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Ensino FAMART

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APONTAMENTOS PARA
PENSAR O ENSINO DE
HISTÓRIA HOJE

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 3
O ENSINO MÉDIO: EM BUSCA DE UM LUGAR .............................................. 7
A GUERRA DAS NARRATIVAS: DEBATES E ILUSÕES E TORNO DO
ENSINO DE HISTÓRIA ..................................................................................... 15

EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (1): PARA MANTER A ORDEM


ESTABELECIDA…………………………………………………………………….…33
EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (2): QUANDO OS ESTADOS SE
RECONSTITUEM.............................................................................................. 35
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS .................................................................. 43

Todos os direitos reservados ao Grupo Famart de Educação.


Reprodução Proibida.
Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Grupo Famart de Educação – Comprometimento com o seu ensino.

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INTRODUÇÃO

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por reformulações


curriculares no Brasil, promovidas por estados e municípios, que não
necessariamente surtiram efeito na modificação de práticas docentes. Estas
reformulações têm relação direta com a transição da ditadura civil militar para
um período democrático, em um mundo em processo de globalização. Após
1982, os governos estaduais eleitos rediscutiram o que se ensinava nas
escolas, em meio a uma reação dos educadores brasileiros contra os currículos
mínimos estabelecidos a partir da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação
de 1971 (no 5.692, de 11/08/71).
A LDB reforçava a tradição herdada dos anos 1930, de centralização das
tomadas de decisão sobre a escola. Atribuía aos Conselhos Federal e Estadual
de Educação as definições do núcleo comum de conteúdos e da parte
diversificada do ensino, respectivamente. Em tese, o planejamento era feito
fora da escola, por órgãos de governo criados para tal fim. Isto provocou a
resistência dos professores às propostas curriculares, quase sempre vistas
como “pacotes” externos, distantes da realidade escolar.
As reformulações curriculares dos anos 1980 e 1990 tentaram romper com a
ideia de impor um “pacote” diretivo à escola. Em função disto, as Secretarias de
Educação procuraram construir suas propostas pela via do diálogo com os
apontamentos para pensar o ensino de História hoje: reformas curriculares,
Ensino Médio e formação do professor professores das redes, através de
reuniões e de escolhas de representantes docentes. Esta mudança foi
significativa, já que o professor, em alguns casos, deixou de ser entendido
apenas como transmissor de conhecimento e passou a desempenhar o papel
de coautor, apesar da impossibilidade de mobilizar todos os docentes.
Em meados da década de 1990, este movimento de reformulação
curricular trilhou um novo rumo. Pela primeira vez após a ditadura, a União
tomou para si a responsabilidade de rever os currículos existentes,
estabelecendo parâmetros básicos. As propostas então desenvolvidas
sofreram inúmeras críticas, sendo algumas rejeitadas pelos docentes, como foi

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o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio.


Divulgados em 1999, os PCNs buscavam superar a lógica disciplinar presente
nas escolas. Entre outras coisas, propunham reorganizar o Ensino Médio em
três áreas: Linguagens, códigos e suas tecnologias, Ciências da Natureza,
Matemática e suas tecnologias e Ciências Humanas e suas tecnologias. No
último ano de governo de Fernando Henrique Cardoso, foram publicados os
PCNs, contendo um volume para cada área de conhecimento.
Esta versão mais detalhada das áreas surgiu como resposta às críticas
feitas ao primeiro documento, havendo um significativo investimento no sentido
de convencer o professor da qualidade da proposta e da vantagem em adotá-
la. Em 2004, agora sob o governo de Luís Inácio Lula da Silva, voltou-se a
discutir estes PCNs. Depois de idas e vindas, o MEC finalmente reconheceu a
pouquíssima recepção que a proposta teve entre os professores do Ensino
Médio. A retomada da discussão se deu a partir da divulgação de documentos
preliminares, escritos por especialistas, acerca do papel de cada disciplina no
interior das áreas de conhecimento. A fim de compreender sua restrita
recepção, tendo como foco o ensino escolar da História, propõe-se realizar três
movimentos.
Um ministro e suas políticas para a educação. Ao ler textos de
educadores que analisam as políticas públicas de educação implementadas
pelo MEC, durante a gestão de Paulo Renato Souza, é difícil chegar a qualquer
conclusão. Tem-se a impressão de não existir consenso acerca dos benefícios
destas políticas. Por vezes, alguns aspectos são elogiados. Outras vezes,
todas as ações implementadas são criticadas, sendo acusadas de estarem
distantes dos projetos formulados por educadores brasileiros e próximos da
agenda para a educação proposta por órgãos internacionais, tais como: a
UNESCO, o BID e o BIRD. Os órgãos internacionais são frequentemente vistos
como defensores de interesses externos à sociedade brasileira, muito ligados a
grandes corporações transnacionais. A ausência de um consenso mínimo
acerca dos benefícios destas políticas públicas é um sinal do quanto as
questões relacionadas à educação eram, na época, como são até hoje, alvos
de intensas disputas, em que diversos grupos, com seus projetos políticos,

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concorrem entre si. Reconhecendo a complexidade do tema, busca-se aqui


apenas situar os PCNs como parte de um conjunto mais largo de ações.
Durante a gestão do ministro, pode-se claramente perceber uma marca. O
MEC, em conjunto com o Conselho Nacional de Educação (CNE), se dedicou
muito à tarefa de planejamento educacional, através de uma intensa produção
de propostas curriculares, então denominadas de diretrizes.
Em dois anos, 1998 e 1999, a Câmara de Educação Básica (CEB) emitiu
pareceres e aprovou resoluções sobre as diretrizes curriculares nacionais para
a Educação Infantil, o Ensino Fundamental, o Ensino Médio, a Educação
Profissional de Nível Técnico e a Formação de Docentes, em nível médio, na
modalidade Normal. Por sua vez, nos anos 2000, a Câmara de Ensino Superior
(CES) desempenhou papel importante na aprovação de resoluções acerca das
diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação. Os PCNs para os
ensinos Fundamental e Médio fazem parte deste esforço de planejamento do
MEC, tendo, certamente, relação direta com o fim da ditadura civil-militar e,
além disto, com a LDB de 1996, que atribuiu à União o papel de formular
diretrizes para o Ensino Superior e para a Educação Básica, em conjunto com
os estados e os municípios. As diretrizes curriculares, bem como os PCNs para
o Ensino Médio, possuem uma característica comum: foram organizados a
partir da definição de competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos
alunos ao longo do processo de ensino aprendizagem. Logo, tanto para as
diretrizes curriculares como para os PCNs, mais importante do que aprender
um conteúdo relativo a uma área de conhecimento é desenvolver
procedimentos que permitam ao aluno aprender a conhecer. Grande parte das
diretrizes não faz qualquer menção ao conteúdo a serem trabalhados, listando
apenas as tais competências e as habilidades.
Esta forma de organizar os currículos, presente em outros países, tornou-
se hegemônica na produção legal do governo brasileiro desde o final dos anos
1990. O importante a ressaltar é que não há consenso entre os educadores
brasileiros no que diz respeito à organização de currículos a partir de
competências e habilidades. Há fortes dúvidas acerca de como,
consensualmente, defini-las em áreas menos procedimentais, como é o caso

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de História. Em disciplinas como Português e Matemática, é mais fácil chegar a


um consenso sobre as competências e as habilidades. Em Matemática, por
exemplo, ao final de um certo tempo de estudo, é possível avaliar se o aluno
será capaz de realizar as quatro operações: adição, subtração, multiplicação e
divisão. Criticando a estruturação dos currículos a partir de competências e
habilidades, pesquisadores alertam que tais termos estão comprometidos com
um certo aprender a fazer, muito relacionado ao mundo da produção. Além do
planejamento, houve um investimento significativo do MEC na construção de
instrumentos de avaliação capazes de realizar um diagnóstico qualitativo do
sistema educacional brasileiro. Tarefa que também foi definida como uma
atribuição da União na LDB de 1996. Porém, neste caso, a montagem de
instrumentos de avaliação é anterior e decorre de pressões externas, feitas por
órgãos internacionais, como a UNESCO. Na gestão de Paulo Renato Souza, o
Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) foi aperfeiçoado e outras
avaliações foram criadas: o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o
Exame Nacional de Cursos (ENC), todos sob a responsabilidade do INEP. O
SAEB12 e o ENEM,13 da mesma forma que as diretrizes curriculares e os
PCNs para o Ensino Médio, são organizados com vistas a aferir se os alunos
desenvolveram, ou não, as competências e as habilidades de cada nível de
ensino.
Estes instrumentos de avaliação, produtores de uma série de indicadores
estatísticos, não são uma especificidade do caso brasileiro, muito pelo
contrário, vão ao encontro de um movimento maior, de formulação de
instrumentos de avaliação internacional da educação. Por exemplo, o
Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), implementado pela
Organização para a Coordenação do Desenvolvimento Econômico (OCDE),
avalia alunos na faixa dos 15 anos, construindo indicadores sobre a efetividade
dos sistemas educacionais, dentro de uma perspectiva comparada.15 Além do
planejamento e da avaliação, os PCNs se fazem presentes, também, na
produção de materiais didáticos. Desde 1995, o Ministério da Educação
retomou a distribuição do livro didático no Ensino Fundamental, para todas as
escolas públicas brasileiras. No ano seguinte, pela primeira vez, ocorre o

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processo de avaliação pedagógica dos livros inscritos no Programa Nacional do


Livro Didático (PNLD), de 1997. A partir de 1996, o MEC exclui de suas
compras livros que apresentam erros conceituais, indução a erros,
desatualização e preconceito ou discriminação de qualquer tipo.
Posteriormente, ao invés de livros avulsos, são avaliadas somente coleções
didáticas, e os critérios de exclusão são aperfeiçoados. Com o lançamento dos
PCNs, passa a ser muito recorrente a presença de selos nas capas dos livros
didáticos anunciando suas adequações aos Parâmetros. Logo, há um
movimento de revisão dos materiais didáticos feitos pelas editoras, tanto para
se adequar à nova proposta curricular, como para se adaptar aos critérios de
avaliação do PNLD. A divulgação dos Parâmetros também se faz bastante
presente pela via da TV Escola, criada em 1995, cujo sinal é transmitido para
todas as escolas brasileiras de porte médio. Sua grade de programação é
bastante vinculada aos PCNs. Os programas apresentados são classificados
de acordo com o nível de ensino (infantil, fundamental e médio) e a área de
conhecimento a que se destinam. Com isto, sugerem formas de trabalhar com
temas ou conceitos presentes nos Parâmetros. Apesar de eles serem
apresentados como auxiliares, a análise das políticas públicas de educação de
Paulo Renato Souza demonstra todo o investimento feito pelo MEC em
transformar o proposto nos PCNs em realidade, seja adotando-os como um
dos critérios de avaliação do sistema de ensino brasileiro, seja incorporando-os
à produção de materiais didáticos. Mesmo após todos os investimentos, os
PCNs para o Ensino Médio continuam tendo poucos ecos nas escolas; resta
saber o porquê. Uma das respostas encontra-se na história do Ensino Médio
no Brasil.

