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Humberto Gessinger

não me pergunte em que dia eu nasci


não me pergunte em que cidade eu nasci
o filme favorito, o time do coração
o lugar mais esquisito em que escrevi uma canção
se tu quiseres saber quem eu sou
vem ver com os próprios olhos
vem ver a vida como ela é
Humberto Gessinger

1ª Edição/2ª Reimpressão
2012
copyright 2009 Humberto Gessinger

Editor | Gustavo Guertler


Assistente editorial | Aline C. Orso
Projeto gráfico | Melissa Mattos
Luis Saguar
Revisão | Alessandra Rech
Karina de Castilhos Lucena
Luís Augusto Fischer
Capa | Melissa Mattos, sobre foto de
Marco de Bari/Editora Abril

[2010]
© Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Belas-Letras Ltda.
Rua Coronel Camisão, 167
CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS
Fone: (54) 3025.3888
www.belasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)


Biblioteca Pública Municipal Dr.Demetrio Niederauer
Caxias do Sul, RS

G392c Gessinger, Humberto


Pra Ser Sincero: 123 Variações Sobre Um Mesmo Tema /
Humberto Gessinger. _Caxias do Sul, RS: Belas-Letras, 2010.
304 p.

ISBN 978-85-60174-45-4

1. Autobiografia. I. Título
09/34
CDU : 869.0(81)-94

1. Autobiografia 869.0(81)-94

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária


Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz CRB 10/904
Humberto Gessinger

123 Letras

Luís Augusto Fischer


Humberto Gessinger

(ao som de baquetas contando o início da canção: 1… 2… 3…)


Nasci em Porto Alegre, misturando famílias com origem no interior.
Colonos italianos por parte de mãe, colonos alemães por parte de pai. Geral-
mente falam dos gaúchos como se fôssemos um povo homogêneo, os branque-
los do fim do mapa. Até pode ser assim, visto de longe. Visto de dentro, tudo é
maior. Só entre a gringalhada da Serra e a alemoada do Vale já há um abismo
de diferenças. Sem falar das outras peças do quebra-cabeça.
Não havia nenhum músico na família da minha mãe. Havia músi-
ca. Lembro de uma canção que meus tios cantavam quando me colocavam a
esmagar uvas com os pés. A tradução poderia ser: Itália tá doente / desen-
ganada pelos doutores / para salvar a Itália / tem que cortar a cabeça dos
ricos. Não que fosse um pessoal politizado. Só eram sempre contra. E eram
muito católicos.
Eram muito católicos, também, na família do meu pai. Reza a lenda
que todos tocavam algum instrumento. Piano, acordeón, violino, cítara alemã.
Dez irmãos, uma pequena orquestra para quando chegasse visita naquelas noi-
tes do interior gaúcho. Noites de tempos sem TV. Não cheguei a vê-los tocar.
Herdei o acordeón da tia Hildegard. No dia em que ela recebeu o diploma,
fechou a tampa e nunca mais tocou.

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Nasci no dia 24 de dezembro, o que me deixou sem festa de aniversá-
rio a vida inteira. A vida inteira estudei numa mesma escola de classe alta. Só
porque meu pai trabalhava lá. Ele vivia correndo de colégio em colégio, dando
aulas de latim, depois francês, depois português. Enquanto os currículos esco-
lares eliminavam idiomas, o professor Huberto corria atrás do leite das crian-
ças. Quatro filhos pra criar. Nunca nos faltou nada, material ou espiritual.
Minha mãe também lecionava. Eram dela os livros mais bacanas
da casa. Grandes, com capa dura e muito mais figuras do que texto. Infeliz-
mente, em vez de aprender geografia nesses livros, tomei gosto por gráficos
e tabelas. Deve ser o que chamam de efeito colateral. Dona Casilda tem seus
mistérios. Um motor que não faz barulho. E anda! Na próxima encarnação,
quero ser neto dela.
Não tenho nada muito interessante pra contar dos tempos de colégio.
Quem não me conhecia me achava antipático. Ninguém me conhecia. Nenhum
dos meus colegas frequentava as mesmas ruas, quadras e esquinas que eu.
A cidade devia ser bem pequena vista de um avião. Por dentro, era enorme.

nossa cidade é muito grande e tão pequena


estamos longe demais das capitais

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Da escola não tenho nada muito interessante pra contar, a não ser
que eu era goleiro. Uma pequena vaidade. Sofrer solitariamente? Sim, mas com
fardamento diferente. Luva, bandana e joelheira.
Do gol, passei a jogar tênis. Bjorn Borg era o cara. E era frio, o Ice-
borg. Podia jogar 123 horas, ganhar ou perder, sem que seu rosto revelasse al-
guma emoção. Parecia saber algo que ninguém mais sabia. E parecia não poder
dividir o segredo com mais ninguém.
Com seu jeito de goleiro argentino, Borg parou de jogar no auge
da carreira. Há lendas nebulosas sobre tentativas de suicídio. Um tango
nórdico escrito por Wagner. Como geralmente acontece na dança dos ci-
clos, as características dele ficaram mais nítidas contrastadas com a manei-
ra de ser do cara que o sucedeu no topo do tênis mundial: John McEnroe,
um fanfarrão.
Eu nunca tive muito saco nem talento para competição. Depois de al-
guns minutos, me parecia absurdo ficar correndo atrás de uma bolinha que ou-
tro cara teimava em jogar cada vez mais longe. Treinar, eu achava legal. Passava
horas no paredão, só ouvindo minha respiração e os três sons que a bolinha
fazia: raquete-parede-chão, raquete-parede-chão. Um compasso ternário, uma
valsa, um chamamé, um-dois-três, 1-2-3, raquete-parede-chão.
Resumindo minha carreira tenística, desenvolvi um saque muito
bom. Acima de qualquer outro golpe, pois era o único que eu podia aperfeiçoar
sozinho. O golpe que começa e termina em si mesmo. Cordel Kill Bill.

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Cordel Kill Bill. Mente desligada. Hoje, consigo essa boa sensação es-
tranha percorrendo, mecanicamente, sem emoção, escalas no piano ou violão.
Lavar louça ou pregar botões também funciona, algumas vezes.

se Capricórnio fosse Câncer


se Califórnia fosse França
a rampa que lança o skate ao céu
seria nosso chão
se eu fosse um cara diferente, sabe lá como eu seria

Nasci no fim de dezembro, o que me aprisionou a um signo zodiacal


pouco glamouroso. Dizem que a hora também é importante, pode desenhar ou-
tros elementos no mapa, suavizar o diálogo entre os astros. Nasci às 18h30min.
Meia hora antes, aos trinta minutos negativos da minha vida, freiras passaram
pelo quarto cantando ave-maria.
Imagino que fossem freiras com fardamento completo. Como tia
Rosina, que viveu 123 anos, sempre de hábito. Ela contava histórias de quando
esteve na Itália em plena Segunda Guerra Mundial. Sempre me trazia um licor
de anis que ela mesma fazia. Para cuidar da voz. 123%, o teor de álcool.

enfermeiras em filmes de guerra


violinos nas canções de amor

Nasci em 1963. Tinha seis anos e uma camiseta do Jairzinho quando


o Brasil foi tri na Copa do México. Minha camiseta era verde e amarela, a da
Seleção foi cinza até a Copa de 74, quando uma Telefunken trouxe cores para os
jogos. Aí eu já tinha onze anos e a TV, ainda, só três canais.
Uma TV, colorida ou não, não era nada comparada ao toca-discos
que apareceu lá em casa quando eu tinha cinco anos. A Eletrola. Tudo nela era
fascinante: os pés-palito, o pano ortofônico, os enormes botões, a luz dentro
da logomarca da Philips, o mecanismo de empilhar vários discos, o seletor de
velocidades, 33, 45, 78 rpm… Uma joia.

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Um conhecido dos meus pais trabalhava numa sociedade arrecadadora
de direitos autorais, por isso ganhava uma quantidade enorme de discos. Sem ter
o que fazer com eles, deixou todos com a gente. Era uma coleção fascinante por
ser completamente aleatória. Ninguém compraria aqueles, e só aqueles, discos.
No meio de todas as possibilidades musicais que os LPs ofereciam, eu
voltava sempre para Os Incríveis, conjunto da Jovem Guarda, e José Mendes,
cantor missioneiro. A causa do fascínio eram duas canções com uma caracterís-
tica comum: narravam uma história. Como um filme ou uma ópera. Histórias
tristes, sem final feliz.
Era um Garoto que como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones
começava com uma rajada de metralhadora e contava a história de um jovem
morto na guerra. Em Picaço Velho, era um cavalo que morria. Culpa de um
boi brasino. Foi por querer muito tocar essas duas músicas que ganhei meu
primeiro violão.

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Quem me deu o presente foi tia Bambina. Eu adorava esse nome até
o dia em que ela me explicou por que não gostava dele: Bambina quer dizer
“menina” em italiano. Era um antinome, nome nenhum.
Desde sempre escrevi, com a pior caligrafia da turma, letras de
músicas que não existiam. O violão foi ficando pra trás, acumulando poeira.
Quando eu tinha doze anos, meu pai adoeceu. Faleceu quando eu tinha catorze.
Tudo ficou em stand-by, nesse período, lá em casa. Acumulando poeira.
Muita coisa ficou em stand-by pra sempre. Não deu tempo pra ele me ensi-
nar a fazer a barba.
Enquanto meus colegas brigavam com seus pais na saudável busca de
identidade, à noite, eu colocava os chinelos do meu pai para andar no escuro da
casa. Fisicamente não nos parecíamos, mas o som dos chinelos caminhando era
igual. Matava um pouco da saudade.

toda vez que falta luz


toda vez que algo nos falta
(alguém que parte e não volta)
o invisível nos salta aos olhos
um salto no escuro da piscina

O que havia de bom nessa época era ouvir música. Descobrir no-
vos grupos nas revistas compradas no segundo andar do mercado público.
Mais do que ouvintes, éramos torcedores das bandas. Quanto mais obscura
e menos conhecida, mais gostávamos. O ideal de todo fã é ter uma banda
só para si. Pelo menos era. Em algum ponto da estrada, vender mais discos
e dar mais entrevistas passou a ter valor, mesmo nas tribos que deveriam
oferecer alternativas.
Até no minúsculo mundo do rock inglês havia territórios e fronteiras,
uma divisão bem nítida entre estilos. Rock Pesado versus Rock Progressivo.
Este último era o meu time. Apesar de também gostarmos de outras bandas,
não podíamos admitir. Tínhamos que fazer pose de maduros defensores do rock
mais cabeça, desdenhando os cantores que só ficavam no baby, baby, baby...

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Concordávamos todos no pavor à Disco Music. É engraçado: o que
considerávamos mais superficial vingou e influencia o pop de hoje. O que
achávamos perene, micou. Continuo resistindo, achando que isso é só uma con-
sequência matemática da maior exposição do que chamávamos de som comer-
cial. Certamente não estou com a razão.
Meu coração de fã continua intacto. Não é pouca coisa, manter as
ilusões depois de ver a máquina por dentro. Sou completista: quando gosto de
algum artista, quero saber tudo sobre seu trabalho. Adoro as fases estranhas
pelas quais todos os artistas de longa carreira passam. Sempre tive um pé atrás
com as novas ondas, por isso, frequentemente me atraso. Fui o último cara da
minha turma a me dar conta de que Bob Marley era o que é.

pra entender é preciso fé cega e pé atrás


uma canção da banda preferida, uma descida ao porão
seis cordas pra guitarra, seis sentidos na mesma direção
600 anos de estudos ou seis segundos de atenção

Meu presente de quinze anos foi dinheiro suficiente pra comprar uma
guitarra e um amplificador. Faltou pro táxi e tive que levar a tralha pra casa de
ônibus. Decepção total com a guitarra. Não era um instrumento introspectivo.
Resolvi tomar aulas de violão. Cordas de náilon. Yankees go home!
Quando cheguei, na primeira aula, o professor estava tocando um
choro ao bandolim. Foi o fim do violão. Falei que queria aprender aquilo.
Ele disse que eu deveria formar um regional para me acompanhar. Consegui
três colegas, dois violões e um cavaquinho.
O chorinho virou uma paixão. Nos sábados, o professor nos passava
uma música e eu ia direto para as lojas de disco do centro catar tudo que eu
achava de Jacob do Bandolim e Valdir Azevedo. Os álbuns do Arthur Moreira
Lima interpretando Ernesto Nazareth estavam no topo de qualquer lista.
Fui ficando sozinho na paixão pelo choro. O regional de um homem
só. Na época, abriu-se uma janela de receptividade, até comercial, para uma
música instrumental bem mais complexa: jazz, Gismonti, Jean Luc-Ponty, Pat

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Metheny, Stanley Clarke, Weather Report... Assisti a John McLauglin num Gi-
gantinho quase lotado! Ainda que maravilhosa, essa música trazia uma sensa-
ção desestimulante. Tocar parecia algo reservado a poucos eleitos. Segui ouvin-
do meus discos e tocando meu violãozinho no quarto fechado.

interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão


escrito à luz de velas, quase na escuridão, longe da multidão

Resolvi cursar Arquitetura, não sei bem por quê. Até não descarto
uma influência inconsciente de músicos que fizeram esse curso. Alguns da Bossa
Nova, outros da MPB. Até os caras do Pink Floyd, em biografias mal traduzidas,
estudaram Arquitetura.
Meu traço não era bom, mas eu gostava das matérias teóricas, história
da arte, história das cidades. Aquela esquina entre Artes Plásticas e Engenharia
era um lugar legal pra ficar olhando o movimento.
Entrei na Escola de Arquitetura da UFRGS em 1981. Havia dois gru-
pos de professores ideologicamente opostos. Dependendo de quem avaliasse
os nossos trabalhos, poderíamos tirar a melhor nota ou sermos reprovados.
Bela lição de relativismo cultural. Me foi muito útil fora da escola.

o sonho é popular
eu li isso em algum lugar
se não me engano, é Ferreira Gullar
falando da arquitetura de um Oscar
o concreto paira no ar
mais aqui do que em Chandigarh
o sonho é popular

No fim de 1984 rolou uma greve que fez as aulas se estenderem ja-
neiro adentro. Sem muito o que fazer no verão porto-alegrense, a estudantada
inventava atividades paralelas: exposições, festas, happenings… Numa des-
sas, me juntei a três colegas para fazer um show no auditório da faculdade.

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O baterista era Carlos Maltz, figuraça. Muito inteligente. A piada
que diz serem necessários dois bateristas pra trocar uma lâmpada (um pra
segurar a lâmpada e outro pra beber até a sala girar) não se aplica a ele. Mais
inquieto e rodado do que eu, Carlos já era casado e havia passado um tempo
em Israel e na Europa. Nossas diferenças ajudavam muito na invenção de
uma banda. Seguimos tocando juntos por muito tempo. Até brigarmos sem
brigar. Cada um foi pro seu canto e cada canto virou um mundo à parte. De-
pois de um tempo, voltamos a fazer algumas coisas juntos. Carlos é um dos
responsáveis por eu ter seguido escrevendo e tocando. 123 vezes resolvi largar
tudo e ele sempre me dizia, às vezes sem falar nada, pra continuar.

seguir viagem, tirar os pés do chão


já vi o fim do mundo algumas vezes
e, na manhã seguinte, tava tudo bem

No início, escrever releases pretensiosos e desenhar cartazes espertos


nos interessava tanto quanto fazer música. Estou mentindo: os cartazes eram
nossa preferência.
Sempre ensaiávamos na casa da família Maltz. Na garagem ou
na sala, dependendo da moral da banda no momento. Flap, o irmão me-
nor, sempre ficava por ali. Era muito engraçado na sua incorreção polí-
tica. Se não era um profundo conhecedor de aviões e carros antigos, nos
enganava muito bem.
Estreia e despedida dos Engenheiros do Hawaii aconteceriam no dia
11 de janeiro de 1985, dia da abertura do primeiro Rock in Rio. Tentamos con-
vencer algumas pessoas de que seria melhor nos ver tocar ao vivo do que assis-
tir aos monstros sagrados pela TV.
Eu tinha alguns cadernos de canções que incluíam trechos do que
viria a ser Infinita Highway, Nada a Ver, e outras músicas que eu gravaria
depois. Não mostrei nenhuma delas. Escrevi uma dúzia de canções no espírito
da época, pós-punk. Tinham aquele humor nonsense, niilista. Engenheiros do
Hawaii, uma delas, acabou dando nome ao grupo.

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Lembro de ter sugerido Frumelo & Os 7 Belos, brincando com o
nome das balas. Todo o mundo odiou. Engenheiros do Hawaii era uma brin-
cadeira com os estudantes de Engenharia e surfistas que frequentavam nosso
bar atrás das nossas colegas. Péssima escolha. Até hoje não sei nadar. Até hoje
tenho que explicar que nunca estudei Engenharia pra gente que não acredita
e jura que conhece outralguém que estudou comigo, Engenharia. Mas há uma
autoironia, no nome, que me agrada.

to be or not to be
engenheiros do Havaí
eles odeiam Albert Camus
eles só querem ler gibi

Li, em algum lugar, que, no início da banda Metallica, falaram para


os músicos que eles nunca fariam sucesso com aquele nome, porque era uni-
dimensional. Péssima previsão. Aqui rolou algo parecido, ao contrário. Ban-
das com nomes unidimensionais e heroicos como Ratos do Porão e Legião
Urbana tendiam a ser levadas mais a sério. Os Titãs, que no início eram “do
Iê-Iê-Iê”, deixaram essa questão explícita quando simplificaram o nome para
se adequar aos ares menos sutis que se aproximavam com os anos 90.

meninos de engenho
santa ingenuidade
santíssima trindade
sexo, drogas, rock’n’roll

Voltando ao primeiro show, encontraremos minha guitarra


Giannini Diamond fingindo ser uma Gibson 335. Eu, de bombacha e ca-
belo new wave, não sei o que fingia ser. O repertório era meio performá-
tico. Além das músicas que escrevi, tocamos uma versão reggae de Lady
Laura, do Roberto Carlos, e jingles dos biscoitos Sem Parar e do Extrato
de Tomate Elefante.

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Não lembro bem do show, pois estava bêbado. Era a primeira vez
que eu tocava em público. Tracei uma linha na lista das músicas que ficava
aos meus pés, exatamente no que seria a metade do show. Enquanto tocava,
olhava o roteiro e pensava que, se chegasse até aquela linha vivo, iria até o fim.
Essa mania me acompanhou por alguns anos.
Em princípio, eu nem deveria cantar todas as canções, mas, no pro-
cesso, o pessoal foi tirando o corpo e sobrou pra mim. Cantar não era algo que
me dava prazer. O que eu queria fazer era tocar algum instrumento. E compor.
Esse primeiro show parece ter ido bem. Pintaram convites pra apresen-
tações em outras faculdades e alguns bares. A banda que montamos pra durar
uma única noite estava virando uma banda pra durar algumas semanas. Já como
um trio, tocávamos onde dava pra tocar. Onde não dava, também tocávamos.
O repertório ia mudando rapidamente. As colagens performáticas
foram dando lugar a um material mais pessoal, saído do velho caderno. Dos
bares, começamos a andar pelo interior. Era algo que as outras bandas menos-
prezavam. Ficavam umas tocando para as outras, no mesmo bar. Dizem as más
línguas que são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo (um
para tocar e 99 para dizer que fariam melhor). Não é bem assim, mas é quase.
A agenda da época mandava ser completamente urbano e cos-
mopolita, romper com qualquer influência da MPB ou de sua versão gaú-
cha, a MPG. Inventou-se que o rock no Brasil foi inventado nos anos 80.
Muita gente jogou fora seus discos antigos. Depois se arrependeu.
Nós éramos estranhos porque tínhamos e mantínhamos um pé
em cada um desses mundos: rock clássico, MPB, MPG e atitude punk
do-it-yourself. Deve ter sido essa salada que chamou a atenção de uma
gravadora do centro do país, que lançaria um disco com cinco bandas
gaúchas. Éramos a banda na qual ninguém acreditava e a banda que es-
tourou. O disco se chamou Rock Grande do Sul.
Vendo em retrospectiva, acho que, sem querer, os caras fizeram uma
seleção emblemática da cena local. Das cinco bandas, duas faziam um rock
clássico, sessentista e setentista. Outras duas bandas tinham pretensões de
pós-modernidade, rezavam pela cartilha das revistas e jornais de São Paulo.

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e nós ali no meio
no meio da cegueira
nós ali no meio
no meio das bandeiras

Os clássicos me pareciam mal informados para menos. Os moder-


nos, mal informados para mais. Nós estávamos mais prontos para o que
viria. O BRock acabou transcendendo as gracinhas do Rio e o mau humor de
São Paulo, criando um ambiente que nos favoreceria.
Com o sucesso da coletânea, pudemos gravar um disco só nosso.
Durante as gravações, em São Paulo, ainda éramos o patinho feio. Gra-
vávamos nas horas que sobravam de outros artistas. Infelizmente, quase
sempre pela manhã.
Toda Forma de Poder, primeira música do nosso primeiro disco, co-
meteu quatro pecados capitais: colocou Fidel e Pinochet na mesma frase, tinha
participação de um ícone da MPG, estourou no Brasil inteiro e entrou numa
novela (nessa ordem).

Eu era completamente despreparado para tudo o que estava acon-


tecendo. Não sabia como me relacionar com outros artistas, gravadora, im-
prensa e público. Só depois me dei conta de que rolava um subtexto nas rela-
ções São Paulo/Rio/Província. Misteriosamente, sobrevivi sem aprender
a fazer a coisa certa. Aquele destemor de quem não sabe onde está se
metendo deve ter ajudado.
Ganhamos um Disco de Ouro raro na cena e começamos a viajar pelo
Brasil inteiro. No fim da turnê, Marcelo Pitz, nosso baixista, resolveu saltar
fora. Peguei emprestado o baixo dele, um lindo Rickenbacker Sunburst, para
gravar, com Carlos, a demo do que viria a ser o próximo disco. As músicas já
estavam todas prontas.

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Sempre achei as limitações de um trio estimulantes. Compor, fazer
arranjos e tocar nesse formato é estar numa interessante esquina entre arte
e ofício. Um lugar bom para ficar ouvindo o movimento. Pensei que, se eu
passasse para o baixo e encontrássemos alguém que também tocasse mais de
um instrumento, estaríamos livres para explorar o trio de uma maneira mais
versátil. Sem cair nas armadilhas de heroísmo dos power trios.
Talvez eu esteja mentindo. O real motivo para eu ter virado baixis-
ta pode ter sido aquele Rickenbacker Sunburst. E os Rickenbacker Creme
e Madeira que vieram depois. E os Steinberger, fretless e de dois braços.
Podem ter me feito baixista os Fender Precision do Roger Waters e do Phil
Lynnot, o Fender Jazz Bass do Jaco Pastorius, os amplificadores do Chris
Squire e do Jack Bruce, a palhetada do cara do New Model Army, de quem,
até hoje, não sei o nome.
Mais físico do que a guitarra, mais espiritual do que a bateria, o
contrabaixo fica na esquina entre ritmo e harmonia. Lugar legal para ficar
sentindo o movimento. Por acaso, virei baixista. Instrumento pelo qual a
maior parte dos fãs me identifica, mais do que guitarra, violão, teclado, har-
mônica ou viola caipira. Sou autodidata em todos esses instrumentos, mas
é o baixo que deixa minha precariedade técnica mais evidente. Não deixa de
ser constrangedor receber elogios nessa área. Talvez quem goste da maneira
como toco baixo saiba mais da vida do que eu. É impossível ser, ao mesmo
tempo, um coração e um cardiologista.
Falei com Maltz sobre a mudança. Ele achou legal a atitude irres-
ponsável de mexer no time que estava ganhando. Alguns dias depois, ao
encontrar Augusto Licks, num show, no Rio, Carlos o convidou para tocar
guitarra com a gente.
Conhecíamos o Augusto de trabalhos com o pessoal da MPG e de um
show, dos Engenheiros do Hawaii, no qual ele havia sido técnico de som. Além
do grande talento musical, achávamos que ele traria um estranhamento legal,
já que vinha de outro ambiente.
As mudanças de formação se tornaram frequentes na história
dos Engenheiros do Hawaii. Não que eu gostasse. Não que eu evitasse.

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Num mundo ideal, as pessoas ficariam juntas para sempre. Mas, num mun-
do ideal, talvez não se precise de música.

hoje eu sei, só a mudança é permanente


de repente tudo está no seu lugar

O disco que gravamos em seguida fez uma história bacana. No lança-


mento, não repetiu o sucesso do anterior, mas seguiria vendendo até o fim da in-
dústria fonográfica, no início do século seguinte. Saber que nossa música estava
chegando a lugares que não imaginávamos existir era estranho. Não posso dizer
que me sentisse muito à vontade com a perda de controle que essa nova escala
trazia. Boa sensação estranha.
Nossa gravadora, à época, era fraca no ambiente pop rock. O cast
se baseava em artistas românticos e populares. Foi bom para nós. Fazíamos
sucesso e os caras não entendiam como ou por quê. Então, nos deixavam em
paz. Sempre gravei o que eu queria, da maneira que eu queria gravar. Os nú-
meros que gerávamos eram confortáveis e nossa maneira de ser deixava claro
que não queríamos, nem poderíamos, fazer outra coisa. Impossível nos trans-
formar em dançarinos ou rostinhos bonitos. Isso nos protegeu.
Claro que a divulgação sempre era mais leviana e grosseira do que
eu gostaria que fosse. Eu me consolava pensando que, se Bach fizesse parte
do cast, tratariam-no da mesma forma. Cabia ao trabalho sobreviver, ou não,
às intempéries.
Enquanto gravávamos nosso segundo disco, em São Paulo, o pes-
soal da gravadora, no Rio, ficou sabendo que havia uma música com po-
tencial para fazer sucesso. Era Terra de Gigantes. Os caras estavam apre-
ensivos porque nosso arranjo não tinha bateria. Achavam um desperdício,
nenhuma música sem bateria tocava nas rádios. Muito amigavelmente, nos
sugeriram que seguíssemos a fórmula das baladas da época: que a canção
começasse só com guitarra e voz e a bateria entrasse depois, seguindo até
o fim. A música cresceria, os pés bateriam no ritmo e as lágrimas rolariam.
Não estávamos muito interessados em fórmulas. Como uma brincadeira

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interna, gravamos uma virada de bateria que caía no vazio. A levada não
seguia, morria ali, na entrada. Além disso, tiramos a letra dessa música do
encarte do LP.
Pode ser irrelevante, e certamente é ingênuo, mas algumas ati-
tudes como essa reforçavam a mistura de teimosia e irresponsabilidade
que fazia com que nossas impressões digitais sobrevivessem aos apertos
de mão. É natural que, ao conhecer um artista, a indústria, os críticos e os
fãs se perguntem com quem ele se parece. Mas é preciso que o artista se
pergunte o que é que só ele tem.
Na reunião em que mostramos o disco com Terra de Gigantes
para a gravadora, o clima foi de decepção total. Lembro das palavras
do chefão: “Esse disco é um Boeing com tanque cheio. Pode ir longe…
Se não explodir na decolagem”. Não creio que ele acreditasse na pri-
meira hipótese.
Saí da reunião direto para o aeroporto, achando que havíamos grava-
do nosso último disco. No voo para Porto Alegre, encontrei um grande artista
pop que estava indo ao Sul fazer alguns shows. Ele me mostrou, na fita K7 do
seu walkman, a música que lançaria em alguns dias. A canção, que seria um
grande hit, era bacana, seguia o formato dos singles radiofônicos da época.
Fiquei com a boa sensação estranha de que ele havia feito a coisa certa, nós
havíamos feito a coisa certa, os caras da gravadora estavam certos, tudo es-
tava certo. As luzes de Porto Alegre, lá embaixo, estavam certas, as estrelas,
lá em cima, estavam certas. Cada um na sua.

as chances estão contra nós


mas nós estamos por aí
a fim de sobreviver
como um avião sobrevoa
a cidade em chamas

O disco saiu, a turnê seguiu, e minha conexão com o ambiente ex-


terno foi nublando e minguando. A banda virou um casulo. Não consigo mais

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situar o que fizemos nas correntes e tribos da época. Contribuiu para esse
alheamento, além da minha introspecção, a preguiça de encarar os clichês que
se realimentavam.
No Sul, éramos a trena pela qual o possível sucesso de outras
bandas era medido, o que gerava um justificado ciúme (são necessários
100 guitarristas gaúchos para gravar um solo…). Nunca quisemos ser por-
ta-vozes de nada. Nossa viagem era extremamente pessoal. Mas, infeliz-
mente, nos coube, no Sul, ser a banda que atravessou o Mampituba. Era
muito pouco e era chato.
No resto do país, depois de rock-chimarrão e rock de bombacha,
caiu sobre nós o clichê de odiados-pela-crítica-amados-pelo-público. Nada
disso era muito verdadeiro. Tudo isso era muito desestimulante. Não havia
diálogo acima dos clichês.
Enfim… Aproveitando a autonomia que conquistamos na indús-
tria, fui me fechando no meu próprio trabalho, que foi ficando cada vez mais
autorreferente. Era consciente disso e nunca me preocupei. Sempre achei
que tua maior virtude e teu maior defeito são irmãos siameses.
Discos compunham trilogias, melodias e capas se repetiam anos
depois, letras de músicas voltavam transformadas. Duas letras na mesma
melodia, duas melodias com a mesma letra… Um mundo à parte, um mun-
dinho à parte. Daqui pra frente, acho que as músicas falam por si.

tudo se resume a uma cruz e uma espada


e o principal, fica fora do resumo

(caberia aqui toda a letra de Camuflagem)


P.S.: quando não quero perder tempo falando da minha trajetória,
costumo dizer que tive muita sorte. É menos cansativo do que reviver todo o
trabalho, as alegrias e as frustrações.

Pra ser sincero, sorte mesmo, e sorte grande, foi casar com Adriane.
Luz que não produz sombra. Estudamos no mesmo colégio e fomos colegas na
Arquitetura. Uma das primeiras coisas que ela me disse foi que eu era diferente
do que parecia ser. O tom de voz sugeria ser um elogio. Até hoje tenho dúvidas.
Será que ver de perto ou de longe muda tanto as coisas?

juntos para sempre


objeto e observador
física moderna
velhas canções de amor

Diga-se, a meu favor, que tenho o raríssimo dom da monogamia. Pelos


meus cálculos, só 12,3% das pessoas deveriam se casar. E, destas, 12,3% deve-
riam ter filhos. Coisas para iniciados. Segue sendo um mistério, para mim, que as
pessoas achem que casar e ter filhos é o caminho normal. Ninguém é igual a nin-
guém, né? Eu, por exemplo, não gosto de flores. E acho um tédio ir ao cinema.

