Você está na página 1de 20

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/255656836

Cientista ou Criança? - As representações sociais do cientista nos desenhos


animados infantis

Article

CITATIONS READS

0 121

1 author:

Luiz Eduardo Ricon


Columbia University
1 PUBLICATION   0 CITATIONS   

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Luiz Eduardo Ricon on 01 June 2016.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Cientista ou Criança? - As representações sociais do cientista
nos desenhos animados infantis
Luiz Eduardo Ricon

Introdução
Este trabalho relata um exercício de pesquisa onde se buscou identificar e analisar
as representações sociais contidas na figura dos cientistas, conforme expressas nos
discursos e produções de um grupo de crianças e em articulação com personagens de
desenhos animados de grande audiência e que possuem, entre seus protagonistas, figuras
identificadas claramente como cientistas.
Os dados para esta pesquisa foram colhidos de três fontes distintas:
•A primeira foi um grupo focal1 de 10 crianças de ambos os sexos (com predominância
masculina), entre 04 e 11 anos, moradores de um subúrbio do Rio de Janeiro, alunos

1
O grupo focal (ou focus group), que MINAYO, Assis, Souza et al (1999: 23) definem como "uma técnica
de entrevista, direcionada a um grupo que é selecionado pelo pesquisador a partir de determinadas
características identitárias, visando obter informações qualitativas", ocupa uma posição intermediária
entre a observação participante e as entrevistas em profundidade e, segundo VEIGA e Gondin (2001),
pode ser caracterizado também como um recurso para compreender o processo de construção das
percepções, atitudes e representações sociais de grupos humanos. Por essas características, o grupo
focal foi escolhido como o instrumento primário de coleta de dados dessa pesquisa.
de escolas particulares e oriundas das camadas médias (portanto com acesso a TV por
assinatura, vídeo-cassete, DVD, videogames, internet etc). A maioria delas vive em
casas e já se conhecia, seja por laços de família, de amizade e/ou escolares. Esta foi a
fonte primária, sendo as demais utilizadas como apoio e subsídio para a análise dos
dados obtidos a partir do discurso e da produção das crianças.
•A segunda fonte foram desenhos animados, exibidos por canais e programas
direcionados ao público infantil. Foram analisados episódios das séries “Laboratório
de Dexter”, “Jimmy Neutron” e “As Meninas Super-Poderosas”, tanto por estarem
entre os mais populares (segundo os índices de audiência) quanto, logicamente, por
apresentarem entre seus protagonistas figuras identificadas como “cientistas”. Além
desses, foram analisados personagens identificados como “cientistas” em outros
desenhos (desde os mais recentes como “Pokémon” até os mais antigos como “Tom &
Jerry”, “Pernalonga” e “Pica-Pau”).
•A terceira e última fonte dessa pesquisa foram sites de busca na internet (Google, Yahoo
etc.), onde procurou-se um repertório de imagens identificadas pelo vago título de
“cientista” (ou “scientist”), gerando-se um rol de imagens que foi instrumentalizado na
análise dos dados, como mecanismo de conferência ou comparação na identificação
das representações imagéticas mais recorrentes.