O ENSINO MÉDIO: EM BUSCA DE UM LUGAR

Desde a década de 1990, grande parte dos documentos produzidos pelo


governo federal acerca da situação da educação brasileira utiliza dados
estatísticos elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

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Estatística (IBGE), para demonstrar que o Ensino Médio passa, desde o final
dos anos 1980, por um processo de expansão significativo de matrículas.
Quanto ao Ensino Fundamental, o processo teve início nos anos 1970, sendo
que, na atualidade, praticamente vivenciamos a universalização de seu acesso.
A expansão das matrículas e a distância da universalização são os argumentos
utilizados nos PCNs para justificar a necessidade de uma reforma do Ensino
Médio. Em menos de 10 anos, de 1988 a 1997, as matrículas cresceram em
mais de 90%. Apesar da expansão, ao se considerar a população de 15 a 17
anos, idade adequada para frequentar tal nível, constata-se que o índice de
escolarização não ultrapassa 25%. Bem abaixo dos países do Cone Sul, em
que o índice alcança de 55% a 60%. Ao mesmo tempo em que se verifica uma
explosão na demanda, constata-se uma concentração das matrículas nas
redes públicas estaduais e no período noturno. Estudos do INEP, feitos em
nove estados, com concluintes do Ensino Médio, demonstram que 54% são
originários de famílias com renda mensal de até 6 salários mínimos. Com base
nestes dados, o texto dos Parâmetros conclui que, pela primeira vez, existe
uma incorporação de jovens e adultos de classes sociais que nunca
participaram deste nível de ensino, tão voltado, na sua história, para a
formação das elites brasileiras. A história do ensino secundário no Brasil, não
muito diferente de nossos vizinhos da América Latina, é marcada pela
existência de uma dualidade entre os tipos de formação: a profissionalizante,
endereçada aos trabalhadores, e a propedêutica, com vistas ao ensino
superior, direcionada para as elites. Esta dualidade se faz presente desde o
início da República.
À época, a formação profissional era tida como uma maneira eficiente de
moralizar os pobres, ensinando-lhes um ofício. Em 1909, 19 escolas de artes e
ofícios foram criadas por todo o Brasil. Além destas escolas, aos trabalhadores
era dada a opção de frequentar o curso rural ou o curso profissional, com
duração de 4 anos. Para os egressos de tais cursos, no nível ginasial, só havia
opções de ensino para o mundo do trabalho: o curso normal, o curso técnico
comercial e o técnico agrícola. Um outro percurso escolar era planejado para
os filhos das elites. Distantes dos trabalhos manuais, suas escolas

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contemplavam uma formação de cunho geral, iniciando no ensino primário,


passando pelo secundário propedêutico e terminando no superior. Esta
dualidade na formação escolar obteve reforço na década de 1940. Por iniciativa
de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas,
entre 1942 e 1946, entraram em vigência as Leis Orgânicas de Ensino. Para os
alunos egressos das classes trabalhadoras, foram criados vários cursos
técnicos de 2o ciclo, o ensino agrícola (Decreto-lei no 9.613/46), o comercial
(Decreto-lei no 6.141/43), o industrial (Decreto-lei no 4.073/42) e o curso
normal (Decreto-lei no 8.530/46). Além destes, foram criados dois sistemas
privados para a formação profissional: o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (SENAI) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC).
Os diplomas de tais cursos não eram aceitos para entrar no ensino superior.
No caso das elites, mais uma vez a trajetória escolar era distinta. Através do
Decreto-lei no 4.244, de 9 de abril de 1942, foram criados o científico e o
clássico, dois cursos médios de 2º ciclo, com duração de 3 anos. Estes eram
os cursos que mantinham o caráter propedêutico, dando acesso ao ensino
superior.
Em 1961, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 4.024, de
20/12/61) integrou o ensino profissional ao sistema regular, equiparando os
cursos profissionalizantes e propedêuticos, para fins de acesso ao ensino
superior. Passados 10 anos, em 1971, a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação propôs a superação da dualidade, através da obrigatoriedade do
ensino profissionalizante. Tal medida sofreu enorme resistência de setores da
sociedade, que lutaram pela manutenção do caráter propedêutico deste nível
de ensino. Em 1975, o Parecer no 76 eliminou a obrigatoriedade da
profissionalização e restabeleceu a formação geral no Ensino Médio, sendo
reafirmado pela Lei no 7.044/82. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de
1996 estabeleceu ser o Ensino Médio a etapa final da Educação Básica. Pela
primeira vez na educação brasileira, o Ensino Médio adquiriu uma função
formativa em si, rompendo com as diretrizes propedêutica e profissionalizante.
Neste sentido, a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, busca distanciar-se
da dualidade que marca este nível de ensino desde o início do século XX. Os

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PCNs para o Ensino Médio foram formulados tendo como horizonte este
distanciamento da dualidade. Trata-se de um nível de ensino que, atualmente,
ao menos do ponto de vista legal, possui um lugar em si, e não mais voltado
para preparar para um ofício ou para ascender ao ensino superior. Como etapa
final da Educação Básica, o Ensino Médio adquire o papel de finalização de
uma formação que se inicia, pelo menos, 8 anos antes. No entanto, é preciso
lembrar que existe uma grande diferença entre o lugar proposto pela LDB de
1996 para o Ensino Médio, reafirmado nos PCNs, e o papel que tal nível
desempenha na prática. Como professor da disciplina Prática de Ensino de
História, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, trabalhando há
4 anos com colégios públicos estaduais de Ensino Médio, situados no
município de São Gonçalo, é possível perceber algumas das lacunas deste
nível de ensino. O Ensino Médio parece pouco contribuir para a formação dos
alunos, muitos possuindo problemas bastante significativos de letramento, algo
que se verifica com os resultados das provas do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB). Tudo indica que, em muitas escolas, o Ensino Médio
nada mais é do que um lugar de certificação, no qual é possível obter um
diploma mais valorizado no mercado de trabalho do que o do Ensino
Fundamental. Atualmente, o Ensino Médio parece distante tanto da
profissionalização, quanto da formação para acessar o ensino superior. No
entanto, muitos de seus alunos querem tentar o vestibular. De alguma forma, a
perspectiva de lugar de passagem para um outro nível ainda é bastante
presente e tende a ser reforçada, pois vivemos um momento em que se adota
como política pública de educação a bandeira da universidade para todos. Não
é por acaso que, na década de 1990, se espalham, ao menos pelo Rio de
Janeiro, os pré-vestibulares comunitários, que possuem a tarefa de preparar os
alunos carentes para prestarem, com mínimas chances, os concursos de
acesso a diversas universidades. Não custa lembrar que o apoio financeiro a
estes pré-vestibulares ganhou status de política pública durante a gestão de
Paulo Renato Souza. Não deixa de ser um paradoxo, se pensarmos que tal
política foi implementada justamente na gestão do ministro que propôs um
lugar próprio para o Ensino Médio, para além do caráter propedêutico e

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profissionalizante.
Nos PCNs referentes aos dois primeiros ciclos do Ensino Fundamental,19
publicados em 1997, a disciplina Estudos Sociais, marca das reformas
curriculares dos anos 1970, é substituída por História e Geografia, sinalizando
ao professor a necessidade de trabalhar noções introdutórias destas disciplinas
com os alunos. Além desta substituição, os PCNs organizam os conteúdos de
História por eixos temáticos: História local e do cotidiano (1º ciclo) e História
das organizações populacionais (2º ciclo).20 A opção de organizar os
conteúdos por eixos temáticos também se manteve nos PCNs voltados para os
ciclos finais do Ensino Fundamental, editados em 1998. Ao professor da
disciplina escolar História é sugerido trabalhar com a História das relações
sociais, da cultura e do trabalho, no 3º ciclo, e a História das representações e
das relações de poder, no 4º ciclo. Além de organizarem os conteúdos por
eixos temáticos, os PCNs para o Ensino Fundamental traçam objetivos gerais
para o ensino de História, visando que os alunos, ao longo de 8 anos, possam
ampliar a compreensão de sua realidade. Ao analisar os currículos de História
produzidos no Brasil para o Ensino Fundamental na década de 1990, Circe
Bittencourt conclui que, quanto aos conteúdos, a disciplina Estudos Sociais
continuava a ser hegemônica entre a 1ª e a 4ª séries; no entanto, da 5ª série
em diante, a separação entre História e Geografia era um fato. A partir da 5ª
série, constata ainda que grande parte dos currículos ordenava os conteúdos,
utilizando a terminologia marxista dos modos de produção. Para a história do
Brasil, tenderam a reparti-la pelos eixos políticos (Colônia, Império e República)
ou pelos ciclos econômicos (da borracha, da cana-de-açúcar, do ouro e do
café). Eram minoritários os currículos que organizavam os conteúdos por temas
geradores ou eixos temáticos.
Logo, as opções feitas nos PCNs para o Ensino Fundamental trilharam o
caminho do que não era hegemônico, eliminando os Estudos Sociais de todas
as séries e ordenando os conteúdos por eixos temáticos. Os PCNs para o
Ensino Fundamental foram construídos, de alguma maneira, no diálogo com a
produção curricular dos estados e municípios das décadas de 1980 e 1990.

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Quanto à História, é possível, inclusive, perceber inspirações em certas


propostas curriculares, como no caso do currículo formulado pela Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo, na segunda metade dos anos 1980.
Distante desta produção curricular, os PCNs para o Ensino Médio foram
organizados de modo muito diferente, tendo como base a definição das
competências e das habilidades que o aluno deveria desenvolver durante este
nível de ensino. Esta forma de organização de currículo, como visto, foi
bastante utilizada pelo MEC no início dos anos 2000. Na primeira versão dos
PCNs, de 1999, é feita uma argumentação acerca do sentido da área de
Ciências Humanas e suas Tecnologias no Ensino Médio, baseada na retomada
e na atualização da educação humanista. Esta argumentação associa os
princípios estéticos, políticos e éticos previstos nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio como fundamentais para a organização escolar
e curricular com os princípios propostos pela Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, da UNESCO, fundamentados no aprender a
conhecer, a fazer, a conviver e a ser. A área adquire sentido a partir da
construção de uma estética da sensibilidade, “que supera a padronização e
estimula a criatividade e o espírito inventivo”, de uma política da igualdade,
“que consagra o Estado de Direito e a democracia”, e de uma ética da
identidade, “desafio de uma educação voltada para a constituição de
identidades responsáveis e solidárias”. Os PCNs para o Ensino Médio
compartilham da interpretação de que o mundo do século XXI está em
constante e acelerada transformação, fruto da globalização. Ao longo do texto,
surgem termos como sociedade do conhecimento ou sociedade tecnológica
para classificar este mundo, que, supostamente, tende a fragmentar
identidades. Dentro desta perspectiva de mudanças aceleradas, o aprender a
conhecer ganha destaque dentre os demais princípios, pois pressupõe uma
educação permanente para todos, fundada não mais na quantidade de
informações, mas na capacidade de lidar com elas. Daí a opção por uma
formação baseada no desenvolvimento de competências e habilidades,
estruturadas em três eixos:
1. representação e comunicação;