28
Em 1992, nasceu minha filha, Clara. E o mundo se refez. Um dia,
quando eu estava cantando uma das minhas músicas favoritas para fazê-la
dormir (índia teus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não
tem luar), ela me perguntou por que a tal índia tinha os ombros caídos.
Acostumada com CDs, quando Clara viu, pela primeira vez, meus LPs
perguntou o que era aquilo. Respondi que eram discos, pra tocar música. Ela
falou: “Que legal, agora os discos vão ser grandões!”. Um mundo novo pode ser
uma nova forma de ver o velho mundo.

morte anunciada: direitos autorais


pela tv a cabo uma baleia acaba de nascer
nascer pode ser uma passagem violenta
o futuro se impõe, o passado não se aguenta

Por Deus Nosso Senhor, eu achava mesmo que o fim do texto


era ali, no parágrafo anterior. O pessoal que me convenceu a fazer o livro
me convenceu também de que seria legal o texto chegar aos dias de hoje.
Enquanto eu explicava com belos argumentos por que não continuaria, de
jeito nenhum, nem pensar, imagina, claro que não, comecei a achar que
era pretensioso demais parar ali. Quantas vezes posso fazer o que fiz com a
bateria de Terra de Gigantes? Não muitas, certamente.
Prometo que, se me convencerem de mais alguma coisa, eu aviso.
Fiquem tranquilos. No mais, os erros são todos meus. Daqui pra frente,
vou me valer desta abstração que é a contagem do tempo em anos, pois
me falta ciência para situar bem o que fiz em relação às tribos e ondas
do momento.
Efeito colateral dos coloridos livros de geografia da minha mãe,
tenho gráficos e tabelas com todos os shows, gravações, videoclips e progra-
mas que fiz. Por si só, dizem muito pouco, quase nada. Serão úteis para criar
um quadro pontilhista. Impressões numa imagem sem linhas. Curioso caso
em que quadro será moldura. Continuo achando que, falem bem ou falem
mal, os discos falam por si. É só ouvir.

29
• 1986 •
Após o sucesso de Segurança e Sopa de Letrinhas, na coletânea Rock
Grande do Sul, gravamos, em São Paulo, nosso primeiro LP, Longe Demais das
Capitais. Não consigo me lembrar se a canção deu nome ao disco ou se o nome
do disco sugeriu a canção. O que significa que canção e conceito nasceram mui-
to próximos um do outro.
Fizemos as fotos da capa perto de Porto Alegre, no lugar mais pare-
cido com o Pampa que encontramos. Sinalizava nossa falta de interesse pela
agenda da época, com suas paredes pichadas, latas de lixo em becos escuros e
bússolas apontando para Nova Iorque e Londres.
O disco teve Carlos Maltz na bateria, Marcelo Pitz no baixo e as
participações de Nei Lisboa em Toda Forma de Poder e Manito, saxofinista
d’Os Incríveis, em Segurança. MPG e Jovem Guarda engrossando nosso caldo.
Não era fácil conseguir instrumentos importados, na época. Consegui
que um-colega-do-primo-do-pai-da-irmã-do-vizinho-de-um-cara-que-tinha-
uma-kombi trouxesse dos EUA uma Fender Telecaster. Encomendei um modelo
clássico, anos 60. Para minha decepção, veio uma guitarra moderninha, pratea-
da, de metaleiro. Mas era minha e eu a adorava. Gravei esse disco com ela.
Surpresa foi a gravadora ter pintado a foto da capa, originalmen-
te P&B. A estética new wave impunha um colorido atroz. Mas o tiro saiu
pela culatra. A capa até ficou bacana com as cores artificiais. Parecia-se com
aqueles retratos antigos, artificialmente coloridos. Bucólico. Na edição do CD
restaurou-se o P&B outonal original.

um cão sem dono


uma árvore no outono
o nono mês de gravidez
eu perco o sono
ao som de Yoko Ono
telefono pra vocês

31
Longe Demais
1986 das Capitais

Humberto Gessinger
voz & guitarra

Marcelo Pitz
baixo & voz

Carlos Maltz
bateria
< A boa estranha
Telecaster. Aquela
mangueira presa ao
segundo microfone
faz parte do sistema
Voice Box. Por ela
vem o som da guitarra.
A boca se transforma
numa caixa de
ressonância e o
som é captado pelo
microfone. Som de
guitarra articulado
como voz, mais ou
menos isso…

Cartão-postal >

Longe Demais
1986 das Capitais

TODA FORMA DE PODER 1 gessinger


Lado A

SEGURANÇA 2 gessinger
EU LIGO PRA VOCÊ 3 gessinger
NOSSAS VIDAS 4 gessinger
FÉ NENHUMA 5 gessinger
BEIJOS PRA TORCIDA 6 gessinger

TODO MUNDO É UMA ILHA 7 gessinger


LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS 8 gessinger
SWEET BEGONIA 9 gessinger
NADA A VER 10 gessinger
Lado B

CRÔNICA 11 gessinger
SOPA DE LETRINHAS 12 gessinger/pitz
• 1987 •
Seguimos na estrada todo o primeiro semestre, até a saída do
Pitz. Augusto, que assumiria a guitarra com minha passagem para o bai-
xo, não teve muito tempo para se ambientar. Éramos dois neófitos. Eu no
baixo, ele na banda. Isso fez muito bem ao disco que gravaríamos em São
Paulo e se chamaria A Revolta dos Dândis. O nome veio de um capítulo
do livro O Homem Revoltado, de Albert Camus. Julio Reny, que circulava
nos mesmos palcos que a gente, no início da carreira, dividia comigo os
vocais em Guardas da Fronteira.
O álbum tinha um som esparso e bem cru. Já começava a pintar a
digitalização dos equipamentos, mas não usamos nada que fosse posterior
ao início dos anos 70. Não por bravata ou estilo. Era o que nos bastava. Eu
achava muito xinfrim nós, aqui no terceiro mundo, nos arvorarmos à ponta
tecnológica. Não era o bom combate. Hoje é diferente, centro e periferia
tecnológica já não desenham um mapa linear.
As fotos da capa foram feitas no mesmo lugar do disco anterior.
O projeto gráfico iria se repetir no disco posterior. Assim como trechos
de músicas e letras reapareciam. Eterno retorno, pensando em loop.
Minha ladainha, longa milonga. Lenga-lenga, lero-lero. Pensando em loop
para sublinhar a continuidade.
O mundo pop é muito novidadeiro. A onda é vir, a cada ano, com
outra onda. Como se novidade fosse um valor em si. Sempre achei empobre-
cedor pensar assim. Prefiro artistas que abrem poucas portas e se jogam na
sala escura a artistas que abrem todas as portas só pra dar uma espiadinha.
Simples preferência, não vai nenhum juízo aí. Questão de escolher
a distância da qual se vai ver o quadro. Uma sinfonia de Berlioz, com aquele
mundaréu de gente, pode ter o tamanho do violão e voz do João Gilberto.
Depende de nós. Longe ou perto, dentro ou fora.

há tantos quadros na parede


há tantas formas de ver o mesmo quadro

36
A partir desse disco, começamos a usar engrenagens nas capas. Num
ensaio na casa do Maltz, chegou correspondência para o pai dele, vinda do sin-
dicato dos engenheiros. O símbolo era uma engrenagem. Carlos sugeriu criar
uma, para usarmos como assinatura visual.
A Revolta
1987 dos Dândis

Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra

Augusto Licks
guitarra, violão, harmônica & voz

Carlos Maltz
bateria, percussão & voz
Gravação do disco
>

Rickenbacker
Sunburst >

A Revolta
1987 dos Dândis

A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 1 1 gessinger


Lado A

TERRA DE GIGANTES 2 gessinger


INFINITA HIGHWAY 3 gessinger
REFRÃO DE BOLERO 4 gessinger
FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR 5 gessinger

A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 2 6 gessinger


ALÉM DOS OUTDOORS 7 gessinger
VOZES 8 gessinger
QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA 9 gessinger/maltz
Lado B

DESD’AQUELE DIA 10 gessinger


GUARDAS DA FRONTEIRA 11 gessinger

+ Escrevi, com Nei Lisboa, Deixa o Bixo. Está no disco Carecas da Jamaica.
Neste mesmo disco participei da faixa Carecas da Jamaica.
• 1988 •
Continuava a rotina de muitos shows, quase sempre em ginásios,
mesmo durante as gravações do Ouça o Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém.
Gravado na mesma época do ano e no mesmo estúdio em que gravamos o disco
anterior, ambos compartilhavam, também, o mesmo estado de espírito. Não
havíamos amadurecido muito, mas estávamos mais entrosados como banda,
o que é bom, mas é ruim, mas é bom…
O disco abre com a música de mesmo nome. Eu queria que começasse
com um burburinho, vozes incompreensíveis. O produtor do disco estava me aju-
dando a gravar essas vozes e, do nada, começou a falar palavrões ligados ao nome
de pessoas bem conhecidas. Não me aguentei e comecei a rir. Na mixagem, ob-
viamente, tiramos as ofensas. Até hoje, quando ouço a música, fico com medo de
que elas voltem do além. Não seria nada engraçado, mas não me surpreenderia.
Na real, o que me intriga é que sempre escutemos a mesma versão
quando colocamos um disco. Me surpreende que a bola que estufou as redes,
num estádio qualquer no domingo à tarde, continue entrando nas inúmeras
repetições da TV à noite. Que, nas fotos das capas, não apareçam as rugas que
eu vejo no espelho, me espanta. Segura a onda agora, Dorian Gray.
A capa seguia a mesma matriz d’A Revolta dos Dândis, só mudava a
cor, de amarela para vermelha. Nos amarrávamos em cores primárias, na lin-
guagem de sinais de trânsito, placas de estrada e bandeiras.
Viesse depois um disco com capa verde, e teríamos uma trilogia com
as cores da bandeira rio-grandense. Mais do que um manifesto de regionalismo
mal focado, um piscar de olhos para os dinossauros do rock progressivo. Um
aceno aos seus pretensiosos álbuns conceituais a serem continuados, recheados
de músicas com várias partes. Sigo nesse time. Perder a guerra não significa
aderir. Éramos uma miniatura de dinossauro, o que deve ser uma lagartixa.

eles têm razão


mas a razão é só o que eles têm
e a ilha não se curva
às águas turvas desse mar

42
Sugeri que as engrenagens, em vez de um conteúdo original, tivessem,
em seu interior, símbolos pré-existentes. O lance hippie, o céu da bandeira do Bra-
sil, o ying-yang, a cobra mordendo o próprio rabo. Deixava a coisa mais divertida
e menos aleatória. Os signos deveriam ter relação com o conceito do disco. Trazia
uma boa sensação estranha vê-los subordinados a engrenagens. É provável que
eu e Carlos tenhamos virado noites falando de Walter Gropius, Duchamp e Dalí,
tecendo longas teses sobre bigodes na Mona Lisa, relógios derretendo e mictórios
fora do lugar, enquanto especulávamos pequenas subversões visuais.

jagunço hi tech
perua low profile
cabelo vermelho ferrari
joia rara para a multidão

Marcante foi o show Alternativa Nativa, no Maracanazinho. Nesses


shows coletivos, sempre rola um clima de competição, que nada tem a ver com
música. É assim, não adianta. Quem foi melhor, a laranja ou o poema?, ne-
nhum dos dois, preferi o mês de abril. Não adianta, é assim. Para nossa sorte,
no dia seguinte, estava no jornal: “A Vitória dos Dândis”. Desde esse maracana-
ço, começamos a nos chamar de “a maior banda do futebol uruguaio”.

No fim desse ano, fui morar no Rio de Janeiro. Eu estava me casan-


do, de qualquer forma teria que me mudar. Algumas centenas de quilômetros
mais ao norte não fariam diferença. Nossos shows já eram, em sua maioria,
fora do RS. Era mais cômodo ficar mais perto de onde nos queriam mais.
Aluguei um apartamento em Copacabana. No primeiro dia como inqui-
lino, encontrei, no elevador, João Saldanha, ex-técnico da Seleção e do Bota-
fogo. Comentarista esportivo dos mais interessantes. Me declarei fã e pedi que
ele escrevesse o release do nosso disco. Ele disse que não manjava nada do
assunto. Estou quase certo de que o termo foi este mesmo, “manjar”. Falei que
seria melhor assim, que ele escrevesse qualquer coisa. E assim foi.

43
Ouça o Que Eu Digo:
1988 Não Ouça Ninguém

Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra

Augusto Licks
guitarra, violão, teclados & voz

Carlos Maltz
bateria & percussão
< 16 de julho, o maracanaço. Minhas lembranças
de shows nunca são visuais. Seja por ter olho claro
ou por timidez, fico cego no palco. Talvez por isso
tenha levado um tombo logo nas primeiras músicas.
Tropecei em algo. Estava de botas, não era a chuteira
certa para o tipo de gramado. Tenho mania de colar
crucifixos nos meus instrumentos. No tombo, entortou
uma cravelha do Rickenbacker e sumiu o crucifixo.
Mau presságio. Será que levaríamos uma goleada?
Que nada, o show decolou e foi uma maravilha.
Um roadie achou o crucifixo embaixo do praticável
da bateria.

Ouça o Que Eu Digo:


1988 Não Ouça Ninguém

OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM 1 gessinger


Lado A

CIDADE EM CHAMAS 2 gessinger


SOMOS QUEM PODEMOS SER 3 gessinger
SOB O TAPETE 4 gessinger / licks
? DESDE QUANDO ? 5 gessinger
NUNCA SE SABE 6 gessinger

A VERDADE A VER NAVIOS 7 gessinger


TRIBOS E TRIBUNAIS 8 gessinger / licks
PRA ENTENDER 9 gessinger
Lado B

? QUEM DIRIA ? 10 gessinger


VARIAÇÕES SOBRE O MESMO TEMA 11 gessinger / licks

+ Escrevi a letra de O Que Você Faz à Noite, uma parceria com Dé, então baixista
do Barão Vermelho. Está no disco Carnaval.
• 1989 •
Pretendo tirar este parágrafo da edição gaúcha, pois vou falar que
simpatizo com o Botafogo e vão me cobrar monogamia tricolor. Bah, nem
falei do Grêmio ainda! Melhor pra vocês. Se começar a falar, não paro mais!
Do Botafogo, é mais fácil falar, é só um namoro passageiro.
Nesse ano, o Botafogo saiu de uma fila de 123 anos e foi campeão
carioca. Com técnico e alguns jogadores gaúchos. Aos poucos, foi ficando
alvinegro o meu ponto de vista nos bate-papos sobre o futebol do Rio. Se,
hoje, os cariocas são supercentrados no futebol deles, imaginem nos jurássicos
tempos de antes da internet.
Será que foi o escudo do Botafogo que me fez adotá-lo como time
filial? Nesse caso, desde minha infância, já estava escrito, não nas estre-
las, mas nos meus cadernos. Adorava desenhar escudos de times. Eu divi-
dia os distintivos em três tipos: os naturalistas (Vasco com sua caravela e
Corinthians com sua âncora), os artísticos, com suas letras entrelaçadas
(Inter, Flamengo e Fluminense) e os geométricos, feitos com esquadros e
alguns pontos de compasso (São Paulo e Grêmio). A estrela solitária, mais do
que as estrelas do Cruzeiro, fica num grupo particular, esquina entre poesia
e geometria. Um lugar legal pra ver o jogo.
Outro pecado capital para torcedor gaúcho: enquanto morava no Rio,
comecei, gradualmente, a parar de secar o Internacional. Perdesse Grêmio ou
perdesse Inter, algum carioca sempre pegava no meu pé. Não adiantava dizer
que só torcia pra um dos times, a resposta era sempre “é tudo gaúcho!”. A si-
tuação chegou ao máximo no dia em que o Figueirense perdeu para um time
carioca e alguém pegou no meu pé. “Figueirense é de Florianópolis!”, protestei.
Ouvi a frase de sempre: “É tudo gaúcho!”. Para desespero do meu lado racional,
bastou eu voltar a morar em Porto Alegre para que o secador renascesse.

Nesse ano, lançamos Alívio Imediato, que inauguraria o padrão de


um disco ao vivo entre cada três de estúdio. Tínhamos só dois dias, no Canecão,

48
para gravar o show. Eu gosto dos altos e baixos de uma estreia. O pessoal da
técnica sempre prefere a tranquilidade dos outros dias. Antes do segundo show,
ouvindo as gravações do dia anterior, descobrimos que não poderíamos utilizar
quase nada. Havia fãs com buzinas bem embaixo dos microfones que captavam
a audiência. Assim, o segundo dia virou estreia de novo. Altos e baixos, tensão
legal. O disco capturou bem o show.
Comecei a usar os baixos Steinberger. Perdia um pouco da impetuo-
sidade dos Rickenbacker, ganhava um pouco de chão, a âncora. Que maravilha,
um trio! Parece que expulsaram dois jogadores de cada time. Um campo enor-
me para correr e mandar às favas esquemas táticos.

Entre a gravação e o lançamento do disco, faríamos nossos primei-


ros shows internacionais. EUA, Europa ou América Latina seria muito linear
para uma banda como a nossa. Para onde o destino nos levou? URSS! Um
sonho em extinção? Um pesadelo a minutos de o despertador tocar? Você
decide. Já botei Fidel e Pinochet na mesma linha e, de lá para cá, só fiquei
mais confuso.
Na bagagem que levaríamos nessa expedição ao outro lado da cortina
de ferro, levamos um material impresso sobre a banda. Nele, uma letra tradu-
zida: a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes. No avião,
eu pensava: que sentido isso pode fazer lá? Será que tem refri? E propaganda?
Banda tem? Juventude deve ter.
Foram cinco shows em Moscou, abrindo para uma banda russa bem
conhecida lá. Eles viriam ao Brasil e retribuiríamos a acolhida. Mas caiu o
muro antes, não rolou. Não sei se a banda sobreviveu às transformações que
vieram com o colapso do império. O som deles era heavy metal clássico, aque-
le bem cantado e bem tocado, com guitarras voando em escalas melódicas. O
estranho é que tocavam baixinho. Mesmo nas músicas sem bateria, parecia
que soávamos mais alto. Estavam acostumados a tocar em teatros e, nós, em
ginásios, deve ser a causa.

49
Os horários dos shows eram esquisitos. Num dia tocamos às 12h e às
16h30min. O teatro era muito bacana. No primeiro show, levei um esporro tão
grande do zelador que, mesmo sem entender russo, entendi tudo o que ele ber-
rava. Eu estava entrando no palco com um copo de conhaque e ele esbravejava
que grandes bailarinos, atores e músicos tinham pisado naquele chão e nunca
ninguém com um copo de bebida alcoólica na mão. Ponto para ele. Estava cer-
to. Mas, cá pra nós, o conhaque era maravilhoso. Muito melhor do que a vodka.
Vinha numa garrafinha despretensiosa como as nossas de guaraná.
Ficamos hospedados num conjunto de vários prédios idênticos. Um
dia me perdi, entrei no prédio errado. Fiquei tentando abrir uma porta que não
era a minha. A enorme senhora que cuidava do corredor veio ver qual era. Não
conseguíamos nos comunicar. Um monte de portas se abriram. Todos os filmes
sobre espiões na Guerra Fria passaram pela minha cabeça. Um caos. Uma fita
K7 do Roger Waters (Radio K.A.O.S) no meu bolso fez com que um cara falasse
comigo no que parecia, remotamente, ser o idioma inglês. O cara ganhou a fita
e eu, uma orientação para chegar ao meu quarto.

Com cachê pago numa moeda que não poderia trazer para o Brasil, eu
quis comprar uma camisa da Seleção ou de qualquer time russo. Não tinha pra
vender. Quis comprar um instrumento. Eram intocáveis, vinham com o braço
separado do corpo e pregos para juntar.
O que eu trouxe foram uns pôsteres revolucionários e, na mente,
imagens das estações do metrô, o barulho dos limpadores de para-brisa, o
frio que era diferente do frio que eu conhecia. Trouxe também os olhos esbu-
galhados na janela do Aeroflot quando o avião pousou em Moscou, o cheiro
do cigarro russo, os pedidos de cigarro americano e a sensação de transe ao
passar dez dias ouvindo um idioma tão diferente. Parecia uma fita tocada ao
contrário, num velho álbum de rock progressivo. Restou uma contradição.
Como se, num quadro pontilhista, cada ponto fosse cinza e a imagem formada
fosse colorida.

50
Dizem que um especialista é um cara que está num lugar há mais de
vinte anos, ou há menos de vinte minutos. É verdade. Em cada paralelepípedo
de Moscou, eu via o Kremlin. Reverberava tudo que eu pensava saber sobre
aquele povo. Drops de Dostoiévski. Como uma série de bonecas russas, umas
dentro das outras, tudo depende de quão fundo queremos ou podemos ir. Perto
ou longe, dentro ou fora.
tudo que era certo, sólido
tudo que era líquido e certo
dissolve, desaba, dilui
desmancha no ar

De volta ao Brasil, promessas utópicas de um socialismo moreno. Era


a primeira eleição direta para presidente, depois de 123 anos. Tocamos em qua-
tro comícios do candidato Leonel Brizola. Não cobramos nada. Num deles, as
atrações éramos nós e Arthur Moreira Lima, num palco mambembe. Do lado de
lá, Collor tinha os artistas mais populares do momento, num palco de primeira.
Não sei o que teria acontecido se Brizola tivesse ganhado. Talvez a mesma coisa
que aconteceu com Collor, mas com sinal contrário. Vinte e seis anos atrás, não
haviam derrubado outro? Há quem diga que, naquela vez, pelas virtudes e não
pelos defeitos. À luz do que se viu depois, me parece que tudo fica mais tranqui-
lo com um paulista na presidência. Seja de que lado for.

esquerda e direita, direitos e deveres,


os três patetas, os três poderes
ascensão e queda são dois lados da mesma moeda
1989 Alívio Imediato

Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra

Augusto Licks
guitarra & teclado

Carlos Maltz
bateria
< Também estavam programados shows em Leningrado mas,
infelizmente, ficamos só em Moscou. Guardo na mente, então,
a São Petersburgo dos livros de arquitetura.

1989 Alívio Imediato

NAU À DERIVA 1 gessinger


Lado A

ALÍVIO IMEDIATO 2 gessinger


A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 1 3 gessinger
A REVOLTA DOS DÂNDIS parte 2 4 gessinger
INFINITA HIGHWAY 5 gessinger

A VERDADE A VER NAVIOS 6 gessinger


TODA FORMA DE PODER 7 gessinger
TERRA DE GIGANTES 8 gessinger
SOMOS QUEM PODEMOS SER 9 gessinger
Lado B

OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM 10 gessinger


LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS 11 gessinger

+ Escrevi a letra de Olhos Abertos, música da banda Capital Inicial, gravada


no disco Todos os Lados.
• 1990 •
Começamos esse ano participando de um festival que reunia grandes
bandas nacionais e gringas. No Estádio do Morumbi, em São Paulo, e na Praça
da Apoteose, no Rio. Dezenas de milhares de pessoas ali, milhões de olhos e
ouvidos pela TV.
Numa das últimas músicas do show no Morumbi, tentei olhar o
horizonte acima das pessoas e vi uma goleira (só gaúcho chama de golei-
ra o que, para ser mais universal, deve ser a meta, o gol, o arco, a cida-
dela adversária). Emocionado com a calorosa acolhida, agradeci mais ou
menos assim: “Valeu, São Paulo! Foi um prazer tocar aqui, olhando para
a goleira onde Baltazar fez o gol que deu ao Grêmio o título de Campeão
Brasileiro de 1981”.
Metade das pessoas vaiou, outra metade riu. Um ou outro gremis-
ta perdido na terra da garoa deve ter aplaudido. Na hora, me arrependi de
misturar futebol e música. Da mesma forma que não queria começar a falar
do Grêmio, aqui, senão não paro. Olhei pra trás meio envergonhado e cru-
zei olhares com Carlos, colorado convicto, descendo a lenha na bateria. Ele
sorriu em aprovação. Talvez só nós dois, ganhando fora de casa, entendês-
semos a analogia.
Alguns meses depois, eu estava em São Paulo e resolvi assistir à se-
mifinal do Campeonato Brasileiro: Grêmio e São Paulo. Quarta-feira à noite,
no Morumbi. Na chegada ao estádio, algumas pessoas apontavam para mim.
Legal, sou famoso! Nada disso, começaram a me ofender! Caramba, eram tor-
cedores que estavam naquele show do festival!
Entrei no estádio, tudo tranquilo. Aquelas piadas normais, pega-
ção de pé de torcida sobre gaúchos. Começa o jogo, São Paulo 1 a 0. Mais
pegação de pé. São Paulo 2 a 0, um olé. Mais pegação de pé. Foi então que
começou uma briga generalizada entre os jogadores. Aquele baixo-astral
foi saindo do campo, contaminando a arquibancada. A pegação de pé virou
ameaça e eu saí, corrido, do estádio.
Sem conseguir tirar o carro do estacionamento nem pegar táxi, na
rua deserta, eu e meus parceiros rolávamos de rir. Que bela noite! Ecos de

56
um show. Irradiação fóssil. Eu vi a nuvem de baixo astral vinda do gramado
envolver tudo. Quando penso no ofício de estar do lado de cá do microfone,
sempre lembro dessa imagem. Afinal, que frequências estamos emitindo?
Uma questão interessante para a cena rock’n’roll, tantas vezes gigolô da
transgressão e prisioneira da pose.

No grande esquema geral das coisas, era ano de início de mandato.


Obviamente, o dito “Caçador de Marajás” venceu aquela eleição. Bateu, em se-
gundo turno, um Lula parecido com o que veio a ser presidente, anos depois.
Lá pelas tantas, no início de seu reinado, o cara segurou a grana de todo mundo
no banco! O motivo seria uma inflação surreal que fazia andar de táxi ser mais
barato do que andar de ônibus (porque se paga depois).
Estávamos fazendo uma temporada em São Paulo, no Anhembi. Na
noite do anúncio da chinelagem financeira, só cheques na bilheteria. O dinheiro
sumiu. Os mercados, em geral, e a indústria fonográfica, em particular, ficaram
bem perdidos. Números despencando. Nós, pela fidelidade dos fãs, seguráva-
mos a onda. Assim, sem mudar nada, acabamos virando o grupo que mais ven-
dia no cast da gravadora. Surreal. Salvamos o Natal dos caras.
O Papa É Pop, disco deste ano, foi o primeiro a também sair em CD.
Desde o início, esse formato parecia transitório. Já nasceu morrendo. Uma vez
digitalizados, obviamente, os arquivos de áudio achariam um meio mais ele-
gante de chegar às pessoas. Sem o irritante estojo de acrílico, que sempre vinha
com os dentes que prendiam o disco já quebrados. Sem o plástico irritante-
mente difícil de romper (problema que qualquer embalagem de cigarro barato
já tinha resolvido, com uma pequena fita vermelha). Mesmo com toda a moral
que tínhamos na gravadora, nunca conseguimos uma capa de papel, se possí-
vel, reciclado. As grandes estruturas têm raciocínios que só fazem sentido fora
da escala humana.

57
É lugar-comum reclamar da redução de possibilidades gráficas do CD
comparado ao LP. Acho que é só uma questão de distância em relação ao qua-
dro. Sinto mais falta das duas aberturas e dos dois finais que o LP oferecia. Lado
A e lado B. Montar esses dois programas envolvia arte e ofício. Além do lance
musical, havia a matemática de fazer com que os dois lados tivessem a menor
diferença de tempo possível. Para equilibrar os sulcos no vinil e evitar que, na
fita K7, um dos lados ficasse muito tempo girando em silêncio.
O CD oferece mais tempo de música do que o LP, mas, com a
facilidade de, apertando um botão, irmos direto à faixa desejada, acho
que se ouve menos o disco na sua totalidade. A música que abria o lado
B, espaço nobre num LP, fica no meio de uma longa lista no CD. Co-
meçou a se desfazer a magia do álbum, que teve início nos anos 60 e
apogeu no meio dos 70.

Deixando de lado os discos em geral e voltando ao nosso, em particular,


havia um conceito legal alinhavando todo o projeto. Um bailado entre profano e
profundo. Várias simetrias. Pelo menos para mim, olhando de dentro, vendo de
perto. Essas sutilezas foram encobertas pelo enorme sucesso do disco.
Era um Garoto…, que começamos a tocar, por acaso, num comí-
cio, era, para mim, quase uma sessão de análise. Virou, simplesmente, a
regravação de um hit da Jovem Guarda. Ainda não eram muito bem vistas
citações a esse período da MPB. A simultaneidade com a Guerra do Golfo
deixou tudo mais confuso. Seria uma canção de protesto? Mas de quem era
aquela guerra, afinal?
U2 ainda não tinha resgatado do limbo o termo pop. Acreditem se
puderem: ser pop ou rock era uma questão. E nós, ali no meio. A foto do papa
tomando chimarrão desagradou crentes e ateus. Quando comecei a receber
elogios emocionados aos vocais que simulavam um jingle nos refrões da
faixa-título, aprendi uma lição: deixar Andy Warhol quieto. Acho que hoje já dá
pra ouvir o disco como ele é.

58
eu entendo você que não me entende
encare a ilusão da sua ótica

Minhas faixas favoritas são as longas: Anoiteceu em POA e A Violên-


cia Travestida Faz seu Trottoir. Colagens épicas que estariam bem em um LP
de alguma banda progressiva obscura, gravado em setenta e poucos, com uma
capa de surrealismo barato. Tocamos elas pouco, em shows. Mesmo entre os
fãs, são mais valorizadas agora do que naquele momento.

Se não me engano, foi por essa época que chegou ao Brasil a MTV,
reforçando, por algum tempo, a utilidade desta inutilidade que é o videoclip.
Diretores bacanas como Cacá Diegues (O Exército de um Homem Só, Her-
deiro da Pampa Pobre) e Zelito Viana (Piano Bar) fizeram clips com a gente.
Depois pintou uma gurizada especializada na linguagem, muito legal. Tudo
certo, bons trabalhos. Mesmo assim, nunca vi nexo no formato. Problema
meu, certamente.
Descubro mais significados quando revejo antigas gravações de pro-
gramas de auditório, do tipo Chacrinha. Só se fazia uma dublagem rudimentar,
mas, pelo menos, o risco era maior. Para Terceira do Plural e O Papa É Pop
lembro de ter escrito roteiros, motivado pelas possibilidades que as letras ofe-
recem. Me disseram que eram inviáveis. Deviam ser mesmo, coisa de quem está
acostumado a depender só de lápis e papel para criar um mundo. Tudo bem,
tudo certo. Cada um na sua.

na outra janela o sol sempre brilha


o risco é calculado
vídeo-guerra, vídeo-reino-dos-céus

59
1990 O Papa É Pop

Humberto Gessinger
voz, baixo & teclados

Augusto Licks
violão, guitarra & teclados

Carlos Maltz
bateria
< Singles Era um Garoto...
e O Papa É Pop

1990 O Papa É Pop

O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ parte 1 1 gessinger/licks


Lado A

ERA UM GAROTO… 2 luzini/migliaci/vs: brancato


O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ parte 2 3 gessinger/licks
NUNCA MAIS PODER 4 gessinger/licks
PRA SER SINCERO 5 gessinger/licks
OLHOS IGUAIS AOS SEUS 6 gessinger

O PAPA É POP 7 gessinger


A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR 8 gessinger
ANOITECEU EM PORTO ALEGRE 9 gessinger
Lado B

ILUSÃO DE ÓTICA 10 gessinger


PERFEITA SIMETRIA 11 gessinger
• 1991 •
Desnecessário dizer que, entre um disco e outro, seguimos na
estrada. Sempre foi assim. Logo no início do ano, tocamos na segunda
edição do Rock in Rio. Durante o show, eu ficava imaginando se haveria
alguma banda em alguma escola de Arquitetura fazendo seu primeiro e úl-
timo show. O cachorro correndo atrás do próprio rabo, a cobra engolindo
o próprio rabo.