Mídia e Infância
Cada vez mais, a cultura da mídia vai se constituindo como uma esfera efetiva de
socialização e constituição das identidades. Cada vez mais, as crianças e os jovens
dedicam mais horas à TV do que à escola. E a reboque de transformações globais que
passam por novos arranjos comunicacionais, familiares, de consumo, políticos e sociais,
vislumbra-se um cenário no qual a infância vem se construindo cada vez mais como uma
esfera marcada pela autonomia, na qual as crianças assumem o papel de protagonistas de
suas próprias narrativas pessoais, o que vem se refletindo também nas narrativas
midiáticas, através da recorrência dos “heróis-crianças” nas séries e sagas mais populares
dentro da ficção audio-visual infanto-juvenil.
É assim com os livros e filmes como os de Harry Potter (um bruxinho
adolescente, órfão de pai e mãe, que vive aventuras na companhia de dois colegas na
escola de bruxaria de Hogwarts) ou Desventuras em Série (onde três órfãos, herdeiros
de uma grande fortuna enfrentam os maiores infortúnios nas mãos de seu tutor legal, o
maligno conde Olaf), os animes e mangás como Pokémon (no qual o herói Ash, de
apenas 10 anos, sai de casa e parte pelo mundo em busca de aventuras, na companhia de
outras três crianças) e Yu-Gi-Oh! (um grupo de jovens que enfrenta batalhas épicas
durante as partidas de um jogo de cards) e os desenhos animados norte-americanos como
Rugrats (que mostra um grupo de bebês vivendo numa “cultura” totalmente à parte da
dos adultos), As Meninas Super-poderosas (três meninas com super-poderes, que
defendem o mundo “antes da hora de dormir”), Jimmy Neutron ou Laboratório de
Dexter (ambos meninos-gênios, vivendo aventuras científicas e tecnológicas), só para
citar alguns.
Ao mesmo tempo, embora autores como POSTMAN (1999) e MEYROWITZ
(1985) acreditem num “desaparecimento da infância”, trazido e motivado, em grande
parte, pela relação cada vez mais estreita entre as crianças e a mídia audio-visual, a
infância vai se configurando também como uma parcela autônoma do mercado, com as
crianças assumindo cada vez mais o seu papel como consumidores ativos e
independentes, com uma grande rol de produtos e serviços, incluindo canais de TV, sites
na internet e muitos outros instrumentos de consumo e comunicação direcionados
especificamente ao público infantil
Obviamente, esse movimento não passa incólume pelo olhar de quem estuda o
enlace entre Educação, Antropologia, Sociologia, Psicologia e Comunicação, sobretudo
com ênfase na cultura de massa infanto-juvenil. GIROUX (2001), por exemplo, chama
sempre atenção em seus trabalhos para o “poderoso papel que a mídia está, de forma
crescente, assumindo na produção de imagens e textos que penetram em cada vez mais
áreas da vida cotidiana”(p.136)
Ele vê a mídia se firmando como uma poderosa e importante esfera pedagógica,
especialmente entre as crianças e jovens, que travam uma relação muito intensa com os
produtos da cultura de massa. GIROUX (1995) é um dos muitos autores que vêm
contribuindo ativamente para problematizar a relação entre a infância, a cultura de massa
e o currículo escolar, defendendo que as crianças aprendem tanto na escola quanto a
partir da exposição às formas culturais populares e que, de certa forma, isso “fornece um
novo registro cultural para o que significa ser alfabetizado.”(p.75)
Nada mais natural, portanto, do que abordar os desenhos animados, dentro desse
novo panorama cultural, como uma esfera privilegiada de transmissão de mensagens,
conceitos e representações dentro do universo infantil. Afinal, se as crianças se
“alfabetizam” através da “leitura” dos produtos da cultura de massa, pode-se indagar,
com mais do que mera desconfiança, quais seriam as representações que as crianças vêm
construindo de si mesmas e do mundo, através do diálogo e das mediações que
estabelecem com os desenhos animados.