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2. investigação e compreensão;
3. contextualização sociocultural A contribuição dos conhecimentos de História
para a área de Ciências Humanas e suas Tecnologias, assim como de
Geografia, Sociologia, Antropologia, Política e Filosofia, é tratada nos PCNs de
forma bastante superficial.
O texto procura responder por que ensinar História, o que ensinar e como
fazê- lo. A construção dos laços de identidade e a consolidação da formação
da cidadania são as principais contribuições dos conhecimentos de História,
além de ensinar o aluno a ler o mundo nas entrelinhas. A construção da
identidade é abordada no texto dos PCNs a partir de uma extensa discussão
sobre as noções de tempo histórico, referenciadas na cultura.
A discussão de tempo histórico acaba levando a uma reflexão sobre a
sociedade atual, vista como um presente contínuo, “que tende a esquecer e
anular a importância das relações que o presente mantém com o passado”.
Nesta sociedade, cabe à História, junto com o seu ensino, livrar “as novas
gerações da ‘amnésia social’ que compromete a constituição de suas
identidades individuais e coletivas”. Logo, à identidade se junta a memória
como mais um direito de cidadania, que implica pensar no significado de
“lugares de memória”, ou seja, festas, monumentos, museus, arquivos e áreas
preservadas. No volume dedicado à área de Ciências Humanas e suas
Tecnologias do PCN, de 2002, há um investimento no sentido de tentar
convencer os professores das vantagens de se reformular o Ensino Médio. De
forma menos superficial do que a versão de 1999, o texto explica a opção por
romper a lógica de organização disciplinar dos conhecimentos tão presente no
nível médio. Nos PCNs, a contribuição dos conhecimentos de História assim
como de Filosofia, Geografia e Sociologia é valorizada na medida em que os
professores busquem construir aulas baseadas em “competências e
habilidades”. Basta citar os títulos referentes aos conhecimentos de História
para perceber o tom de diretivo desta versão complementar: Os conceitos
estruturadores da História, O significado das competências específicas de
História, A articulação dos conceitos estruturadores com as competências
específicas da História e, por fim, Sugestões de organização de eixos

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temáticos em História. Diferente da versão de 1999, há uma preocupação em


adequar a proposta curricular, com seu discurso das competências e
habilidades, a uma linguagem mais familiar aos professores, dos conceitos e
eixos temáticos. O texto dos PCNs comporta uma clara dicotomia entre o velho
e o novo Ensino Médio, que se quer construir.
O atual Ensino Médio é visto como despreparado para dar uma formação
adequada aos alunos que vivem num mundo em constante transformação,
pois, ao invés de ensinar a conhecer, está bastante comprometido com um
ensino portador de um caráter informativo. Ao final de cada volume dos PCNs
existe um item intitulado de Formação profissional permanente dos
professores, que se divide em: A escola como espaço de formação docente e
as práticas do professor em permanente formação. Este item, que não costuma
estar presente em propostas curriculares, assim como não esteve na versão de
1999, é indício de que o MEC atribui à formação dos professores uma parte,
talvez significativa, das dificuldades encontradas em implementar a reforma no
Ensino Médio, presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Logo, o
problema encontra-se no professor, cuja formação ainda não está adequada a
uma prática de ensino fundamentada em “competências e habilidades”.
Apontar a formação profissional do professor como um problema permite
concluir o texto, retornando à análise das políticas públicas de educação. Nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da
Educação Básica, de 2001, a proposta de uma identidade profissional para o
professor sai vitoriosa. Tal proposta critica claramente o modelo aplicacionista
do conhecimento. De acordo com este modelo, durante um certo tempo, os
alunos assistem a aulas baseadas em disciplinas e, em seguida, estagiam,
aplicando os conhecimentos aprendidos. Somente ao terminar a formação
inicial é que, de fato, aprenderão o ofício na prática. Maurice Tardif,
pesquisador canadense da área de Educação, aponta que o principal problema
do modelo aplicacionista é ser “idealizado segundo uma lógica disciplinar e não
segundo uma lógica profissional centrada no estudo das tarefas e realidades
do trabalho dos professores”.

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Na perspectiva do autor, ao construir uma aula na escola, os saberes


profissionais dos professores são muito mais importantes, diria até decisivos,
do que os conhecimentos universitários adquiridos na formação inicial, quase
sempre esquecidos. Esta pouca importância dos conhecimentos adquiridos na
formação inicial pode ser colocada em dúvida através da própria resistência
dos professores do Ensino Médio à proposta contida nos PCNs. Mais do que
não ser implementado por um problema de formação, a proposta vai de
encontro há anos de experiências formativas acumuladas, tanto na
universidade como nas escolas. Gerações de professores se formaram
pensando na especificidade do ensino de suas disciplinas. No caso de História,
a luta pelo fim da licenciatura curta, implantada nos anos 1970, e o
desenvolvimento da pós-graduação geraram o pressuposto, até hoje válido, de
que a formação do professor é indissociável da formação do pesquisador.
Neste modelo, o professor de História adquire autonomia em sua prática
docente ao saber, dentre outras coisas, como se constrói conhecimento na
área. Isto permite que o professor e o pesquisador de História compartilhem
uma linguagem comum, apesar da especificidade de suas práticas. O caminho
trilhado neste artigo demonstra que as críticas aos PCNs, sobretudo os do
Ensino Médio, e as dificuldades surgidas na sua utilização não podem ser
unicamente compreendidas a partir do problema da formação dos professores,
que, inegavelmente, existem. É preciso considerar que a construção de uma
proposta que se quer fundadora de um novo Ensino Médio não pode estar
dissociada das práticas docentes desenvolvidas neste nível de ensino, das
experiências formativas existentes até então e da história deste ensino no
Brasil.

A GUERRA DAS NARRATIVAS: DEBATES E ILUSÕES EM TORNO DO


ENSINO DE HISTÓRIA

A transição dos currículos das Licenciaturas ora em desenvolvimento é


ensejada pela promulgação da LDB 9.394/96 e as regulamentações
posteriores, elaboradas no contexto da discussão dos profissionais dos cursos

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de Licenciatura sobre os melhores formatos para dar conta das necessidades


impostas pela ciência e pela conjuntura educacional.
Entre essas regulamentações, encontra-se a implantação da
obrigatoriedade de no mínimo 300 horas de estágio, e depois o longo debate e
publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Graduação
e, em específico, as Diretrizes Curriculares para os cursos superiores de
formação de professores. O ponto de chegada dessa trajetória ainda é
indefinido, embora muitos de seus traços constituintes já estejam postos. Não
devemos, entretanto, ter a ilusão de que as reformulações das Licenciaturas
ocorrem apenas movidas pela coerção legal, embora ela seja um fator de
mudança em conjunturas de maior conservadorismo em algumas instituições.
Na verdade, os currículos das Licenciaturas, especialmente em História, têm
demonstrado alguma margem para mudanças, sobretudo derivadas de novas
compreensões da História, da Educação e do perfil do profissional a formar,
que decorrem da evolução do debate acadêmico nos mais diversos fóruns.
O presente capítulo reflete sobre uma experiência de currículo de
formação de professores de História na Universidade Estadual de Ponta
Grossa, que tem início em 1997, e na transição, portanto entre os currículos
de base antiga com vários “remendos” e os currículos adequados à nova
legislação. Essa experiência estende-se até 2003, uma vez que em 2004
entrou em vigor o currículo integralmente reformulado, acumulando e
ampliando a experiência adquirida com a implantação das disciplinas Oficina
de Ensino de História I e II (1º e 2º ano da Licenciatura e do Bacharelado,
respectivamente).
Pilares: elementos das concepções de ensino de História e o debate sobre a
formação de professores. O profissional que dá passagem pelos currículos de
formação de professores é um profissional inacabado: por maior que seja a
dose de contato com a escola e com outras instituições educativas da
sociedade, não é possível construir respostas prontas para todas as situações,
uma vez que apenas a efetiva prática docente pode mediar as concepções do
profissional e a realidade que ele encontra. Sobretudo, a competência deve ser
compreendida como uma aquisição plena que resulta do trabalho,

2
17

propriamente, e apenas tangencialmente do processo de preparação para ele.


Assim, a prática de ensino e o estágio não têm por objetivo a criação de um
repertório de respostas prontas, mas a construção dos rudimentos de métodos
de mediação entre princípios e teorias e as possibilidades da prática: em vez
de fornecer uma bagagem que pode ser inadequada ao destino para o qual o
aluno vai se deslocar em sua vida profissional, o objetivo central é que ele
aprenda a diagnosticar esses possíveis destinos e procurar e organizar os
saberes que precisará.
Evidentemente, isso não significa uma plasticidade absoluta, sem
espinha dorsal: entre as funções centrais da Licenciatura inscreve-se a
formação, junto ao aluno, de um núcleo de princípios éticos, conhecimentos
teóricos e saberes pedagógicos. Embora esse núcleo não deva ter o caráter
de uma verdade revelada, ele deve compor um referencial seguro que
permita ao futuro professor negociar seus posicionamentos diante de novas
ideias, realidades e políticas educacionais, evitando tanto uma postura
relativista quanto o “mudancismo” inconsequente que se rende a qualquer
proposta que venha rotulada como “nova” ou “moderna”. Enfim, de partida há
a necessidade de formar um intelectual capaz de elaborar uma interpretação
própria sobre as modificações e permanências da sociedade e do sistema
educacional, oferecendo respostas eficientes às novas situações. Isso
implica capacidade de ouvir e dialogar, competência para sempre aprender,
disposição para elaborar (individual e coletivamente) e oferecer contribuições
para atender a realidade. Essa formação inicial, se fosse uma frase, não teria
a forma de uma bravata, mas também não seria uma interrogação ou uma
exclamação: seria, antes, uma frase que acaba em reticências, ou seja, que
demanda sempre uma continuação, uma abertura ao porvir... O desafio
posto por essas concepções é a formação de um profissional que supere a
condição de reprodutor de conhecimento para a condição de coprodutor e de
produtor. Que, portanto, inclui a condição do intelectual, do pesquisador. Não
se trata, segundo Paulo Freire, de adicionar adjetivos ao professor, mas de
compreender que ele somente exerce todos os atributos do substantivo
professor ao desenvolver seu trabalho com criação, pesquisa e crítica

2
18

(FREIRE, 1996, p. 32). As dimensões da relação entre o Bacharelado e a


Licenciatura e as especificidades de cada formação constituem uma
discussão antiga, e no campo das discussões entre historiadores professores
(ocorridas notadamente no espaço institucional da Associação Nacional de
História – ANPUH, mas também nos espaços criados pelos professores de
Didática da História, como o Encontro Perspectivas do Ensino de História e o
Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História), o protesto
contra a secundarização da formação dos professores tinha como uma das
consequências mais expressivas o programa da superação da dicotomia
entre a formação de historiadores bacharéis e a formação de professores de
História licenciados. No entanto, a direção tomada pela legislação federal foi
outra.
O longo debate sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Graduação em História, promovido entre a comissão nomeada pelo Ministério
da Educação e a ANPUH foi colocado em suspensão à espera de um
documento não discutido pelas associações de classe, mas homologado pelo
Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Formação de Professores da Educação Básica.
Esse documento outorgou um rumo para as reformulações curriculares,
ao assumir um dos posicionamentos em debate sobre a relação entre
Licenciatura e Bacharelado: em resumo, o documento defende que a formação
unificada, num único curso, do professor e do bacharel, é prejudicial porque a
experiência histórica teria vindo a mostrar que a formação docente acaba
relegada a segundo plano em função da formação científica do bacharel, daí a
pretensa necessidade de um curso dedicado exclusivamente a uma ou a outra
formação. No Colegiado de História da UEPG, a postura nesse assunto foi
distinta: mesmo reconhecendo que em alguns casos e sem determinados
cuidados a formação unificada pode secundarizar a formação docente,
defendeu-se a indissociabilidade entre a formação do historiador e a formação
do professor, dentro da compreensão de que só pode ensinar um determinado
conteúdo disciplinar quem é capaz de pensá-lo e produzi-lo. História, no caso,
não é pensada como um conteúdo a ensinar a partir de uma metodologia