Gravamos, no Rio, Várias Variáveis, o disco com capa verde que fe-
charia a trilogia da tricolor bandeira pampeana. Paradoxalmente, é nosso disco
mais paulista. A beleza de flutuar num país do tamanho e com a diversidade
do nosso é que os centros gravitacionais vão se alternando, girando pelo salão.
Além de Rio e São Paulo, Belo Horizonte entraria nesse bailado em breve. E
Fortaleza. E Porto Alegre voltaria…
Paradoxalmente, no nosso disco mais paulista, gravamos Herdeiro
da Pampa Pobre, do Gaúcho da Fronteira. Não é bem o filtro pelo qual a
inteligência gaúcha gosta de se ver, mas sempre me amarrei nos tradicio-
nalistas mais populares, como Gildo de Freitas. Da mesma forma, gosto de
Astor Piazzolla e Athauapa Yupanqui, dois dos melhores shows da minha
vida. Na esquina de onde vejo o movimento, laranjas, poemas e o mês de
abril convivem bem.
Paradoxalmente, somos mais gaúchos fora do RS. No estado de ori-
gem, somos só mais um. Se não te deixar insensível, a distância pode colocar
tudo em perspectiva. Na capa, estou de bombacha. Fiz toda a turnê assim. Um
gaúcho “para exportação”, ainda assim, um gaúcho.
Pelo terceiro ano consecutivo, o ginásio Gigantinho foi o lu-
gar onde tocamos em Porto Alegre. Acho que nenhum artista gaúcho
conseguiu isso. O mais legal foi ter chegado ali passando por todos os
outros degraus. Bares, danceterias, teatros, auditório Araújo Viana.

64
Era comum, na maioria das cidades, tocarmos no maior espaço. Mas só
em Porto Alegre tocamos em todos os espaços.

da janela do avião eu vejo Porto Alegre


vejo o futuro em flash-back
meu pai, minha filha, nossa casa
da janela do avião eu vejo por acaso

Foi por essa época que desenvolvi um terrível defeito: aprendi todas
as piadas de gaúcho a que tive acesso. Basta o estrangeiro contar uma, esperan-
do uma reação mal humorada, eu disparo todas as outras. Infalivelmente, meu
interlocutor fica com cara de criança cujo balão foi estourado. Também pos-
so usar meu arsenal de piadas de gaúcho contra gauchistas. Paradoxalmente.
Quase um fogo amigo. Quase sempre divertido.

65
1991 Várias Variáveis

Humberto Gessinger
voz, baixo & teclado

Augusto Licks
guitarra, violão & teclado

Carlos Maltz
bateria & percussão
1991 Várias Variáveis

O SONHO É POPULAR 1 gessinger


Lado A

HERDEIRO DA PAMPA POBRE 2 gaúcho da fronteira/darde


SALA VIP 3 gessinger
PIANO BAR 4 gessinger
ANDO SÓ 5 gessinger
QUARTOS DE HOTEL 6 gessinger

VÁRIAS VARIÁVEIS 7 gessinger/licks/maltz


SAMPA NO WALKMAN 8 gessinger
MUROS E GRADES 9 gessinger/licks
MUSEU DE CERA 10 gessinger/licks
+ Escrevi Onde
Menos Se Espera, CURTAMETRAGEM 11 gessinger/licks
gravada por DESCENDO A SERRA 12 gessinger
Lado B

Patrícia Marx no NÃO É SEMPRE 13 gessinger


disco Incertezas. NUNCA É SEMPRE 14 gessinger
• 1992 •
O início do ano trouxe Clara. Eu e Adriane a esperávamos desde
1963. Nenhuma mudança radical, ela estava desde sempre nas entrelinhas
do horizonte. Escrevi a letra de Parabólica para ela, num quarto de hotel.
Havia uma antena ao lado da janela e eu, tri a fim de que ela me levasse
para casa. Saudade.

longe, longe, longe, aqui do lado


paradoxo: nada nos separa

Natural que o disco em que menos trabalhamos juntos levasse nossos


nomes e suas muitas consoantes no título. Gessinger, Licks & Maltz foi o lança-
mento desse ano. Nossos parceiros da indústria reclamaram por ser impronun-
ciável, o que nos deu a certeza de que era o nome certo.
Nunca gostei de compor no estúdio. Herança dos tempos de vacas
magras em que os estúdios, em Porto Alegre, eram poucos e, para um estu-
dante sem grana, caros. Entrávamos de costas para sair mais rápido. Sempre
superensaiados. Com o GL&M foi diferente. Escrevi febrilmente, não conseguia
parar. Gravávamos alguma coisa, vinham outras ideias, eu refazia, remontava.
Na época, as gravadoras tinham seus próprios estúdios. Era legal pas-
sar pelas portas de vidro que tinham, estampado, o logotipo do cachorrinho
ouvindo gramofone. Mas os horários eram rígidos e caretas. Comecei a chegar
ao estúdio cada vez mais cedo. Quando o resto do pessoal chegava, eu já estava
acabado. Numa segunda-feira, cheguei tão cedo que tive que esperar abrirem
o prédio. Havia passado o fim de semana inteiro escrevendo e reescrevendo
coisas. Entrei no estúdio junto com o pessoal da limpeza e tive uma visão ines-
quecível quando acendi as luzes: a sala, que sempre víamos limpa e brilhante,
estava coberta de pó de madeira e asas de cupim. Estúdios são os lugares ideais
para eles. Fizeram um banquete no fim de semana. Até hoje essa imagem me
volta em alguns sonhos.
Descobri algo que não sabia, por acordar normalmente muito tarde:
as principais avenidas da Zona Sul do Rio mudavam de sentido nas primeiras

70
horas da manhã. Por pouco não descobri da pior maneira possível. Por sorte,
as únicas consequências foram as buzinas e os palavrões que ouvi. Injusta
fama de indisciplinados têm os cariocas. Não sei em que outra cidade do mun-
do seria possível, por algumas horas, mudar o sentido de quase tudo sem que
o caos se instaurasse.

Percebo que esse é o disco favorito de uma segunda geração de fãs.


Minhas influências do rock progressivo estão mais explícitas aqui e, por incrível
que pareça, encontraram ressonância num pessoal bem mais moço. Estávamos
bem expostos, do título ao desenho do palco, que tinha nossos rostos cobrindo
os amplificadores. Se o cara quiser fazer um lance verdadeiro, não há como
fugir do risco de se tornar muito pessoal. Era pra ser uma afirmação da vida
real. Nome e sobrenome, foto 3x4. Acabou imprimindo um tom heroico ao pro-
jeto. Descambar para egotrip é ruim, mas é bom, mas é ruim, mas é a vida…
O som da época era dominado pelas guitarras. Esse disco, para nos-
sos parâmetros, tem muito teclado. Li numa resenha, um tempo depois, um
cara nos elogiando por termos antecipado a volta dos sintetizadores analógi-
cos. Adoraria que fosse assim, mas, na verdade, eu não estava um par de anos
adiantado. Estava uns vinte anos atrasado.

Em meio a shows por todo o país, voltamos ao Maracanazinho, ago-


ra num show só nosso. Maravilha. No inconsciente de todo gaúcho espreita
uma necessidade de validação por parte do chamado “centro do país”. Somos
um tanto oficialistas, é só ver como cantamos nosso hino. Parecia que séculos
haviam se passado desde o maracanaço de 88. Nesse pouco tempo, havíamos
passado de zebras a favoritos.
Entrei em contato com algo que não imaginava existir: a sombra
do passado, aumentando como se fosse fim de tarde. Observando as longas
carreiras de artistas consagrados, eu imaginava a delícia de ter um grande
repertório pelo qual passear. Desconhecia o efeito colateral, a ocasional falta
de sintonia entre nossa vontade de avançar e o amor conservador dos fãs.
Nunca imaginei que pudessem querer menos do que tínhamos a dar. Feitas as
contas, acho que consegui, ao longo dos anos, equacionar as várias variáveis
de forma legal. Revisitar os clássicos e trazer a novidade.

72
1992 Gessinger, Licks & Maltz

Humberto Gessinger
voz, baixo, violão & teclado

Augusto Licks
guitarra, violão & teclado

Carlos Maltz
bateria & percussão
Meus primeiros anos como <
baixista passei com vários
Rickenbacker. Sunburst,
creme ou cor de madeira
como o que está pendurado
na foto. Com a histeria de
renovação de equipamentos
que rolava na época,
eram difíceis de encontrar.
Estavam fora de linha.
Melhor assim, os que
eu tinha já vinham com
muitas horas de voo,
sabe-se lá em que palcos,
fazendo qual som…

O pêndulo foi para


o outro extremo quando
comecei a tocar com
instrumentos Steinberger.
High tech, com um novo
sistema de afinação que
dispensava a cravelha
e feito de carbono.
Os puristas torciam o nariz,
as árvores que deixavam de
ser cortadas agradeciam.
Inspirado por antigas duplas
caipiras como Tonico
e Tinoco, que tocavam
sempre com instrumentos
iguais, convenci Augusto
a também usá-los.
1992 Gessinger, Licks & Maltz

NINGUÉM = NINGUÉM 1 gessinger


Lado A

?ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FICAR? 2 gessinger


PAMPA NO WALKMAN 3 gessinger
TÚNEL DO TEMPO 4 gessinger
CHUVA DE CONTAINERS 5 gessinger
POSE 6 gessinger

NO INVERNO FICA TARDE + CEDO 7 gessinger


CANIBAL VEGETARIANO DEVORA PLANTA CARNÍVORA 8 gessinger/licks
PARABÓLICA 9 gessinger/licks
A CONQUISTA DO ESPELHO 10 gessinger
Lado B

PROBLEMAS… SEMPRE EXISTIRAM 11 gessinger


A CONQUISTA DO ESPAÇO 12 gessinger
• 1993 •
Voltamos a participar daquele grande festival com bandas nacio-
nais e gringas, no Rio e em São Paulo. O show no Morumbi, novamente, foi
emblemático.
É cíclico, no mundo pop, pintarem algumas ondas mais selvagens.
Era o auge do grunge com suas camisas de flanela xadrez, calças rasgadas,
sangue nas paredes e guitarras Fender Jaguar. Abrimos para a melhor banda
do movimento, Nirvana. A imprensa fez a papagaiada de sempre. Nós fizemos
o show de sempre. A onda era escarrar? Sinto muito, aí vai uma canção que
eu fiz pra minha filha. Com meu violãozinho de cordas de náilon. Pra que se
monta uma banda, senão para noites como esta?

tô fora vodoo, ranço, baixo astral


não vou perder meu tempo brincando de ser mau
não vou viver pra sempre nem morrer a toda hora
feito rasgos pré-fabricados num novo velho blue jeans

Não aderir a um movimento pode ser um sinal de respeito a ele.


Pensassem todos assim e não afundariam, por excesso de peso, tantas
ideias bacanas. Ser datado é legal. Ser ultrapassado também pode ser, pois
não se trata de uma corrida. O carro que tu vias pelo retrovisor te ultra-
passa, tu vês o caroneiro de perfil, depois uma criança te abana pelo vidro
traseiro. Nunca te aconteceu? É bonito. Algumas crianças mostram a lín-
gua, depois sorriem. É bonito. Depois eles param pra tomar um refri, ir ao
banheiro, tu passas pelo carro parado, assim vai… Na verdade, ninguém
ultrapassa ninguém. Isso aqui é um imenso transporte coletivo. Estamos
no mesmo barco e ele ainda flutua.

todo mundo é moderno, todo mundo é eterno


como um relógio antigo
como a Holanda de 74
um símbolo sexual dos anos 60

78
Se a agenda da cena manda requentar a rebeldia, qual a coisa certa a
fazer? O contrário. Raspei meu cabelo. O próximo disco seria o mais leve pos-
sível, com orquestra, gravado ao vivo na sala Cecília Meireles. Este é o Filmes
de Guerra, Canções de Amor. Arranjos e regência de Wagner Tiso, um mestre.
Participação muito especial de Paulo Moura. Dei um tempo no baixo, Carlos
deu um tempo na bateria. O trio ficou com duas guitarras semiacústicas e per-
cussão. Também toquei acordeón.
O show foi lançado em LP, CD, K7 e VHS. Anos depois, em DVD. Boa
sensação estranha de sobreviver aos suportes. Acho que é por isso que não me
fascino por novos formatos, convergência, essa espuma toda. São ferramentas,
instrumentos. O cerne está onde sempre esteve, desde antes das palavras, em
volta de uma fogueira pré-histórica.
O repertório não era muito óbvio, mesmo para os fãs. Os arranjos
eram bem diferentes, cheguei a reescrever algumas letras. Era muito bacana
ver o estranhamento do público se transformando em cumplicidade enquanto
o show avançava. As adaptações que rolam quando dois seres vivos começam
a se relacionar podem ser uma pegada de Deus. Aquele que, se não existisse,
teríamos que criar.

novos horizontes, se não for isso, o que será?


quem constrói a ponte não conhece o lado de lá

No meio do ano nos apresentamos, pela segunda vez, fora do Brasil.


EUA, Europa ou América Latina seria muito linear para uma banda como a
nossa. Para onde o destino nos levou? Lá para o outro lado da esfera: Japão.
Volto ao papel de especialista que conhece o assunto há menos de vinte
minutos. Tudo que eu esperava sentir em Moscou, senti em Nagoya e Iwita, ci-
dades onde fizemos cinco shows. Me senti em casa, no Japão. Apesar de, quando
criança, ter mais medo de japoneses em filmes de guerra do que de índios em
filmes de cowboy (estranhas fobias os estadunidenses exportam via película).

79
Todo país tem seus problemas. Quanto mais avançado, mais pessoais
são esses problemas. O que não os torna problemas menores. Defeito ou virtu-
de, achei a formalidade japonesa muito liberadora. Disciplina não é liberdade?
Aqui nos trópicos, temos o vezo de nos acharmos muito íntimos e chegados.
Infantilmente informais, vivemos nos tocando. Se fosse tão bom, estaríamos no
paraíso. Estamos?

se as cores vão berrando num sol ensurdecedor


fecho os olhos, outro mundo, vou morar no interior

Dia 6 de agosto, aniversário da estupidez em Hiroshima, eu estava


parado numa esquina de Nagoya, sacando o movimento. Encantado com o si-
lêncio, mesmo em ruas movimentadíssimas. A luz dos semáforos era comple-
mentada por gravações de sons suaves que ajudavam deficientes visuais a atra-
vessar a rua em segurança. Olho para o lado e vejo um mendigo. Não pode ser!
Esse cara deveria ser o único mendigo em todo o Japão. Ele começa a me fazer
sinais. Caramba, acho que está me ofendendo. Deve achar que sou americano.
Deve estar se lembrando da bomba! Fiquei chateado e apressei o passo para
chegar ao hotel. Ele me seguia, juntando as pontas do polegar e indicador. Só
no dia seguinte, quando nosso intérprete avisou que era um simples pedido de
moeda, a fumaça da bomba se desfez na minha mente.
Nesses tempos, futebol fazia o maior sucesso no Japão. Na TV, o tem-
po inteiro. Vi dois meninos jogando bola numa quadra sob um viaduto. Um
ficava cobrando lateral para o outro. Não usavam os pés. Arremesso lateral deve
ser um lance emocionante para quem vem da cultura do beisebol.
Voltamos ao Brasil via EUA. Tocamos em Los Angeles e San Diego.
Gravamos imagens para um clip no deserto Mojave. Esses shows internacionais
eram divulgados, principalmente, nas comunidades de brasileiros. Era emocio-
nante entrar em contato com um pessoal que tinha saído mundo afora atrás de
vida digna, sem certeza de que a encontraria. Ajudá-los a matar um pouco da sau-
dade era muito bom. A viagem dentro da viagem era sentir que canções escritas
na solidão escura de um quarto poderiam fazer sentido no outro lado do planeta.

80
Filmes de Guerra,
1993 Canções de Amor

Humberto Gessinger
voz, baixo, guitarra,
acordeón & teclado

Augusto Licks
guitarra, harmônica & violão

Carlos Maltz
bateria & percussão
MAPAS DO ACASO 1 gessinger
ALÉM DOS OUTDOORS 2 gessinger
PRA ENTENDER 3 gessinger
? QUANTO VALE A VIDA ? 4 gessinger
* PARABÓLICA 5 gessinger/licks
* NINGUÉM = NINGUÉM 6 gessinger
* REFRÃO DE BOLERO 7 gessinger
* TODO MUNDO É UMA ILHA 8 gessinger
CRÔNICA 9 gessinger
ÀS VEZES NUNCA 10 gessinger
MUROS E GRADES 11 gessinger/licks
ALÍVIO IMEDIATO 12 gessinger
* PERFEITA SIMETRIA 13 gessinger
ANDO SÓ 14 gessinger
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ 1 e 2 15 gessinger/licks
REALIDADE VIRTUAL 16 gessinger
* ? ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FICAR ? 17 gessinger
PRA SER SINCERO 18 gessinger/licks

+ Musiquei Amor Quente, uma letra de Cazuza,


para uma campanha de prevenção à AIDS.
* Faixas que só entraram
nas versões em vídeo

Filmes de Guerra,
1993 Canções de Amor
• 1994 •
Augustinho saiu da banda. Brigamos sem brigar, cada um foi ficando
no seu canto. A culpa deve ter sido minha. Enquanto ele via a árvore e Carlos via
a floresta, eu deveria ter sido mais maduro para guiar aquela nau.

tenho feito meu caminho, volta e meia fico só


reconheço meus defeitos e o efeito dominó

Não ter tido festas de aniversário a vida inteira não me redime, pois,
mesmo sem apagar as velinhas, a gente envelhece. Deveria aproveitar para
amadurecer. O lado bom é que fizemos, juntos, o que tínhamos que fazer e só o
que deveríamos fazer. O que emitimos continua a soar. Irradiação fóssil? Pode
ser, mas o que é o presente? Existe?

agora que o tempo é relativo


não há tempo perdido, não há tempo a perder
num piscar de olhos, tudo se transforma
tá vendo? já passou…

Ficamos um tempo parados e voltamos na metade do ano. Na gui-


tarra, Ricardo Horn, que fazia parte do grupo que montei para tocar chori-
nho, no colégio.
Trago sempre comigo a lembrança de um show desse ano. Mais
na boca do que na memória: um dente de ouro. Tocávamos na Chapada dos
Guimarães, Mato Grosso. Lugar mágico, show ao ar livre, um mar de gente.
No fim da primeira música, subi no praticável da bateria. Adorava me jogar
de lá, a sensação de aterrissar no exato momento da última nota da canção
é muito boa. Os saltos viraram uma marca dos shows, rendendo, até hoje,
ótimas fotos. Nesse dia, não me dei conta de que havia um tirante de ferro
ligando duas colunas, acima da bateria. No voo, dei, literalmente, de cara
com o ferro. Quando pousei, uns três ou quatro dentes estavam esmigalha-
dos. Cuspi os cacos e, não sei como, consegui levar o show até o fim. Só a
adrenalina do palco explica. Lembro de pedir para reposicionarem uma das
câmeras de TV que cobriam o show, a que estava no lado atingido. Nunca fi-
quei nu na frente de milhares de pessoas, suponho que a sensação não deva
ser pior do que aparecer sem dentes.
No avião, voltando para casa, a dor era terrível. Para piorar a
situação, era domingo e eu havia combinado de participar de um show do
Lulu Santos. Sem chance de passar num dentista antes. Não queria can-
celar, pois já havia rolado uns mal-entendidos entre a gente. Seria bacana
participar do show. Toquei Parabólica, numa versão desproporcionalmen-
te emocionada, pois, cada que vez que passava ar pelos dentes quebrados,
eu via estrelas.

planos de voo
tava tudo em cima, céu de brigadeiro sobre nós
pane, pânico
perdemos altura, puxaram o tapete voador

Pela segunda vez, toquei num comício. Pela candidatura de Olívio


Dutra ao governo do RS. Eu, e certamente só eu, acho ele parecido com
Brizola. Mas o clima era bem mais racional, o que é bom, mas é ruim, mas
é melhor assim…

87
• 1995 •
Nunca estive tão perto do mainstream quanto nesse ano. Me faltou
saco. Ou culhões. Apesar de anatomicamente próximos, são coisas opostas.
Algo me faltou para que esse ano desse mais frutos.
Um clima estranho no ar culminou num acidente de carro, a cami-
nho de um show no Espírito Santo. De repente, os pneus seguiram em frente
sem girar. Os faróis apontaram para o lado direito, para trás, para o lado es-
querdo, para frente, para o lado direito… Os dois fachos de luz já não eram
paralelos ao chão. O asfalto ficou mais perto da cabeça do que dos pés. Dois
giros, duas voltas. Dois pra lá e dois pra cá. No fim da dança, silêncio total,
total escuridão.
Quem viu a foto do carro depois do acidente não acreditou que al-
guém tivesse sobrevivido. Algum projetista da BMW, que nunca conhecerei,
salvou minha vida. Só machuquei a mão, fiquei sem tocar um mês. Não faltou
quem dissesse que era algo sintomático. Nessas horas, o que menos precisa-
mos é ouvir papos esotéricos tecendo mitos entre causa e efeito.

no fundo tudo é ritmo


a dança foge do salão
e invade a autoestrada
do átomo ao caminhão

O show para o qual eu estava indo já tinha músicas do Simples de


Coração, disco que gravamos em Los Angeles depois que me restabeleci do
acidente. O projeto teve as participações de Fernando Deluqui (guitarra) e Pau-
lo Casarin (teclados). Nossa gravadora fez tudo certo. Tava tudo certo. Talvez
certo demais. Demorou para que eu entendesse o disco. Foram os fãs que me
deram a chave pra entrar na onda dele. Por algum tempo, suspeitei que ele ti-
vesse sido superproduzido. Simples de coração teria virado simples decoração.
Bobagem. O disco tá certo, é como deveria ser.
O que eu acho mais legal, ouvindo agora, é um erro que cometi: ten-
tar escrever certo. O culpado é você. Quer dizer, o pronome “você”. Eu sempre

88
começo a frase com “você” e sigo errando a concordância. Na hora de cantar
“consigo”, não consigo. Canto “contigo”.
Até aí, tudo bem. Rima com alguns pequenos pecados harmôni-
cos que gosto de cometer. O que mais me intriga é que, na vida real, na
vida falada, nunca uso “você”. Só falo “tu”. Quando uso “você”, soa como
palavrões falados em filmes brasileiros dos anos 70. Naturalidade zero.
Quando canto, ocorre o inverso. Cantando “tu”, me sinto como a estátua
do Laçador: olhar no horizonte, insensível aos aviões que pousam e deco-
lam no aeroporto ali ao lado.
Será porque “tu” é muito duro? Será porque “você” rima com qual-
quer verbo que acabe em “er”? Será só macaquice, de tanto ouvir os outros?
Hoje, quando ouço o disco, sinto uma boa sensação estranha.
Nem todo o mundo pode ser gilchicaetano, juntar forma e conteúdo,
correção política e gramatical. Nem todo colombiano escreve 123 anos
de solidão. Se psicanálise fosse uma possibilidade, falaria sobre isso
n’alguma sessão.

às vezes nunca sei se “às vezes” leva crase


às vezes nunca sei em que ponto acaba a frase
“ao encontro de”, “de encontro a”
o bom português não vai nos salvar
1995 Simples de Coração

Humberto Gessinger
voz, baixo & violão
Carlos Maltz
bateria & percussão
Ricardo Horn
guitarra, violão, viola & bandolim
Fernando Deluqui
guitarra
Paulo Casarin
teclado & acordeón
1995 Simples de Coração

HORA DO MERGULHO 1 gessinger


Lado A

A PERIGO 2 gessinger
SIMPLES DE CORAÇÃO 3 gessinger
LANCE DE DADOS 4 gessinger
A PROMESSA 5 gessinger/casarin
POR ACASO 6 gessinger

ILEX PARAGUARIENSIS 7 gessinger


O CASTELO DOS DESTINOS CRUZADOS 8 maltz/horn/lúcio
VÍCIOS DE LINGUAGEM 9 gessinger
Lado B

ALGO POR VOCÊ 10 gessinger/deluqui


LADO A LADO 11 gessinger/casarin
• 1996 •
O pêndulo, que havia viajado a um dos extremos com o quinteto
beirando o mainstream, dispara, mola encolhida, para o outro lado. Com Lu-
ciano Granja (guitarra) e Adal Fonseca (bateria), gravei, no Rio de Janeiro, o
Humberto Gessinger Trio. Mixei em Nova Iorque com um técnico de som que,
vez por outra, ficava melancólico e repetia uma história triste: ele havia chama-
do o elevador para John Lennon sair do estúdio minutos antes da estupidez.

John Lennon levou um tiro à queima-roupa
o pop não poupa ninguém

Mais do que uma mudança no som, o HG3 era fruto da vontade de


circular por outros ambientes, recomeçar. Nem pensava em gravar. Em prin-
cípio, ficaríamos só na estrada. Foi legal ter virado disco. O lançamento foi no
Teatro Ipanema, no Rio, local significativo por remeter a grandes temporadas
que fizemos ali em 1986 e 1987.
O disco tem músicas das quais gosto muito e pareço ser o único (Bola
da Vez, Irradiação Fóssil), músicas que não precisam explicação (Vida Real, O
Preço, A Onda), músicas que parecem ter dado voz a sentimentos de quem é fã
de fé (Freud Flintstone, De Fé) e uma música dos primeiros meses de carreira
(Causa Mortis).
Hoje, vendo daqui pra lá, HG3 é mais um disco dos Engenheiros do
Hawaii. Mais continuidade do que ruptura. Como alfinetavam os críticos, mu-
dava para não mudar.

Deixei os Steinberger em casa e gravei quase todo o disco com um


baixo Yamaha de seis cordas. Modelo que, teoricamente, não tinha nada a ver
comigo. São desenhados para jazzistas virtuoses. Inventei um encordoamento
estranho para ele. Usava as quatro cordas de um baixo normal e acrescentava
duas cordas de guitarra.

94
Sempre desconfiei dos atalhos. Não gosto de seguir literalmente carti-
lhas. As indústrias que crescem na periferia da produção artística têm os mesmos
vícios de qualquer indústria. Vivem criando seus presets. Camisas pretas e gui-
tarras pontudas para o heavy metal. Meninas tocando baixo para os alternativos.
Guitarras semiacústicas e terninhos para os retrôs. Bonés dos Yankees e Adidas
pros rappers. Se vacilar, até o tipo de droga, ou a não-utilização de drogas, já
vem no cardápio do estilo. Quando eu acabar de escrever essa frase, os modelos
podem ter mudado, mas a existência de um modelo certamente persistirá.

não sermos literais às vezes faz nossa beleza

Esses atalhos seriam bons se chegar mais rápido fosse o objetivo. Há


objetivo? Por que não uma bailarina de coturno? Alguém vibrando em outras
frequências, um canibal vegetariano devorando planta carnívora, por que não?
Sair desses escaninhos faz a beleza de um duo como White Stripes. Até pinta-
rem 123 mil réplicas. Turistas que afundarão o barco por excesso de peso.

a vida imita o vídeo


garotos inventam um novo inglês

Uma coletânea de videoclips dos Engenheiros do Hawaii foi lançada


nesse ano. Não tenho a menor ideia do que representam, se representam algo.
No início, eram feitos por uma grande rede de TV, para passar no seu programa
de domingo. Depois, viraram simples peças promocionais. Não sei se deixaram
de ser, se agora são obras de arte em si. Nunca vi muito nexo no formato. Eu
paro de zapear, na hora, para ver qualquer músico tocar ao vivo. Mas colar ou-
tras imagens numa música, acho que só a empobrece.
Convergência? Divirjo. Obra de arte total me parece uma contradição.
Me interessa mais o que é parcial. Não quero ser uma colcha de retalhos. Quero
ser só um retalho na colcha. A soma pode ser menor do que as partes. Não se
trata de empilhar sentidos (Cinco? Bingo!). Se a pomba desenhada por Picasso
voasse, seria um fracasso.

95
1996 Humberto Gessinger Trio

Humberto Gessinger
voz & baixo

Luciano Granja
guitarra & violão

Adal Fonseca
bateria & percussão
Há palcos especiais espalhados pelas <
cidades por onde passamos.
Em São Paulo, o Pallace, onde gravamos
dois discos e que já teve tantos nomes
que nem sei como se chama hoje.
A Concha do Teatro Castro Alves em
Salvador. Teatro Guaíra em Curitiba.
Auditório Araujo Vianna em Porto Alegre.
Palácio da Artes ou qualquer lugar
em Belo Horizonte…

Nesta foto, eu e Clara estamos no


Teatro Ipanema. Além do Gessinger Trio,
Longe Demais das Capitais e
A Revolta dos Dândis foram lançados
neste pequeno teatro. Lembro com
carinho do som do público aumentando
enquanto subíamos as escadas que
levavam ao palco, da parede de tijolos,
do ar-condicionado no máximo,
do Libertango de Piazzolla que tocava
antes dos shows, da eterna dúvida
sobre meu pequeno amplificador,
da peça Artaud que dividia o teatro
com a gente e tinha uma camiseta
bacana, do cheiro do mar
depois dos shows…

1996 Humberto Gessinger Trio

IRRADIAÇÃO FÓSSIL 1 gessinger


SEM VOCÊ (!É FODA!) 2 gessinger
A ONDA 3 gessinger
O PREÇO 4 gessinger
FREUD FLINTSTONE 5 gessinger
VIDA REAL 6 gessinger
CAUSA MORTIS 7 gessinger
?PRA QUÊ? 8 gessinger/granja/adal
DE FÉ 9 gessinger
BOLA DA VEZ 10 gessinger
ELA SABE 11 gessinger/granja
A FERRO E FOGO 12 gessinger/granja
• 1997 •
Com a saída do Carlos dos Engenheiros do Hawaii, mantive o pes-
soal do Trio. Com adição de Lúcio Dorfman, nos teclados, gravamos Minuano.
O disco tem várias referências ao Sul: a capa, o próprio nome, a participação
de Kleiton Ramil no violino de A Montanha. Algumas letras e melodias são
bem sulinas. Sob tudo isso, a vontade, que se concretizaria, de voltar a morar
em Porto Alegre.
Simétrica à ida, minha volta não teve nenhum grande motivo. Nem
pessoal, nem profissional. Como um quadro pontilhista do qual estou mui-
to perto, lembro só de motivos irrelevantes. Caminhar por Porto Alegre, por
exemplo. Ouvir os jogos do Grêmio (sim, leitor, houve um breve período da
história em que o homem viveu sem internet).

outono em Porto Alegre


sou o dono dos meus passos
sobre folhas mortas
o mundo fica para outro dia
andar por aí era tudo que eu queria

Clara, desde que começou a falar, tinha um sotaque fascinan-


te. Misturava Porto Alegre, Rio e Fortaleza, influência de sua babá.
Uma fala muito musical e afetuosa, era o único motivo que, talvez, me
fizesse permanecer. Por outro lado, em Porto Alegre ela ficaria mais
perto da família.
Foi fundamental para mim conviver com pessoas mais velhas. Mi-
nha mãe era a caçula de uma família de dez irmãos. Só ali, tive vários avôs e
avós. Acho muito empobrecedor quando pessoas só se relacionam num gru-
po de mesma idade. Adolescentes com adolescentes, velhos com velhos, gre-
mistas com gremistas, metaleiros com metaleiros, baixistas com baixistas,
ateus com ateus, goleiros com goleiros, fascistas de direita com fascistas de
esquerda. Há quem diga que um prato de comida saudável deve ser colorido
(desde que não seja composto só por M&Ms).