Representações Sociais e Cultura de Massa


Segundo JODELET (2001), Durkheim foi o primeiro a postular a existência de um
tipo especial de produções mentais sociais, localizando-as no conceito das representações
coletivas. MOSCOVICI (1961) recuperou o conceito e ampliou sua análise, localizando
estes fenômenos na esfera das sociedades contemporâneas, marcadas pela intensidade e
fluidez nas trocas e comunicações, pelo desenvolvimento da ciência e pela pluralidade e
mobilidade sociais.
Segundo o conceito proposto por Moscovici, as representações sociais são fruto
tanto de traços individuais, quanto coletivos. Afinal, se o sujeito não existe no vácuo, mas
antes constitui-se na interação com o mundo e seus objetos, ou seja, com o outro, quem
representa o faz (sempre e obrigatoriamente) em função da sociedade em que vive, a
partir de um repertório cultural de valores, tradições, crenças etc. partilhado pelo grupo.
Mas as representações sociais também nascem na linguagem e na comunicação, no
contato e na troca, (seja pela via interpessoal, institucional ou da mídia), assim como nas
sociedades em que se constróem. As instituições sociais, as redes de comunicação
informal e os meios de comunicação intervêm (e interferem) na elaboração das
representações sociais, abrindo caminho para a influência ou a manipulação dessas
mesmas representações. Desse modo, os processos de comunicação (e, por extensão, os
meios de comunicação de massa) colaboram e integram os esquemas de criação e difusão
das representações sociais, sendo possível identificá-las em seus suportes e nos discursos,
práticas e comportamentos difundidos e divulgados pelos produtos da cultura de massa.
Os meios de comunicação de massa podem, portanto, desempenhar um papel de
destaque na compreensão dos processos de formação e circulação das representações
sociais nas sociedades contemporâneas. Como aponta SÁ (1998), “é com as práticas
sócio-culturais e com a comunicação de massa que o estudo das representações sociais
mantém as relações mais significativas.” (p.43)
Mesmo assim, para este autor, ainda são raras as pesquisa no campo das
representações sociais que dirigem o seu olhar para as manifestações culturais ou os
produtos da cultura de massa, pelo menos no Brasil. E, por isso mesmo, “seria
interessante que alguns dos jovens pesquisadores das representações sociais se
engajassem em estudos dessa natureza.” (SÁ, 1998: p.58)
Aceitando o convite (ou o desafio?), o presente trabalho se constitui numa
"aventura inicial" dentro do domínio das Representações Sociais, descrito por Jodelet
como complexo e de difícil aceitação ou transmissão. Para ela, existe uma grande
dificuldade na construção científica dentro do campo das Representações Sociais, pelo
fato da própria teoria das Representações Sociais ser “multiforme, controvertida ou
excessivamente valorizada e por isso mesmo com frequência mal apreciada”
(JODELET, 1998: p.9).
Além disso, muito embora sejam os fenômenos de Representação Social, por
natureza “difusos, fugidios, multifacetados, em constante movimento e presentes em
inúmeras instâncias da interação social.” (JODELET, 2001), a sua “onipresença" é
praticamente um consenso, já que eles estariam “espalhados por aí, na cultura, nas
instituições, nas práticas sociais, nas comunicações interpessoais e de massa e nos
pensamentos individuais” (SÁ, 1998: p. 21), sendo sua observação algo bastante natural
em muitas ocasiões pois, como sinaliza JODELET (2001), as Representações Sociais
circulam nos discursos, nas palavras e nas mensagens mediáticas, materializando-se em
condutas e organizações materiais e espaciais.

Desenhando a Metodologia
Para que se respeitasse um requisito básico no estudo das Representações Sociais, a
metodologia escolhida para esta pesquisa teria de preservar a pureza e a espontaneidade
da expressão dos sujeitos, sendo estes pesquisados em um contexto real da sua vivência
social (SÁ, 1998: p.89). Mas essa metodologia deveria também (e acima de tudo)
respeitar as características específicas do público infantil.
Desde os estágios iniciais de concepção, ficou claro para este trabalho que os
procedimentos usados em outras pesquisas no campo das Representações Sociais não
poderiam ser aplicados. Uma tentativa exploratória com entrevistas a partir de um
questionário de perguntas ou mesmo de entrevistas de cunho mais “aberto” mostrou-se
bastante vulnerável à produção de discursos pouco autênticos. Adicionalmente, no caso
de se lidar com crianças muito pequenas, havia ainda a dificuldade óbvia de se formular
as perguntas de modo claro e objetivo o suficiente para não direcionar ou induzir as
respostas. Depois de dois testes exploratórios, tornou-se óbvia a necessidade de uma
metodologia alternativa.
Já que as entrevistas formais (ou em profundidade) não seriam o instrumento mais
indicado, a solução foi dar mais atenção à coleta de informação com base na observação e
análise daquilo que Sarmento chama de “documentos reais”, ou seja, de textos
produzidos com uma determinada finalidade, além das conversas informais, pelas quais
perpassa o que ele chama de “uma voz autónoma e livre, tão difícil de captar na forma
estruturada da entrevista formal.” (SARMENTO, 2003: p. 163)
O instrumento a ser utilizado, portanto, deveria ser simples em sua execução (em
virtude do tempo e dos recursos disponíveis para a pesquisa) e, acima de tudo, adequado
ao público com o qual se buscava dialogar. Porém, ao mesmo tempo, ele deveria
preservar os cânones que vêm sendo observados em pesquisas reconhecidas no campo
das Representações Sociais.
A primeira grande dificuldade, nascida da própria natureza dos fenômenos de
Representação Social, foi compreender onde e como (sob que forma) esses fenômenos se
manifestam e, por conseguinte, como observá-los, captá-los ou analisá-los. Ou mais
claramente: como, afinal, seria possível analisar as representações sociais contidas na
figura dos cientistas e difundidas nos desenhos animados infantis?
Logicamente, o primeiro impulso foi o de centrar o olhar sobre os próprios
desenhos animados que, por serem produtos (no sentido de produções) destinados à
veiculação para as massas, carregam e disseminam toda sorte de conceitos, estereótipos e
representações. Mas estariam as representações sociais contidas apenas em seu suporte
midiático?
A partir da idéia de que toda representação é a representação de alguém a respeito
de algo, percebe-se a necessidade de se incluir na equação a dimensão do indivíduo, se
quisermos realmente captar a representação social. No caso deste trabalho, era necessário
portanto incluir a criança como sujeito que constrói sua identidade e suas representações
no contato e nas mediações estabelecidas (entre outros) com os produtos da cultura de
massa, tanto na esfera individual quanto (primordialmente) na social.
Além disso, como o que se buscava eram as representações sociais difundidas e
expressas (sobretudo, mas não exclusivamente) através da linguagem gráfica ou pictórica
– através de desenhos – era necessário construir um instrumento que pudesse ser utilizado
para captar esses enunciados de forma espontânea, dentro do contexto social do grupo
estudado. Em outras palavras: era necessário que tanto o instrumento quanto o momento
de sua aplicação fossem incorporados a uma situação real da vivência social das crianças.
A esse respeito, vale reproduzir um trecho do meu caderno de campo, que ilustra a
forma como essa questão foi operacionalizada:
“Minha pesquisa foi realizada num momento de intensa atividade
e interação social, totalmente representativo do universo infantil: uma
festinha de aniversário. (...) Como nesse ambiente as crianças já estão
dispostas a participar de algum tipo de atividade (na verdade até
mesmo esperam por isso) como parte da diversão, simplesmente
incorporei as atividades de coleta de dados da pesquisa às atrações
oferecidas.
Ali, em meio a balões coloridos, correrias e gritos, brincadeiras
(...) brigadeiros, hot-dogs, pipocas e refrigerantes (...) ofereci uma
mesa com papel e muitos lápis coloridos, para quem quisesse
desenhar.”

