelo conceito de arquitetura-

* Doutora em artes plásticas pela Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes. Pós-doutorado na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Professora da área de Teoria e História da Arte na Universidade
de Brasília, Departamento de Artes Visuais, desde 1976. Crítica de arte, com diversos artigos e textos curatoriais
publicados. Autora do livro Brasília e o projeto construtivo brasileiro (Rio de Janeiro: Zahar, 2007, Coleção arte+) e de
artigo publicado em Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas (Rio de Janeiro: Funarte, 2006), organizado
96 por Gloria Ferreira. gracedefreitas@brturbo.com.br
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arte, tão caro para Lúcio Costa – alicerçado no conhecimento de artes plásticas junto ao das
ciências exatas e tecnologia da construção —, engendraram, cada um em sua especificidade, a
conjugação brasileira do modernismo internacional.

No contexto da eleição da proposta para o Plano Piloto (década de 1950/1960), o país aspi-
rava à modernidade com propostas de transformações na política, na economia e na socie-
dade; contemporaneamente, o campo artístico, após períodos intermitentes de inserção do
moderno no arcaico, conforme se via nos grandes centros, emergia do moderno academici-
zado e discutia novas idéias.

Para situarmos em que consistem essas idéias, é necessário que se faça um recuo no tempo,
ainda que em sobrevôo, para ver de que maneira elas confluíram e contribuíram para inaugurar
um outro sistema de pensamento na arte brasileira concretizado em Brasília.

Trajetórias de um legado

A partir do enunciado de Cézanne, no século XIX – tornar concreta a noção do plano e da


percepção conceitual do objeto por sucessivos e simultâneos pontos de vista em uma mesma
superfície –, alguns artistas o experimentaram e levaram-no adiante por meio de inovações.
Esse enunciado foi posto em prática e radicalizado pelos artistas cubo-futuristas e, apreendido
pelos russos, foi deslocado para o reconhecimento da forma em sua materialidade – texto e
textura em suas particularidades específicas –, instaurando a noção de faktura, na criação do
movimento construtivista.

Ali, após embates ideológicos, o Construtivismo foi definido como prática lógica que responderia
às demandas da nova sociedade coletiva, na qual a utopia se inscreveria para preparar a revolução.
A construção era baseada no conceito de espaço mental, um modo científico de organização, sem
excessos de materiais ou elementos, e sustentada pela lógica formal de estruturas dedutivas.

Após a diáspora, muitos artistas desse movimento migraram para a Europa Ocidental. Um deles,
El Lissitsky, instituiu a Facção Internacional dos Construtivistas, à semelhança da Internacional
Socialista, para revitalizar as questões teóricas e reafirmar que cada proposta parte de um
projeto com regras definidas pelo material e não pela subjetividade. Para ele, a arte é, assim como
a ciência e a tecnologia, um método de trabalho aplicável, e aproximá-la da indústria para propor
novas invenções seria material para a consciência criativa de artistas desse tempo.A aproximação
da arte com a vida tornar-se-ia um fato, uma conquista que viria junto com a educação.

Nesse sentido, pode-se notar um paralelismo, ainda que atemporal, entre a fala de El Lissitsky e
Lúcio Costa: para o primeiro, “cada trabalho organizado é um objeto, feito para uma finalidade
que é calculada não para desviar o povo da vida, mas para exortá-lo a dar sua contribuição para
a organização da vida – organização e construção”; para o segundo, era importante estimular as
relações da arte com a atualidade política e social, enfatizando duas posições: a “diversionista”
e a “construtiva”, com uma comprometendo a paixão reivindicatória das massas e a outra
contribuindo para o equilíbrio coletivo e o bem-estar.