100
Quando eu deveria ficar mais no eixo Rio-São Paulo para gravar e
divulgar o disco, voltei para o Sul. Meu apartamento, na Lagoa, só tinha cama,
TV e telefone. A família e as tralhas todas já estavam em Porto Alegre.

a bandeira tricolor na sacada em frente ao mar


tudo aqui parece estar fora do lugar
no pampa o vento violino minuano
na fria janela de um apartamento

O estúdio onde eu ensaiava ficava em Botafogo, eu ia para casa a pé.


Gosto muito de caminhar. As baterias dos meus carros sempre morrem antes
que eles percam o cheiro de carro novo. Uma dessas caminhadas eu fiz no fim
da tarde de um dia especial. No Maracanã, Flamengo e Grêmio disputariam
o título da Copa do Brasil. Passavam ônibus cheios de flamenguistas. Os que
me reconheciam mandavam recados pouco amigáveis, extensivos a todos os
habitantes do RS.

101
Assisti ao jogo sozinho, no apartamento escuro, só iluminado
pela TV. A cidade, parada. Excepcionalmente silenciosa. Abrimos o mar-
cador, Grêmio 1 a 0. Uma gritaria de vascaínos vinda dos prédios vizinhos
dialogou com meus próprios gritos. Segue o jogo, 1 a 1. Euforia na noite
carioca, só superada pelo carnaval de vozes que explodiu quando Romário
virou o jogo. Flamengo 2 a 1. Faltando alguns minutos para terminar a
partida, desliguei a TV. Sempre acho que, se eu não estiver assistindo ao
jogo, o tempo passará mais lentamente. Mais tempo de jogo aumentaria
as chances de acontecer o empate que daria o título ao Grêmio. Uma visão
otimista da covardia da avestruz.
Tinha dúvida de que o gol aconteceria, mas tinha certeza de que,
se acontecesse, a vizinhança vascaína me avisaria. Passava o tempo e eu
não olhava para o relógio. A velha esperança de que, se não olhasse, o tem-
po passaria mais devagar. Silêncio total. Quantos minutos teriam passado?
Mais silêncio, tempo demais. Por que ninguém gritava, nem vascaínos se-
cadores nem flamenguistas campeões? Não resisto, ligo a TV. Já não esta-
vam transmitindo o jogo. Toca o telefone, minha irmã, chorando, desfaz o
suspense: éramos campeões. Havia mais de quinze minutos! Os vascaínos

102
devem ter ido dormir antes do fim do jogo. Não me avisaram. Sofri quinze
minutos desnecessários, já campeão.

Futebol é uma bobagem, né? Vendo a vida como um maravilhoso


quadro pontilhista, cada ponto em si é uma bobagem. Os pontos se misturam e
se transformam. Lá vai a aranha tecendo sua inescapável tapeçaria. Minha irmã
certamente não chorava só por um bando de caras com camisas iguais corren-
do atrás de uma bola. Projetamos muitas coisas sobre muitas outras coisas. Se
misturam e se transformam.
Um dos grenais de que me lembro com mais carinho foi o de 1977.
Ganhamos por 1 a 0, quebrando uma série de 123 anos correndo atrás. Meu
pai estava internado num hospital perto do Estádio Olímpico. No fim do jogo,
assisti, pela janela do quarto, à caravana das bandeiras tricolores. Carros e tor-
cedores silenciosos por respeito. Sensação boa de pertencimento. Consolo de
não estar sozinho. A vida seria uma bobagem sem essas bobagens.

103
1997 Minuano

Humberto Gessinger
voz & baixo

Luciano Granja
guitarra & violão

Lúcio Dorfman
teclado

Adal Fonseca
bateria & percussão
1997 Minuano

BANCO 1 gessinger
A MONTANHA 2 gessinger
FAZ PARTE 3 gessinger
SEM PROBLEMA 4 gessinger
3 MINUTOS 5 gessinger
NUVEM 6 gessinger
NOVE ZERO CINCO UM 7 gessinger
DESERTO FREEZER 8 gessinger
ALUCINAÇÃO 9 belchior
A ILHA NÃO SE CURVA 10 gessinger/granja/adal
HUMANO DEMAIS 11 gessinger/granja/adal
OUTROS TEMPOS 12 gessinger
• 1998 •
Ano sem disco, mas com muitos shows. Tocamos, pela primeira vez,
na Argentina e no Uruguai. Nos mapas, esses países parecem estar mais próxi-
mos de nós do que Japão e Rússia. Na vida real, vieram depois.
123 mil anjos sempre me guardaram e guiaram. Mundo afora, noite
adentro. Reto por linhas tortas, como nenhum GPS faria. 123 mil anjos. Alguns
me fazendo seguir viagem, uma me dizendo que eu era diferente do que parecia
ser, outra simplesmente nascendo.
Um desses anjos é fumante e tem barba sempre mal feita. O último
existencialista, Alexandre Master, nunca leu escritores franceses. Trabalha co-
migo desde sempre. Deve ter sido técnico de som da orquestra familiar do meu
avô, lá no interior do RS, na primeira metade do século passado. Deve ter sido
roadie das freiras que cantaram ave-maria meia hora antes de eu nascer. Certo
é que gravou a primeira demo da banda. 123 vezes nos mandamos, reciproca-
mente, pastar. Passa um tempo, lá está ele de volta na mesa de som.
Em Belém, na manhã seguinte a um show, acordei com alguém
gritando “Arara! Arara! Fala comigo, arara!”. Era Alexandre, agarrado às
grades de um viveiro de pássaros do hotel, querendo dialogar com o bicho.
Tá fora, tá fora!
No longo voo noturno de volta a Porto Alegre, eu achava que era o
único acordado, quando ouvi uma voz beirando o choro. Olho para o fim do
corredor e vejo o que parecia ser Jesus Menino no colo de Nossa Senhora. Era
Master, sentado no chão, com a cabeça sobre os joelhos de uma aeromoça.
Desolado, ele repetia: “Meu pai acha que o que faço não é trabalho…” A aero-
moça só parava de fazer cafuné nele para secar algumas lágrimas. Surreal. Tá
dentro, tá dentro!
A alcunha “Master” eu coloquei porque ele sabe tudo. Além disso, o
nome dele é hilário. Alexandre Hilário. Não dá pra levar a sério.

um anjo caído procura alguém pra guardar


e dança um tango sem par e sem parar

108
Um anjo me conectou à rede mundial de computadores. Melissa me
conta que era fã desde pequena. Quando a conheci, já era web designer e fo-
tógrafa. Hoje é arquiteta, professora. Traduziu Pouca Vogal para traços, cores
e telas de computadores. Putz, as crianças vão crescendo!
De 1998 a 2003, Melissa organizou, no site www.engenheirosdo-
hawaii.com.br, chats mensais. Sempre no dia 11, para lembrar a data do pri-
meiro show. Às vezes eu estava em casa, às vezes, na estrada. Ela, sempre em
Florianópolis. Outros anjos, espalhados pelo mundo, se encontravam na rede.
As perguntas variavam de “Que tipo de cordas você usa?” a “Qual é o sentido
da vida?”. Rolavam, também, as inevitáveis “Quem foi Ana?” e “O que quer
dizer trottoir?”. Eu respondia todas com a mesma falta de ciência. Cordel Kill
Bill. Sem pensar, com a rapidez que meus dedos nas teclas permitissem. Papo
de boteco virtual.

109
>>> 11.08.1998 – Tocar aos 60 anos deve ser o máximo. Acho que a vida deve
começar a ficar boa depois dos 58. Tomara que eu chegue lá. 11.10.1998 – Ouço vozes, tenho
pavor de cobras e às vezes tenho medo de começar a flutuar e não conseguir descer. Fico atento às
árvores e aos fios elétricos para me agarrar caso aconteça. 11.11.1998 – A pirataria de bootlegs é
algo necessário, eu diria. 11.12.1998 – Acho que sou o último fã de rock progressivo do mundo.
11.02.1999 – Uma possível medida de felicidade seria o número de relações não capitalistas que
um cara tem… tem gente que até com a mãe tem uma relação de custo/benefício. 11.04.1999
– Hoje, acho que a obra de arte não pode ser só o disco… tem que ser a vida, 24 horas por dia.
11.06.1999 – Cada dia é mais percentagem da minha vida. E cada vez me sinto menos profis-
sional. 11.07.1999 – Acho que sou meio de lua e muito exigente em relação à banda. Não passo
tanto tempo fora de casa para fazer a coisa mal feita. Quero a perfeição sabendo que é impossível.
11.08.1999 – Minha única dúvida é se eu deveria ter continuado depois de gravar o Longe Demais
das Capitais. 11.09.1999 – O medo do medo é uma merda… o medo de ser frágil, sincero... medo
de depender. E depender de alguém é o limite máximo do amor. 11.10.1999 – Ser livre cansa mais,
né? Mas não adianta, não dá pra escolher. 11.01.2000 – Política tá me dando nos nervos… nin-
guém sonha mais… parece que todo o mundo descobriu que vai morrer amanhã… não há mais a
noção de transcendência, inclusive na arte. 11.02.2000 – Não sei me expressar bem, tenho aquela
ética silenciosa do cowboy numa cidade estranha… não faço juras de amor. 11.04.2000 – A ten-
tativa de autoconhecimento é o que me faz cair na estrada, a busca de um espelho que não esteja
embaçado pela minha própria respiração. 11.05.2000 – Jogo horas de tênis tentando compreender
algumas canções que eu não alcancei por outras vias… vou dormir muito cansado e não tenho so-
nhado. 24.06.2000 – Destino? Essa é a questão, tava escrito ou nós é que escrevemos? Acho que
nós escrevemos com a caneta que nos foi dada e suas limitações… de fato, é lápis e não caneta…
qualquer coisa, o tempo apaga. 11.08.2000 – Não há mais juventude… todos são jovens: Clara e
a vó dela têm a mesma idade, são os tempos pós-modernos… eu sou o último velho do mundo.
11.10.2000 – O sentido da vida é aprender a respirar certo. 24.12.2000 – Vamos descobrir que o
que enxergamos são as sombras do fogo na caverna. 11.01.2001 – Dá vontade de ser menor, invi-
sível, algumas vezes… se transformar em pura passagem de tempo… estranhar o tamanho e a voz
da filha ao telefone. 11.02.2001 – Não sei falar e agradecer entre as músicas, muita gente me acha
frio por isso. Sou do tempo em que entreter, mais do que objetivo, era consequência da tentativa de
comunicar. Somos todos peixes, cada um num aquário diferente. Cantar é tentar trazer todos para
o mesmo mar, eu acho. 13.04.2001 – De cada 10 palavras, sete se perdem. 11.06.2001 – Sobre

>>>
>>>
rádio e mídia, não sei, não me interessa, nunca me interessou tão pouco. 27.07.2001 – Não me
arrependo de nada pois o erro faz parte… isso é importante para entender os EngHaw. 30.07.2001
– Eu dissolvo a banda quase toda segunda-feira. 11.09.2001 – Concreto e Asfalto, para mim, é uma
oração. Gostaria de cantar para Jesus Cristo… ele ia achar uma merda e eu ia entender. 11.11.2001
– O disco novo tá superbom, mas é diferente de tudo que tenho ouvido. Seria mais fácil fazer parte
de alguma bruxaria do showbizz… é meio solitário aqui. 11.12.2001 – Este ano foi maravilhoso…
gravamos dois discos, renovei contrato, participei do disco do Carlos, encontrei uma galera nova
e, principalmente, reencontrei minha fé na produção musical. 11.02.2002 – O tempo fortalece…
o que não mata, engorda. A juvenilização é uma das armadilhas deste último capitalismo. Sigo
tecendo minhas teias, não são para prender ninguém… só pra não pisar no chão. 11.03.2002 – Os
discos novos são como refil… sabe como é, já tens a caneta, não joga fora, só compra a carga…
ecológico. 11.05.2002 – Gostaria de continuar minha guerrilha emocional… tenho muito orgulho
do meu artesanato. 11.06.2002 – O show é transe, não vejo nada direito. Não gosto de falar entre
as músicas. Santana toca horas sem dizer nada, Miles tocava de costas… mas no Brasil pós-axé
tem gente que acha que é estrelismo. 11.07.2002 – Ainda não fiz minha música, nem meu disco…
talvez nunca faça, talvez eu nem seja um artista… o artista que preciso ser. 11.09.2002 – Há,
no fundo de tudo, uma luta entre as luzes e o obscurantismo. 30.09.2002 – Não quero virar uma
indústria. Sou artesanal. 16.12.2002 – Felicidade é como preparo físico: dá pra melhorar ou piorar
um pouco, mas sempre há limites… não sou hedonista, as coisas que mais me deixam feliz são
corriqueiras e sem importância… uma rajada de vento, por exemplo. 11.02.2003 – Inconsciente
coletivo, sei lá… há quem ache que nada é fortuito… não vou a tanto. Na verdade, o universo da
música popular ocidental é, tecnicamente, bem limitado. 10.04.2003 – Cada vez tenho menos inte-
resse em falar… comecei a pensar na divulgação do disco, é um calvário. 17.07.2003 – A banda é
mais do que uns caras tocando. É difícil saber o que é… mas dá pra sentir. 11.08.2003 – Na escola
eu fazia muito avião de papel. Os raros que voavam bem me davam a mesma sensação que a
música Dom Quixote dá. 11.11.2003 – Cada disco tem sua vibração, seu momento. Eles não estão
competindo… estão se complementando. Não dá pra escolher um. 04.11.2004 – Sempre gostei
de ler, mas as influências nem sempre se manifestam de forma linear. Geralmente é difícil saber o
que gerou o quê. 16.03.2005 – Semana passada, num show, tocando O Papa É Pop, troquei a frase
“uma palavra na tua camiseta” por “Che Guevara na tua camiseta”. Putz, ficou muito melhor. Agora
ficou pronta… 15 anos depois de gravar. 17.03.2005 – O mundo anda estranho… melhor aprender
a lidar com a velocidade. Tecnologia não é boa, nem má. Depende do uso. <<<
• 1999 •
Ano de mudança de gravadora. A antiga lançou a lata Infinita High-
way, com dez CDs remasterizados. Pela nova, lançamos !Tchau Radar!. Tecni-
camente, talvez seja o disco com melhor som, todo analógico. Gosto muito do
título, é meu preferido, ao lado de Surfando Karmas & DNA. A capa revela que
eu não tive nenhuma ideia para capa ou, visto pelo lado positivo, a vontade de
deixar as músicas livres de um conceito norteador. Afinal, era !Tchau Radar!.
Foi gravado no Rio e mixado em Los Angeles. Arranjos de cordas
bacanas feitos por Jaques Morelenbaum e Eduardo Souto Neto. Nos tempos
pós-iPod é, ao lado do Dançando no Campo Minado, o disco que mais ouço.
Dado insignificante, pois raramente ouço meus discos. É como filmar o parto
do próprio filho, assitir a um show pelo display da filmadora de um telefone ce-
lular. Substituir a vida pela representação da vida é legal, mas tem sua medida.
As músicas estão todas vivas, o disco é uma foto de como elas foram um dia.
Fechamos e abrimos o século tocando no réveillon da Avenida
Paulista. As pessoas geralmente acham que esses grandes eventos e festivais
de verão são o melhor ambiente para se tocar. Não é bem assim. Não que
sejam ruins, mas, de onde olho, são mais um passeio turístico do que uma
viagem coletiva.

os cachorros da vizinhança vão latir sob fogos de artifício


pensarão que é o fim, mas será só o início
que venha em paz o ano que vem
que venha em paz o que o futuro trouxer

Posso estar falando uma grande bobagem. Mas é uma bobagem


que tenho direito de falar, pois toquei em todos os maiores festivais da mi-
nha época no meu país. Também toquei em um bar minúsculo em que o
roadie passou o show inteiro segurando um “T” na tomada que alimentava
todo nosso equipamento. A diferença é bem menor do que parece. A diferen-
ça está em tocar sozinho ou tocar para alguém. Quantos são, e quem é esse
alguém, muda quase nada.

112
Falta de educação desmitificar coisas tão legais? É só minha opinião,
e ela não quer hegemonia. Então, viva os festivais! Você não pode perder! Todo
o mundo vai estar lá! Quem não for é mané! Quem não for é diferente, e to-
dos temos que ser diferentes da mesma forma, na mesma hora, pois somos a
juventude, um exército movido a um refrigerante preto que é completamente
diferente de outro refrigerante preto que tem o mesmo sabor.
Outra coisa que “não é bem assim”, ao menos para mim, é o ato de
compor. Nem sempre é linear como as pessoas imaginam. É sempre autobio-
gráfico, mas a biografia pode ser escrita num código indecifrável até pra quem
escreve. Pintam músicas alegres quando a gente está triste. O contrário disso
também pinta. Se escrevêssemos só para nos revelarmos, seria mais lógico um
boletim semanal com gráficos. Coloridos livros de geografia sentimental. Mui-
tas vezes a gente escreve em busca de balanço. Um balanço dos quadris ou um
balanço de tudo que passou. Geralmente é um balanço de equilíbrio.

Para fechar o tema “não é bem assim”, um pequeno comentário sobre


as influências. A pergunta que acho mais chata, nas entrevistas, sempre é fei-
ta com a melhor das boas intenções: “O que estás ouvindo?”. Que diabos isso
quer dizer? Querem saber de fato o que está tocando no meu aparelho? Querem
saber quem eu acho legal? Querem saber quem é que eu quero que as pessoas
pensem que eu acho legal? Querem saber o trabalho de quem eu gostaria de
imitar descaradamente? Não é bem assim. Como o caráter autobiográfico, a
influência não é linear. Ela é processada. A gente ouve um tango e escreve um
rock pesado. A gente lê um poema e faz música instrumental. Leonard Cohen te
leva a um frevo, e um samba da Mangueira te traz um réquiem.
Um amigo músico sempre me dizia que as canções dele uniam Bob
Dylan e Van Halen. Eu brincava: espero que não seja a guitarra do Dylan
e as letras do Van Halen. Como naquela história do gaúcho que se dizia “O
Centauro dos Pampas”, meio homem, meio cavalo. A metade de cima seria
homem ou cavalo?

113
1999 ¡Tchau Radar!

Humberto Gessinger
voz & baixo

Luciano Granja
guitarra

Lúcio Dorfman
teclado

Adal Fonseca
bateria
< Depois das fases Rickenbacker e Steinberger,
para onde iria o pêndulo? Qual a terceira
margem? Nem retrô, nem high tech.
Fiquei menos rígido na escolha dos
instrumentos. Toquei com vários baixos
de várias marcas. Zeta, Warwick, Yamaha,
Tobias, Rivoli… Guiando a escolha, uma
mistura: som, visual, história, casca grossa
para aguentar os abusos da estrada e,
principalmente, astral.

Os Discos de Ouro: Longe Demais


das Capitais (1986), Ouça o Que Eu Digo:
Não Ouça Ninguém (1988), Alívio Imediato
(1989), O Papa É Pop (1990, Ouro e Platina),
Várias Variáveis (1991), Simples de Coração
(1995), 10.000 Destinos (2000), Acústico MTV
(disco e DVD de Ouro). Novos Horizontes
(2007) não está na parede mas também
é DVD de Ouro.

O que os números não contam: A Revolta


dos Dândis vendeu mais do que vários desses
discos. Até hoje vende, mas o critério são as
vendas no primeiro ano. Gessinger Trio teve
uma tiragem muito pequena, mas é um disco
fundamental na trajetória. Hoje é vendido a
preços absurdos pela www…

1999 ¡Tchau Radar!

EU QUE NÃO AMO VOCÊ 1 gessinger


NEGRO AMOR 2 dylan/vs: veloso/cavalcanti
CONCRETO E ASFALTO 3 gessinger
ATÉ MAIS 4 gessinger
NADA FÁCIL 5 gessinger/dorfman/granja/adal
O OLHO DO FURACÃO 6 gessinger
SEGUIR VIAGEM 7 gessinger
10.000 DESTINOS 8 gessinger/dorfman
NA REAL 9 gessinger
3x4 10 gessinger
MELHOR ASSIM 11 gessinger/granja
CRUZADA 12 moura/borges

+ Participei do projeto Tons da Natureza gravando Planeta Água, de Guilherme Arantes.


No CD/DVD Tributo a Cazuza gravei Subproduto do Rock.
No projeto Tributo a Renato Russo, gravei Índios.
• 2000 •
deve ser o que chamam túnel do tempo
ano 2000 era futuro há pouco tempo atrás

Mantivemos, neste ano, o padrão de um disco ao vivo entre cada


três discos de estúdio. O CD/DVD 10.000 Destinos teve as participações
de Paulo Ricardo e Borghetinho. BRock e o melhor da música instrumen-
tal gaúcha engrossando nosso caldo. Gravamos o show em São Paulo e
algumas músicas inéditas, no Rio. Mixamos em Buenos Aires. E segui-
mos na estrada...

há mais de mil destinos


em cada esquina
outras vidas esperando
em cada esquina

118
• 2001 •
Em janeiro participamos da terceira edição do Rock in Rio. Desta
vez, durante o show, não fiquei imaginando se haveria alguma banda em al-
guma escola de arquitetura fazendo seu primeiro e último show. O mundo já
era bem outro.
lembranças do futuro
que a gente imaginava

Tenho um defeito que não consigo ver como virtude, nem de perto
nem de longe: uma enorme dificuldade de reconhecer rostos, guardar fisiono-
mias. Fui piorando com o tempo. Estou sempre encontrando pessoas que di-
zem que fomos colegas em escolas onde nunca estudei, vizinhos em ruas onde
nunca morei. Sem querer, fui me acostumando a ficar à meia-distância. Muitas
vezes pode passar uma impressão antipática.
No dia do show no Rock in Rio, encontrei, no elevador do hotel, um
cara que julguei ser o presidente da nossa antiga gravadora. Perguntei como
iam as coisas e ele não respondeu. Ficou um clima péssimo, ele olhando para o
chão e eu olhando para a luzinha vermelha que demorou uma eternidade para
pular do “11” ao “T”. O tempo amplificado pelo silêncio do elevador. Imaginei
que ele estivesse indignado com minha ida para outra gravadora. Quando, fi-
nalmente, a porta se abriu, várias pessoas vieram falar em inglês com o cara que
estava ao meu lado no elevador. Um menino mostrava uma guitarra pedindo
autógrafo. Putz, só aí caiu a ficha: era o Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppe-
lin! Imagem superpresente na minha adolescência. Nem é muito parecido com
o tal presidente da gravadora. E eu, puxando conversa em português! Imagino
quantos autógrafos com o nome errado eu devo ter dado na minha vida.
Também acontece o contrário disso. Em algumas cidades rolam uns
HG covers. Na gravação de um programa, em São Paulo, alguém da produção
me disse: “Espero que o camarim esteja melhor, do teu agrado, agora”. “Como
assim, melhor, do meu agrado?”, perguntei. Um cara tinha estado ali, antes, se
fazendo passar por mim. Meu sósia havia armado o maior barraco reclamando
da disposição dos móveis no camarim.

119
No mundo virtual, essas malas se multiplicam, pela facilidade do ano-
nimato. Não estou no Orkut nem no Facebook, mas há um monte de “eus” lá.
Quando eu acabar de escrever esta frase, os pontos de encontro digitais serão
outros, mas a vontade de ser outra pessoa na escuridão do anonimato persistirá.

os homens são o que são e são todos iguais


o difícil é saber quem é clone de quem

Os discos ao vivo sempre fecharam ciclos. Os guris que me acompa-


nhavam resolveram montar uma banda própria. Também é um padrão que se
repete e deixa uma sensação bacana. Semente, flor e fruto. Apesar das várias mu-
danças de formação, sempre penso como banda, gravando e caindo na estrada
com o mesmo pessoal. Procuro escrever algumas canções em parceria com quem
me acompanha. Muitos estrearam como compositores comigo. Claro que não faz
sentido fingir que estamos em pé de igualdade, que saímos todos juntos do bar
da faculdade. A diferença de idade, a cada troca de pele, aumenta, mas gosto de
pensar como banda. Uma unidade autônoma, cujos defeitos podem ser virtudes.

a serpente troca de pele, a gente não esquece


o avião reabastece sem deixar de voar

Já havia procurado companheiros entre velhos amigos e entre novos


gaúchos. Desta vez, tentei algo novo. Deixei o destino trazer um pessoal que
eu só conhecia de ouvir falar. Todos cariocas, com ótimas recomendações. No
primeiro ensaio, enquanto nos cumprimentávamos, eu pensava: qual deles será
o baterista? E o baixista?
Sim, baixista, pois decidi voltar a tocar guitarra. Guiar uma banda no
contrabaixo oferece seus riscos. A sutileza do instrumento pode se perder quan-
do ele se transforma na batuta. Baixistas gostam de se sentir silenciosamente
poderosos. Esquina entre ritmo e harmonia, som e pausa. Visto por outro ân-
gulo, aparece a dependência de outras frequências, sentida por quem só circula
pelas regiões graves.

120
Vem à mente a história dos teclados QWERT. No início, as máquinas
de escrever tinham teclas dispostas de maneira a facilitar a digitação. Digitar
rápido virou um esporte, até competições aconteciam. Com o aumento da ve-
locidade, as hastes com os tipos acabavam acavalando, trancando umas nas
outras. Para resolver essa questão, mudaram a disposição das letras para que
a digitação ficasse mais difícil. Batendo à máquina mais lentamente, o proble-
ma não existiria. Com a chegada das máquinas elétricas e dos computadores,
se manteve a disposição QWERT, já sem necessidade. Um arranjo de letras
absurdo para uma tecnologia que não oferece riscos de embaralhar hastes. O
processo já não é mecânico, não existem mais hastes. Persistiu esse arranjo de
teclas pela cultura, pelo costume.
Essa história expressa como me sentia tocando baixo nos últimos
tempos: seguindo minhas próprias pegadas. É claro que todo instrumento, por
mais limitado que seja, é, em tese, inesgotável. Mas teses não têm só cinco de-
dos em cada mão, nem só uma cabeça sobre o pescoço.
Com a guitarra, eu voltava ao instrumento com o qual comecei a tocar
para os outros. Será que estou mentindo? Será que a verdadeira razão da volta
é o desenho das Gibson SG? Foi esse modelo de guitarra que comecei a usar.
A SG é uma irmã bastarda das heroicas Fender Stratocaster e Gibson Les Paul.
Sem o astral coitadinho das Fender Jazzmaster e Jaguar.

contra toda expectativa


contra qualquer previsão
há um ponto de partida
há um ponto de união

A nova escalação deu muito certo. Não demorou para soarmos legal.
Veio a vontade de registrar, em disco, o momento. Sublinhando a continuida-
de num momento de mudança, gravamos o 10.001 Destinos. Mais um disco
com espírito de refil, recarga de bateria. Mesmo projeto gráfico do disco an-
terior, só mudava a cor. Um disco duplo, unindo o show do 10.000 Destinos
com músicas gravadas em estúdio. Nenhuma nova composição no repertório.

121
O foco estava na busca de identidade instrumental. Resultou algo interessan-
te, fundamental para quem acompanha a banda.
Gravado no estúdio onde ensaiávamos, sinalizava que nosso namoro
com o mainstream já era só um retrato na parede. Sem muita paciência para ves-
tir o uniforme underground, sobrava a boa sensação estranha de estar num lim-
bo, sem obrigações com nenhuma cena, nenhuma agenda. O que não quer dizer
que a venda de discos ou o volume de shows tenha mudado muito. Os fãs de fé es-
tavam sempre ao lado. Já havíamos vendido discos em cruzeiros, cruzeiros novos,
cruzados, cruzados novos, reais… Boa sensação estranha de sobreviver às moedas.

vida afora, noite adentro

Antes do fim do ano, gravamos Surfando Karmas & DNA, o primeiro


disco de inéditas com o novo pessoal. Gláucio Ayala (bateria), Paulinho Galvão
(guitarra) e Bernardo Fonseca (baixo). Abriu a série de discos com títulos no
gerúndio e ilustrações de Luis Trimano na capa.
Sonhei com cravelhas, o mecanismo que regula a tensão das cordas,
afinando um instrumento. Tínhamos usado a imagem de uma cravelha de con-
trabaixo no Minuano. Sonhei com cravelhas que eram asas. Asas mecânicas.
Alguns intervalos musicais bem afinados dão mesmo a sensação de elevação.

quem salva quer salvação, canta só pra ouvir a canção


procura como um cego procura a própria cura
anjo da guarda, ajuda-me

Nesse disco, Carlos Maltz voltou a aparecer. Não nos falávamos fazia al-
guns anos. Eu recebia muitos e-mails de pessoas dizendo ser ele. Anonimato calhor-
da digital. Uma das mensagens me chamou atenção. Resolvi replicar fazendo uma
pergunta que só o verdadeiro Maltz saberia responder. Era ele. Estava morando em
Brasília, trabalhando com astrologia e estudando psicologia. Escrevemos por e-mail
a letra de e-Stória. A música eu já tinha desde os tempos da Arquitetura. Gravamos
juntos a faixa, que teve a participação sempre especial de Renato Borghetti.