2
19

eficiente, mas uma postura intelectual, teórica e metodológica, oriunda da


formação do historiador, e que precisa estar presente, não como pressuposto,
mas como postura integrada na formação do professor de História. Na verdade,
poderíamos mesmo afirmar que não se trata de formar um historiador professor
ou um professor pesquisador trata-se de formar especificamente um professor
de história, na medida em que a plena realização do sentido do termo professor
pressupõe o domínio do conhecimento, da teoria, do método, bem como a
capacidade de criação, para além de um ensino de repetição do conhecimento
criado por outros. A especificidade da formação do professor admite, também,
um outro enfoque de preparação para a pesquisa como princípio educativo,
que não se resume ao domínio da produção de conhecimento acadêmico na
sua área: trata-se da percepção e conceitualização da prática escolar de
produção de conhecimentos, nesses casos históricos.
Além disso, ainda, o professor deve contar com a capacidade de produção de
conhecimento sobre a própria realidade da escola, da sala de aula e das
trajetórias não escolares de aprendizagem, portanto deve ser versado
igualmente na pesquisa educacional em sentido mais amplo. Não é possível,
portanto, identificar determinados aspectos da formação desse profissional em
uma ou outra disciplina exclusivamente. Convencionou-se durante o processo
de reformulação curricular, que todas as disciplinas do currículo, guardadas as
suas especificidades, precisam dar conta do aspecto da teoria, do conteúdo
historiográfico, da metodologia da pesquisa e da metodologia do ensino.
Naturalmente, a implantação dessa abordagem multifocal do ensino de cada
disciplina no curso de Licenciatura não é imediata ou dependente de um mero
ato de vontade do corpo docente, mas um processo contínuo que deve se
estender por vários anos e sustentar-se em avaliação e diálogo constantes com
os docentes e alunos.
Nessa proposta, as disciplinas de Prática de Ensino (Oficina I e II, e, no
currículo em implantação, I a V) têm por especificidade a formação, na
formulação teórica e na criação de experiências práticas, da consciência do
caráter educativo da postura de pesquisa, característica típica do profissional
que chamaríamos, redundantemente, de professor pesquisador, ou então de

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20

professor historiador ou, com mais propriedade, de profissional da história


(entendendo-o como aquele que resulta de um curso que unifica as formações
para todos os campos de trabalho do profissional envolvido com o
conhecimento Histórico, dentro do espírito das Diretrizes Curriculares
Nacionais de História). Verifica-se, portanto, que a constituição das práticas de
ensino constituiu-se num processo de resistência ao arbítrio da política federal
para a Licenciatura em História, que aferrou-se a uma postura teórica quanto
ao tema, transformando-a em diploma legal: trabalha-se, portanto, nas brechas
dessa imposição, estabelecendo, por exemplo, a prática de ensino como
componente também do Bacharelado, e a maior aproximação possível entre os
dois currículos, combatida pelos conselhos superiores na UEPG, em diversos
momentos articulados a uma postura de “cumpra-se”, mais que à
independência intelectual e autonomia universitária. Cumpre afirmar ainda que
um outro princípio curricular no qual as práticas de ensino inserem-se é o da
prática como elemento fundamentador e integrador da teoria, da metodologia e
dos conteúdos, posição contrária àquela que afirma ser necessário primeiro
fundamentar exaustivamente o licenciando para depois levá-lo à atividade
prática. Em suma, o projeto curricular em construção que informa o surgimento
da Oficina de Ensino de História, e que atualmente está em processo de
substituição motivada pelas Diretrizes Curriculares, foi implantado pela
compreensão, na UEPG, de que o artigo 65 da LDB 9.394/96 (mínimo de 300
horas para a prática de ensino nesse momento ainda indistinta do estágio - na
formação docente) era autoaplicável. Essa orientação foi somada à
reivindicação histórica dos alunos formandos de que o contato com o ensino
deveria começar antes do terceiro ano do curso. Na formulação anterior, os
licenciandos tomavam contato com a disciplina Metodologia e Prática do
Ensino de História I (que preparava os fundamentos da prática de ensino:
objetivos, recursos, discussão curricular, planejamento, diagnóstico da
realidade e elementos de intervenção) no terceiro ano e realizavam o estágio
supervisionado no quarto ano do curso, na disciplina Metodologia e Prática do
Ensino de História II.

2
21

Nessa alteração do currículo, foram criadas a Oficina de Ensino de


História I no primeiro ano e Oficina de Ensino de História II no segundo ano,
ambas com carga horária de 68 horas, sob responsabilidade do Departamento
de História. No terceiro ano, com carga horária de 102 horas, foi criada a
disciplina Fundamentos da Metodologia e Prática da Docência em História, e
no quarto ano a disciplina Metodologia e Prática do Ensino de História, com 68
horas, essas sob responsabilidade do Departamento de Métodos e Técnicas de
Ensino.
A Oficina do Ensino de História I tem como objetivos centrais a discussão
sobre as finalidades do ensino de história na escola e fora dela, a realização de
diagnósticos da realidade educacional em geral e do ensino de História em
particular e a construção (teórica e prática) da possibilidade do pesquisador
porque professor enquanto postura efetiva no sistema educacional. A Oficina
de Ensino de História II objetiva estabelecer a postura do professor de história
como produtor de mídia, no sentido de não-reprodutor, ou seja, um profissional
capaz de posicionar-se e dialogar de maneira crítica em relação ao
conhecimento produzido e veiculado pelos meios de comunicação de massa,
avaliar o seu impacto na constituição do aluno que tem diante de si e produzir /
adaptar seus próprios materiais de ensino a partir das múltiplas linguagens
disponíveis. Assim, essas duas disciplinas descarregaram tarefas das
disciplinas do terceiro e quarto ano, que dispõem de carga horária maior para
dedicarem-se aos fundamentos e à prática da atividade de professor de
História. Acrescente-se a essa distribuição de conteúdo as melhorias
introduzidas para as oficinas na reformulação em curso, que visa atender ao
disposto na Resolução CNE/CP nº 02, que estabelece 400 horas para as
práticas como componente curricular, além de outras 400 horas para os
estágios supervisionados. Nessa perspectiva, as oficinas foram multiplicadas e
sua carga horária foi ampliada, possibilitando desenvolver mais e melhores
atividades.
A atual Oficina de Ensino de História II e a sociedade midiatizada como
desafio ao ensino de História. Ainda que a temática do ensino de história seja
preocupação presente desde o início do século XX, é a partir da década de 80,

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22

com a retomada da construção de uma sociedade democrática, que essa


discussão torna-se sistemática em publicações e encontros de âmbito regional
e nacional. O fluxo dessa discussão tomou diversos encaminhamentos, mas no
início um dos mais expressivos era a discussão de experiências inovadoras no
campo do ensino e aprendizagem; a acumulação e consequente avaliação das
mesmas gerou novos questionamentos, a partir da constatação de que, para
além dos fatores internos às propostas de inovação, um fator de limitação do
sucesso é o padrão de interação dos alunos com a informação, mediada pelas
linguagens, bem como o conjunto de conhecimentos históricos não
disciplinares que os alunos recebem e assimilam antes e fora da escola.
Portanto, a discussão sobre a melhoria do ensino de História não pode
prescindir da compreensão do papel de aprendizado histórico que a vida do
aluno tem, desde sua vivência doméstica, seus primeiros contatos com
espaços sociais mais amplos, até seu relacionamento com lugares de memória
(mediados ou não pela intervenção da escola) e com o conhecimento histórico
transformado e veiculado pelos meios de comunicação de massa. Nesse
sentido, a disciplina Oficina de Ensino de História II pretende contribuir para a
compreensão de condicionamentos e determinações que agem sobre
professores e alunos, e constituem alguns dos limites para as experiências
inovadoras que procuram aperfeiçoar o ensino da disciplina.
É importante compreender a história que se aprende fora da relação
pedagógica escolar, porque ela é apenas um dos momentos do aprendizado da
História por parte dos alunos: muitos dos seus conceitos sobre o tempo, sobre
identidade, sobre o passado, são aprendidos antes, fora e concomitantemente
ao ensino formal. Os alunos, portanto, chegam à aula de História carregando
concepções, noções, ideias, conceitos, preconceitos e informações cujo
aprendizado não foi controlado pelo professor ou pela escola, mas que teve
origem na experiência pessoal, no convívio com os mais velhos e seus
conhecimentos, no contato diário com os meios de comunicação de massa,
notadamente a televisão. Contribuir para a compreensão desses processos
não-formais de aprendizado da História é útil em vários aspectos, notadamente
para identificar eventuais fatores que determinam ou minam os limites de

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23

aprendizado e condicionam a compreensão da História, bem como para


informar a produção de um processo educativo escolar e não escolar que se
pretenda crítico, criativo e transformador, sem banalizar esses termos.
O primeiro desafio da disciplina é contribuir para formar professores
capazes de pensar a sociedade midiática na qual se dá o aprendizado da
História. Na segunda série de História, em geral o aluno já tem acumulada
alguma postura crítica em relação aos meios de comunicação de massa, em
especial a televisão. Cumpre, então, superar a crítica simplista que vê na mídia
sobretudo o elemento de manipulação do povo por parte de interesses
dominantes difusos, o que é buscado nas discussões em classe a partir de
textos clássicos como Horkheimer e Adorno (1985), Benjamin (1994) e
MacLuhan (1979), bem como textos contemporâneos que discutem a
problemática da cultura da oralidade em relação à cultura da escrita (ALMEIDA,
1994), e dos impactos da mídia na construção do conhecimento em geral e do
conhecimento histórico em particular (SALIBA, 1997).
O segundo desafio é superar a visão tecnicista de recursos audiovisuais
como meros facilitadores do ensino. Busca-se, ao contrário, a construção de
uma visão dos fragmentos da mídia como portadores de linguagens de
expressão do conhecimento e sua redutibilidade como via de aprendizado.
Mais que isso, busca-se compreendê-los como documentos históricos, e,
portanto, como marcas da passagem humana pelo tempo que não são
transparentes, quer dizer, que não fornecem imediatamente a realidade que os
originou, mas significam leituras, recortes e enfoques dessa realidade, com o
que se aprofunda o sentido de mídia enquanto mediação. Nesse sentido, não
se trata apenas de audiovisualizar os conteúdos tradicionais de história para
“facilitar” o ensino, mas problematizar a ideia de que “o meio é a mensagem”
também no ensino de história, que as habilidades do historiador diante da
informação que escava de suas fontes são também importantes para a
abordagem das mensagens que vêm pelos meios de comunicação de massa.
Diante desses desafios, o encaminhamento é posicionar o aprendiz de
professor de história como produtor nos dois sentidos: de postura analítica e
criativa e elaborador de materiais. Desse modo, o futuro professor deve