A trajetória desse discurso é bastante conhecida. Por um lado, a Bauhaus propõe a aproxi-
mação efetiva da arte com a indústria e a construção, com o princípio do “simples multiplicado”,
além de ter em seu corpo docente artistas, como Klee e Kandinsky, pedagogos das linguagens
pictóricas que eles elaboravam; posteriormente, a Escola de Ulm, criada por um ex-aluno da 97
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Bauhaus, Max Bill, dava continuidade às teorias funcionalistas, sustentadas na estética industrial
e na relação da arte com a ciência. Por outro lado, Mondrian e Van Doesburg, com o De Stilj e
o neoplasticismo, preconizaram a integração das artes, a partir da autonomia de cada linguagem,
determinada por seus próprios elementos, irredutíveis, antes de se integrarem com outras
linguagens, principalmente com a arquitetura. O que os aproxima é a questão da arte concreta,
termo criado por Van Doesburg, que, para ele, significava uma arte autônoma, criada com leis
próprias, sem a intervenção da abstração, que seria um estágio anterior à concreção. Apro-
priada por Max Bill, a arte concreta manifesta sua sustentação no intelecto e é antinaturalista,
anti-subjetiva, antilírica.As composições aritméticas de Van Doesburg demonstravam a Max Bill
a possibilidade de transformar uma simples oposição em estruturas dedutivas.

Na América do Sul, nos anos 1930/1940, alguns artistas já exploravam os caminhos da siste-
matização matemática da arte. Na Argentina, no Uruguai, no Chile e na Venezuela, grupos de
artistas são formados para a criação fundada no raciocínio lógico.

Em 1948, Jorge Romero Brest, crítico argentino, demonstra, em São Paulo, idéias sobre a beleza
do raciocínio matemático na arte e afirma que a arquitetura é a grande arte de nosso século.

Max Bill faz uma mostra retrospectiva na mesma cidade, em 1950 (depois de Buenos Aires) e,
no ano seguinte, é o vencedor do prêmio da Bienal Internacional de São Paulo, com a escul-
tura Unidade tripartida, na qual aplica não somente noções sobre materiais industriais, como
também sobre a geometria não euclidiana e a morfologia topológica, ou seja, uma arte gerada
por sistemas exatos. Max Bill, de fato, propunha possibilidades diversas às de Mondrian.

No manifesto Ruptura, artistas paulistas expõem conceitos que se alinham à experimentação


artística contrária à natureza, conferem à arte um lugar de conhecimento racional e instauram
ortodoxia e rigor naquilo que é considerado o recomeço espiritual e ético na arte brasileira,
na instituição do movimento concreto. Entretanto, a arte concreta teria esvaziado o sentido
do De Stijl (tendência que se utiliza da expressão estética objetiva e crítica) e da Bauhaus
(tendência ligada aos modos de produção) ao minimizar as questões das linguagens e do expe-
rimentalismo com visão social da arte, apesar de apregoar uma nova educação artística.

Ao buscarem um referencial em Mondrian e Malevitch, principalmente, artistas cariocas


discordaram do extremo rigor das composições matemáticas dos concretistas e conjugaram
a intuição com a percepção fenomenológica, independentes das ciências e da ideologia, para
criar, com estratégia própria, o movimento neoconcreto.

Ambas as propostas abriam espaço para a poesia, a programação visual e o design, aplicados
em experimentação nas indústrias gráficas e mobiliárias, como também na arquitetura de
interiores, entre outros.

Os dois movimentos se inserem, em suas especificidades, no contexto internacional como


participantes do legado do discurso construtivista.

Resguardados os fundamentos da linhagem construtivista internacional, por meio das múltiplas


abordagens defendidas por cada uma das ramificações experimentadas, ambos os movimentos
nacionais, o concreto e o neoconcreto, sinalizaram o esboço de um programa que alguns
críticos encaram como vocação ou impulso, ou, ainda, remetem-no à tradição, reconhecido
98 como projeto construtivo na arte brasileira.
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Concretização no concreto

É em Brasília que esse projeto se concretiza, pelo viés da interpretação e da transformação do


legado antes exposto. O grande diferencial de sua proposta é a reafirmação da integração das
artes à estética e à ética.