A partir dessa integração do instrumento de coleta de dados com um contexto social


real da vida daquelas crianças foi possível observar algo mais próximo da “fala
espontânea”, onde os discursos, gestos, trejeitos e interações do grupo ocorriam sem a
artificialidade e a aspereza de muitas situações de pesquisa.
Outra forma de garantir a espontaneidade da expressão das crianças foi estabelecer
a participação na atividade como uma escolha livre e individual. Das 26 crianças para as
quais se propôs a atividade, apenas 10 participaram efetivamente. A não obrigatoriedade
da participação buscou evitar que se captassem os enunciados forçados e os “discursos
falaciosos” (nos termos de Jodelet). Também não houve nenhuma ação no sentido de
selecionar, segregar, individualizar ou compartimentalizar o trabalho: todos desenharam à
vista dos demais, na mesma mesa, usando os mesmos recursos (lápis coloridos e papéis),
ocupando o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Dessa forma, as interações do grupo foram
facilitadas, observadas de perto e preservadas em sua pureza.
O fato de serem crianças de idades variadas contribuiu para combater a tendência a
uma certa homogeneidade nos discursos e representações gráficas, pois tivemos ali
presentes e representadas diferentes etapas do desenvolvimento e diferentes estágios de
domínio da expressão pictórica.
Uma preocupação constante do trabalho foi a de não direcionar ou influenciar os
desenhos das crianças. Neste sentido, a proposição da atividade procurou ser o mais
objetiva e genérica possível, consistindo apenas de um pedido para que desenhassem “um
cientista”.
Infelizmente, o fato da palavra já conter uma informação de gênero (masculino) e
da maioria das crianças participantes serem meninos poderia (em princípio) influenciar o
trabalho no sentido de se representarem majoritariamente cientistas homens. Porém,
quaisquer direcionamentos (“se vocês quiserem, podem desenhar cientistas homens ou
mulheres”) ou questionamentos (“uma mulher pode ser cientista?”) seriam interferências
potencialmente deletérias da espontaneidade que deveria ser a marca do trabalho.
Mais tarde, a análise dos desenhos animados e das imagens da Internet demonstrou
que existe uma claríssima uniformidade de gênero em torno da figura do cientista, o que
se refletiu nos desenhos das crianças.