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24

encontrar-se, ao final do trabalho, minimamente (re)pensando e (re) fazendo a


mídia no ensino. Trata-se de um trabalho que tem como norte a construção ou
reforço da postura de sujeito do professor, que será colocado diariamente
diante da multiplicidade de mídias e mensagens e deverá decidir se e como
integrá-las ao processo educativo que coordena, em vez de ser um espectador
que arranha superficialmente a crítica uma condição que Heloísa Penteado
chama de “professores autores” (PENTEADO, 2002). O aluno de Oficina de
História II é chamado, durante e após as reflexões indicadas acima, a intervir
na realidade educacional, que está condicionada pela midiatização da
sociedade. Trabalham-se diversas linguagens (fotografia, canção, textos
/documentos, televisão, cinema, imagens estáticas, história em quadrinhos...) a
partir da literatura específica e a turma é dividida em grupos para planejar,
junto ao professor responsável pela disciplina, projetos de intervenção na
realidade escolar. O caráter das intervenções no espaço educacional, formal ou
não formal, com preferência a instituições de educação de jovens e adultos e
organizações não governamentais de assistência, é de projetos de ensino, não
assumindo a característica de estágio supervisionado, que é restrito às últimas
duas séries do curso. Trata-se de intervenções coletivas, elaboradas e
executadas a partir da distribuição de tarefas em grupo.
O tempo é restrito (não mais que dois períodos de aula convencional, ou
seja, no máximo de uma hora e quarenta minutos) e controladas (a situação
não é a de uma aula normal, com a turma completa e no espaço usual de sala).
As intervenções visam, entre outros aspectos, proporcionar um feedback para
o estudante universitário da viabilidade e possibilidades da utilização que
propõe para os elementos midiáticos elaborados durante as aulas da disciplina.
Trata- se efetivamente da primeira oportunidade, no curso, de mediar as teorias
da história, as discussões sobre educação, sobre as linguagens culturais e sua
utilização didática e a efetiva apreensão pela clientela atendida, quando de sua
aplicação na prática educativa. Cumpre esclarecer que a orientação do
professor da disciplina é a de que as intervenções elaboradas estabeleçam
uma relação coerente com as propostas discutidas na disciplina para a
utilização educativa das produções de mídia, isto é, a promoção da

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25

interatividade, do diálogo, da pergunta e do desafio, contra a lógica da


comunicação de mão única. Ao enfrentar a problema dos meios de
comunicação de massa e das diversas linguagens dentro de uma abordagem
histórica para a atividade educacional do professor de História, a Oficina de
Ensino recoloca problemas teóricos e metodológicos da História, alinhavando a
formação do licenciado com as demais disciplinas: a questão do documento e
sua crítica, o problema da verdade e da objetividade em História, a
problematização das mídias como construções e recortes da realidade, e não
como expressões imediatas da realidade, são exemplos de questões
pertinentes aos projetos da disciplina em confluência com preocupações de
outras disciplinas. Ao tornar essas preocupações não um problema de
especialistas, mas uma discussão a tornar pública junto aos alunos e à
sociedade em geral, vincula-se a reflexão didática à tessitura dos projetos. O
tratamento dos produtos de mídias pressupõe também uma reflexão e uma
prática ancorada em técnicas e métodos da História e de ciências humanas
correlatas. Por fim, a própria preocupação com a consciência histórica da
população, com o que deve ou precisa ser ensinado, com o que é ou não
conteúdo prioritário, com os dilemas da vulgarização do conhecimento histórico
ou sua recomposição no espaço escolar, são discussões atinentes à Teoria da
História, qual sejam, as dos usos e utilidades sociais do conhecimento histórico
e seus fluxos de produção e reprodução (RÜSEN, 2001). A preparação e
implementação dos projetos de discussão da história através das mídias junto
a alunos do ensino básico e à sociedade civil constitui, em si, o núcleo
pedagógico da disciplina. É no trabalho de escolha de temas, de busca de
materiais, de reflexão crítica sobre as mensagens e seus autores, da
metodologia de ação junto ao público, em muitas reuniões entre os diversos
grupos de licenciandos e o professor da disciplina, que se constitui o núcleo do
conteúdo do curso.
Essa situação gera o cumprimento de expectativas já constituídas (uma
vez que grande parte dos universitários deixou a escola há poucos anos), mas
também surpresas positivas e negativas: positivas em geral pela disposição
dos alunos em participar de uma atividade que não reproduz o seu cotidiano

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26

educacional, e pelo retorno satisfatório que promovem em uma situação


dialógica; negativas em geral pelo (re)conhecimento da situação precária da
escola pública e das instituições de interesse público, tanto em termos
materiais quanto humanos, sobretudo no que se refere às condições de
trabalho dos profissionais desses espaços. Tem-se verificado que os
universitários que passam pela experiência das Oficinas de Ensino de História I
e II têm chegado mais bem preparados para o estágio supervisionado,
dominando discussões e habilidades centrais para a prática docente (como por
exemplo a experiência da relação de ensino interativa, postura investigativa
diante do conhecimento e de suas formas de difusão), bem como já com
alguma experiência no contato com situações educativas concretas, de modo
que desenvolvem melhor desempenho na continuidade da sua formação de
professores de História. Olhando para a frente: um novo planejamento
curricular após as experiências de Oficina I e Oficina II.
A Oficina de História I está planejada para acolher os acadêmicos na 1ª
série da Licenciatura em História, num total de 136 horas. O objetivo central
dessa disciplina é articular o conhecimento histórico com a sua função social,
no mesmo movimento de estabelecer que a formação do profissional de
História nos vários campos em que poderá atuar tem na indissociabilidade a
sua característica básica, isto é, por mais que haja ênfase num dos aspectos
(no caso da licenciatura, à docência), o aluno deve saber que só obterá uma
formação sufi ciente com a atenção aos outros aspectos do ofício, sobretudo a
capacidade de pesquisa. Isso porque o pensar historicamente não se
fragmenta conforme o campo de atuação.
Tratando-se de um curso de licenciatura, essa disciplina também tem por
missão deixar claro desde o início ao aluno de que a sua formação profissional
é centrada no ser professor. Isso significa dar início ao processo de construção
identitária pelo qual a mentalidade do aluno inicia uma relação dialética com a
mentalidade de professor, rumo à ideia de professor em formação inicial. Isso
implica assumir responsabilidade para com a própria formação e a formação
dos colegas, uma vez que esse caminhar só pode ser compreendido
coletivamente. Na medida em que a ação do futuro professor na escola será

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27

sempre coletiva, é preciso constituir desde o início a perspectiva do trabalho


em equipe, fazendo dos trabalhos de grupo e suas respectivas avaliações uma
construção de uma mentalidade de colaboração e solidariedade,
desestimulando comportamentos individualistas e descomprometidos que
prejudiquem os demais. O primeiro passo para a construção do saber docente,
na perspectiva que assumimos nesse currículo, é a necessidade de conhecer o
aluno que comporá a clientela do professor de História. Embora não seja
possível pesquisar extensamente a formação à qual as crianças são
submetidas pelo mundo em que vivem, a disciplina deve construir no
acadêmico a noção de que a consciência histórica de seus futuros alunos não
depende exclusivamente dele, mas começa muito antes da chegada do aluno à
escola, concorre com as aulas de História e continua após o período em que as
aulas de História não estão mais presentes na vida dos sujeitos.
O objetivo é construir, nessa noção dos trajetos educativos não-
escolares, a perspectiva de que é preciso conhecer os alunos e ter ideia da
História que eles vivem e aprendem no cotidiano, através da família, da mídia,
dos nomes de logradouros públicos, estátuas... Esse conhecimento precisa ser
considerado pelo mestre, precisa estabelecer diálogo com o conhecimento que
ele quer trabalhar com os alunos, sob pena de um ou outro serem excluídos,
deformados ou pior, desconsiderados ambos pelos alunos. Nesse sentido, a
disciplina está estruturada em torno da reflexão entre o escolar e o não escolar,
e a produção dos alunos será dada por um projeto coletivo de investigação
sobre a educação histórica. O projeto coletivo de investigação tem por primeiro
objetivo constituir a noção de que a pesquisa é característica inerente ao
professor, bem como a ideia de que é possível (mais que isso, imprescindível)
articular a atividade de ensino com a atividade de produção de conhecimento,
compondo efetivamente o processo educativo em todas as suas atribuições. O
campo em que essa primeira atividade prática, integradora de conhecimentos e
de intervenção na realidade, é a educação histórica não escolar, entendendo
educação como os processos em que se verifica um trânsito de saberes entre
sujeitos dotados de saberes diferentes, e histórica como a referência a saberes
constituídos a partir da reflexão sobre as representações de indivíduos e

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28

coletividades no tempo. O professor da disciplina poderá optar entre duas


vertentes: o levantamento de dados e a reflexão sobre as mensagens históricas
emitidas pelos mais diversos meios visando influir sobre a formação da
consciência histórica da população ou, por outro lado, a leitura e as
representações constituídas entre alunos e professores sobre o conhecimento
histórico. Outras propostas podem, inclusive, investigar a relação entre essas
vertentes, nos mais variados recortes. É recomendável que essas
investigações, uma vez concluídas e sistematizadas, sejam publicadas em
espaços específicos, constituindo material de avanço do conhecimento sobre a
história ensinada e de formação continuada para os licenciados já em
atividade. Desnecessário lembrar que o professor da disciplina deve ter ou
constituir prática de orientação de equipes de pesquisa, sistematização de
resultados e elaboração de relatórios e outros produtos destinados à
divulgação científica. A fé básica do profissional de História é a de que toda
realidade pode ser mais bem compreendida através do recurso ao estudo de
sua história. Nesse sentido, uma preocupação primária dessa disciplina é
dobrar-se sobre o próprio ensino de História, para entendê-lo como objeto
dotado de historicidade, com origens, desenvolvimento e articulação com os
contextos bem delimitada. Recorre-se, portanto, ao referencial da História das
Disciplinas Escolares (CHERVEL, 1990) e às produções de diversos
historiadores para a compreensão do estabelecimento da História como
componente da formação escolar. Na atividade prática de produção de
conhecimentos, o foco é a História especificamente na escola.
As equipes de pesquisa deverão trabalhar a partir de diversas fontes de
dados sobre a história na escola e especificamente na sala de aula,
preparando-se para uma presença de observação etnográfica no ambiente
escolar, que também pode valer-se das metodologias da pesquisa ação, tendo
por meta levantar os problemas nesse campo, constituir hipóteses, elaborar
instrumentos mais acurados de coleta de dados e realizar pesquisas que
possam ampliar o conhecimento nesses campos, e servir tanto à formação dos
licenciandos quanto à análise dos problemas educacionais gerais e em ensino
de História. A reflexão sobre a escola deve partir do pressuposto de que não há