No relatório que Lúcio Costa elabora para a inscrição de sua proposta para o plano piloto, há
referências explícitas à criação de um “mundo novo, justo, produtivo e feliz”. Há, também, uma
intencionalidade implícita de alinhamento com as idéias que fluem a partir do construtivismo,
baseada em relações com o pensamento, o espaço-tempo-movimento, a técnica, os materiais, a
arte e a indústria. É ele o urbanista capaz de pensar a sociedade como um todo, em sua organi-
zação racional, pela crença no progresso e na “industrialização capaz de transferir o imemorial
anseio de justiça social do plano utópico para o plano das realidades imutáveis”.

Traçada, organizada em blocos de sentidos e com um conceito de escalas definido, abriu-se um


imenso canteiro de obras no qual Oscar Niemeyer criará palácios e edifícios.

É a Athos Bulcão que o arquiteto confiará sua principal parceria para a integração das artes plásticas.

A experiência no edifício do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro dos anos


1930/1940, já havia demonstrado a excelência do resultado de uma comunhão das artes,
conforme Lúcio Costa conceituou. Ali, painéis, esculturas e paisagismo integraram-se à arqui-
tetura. No conjunto da Pampulha houve a preocupação de dar continuidade a esse conceito,
e foi Athos Bulcão quem assistiu Portinari na execução de seu painel; nos anos 1950, o artista
criou painéis em azulejo e mosaico, no Rio de Janeiro, na antecipação da definição da linguagem
da arte integrada à arquitetura como elemento intrínseco.

Extramuros

Nos anos pré-inaugurais da Capital, entre 1957 e 1960, Niemeyer projetou o Palácio da Alvo-
rada, a Igrejinha e o Hotel Nacional. Nessas propostas, ambos, Athos Bulcão e Oscar Niemeyer,
artista e arquiteto, trabalham elementos formais que serão desenvolvidos em projetos futuros.
São seminais.

Para o Palácio da Alvorada, o artista foi instado a substituir uma proposta de mosaico, feita
por Portinari, para a capela. Athos, então, elaborou alguns estudos em guache para que fossem
executados no teto e no portal de entrada.

O material do portal é o alumínio, pintado de preto, com pequenos quadrados vazados com
vidro, trabalhados com um espectro de cores primárias e complementares, em ritmo de alter-
nância, e deixando filtrar uma luminosidade colorida e translúcida no interior da capela. Dessa
maneira, cria uma esfera de espiritualidade que prepara a entrada no espaço sagrado. Ali, no
pequeno recinto, o olhar se eleva ao teto em caracol, onde a pintura que representa poucos
elementos de traços geométricos, marcas da imagética cristã das catacumbas – peixes, cruz, o sol
e a lua (estes também se referem a São Francisco, de cuja Ordem Terceira o artista era irmão)
– ao refletir a luminosidade, incidente dos reflexos dos vitrais do portal, consagra o lugar.

Nos azulejos que Athos criou para as paredes externas da Igrejinha, na trilha do sagrado, o
artista sintetiza a força dos símbolos cristãos por meio de dois elementos: a pomba do Divino 99
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

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VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

Espírito Santo e a estrela de Belém. Em dois tons de azul e branco, o ritmo sincopado ressalta
a verticalidade do painel, que indica um sentido descendente. Os azulejos irradiam quase uma
prece para que a luz e a inteligência divinas se espalhem sobre a terra, e “tudo será criado”.1

Duas semi-elipses em azul e branco formatam um triângulo no espaço intervalar, estabele-


cendo um positivo e um negativo, em dois azulejos, compondo o extenso painel do Hotel
Nacional. Organizadas com rigor matemático, as metades de uma peça de azulejo se comple-
mentam e formam, com um conjunto de quatro peças, efeitos ópticos que se multiplicam.
A rígida disposição das peças desse painel, assim como o da Igrejinha, não dá lugar, ainda, ao
aleatório.