123
Humberto Gessinger
voz, baixo & violão

Luciano Granja
guitarra & violão

Lúcio Dorfman
teclado

Adal Fonseca
bateria

2000 10.000 Destinos

2001 10.001 Destinos

Humberto Gessinger
voz & guitarra

Paulo Galvão
guitarra

Gláucio Ayala
bateria

Bernardo Fonseca
baixo
A MONTANHA 1 gessinger
* SOPA DE LETRINHAS 2 gessinger/pitz
* OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM 3 gessinger
* EU QUE NÃO AMO VOCÊ 4 gessinger
PRA SER SINCERO 5 gessinger/licks
SOMOS QUEM PODEMOS SER 6 gessinger
PIANO BAR 7 gessinger
NINGUÉM = NINGUÉM 8 gessinger
ALÍVIO IMEDIATO 9 gessinger
ILEX PARAGUARIENSIS gessinger
TERRA DE GIGANTES 10 gessinger
? QUANTO VALE A VIDA ? gessinger
ERA UM GAROTO… 11 luzini/migliaci/vs: brancato
TODA FORMA DE PODER 12 gessinger
ILUSÃO DE ÓTICA gessinger
REFRÃO DE BOLERO 13 gessinger
PARABÓLICA 14 gessinger/licks
INFINITA HIGHWAY 15 gessinger
A PROMESSA 16 gessinger/casarin
* Só em video * NEGRO AMOR 17 dylan/vs: veloso/cavalcanti
** Só em CD O PAPA É POP 18 gessinger
*** Só no 10.001 Destinos RÁDIO PIRATA 19 schiavon/p. ricardo

2000 10.000 Destinos

2001 10.001 Destinos

** NÚMEROS 20 gessinger
** NOVOS HORIZONTES 21 gessinger
** QUANDO O CARNAVAL CHEGAR 22 chico buarque
*** SEM VOCÊ (!É FODA!) 23 gessinger
*** FREUD FLINTSTONE 24 gessinger
*** A PERIGO 25 gessinger
*** NUNCA SE SABE 26 gessinger
*** CONCRETO E ASFALTO 27 gessinger
• 2002 •
Surfando Karmas e DNA chegou às lojas no início do ano. A música
chamada “de trabalho” era Terceira do Plural. Adorei que fosse. Nunca meti
minha colher nessas escolhas. Depois de gravar várias canções para um disco,
era irritante escolher só uma para mandar para as rádios. Antes da era dos ví-
deos, o lance era menos homogêneo, músicas diferentes rolavam em diferentes
lugares. Com os vídeos custando cada vez mais caro, tudo ficava mais lento. A
lógica da indústria era massificar uma canção de cada vez.
Geralmente escolhiam a canção mais parecida com o que estivesse
fazendo sucesso. Nem sempre, quase nunca, tínhamos muito a oferecer nesse
sentido. Uma vez que eu só gravava o que quisesse e da maneira como quisesse,
por mim, podiam mandar qualquer música para as rádios. As canções têm uma
sabedoria própria, dão um jeito de achar os ouvidos a que estão destinadas. As
menos óbvias acabam ganhando o divertido status de “lado B”, a delícia dos fãs
mais radicais.
A ideia de surfar karmas e DNA recorre no disco como uma onda. A
grande sabedoria: saber ser pequeno. As ondas nem sempre são naturais, aque-
las dependentes de marés e fases da lua. Às vezes é um transatlântico que passa
pela nossa jangada fazendo onda.

nau à deriva
no asfalto ou em alto mar
Perigo! Perigo!
perdidos no espaço sideral

Os filtros da época, as agendas da cena, podem ser um peso opressor,


abafando qualquer nota dissonante. Um tempo atrás lembro que a questão das
drogas era central. Várias canções e até nomes de bandas eram pautados pelo
tema. Haviam decidido que era prioritário no momento.
Fui entrevistado por uma revista, papo normal, assuntos gerais.
Quando a matéria saiu, o título era: “Livre das Drogas”. Pô, fiquei indigna-
do! Falei que não usava drogas e davam a entender que eu era um ex-usuário.

128
Não acho importante o que penso sobre o assunto, não quero dizer a ninguém o
que fazer. Não uso porque não me fazem bem e não me dão prazer. Só acho um
desperdício, uma falta de colorido e variedade reduzirem-se os pontos de vista.
Mais chato do que papo de drogado, só papo de ex-drogado. Papo
de quem é histericamente contra ou radicalmente a favor também é um saco.
Como uma questão tão interessante pode ser discutida sem sutileza? Quanta
riqueza se perde! É um dos papos mais interessantes: alteração de percepção,
aumento ou diminuição de consciência, e se fala disso na linguagem do “foi
impedimento ou não”.

ninguém sabe como serão os filhos deste casamento


indústria da informação + indústria do entretenimento

É assim, não adianta. Há quem defenda essas simplificações, por


ser um papo reto. Gosto das curvas. Do Niemeyer e da highway. Papo direto?
Eu acho que é preguiça. Coisa de quem quer consertar relógio usando luvas de
boxe. Vão passando esses transatlânticos burros pra caramba, com suas ideias
fixas e a gente, ali, buscando nossa ilha numa jangada.

129
2002 Surfando Karmas & DNA

Humberto Gessinger
voz, guitarra, violão & teclado

Paulinho Galvão
guitarra & violão

Bernardo Fonseca
baixo

Gláucio Ayala
bateria & percussão
Quando decido mudar do baixo para a guitarra ou <
da guitarra para a viola caipira, não penso muito.
Por outro lado, sou muito específico em relação
a marcas e modelos. Como se houvesse mais
diferenças entre duas guitarras Gibson SG do que
entre um baixo e um acordeón. Não me pergunte
a razão dessa diferença de atitude, no geral e no
particular. Eu seria obrigado a confessar que vejo
mais diferenças entre dois baixos Steinberger
do que entre um bandolim e um piano.

2002 Surfando Karmas & DNA

SURFANDO KARMAS & DNA 1 gessinger


3ª DO PLURAL 2 gessinger
PRA FICAR LEGAL 3 gessinger/galvão
ESPORTES RADICAIS 4 gessinger
NUNCA MAIS 5 mullins/vs: gessinger
NEM + 1 DIA 6 gessinger
RITOS DE PASSAGEM 7 gessinger/galvão
SEI NÃO 8 gessinger/galvão
e-STÓRIA 9 gessinger/maltz
DATAS E NOMES 10 gessinger
ARAME FARPADO 11 gessinger

+ Participei do CD/DVD Um Barzinho, Um Violão cantando Revelação.


Gravei alguns baixos, guitarras e vozes no disco Farinha do Mesmo Saco, de Carlos Maltz.
Musiquei o Soneto Revista, de Glauco Matoso. Está no disco Melopéia.
• 2003 •
Estávamos no estúdio gravando Dançando no Campo Minado
quando Bush Filho abriu a temporada de caça a Saddam Hussein. O Rio,
em paralelo, estava vivendo mais um capítulo de sua guerrilha particular.
Numa madrugada, depois de horas no estúdio, eu estava deitado no hotel,
com o fone a mil, conferindo o que tínhamos gravado. Ouvi um som grave,
estranho, pensei que fosse erro de mixagem. Segundos depois, um cheiro de
pólvora invadiu o quarto. Fui pra sacada e vi os porteiros de todos os prédios
da redondeza correndo para a esquina onde ficava o hotel, no Leblon. Ali
embaixo, haviam jogado uma bomba. Um atentado. Horas depois, chegou
uma viatura, ficou por alguns minutos e foi embora. No dia seguinte, no
jornal, poucas linhas.

aonde leva esta loucura?


qual é a lógica do sistema?
onde estavam as armas químicas?
o que diziam os poemas?

Uma bailarina de coturno dançando num campo minado é a imagem


que vem quando me lembro do disco. Há que endurecer sem perder a ternura.
Na capa, o corte da tesoura sendo evitado pela corda de um instrumento. Terá
fim o velho jogo pedra-tesoura-papel? O disco continuava os caminhos aber-
tos no Surfando Karmas & DNA. Gravado no mesmo estúdio, com a mesma
formação, título no gerúndio, imagens do Trimano, participação do Maltz…
Músicas de um poderiam estar no outro. Mas não estão. No mundo lá fora, a
atmosfera estava mais violenta.
Aqui dentro, no nosso mundinho, a banda estava soando muito bem.
Explicitamente rock’n’roll, sem os adjetivos que mudam a cada ano. Gibson
SG plugada num Marshall e vamos nessa. Livres de duas pragas que infestam
a cena ciclicamente: os caras que se orgulham de tocar bem e os caras que se
orgulham de tocar mal. Ambos equivocados. O lance é não saber que estamos
tocando, sem ego nem orgulho. Cordel Kill Bill.

134
Fizemos uma das turnês mais bonitas. O show era denso, quase ten-
so. O cenário, bonitaço. Tudo encaixava. É bom quando acontece, amplifica a
sensação de estar vivo. Voltamos aos Estados Unidos para fazer shows em sete
cidades. A viagem dentro da viagem foi tocar para pessoas que não conheciam
a banda nem seu idioma, como dois policiais que ficaram no palco, fazendo a
segurança, em Boston. É a sensação de estar começando de novo. Um espelho
zero km, desembaçado, pra gente sacar a quantas anda.
Senti na pele os reflexos da paranoia que tomou conta dos EUA de-
pois do ataque às torres gêmeas. Ficar sem sapatos naqueles aeroportos tão
modernos não fazia sentido para um cara tão formal quanto eu.
Dois anos atrás, no dia 11 de setembro, eu estava ouvindo o som da
bolinha (raquete-parede-chão, raquete-parede-chão), quando fiquei sabendo
da estupidez no céu de Nova Iorque. À noite, fizemos o chat mensal. Entre per-
guntas sobre músicas e shows, rolou o seguinte diálogo:
Humberto, você acha q a 3a Guerra Mundial está mais
próxima?
Não... fiquei assistindo a tudo desde o início, ali pelas sete horas a
agitação virava depressão, fui caminhar um pouco, voltei agora... não sei os
lances mais recentes... Talvez vá ser teocracia esquisita versus democracia
desvirtuada... alguém falou que o atentado foi LoTech, mas de alta concep-
ção… exatamente o calcanhar de Aquiles da América: eles são HiTech e de
baixa profundidade... ainda tem o Bush, figura triste, despreparada.
Dançando no
2003 Campo Minado

Humberto Gessinger
voz, guitarra, violão,
harmônica & teclado

Paulinho Galvão
guitarra

Bernardo Fonseca
baixo

Gláucio Ayala
bateria, percussão & voz
Tenho uma relação bem intensa com os instrumentos. Nela, o som é só um dos aspectos.

<
Design, a história e astral entram na equação. Assim como acontece com minhas raquetes,
acho um mau sinal quando o modelo que está em milhares de lojas pelo mundo me satisfaz
sem necessidade de alguma alteração. As guitarras que fiz com o luthier gaúcho Cheruti
misturam corpo de Gibson SG, captação de Fender Telecaster e braço da Stratocaster
do Jeff Beck. A doubleneck branca construí juntando dois Steinbergers. Mas depois de tirar
deles os sons que estavam esperando, não me apego aos instrumentos. Não gosto de vê-los
nos cases, parecem mortos. Não tenho mais comigo os Rickenbackers do início nem as
Gibson 335 e 350 que usei no FGCA.

Dançando no
2003 Campo Minado

CAMUFLAGEM 1 gessinger/galvão
DUAS NOITES NO DESERTO 2 gessinger
ROTA DE COLISÃO 3 gessinger/fonseca
DANÇANDO NO CAMPO MINADO 4 gessinger
SEGUNDA-FEIRA BLUES parte 1 5 gessinger/maltz
DOM QUIXOTE 6 gessinger/galvão
ATÉ O FIM 7 gessinger
NA VEIA 8 gessinger
FUSÃO A FRIO 9 gessinger/galvão
SEGUNDA-FEIRA BLUES parte 2 10 gessinger/maltz
OUTONO EM PORTO ALEGRE 11 gessinger/galvão
• 2004 •
Um ano sabático. Desde o início da banda, só em 1994 eu havia
tirado o time de campo por alguns meses. Depois dos shows de verão,
me recolhi. No fim do ano, o pêndulo, que havia viajado a um extremo,
num disco pesado, disparou no sentido oposto. Gravaríamos o CD/DVD
Acústico MTV.
Já havíamos feito o que se convencionou chamar “disco acústico”
em 1993, no Filmes de Guerra, Canções de Amor. Desde 86, com o acor-
deón na demo de Segurança, essa sonoridade estava presente no nosso
trabalho. Instrumentos acústicos, músicas sem bateria, não eram novida-
de para nós.
Me diverti muito selecionando o material e fazendo os arranjos para
violão, harmônica, bandolim e piano. Meu único medo era de que o projeto
fosse algo episódico na história da banda, um disco entre parênteses. Não te-
nho muita paciência para coisas que não vêm de lugar nenhum e não vão a
nenhum lugar. Acabou dando frutos. Nos próximos trabalhos, eu mergulharia
ainda mais nessa viagem.

vertical
de corpo e alma
mergulho ou decolagem
tanto faz

Gosto muito das duas músicas inéditas do disco, Armas Químicas e


Poemas e Outras Frequências. Precisava escrevê-las, faltavam. É a única ra-
zão para fazer uma canção, sentir falta. A cada música que escrevemos, menos
faltam. Em tese, a fonte das canções é inesgotável. Mas teses não têm só um
coração no peito. Com o tempo, escrever fica um pouco mais difícil e muito
mais divertido.
As participações eram uma tradição da série Acústico. Serviam
para agregar novos públicos, homenagear ídolos ou, simplesmente, ro-
lar um som. No nosso caso, além do lance musical, as participações

140
enfatizavam o caráter “desproduzido”, quase caseiro, que eu queria dar
ao projeto.
Com Carlos Maltz nos vocais gravamos Depois de Nós, uma bela can-
ção que ele escreveu. Clara cantou Pose. A participação dela foi bem casual.
Enquanto eu ia planejando o disco, fazendo os arranjos e as demo, em casa, ela
estava sempre por ali. Nem lembro quando cantou pela primeira vez, foi muito
natural. A versão original da canção era bem mais longa. Reescrita, virou uma
música dela.
Lincoln Olivetti fez os arranjos de cordas e, a partir desse disco, Fernan-
do Aranha, no violão, e Pedro Augusto, nos teclados, engrossavam nosso caldo.
2004 Acústico MTV

Humberto Gessinger
voz, violão, harmônica, bandolim & teclado
Paulinho Galvão
violão
Fernando Aranha
violão
Bernardo Fonseca
baixo
Humberto Barros
teclado
Gláucio Ayala
bateria & voz
O PAPA É POP
ATÉ O FIM
1
2
gessinger
gessinger
+ Participei do CD/DVD
Um Barzinho, Um Violão
ARMAS QUÍMICAS E POEMAS 3 gessinger Jovem Guarda, tocando
O Vagabundo.
O PREÇO 4 gessinger
A REVOLTA DOS DÂNDIS 1 e 2 5 gessinger No CD/DVD Teixeirinha -
POSE 6 gessinger Coração do Rio Grande,
INFINITA HIGHWAY 7 gessinger gravei, ao lado de
DOM QUIXOTE 8 gessinger/galvão Luis Carlos Borges,
VIDA REAL 9 gessinger Coração de Luto.
SURFANDO KARMAS & DNA 10 gessinger
OUTRAS FREQUÊNCIAS 11 gessinger Participei do CD/DVD
Cidadão Quem
TERRA DE GIGANTES 12 gessinger
No Theatro São Pedro.
NÚMEROS gessinger Tocamos
3x4 13 gessinger Terra de Gigantes.
* EU QUE NÃO AMO VOCÊ 14 gessinger
REFRÃO DE BOLERO 15 gessinger
3ª DO PLURAL 16 gessinger
DEPOIS DE NÓS 17 maltz
SOMOS QUEM PODEMOS SER 18 gessinger
ERA UM GAROTO... 19 luzini/migliaci/vs: brancato
* DE FÉ 20 gessinger

* Apenas no DVD

2004 Acústico MTV


• 2005 •
A turnê do Acústico MTV engrenou a quinta marcha. Direto na es-
trada. A cada ano, havia maior diversidade no nosso público. Estranha sensa-
ção boa de tocar para um pessoal que nem havia nascido no início na banda.
Filhos de fãs, pais de fãs. Há tanta coisa para separar as pessoas: time de
futebol, classe social, partido político… Bacana que a música nade contra a
corrente e junte o pessoal.
Só meu lado gremista sofreu, neste ano. Penamos na segunda di-
visão. O jogo que nos trouxe de volta ao salão principal virou lenda: A Ba-
talha dos Aflitos. Explico com um trecho do livro que escrevi, Meu Pequeno
Gremista:
“Precisávamos só de um empate contra o Náutico, em Recife, no
Estádio dos Aflitos. No primeiro tempo, pênalti contra o Grêmio. Chutaram
na trave. No segundo tempo, mais um pênalti marcado contra nós. Depois
de muita confusão e reclamação, o juiz expulsou quatro jogadores do Grê-
mio. Parecia impossível segurar o empate com apenas sete jogadores em
campo e com um pênalti a ser cobrado contra nós. Aí aconteceu o momento
mágico. Nosso goleiro defendeu o pênalti e, em seguida, fizemos um gol.
Inacreditável!”
Visto de cá para lá, até parece uma história bonita, épica. Com a co-
ragem que a distância dá, tudo é mais fácil. Na hora, em tempo real, que so-
frimento! Esse drama todo se desenrolou, para mim, pela TV, num quarto de
hotel na cidade de Jaú, interior paulista.
Quando o juiz marcou o segundo pênalti, foi inevitável desligar a
TV. O velho pensamento mágico: sem assistir, o tempo passaria mais len-
tamente. Faríamos 123 gols se meus olhos não fizessem o relógio andar na
velocidade normal.
Ligaram da recepção, avisando que a van que nos levaria ao ginásio
para testar o som estava esperando. Preferi não conferir o resultado do jogo an-
tes de sair. Caí na real. Era impossível termos escapado daquela sinuca de bico.
Passaríamos mais um ano na segunda divisão, jogando em gramados esquisitos
contra times estranhos, nunca aos domingos.

146
No elevador, encontrei Gláucio, grande batera. Ele começou o que se
transformaria num diálogo surreal. Não me lembro das palavras exatas pois o
papo foi sucedido por uma explosão de euforia:
– Caraca, que lance incrível, meu irmão!
– É…
– Nunca vi disso!
– Nem me fala…
– É muita sorte. Que gol!
– Sorte é o c… Vamos amargar mais um ano na segundona!
– Como assim? Você não viu? Os caras erraram o pênalti e o Grêmio
fez um gol!

Nunca na história dos elevadores alguém havia entrado com uma cara
tão diferente da cara com que tinha saído! Durante a passagem de som e por
algumas horas me senti um super-homem, imortal. Tirei a maior onda com o
pessoal da banda e da equipe, todos cariocas. Incorporei por um tempo todos os
trejeitos e frases de valentia gaúchos. Sem confessar que havia agido, mais uma
vez, como uma avestruz, no quarto do hotel.

147
• 2006 •
Os shows acústicos pareciam mais atemporais. Abriam a possibili-
dade de renovação permanente do repertório. Buscar coisas esquecidas e reler
com novos arranjos. Geralmente, passávamos mais de uma vez pelas cidades. A
turnê foi se estendendo e novos elementos, aparecendo.
Comecei a tocar viola caipira, instrumento que a gente passa metade
do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinado. Não é comum no
Sul. Violão com cordas de náilon é a nossa tradição. Talvez por isso eu tenha
demorado tanto a chegar à viola que, há muito tempo, me fascinava. O som
do Brasil profundo. Um presente que Minas me deu. Com nenhum outro ins-
trumento me senti tão à vontade em tão pouco tempo. Novas músicas e novos
arranjos para velhas músicas começaram a brotar, trazendo a vontade de regis-
trar esse processo.
Nem sempre, e quase nunca, nosso relógio interno bate em uníssono
com o relógio do ambiente. Nos primeiros tempos de banda, eu não queria
nem saber, o relógio interno mandava sempre. Depois de tantos anos de es-
trada e de janela, comecei a respirar mais fundo, esperando um terreno mais
propício para jogar a semente. Tínhamos um novo disco pronto, mas não gra-
varíamos agora.
Coloquei vídeos de algumas canções novas no site da banda. Uma
experiência bacana, compartilhar a feitura de um álbum. Brincava que eram
“VideOsamas”, propositadamente rudimentares. Mensagens enviadas de uma
caverna. Câmera num tripé, eu tocando a música, sem cortes, na versão mais
primitiva possível, assim que eu achasse que ela estava pronta (aí vai mais
uma mentira: nunca se sabe se uma canção está pronta. Mas, tudo bem, se
formos literais, a vida em sociedade fica impossível. Então, fazemos de conta
que uma canção, um dia, fica pronta). Outro conjunto de canções já disponi-
bilizei num estágio mais avançado. Só áudio, mas gravado com toda a banda,
em estúdio.
É uma questão delicada, essa: o jogo entre claro e escuro. O que
mostrar, o que sugerir, o que esconder. Que poder dar ao ouvinte, ao fã?
Pra ser sincero, eu, como fã, não quero poder nenhum. Não quero que meus

148
artistas favoritos me perguntem que músicas gravar, que roupas usar. Não
quero que políticos me perguntem que palavras gosto de ouvir. A função deles
(a minha) é buscar a voz interior. E torcer para que alguns malucos queiram
acompanhar a caminhada. Correndo o risco de ficar falando sozinho, tocando
para as poltronas, num teatro vazio.
Por outro lado, a possibilidade de chegar às pessoas com o menor nú-
mero de filtros possível é sempre bem-vinda. Boa sensação estranha, sobreviver
ao funil da divulgação via meios de comunicação de massas.

sem filtro, na veia


quem tem pressa não se interessa
por questões de estilo

Na próxima encarnação quero ser aquele tipo de artista que nunca


troca de instrumento e usa, por toda carreira, o mesmo corte de cabelo. Sinal
de maturidade. Nesta, que periga ser a única vida, devo confessar que fiz um
corte moicano e por alguns meses fui a pessoa mais feliz do mundo. Aquela era
mesmo a minha cara. Adorei a sensação de passar a gilete no crânio.
Um tempo atrás havia tentado fazer dreadlocks. Passei de tudo no
cabelo para sustentar o emaranhado, mas a genética riu da minha cara e da
minha pretensão. Deus me disse: “Não usarás cabelo rastafári, nem inventa!”.
Me curvei diante de Sua onipotência. Com o moicano, Ele parece ter concorda-
do. Parei de usar porque ainda não havia sido popularizado pelos jogadores de
futebol e ficava parecendo que eu queria conversar sobre cortes de cabelo. Se
vira assunto, perde o sentido.
Também andei cultivando um bigode. Por amor à diversidade cul-
tural. Estavam em extinção, algo deveria ser feito. Nunca achei que cuidar da
imagem fizesse parte da minha arte e do meu ofício. Certamente estou errado,
mas este sou eu.

149
• 2007 •
Chegava a hora do velho disco novo, Novos Horizontes, lançado em
CD e DVD. Foi gravado ao vivo no mesmo local onde gravamos o 10.000 Desti-
nos. Quase todas as turnês passaram por essa tradicional casa de shows de São
Paulo. Ela já teve vários nomes, os últimos vinculados a patrocinadores. Boa
sensação estranha de sobreviver aos nomes.
O disco aprofundava a viagem iniciada no Acústico MTV. A principal
diferença, além da viola caipira, era o número maior de músicas inéditas: oito.
Gravar ao vivo passou a ser fundamental para mim. Quanto mais cosméticos a
tecnologia de estúdio oferece, mais me fascina o que só acontece uma vez, numa
noite, em frente a algumas pessoas.
A diferença entre músicas inéditas e regravações foi ficando cada vez mais
irrelevante para mim. Boa sensação estranha de que tudo se misturava e construía
uma única infinita canção. Esses são os novos horizontes: livres, desformatados.

na falta de algo melhor nunca me faltou coragem


na falta do que fazer inventei a minha liberdade

As mesmas participações do disco anterior, Carlos e Clara, reforça-


vam os nós na tapeçaria, os elos na corrente. Maltz inseriu um rap em Cinza,
uma música que eu havia lhe enviado. Mandou bem. Clara cantou A Onda e
Parabólica, música que escrevi para ela e em cujo clip ela apareceu, antes de
completar um ano de vida. Em poucos minutos, cantando com minha filha,
aprendi mais sobre o ciclo da vida do que aprenderia lendo todas as bibliotecas
do mundo. No palco, com os “de fé”, boa sensação estranha de que tudo se mis-
tura e constrói uma única infinita família.
Tudo às 123 mil maravilhas. Exceto numa questão de logística: imperava
o caos aéreo no país, transformando num inferno a vida de quem voava todo fim
de semana. Que saudade dos tempos em que eu saía de manhã, de Porto Alegre,
para tocar em Manaus, à noite, sem receio de perder a hora. Já não era só a nebli-
na do inverno porto-alegrense que parava tudo e entupia o saguão do Aeroporto
Salgado Filho. O sistema colapsou. Envelheci dez anos ou mais nesses meses.

151
2007 Novos Horizontes

Humberto Gessinger
voz, violão, viola caipira, bandolim,
harmônica & teclado

Fernando Aranha
violão

Bernardo Fonseca
baixo

Gláucio Ayala
bateria & voz

Pedro Augusto
teclado
TODA FORMA DE PODER 1 gessinger
CHUVA DE CONTAINERS gessinger
VERTICAL 2 gessinger
GUANTÁNAMO 3 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
A MONTANHA 4 gessinger
QUEBRA-CABEÇA 5 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
NO MEIO DE TUDO, VOCÊ 6 gessinger
NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM 7 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
CINZA 8 gessinger/maltz
CORAÇÃO BLINDADO 9 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
A ONDA 10 gessinger
PARABÓLICA 11 gessinger/licks
FAZ DE CONTA 12 gessinger/mattos
NOVOS HORIZONTES 13 gessinger
ALÍVIO IMEDIATO gessinger
SIMPLES DE CORAÇÃO 14 gessinger
PIANO BAR 15 gessinger
LUZ 16 gessinger
PRA SER SINCERO 17 gessinger/licks
< Com Maltz
em Cinza

2007 Novos Horizontes


• 2008 •
Resolvi dar um tempo nos Engenheiros do Hawaii. Voltei ao baixo
para os últimos shows. Querem que eu pinte um quadro geral? Não dá. Só vejo
pontos. O caos aéreo, a rotina em que tudo se transforma, a satisfação de ter fei-
to os discos e shows que queria fazer… Isso mesmo, a insatisfação pode ser um
combustível que a felicidade não é. As duas últimas turnês foram as mais bem-
sucedidas da história da banda. Os discos dessa última fase, dois no gerúndio e
dois acústicos ao vivo, me satisfizeram completamente.
Resolvi parar por tempo indeterminado. Ok, também odeio a expres-
são “tempo indeterminado”. Mas ela pode ser uma definição interessante da
vida. Talvez, quando tu estiveres lendo, eu já tenha voltado, talvez não volte
nunca mais. Não é nada tão dramático, é a vida.
O último show (dessa fase?) foi no Crato, A Princesa do Cariri, no Cea-
rá. Na última música do último bis, desajeitadamente, improvisei uma versão: só
deixo o meu cariri no último pau-de-arara.

pode ser pra sempre, pode não ser mais


pode ter certeza e voltar atrás
pode correr risco, arriscado sempre é
só não pode o medo te paralisar

No início de 2007, quando recebi uma homenagem no Prêmio


Açorianos, em Porto Alegre, convidei Duca Leindecker para tocar umas canções
comigo. Desde então, vez por outra, falávamos em fazer alguma coisa juntos.
Por coincidência, Duca também estava dando um tempo na sua banda, Cidadão
Quem. A hora havia chegado.
123 bandas podem se considerar “a maior banda do rock gaúcho”.
Nós criamos o duo Pouca Vogal para ser “a menor banda do rock gaúcho”. Es-
crevemos algumas músicas e as colocamos no site www.poucavogal.com.br
para download gratuito. Boa sensação estranha de sobreviver à indústria
fonográfica. Abaixo, trechos de uma entrevista que fiz comigo mesmo para
servir de release. Devo dizer que não me achei um artista arrogante nem um

156
repórter muito chato. Até combinei de ligar para mim mesmo, hora dessas,
para continuar o papo.

HG: Por que o nome Pouca Vogal?


AgAgê: É um chiste com nossos sobrenomes, Leindecker e Gessin-
ger. Se quisermos fazer um pouco de sociologia de boteco, podemos falar de
como as vogais vão rareando à medida que descemos pelo mapa do Brasil. O
frio vai aumentando, a vegetação fica mais tímida, o verde vai ficando mais
parecido com o azul, as pessoas mais introspectivas. Imigrantes com suas
consoantes. Ao mesmo tempo que exageram, algo de verdadeiro guardam es-
sas generalizações.
Pelo Aurélio, vogal é o fonema que se produz com o livre escapamen-
to de ar pela boca. Consoante é o fonema que resulta do fechamento ou estrei-
tamento de qualquer região acima da glote. Consoantes são mais intimistas.
Um pedido de silêncio não tem vogais. Numa montanha russa, num grito de
gol, as vogais são dominantes.
HG: Há outros músicos acompanhando vocês?
AgAgê: Não. Só nós dois. É um formato que sempre me fascinou.
Seja um duo de violões clássicos como os irmãos Assad, uma dupla caipira

157
como Pena Branca & Xavantinho, um lance pop como Simon & Garfunkel ou
jazz como Larry Coryell & Philip Catherine, há algo especial quando duas pes-
soas estão tocando. Depois do solo, é o mínimo. Mas, nesse mínimo, pode rolar
o máximo diálogo musical.
HG: Quais instrumentos vocês usam?
AgAgê: Eu sigo nos instrumentos acústicos: violão, viola caipira,
harmônicas, piano. Além da MIDI Pedalboard, que é um teclado que toco com
os pés. Duca toca guitarra e violão. Com os pés, ele faz percussão, bombo le-
guero e pandeiro.
É bem intenso. Geralmente, quando um artista chega à quilometra-
gem a que chegamos, pensa em desfrutar do conforto de um repertório já co-
nhecido e de vários bons músicos aparando arestas. Mas nós estamos vibran-
do em outras frequências. Queremos sair da zona de conforto, por achar que
só tensa a corda vibra legal. A vida é mesmo muito curta pra ser pequena.
HG: Que tipo de reação vocês esperam dos fãs das bandas
Engenheiros do Hawaii e Cidadão Quem?
AgAgê: Acho que o maior sinal de respeito de um artista em relação
ao seu público é não pensar nele na hora em que cria. Eu não quero que os
artistas dos quais eu gosto pensem em mim quando criam. Não quero que os
políticos nos quais eu voto façam pesquisas pra saber como quero que eles fa-
lem e atuem. Quero que eles tenham uma visão e corram o risco de encontrar
ou não quem se interesse por ela.
Resumir todas as pessoas que gostam do teu trabalho num estere-
ótipo de “fã” também me parece grosseiro. Cada fã é fã da sua forma, com
suas particularidades. Cada um tem seu caminho, sua maneira de passear
pela obra. Não gosto que me vejam como produto, por isso não penso ne-
les como consumidores. Obviamente será maravilhoso se todos gostarem de
tudo. Se os teatros estiverem todos lotados e as bocas todas sorrindo e pedin-
do bis. Caso esse mundo ideal não se concretize, estaremos tranquilos, por
estar seguindo nossa visão.