2
29

divisão sustentável entre “nós”, universidade, e “eles”, escola. A universidade


forma as pessoas que gerenciam a escola e está, por sua vez, prepara os
alunos que adentram a universidade em busca de aprofundamento de seus
saberes: o estabelecimento de culpabilizações, de um ou de outro lado, é
improdutivo (SILVA, s.d.) − o que não dispensa a crítica, responsável,
diagnóstica e solidária.
A Oficina de História II está alocada no 1º semestre da 2a série, com 68
horas. No Brasil e em alguns países do exterior, a produção bibliográfica que
perfaz o relato e a análise de experiências no ensino de História está
enraizada, compondo um corpo documental muito expressivo em termos de
número e de qualidade. A função da Oficina de Ensino de História II, após o
aluno ter tido contato com a realidade extraescolar e escolar do ensino de
História, após ter constatado seus êxitos e problemas, é criar condições para
que o aluno percorra e analise criticamente múltiplas experiências que
procuraram, ao longo do tempo, enfrentar o imperativo de melhorar o ensino da
disciplina. Instrumentalizados pela metodologia específica de trabalho da
História com os textos e documentos e pelos conhecimentos acumulados em
relação à realidade educacional, os alunos poderão desenvolver oficinas de
análise teórica, metodológica e de reordenamento / adaptação /
desenvolvimento das experiências estudadas, compondo e aplicando novos
planejamentos de ação pedagógica nas mais diversas situações educativas.
A Oficina de História III também tem 68 horas, ocorrerá no 2º semestre da
2ª série e está voltada aos campos não-formais de ensino e aprendizagem da
História. Considerando que o ensino de História não se resume à sala de aula,
essa disciplina está destinada a produzir conhecimento sobre diferentes
instituições e práticas envolvidas de alguma forma com o ensino da História:
jornais, organizações não-governamentais como sindicatos e movimentos
populares, museus, exposições. Nessa oportunidade, em especial, faz-se
necessária a reflexão teórica sobre os usos da História e sobre o atendimento
às “carências de orientação temporal” (RÜSEN, 2000), considerando que, se
por um lado todos os grupos sociais recorrem ao passado e à memória para
fortalecer suas ações e posições, por outro o compromisso da universidade

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30

não é com a perspectiva afetiva e legitimadora que os usos sociais do passado


estabelecem, mas com a reflexão e a crítica que a ciência é capaz de
encaminhar. A disciplina tem como produtos privilegiados os roteiros de
utilização dos museus, roteiros didáticos para visita a monumentos e sítios
históricos, folders explicativos sobre esses mesmos espaços, subsídios
didáticos para órgãos e instituições. Por sua vez, a Oficina de História IV (68
horas, 3ª série), promoverá a reflexão sobre a mídia enquanto sistema de
produção de bens simbólicos e suas implicações políticas, sociais e culturais,
reflexão essa fundamental para o professor. Além dessa reflexão, o objetivo da
disciplina é constituir a postura crítica e produtiva em relação à mídia na
escola, ou seja, preparar um profissional que, ao contrário de submeter a
escola à cultura de massa, seja capaz de analisar, discutir e selecionar aquilo
que utilizará em sala de aula, isto é, elementos oriundos das produções
culturais; a postura produtiva não se resume à capacidade de efetuar releituras
e novas disposições dos produtos da cultura tendo em vista a sua utilização
didática, mas também a compreensão de que é possível e necessário que os
produtos culturais sejam criados em sala de aula (fotografia, vídeo, hipertexto,
etc.).
O produto dessa oficina são projetos de intervenção pontuais na escola
estudando a produção / adaptação das mídias para uso didático e as
interações possíveis com os alunos. Após o percurso realizado, e no momento
em que interfere como estagiário no ensino de História nas escolas, na Oficina
de Ensino de História V (68 horas, na 4ª série) o aluno está capacitado para
participar da produção de projetos coletivos mais amplos de elaboração de
material didático (séries de cartazes, de textos, de programas de estudo em
trabalhos de grupos, manuais) a ser disponibilizado para o sistema
educacional, em hipertexto, multimídia ou outras linguagens que forem
consideradas adequadas. O aprimoramento desses materiais deve ocorrer pela
sua aplicação na escola, propiciada pelo estágio, ocasionando sua avaliação
crítica e melhoria. Do Estágio Supervisionado em História I, que tem 204 horas
e ocorre na 3ª série da Licenciatura, espera-se dar conta dos aspectos mais
intrinsecamente ligados à ação docente na escola: fundamentos do ensino

2
31

escolar da história (teóricos, sociais, filosóficos), currículo, planejamento,


material didático. E deve criar situações estruturadas em que o aluno
intervenha na escola como monitor de professores experientes, de modo a
acompanhar todo o dia a dia e as implicações da docência, ainda de modo
mais diretamente tutelado. Em relação ao primeiro estágio supervisionado, a
diferença para o Estágio Supervisionado em História II (204 horas, na 4ª série)
é que a tutela do professor da escola diminui e a ação do estagiário se amplia,
aproximando-se ao máximo do efetivo trabalho de professor.
O estagiário pode assumir, sob orientação do docente responsável pela
disciplina, unidades inteiras de ensino e suas implicações, do planejamento à
avaliação. O professor cuidará para que essas experiências sejam as mais
variadas possíveis, no que se refere à idade dos alunos, graus e modalidades
de ensino.
Houve um tempo em que o ensino da história nas escolas não era mais
do que uma forma de educação cívica. Seu principal objetivo era confirmar a
nação no estado em que se encontrava no momento, legitimar sua ordem
social e política e ao mesmo tempo seus dirigentes e inculcar nos membros da
nação vistos, então, mais como súditos do que como cidadãos participantes o
orgulho de a ela pertencerem, respeito por ela e dedicação para servi-la.
O aparelho didático desse ensino era simples: uma narração de fatos
seletos, momentos fortes, etapas decisivas, grandes personagens,
acontecimentos simbólicos e, de vez em quando, alguns mitos gratificantes.
Cada peça dessa narrativa tinha sua importância e era cuidadosamente
selecionada. Essa maneira de ensinar a história foi se tornando menos
necessária à medida que as nações foram percebendo que estavam bem
assentadas e cessaram de temer por sua própria existência. Nos países
ocidentais, o fim da Segunda Guerra Mundial foi o marco de uma etapa
importante. O resultado da guerra foi percebido como a vitória da democracia,
uma democracia cujo princípio não se discutia mais a partir de então, mas que
precisava agora funcionar bem, ou seja, com a participação dos cidadãos,
como manda o princípio democrático. A ideia de cidadão participante começou
a substituir a de cidadão-súdito.

2
32

O ensino da história não deixou de ganhar com isso. Ao contrário, viu a


função de educação para a cidadania democrática substituir sua função
anterior de instrução nacional. Grosso modo, dali em diante era preciso tornar
os jovens capazes de participar democraticamente da sociedade e desenvolver
neles as capacidades intelectuais e afetivas necessárias para tal. Os conteúdos
fatuais passavam a ser menos determinados de antemão, menos exclusivos,
abrindo- se à variedade e ao relativo. Contudo, o mais importante é que, como
o desenvolvimento das capacidades se dá com a prática, a pedagogia da
história passava de uma pedagogia centrada no ensino para uma pedagogia
centrada nas aprendizagens dos alunos. Todos os países ocidentais parecem
ter percorrido esse caminho, e também é o que ocorre com muitos outros
países espalhados pelos cinco continentes. Para constatar, basta examinar os
programas propostos e o discurso com o qual é apresentado atualmente o
ensino da história. No entanto, em muitos desses países, quando o ensino da
história é criticado ou acusado, quando provoca debates, como muitas vezes
acontece, não é porque as pessoas se inquietam com o alcance dos objetivos
de formação que lhe são oficialmente atribuídos, mas em razão dos conteúdos
fatuais, por se julgar que certos elementos estariam ausentes e que outros
estariam sendo ensinados em lugar de coisa melhor, como se o ensino da
história continuasse sendo o veículo de uma narração exclusiva que precisa
ser assimilada custe o que custar. Vê-se aí o estranho paradoxo de um ensino
destinado a uma determinada função, mas acusado de não cumprir outra que
não lhe é mais atribuída. Há numerosos casos assim neste fim de século e
alguns deles serão evocados aqui.
Em seguida, e para concluir, consideraremos um outro paradoxo
decorrente do primeiro: o de se acreditar que pela manipulação dos conteúdos
é possível dirigir as consciências ou as memórias, quando a experiência do
presente século mostra que está longe de ser tão certo assim quanto tantos
parecem acreditar, o que provavelmente não passa de uma grande ilusão.

2
33

EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (1): PARA MANTER A ORDEM


ESTABELECIDA

A maioria das vezes, o que está em jogo nos debates a respeito dos
conteúdos do ensino da história é a manutenção de uma determinada tradição.
O caso dos National Standards for History nos Estados Unidos é um bom
exemplo disso. Nos Estados Unidos, como se sabe, a educação é da
responsabilidade dos Estados e não da administração federal. Há algum
tempo, no entanto, o governo federal americano vinha se mostrando inquieto
com relação ao ensino da história, por duas razões, entre outras. Primeiro,
porque se julgava que os homens de negócios americanos perdiam muito por
conhecerem insuficientemente as culturas estrangeiras; em seguida, porque se
acreditava que a história facilitaria a integração das minorias culturais. Já na
administração do presidente Reagan, um relatório sobre a educação intitulado
A Nation at Risk fizera referência à educação histórica; na de Bill Clinton, os
governadores dos Estados aprovaram um projeto de reforma da educação, o
projeto America 2001, que insistia para que a história se tornasse matéria
básica para todos. No mesmo momento, outros se preocupavam com a erosão
dos conhecimentos culturais dos jovens americanos, ou com o espaço
crescente ocupado pelo ensino de social studies ao lado das disciplinas
tradicionais de história e geografia. Foi nesse contexto que um grupo de
historiadores e de pedagogos, juntamente com várias centenas de consultores
e de especialistas de todas as partes, elaborou um projeto de normas nacionais
para o ensino da história, os national standards para o ensino de história dos
Estados Unidos e de história gera.
Em tais circunstâncias, o que devia ser apenas um conjunto de sugestões
apresentadas aos Estados logo se transformou numa querela nacional. A
direita se enfureceu. Embora sugerindo certos conteúdos, pois não se pode
ensinar história sem conteúdo, o que os standards propunham,
essencialmente, eram objetivos de formação, mas somente os conteúdos são
atacados. O que se diz é que, com essa abertura à história mundial, as tais

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34

normas estariam insuflando um relativismo cultural e colocando em perigo a


civilização ocidental branca e cristã e, consequentemente, a civilização
americana; ao se abrir à história social, aos imigrantes, às mulheres, aos
negros, ao tratar do Klu Klux Klan e do McCartysmo, as normas estariam
querendo obscurecer heróis como Washington, Thomas Edison ou Paul Revere
e deixando apenas um pequeno espaço para a Constituição. Mesmo que o
governo federal não tenha nada a ver com a educação, Newt Gingrich, líder
republicano na Câmara, conseguiu levar a questão ao Senado e fez com que
os senadores se pronunciassem sobre os standards: 99 deles votaram contra,
um se absteve (porque não achava a condenação bastante consistente).
Pouco tempo antes, um debate semelhante ocorrera na Inglaterra a
respeito do ensino da história. Na Inglaterra, não havia um programa nacional
para essa disciplina. As escolas e os professores gozavam de uma grande
liberdade na definição e na prática do ensino. Eles haviam, contudo, elaborado
um programa, o Schools Council History Project, que terminara sendo adotado
por aproximadamente um terço dos professores e exercia uma grande
influência sobre o ensino de história em geral. Era um programa moderno, que
seguia a tendência dos programas atuais descritos na introdução, mas
ensinado com essa grande liberdade desfrutada pelos professores britânicos e,
portanto, com muita variedade nos conteúdos.
O governo conservador da época, e a própria Margaret Thatcher,
preocuparam-se com isso. Podia acontecer, e efetivamente acontecia, que se
ensinasse pouco a respeito da Inglaterra e de seu passado glorioso, por
exemplo, nos enclaves de comunidades culturais onde se procurava tornar a
história facilmente acessível aos alunos, com assuntos próximos da realidade
deles, em detrimento, segundo os conservadores, da aquisição de uma
memória comum bem britânica. Foi iniciada, então, a preparação de exames
nacionais, seguida de um programa nacional de história, o National Curriculum
for History, com os conteúdos desejados pelos conservadores, é claro. Aqui,
mais uma vez, o debate em torno dos conteúdos, tanto na mídia quanto na
opinião pública, foi intenso e durou vários anos.