Já nos azulejos criados nos anos 1960/1970, destacamos aqueles que Athos Bulcão criou para
escolas. Para a Escola Classe da SQN 407/408, o artista produz um outro axioma, por meio de
três peças de azulejo, uma branca, uma preta e a outra com uma faixa preta sobre o branco,
e as libera para que o operário possa participar da sua criação, dispondo-as aleatoriamente.
O efeito visual proporciona uma experiência direta de raciocínio lógico e lúdico ao mesmo
tempo, no jogo de se encontrar e se perder o axioma inicial, perpassando as possibilidades
multiplicadas que são apresentadas. Na Escola Parque da SQS 315/316, há painéis que se avizi-
nham, e dois deles, semicirculares, apresentam um contraste de luz e sombra. De um lado, são
duas peças em tons azuis sobre o branco que entram em uma combinatória de livre oposição
entre os tons, mantendo o ritmo binário resguardado. Utilizando o mesmo motivo geométrico
estabelecido para os azuis, em amarelo sobre branco o artista libera o processo aleatório e
provoca um efeito de luz intensa que se opõe aos azuis.

Em 1998, Athos Bulcão criou para o Instituto de Artes da Universidade de Brasília, com duas
peças de cores azul, verde e grená sobre o branco, um pequeno semicírculo, um pequeno
triângulo e um recorte de linhas semicirculares; a partir desses, alterna as cores dos elementos
menores e libera o jogo de possibilidades combinatórias.

Os painéis de 1975 feitos para um estabelecimento comercial, com uma composição aparen-
temente mais simples, tendo em vista um único elemento utilizado – semicírculo, com cores
variadas – de composição aleatória, fornece ao artista o motivo para ser desenvolvido no
Sambódromo do Rio de Janeiro. [Talvez ali Athos tenha produzido um painel profano, resul-
tante da disposição das peças, aleatoriamente, mas que sugerem efeitos antropomórficos,
ondulantes como a arquitetura de Niemeyer.]

Não se trata aqui de refazer o percurso de todas as obras em painéis de azulejos que o artista
Athos Bulcão integrou às arquiteturas de Oscar Niemeyer, João Filgueiras Lima e outros, mas
sim de trazer à tona um método próprio, que o artista desenvolveu em seu trabalho junto a
estes, tanto para obras públicas, a céu aberto ou não, quanto para obras particulares.

Uma das obras mais monumentais (tanto no sentido da escala monumental, conceituada por
Lúcio Costa, quanto no sentido da obra em si) do artista, dadas as dimensões e a visibilidade,
em razão de sua localização no cruzamento do Eixo Monumental com a Plataforma Rodoviária,
é a fachada lateral do Teatro Nacional. Esta é constituída por relevos de cubos e retângulos de
dimensões variadas, realizados em concreto branco.1

Os sentidos de organização e construção com os quais os relevos são agrupados imprimem, na


102 estrutura modular, relações numéricas e volumétricas cujas variáveis se expandem em série.
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Sob o sol, um intenso jogo de luz e sombra acontece, dando a ver as transformações sucessivas
e estabelecendo novas relações de peso e leveza, volumes e planos, instaurados no espaço/
tempo/movimento.

Os elementos geométricos extraídos pelo artista e a infinita possibilidade combinatória


desencadeada revelam as estruturas dedutivas. Estas, por sua vez, abrem um campo para a
educação do olhar, enriquecendo a experiência estética por meio da beleza que se pode
perceber, contida no raciocínio lógico e oferecida à capital do país.

Sendo esse um dos princípios do legado construtivo, Athos Bulcão, fora de qualquer envol-
vimento com os movimentos concretista ou neoconcretista, produz uma obra que extrapola
rigores e ortodoxias dos manifestos e avança, espontânea e intuitivamente para muito além
do que todos eles propuseram em suas obras (conforme Agnaldo Farias concebidas, em geral
para escoarem em museus, galerias e mercado).