Crianças, seus desenhos e os desenhos animados


Apesar de tratar-se de um estudo exploratório, a análise dos desenhos feitos pelas
crianças já indica, de imediato, alguns elementos recorrentes, alguns temas em comum
que merecem ser destacados. Foi feita a escolha de separar alguns desses elementos e
analisá-los em duplas, por guardarem entre si algumas relações bastante interessantes:
Jaleco e gravata
Quase todos os cientistas desenhados pelas crianças vestiam jalecos brancos e
gravatas. Esta parece ser a indumentária padrão do cientista, o seu “uniforme oficial”.
Assim como os meiões e chuteiras dos jogadores de futebol ou a batina dos padres, o
jaleco e a gravata estão sempre relacionados aos cientistas na expressão das crianças
analisadas. (v. fig. 1, 2 e 3)

Fig. 1 Fig. 2

Fig.3 Fig.4
O jaleco, também associado ao professor e ao médico, parece carregar a marca do
saber, do conhecimento e da pesquisa, todos relacionados ao cientista em mais de uma
maneira. Todos os cientistas desenhados pelas crianças vestem jalecos brancos,
cuidadosamente abotoados. A única exceção (v. fig. 4) foi o desenho que representa um
cientista de jaleco verde-claro, claramente com feições jovens, falando palavrões e
visivelmente irritado. Porém, como este personagem é identificado pela autora do
desenho com o nome de uma outra criança (o aniversariante), ele parece carregar um
forte traço “caricatural”, retratando o amiguinho como cientista, com os atributos e
identidades de ambos se misturando e contaminando.
Nos desenhos animados, os cientistas sempre usaram e continuam usando jalecos
brancos. Desde os mais antigos, como o Professor Ludovico (da Disney) até os mais
modernos, como o Professor Carvalho (de Pokémon), o jaleco acompanha e
verdadeiramente define o cientista nos desenhos. Tanto isso é verdade que, enquanto o
menino gênio Dexter (que usa jaleco branco) é reconhecido imediatamente pelas crianças
como um cientista, Jimmy Neutron (outro menino gênio bastante parecido com Dexter)
não é lembrado por elas espontaneamente como tal. Quando indagadas se Jimmy Neutron
seria ou não um cientista, elas responderam: “Não, ele é criança!” (v. fig. 5 e 6)
A gravata, por sua vez, parece representar a formalidade, a sisudez e a seriedade do
trabalho científico. Afinal, mesmo as crianças cujos pais e professores normalmente não
usam gravata representaram os cientistas com claras e às vezes muito bem destacadas e
desenhadas gravatas (v. fig. 2, 3 e 4). O trabalho formalizado e metódico (em referência
ao método científico) dos cientistas se manifestaria e estaria representado na forma
metódica e formal pela qual ele se veste? Detalhe: mesmo os cientistas “loucos”
desenhados pelas crianças usam gravatas (v. fig 2).
Outra representação muito associada à gravata é a de “adulto”. Uma criança de
gravata é logo vista como um “adulto em miniatura”. Ao desenharem seus cientistas com
gravatas, as crianças poderiam estar representando o fato da ciência ser uma ocupação de
adultos, de “velhos”. Vale ressaltar que nos desenhos animados, o Professor Toni, o “pai”
das Menina Super-poderosas veste jalecão e gravata, enquanto Dexter, o menino gênio,
usa apenas jaleco. E a gravata? Será que o fato de Dexter vestir um jaleco mas não usar
gravata representaria sua dupla (e dúbia) condição de cientista-criança? (v. fig. 5 e 7)
As imagens colhidas ao acaso num site de buscas da Internet utilizando apenas os
termos “cientista” ou “scientist” demonstraram a mesma onipresença do jaleco e da
gravata.