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35

Mas o debate também foi intenso entre os professores, muitos dos quais
resistiram e acabaram conseguindo um acordo que passou a vigorar desde o
início do ano letivo de 1995, acordo esse que preserva em parte os objetivos
de formação que eles queriam conservar, embora com abundantes conteúdos
pré-determinados. Muitos outros exemplos ilustrativos poderiam ser citados.
Lembremo-nos de um outro debate vigoroso que agitou a França na década de
1970 e no início da década de 1980, quando da implantação de uma reforma
dos programas de história, a qual, pela primeira vez, rompia com a tradição dos
programas iniciada na Terceira República. Centrados no aluno, orientados para
o desenvolvimento das capacidades e privilegiando uma pedagogia de
aprendizagem pela descoberta, e não uma pedagogia da recepção, os novos
programas pareciam negligenciar alguns personagens nacionais da cronologia
tradicional. Houve indignação em todas as famílias políticas, ao ponto de se ver
surgir aquela estranha coligação formada pelo gaullista Michel Debré, pelo
socialista Jean-Pierre Chevenement e pelo historiador popular Alain Decaux,
coligação essa que foi batizada pelos jornalistas de Santa Aliança da História
Nacional. Dois presidentes, sucessivamente, vieram juntar-se ao cortejo de
indignados: Valéry Giscard-dEstaing e, depois, François Mitterrand, que
declarou estar escandalizado e angustiado com as carências do ensino da
história. A reforma não resistiu durante muito tempo e, a partir de meados da
década de 1980, voltava-se ao que havia de mais convencional. É interessante
notar quanto interesse, quanta vigilância e quantas intervenções o ensino de
história suscita nos mais altos níveis. A história é certamente a única disciplina
escolar que recebe intervenções diretas dos altos dirigentes e a consideração
ativa dos parlamentos. Isso mostra quão importante é ela para o poder.

EXEMPLOS ILUSTRATIVOS (2): QUANDO OS ESTADOS SE


RECONSTITUEM

Entre as decisões tomadas pelos vencedores ao fim da Segunda Guerra


Mundial, houve a de proibir o ensino da história ministrado nos países

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vencidos, a fim de neutralizar seus conteúdos fatuais antes de substitui-los por


outros. Foi uma das primeiras decisões, senão a primeira, do Alto Comando
aliado em Berlim; a mesma coisa se deu na Itália e no Japão. Cinquenta anos
mais tarde, apesar do avanço efetuado pelo ensino de história, ainda é assim
que o tratam quando se passa de um regime a outro. Os ex-países do leste
europeu oferecem inúmeros exemplos disso. Na maioria deles, mal a transição
começou, o ensino de história já era submetido à revisão: revisão dos
programas e dos manuais, e sobretudo dos manuais, mais do que da
pedagogia, pois tudo isso é principalmente uma questão de narrativa. Grosso
modo, essa revisão consiste em reescrever, apagando aquilo que se quer
esquecer do antigo regime e introduzindo ou reintroduzindo as famosas
páginas brancas o que parece necessário para a construção ou consolidação
da memória coletiva que se quer agora. Às vezes, o realinhamento é brutal. Foi
assim na ex-Alemanha Oriental.
De um dia para o outro, ou quase, os manuais foram retirados e os
professores de história foram suspensos: porque estudaram e ensinaram a
história errada, e não se via como poderiam, agora, ensinar a certa. É claro que
isso provocou reações. Os sindicatos se envolveram, os meios de
comunicação, entre os quais os estrangeiros, abordaram o assunto. Decidiu-se,
então, que os professores seriam, eventualmente, recontratados, mas somente
depois de passarem por um exame, baseado essencialmente no pensamento
liberal. Exames do mesmo tipo foram empregados noutros lugares. Às vezes,
havia até questões sobre a Bíblia. Ainda na Alemanha Oriental, como os
manuais não podiam ser refeitos de um dia para o outro, começaram a ser
importados manuais da Alemanha Ocidental. Assim, na Saxônia, um dos länder
mais avançados econômica e culturalmente, o ano letivo de 1991 foi iniciado
com manuais de história da Baviera, onde a corrente conservadora é muito
importante. Mesmo não sendo sempre tão brutal, a mudança é geralmente
brusca. Na Rússia, por exemplo, mal a glasnost havia começado e já se
julgava que os instrumentos usados no ensino da história deviam ser
substituídos. E como eles não podiam ser substituí-los dos instantaneamente,

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37

foram suspensos os exames oficiais e, em muitas escolas, o próprio ensino de


história. Na Ucrânia, desde o início da liberalização, houve três fases de
transição: do totalitarismo à democracia, da economia dirigida ao livre mercado,
de república dependente a Estado independente. Conforme a socióloga Irina
Bekeshkina, cada uma dessas fases foi acompanhada por uma nova
interpretação histórica, cada uma delas amparada por um novo discurso
político. Assim, segundo ela, o capitalismo, que era definido como um sistema
de exploração moribundo, tornou-se um futuro brilhante; a nação, antigamente
destinada a desaparecer no processo de reunião da comunidade soviética,
tornou-se a base fundamental da vida humana e da história.
Na pressa, cada comunidade quer seu manual, sua narrativa histórica
própria. Quando não é possível prepará-lo com bastante rapidez, usam-se
velhos livros, totalmente ultrapassados do ponto de vista historiográfico. Assim,
para os quatro milhões de lituanos, foi novamente publicada, com uma tiragem
de 155.000 exemplares, uma história da Lituânia que data da década de 1930.
Aconteceu a mesma coisa na República Tcheca, onde, após os
acontecimentos de 1989, os editores colocaram de novo no mercado os
manuais de história do Estado tcheco e tchecoslovaco publicados entre 1918 e
1938 ou entre 1945 e 1948. Em outros lugares, acontece de simplesmente
traduzirem os manuais de história estrangeiros, como na Rússia, onde existe
atualmente o projeto de tradução de um manual americano de história geral
que, a meu ver, os jovens russos vão achar bem estranho! Cada comunidade
quer ver a sua própria história contada.
Na Rússia, mais uma vez, um colega me disse estar ligado ao projeto de
elaboração do manual de uma pequena comunidade do Norte, composta de
50.000 habitantes, aproximadamente, que patrocina, com a ajuda de um
imposto especial, a redação de sua história singular. Na Bósnia, cada
comunidade também deseja tanto ter o seu próprio ensino de história que são
redigidos manuais diferentes, com narrativas e heróis diferentes às vezes
adversários para os jovens sérvios, croatas ou muçulmanos. Até pensaram em
adotar programas de história diferentes numa mesma escola. Nessas histórias,

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encontram-se frequentemente os antigos defeitos das historiografias


nacionalistas escolares que pensávamos já terem desaparecido: legitimação,
justificação, glorificação, mitificação, mobilização das consciências, às vezes
com a inteira submissão do ensino da história à causa de um nacionalismo
exaltado. Assim, na Estônia, os próprios autores da reforma do ensino de
história explicam: Toda a reforma do ensino da história devia ser, antes de
tudo, uma luta para resgatar e reforçar a identidade nacional. Toda a história
estoniana foi reorganizada, no novo programa reformulado, seguindo uma linha
nacionalista. A trama histórica foi sobreposta ao projeto nacional. Também foi
assim na Eslovênia, onde Vesna Gidiva e Valentina Hlebec constatam que: É
mais do que evidente que ensinar história é antes de tudo um trabalho
ideológico e político e não uma questão de normas profissionais.
Se os ex-países do leste europeu oferecem bons exemplos da maneira como a
história é tratada quando um Estado é reconstituído, não é só nesses países,
evidentemente, que ocorrem tais situações.
Pensemos igualmente na China, onde, três meses antes da reanexação
de Hong Kong, o ministro dos Assuntos Exteriores já estava anunciando, diante
da Assembleia Nacional Popular, que os manuais seriam revistos, pois,
explicava ele, o conteúdo de certos livros escolares atualmente usados em
Hong Kong não está conforme à História e à realidade. Eles não são
compatíveis com as mudanças que vão ocorrer em 1997 e são contrários ao
espírito do princípio um país, dois sistemas, bem como à Constituição. Como
se dizia em Moscou, o passado é imprevisível! É verdade que a China ainda
não tem a obrigação de implantar um ensino da história que prepare para a
participação democrática.
Às vezes, são grupos dissidentes que atacam as narrativas históricas
impostas ao ensino pelo Estado. No Japão, por exemplo, há várias décadas
historiadores e professores, apoiados por diversos grupos, entre os quais uma
associação para a verdade na história composta de milhares de membros,
combatem a censura que o Ministério da Educação exerce sobre o conteúdo
dos manuais. É uma censura muito rigorosa. Tudo o que, aos olhos do
ministério, poderia diminuir a imagem positiva do Japão na história é proibido.

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Para contar os fatos, é preciso utilizar um vocabulário padronizado.