Um outro princípio, amplamente explorado pelo artista, incide sobre a aproximação da arte
com a técnica e a indústria. Nesse sentido, podemos ver que Athos Bulcão operou com
uma gama extensa de possibilidades. Além do azulejo, a obra que o artista desenvolveu para
intervir na arquitetura contou com outros materiais. A partir da criação de um protótipo – em
alumínio, ferro, madeira, mármore ou granito, vidro, concreto armado ou durepóxi –, explorou
o concurso da indústria para sua fabricação.

Intramuros

A obra de integração com a arquitetura per se já bastaria para inscrever Athos Bulcão como
artista-capital. Entretanto, sua prática artística é bastante diversificada.

Na pintura, no desenho, na escultura ou na fotomontagem, pode-se observar a elaboração de


uma produção que se deixa perpassar pela articulação modernista. Ali, ele não se limitou à
linguagem geométrica: instaurou um espaço plástico aberto para a experimentação e a expressão,
assegurando afinidade e coerência na relação entre toda sua obra.

Da lavra expressionista, há uma grande diversidade de variação de um mesmo tema: as máscaras.


Evocações de personagens mascarados – carnavalescos ou teatrais –, esse motivo está presente,
atemporal, em toda a sua obra: no plano, na superfície, em relevos ou matéricas. Em sua maioria,
são perfis grotescos ou sarcásticos, contornados por elementos saídos de um grafismo, ora
titubeante, ora regular, preenchidos por detalhes figurativos que remetem a outras máscaras,
em um jogo cujas regras se deixam entrever pela cor e pela matéria que lhe confere a textura.
Por vezes elas fazem parte de algum conjunto na representação; por vezes, enigmas solitários,
esfinges dentro de caixas, no entanto, transparentes.

Na série elaborada de pinturas sobre fundos escuros limitados pelas extremidades da tela,
Athos estabelece um sentido próprio para a grade: transforma-a em encadeamento de
quadrados que emergem do fundo, cada qual alimentado por uma gama de cores que traduz
uma construção específica. A alusão ao acaso, evocada por quadrados jogados sobre o plano, é
rapidamente dissipada quando se observa mais de perto a organização espacial.

Quadrados dentro de quadrados, pequenas pinturas que poderiam tanto operar em espaço
próprio quanto em conjunto, conforme Athos Bulcão os engendra. 103
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“Sinta-me em
sua casa”, Galeria
UnB, 11 a 25 de
novembro de 2004.
Exposição de obras
do acervo da UnB
realizadas pelos
artistas: Athos
Bulcão, Aloísio Maga-
lhães, Mary Vieira e
Rubem Valentim. Na
fachada, repro-
dução do painel de
azulejos criados por
Athos Bucão para o
Instituto de Artes da
UnB. Curadora: Elisa
de Souza Martinez.
105
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Por um lado, surge o Mestre das cores. É aí que se percebem os arranjos cromáticos nos
pequenos quadrados referidos, em análise e distribuição de cores que aplicam teorias infor-
malmente provocando efeitos vívidos e originais. O artista revela um “olho solar” por meio da
luminosidade e dos elementos que a constituem, por meio de cores que vibram em um tempo
mais lento, em oposição às rápidas, ou seja, espaço/tempo, intervalo, intensidade, interferência.
Athos expõe os elementos que têm relação com o espectro de cores, como aquelas que
avançam em oposição às que recuam, a alternância entre as que expandem e as que contraem,
enfim, uma visão prismática da difração vibratória da luz, como trabalhada em sua obra pública.
Para o artista, essas questões expõem ora significados emocionais, ora efeitos formais.