Óculos e canetas
A grande maioria dos cientistas desenhados pelas crianças usa óculos. Geralmente
desenhados com aros grossos, indicando os notórios “fundo-de-garrafa”, os óculos
poderiam estar sendo identificados com o saber, a sabedoria acumulada, o hábito de
muitas leituras e o consequente desgaste da visão ao longo dos anos. O estereótipo do
“quatro-olhos”, do “CDF” ou do “nerd” parecem estar relacionados de mais de uma
forma aos cientistas.
Tanto é assim que quando uma das crianças desenhou um cientista sem óculos (v.
fig. 4), preocupou-se em mostrar claramente as canetas em seu bolso, remetendo a outro
elemento bastante associado aos “nerds”, seja em filmes ou desenhos animados. Assim,
tanto os óculos quanto as canetas parecem carregar a representação social do saber, do
trabalho intelectual, da pesquisa, da leitura e da escrita, do conhecimento acumulado e
sistematizado.
Nos desenhos animados, Dexter usa óculos, que são incorporados de tal forma à sua
figura (e, portanto, à sua identidade como personagem) que assumem inclusive uma
dimensão tremendamente expressiva, variando o seu formato para denotar diferentes
estados de espírito (v. fig. 5 e 8). O Professor Toni (Meninas Super-poderosas) não usa
óculos, mas em compensação possui claramente duas canetas em seu bolso (v. fig. 7).
Bigode e carecas
Os cientistas retratados pelas crianças trazem quase todos grossos e fartos bigodes,
muitos deles indicando serem grisalhos ou brancos (v. fig. 1, 2, 9 e 10). Alguns são
carecas, outros não. E muitos têm cabelos brancos. Poderia essa escolha indicar um
requisito de idade para ser um cientista? Seria essa uma recorrência ou estaria ecoando o
arquétipo dos sábios de longas barbas e cabelos brancos da antiguidade?
Ou seria a calvice (e a careca brilhante que mais de uma das crianças fizeram
questão de indicar em seus desenhos - v. fig 1 e 10) uma referência alegórica do “uso
intensivo” do cérebro, do mesmo jeito que os óculos poderiam sugerir a idéoa do
desgaste progressivo da visão pelo excesso de leitura? Não se pode afirmar com
segurança a partir do reduzido alcance da presente pesquisa, mas sem dúvida essa é uma
questão sobre a qual se poderia refletir mais profundamente.

Laboratórios e tubos de ensaio


O habitat natural do cientista parece ser o laboratório. Pelo menos para as crianças
participantes desta pesquisa. Em seus desenhos, o cientista é muitas vezes retratado num
laboratório, onde figura sempre uma bancada com tubos de vidro de diversas formas e
tamanhos (v. fig. 9 e 11). Muitos dos cientistas desenhados carregam em suas mãos um
tubo de ensaio ou algum instrumento (v. fig. 1 e 4). O laboratório também é lembrado
pelas crianças em suas falas, como elemento definidor da condição de cientista. Quando
perguntados se o personagem Dexter seria ou não um cientista, elas não hesitaram em
afirmar que o fato de possuir um laboratóio é o bastante para qualificá-lo como cientista.
Não por acaso, Dexter possui, além do laboratório, muitos outros elementos (jaleco,
óculos grossos, luvas de borracha) que aparecem nas representações gráficas dos
cientistas, tanto nos desenhos das crianças quanto nas imagens colhidas na internet. O
laboratório, em sua etimologia, está ligado à noção de trabalho (lavoro) e essa idéia da
condição de cientista estar ligada a uma prática, a um trabalho se reflete também na
dimensão instrumental representada pelos tubos de ensaio e demais apetrechos
desenhados nas mãos dos cientistas pelas crianças. Como o estetoscópio dos médicos ou
o revólver dos cowboys, os instrumentos de trabalho do cientista (os tubos de ensaio e o
laboratório) ajudam a representá-lo, definindo-o.

Einstein, Frankesntein e o cientista louco


Outro ponto recorrente nos desenhos e discursos das crianças foram as referências
ao Dr. Frankenstein, aos cientistas loucos e a Albert Einstein, lembrado oralmente e
também através do desenho de uma das crianças, que reproduziu com rara fidelidade
(inclusive de proporções) a famosa foto do cientista alemão com a língua de fora (v. fig.
13). A única diferença é que, no desenho da criança em questão (v. fig. 9 e 13), o
cientista está de óculos (v. item “óculos e canetas”). No diário de campo, consegui
registrar o momento em que a primeira referência ao cientista louco aparece e como
rapidamente conduz às outras lembranças.
Reproduzo a seguir o trecho relevante:
“Pequenos e grandes se misturam, começam a desenhar. Surge
um velho careca, de cabelos arrepiados e jaleco branco, com bigode e
óculos grossos, esfregando as mãos. Um dos meninos faz graça: “olha
o cientista maluco!” “Cien-tis-ta Ma-luuuu-co!” cantarola um outro.
Começa a desenhar um cientista mais jovem (sem ser careca!), de
jaleco, gravata, óculos grossos, bigode e língua de fora. Outro faz um
desenho bem parecido (copiar vale?).
Dialogam. “Cientista louco!!!” diz um deles, colocando o título
no seu desenho. Alguém fala em Einstein, “Albert Einstein” corrige o
outro. Alguém lembra o Frankenstein (chamado de “Franquistêim”).
Eu provoco: “mas esse era um monstro!” “Não, o cientista que fez o
monstro também era Franquistêim.” E era mesmo...