Assim, para falar da invasão da China pelo Japão na década de 1930, deve-se
falar de progressão militar; para falar da pilhagem de Nankin em 1937, quando
150.000 civis foram massacrados, conta-se que o exército japonês ocupou a
cidade num ambiente de agitação excessiva e de cólera; é preciso escrever
incidente ao invés de revolta, suicídio coletivo de civis ao invés de massacre,
mulheres de conforto ao invés de prostitutas De manifestação em
manifestação, de processo em processo alguns dos quais chegaram até à corte
suprema , bem como sob as pressões estrangeiras, a situação parece estar se
amenizando um pouco. De fato, não é mais necessário falar da anexação da
Coréia em 1910 como sendo uma fusão pacífica, e o Primeiro Ministro aceitou
reconhecer, há algum tempo, a questão das esposas de consolação. Nesse
ensino da história, porém, são sempre e unicamente os termos da narrativa que
estão em causa. No México, em 1992, é uma coalizão de liberais e de
progressistas que ataca os manuais de história para o primário que o governo
de Carlos Salinas queria impor. No contexto das negociações do mercado
comum norte- americano, os novos manuais elogiavam as políticas econômicas
presentes e passadas do México e sua abertura ao capitalismo internacional,
ao mesmo tempo que minimizavam os episódios contestatórios ou
revolucionários de sua história. O debate foi enérgico e os manuais foram
revistos.
A narrativa histórica pode também ser vista como uma tomada de poder
por grupos sem poder. Vejamos um exemplo disso no Brasil, onde, em vários
Estados, principalmente em Minas Gerais e São Paulo, os professores de
história haviam lutado, durante a ditadura, para conseguir um programa cujo
conteúdo fosse definido de acordo com seu ponto de vista de militantes. No
caso de Minas Gerais, eles queriam opor aos programas oficiais, de cunho
nacionalista e positivista, um conteúdo de história marxista clássico que
apresentasse as etapas sucessivas de formação econômica e integrasse o
nacional ao universal. Tratava-se, sobretudo, de trocar uma narrativa por outra
narrativa. Esse programa foi conseguido com a redemocratização, mas, agora,

2
40

como o combate, em grande parte, esgotou-se, parece que os professores


fazem menos questão de afirmarem seu poder.
Todos os exemplos anteriores de fixação em relação à narrativa histórica
e à sua manipulação ocorriam no âmbito da nação. Mas pode ocorrer que se
queira oferecer uma narrativa situada além desse contexto e que até reduza o
seu alcance. É o caso do projeto de ISESCO de propor aos alunos dos países
muçulmanos um programa islâmico de ensino da história. Trata-se de ensinar,
aos alunos dos diferentes países, que, apesar de suas identidades nacionais,
eles pertencem antes de tudo à grande comunidade dos muçulmanos. Os
seguintes trechos dos objetivos do projeto dão testemunho disso: enraizar o
aluno em sua identidade individual e nacional, fixando-o na comunidade
muçulmana e destacando o fato de que sua identidade o liga intimamente, por
meio de laços indeléveis, religiosos, históricos e culturais, à comunidade
islâmica; desenvolver no aluno o senso da responsabilidade e o sentimento de
orgulho em relação à comunidade islâmica, com base na força desta e na
convicção da necessidade de instaurar a unidade muçulmana em todos os
setores; o que procuramos destacar, através dos assuntos escolhidos para
esse programa, é que os povos muçulmanos formaram, ao longo da história,
uma única comunidade ligada por laços de cooperação e de
complementaridade.
Enfim, o programa consiste numa longuíssima lista das matérias a serem
ensinadas, matérias que representam as balizas detalhadas de uma outra
narrativa feita sob medida para dar uma roupagem à única identidade
almejada. Atualmente, entre os indígenas das Américas, também está surgindo
uma vontade similar de ter uma narrativa histórica que se situe
deliberadamente acima dos Estados. Assim, a última parte do programa
nacional de história do Quebec e do Canadá adotado pelos índios Cris trata,
ironicamente, do advento da pátria cri.
Essas são algumas ilustrações daquilo que anunciamos na introdução
como um primeiro paradoxo: enquanto na maioria dos países se diz que o
objetivo do ensino da história é desenvolver nos alunos as capacidades de
que o cidadão

2
41

precisa para participar da sociedade de maneira autônoma e refletida, o ensino


da história, ainda é, muitas vezes, reduzido a uma narrativa fechada, destinada
a moldar as consciências e a ditar as obrigações e os comportamentos para
com a nação. Observou-se que, quando, em nosso mundo, há um debate
público em torno do ensino da história, é essa narrativa que está quase sempre
em jogo. Essa observação nos leva a constatar um segundo paradoxo: o de
acreditar em semelhante ensino da história, quando muitos fatos parecem
mostrar que pensar que ainda é possível regular as consciências e os
comportamentos por meio do ensino da história não passaria de uma vã ilusão.
A experiência, de fato, mostra outra coisa. Aqui vão alguns exemplos disso.
Para começar, vejamos o que ocorre em Quebec. Durante mais de meio século,
os únicos objetivos do ensino da história eram ensinar aos canadenses de
língua francesa a necessidade de sobreviver enquanto povo e de proteger a
língua e a fé, além da adesão ao grande todo canadense, que era a garantia
para tal sobrevivência. Assim, lia-se entre os objetivos principais dos programas:
‘O estudo da história de nosso país contribuirá para formar melhor o bom
cidadão do Canadá de amanhã; fazer desse ensino uma verdadeira lição de
educação nacional que desenvolva em todos os nossos alunos o orgulho
legítimo de dizer que são cidadãos do Canadá e a ambição de se tornar um
perfeito cidadão e de contribuir para o progresso e para a grandeza do povo
canadense’.
Muitas pessoas da minha geração poderiam dar testemunho de que os
programas eram seguidos à risca. No entanto, na primeira oportunidade, na
virada dos anos 1950, os quebequenses fizeram, em alguns meses,
exatamente o oposto do que lhes vinha sendo ensinado, dia após dia, há mais
de meio século. E logo a metade deles começou a dizer que queria se separar
daquele Canadá que haviam querido obrigá-los a amar. Outro exemplo na ex-
União Soviética. Durante várias décadas, haviam ensinado ali, por meio da
história, que o capitalismo era o inferno e que o socialismo abriria as portas do
paraíso. O que fizeram os membros das diversas repúblicas assim que tiveram
a oportunidade? Escolheram o inferno! Outro exemplo, desta feita na
Alemanha. Uma pesquisa recente mostra que os jovens da Alemanha

2
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Ocidental e da Alemanha Oriental, oriundos de sociedades que conheceram


ensinos de história bem diferentes, não apresentam, no entanto, diferenças
significativas em suas representações, conceitos e atitudes. Outro exemplo,
tirado também da pesquisa que acaba de ser mencionada: na Cisjordânia e na
banda de Gaza, onde o exército 137 israelita controla o ensino da história e
censura os manuais, os jovens palestinos desenvolveram uma consciência
histórica sem relação com os conteúdos do ensino da história.
Tudo isso para dizer que é possível que todos esses esforços para
controlar os conteúdos do ensino da história, bem como os debates que isso
provoca, estejam alicerçados numa ilusão. Neste fim de século, é possível que
a narrativa histórica não tenha mais tanto poder, que a família, o meio ao qual
se pertence, circunstâncias marcantes no ambiente em que se vive, mas
sobretudo os meios de comunicação, tenham muito mais influência. O que
deveria nos levar a não perder de vista a função social geralmente declarada
hoje a respeito do ensino da história: formar indivíduos autônomos e críticos e
levá-los a desenvolver as capacidades intelectuais e afetivas adequadas,
fazendo com que trabalhem com conteúdos históricos abertos e variados, e
não com conteúdos fechados e determinados como ainda são com frequência
as narrativas que provocam disputas. Senão, essas guerras de narrativas
desencadeadas em todo o mundo vão acabar gerando somente perdedores,
tanto no que diz respeito à identidade nacional quanto em relação à vida
democrática.

2
43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

USDE, America 2000: An Education Strategy. Washington, GPO, 1991 (que se


tornou lei em 1994 com o título de Goals Educate America Act).

Ver por exemplo: HIRSCH, E. D. Cultural Literacy. What every American needs
to know. Nova Iorque, Vintage, 1988; RAVITCH, Diane et FINN, C. E. What do
our 17-year-olds know? New York, Harper and Row, 1987; CHENEY, Lynn.
American Memory: A Report on the Humanities in the Nations Public Schools.
Washington, NEH, 1987.

National Standards for History for Grade K-4. Expanding Childrens World in
Time and Space; National Standards for United States History. Exploring the
American Experience. Grade 5-12 et National Standards for World History.
Exploring Paths to the Present. Grades 5-12. Los Angeles, National Center for
History in the Schools, 1994.

Para obter mais detalhes sobre essa polêmica, ver NASH, Gary B.,
CRABTREE, Charlotte e DUNN, Ross E. History on Trial: Culture Wars and the
Teaching of the Past. New York, Alfred A. Knopf, 1997. Um resumo desses
acontecimentos pode ser encontrado em WINKLER, Allan. Who chopped down
the cherry tree?. Times Higher Education Supplement, 10 de março de 1995,
p.19

Department of Education. History in the National Curriculum, Londres,


HMSO.138

Em La bataille des programmes. Le débat sur le enseignement de le histoire et


la recherche en Allemagne de l Ouest, en Grande-Bretagne et en Suède. In
Revue De Allemagne, vol. 25, n° 02, 1993, pp. 203-211, Carl-Axel Gemzell

2
44

compara esse debate com outros semelhantes ocorridos na Alemanha e na


Suíça, os quais não serão abordados aqui.

Entre outras obras sobre a polêmica, leia-se Des enfants sans histoire. Enquête
de Jean-François Fayard. Paris, Perrin, 1984.

A respeito do ensino de história durante a transição na ex-Alemanha Oriental,


ver AHONEN, Sirkka. Clio sans Uniform. A Study of the Post-Marxist

Transformation of the History Curricula in East Germany and Estonia, 1986-


1991. Helsinque, Suomalainen Tiedeakatemia, 1992.

In ANGVIK, Magne e BORRIES, Bodo von (eds). Youth and History. A


Comparative European Survey on Historical Consciousness and Political
Attitudes among

Adolescents. Hamburgo, Edition Körber-Stiftung, 1997, vol. A: Description, p. A


275 (a tradução é nossa).

Trata-se do livro Lietuvos istorija de A. Sapoka, 1ª ed. 1936. Ver Idem, p. A


265.

Segundo CORNEJ, Petr. Politique, histoire et histoire scolaire. In Revue


internationale de éducation. nº 13, março de 1997, p. 90.

ÖISPUU, Silvia. New Tendencies in History Education in Estonia with


Retrospect into the Past. Göteborg, Göteborgs Universitet, 1993, p. 10 (a
tradução é nossa). Ver também AHONEN, op. cit.

2
45

ANGVIK, Dans et BORRIES, von. op. cit., p. A 288 (a tradução é nossa). Hong-
Kong: un pays, deux systèmes, quelle histoire? In Le Devoir. 11 de março de
1997.

Ver HORIO, Teruhisa. Éducation et conscience politique. In Revue


internationale de éducation, op. cit., p.107; ver também CONAN, Éric. Le Japon
ne veut pas de histoire. In LExpress. 27 de julho de 1995, pp. 53-56.

A esse respeito, ver NASH, CRABTREE e DUN. op. cit., p. 133. Ver, a esse
respeito, SIMAN, Lana Mara de Castro. Changement paradigmatique et enjeux
sociopolitiques en enseignement de lhistoire: le cas du programme de histoire
du Minas Gerais (Brésil) et les réactions paradoxales des enseignants. Tese de
Doutorado, Université Laval, 1997.

ISESCO. Projet de programme de enseignement de lhistoire islamique et de la


géographie. s. l., 1998, p.14, 29.

Commission scolaire crie. Histoire du Québec et du Canada. Programme


adapté, junho de 1994.

Programme de études des écoles secondaires, 1961. Quebec, p. 200.

Programme de études des écoles élémentaires, 1959. Quebec, p. 482.

Ver ANGVIK e BORRIES, von. op. cit., p. A 218. Ver também KLOSE, Dagmar.
Bouleversement de la conscience de le histoire. In Revue internationale de
éducation. op. cit., p. 72. 23Idem, p. A 322. Artigo rec.

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