Por outro lado, esses mesmos quadrados sobre quadrado codificam formas que se remetem
tanto ao mundo vegetal, animal e mineral quanto ao mundo emocional que aí se conjuga, sinte-
tizados por mínimos elementos referenciais, o simples multiplicado. Em um só quadrado Athos
Bulcão demonstra a visibilidade da construção e da organização de um modelo estrutural
reduzido e cria um espaço novo, que nasce do ritmo.

Por fim, quando focamos as pinturas de luz propriamente ditas, é uma explosão de cores que
acontece na retina. Do macro ao micro, somos conduzidos a focar o ponto mínimo, dentro da
unidade de um pequeno círculo, parte do conjunto, até o ponto, dentro de um ponto maior,
que se torna círculo, cujo cromatismo conduz o espectador ao limite da exacerbação da retina,
pela explosão de luminosidade.

Athos Bulcão soube detectar e interpretar, inovando, livre e espontaneamente, alguns dos
elementos mais consistentes da arte do século XX: a autonomia da linguagem, a integração das
artes à arquitetura, o espaço-tempo-movimento, a grade, e, até mesmo, a questão da autoria.
Mestrias do grande mestre que, entre todas as outras, demonstrou que o mundo pulsa pelas
propriedades ópticas da cor.

Definitivamente, trata-se de um artista-capital que deixa, na capital do Brasil, seu legado, aberto
para uma nova trajetória.

Notas
¹ Vinde, Espírito Santo, enchei o coração de vossos fiéis e acendei neles o fogo de vosso amor. Enviai,
Senhor, o Vosso Espírito e tudo será criado e, renovareis a face da terra.

Referências
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(Coleção arte +).
COSTA, Lúcio. Sobre arquitetura. Porto Alegre: Centro dos Estudantes Universitários de Arqui-
tetura, 1962.

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Dissertações defendidas no PPG-ARTE no período 1/2008

FERREIRA, Matias Monteiro. Infans – (im)pertinências do infantil na imagem. 28/03/2008. Orien-


tador: Geraldo Orthof Pereira Lima

LIMONGI, Joana Alice Pinheiro. Fazer um múltiplo brasileiro: Jose Celso Martinez Corrêa, teatro
oficina uzyna uzona e a montagem de os sertões. 03/04/2008. Orientadora: Maria Beatriz de
Medeiros

MELO, Ludmila Machado de. Dançar sem fronteiras: uma urdidura cênica das fiandeiras. 28/03/2008.
Orientadora: Soraia Maria Silva

MIRANDA, Elza Gabriela Godinho. Processos corporais infantis: interatuações artísticas na cena da
criança. 31/03/2008. Orientador: Soraia Maria Silva

OLIVEIRA, José Regino de. Dramaturgia da atuação cômica: o desempenho do ator na construção
do riso. 25/04/2008. Orientador: Marcus Santos Mota

SANTOS, Cyntia Carla Cunha. Livros de lilitt: a construção de um corpo performático. 04/04/2008.
Orientadora: Maria Beatriz de Medeiros

SILVA, Juliana da Souza. As artes visuais e seu público: um breve estudo sobre as condições históricas
de acesso à arte. 29/05/2008. Orientador: Pedro de Andrade Alvim

SILVA, Maicyra Teles Leão e. Estado pirata: performance e cidade. 04/04/2008. Orientadora:Maria
Beatriz de Medeiros

VULCÃO, Maria Goretti Vieira. A construção do discurso de criação do “curso-tronco” de arqui-


tetura e urbanismo na Universidade de Brasília (1962-1963). 24/06/2008. Orientadora: Elisa de
Souza Martínez

ZACHARIAS, Paula Braga. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. investigação preliminares
sobre o jogo: o ensino das artes cênicas e os tradicionais jogos populares para infância. 04/04/2008.
Orientadora: Roberta Kumasaka Matsumoto 107
VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

VIS
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte

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1. A revista VIS aceita colaborações de trabalhos originais e inéditos, de autoria individual ou


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idênticas e em arquivo(s) gravado(s) em um disquete ou CD.