Em desenhos bem conhecidos, como Pernalonga, Tom e Jerry e Pica-Pau, entre


outros, os cientistas aparecem geralmente em recriações das situações clássicas de
romances como O Médico e o Monstro e Frankenstein, ou através do estereótipo do
“cientista louco” (explorado em incontáveis gags e esquetes cômicas): um sujeito
atrapalhado, de cabelos arrepiados, olhos esbugalhados, um tanto quanto distraído e
geralmente com sotaque germânico. A figura do Dr. Albert Einstein, de olhos
arregalados, com os cabelos arrepiados e a língua de fora parece sintetizar todas as
representações presentes no arquétipo do cientista louco. De certa forma, essa imagem e
as anedotas sobre as “distrações” do famoso cientista alemão ajudariam a humanizá-lo,
tornando-o uma figura simpática, divertida, quase como um ícone pop, cumprindo a
importante função de transformá-lo numa espécie de “garoto-propaganda” ou “relações
públicas” da ciência junto ao público leigo, especialmente durante o pós-guerra.
Uma análise histórica dos personagens cientistas nos desenhos animados poderia
indicar ainda a existência (ou não) de um certo paralelismo entre o momento histórico e a
maneira como os cientistas são mostrados nos desenhos animados, especialmente em
períodos críticos como a segunda guerra mundial, a guerra fria ou a corrida espacial,
quando a ciência assume um papel preponderante e virtualmente muda o mundo.
Hoje, quando tanto se fala em clonagem, DNA e engenharia genética, talvez
estejamos passando por outro desses períodos. A presença de tantos cientistas entre os
protagonistas dos desenhos animados parece ser um indicativo dessa conjectura. Não por
acaso, as famosas e populares Meninas Super-poderosas nasceram num laboratório, a
mesma origem do grande vilão da série, o Macaco Louco, fruto de outro experimento do
Professor Toni.

Cientista ou criança?
Uma das discussões mais interessantes dessa pesquisa surgiu do confronto entre
dois personagens dos desenhos animados. Um deles - Dexter - foi citado imediatamente
pelas crianças como exemplo de cientista. Questionados sobre o personagem Jimmy
Neutron, um outro menino gênio dos desenhos (que estranhamente não fora mencionado
espontaneamente), as crianças responderam que Jimmy Neutron não era cientista, pois
era criança.
Seriam então o cientista e a criança papéis excludentes? Mas o personagem Dexter
não é criança e (ao mesmo tempo) um cientista? “Ah, mas ele tem laboratório...” foi a
resposta. Pode ser... Mas será que o fato de Dexter se vestir com jaleco e usar óculos
poderia ser igualmente (ou muito mais) determinante nessa definição dele como
cientista? Até porque Jimmy Neutron não usa óculos e nem jaleco, o que o representa
visualmente como uma criança “normal”.
Esta questão parece sintetizar de forma expressiva toda a discussão acerca das
representações sociais presentes na figura dos cientistas e difundidas nos desenhos
animados infantis. Dexter, que se veste com jaleco, usa óculos “fundo de garrafa” e
trabalha (no sentido de realizar diversas atividades) num laboratório é identificado como
cientista. Já Jimmy Neutron, que se veste com calção, camiseta e tênis, não usa óculos e
que, apesar de realizar experimentos e construir as mais incríveis geringonças
tecnológicas (exatamente como Dexter), não habita um laboratório, acaba identificado
(visual e essencialmente) como “criança”. Do contraste entre esses dois personagens
poderíamos extrair muitas indagações e inquietações.
Afinal, no momento em que as crianças vêm assumindo cada vez mais o papel de
protagonistas nas narrativas da cultura de massa, será que ainda existiriam territórios
(como a ciência) que seriam interditos a elas? Para ocupar esses espaços e ser
reconhecida, a criança teria então de se “travestir”, mimetizando as características do
adulto? Seria esse movimento análogo ao da erotização precoce através da moda, dos
cosméticos, das músicas e danças e da mídia em geral?
Pela natureza limitada e eminentemente exploratória deste exercício de pesquisa, é
natural que as questões que emergiram durante essa busca inicial por uma articulação do
campo das representações sociais com algumas reflexões críticas a respeito da cultura de
massa infanto-juvenil fiquem ainda sem resposta. E, se não foi possível avançar na
análise dos problemas e questões levantados, pelo menos fica bem claro o potencial desse
viés de investigação.
Afinal, as estatísticas vêm apontando uma sempre crescente e quase avassaladora
presença da mídia no cotidiano de crianças e jovens em todo o mundo. Segundo pesquisa
da Kaiser Family Foundation (2005), quem tem hoje entre 8 e 18 anos nos EUA consome
mídia durante seis horas e meia diariamente, o que representa dedicar mais de um quarto
do seu dia aos meios de comunicação. Se descontarmos as horas de sono diárias, os
números tornam-se ainda mais alarmantes.
Portanto, entendo que uma articulação mais estreita entre o campo das
representações sociais e os estudos sobre a influência da cultura da mídia na constituição
das identidades e na produção de sentidos por parte de crianças e jovens pode ajudar a
iluminar essas e outras questões relevantes, profundas e decisivas para a nossa
compreensão dessa verdadeira “geração mídia” (media generation), para a qual a cultura
da mídia se torna cada vez (e cada dia) mais parte daquilo que Silverstone (2002)
caracteriza como a “textura geral da experiência” no mundo de hoje.
Referências Bibliográficas
FERNANDES, Adriana Hoffmann (2003). As mediações na produção de sentidos
das crianças sobre os desenhos animados. Dissertação (mestrado) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação, Rio de Janeiro