158
159
• 2009 •
É o ano em que estou escrevendo este texto. Ainda não terminou.
Gravamos o CD/DVD Pouca Vogal Ao Vivo em Porto Alegre. Ainda não lança-
mos. Vida que segue. Escrevo agora dentro de um ônibus, depois de um show.
Uma pergunta que ouvi recorrentemente nesses anos todos é sobre
inspiração. Quando pintam as canções? Algum lugar especial para compor?
De onde vêm as canções? Não há resposta. Elas chegam a qualquer hora, em
qualquer lugar. Vindas não sei de onde.
O que mais se aproximaria, no meu caso, de um lugar inspirador,
seria, exatamente, um ônibus. Na escuridão da madrugada. Depois de um
show, às vésperas de outro. Enquanto músicos e equipe estão dormindo. Os
faróis iluminando uma fatia mínima de asfalto, as músicas que tocamos e a
reação da plateia ainda na cabeça. Para mim, sempre foi inspirador. Muitas
ideias nasceram assim.
Caminhar e jogar tênis também são momentos bons para pen-
sar sem pensar. Muitas lembranças para este livro me vieram na quadra,
entre sets e games. Foi péssimo para o nível técnico do meu jogo, espero
que tenha sido bom para o texto. Até um tempo atrás eu gostava de imagi-
nar jogos entre o jovem Agagê e o veterano HG. Quem venceria? O maior
preparo físico ou a maior experiência? Nunca cheguei a nenhuma conclu-
são. Talvez porque nossa jornada seja mais parecida com frescobol do que
com tênis. Mais diálogo do que competição. Conversas entre quem fomos
e quem queremos ser.
Gostaria muito de ler o que escrevi, sem ter escrito, sem ter vivido o
que narrei. Ver meu próprio corpo como se fosse outra pessoa. Talvez entendes-
se melhor “qual é”. Imagino que várias frases do texto, tiradas do seu contexto,
podem dizer o contrário do que dizem. Minhas canelas cheias de marcas de
chuteira provam que sempre corri esse risco.
Parece que Nietzsche disse que “o que não aniquila, fortalece”. Na
dúvida, fico com o que dizia minha vó: “O que não mata, engorda”. Canelas
lanhadas, mãos cheias de calos, olhos cansados e ouvidos impacientes são me-
dalhas que trago no peito.

160
Escrevi com o coração e tentei não ser um cardiologista. Ignorei a
proporcionalidade racional entre fatos importantes e irrelevantes. Se me esten-
di sobre bobagens e esqueci lances cruciais, deve haver algum motivo. Depende
da distância, longe ou perto, dentro ou fora.
O próprio tempo é uma questão de distância, basta olhar a irradiação
fóssil das estrelas lá fora. Continuam brilhando e já não existem. É como sem-
pre digo para meu amigo Freud Flintstone, quando ele aparece na escuridão
do ônibus, refletido na janela: “Você, que tem ideias tão modernas, é o mesmo
homem que vivia nas cavernas”.

voltamos enfim ao início


quando se anda em círculo
nunca se é bastante rápido
2009 Pouca Vogal

Humberto Gessinger
voz, viola caipira, violão,
harmônica & teclado

Duca Leindecker
voz, violão, guitarra & percussão
DEPOIS DA CURVA 1 gessinger/leindecker
ATÉ O FIM 2 gessinger
GIRASSÓIS 3 leindecker
BREVE 4 gessinger/leindecker
DIA ESPECIAL 5 leindecker
ALÉM DA MÁSCARA 6 gessinger
SOMOS QUEM PODEMOS SER 7 gessinger
O VOO DO BESOURO 8 gessinger
MÚSICA INÉDITA 9 leindecker
NA PAZ E NA PRESSÃO 10 leindecker
PINHAL 11 leindecker
PRA QUEM GOSTA DE NÓS 12 gessinger
TODA FORMA DE PODER + BANCO 13 gessinger
REFRÃO DE BOLERO 14 gessinger
AO FIM DE TUDO 15 leindecker
TENTENTENDER 16 gessinger/leindecker
O AMANHÃ COLORIDO 17 leindecker
POUCA VOGAL 18 gessinger
A MONTANHA 19 gessinger
A FORÇA DO SILÊNCIO 20 gessinger/leindecker

+ Gravei She Came In Through The Bathroom Window,


dos Beatles, para a coletânea Abbey Road.

2009 Pouca Vogal


123 Letras • Engenheiros do Hawaii
Inéditas • Humberto Gessinger Trio
Pouca Vogal
Por que escolhi 123 letras?
Encasquetei com o número,
queria usar no título. Ainda
bem que me avisaram que
havia 123 mil livros com nome
parecido. Para quem vive de
invenções, ser desinformado é
fundamental e perigoso.
O disco Novos Horizontes
iria se chamar Dezoito. Foi na
última hora que me mostraram
um disco gringo bem conhecido
que usava o mesmo número.
Ser desinformado ajuda muito,
mas atrapalha um pouco, quem
vive de invenções.
Escolher as músicas foi
legal, me forçou a olhar o
material de forma objetiva.
Pra ser sincero, acho que foi
a primeira vez. Selecionei o
repertório como se estivesse
fazendo o roteiro de um show.
Com o tempo, aprendi que
todo show é feito por músicas
que a gente toca e músicas que
a gente deixa de tocar. Som e
pausa. Se a música favorita de
alguém ficou de fora, aí está
um bom início de conversa.
ENGENHEIROS DO HAWAII, A CANÇÃO
ENGENHEIROS DO HAWAII, letra e música: gessinger 1984
A CANÇÃO
to be or not to be
É simbólica por alguns engenheiros do Havaí
motivos, além de ter dado nome to be or not to be
à banda. Tem o humor da minha reis do rock pós-IAPI
turma da faculdade. Algo que to be or not to be
contrastava muito com minha um bando de guri
seriedade no colégio. Eu era to be or not to be
bem mais velho no ensino enrolados em Colomy
médio do que sou hoje.
eles odeiam Albert Camus
No solo, eu tocava as
eles só querem ler gibi
melodias dos seriados de TV
Hawaii 5.0 e Bonanza. A en-
to be or not to be
xurrada de referências reflete o engenheiros do Havaí
ambiente e nossa ansiedade. to be or not to be
O escritor Camus, o ar- Beach Boys de Tramandaí
quiteto Le Corbusier, o seriado to be or not to be
de TV Família Dó Ré Mi, a uma banda tri-li-li
praia sem onda de Tramandaí, to be or not to be
a antiga gíria gaúcha tri-li-li, o fãs da Família Dó Ré Mi
papel para enrolar fumo Colomy
e o bairro I.A.P.I.. eles odeiam Albert Camus
É um bairro operário dos eles só querem ler gibi
anos 40, com um desenho de eles odeiam Alber Camus
ruas maravilhoso, humano, com eles só querem Le Corbusier
muitas curvas. Minha mãe dava
aula num colégio desse bairro.
Na faculdade projetamos uma
escola para ele. Mas o I.A.P.I.
entrou na música por ser um
bairro historicamente roqueiro,
desde o fim dos 60.

172
CAUSA MORTIS
letra e música: gessinger 1984 CAUSA MORTIS

dia após dia, cada vez mais fria O jeitinho cão andaluz vem
você matou sua mãe pra estudar anatomia da cena da navalha no olho do
ano após ano, seu sorriso insano filme de Buñuel. Aguentar os
você matou seu pai com veneno no cinzano punks de butique da época
era um saco. Sempre há quem
você matou o presidente norte-americano ache que a credibilidade está
você era democrata, ele republicano em falar alto.
você matou sua avó ouvindo Mano a Mano
matou seu avô — não me diz que foi engano

não! não vou ficar aqui


pra alimentar seu bisturi
não! você não me seduz
com seu jeitinho cão andaluz

você matou sua tia, morte por asfixia


matou seu tio com tiro de fuzil
matou sua irmã com veneno na maçã
com tiros de canhão, matou seu irmão

você matou todo mundo


(era esse seu plano)
matou sua sede bebendo sangue humano
matou a charada (vai entrar pelo cano)
matou muita aula (vai repetir o ano)

não! não vou ficar aqui


pra alimentar seu bisturi
não! você não me seduz
com seu jeitinho cão andaluz

173
SEGURANÇA
SEGURANÇA letra e música: gessinger 1985

Um curso pré-vestibular você precisa de alguém que te dê segurança


usou o refrão como propa- senão você dança
ganda. Estava lá, estampado senão você dança
num outdoor, meu erro de
português favorito. Às vezes ele era o tal
as ironias de uma canção trans- cheio de moral
bordam para a vida real. bon vivant
Algumas das grifes citadas na parecia um galã
letra já dançaram. Boa sensa- usando óculos Ray Ban (don juan)
ção estranha de sobreviver às corria em Tarumã
combateu no Vietnã (ra-ta-ta-tá)
marcas.
vestia Yves Saint-Laurent (Pierre Cardin)

você precisa de alguém que te dê segurança


senão você dança
senão você dança

ele era o tal


um cara tão legal
fascinava você
tinha um Puma-GT com vidro fumê
tinha sauna no apê
só pra você ver (pode crer)
lutava karatê como nos filmes da tv

você precisa de alguém que te dê segurança


senão você dança
senão você dança

o que mais me impressiona é que tudo nasceu


numa carona que ele te deu
o que mais me impressiona é que tudo se deu
no banco traseiro de um Alfa-Romeo

você precisa de alguém que te dê segurança


senão você cança
senão você se cansa e rança

174
TODA FORMA DE PODER
letra e música: gessinger 1986 TODA FORMA DE PODER

eu presto atenção no que eles dizem Adoro desmontar e re-


mas eles não dizem nada montar minhas músicas. Jun-
Fidel e Pinochet tiram sarro de você tar duas em uma, quebrar uma
que não faz nada em duas. Deve ser herança
começo a achar normal da Arquitetura ou das bandas
que algum boçal atire bombas na embaixada progressivas. Módulos. Tijolos
em prédios. Prédios numa
se tudo passa cidade.
talvez você passe por aqui TODA FORMA DE PODER,
e me faça esquecer tudo que eu vi no DVD Novos Horizontes,
está unida à CHUVA DE
toda forma de poder
CONTAINERS. No DVD Pouca
é uma forma de morrer por nada
toda forma de conduta
Vogal, a ligação é com BANCO.
se transforma numa luta armada A primeira junção enfatiza o
a stória se repete lado político da canção. A
mas a força deixa a stória mal contada segunda, o lado pessoal.
Há ainda a ligação com
se tudo passa ILUSÃO DE ÓTICA, presen-
talvez você passe por aqui te no DVD 10.000 Destinos.
e me faça esquecer tudo que eu vi

o fascismo é fascinante
deixa gente ignorante fascinada
é tão fácil ir adiante
esquecer que a coisa toda tá errada
eu presto atenção no que eles dizem
mas eles não dizem nada

se tudo passa
talvez você passe por aqui
e me faça esquecer tudo que eu vi

175
LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS CRÔNICA
letra e música: gessinger 1986 letra e música: gessinger 1986

suave é a noite já não passa nenhum carro por aqui


é à noite que eu saio já não passa nenhum filme na tv
pra conhecer a cidade você enrola outro cigarro por aí
e me perder por aí e não dá bola pro que vai acontecer

nossa cidade é muito grande mais um pouco e mais um século termina


e tão pequena mais um louco pede troco na esquina
tão distante do horizonte do país tudo isso já faz parte da rotina
e a rotina já faz parte de você
suave é a cidade
pra quem gosta da cidade você que tem ideias tão modernas
pra quem tem necessidade é o mesmo homem que vivia nas cavernas
de se esconder
todo mundo já tomou a Coca-Cola
nossa cidade é tão pequena a Coca-Cola já tomou conta da China
e tão ingênua todo cara luta por uma menina
estamos longe demais das capitais e a Palestina luta pra sobreviver

eu sempre quis viver no velho mundo a cidade, cada vez mais violenta
na velha forma de viver (tipo Chicago nos anos quarenta)
o 3º sexo e você, cada vez mais violento
a 3ª guerra no seu apartamento ninguém fala com você
o 3º mundo
são tão difíceis de entender que tem ideias tão modernas
e é o mesmo homem que vivia nas cavernas

176
FÉ NENHUMA
letra e música: gessinger 1986 FÉ NENHUMA

não levo fé nenhuma em nada! Parei de tocá-la quando


não levo fé nenhuma em nada! me dei conta de que estava
falando o contrário do que
mas ninguém tem o direito queria dizer. Mas sempre senti
de me achar reacionário saudade do riff de guitarra
não acredito no teu jeito e do Voice Box (um efeito de
revolucionário guitarra: o som vem por uma
mangueira e, usando a boca
eu sei que você acredita como caixa de ressonância,
nas notícias do jornal se pode alterá-lo. Jeff Beck e
mas tudo isso me irrita,
Peter Frampton foram mestres
me enoja e me faz mal
nisso).
por incrível que pareça
teu discurso é tão seguro
talvez você esqueça:
você também não tem futuro

não levo fé nenhuma em nada!


não levo fé nenhuma em nada!

você quer me pôr no agito


do movimento estudantil
mas eu não acredito
no futuro do Brasil

eu não vou morrer de fome


eu não vou morrer de tédio
eu não vou morrer pensando
qual seria o remédio

sei de cor seus comentários


sobre o mal da alienação
mas eu não vivo de salário
eu não vivo de ilusão

não levo fé nenhuma em nada!


não levo fé nenhuma em nada!

177
BEIJOS PRA TORCIDA
BEIJOS PRA TORCIDA letra e música: gessinger 1986

Gosto de imaginar que quando eu abro a janela


músicas do primeiro e do úl- quando eu abro o jornal
timo disco poderiam trocar de eu vejo a cara dela
lugar sem parecerem deslo- a terceira guerra mundial
cadas. Não acredito que tenha
melhorado ou piorado, nem jogam bombas em Nova Iorque
é o caso de usar as palavras jogam bombas em Moscou
progresso e retrocesso. Claro como se jogassem beijos pra torcida
que o tom da época pinta, é depois de marcar um gol
bom que seja assim.
falam tanto sobre guerra e paz
Há muitas referências à
mas tanto faz falar ou não
guerra nas letras dessa fase.
todas as bombas e os generais
O absurdo acúmulo de armas são restos mortais da civilização
atômicas e as incertezas do
fim da Guerra Fria pintavam rebeldes sem rebeldia
muito no rock da época, viciados em anestesia
principalmente inglês. fantasmas sem fantasia
gripados na guerra fria

pão e circo, que pé no saco


quem não fica frio fica fraco
procuro entender qualé a desses caras
procuro um cigarro no bolso do casaco

em todo lugar
um pedaço do fim
um furo de bala
um muro de Berlim

muito sangue sai


da tela do drive-in
um filme de guerra
um filme sem fim

178
A REVOLTA DOS DÂNDIS
letra e música: gessinger 1987

1 2
entre um rosto e um retrato já não vejo diferença
o real e o abstrato entre os dedos e os anéis
entre a loucura e a lucidez já não vejo diferença
entre o uniforme e a nudez entre a crença e os fiéis
entre o fim do mundo e o fim do mês tudo é igual quando se pensa
entre a verdade e o rock inglês em como tudo deveria ser
entre os outros e vocês há tão pouca diferença
há tanta coisa a fazer
eu me sinto um estrangeiro
passageiro de algum trem esquerda & direita, direitos & deveres,
que não passa por aqui os 3 patetas, os 3 poderes
que não passa de ilusão ascensão & queda
são dois lados da mesma moeda
entre mortos e feridos tudo é igual quando se pensa
entre gritos e gemidos em como tudo deveria ser
a mentira e a verdade há tão pouca diferença
a solidão e a cidade há tanta coisa a escolher
entre um copo e outro
da mesma bebida nossos sonhos são os mesmos há muito tempo
entre tantos corpos mas não há mais muito tempo pra sonhar
com a mesma ferida
pensei que houvesse um muro
eu me sinto um estrangeiro entre o lado claro e o lado escuro
passageiro de algum trem pensei que houvesse diferença
que não passa por aqui entre gritos e sussurros
que não passa de ilusão mas foi um engano, foi tudo em vão
já não há mais diferença entre a raiva e a razão
entre americanos e soviéticos
gregos e troianos esquerda & direita, direitos & deveres,
entra ano e sai ano os 3 porquinhos, os 3 poderes
sempre os mesmos planos ascensão & queda
entre a minha boca e a tua são dois lados da mesma moeda
há tanto tempo, há tantos planos tudo é igual quando se pensa
mas eu nunca sei pra onde vamos em como tudo poderia ser
há tantos sonhos a sonhar
eu me sinto um estrangeiro há tantas vidas a viver
passageiro de algum trem
que não passa por aqui nossos sonhos são os mesmos há muito tempo
que não passa de ilusão mas não há mais muito tempo pra sonhar

179
TERRA DE GIGANTES
letra e música: gessinger 1987

hey, mãe
eu tenho uma guitarra elétrica
durante muito tempo
isso foi tudo que eu queria ter

mas hey, mãe


alguma coisa ficou pra trás
antigamente eu sabia
exatamente o que fazer

hey, mãe
tenho uns amigos tocando comigo
eles são legais e além do mais
não querem nem saber

mas agora, lá fora


todo mundo é uma ilha
a milhas e milhas de qualquer lugar hey, mãe
já não esquento a cabeça
nessa terra de gigantes durante muito tempo
que trocam vidas por diamantes isso foi só o que eu podia fazer
a juventude é uma banda
numa propaganda de refrigerantes mas hey, mãe
por mais que a gente cresça
as revistas, as revoltas há sempre coisas
as conquistas da juventude que a gente não pode entender
são heranças, são motivos
pr’as mudanças de atitude por isso, mãe
só me acorda quando o sol tiver se posto
os discos, as danças eu não quero ver meu rosto
os riscos da juventude antes de anoitecer
a cara limpa, a roupa suja
esperando que o tempo mude pois agora lá fora
o mundo todo é uma ilha
nessa terra de gigantes a milhas e milhas e milhas...
(tudo isso já foi dito antes)
a juventude é uma banda nessa terra de gigantes
numa propaganda de refrigerantes (eu sei, já ouvimos tudo isso antes)
a juventude é uma banda
numa propaganda de refrigerantes

180
FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR
letra e música: gessinger 1987

os dias parecem séculos preciso beber qualquer coisa


quando a gente anda em círculos não me lembre que eu não bebo
seguindo ideais ridículos o que só nós dois sabemos
querer, lutar & poder nós sabemos que é segredo

as roupas na lavanderia há um guarda em cada esquina


o analista passeando na Europa esperando um sinal
as encomendas na Bolívia pra transformar um banho de piscina
nas fotos um sorriso idiota numa batalha naval

os dias parecem séculos agora sinto um medo infantil


e se parecem uns com os outros mas na hora certa afundaremos o navio
como enfermeiras em filmes de guerra então dê um copo de aguardente
e violinos nas canções de amor para um corpo sentindo frio

a seguir cenas obscenas preciso beber qualquer coisa


do próximo capítulo você sabe que eu preciso
é só virar a página e o futuro virá o que só nós dois sabemos
já não é mais segredo
filmes de guerra, canções de amor
manchetes de jornal ou seja lá o que for se alguém, seja lá quem for
há sempre uma stória infeliz tiver que morrer
esperando uma atriz e um ator na guerra ou no amor
não me peça pra entender
há vida na terra, há rumores no ar não me peça pra esquecer
dizendo que tudo vai acabar
mais uma stória infeliz não me peça para entender
esperando um ator e uma atriz não me peça pra escolher
entre o fio ciumento da navalha
não tenho medo de perder a guerra e o frio de um campo de batalha
pois no fim da guerra todos perdem
no fim das contas as nações unidas chegamos ao fim do dia
‘tão sempre prontas pra desunião chegamos, quem diria?
ninguém é bastante lúcido
não tenho medo de perder você pra andar tão rápido
desde o início eu sabia
era só questão de dias chegamos ao fim do século
um dia iria acontecer voltamos enfim ao início
quando se anda em círculos
nunca se é bastante rápido

181
INFINITA HIGHWAY
INFINITA HIGHWAY letra e música: gessinger 1987

Eu tinha trechos da le- você me faz correr demais


tra desde sempre. Na noite os riscos desta highway
em que virou canção, tudo você me faz correr atrás
aconteceu muito rápido, qua- do horizonte desta highway
se em tempo real. ninguém por perto, silêncio no deserto
É um lugar-comum, o deserta highway
tema da estrada sem fim. estamos sós e nenhum de nós
Aqui e no country americano. sabe exatamente onde vai parar
Variações da mesma longa
estrada da vida cantada por mas não precisamos saber pra onde vamos
nós só precisamos ir
Milionário e José Rico.
não queremos ter o que não temos
Nós, no RS, desde os
nós só queremos viver
anos 70 estamos acostuma- sem motivos nem objetivos
dos com o termo freeway, acho estamos vivos e isto é tudo
que daí veio highway, mais do é sobretudo a lei da infinita highway
que de alguma música gringa.
Não sei como virou um hit. quando eu vivia e morria na cidade
Até a logística sinalizava contra: eu não tinha nada, nada a temer
os cartuchos que as rádios mas eu tinha medo, medo desta estrada
usavam tinham um tempo me- olhe só! veja você!
nor do que a duração da música. quando eu vivia e morria na cidade
Depois que estourou, su- eu tinha de tudo, tudo ao meu redor
geriram fazer um remix, nós mas tudo que eu sentia era que algo me faltava
topamos. Escolheram um pro- e à noite eu acordava encharcado em suor
dutor legal, superconceituado.
não queremos lembrar o que esquecemos
Achávamos que trabalhariam
nós só queremos viver
com o que já havíamos gra-
não queremos aprender o que já sabemos
vado. Quando fui ao Rio ouvir,
não queremos nem saber
me surpreendi, pois estavam sem motivos nem objetivos
gravando metais e percussão. estamos vivos e é só
Tudo muito bom, grandes só obedecemos a lei da infinita highway
músicos. Mas ia contra a nossa
onda. Ser trio era um dado
mais do que formal no nosso
som. No fim, pedimos para não
usarem o remix.

182
escute, garota o vento canta uma canção
dessas que a gente nunca canta sem razão
me diga, garota “Será a estrada uma prisão?”
eu acho que sim, você finge que não
mas nem por isso ficaremos parados
com a cabeça nas nuvens e os pés no chão
tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre
se tanta gente vive sem ter como viver

estamos sós
nenhum de nós sabe onde quer chegar
estamos vivos sem motivos
que motivos temos pra estar
atrás de palavras escondidas
nas entrelinhas do horizonte desta highway
silenciosa highway minha vida é tão confusa
quanto a América Central
eu vejo o horizonte trêmulo por isso não me acuse de ser irracional
tenho os olhos úmidos escute garota, façamos um trato:
eu posso estar completamente enganado você desliga o telefone
posso estar correndo pro lado errado se eu ficar muito abstrato
mas “a dúvida é o preço da pureza” eu posso ser um beatle
é inútil ter certeza um beatnik ou um bitolado
eu vejo as placas dizendo mas eu não sou ator
“não corra”, “não morra”, “não fume” eu não ‘tô à toa do teu lado
eu vejo as placas cortando o horizonte por isso garota, façamos um pacto:
elas parecem facas de dois gumes não usar a highway pra causar impacto

110, 120, 160


só pra ver até quando o motor aguenta
na boca, em vez de um beijo
um chiclete de menta
e a sombra de um sorriso que eu deixei
numa das curvas da highway

183
ALÉM DOS OUTDOORS
letra e música: gessinger 1987

no ar da nossa aldeia
há rádio, cinema & televisão
mas o sangue só corre nas veias
por pura falta de opção

as aranhas não tecem suas teias


por loucura ou por paixão
se o sangue ainda corre nas veias
é por pura falta de opção

no céu, além de nuvens


há sexo, drogas & talk-shows
as coisas mudam de nome
mas continuam sendo religiões

no dia-a-dia da nossa aldeia


há infelizes enfartados de informação no ar da nossa aldeia
as coisas mudam de nome há mais do que poluição
mas continuam sendo o que sempre serão há poucos que já foram
e muitos que nunca serão
você sabe, o que eu quero dizer
não tá escrito nos outdoors as aranhas não tecem suas teias
por mais que a gente cante por loucura ou por paixão
o silêncio é sempre maior se o sangue ainda corre nas veias
é por pura falta de opção
você sabe o que eu quero dizer
não tá escrito nos outdoors você sabe, o que eu quero dizer
por mais que a gente grite não tá escrito nos outdoors
o silêncio é sempre maior por mais que a gente cante
o silêncio é sempre maior

você sabe, o que eu quero dizer


não cabe na canção
por pura falta de opção
púrpura é a cor do coração

você sabe, o que eu quero dizer


nunca foi dito num talk-show
por mais que a gente cante
o silêncio, o silêncio, o silêncio, o silêncio...

184
QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA VOZES
letra: gessinger 1987 | música: gessinger/maltz letra e música: gessinger 1987

quando você me olha se você ouvisse


com seu olhar tranquilo as vozes que ouço à noite
sempre diz que falta algo acharia tudo que eu faço natural
(ou isto ou aquilo) se você sentisse
você não entende e se surpreende o medo que eu sinto no escuro
seu olhar já não está tranquilo se você soubesse
mas quem tem pressa não se interessa o mal que o sol me faz
por questões de estilo não me pediria pra repetir
revoltas banais
as vozes oficiais dizem: “quem sabe...” das quais eu já me esqueci
dizem: “talvez...”
enquanto os vídeos e as revistas se você ouvisse
mostram imagens sem nitidez as vozes que ouço à noite
você se espanta: às vezes me assustam,
“há tanta coisa nos jornais!” outras vezes me atraem
mas quem tem pressa não se interessa se você sofresse
em andar rápido demais tanto quanto eu sofro
com a solidão
eles têm razão se você soubesse
mas a razão é só o que eles têm o quanto eu preciso da solidão
a lâmina ilumina a mão não me pediria pra repetir
a lâmpada cria a escuridão frases banais
há muita grana atrás de uma canção das quais já me arrependi
ninguém se engana com uma canção
o tempo que nos gera também gera generais duas pessoas são duas verdades
o tempo nunca espera e, na verdade, são dois mundos
que cheguem os comerciais a cada segundo o pânico aumenta
uma sombra arrebenta
nas veias abertas da américa, menina a porta dos fundos
um mar vermelho de sangue
leva navios piratas se você sofresse
negociatas tanto quanto eu sofro
concordatas com a solidão
candidatos democratas e precisasse
sucos e sucatas tanto quanto eu preciso
ternos e gravatas da solidão
secando cataratas e lavando as mãos não me pediria pra repetir
dando a impressão gestos banais
de que nessa areia movediça iguais aos que eu nunca fiz
nada se desperdiça

185
GUARDAS DA FRONTEIRA REFRÃO DE BOLERO
letra e música: gessinger 1987 letra e música: gessinger 1987

antes de atirar o vaso na tv eu que falei “nem pensar”


eu ouvi o que ela dizia: agora me arrependo
“quando não houver mais amanhã roendo as unhas
será um belo dia” frágeis testemunhas
estranha coisa pra se dizer de um crime sem perdão
antes de dizer os números da loteria
mas é assim que eles fazem e fazem muito bem mas eu falei sem pensar
nós não fazemos nada, nada, nada, nada além coração na mão
como refrão de bolero
além do mito que limita o infinito eu fui sincero como não se pode ser
e da cegueira dos guardas da fronteira
um erro assim tão vulgar
antes de atirar minha tv pela janela nos persegue a noite inteira
eu ouvi o que ela dizia e, quando acaba a bebedeira
“quando não houver mais ninguém ele consegue nos achar
será um belo dia”
estranha coisa pra se dizer num bar
antes de vender mais mercadoria com um vinho barato
mas é assim o mundo que nos cerca: um cigarro no cinzeiro
nos cerca muito bem e uma cara embriagada
e as crises e cicatrizes não nos deixam ir além no espelho do banheiro

além do mito que limita o infinito teus lábios são labirintos, Ana
além da cegueira que atraem os meus instintos mais sacanas
das barreiras, das fronteiras teu olhar sempre distante sempre me engana
eu sigo a tua pista todo dia da semana
foi então que eu resolvi jogar
as cartas na mesa e o vaso pela janela teus lábios são labirintos, Ana
só pra ver o que acontece na vida que atraem os meus amigos mais sacanas
quando alguém faz o que quer com ela eu entro sempre na tua dança de cigana
é o fim do mundo todo dia da semana
acontece que eu não tenho escolha
por isso mesmo é que eu sou livre
não sou eu o mentiroso
foi Sartre quem escreveu o livro
não sou a fim de violência
mas paciência tem limite

além do mito que limita o infinito


além do dia a dia que esvazia a fantasia

186
CIDADE EM CHAMAS
letra e música: gessinger 1988

as chances estão contra nós


mas nós estamos por aí
a fim de sobreviver
como um avião sobrevoa
a cidade em chamas

no meio da confusão
andando sem direção
a fim de sobreviver
só pra ver como brilha
a cidade em chamas

se o que eu digo não faz sentido


não faz sentido ficar ouvindo
mas o que eu digo não é mentira
não faz sentido ficar mentindo
enquanto as bombas caem do avião
deixando de recordação
a cidade em chamas as chances estão contra nós
mas nós estamos por aí
já ouvimos esta stória a fim de sobreviver
sabemos como acaba
acontece quase tudo no meio da confusão
não muda quase nada andando sem direção
a fim de sobreviver
já vimos este filme
sabemos como acaba enquanto as bombas caem do avião
explodem quase tudo deixando de recordação
não sobra quase nada a cidade em chamas

então não basta ter coragem


só resta uma solução é preciso estar sozinho
sair no meio da sessão é preciso trair tudo
pra ver a cidade em chamas trazer a solidão
eu sei que eles têm razão
mas a razão é só o que eles têm

quantas bocas se fecharão


quando a bomba beijar o chão
da cidade em chamas

187
OUÇA O QUE EU DIGO:
SOMOS QUEM PODEMOS SER
NÃO OUÇA NINGUÉM
letra e música: gessinger 1988
Já toquei essa música na
guitarra, baixo fretless, acor- tantas pessoas paradas na esquina
deón, piano, bandolim, viola assistindo à cena:
caipira e violão. Ergo 123 mãos pele morena vendendo jornais
aos céus por ter um público vendendo muito mais
que acompanha e até incen- do que queria vender
tiva essa maneira de tratar as
canções, como organismos vozes à toa
vivos. Não precisei virar cover ecos na esquina narrando a cena
de mim mesmo. pele morena vendendo jornais
Nada contra bandas precisando de mais venenos mortais
cover. Tenho até inveja de quem
consegue simular o som dos o que nos devem queremos em dobro
outros, é um talento que não queremos em dólar
tenho. Desde criança, sempre o que nos devem queremos em dobro
queremos agora
que eu tentava tocar músicas
de outras pessoas, acabava
se te disseram pra não virar a mesa
escrevendo uma nova antes de se te disseram que o ataque é a pior defesa
conseguir. se te imploraram: “por favor, não vire a mesa”
Outro pessoal que invejo ouça o que eu digo: não ouça ninguém
são os compositores de jingle. ouça o que eu digo: não ouça ninguém
Não consigo escrever nada
“de propósito”. O que se con- tantas pessoas paradas na esquina
vencionou chamar “talento fingindo pena
musical”, na verdade, tem vá- criança pequena cheirando cola
rias facetas: reproduzir, criar beijando a sola dos sapatos
instintivamente, criar racio-
nalmente, ouvir… Esta, para o que nos devem queremos em dobro
mim, é a mais importante. queremos em dólar
Conheço um monte de o que nos devem queremos em dobro
queremos agora
gente que aprendeu a tocar.
Não conheço ninguém que
se te disseram pra não virar a mesa
tenha aprendido a ouvir. se te disseram que o ataque é a pior defesa
se te disseram pra esperar a sobremesa
ouça o que eu digo: não ouça ninguém
ouça o que eu digo: não ouça ninguém