4. O Título dos textos deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo doze, em caixa
alta e baixa (só iniciais maiúsculas), ter no máximo 85 caracteres, não ter palavras ou expres-
sões sublinhadas. Usar itálico somente para a grafia de palavras estrangeiras. O título e o
subtítulo, se houver, devem ser separados por dois pontos (:).

5. A identificação do(s) autor(es) deve:

a) ser digitada em fonte Times New Roman, corpo doze;


b) conter, na linha abaixo do(s) seu(s) nome(s), do nome da(s) instituição(ões) a que
está vinculado(s) como docente(s); pesquisador(es) ou aluno(s), digitado em fonte
Times New Roman;
c) em caso de aluno de programa de pós-graduação, especificar se é mestrando ou
doutorando;
d) conter o endereço eletrônico do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, corpo
doze;
e) conter, em um único parágrafo, os dados biográficos do autor com no máximo 50
palavras, em fonte Times New Roman, corpo doze.

6. O Resumo deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo doze, espaço entrelinhas
1,5. O Resumo deve ser digitado em um único parágrafo com o mínimo de 400 e o máximo de
800 caracteres, tanto na versão em português quanto na versão em inglês (Abstract).

7. As Palavras-Chave devem ser digitadas em fonte Times New Roman, corpo doze, em seqüência
108 na mesma linha, separadas por ponto (.) e finalizadas também por ponto. Podem ser inseridas
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB

de três a cinco Palavras-Chave, seguidas, na linha abaixo, pela versão de cada uma para o inglês
(Keywords).

8. O Corpo do texto deve ser digitado em fonte Times New Roman, corpo doze, com espaço
entrelinhas duplo, alinhamento à esquerda, com o máximo de 25 laudas, incluindo referências
bibliográficas.

9. Todas as imagens devem ser fornecidas em arquivos separados, em formato .jpg., sua locali-
zação no texto deve ser indicada pela inserção de legenda e o número de cada arquivo deve
corresponder ao número de ordem de ocorrência da figura ou tabela no texto.

10. A identificação de cada imagem no texto aparece na parte inferior, precedida da palavra
designativa, seguida de seu número de ordem de ocorrência no texto, em algarismos arábicos,
do respectivo título e/ou legenda explicativa de forma breve e clara. A imagem deve ser inse-
rida o mais próximo possível do trecho a que se refere, conforme o projeto gráfico.

11.A obtenção de direitos de reprodução das imagens utilizadas em cada texto, caso não sejam
de domínio público, é de inteira responsabilidade do autor.

12. A numeração das notas explicativas é feita em algarismos arábicos, devendo ser única e
consecutiva para cada artigo.

13. Para a elaboração de referências, elemento obrigatório, recomendamos a norma ABNT


NBR6023.

14. Para a elaboração de citações, recomendamos a norma ABNT NBR10520.

15. As citações com mais de três linhas devem ser digitadas em parágrafo separado, com
espaço entrelinhas simples, corpo dez e sem aspas. As citações devem ser listadas no final do
texto como Referências. Os dados bibliográficos completos das citações não devem ser inse-
ridos no corpo do texto (ver norma citada no item 14).

16.As notas de rodapé devem conter apenas comentários imprescindíveis para a compreensão
do texto e não os dados bibliográficos.

17. A editora da revista VIS poderá realizar modificações que visem à correção gramatical,
à adequação às normas da ABNT e à formatação dos originais de acordo com o projeto
gráfico.

18. As colaborações devem ser enviadas para o endereço: Conselho Editorial da Revista VIS;
Programa de Pós-Graduação em Arte; Instituto de Artes; Universidade de Brasília; Prédio SG-1,
Campus Universitário Darcy Ribeiro; Brasília; DF. CEP 70910-900.

19. A revista VIS não se compromete com a devolução dos trabalhos recusados pelo Conselho
Editorial.

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VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1

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