GIROUX, Henry A. (2001). Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da


Disney. In: Tomaz Tadeu da Silva (org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução
aos estudos culturais em educação. Petrópolis, RJ: Vozes.

__________________(1995). A disneyzação da cultura infantil. In: Tomaz Tadeu


da Silva, Antônio Flávio Moreira (orgs.). Territórios contestados: o curríulo e os novos
mapas políticos e culturais. Petrópolis, RJ: Vozes.

__________________ (2001a). Os filmes da Disney são bons para os seus filhos?.


In: Shirley R. Steinberg e Joe L. Kincheloe (orgs.). Cultura infantil: a construção
corportaiva da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

GUARESCHI, Pedrinho A. e JOVCHELOVITCH, Sandra (orgs.) Textos em


representações sociais. Petrópolis, RJ: Vozes. 1994

JODELET, Denise (2001). Representações sociais: um domínio em expansão. In:


Denise Jodelet (org.) As Representações Sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ.

KAISER FEMILY FOUNDATION (2005) Generation M: Media in the Lives of 8-


18 Year-olds – Report . Disponível em http://www.kff.org/entmedia/7251.cfm Acesso em
04/2005.

MEYROWITZ, J. (1985) No sense of Place: The Impact of Electronic Media on Social


Behavior. Oxford: Oxford University Press.

MINAYO, M. C. S, ASSIS, S. G. de, SOUZA, E. R. de, et. al. Fala galera:


juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond,
1999.

MOSCOVICI, Serge(1994). Prefácio. In GUARESCHI, Pedrinho A. e


JOVCHELOVITCH, Sandra (orgs.) Textos em representações sociais. Petrópolis, RJ:
Vozes

__________________(2001). Das representações coletivas às representações


sociais: elementos para uma história. In: JODELET, Denise (org.) As Representações
Sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ.

POSTMAN, Neil (1999) O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia


SÁ, Celso Pereira de (1998). A construção do objeto de pesquisa em
representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ.

SARMENTO, Manuel Jacinto (2003). O estudo de caso etnográfico em educação.


In Zago, Nadir; Carvalho, Marília Pinto e Vilela, Rita Amélia T. (orgs). Itinerários de
pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro: DPA (pp.
137 a 179)

SILVESRTONE, R. (2002) Por que estudar a Mídia?, São Paulo: Edições Loyola

VEIGA, Luciana e Gondim, Sonia (2001) A utilização de métodos qualitativos na


ciência política e no markting político. Opinião pública, 2(1) 15

View publication stats

Você também pode gostar