188
SOMOS QUEM PODEMOS SER
letra e música: gessinger 1988

um dia me disseram
que as nuvens não eram de algodão
um dia me disseram
que os ventos às vezes erram a direção

e tudo ficou tão claro


um intervalo na escuridão
uma estrela de brilho raro um dia me disseram
um disparo para um coração quem eram os donos da situação
sem querer eles me deram
a vida imita o vídeo as chaves que abrem esta prisão
garotos inventam um novo inglês
vivendo num país sedento e tudo ficou tão claro
um momento de embriaguez o que era raro ficou comum
como um dia depois do outro
somos quem podemos ser como um dia, um dia comum
sonhos que podemos ter
a vida imita o vídeo
garotos inventam um novo inglês
vivendo num país sedento
um momento de embriaguez

somos quem podemos ser


sonhos que podemos ter

um dia me disseram
que as nuvens não eram de algodão
sem querer eles me deram
as chaves que abrem esta prisão

quem ocupa o trono tem culpa


quem oculta o crime também
quem duvida da vida tem culpa
quem evita a dúvida também tem

somos quem podemos ser


sonhos que podemos ter
e teremos

189
PRA ENTENDER
TRIBOS E TRIBUNAIS letra e música: gessinger 1988

Acho que foi a primeira pra entender


música que fiz com Augusto basta um tapa num cigarro
Licks. Nas parcerias com ele, uma olhada no mapa do Brasil
era mais frequente eu mandar uma caminhada
a letra antes. por qualquer caminho
Gosto de fazer minha um carinho qualquer
parte sozinho. Criações cole- basta ver o que não se enxerga
tivas oferecem o risco do e só se enxerga
denominador comum. Além nos olhos de uma mulher
disso, variações de humor não basta olhar pro que acontece
esteja onde estiver
me fazem uma boa companhia
quando estou escrevendo.
pra entender, nada disso é tudo
A imagem do cara come- tudo isso é fundamental
çando um livro pelo título e
acabando com a palavra “fim” pra entender
não pode ser menos real, pelo basta a cara e a coragem
menos para mim. Raramente é a cor, o corpo, o coração
linear, a criação. uma canção da banda preferida
uma descida ao porão
seis pilhas pro meu rádio
seis minutos pra canção
basta olhar pro que acontece
aconteça o que acontecer

pra entender, nada disso é tudo


tudo isso é fundamental

pra entender
basta uma noite de insônia
um sonho que não tem fim
um filme sem muita graça
uma praça sem muito sol
seis cordas pra guitarra
seis sentidos na mesma direção
seiscentos anos de estudo
ou seis segundos de atenção

pra entender, nada disso é tudo


tudo isso é fundamental

190
TRIBOS E TRIBUNAIS
letra: gessinger 1988 | música: licks

todo dia a gente inventa uma alegria agente secreto


a gente esquenta água fria agente imobiliário
e ignora a bola fora gente como a gente
presidente operário
toda hora a gente dá um desconto
a gente faz de conta empresas estatais
mas chega a um ponto estátuas de generais
em que ninguém mais quer saber heróis de guerra
guerra pela paz
crimes passionais
profissionais liberais demais hindus, industriais
segredos de estado tribos e tribunais
centroavante recuado pessoas que nunca aparecem
ou aparecem demais
isso me sugere muita sujeira
isso não me cheira nada bem isso me sugere muita sujeira
tem muita gente se queimando na fogueira isso não me cheira nada bem
e muito pouca gente se dando muito bem tem muita gente
se queimando na fogueira
e muito pouca gente
se dando muito bem

críticos de arte
arte pela arte
Pink Floyd sem Roger Waters
forma sem função

fascistas de direita
fascistas de esquerda
empresas sem fins lucrativos
empresas que lucram demais

todo dia a gente inventa e fantasia


a gente tenta todo dia
feito cegos, egos em agonia

isso me sugere muita sujeira


isso não me cheira nada bem
tem muita gente se queimando na fogueira
e muito pouca gente se dando muito bem

191
NUNCA SE SABE
letra e música: gessinger 1988

sei que parecem idiotas


as rotas que eu traço
mas tento traçá-las eu mesmo

e, se chego sempre atrasado


se nunca sei que horas são
é porque nunca se sabe
até que horas os relógios funcionarão

sem dúvida, a dúvida é um fato


sem fatos não sai um jornal
sem saída ficamos todos presos
aqui dentro faz muito calor

sempre parecem idiotas não quero perder a razão


as rotas que eu faço pra ganhar a vida
sempre tarde da noite nem perder a vida
pra ganhar o pão
se ando sempre apressado
se nunca sei que horas são não é que eu faça questão de ser feliz
é porque nunca se sabe eu só queria que parassem de morrer de fome
a um palmo do meu nariz
nem sempre faço
o que é melhor pra mim mesmo que pareçam bobagens
mas nunca faço as viagens que eu faço
o que eu não tô a fim de fazer eu traço meus rumos eu mesmo (a esmo)

e, se nunca sei a quantas ando


se ando sem direção
é porque nunca se sabe

nem sempre faço


o que é melhor pra mim
mas nunca faço
o que eu não tô a fim de fazer

não viro vampiro


eu prefiro sangrar
me obrigue a morrer
mas não me peça pra matar

192
?DESDE QUANDO?
letra e música: gessinger 1988

desde quando errar é humano?


desde quando humano é normal?
desde quando errando é que se aprende?

desde quando poluição é progresso?


desde quando progresso é melhor? desde quando viver é um sonho?
acho melhor começar tudo de novo desde quando um sonho é preciso?
do que acabar pela primeira vez eu preciso do que eu quero
eu espero que você me dê
desde quando?
até quando? desde quando ordem e progresso
nos levarão a algum lugar?
você insiste em dizer nem tudo que brilha é ouro
que enxerga na escuridão nem todo ouro pode nos salvar
você insiste em dizer
que controla a situação desde quando?
não minta agora, agora não até quando?

você insiste em dizer


que enxerga na escuridão
você insiste em dizer
que controla a situação
não minta agora, agora não

desde quando poesia é verdade?


desde quando verdade vicia?
eu tô esperando que você me diga
desd’aquele dia

rock’n’roll não é o que se pensa


o que se pensa não é o que se faz
o que se faz só faz sentido
quando vivemos em paz

desde quando?
até quando?

você insiste em dizer


que resiste à tentação
não minta agora, agora não

193
A VERDADE A VER NAVIOS
letra e música: gessinger 1988

na hora H no dia D
na hora de pagar pra ver
ninguém diz o que disse
(não era bem assim)

na hora H no dia D
na hora de acender a luz
ninguém dá nome aos bois
(tudo fica pra depois)

na hora H no dia D
ninguém paga pra ver
tudo fica pra trás
(querem mais é esquecer)
é muito engraçado
mas é impossível repetir que todos tenham os mesmos sonhos
o que só acontece uma vez e que o sonho nunca vire realidade
é impossível reprimir
o que acontece toda vez é muito engraçado
que alguém acorda que estejam do mesmo lado
porque já não aguenta mais os que querem iluminar
e a corda arrebenta no lado mais forte e os que querem iludir

é muito engraçado
que todo mundo tenha
armas capazes de tudo
de todo mundo acabar
no dia D na hora H

é impossível repetir
o que só acontece uma vez
é impossível reprimir
o que acontece toda vez
que chega a hora
de dizer chega a hora de dizer…
chega!

não pagar pra ver


a verdade a ver navios
onde já se viu?

194
NAU À DERIVA
letra e música: gessinger 1989 NAU À DERIVA

nau à deriva Me dou conta agora das


no asfalto ou em alto mar muitas referências ao mar. É
“perigo, perigo” um símbolo mais interessante
perdidos no espaço sideral se considerarmos que não sei
nadar. Não estou dizendo que
apocalipse now não sei nadar bem. Eu não sei
à deriva nadar nada! Nem sei se sei,
talvez um parto pois nunca tentei. Isso diz mais
talvez aborto sobre minha pessoa do que eu
destroços da nave-mãe gostaria de revelar.
Frequentemente sonho
apocalipse now
que estou nadando. No sonho,
à deriva
longe demais
é tão bom que chego a duvidar
do cais do porto de que, na vida real, nadar seja
perto do caos tão divertido.
Devo ser a única pessoa
meu coração é um porta-aviões do mundo que mandou tirar a
perdido no mar piscina de sua casa. Eu queria
esperando alguém pousar substituí-la por uma pequena
meu coração é um porto horta. O pátio vazio virou um
sem endereço certo monumento às coisas que
é um deserto em pleno mar ficam pelo meio do caminho.

195
ALÍVIO IMEDIATO ALÍVIO IMEDIATO
letra e música: gessinger 1989 letra e música : gessinger 1993

o melhor esconderijo o melhor esconderijo


a maior escuridão a maior escuridão
já não servem de abrigo já não servem de abrigo
já não dão proteção já não dão proteção
a Líbia bombardeada holofotes iluminam
a libido e o vírus a libido e o vírus
o poder, o pudor o álibi perdido
os lábios e o batom elo de ligação

que a chuva caia como uma luva não há nada de concreto


um dilúvio, um delírio entre nossos lábios
que a chuva traga alívio imediato só um muro de batom
e frases sem fim
que a noite caia de repente tudo se divide
caia tão demente quanto um raio todos se separam
que a noite traga alívio imediato uma república no pampa
com pompa e circunstância
há espaço pra todos um muro nos divide
há um imenso vazio uma grade nos separa
nesse espelho quebrado
por alguém que partiu o melhor esconderijo
a noite cai de alturas impossíveis a maior escuridão
quebra o silêncio já não servem de abrigo
parte o coração já não dão proteção
a noite cai
há um muro de concreto de alturas clandestinas
entre nossos lábios cai o aparelho
há um muro de Berlim o espelho vai ao chão
dentro de mim
tudo se divide, todos se separam que a chuva caia como uma luva
duas Alemanhas, duas Coreias um dilúvio, um delírio
tudo se divide, todos se separam que a chuva traga alívio imediato

que a chuva caia como uma luva que a noite caia de repente
um dilúvio, um delírio caia tão demente quanto um raio
que a chuva traga alívio imediato que a noite traga alívio imediato
e
que a noite caia de repente que os muros e as grades caiam
caia tão demente quanto um raio
que a noite traga alívio imediato

196
EM PAZ
letra e música: gessinger 1990 ALÍVIO IMEDIATO

há quem faça contas As músicas mudam na


há quem faça compras estrada. Nada tão radical
quando mais um ano chega ao fim quanto essas duas gravações.
Variações são mais frequentes
hora de escrever cartões na música do que na letra.
hora de rever os planos Arranjo, tom, andamento, tudo
mais um ano chega ao fim pode mudar. Às vezes dá um
branco no meio do show, por
que venha em paz uma fração de segundo fico
o ano que vem no ar: como é mesmo que
que venha em paz
toco essa música com esses
o que o futuro trouxer
caras?
cai a neve na vitrine
e a gente derrete ao sol
neste natal tropical

os cachorros da vizinhança vão latir


sob fogos de artifício
pensarão que é o fim
mas será só o início

que venha em paz


o ano que vem
que venha em paz
o que o futuro trouxer

há quem ignore o calendário


há quem fique de olho no horário
quando mais um ano chega ao fim

que venha em paz


o ano que vem
que venha em paz
o que o futuro trouxer

197
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ
letra: gessinger 1990 | música: licks

1
não importa se só tocam
o primeiro acorde da canção
a gente escreve o resto
em linhas tortas
nas portas da percepção

em paredes de banheiro
nas folhas que o outono leva ao chão somos um exército
em livros de stória o exército de um homem só
seremos a memória dos dias que virão no difícil exercício de viver em paz
(se é que eles virão)
somos um exército
não importa se só tocam o exército de um homem só
o primeiro verso da canção sem bandeiras
a gente escreve o resto sem fronteiras para defender
sem muita pressa
com muita precisão não interessa o que o bom senso diz
não interessa o que diz o rei
nos interessa o que não foi impresso se no jogo não há juiz
e continua sendo escrito a mão não há jogada fora da lei
escrito à luz de velas
quase na escuridão não interessa o que diz o ditado
longe da multidão não interessa o que o estado diz
nós falamos outra língua
não importa se só ouvem moramos em outro país
a primeira nota da canção
a gente escreve o resto somos um exército
e o resto é resto o exército de um homem só
é falsificação no difícil exercício de viver em paz

sangue falso, bang-bang italiano neste exército


suingue falso, turista americano no exército de um homem só
livres dessa stória todos sabem que tanto faz
nossa trajetória não precisa explicação ser culpado ou ser capaz
(e não tem explicação) tanto faz

198
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ

É título de um livro do
Moacyr Scliar. Já fazia muito
tempo que eu tinha lido quando
escrevi a letra. Confesso que
não sei se os dois têm algo a
ver além do título.
Importante para mim era
que as duas partes, junto com
Era um Garoto…, compu-
sessem um tríptico. A versão
d’Os Incríveis com aquele
sotaque paulista é imbatível
(quando ouço a rajada de me-
tralhadora da introdução vol-
2 to imediatamente à minha in-
somos kamikazes fância. Suspeito que guitarra e
incapazes de ir à luta baixo sejam influência da versão
somos quase livres de Mr. Tambourine Man do
(isto é pior do que a prisão) Byrds). Não acho que a nossa
gravação tenha acrescentado
somos um exército muita coisa. O segredo dela
o exército de um homem só está nas circunstâncias.
um bando de vampiros
que odeiam sangue

sem bandeira
sem fronteiras para defender
somos um exército
o exército de um homem só

nesse exército
no exército de um homem só
todos sabem que tanto faz
ser culpado ou ser capaz
tanto faz

199
O PAPA É POP
letra e música: gessinger 1990

todo mundo tá relendo o que nunca foi lido


todo mundo tá comprando os mais vendidos

qualquer nota
qualquer notícia
páginas em branco, fotos coloridas

qualquer nova Che Guevara na tua camiseta


qualquer notícia (o planeta na tua cama)
qualquer coisa que se mova é um alvo uma palavra escrita a lápis
ninguém tá salvo (eternidades da semana)

todo mundo tá revendo o que nunca foi visto qualquer nota


tá na cara, tá na capa da revista qualquer notícia
páginas em branco, fotos coloridas
qualquer nota
uma nota preta qualquer coisa quase nova
páginas em branco, fotos coloridas qualquer coisa que se mova é um alvo
ninguém tá salvo
qualquer rota um disparo
rotatividade um estouro
qualquer coisa que se mova é um alvo
ninguém tá salvo o papa é pop
um disparo... um estouro o papa é pop
o pop não poupa ninguém
o papa é pop o papa levou um tiro à queima-roupa
o papa é pop o pop não poupa ninguém
o pop não poupa ninguém
o papa levou um tiro à queima-roupa o presidente é pop
o pop não poupa ninguém um indigente é pop
nós somos pop também
o presidente é pop antigamente é pop
um indigente é pop atualmente é pop
nós somos pop também o pop não poupa ninguém
a minha mente é pop
a tua mente é pop toda catedral é populista
o pop não poupa ninguém é pop
é macumba pra turista
afinal, o que é rock’n’roll?
os óculos do John ou o olhar do Paul?

200
PERFEITA SIMETRIA
letra e música: gessinger 1990

toda vez que toca o telefone


eu penso que é você
toda noite de insônia
eu penso em te escrever

pra dizer que teu silêncio me agride


e não me agrada
ser um calendário do ano passado

pra dizer que teu crime me cansa


e não compensa
entrar na dança
depois que a música parou

toda vez que toca o telefone


eu penso que é você
toda noite de insônia
eu penso em te escrever

escrever uma carta definitiva


que não dê alternativa pra quem lê
te chamar de carta fora do baralho
descartar, embaralhar você teu maior defeito
e fazer você voltar talvez seja a perfeição
tuas virtudes
ao tempo em que nada nos dividia talvez não tenham solução
havia motivo pra tudo
tudo era motivo pra mais então
era perfeita simetria pega o telefone ou um avião
éramos duas metades iguais deixa de lado os compromissos marcados
perdoa o que puder ser perdoado
esquece o que não tiver perdão
e vamos voltar àquele lugar
vamos voltar

ao tempo em que nada nos dividia


havia motivo pra tudo
tudo era motivo pra mais
era perfeita simetria
éramos duas metades iguais

201
A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR
letra e música: gessinger 1990

no ar que se respira uma bala perdida


nos gestos mais banais encontra alguém perdido
em regras, mandamentos encontra abrigo
julgamentos, tribunais num corpo que passa por ali
na vitória do mais forte e estraga tudo, enterra tudo, pá de cal
na derrota dos iguais enterra todos na vala comum
a violência travestida faz seu trottoir de um discurso liberal

na procura doentia de qualquer prazer a violência travestida faz seu trottoir


na arquitetura metafísica das catedrais em anúncios luminosos
nas arquibancadas, nas cadeiras, nas gerais lâminas de barbear
a violência travestida faz seu trottoir armas de brinquedo
medo de brincar
na maioria silenciosa a violência travestida faz seu trottoir
orgulhosa de não ter vontade de gritar
(nada pra dizer) tudo que ele deixou
a violência travestida faz seu trottoir foi uma carta de amor
nos anúncios de cigarro pr’uma apresentadora
que avisam que fumar faz mal de programa infantil

a violência travestida faz seu trottoir nela ele dizia que já não era criança
em anúncios luminosos que a esperança também dança
lâminas de barbear como monstros de um filme japonês
armas de brinquedo
medo de brincar tudo que ele tinha
a violência travestida faz seu trottoir era uma foto desbotada
recortada de revista
no vídeo, idiotice intergaláctica especializada em vida de artista
na mídia, na moda, nas farmácias
no quarto de dormir, na sala de jantar tudo que ele queria
a morte anda tão viva era encontrá-la um dia
a vida anda pra trás (todo suicida acredita na vida
é a livre iniciativa depois da morte)
igualdade aos desiguais
na hora de dormir, na sala de estar tudo que ele tinha
a violência travestida faz seu trottoir cabia no bolso da jaqueta
a vida, quando acaba,
cabe em qualquer lugar
e a violência travestida faz seu trottoir

202
PRA SER SINCERO
letra: gessinger 1990 | música: licks

pra ser sincero


não espero de você mais do que educação
beijos sem paixão, crimes sem castigo
aperto de mãos, apenas bons amigos

pra ser sincero


não espero que você minta
não se sinta capaz de enganar
quem não engana a si mesmo

nós dois temos os mesmos defeitos


sabemos tudo a nosso respeito
somos suspeitos de um crime perfeito
mas crimes perfeitos não deixam suspeitos

pra ser sincero


não espero que você me perdoe
por ter perdido a calma
por ter vendido a alma ao diabo

um dia desses
não se renda às evidências num desses encontros casuais
não se prenda à primeira impressão talvez a gente se encontre
eles dizem com ternura talvez a gente encontre explicação
“o que vale é a intenção”
e te dão um cheque sem fundos um dia desses
do fundo do coração num desses encontros casuais
talvez eu diga, minha amiga
no ar que se respira pra ser sincero
nessa total falta de ar prazer em vê-la… até mais
a violência travestida faz seu trottoir
nós dois temos os mesmos defeitos
em armas de brinquedo sabemos tudo a nosso respeito
medo de brincar somos suspeitos de um crime perfeito
em anúncios luminosos mas crimes perfeitos não deixam suspeitos
lâminas de barbear
nos anúncios de cigarro
que avisam que fumar faz mal
a violência travestida faz seu trottoir

203
ANOITECEU EM PORTO ALEGRE
letra e música: gessinger 1990

na escuridão
a luz vermelha do walkman
sobre edifícios
a luz vermelha avisa aviões quinze pr’as duas, ruas escuras
nas esquinas que passaram quem tem o mapa? qual é a direção?
nas esquinas que virão
verde, amarelo, vermelho, duas e meia, castelos de areia
espelho retrovisor cabelos castanhos, estranhos sinais

anoiteceu em Porto Alegre já passa das três... pela última vez


de hoje em diante, só uísque escocês
na escuridão
só você ouve a canção cinco da manhã, nada diferente
eu vejo a luz vermelha do seu walkman chegamos finalmente ao dia de amanhã
sobre edifícios, no 30º andar
uma flor vermelha nasceu eu trago comigo os estragos da noite
nas esquinas que passaram escondo meu rosto entre escombros da noite
nas esquinas que virão
há sempre alguém correndo um ditador deposto
fugindo da “Hora do Brasil” marcas no rosto
um gosto amargo na boca
anoiteceu em Porto Alegre uma certeza, só uma certeza
da próxima vez, só uísque escocês
na zona sul existe um rio
nesse rio mergulha o sol duas fichas telefônicas
e arde fins-de-tarde de luz vermelha um telefone que não para de tocar
de dor vermelha ninguém atende
vermelho anil eu não entendo
‘tão fazendo onda
atrás do muro existe um rio ‘tão fazendo charme
que na verdade nunca existiu um alarme de carro que não para de tocar
mas arde fins-de-tarde de luz vermelha
de dor vermelha eu trago comigo os estragos da noite
vermelho anil eu trago comigo os estragos da noite

aconteceu à meia-noite
anoiteceu em Porto Alegre
aconteceu a noite inteira
aconteceu em Porto Alegre

204
ANOITECEU EM PORTO ALEGRE

uma canção no rádio Me perguntam muito so-


versão mal traduzida bre músicas relacionadas ao
um pastor exorciza no rádio de um táxi futebol e ao Grêmio. Não sou
uma certa impressão a pessoa certa para escrever
uma certeza imprecisa hinos. O estilo militar, moti-
quem não precisa de uma versão vacional, ou a brejeirice de um
uma tradução? samba exaltando o futebol arte
nunca me seduziram.
um ditador deposto, marcas no rosto Na gravação dessa mú-
um gosto amargo na boca sica há uma colagem usando
e a certeza de que o último dia de dezembro
a narração de um jogo. Mas
é sempre igual ao primeiro de janeiro
é o jogo do solitário, na noite,
eu trago comigo os estragos da noite
ouvindo rádio.
meu reino por um rosto pelo resto da noite

noites que passaram, noites que virão


noites que passamos lado a lado em solidão
noites de inverno, noites de verão
noites que viramos esperando o sol nascer
esperando amanhecer

amanheceu em Porto Alegre

recomeça tudo lá fora


“here comes the sun”
“the sun is the same in the relative way
but you are older”

recomeça tudo lá fora


nas esquinas, nas escolas
um litro de leite e meio quilo de pão

recomeça tudo lá fora


neguinho da Zero Hora vende manchetes
quinze pr’as sete da manhã

nada diferente
chegamos finalmente ao dia de amanhã
em Porto Alegre

205
A NOITE INTEIRA OLHOS IGUAIS AOS SEUS
letra e música: gessinger 1990 letra e musica: gessinger 1990

a gente poderia uma nuvem cobre o céu


conversar a noite inteira uma sombra envolve o seu olhar
mas amanhã é segunda-feira você olha ao seu redor
eu tenho contas a pagar e acha melhor parar de olhar
eu tenho que apagar a luz
eu quero estar dormindo são olhos iguais aos seus
quando o despertador tocar iguais ao céu ao seu redor
são olhos iguais aos seus
a gente poderia
conversar a noite inteira o que faz as pessoas
falando sério só de brincadeira parecerem tão iguais?
mas eu quero dormir um sono profundo o que faz as pessoas
eu quero estar em outro mundo parecerem tão iguais?
quando o sol raiar por que razão
essa igualdade se desfaz?
a gente poderia qual é a razão
conversar a noite inteira desse disfarce no olhar?
poderia até deixar a luz acesa
a noite inteira o que faz as pessoas
mas, por favor, esqueça parecerem tão iguais?
eu quero tirar da cabeça o que fazem as pessoas
tudo que mereça atenção para serem tão iguais?

a gente pode conversar


sobre o que há de mais sagrado
ao mesmo tempo
cometer os maiores pecados
a gente pode falar de liberdade
sem sair da prisão
pode falar sobre o céu
sem tirar os pés do chão

206
QUARTOS DE HOTEL
letra e música: gessinger 1991

tô num lugar comum a cada cena as paredes mudam de cor


onde qualquer um se esconde no quarto quase escuro
pra fazer a frase feita à luz apenas do aparelho televisor
e sentir os efeitos colaterais espelho retrovisor futuro

tô em lugar nenhum a duras penas eu apago a televisão


onde qualquer um se esconde o quarto fica quase escuro
pra fazer a frase feita iluminado apenas pela letra “H”
contrabando de uma seita oriental da palavra HOTEL escrita em neon

não tenho estado muito em casa amanhã numa cidade diferente


ultimamente não haverá diferenças no ar
nem me lembro quanto tempo faz as noites passarão do mesmo jeito
aprendi a não olhar pra trás as estrelas estarão no mesmo lugar

eu conto as horas que passam como se chama essa cidade?


eu conto estrelas no céu como se chama atenção
na solidão das noites sem graça de uma cidade que morre
nos quartos de hotel enquanto a gente mente que não?

como se chama essa cidade? meias verdades, noites inteiras


como se chama atenção bebendo bobagens, pensando besteiras
de uma cidade que dorme sem entender o que sempre acontece
enquanto a gente, infelizmente, não? nos quartos de hotel

bobeiras na noite, noites inteiras a cada cena as paredes mudam de cor


pensando bobagens, bebendo besteiras no quarto quase escuro
sem companhia, sem companheira à luz apenas do aparelho televisor
nos quartos de hotel espelho retrovisor futuro

a duras penas eu apago a televisão


o quarto fica quase escuro
iluminado apenas pela letra “H”
da palavra HOTEL escrita em neon
pra chamar a atenção
de quem passa na rua
contando as horas que passam
contando estrelas no céu

207
O SONHO É POPULAR
PIANO BAR letra e música: gessinger 1991

PIANO BAR e POUCA a pampa é pop


VOGAL compartilham a mes- o país é pobre
ma imagem: uma música ou- é pobre à pampa
vida no rádio de um táxi. o PIB é pouco
Ouvir uma música no rádio o povo pena mas não para
já é um lance aleatório. Ouvir poesia é um porre
no rádio de um táxi, sem o
controle das estações, é mais o poder, o pudor (várias variáveis)
aleatório ainda. o pão, o peão (grana, engrenagens)
Em PIANO BAR, a cada a pátria à flor da pele pede passagem
(p... q... p...)
show, mudo a música que es-
taria tocando no táxi. Nas gra-
o sonho é popular
vações, já foi Julio Iglesias, eu li isso em algum lugar
Willie Nelson e Bob Marley. Em se não me engano é Ferreira Gullar
POUCA VOGAL, os dois irmãos falando da arquitetura de um Oscar
são Kleiton e Kledir. o concreto paira no ar
Pelo bem da cronologia, o mais aqui do que em Chandigarh
primeiro rádio de táxi que toca o sonho é popular
é o de ANOITECEU EM PORTO
ALEGRE. Madrugada adentro, uma página arrancada
uma canção mal traduzida e um segredo mantido
um pastor que exorciza. em passagens subterrâneas
sob a praça da matriz

uma stória mal contada


uma mentira repetida
até virar verdade
uma página virada

uma página subterrânea


um segredo arrancado
em passagens mal contadas
até virar verdade
a verdade a ver navios
(o sonho é) uma mentira repetida

um golpe em 61
um golpe qualquer
num lugar-comum

208
PIANO BAR
letra e música: gessinger 1991

o que você me pede eu não posso fazer


assim você me perde, eu perco você
como um barco perde o rumo
como uma árvore no outono perde a cor

o que você não pode eu não vou lhe pedir toda vez que falta luz
o que você não quer eu não quero insistir toda vez que algo nos falta
diga a verdade, doa a quem doer (alguém que parte e não volta)
doe sangue e me dê seu telefone o invisível nos salta aos olhos
um salto no escuro da piscina
todos os dias eu venho ao mesmo lugar
às vezes fica longe, difícil de encontrar o fogo ilumina muito
mas quando o neon é bom por muito pouco tempo
toda noite é noite de luar em muito pouco tempo
o fogo apaga tudo
no táxi que me trouxe até aqui tudo um dia vira luz
Julio Iglesias me dava razão toda vez que falta luz
“as últimas do esporte, o invisível nos salta aos olhos
hora certa, crime e religião”
na verdade, “nada” ontem à noite eu conheci uma guria
é uma palavra esperando tradução já era tarde, era quase dia
era o princípio
num precipício era o meu corpo que caía

ontem à noite, a noite tava fria


tudo queimava, nada aquecia
ela apareceu, parecia tão sozinha
parecia que era minha aquela solidão

eu conheci uma guria que eu já conhecia


de outros carnavais, com outras fantasias
ela apareceu, parecia tão sozinha
parecia que era minha aquela solidão

no início era um precipício


(um corpo que caía)
depois virou um vício
foi tão difícil acordar no outro dia
ela apareceu, parecia tão sozinha
parecia que era minha aquela solidão

209
MUROS & GRADES
MUROS E GRADES letra: gessinger 1991 | música: licks

Talvez por escrever a nas grandes cidades


maior parte das canções so- no pequeno dia a dia
zinho, quando pinta possi- o medo nos leva tudo
bilidade de parceria, sempre sobretudo a fantasia
priorizo. É mais estimulante,
pois as limitações são maiores. então erguemos muros
Quando Augusto me pas- que nos dão a garantia
sou o riff de MUROS E GRA- de que morreremos cheios
DES, achei legal, mas não de uma vida tão vazia
me veio nenhuma ideia para
nas grandes cidades
a letra. Eu tinha outra música
de um país tão violento
pronta cuja letra me parecia
os muros e as grades
ter mais a ver com o novo riff. nos protegem de quase tudo
Fiz o transplante. Com nova
letra, a música doadora virou mas o quase tudo
9051, do disco Minuano. quase sempre é quase nada
e nada nos protege
de uma vida sem sentido

um dia súper
uma noite súper
uma vida superficial
entre cobras
entre as sobras da nossa escassez

um dia súper
uma noite súper
uma vida superficial
entre sombras
entre escombros da nossa solidez

210
nas grandes cidades meninos de rua
de um país tão surreal delírios de ruína
os muros e as grades violência nua e crua
nos protegem de nosso próprio mal verdade clandestina

levamos uma vida delírios de ruína


que não nos leva a nada delitos & delícias
levamos muito tempo a violência travestida
pra descobrir faz seu trottoir
que não é por aí
em armas de brinquedo
não é por nada não medo de brincar
não, não, não pode ser em anúncios luminosos
é claro que não é! lâminas de barbear
será?
um dia súper
uma noite súper
uma vida superficial
entre cobras
entre escombros da nossa solidez

uma voz sublime


uma palavra sublime
um discurso subliminar
entre sombras
entre sobras da nossa escassez

viver assim é um absurdo


como outro qualquer
como tentar o suicídio
ou amar uma mulher
viver assim é um absurdo

211
NÃO É SEMPRE
letra e música: gessinger 1991

às vezes parece que eu não tenho medo


às vezes parece que eu não tenho dúvidas
às vezes parece que eu não tenho
nenhuma razão pra chorar

você esquece que eu não sou de ferro


e até o ferro pode enferrujar
você esquece que não sou de aço
e faço questão de provar:
olhe pra mim enquanto eu me quebro não queira estar no meu lugar
não queira estar em lugar nenhum
às vezes parece que eu tenho muito medo às vezes tudo muda
às vezes parece que eu só tenho dúvidas e continua tudo no mesmo lugar
às vezes parece que eu não tenho
nenhuma chance de escapar não queira estar no meu lugar
não queira estar em lugar nenhum
acontece que eu não nasci ontem às vezes uma prece ajuda
e até hoje sempre escapei com vida às vezes não adianta rezar
pra quem duvida de tudo que eu faço
eu faço questão de mostrar: já desisti de ser uma pessoa só
olhe pra mim enquanto desapareço no ar já desisti de ser uma multidão
já não ponho todas as fichas na mesa
agora, jogo algumas no chão

às vezes tudo
às vezes nada
às vezes tudo ou nada
às vezes 50%
às vezes a todo momento
às vezes nunca
como tudo na vida
não é sempre

às vezes de bem com a vida


às vezes de mau humor
às vezes sem saída
às vezes seja onde for

não é sempre, não é sempre


como tudo na vida, nunca é sempre

212
NUNCA É SEMPRE ANDO SÓ
letra e música: gessinger 1991 letra e música: gessinger 1991

eu já estive a fim ando só


eu já não tô a fim pois só eu sei
a gente vive assim pra onde ir
um dia aqui, o outro ali por onde andei

aqui onde ninguém nos vê ando só


ali no rádio, na tv nem sei por quê
a gente vive assim não me pergunte
sabendo de tudo o que eu não sei
sem saber por quê
pergunte ao pó
só tô começando desça ao porão
e já cheguei ao fim siga aquele carro
a gente vive assim ou as pegadas que eu deixei
sempre acabando o que não tem fim
acabando o que não tem fim pergunte ao pó
querendo o que não tem por onde andei
fim há um mapa dos meus passos
nos pedaços que eu deixei

desate o nó que te prendeu


a uma pessoa que nunca te mereceu
desate o nó que nos uniu
num desatino um desafio

ando só
como um pássaro voando
ando só
como se voasse em bando
ando só
pois só eu sei andar
sem saber até quando
ando só

213
DESCENDO A SERRA
SAMPA NO WALKMAN letra e música: gessinger 1991

Não tive a pretensão ‘tô descendo a serra


de me meter no diálogo de cego pela cerração
Caetano Veloso com São salvo pela imagem
Paulo. É uma homenagem. pela imaginação
Aos dois. de uma bailarina no asfalto
SAMPA NO WALKMAN é fazendo curvas sobre patins
irmã de PAMPA NO WALKMAN
e tem o mesmo riff de ‘tô descendo a serra
QUARTOS DE HOTEL. cego pela neblina
Uma corda de violão po- você nem imagina
como tem curvas esta estrada
de vibrar sem ser tocada, se
ela parece uma serpente morta
soar a mesma nota vinda de
às portas do paraíso
outra fonte. Vibra por sim-
patia. Gosto de pensar que o inferno ficou para trás
isso também acontece com com as luzes lá em cima
canções, quadros, poemas. o céu não seria rima
Podem formar interessantes nem seria solução
acordes.
um dia de cão
um mês de cães danados
ordem no caos
olhos nublados
um cão anda em círculos
atrás do próprio rabo

um dia de cão
um mês de cães danados
ordem no caos
olhos cansados
não há nada de novo
no ovo da serpente

é sempre a mesma stória


(é tão difícil partir)
é sempre a mesma stória
(é impossível ficar)
é sempre mais difícil dizer adeus
quando não há nada mais pra dizer

214
SAMPA NO WALKMAN
letra e música: gessinger 1991

este sou eu
parado na esquina
(o barulho termina, começa a canção)
a mesma esquina em outra canção

é a verdade
a-ver-a-cidade este sou eu
alguma coisa acontece no meu coração parado na esquina
a-ver-a-cidade ouvindo a canção
estas são elas
tuas meninas deuses da chuva
nordestinas erundinas demônios da garoa
tua mais completa contradição garotas-propaganda além dos outdoors

esta São Paulo FIESP


são tantas cidades favelas
nunca tantas quantas gostaria de ser ouro & ferro velho
surfista ferroviário
ouvindo Sampa no walkman (o contrário do contrário da contradição)
vidro, concreto e metal
ouvindo Sampa no walkman esta São Paulo
duvido de qualquer cartão-postal são tantas cidades
nessas cidades eu vejo a canção

ouvindo Sampa no walkman


vidro, concreto e metal
ouvindo Sampa no walkman
duvido de qualquer cartão-postal
ouvindo Sampa no walkman
samples de sons audiovisuais
ouvindo Sampa no walkman
na ponte aérea, no metrô
ouvindo Sampa no walkman
“a walk on the wild side”

este sou eu
na esquina de novo
tudo é tão novo quanto esta canção
será que alguém presta atenção?

215
NINGUÉM = NINGUÉM
PAMPA NO WALKMAN letra e música: gessinger 1992

Adoro milongas. A grava- há tantos quadros na parede


ção dessa foi especialmente há tantas formas de ver o mesmo quadro
dolorida. Durante a gravação, há tanta gente pelas ruas
vários cabos iam de uma sala a há tantas ruas e nenhuma é igual a outra
outra, fazendo com que ti- (ninguém = ninguém)
véssemos que usar muita me espanta que tanta gente sinta
força para fechar a porta do (se é que sente) a mesma indiferença
estúdio. São aquelas portas
duplas, enormes, para isola- há tantos quadros na parede
mento acústico. Só faltava há tantas formas de ver o mesmo quadro
há palavras que nunca são ditas
gravar meu violão nessa mú-
há muitas vozes repetindo a mesma frase
sica quando os cabos foram
(ninguém = ninguém)
retirados. Sem me dar conta de me espanta que tanta gente minta
que não era mais necessário, (descaradamente) a mesma mentira
puxei a porta com toda a força,
e acabei esmagando um dedo. todos iguais
Que dor! Eram as últimas todos iguais
horas no estúdio, o jeito foi gra- mas uns mais iguais que os outros
var. Até o contato da palheta na
corda doía. Acabei usando um há pouca água e muita sede
pedaço de papelão por ser mais uma represa, um apartheid
macio. (a vida seca — os olhos úmidos)
entre duas pessoas, entre quatro paredes
tudo fica claro: ninguém fica indiferente
(ninguém = ninguém)
me assusta que justamente agora
todo mundo (tanta gente) tenha ido embora

todos iguais
todos iguais
mas uns mais iguais que os outros

o que me encanta é que tanta gente


sinta (se é que sente)
ou minta (desesperadamente)
da mesma forma
todos iguais
tão desiguais

216
PAMPA NO WALKMAN
letra e música: gessinger 1992

se em uma fração nos parecêssemos


se algum som nos fosse comum
se a comunhão nos abrigasse
da mesma noite, mesma chuva
se me coubesses feito luva
se eu procurasse a tua mão

eu ficaria aqui pra sempre


sempre seria diferente
cada dia a dia amanhecer

se uma razão nos parecesse


a natureza inevitável
qual fronteiras separando
estes estados nada estáveis
quando eu procurasse a tua mão
encontraria a nossa gente

e ficaria ali pra sempre


sempre seria diferente eu já fui cego
cada cara a cara reconhecer já vi de tudo
já disse tudo e fiquei mudo
se meu passado fosse outro já fui tão pouco e fui demais
se fosse outro o presente
se o futuro nos trouxesse eu estive longe
o que faltava antigamente longas tardes à procura
eu cantaria as canções a loucura esteve perto
que se fazia de repente eu estive longe dela
longe da cidade
sacro sino compunha cidades por toda parte
minha sina, tua unha
carne, sangue & pus sempre estive por perto
por pouco Porto Alegre
sinto muito blues por certo estive louco de satisfação
sinto muito blues
ouvindo pampa no walkman
eu ficaria ali pra sempre
sempre seria diferente
cada dia a dia renascer

217
A CONQUISTA DO ESPAÇO
letra e música: gessinger 1992

costas quentes (sempre em frente) — lá do alto deve ser esquisito...


frente fria (sempre em frente) — aqui de cima até que é normal
sangue quente (sempre em frente) — minha cabeça pesa quase dois séculos...
demente sangria (sempre, sempre) — meu corpo flutua, peso nenhum!

passo a passo à eternidade cara a cara (a conquista do espelho)


um passo em falso: a cara no chão passo a passo (a conquista do espaço)
um grande passo pra humanidade
um pequeno veneno pra cada um de nós — lá do alto deve ser bonito!
— aqui de cima até que é normal...
— lá do alto deve ser bonito! — minha cabeça presa entre dois mundos...
— aqui de cima é muito legal... — meu corpo flutua: mundo nenhum!
— no asfalto meus tênis derretem!
— aqui em cima, nem frio nem calor... a mídia
a mediocracia
bola nas costas (sempre em frente) muito Zorro e nenhum Sargento Garcia
atrás vem gente (sempre em frente) francamente!
sempre alerta (sangue frio)
sempre em frente (sempre, sempre) há muito já não somos como já fomos:
todos iguais
passo a passo iguais aos poucos que ainda andam
pégasus iguais a tantos que andam loucos
pegadas iguais a loucos que ainda andam
pelo espaço a conquistar iguais a santos que andam loucos de satisfação

bola de neve morro abaixo ouvindo pampa no walkman


sempre em frente descubro um passado que não me pertence
pra cima ouvindo pampa no walkman
pro alto 3rd world music, mito e nonsense
ouvindo pampa no walkman
pertenço a um país que não me pertence
ouvindo pampa no walkman
não sou gaúcho: sou porto-alegrense
francamente!

218
A CONQUISTA DO ESPELHO NO INVERNO FICA TARDE + CEDO
letra e música: gessinger 1992 letra e música: gessinger 1992

eu roubei esses versos escuridão


como quem rouba pão noite liquefeita
com a mão urgente tudo toma forma
com urgência no coração do corpo que se deita na escuridão

eu contei stórias escuridão


inventei vitórias nenhum olhar aceita
como quem tem preguiça tudo se transforma
como quem faz justiça numa cama desfeita na escuridão
com as próprias mãos
escuridão
eu roubei quase tudo que eu tenho hora da colheita
só pra chamar a atenção pra quem semeou vento
e quando cheguei em casa numa cama desfeita na escuridão
vi que lá morava um ladrão um corpo que se deita
um corpo em tempestade
eu perdi quase tudo que eu tinha agora já é tarde
a paz, a paciência,
a urgência que me levava pela mão solidão
hora da colheita
uma noite interminável pra quem semeou o vento
numa cela escura num corpo que se deita na solidão
sentido! senhores! de uma cama desfeita
censores sem poder de censura um corpo em tempestade
agora já é tarde
o ruído dos motores
numa sala de torturas (no inverno fica tarde + cedo)
senhoras & senhores
censores sem talento sensorial só depois de perder
você descobre que era um jogo
nunca mais saiu da minha boca um jogo que não acaba nunca
o gosto amargo da palavra traição nunca acaba empatado
nunca mais saiu da minha boca
nenhum elogio a nenhuma paixão se foi um jogo, você ganhou:
eu perdi a direção
uma noite mal dormida se foi um sonho, se foi o céu
um país em maus lençóis eu não sei
sem sono, sem censura eu que não sei perder
100% de nada não é nada: perdi o sono na escuridão
é muito pouco

219
PARABÓLICA
letra: gessinger 1992 | música: licks

ela para
e fica ali parada
olha-se para nada
(paraná)

fica parecida
(paraguaia)
para-raios em dia de sol
só para mim

prenda minha parabólica


princesinha parabólica
Clara no show de gravação do
o pecado mora ao lado
CD/DVD Novos Horizontes.
o paraíso paira no ar

... pecados no paraíso ...

se a TV estiver fora do ar
quando passarem
os melhores momentos da sua vida
pela janela alguém estará
de olho em você
(paranoia)

POSE (ANOS 90) prenda minha parabólica


princesinha parabólica
paralelas que se cruzam
Para cantar com Clara,
em Belém do Pará
limei uma enorme parte da
letra. Um tempo depois, o texto longe, longe, longe
integral voltou ao arranjo, na (aqui do lado)
forma de um rap. paradoxo: nada nos separa

eu paro
e fico aqui parado
olho-me para longe
a distância não separabólica

220
POSE (ANOS 90)
letra e música: gessinger 1992

vamos passear depois do tiroteio


vamos dançar num cemitério de automóveis
colher as flores que nascerem no asfalto
vamos todo mundo
tudo que se possa imaginar não é pose
não é positivismo
vamos duvidar de tudo que é certo quanto pior, pior
vamos namorar à luz do pólo petroquímico não é pose
voltar pra casa num navio fantasma no pasarán!
vamos todo mundo não passaremos por isso
ninguém pode faltar
tô fora, voodoo, ranço, baixo astral
se faltar calor, a gente esquenta não vou perder meu tempo
se ficar pequeno, a gente aumenta brincando de ser mau
se não for possível, a gente tenta
não vou viver pra sempre
vamos ficar acima nem morrer a toda hora
velejar no mar de lama como rasgos pré-fabricados
se faltar o vento, a gente inventa num novo-velho blue-jeans
vamos esquecer o dia da semana
tem que ser agora: anos 90 morte anunciada, direitos autorais
pela tv a cabo uma baleia acaba de nascer
vamos remar contra a corrente nascer pode ser uma passagem violenta
desafinar do coro dos contentes o futuro se impõe, o passado não se aguenta
se for impossível
se não for importante meninos de engenho, santa ingenuidade
mesmo assim a gente tenta santíssima trindade: sexo, drogas & rock’n’roll

é pura pose
pois é
pós-qualquer coisa
e o pior não é isso

é pura pose
é dose
posteridade
e o pior não é isso

221
TÚNEL DO TEMPO
letra e música: gessinger 1992

te vejo infinita
invejo quem grita
o fim do silêncio:
canção que não acabou há vida na terra
há chances de erro
interna luz em fuga não há nada que possa nos proteger
lanterna sangra e suga
pra ouvir melhor: acontece a qualquer hora
melhor apagar a luz acontece a qualquer um
não há nada de errado com a gente
deve ser o que chamam
Canto Do Cisne deve ser o que chamam
44 minutos do 2º tempo Telhado De Vidro
chuva de granizo
pra frente é que se anda vitrines & vitrais
para a praça, ver a banda passar
se você for, eu vou atire a 1ª pedra quem nunca atirou
se você vier, eu estou no mesmo lugar espere pelo sangue
que o bumerangue despertou
pra frente é que se anda
na rua a banda continua a tocar atire a 2ª pedra, a 3ª, o milhar
sem você eu fico longe na idade das pedras que não criam limo
com você tudo volta ao lugar os Flintstones continuam a rolar

deve ser o que chamam


Túnel Do Tempo
ano 2000 era futuro
há pouco tempo atrás

há uma luz no fim do túnel


e não é um trem na contramão
(eterna luz em fuga)
há um tempo certo para tudo
para tudo uma razão (ou não)

há uma luz no fim do túnel


chama que nos chama, nos atrai
(lanterna sangra e suga)
é a luz do fim do túnel do tempo
fogo fátuo, falta de ar

222
PROBLEMAS... SEMPRE EXISTIRAM
letra e música: gessinger 1992

não fui eu
não foi você
nem foi a máquina de escrever
que matou a poesia

não foram os Deuses


nem foi a morte de Deus
não foi o jabá da academia
que matou a poesia

o fim de semana
o fim do planeta
a palavra “sarjeta” no fim do poema
problemas... sempre existiram

esteroides anabolizantes
(samplers)
dicionários de rima
o medo do fim no final das contas
problemas... sempre existiram por que você não soa quando toca?
sempre existirão por que você não sua quando ama?
ninguém derrama sangue
a última palavra é a mãe de todo o silêncio quando perde guerras de fliperama
façamos silêncio para ouvir o último suspiro
descanse em paz a mãe de todas as batalhas por que você não sua quando toca?
por que você não soa quando ama?
a última palavra é a mãe de todo o silêncio por que você não soa quando toca?
descanse em paz, dê o último suspiro por que você não sua quando ama?
façamos silêncio para ouvir o último poema
as mentiras da arte são tantas
são plantas artificiais
artifícios que usamos para sermos
(ou parecermos) mais reais

um pedaço do paraíso
uma estação no inferno
uma soma muito maior do que as partes:
as mentiras da arte

o último poema

223
CHUVA DE CONTAINERS
letra e música: gessinger 1992

falta pão
o pão nosso de cada dia
sobra pão
o pão que o diabo amassou

triste vocação
a nossa elite burra
se empanturra de biscoito fino

somos todos nordestinos


passageiros clandestinos
dos destinos da nação

triste destino
engolir sem mastigar
chuva de containers
entertainers no ar

triste vocação a nossa


(elite burra)
se empanturra de biscoito fino

triste sina “ouviram do ipiranga


América Latina as margens plácidas
não escaparemos do vexame os trovões da chuva ácida
não caberemos todos em Miami a acidez oceânica
ame-o ou deixe-o de uma laranja mecânica”

falta pão
o pão nosso de cada dia
sobra pão
o pão que o diabo amassou

falta circo
no mundo que nos cerca
sobra circo
é só pular a cerca

sobra circo, falta pão


falta circo, sobra pão

224
?QUANTO VALE A VIDA?
letra e música: gessinger 1993

quanto vale a vida de qualquer um de nós?


quanto vale a vida em qualquer situação?
quanto valia a vida perdida sem razão?
num beco sem saída, quanto vale a vida?

são segredos que a gente não conta


contas que a gente não faz
quem souber quanto vale
fale em alto e bom som

quantas vidas vale o tesouro nacional?


quantas vidas cabem na foto do jornal?
às sete da manhã, quanto vale a vida?
depois da meia-noite?
antes de abrir o sinal?

são segredos que a gente não conta


faz de conta que não quer nem saber
quem souber, fale agora
ou cale-se para sempre

quanto vale a vida acima de qualquer supeita?


quanto vale a vida debaixo dos viadutos?
quanto vale a vida perto do fim do mês?
quanto vale a vida longe de quem nos faz viver? nas garras da águia
nas asas da pomba
são segredos que a gente não conta em poucas palavras
contas que a gente não faz no silêncio total
coisas que o dinheiro não compra no olho do furacão
perguntas que a gente não faz: na ilha da fantasia
quanto vale a vida? quanto vale a vida?

quanto vale a vida na última cena


quando todo mundo pode ser herói?
quanto vale a vida quando vale a pena?
quanto vale quando dói?

são coisas que o dinheiro não compra


perguntas que a gente não faz
quanto vale a vida?

225
REALIDADE VIRTUAL
REALIDADE VIRTUAL letra e música: gessinger 1993

Artistas instintivos nem é preciso fé cega e pé atrás


sempre (quase nunca) enxer- olho vivo, faro fino
gam no que fazem mais do e tanto faz
que os outros.
Já ouvi interpretações é preciso saber de tudo
bem interessantes sobre a e esquecer de tudo
par te que fala do Cristo en- fé cega e pé atrás
coberto, prédios de cabeça
para baixo e refletores do tá legal, eu desisto:
Jockey. Para mim, foi só uma tudo já foi visto
olhos atentos a qualquer momento
descrição literal do que vi da
é preciso acreditar
janela do meu apartamento:
paisagem refletida na Lagoa tudo bem, eu acredito:
Rodrigo de Freitas. A outra tudo já foi dito
janela é a TV, com suas olhos atentos a todo movimento
guerras por controle remoto e é preciso duvidar
tele-evangelistas.
viver não é preciso
e nem sempre faz sentido
é preciso muito mais
fé cega e pé atrás

a neblina encobre o Cristo


e a lagoa se ilumina
com edifícios de cabeça para baixo
e refletores do Jockey Club

na outra janela o sol sempre brilha


o risco é calculado
videoguerra
videoreinodoscéus

é preciso fé cega e pé atrás


olho vivo, faro fino
e tanto faz

é preciso saber de tudo


e não pensar em nada
fé cega e pé atrás

226
ÀS VEZES NUNCA
letra e música: gessinger 1993

‘tô sempre escrevendo cartas


que nunca vou mandar
pra amores secretos
revistas semanais
e deputados federais

às vezes nunca sei


se “às vezes” leva crase
às vezes nunca sei às vezes não entendo minha própria letra
em que ponto acaba a frase minha própria caneta me trai
.,;?!... às vezes não entendo o que você quer dizer
quando fica calada
você sempre soube (eu não sabia)
toda frase acaba num riso de autoironia você sempre soube (eu não sabia)
você sempre soube (eu não sabia) quando a frase acaba o mundo silencia
toda tarde acaba com melancolia às vezes não entendo onde você quer chegar
quando fica parada
e se eu escrevesse “sem” com “s”
ou escrevesse “cem” com “c”? é como ficar esperando
por acaso faria alguma diferença? cartas que nunca vão chegar
que diferença faria? não vão xegar com “x”
não vão chegar com “ch”
o que você faria no meu lugar
se tivesse pr’aonde ir e não tivesse que esperar? é como ficar esperando
o que você faria se estivesse no meu lugar horas que custam a passar
se tivesse que fugir e não pudesse escapar? enquanto ficamos parados
andando pra lá e pra cá
você sempre soube que eu não conseguiria
quando a frase acaba tarde tudo fica pr’outro dia é como ficar desesperado
você sempre soube (eu não sabia) de tanto esperar
toda tarde acaba em melancolia olhando pela janela
até onde a vista alcançar

é como ficar esperando


cartas que nunca vão chegar
é como ficar relendo velhas cartas
até a vista cansar

você sempre soube - eu não sabia


você sempre soube - eu não sabia

227
MAPAS DO ACASO
MAPAS DO ACASO letra e música: gessinger 1993

Ouvi essa música inú- não peça perdão


meras vezes enquanto gravava, a culpa não é sua
escolhia o melhor take, mi- estamos no mesmo barco
xava e masterizava. Só depois e ele ainda flutua
de pronto o CD, me dei conta de
que, em vez de cantar “no” mar, não perca a razão
em marte, em qualquer parte, ela já não é sua
eu havia cantado “em” mar, em onda após onda após onda
marte, em qualquer parte. o barco ainda flutua
Como pode ter passado ba-
ao sabor do acaso
tido o engano? Será que as mú-
apesar dos pesares
sicas, mesmo depois de impres-
ao sabor do acaso
sas num suporte, podem mu- flutua
dar, como o retrato de Dorian
Gray? Será que, em algum ponto então, preste atenção:
do caminho, a palavra perde o o mar não ensina
significado e vira só uma nota ele insinua
musical, dando na mesma cantar estamos no mesmo barco
“no” ou “em”? sob a mesma lua
Acredito piamente que ob-
jetos como canetas e, principal- no mar
mente, tampas de canetas, em marte
possam desaparecer, ir para em qualquer parte
outro mundo. No meu estú- estaremos sempre sob a mesma lua
dio, sempre acontece. Deve
ao sabor das correntes
haver um universo paralelo
tão fortes quanto o elo mais fraco
entulhado de canetas minhas,
ao sabor da corrente
onde toca a versão certa de
sob a mesma lua
Mapas do Acaso.
Estou curioso para saber âncora
quais palavras vão sumir ou apa- vela
recer depois que este livro for qual me leva?
lançado. Por via das dúvidas, se qual me prende?
seu time for campeão numa tar-
de de domingo, melhor não ver a mapas e bússola
repetição do gol na TV, domingo sorte e acaso
à noite. Talvez a bola não entre! quem sabe do que depende?

228
SIMPLES DE CORAÇÃO HORA DO MERGULHO
letra e música: gessinger 1995 letra e música: gessinger 1995

volta pra casa feche a porta


me traz na bagagem esqueça o barulho
tua viagem sou eu feche os olhos
novas paisagens tome ar
destino, passagem é hora do mergulho
tua tatuagem sou eu eu sou moço, seu moço
e o poço não é tão fundo
casa vazia, luzes acesas
só pra dar a impressão Super-Homem não supera a superfície
cores e vozes nós mortais viemos do fundo
conversa animada eu sou velho, meu velho
é só a televisão tão velho quanto o mundo

já perdemos muito tempo eu quero paz


brincando de perfeição uma trégua
esquecemos o que somos do lilás-neon-Las-Vegas
simples de coração profundidade: 20.000 léguas

volta voando, vinda do alto “se queres paz, te prepara para a guerra”
derrete o chumbo do céu se não queres nada, descansa em paz
antes que eu saia pela tangente “Luz!” pediu o poeta
no giro do carrossel (últimas palavras, lucidez completa)
depois: silêncio
falta uma volta
ponteiros parados esqueça a luz
tudo dança em torno de ti respire o fundo
volta voando, fim da viagem eu sou um déspota esclarecido
bem-vinda à vida real nessa escura e profunda mediocracia

já perdemos muito tempo


brincando de perfeição
agora é bola pra frente
agora é bola no chão

já brincamos muito tempo


até perder a direção
na santa paz de Deus
no mais perfeito caos

simples de coração

229
LANCE DE DADOS
ILEX PARAGUARIENSIS letra e música: gessinger 1995

Uma atividade sem ob- daqui não tem mais volta


jetivo prático, centrada em pra frente é sem saber
si mesma, que nos acom- pequenos paraísos
panhe vida afora, com regu- riscos a correr
laridade, acaba sendo um
ótimo espelho. Placas mos- os deuses jogam pôquer
trando os quilômetros da e bebem no saloon
estrada. doses generosas de BR 101
Jogar tênis e tomar chi-
marrão são isso, para mim. tá escrito há 6.000 anos
em parachoques de caminhão
Em princípio, seriam ativi-
atalhos perigosos
dades para socializar, mas um
feito frases feitas
paredão e uma cuia pe-
quena podem transformá-las os deuses dão as cartas
em cerimônias solitárias. o resto é com você
Quase ioga.
no fundo tudo é ritmo
a dança foge do salão
invade a autoestrada
do átomo ao caminhão

o fim é puro ritmo


o último suspiro
é purificação

os deuses dão as costas


agora é só você
os deuses dão as cartas
agora é só você
querer

230
ILEX PARAGUARIENSIS
letra e música: gessinger 1995

hoje eu acordei mais cedo


tomei sozinho o chimarrão
procurei a noite na memória
procurei em vão

hoje eu acordei mais leve


nem li o jornal
tudo deve estar suspenso
nada deve pesar

já vivi tanta coisa


tenho tantas a viver
tô no meio da estrada
nenhuma derrota vai me vencer

hoje eu acordei livre


não devo nada a ninguém
não há nada que me prenda aqui

ainda era noite


esperei o dia amanhecer
como quem aquece a água
sem deixar ferver

eu acordei
agora eu sei viver no escuro
até que a chama se acenda nunca me deram mole, não
melhor assim
verde... quente... erva não sou a fim de pactuar
ventre... dentro... entranhas sai pra lá
mate amargo noite adentro
estrada estranha se pensam que tenho as mãos vazias e frias
se pensam que as minhas mãos estão presas
surpresa: mãos e coração, livres e quentes
chimarrão e leveza

ilex paraguariensis
ilex paraguariensis
relax
agora, paciência

231
LADO A LADO
letra: gessinger 1995 | música: casarin

não me pergunte em que dia eu nasci


não me pergunte em que cidade eu nasci
esqueça as curvas da estrada de Santos
se tu quiseres saber quem eu sou

me dá a tua mão
vem viver, vem lutar
lado a lado

desarme as armadilhas
não me peça explicação
o filme favorito
Com Francisco, meu sobrinho,
time do coração
gravando a demo de Lado a Lado.
o lugar mais esquisito
Escrevi a letra pensando nele.
onde já fiz uma canção

esqueça o roteiro
não pergunte que horas são
eu não sei

me dá a tua mão
vem lutar, vem viver
ao meu lado
vem aprender
VÍCIOS DE LINGUAGEM a ganhar e a perder
lado a lado
A parte em inglês tem
se tu quiseres saber quem eu sou
origem bem pragmática. Gra-
vem
vamos em Los Angeles, as se tu quiseres saber quem eu sou
meninas que fizeram os vocais
eram americanas. Em portu- me dá a tua mão
guês, soava estranho. vem viver, vem lutar
lado a lado
me dá a tua mão
me protege e terás proteção
minha mão
meu irmão

232
VÍCIOS DE LINGUAGEM
letra e música: gessinger 1995

tudo se resume
a uma briga de torcidas
e a gente ali no meio
no meio das bandeiras

o jogo não importa


ninguém tá assistindo
e a gente ali no meio
no meio da cegueira

tudo se reduz
a um campo de batalha
e a gente ali no meio

tudo se resume
a disputa entre partidos
lama na imprensa
sangue nas bandeiras
tudo se produz
a verdade passa ao largo na mesma linha de montagem
como se não existisse apogeu e decadência
e a gente ali no meio na mais nobre linhagem
como se não existisse
votos de silêncio
tudo se reduz vícios de linguagem
a uma cruz e uma espada nada traduz

tchê, de que lado tu estás? hey, don’t you know that you are
ninguém pode agradar aos dois lados in the middle of a war (yes, you are)?
hey, it’s time to make a choice tchê, de que lado tu estás?
we all want to hear your voice (it’s true) ninguém pode ficar no meio do tiroteio
faça a sua aposta, tome a sua decisão now it’s time to say whose side you’re on

tudo se presume
se resume
se reduz

e o principal fica fora do resumo

233
PORÃO DE FÉ
letra: gessinger 1995 | música: deluqui letra e música: gessinger 1996

numa jaula qualquer sempre que eu preciso me desconectar


do prédio em frente ao teu todos os caminhos levam ao mesmo lugar
vive a bela-fera-adormecida-mulher meu esconderijo, meu altar
tu só pensas nela quando todo mundo quer me crucificar
ela só toma sol de madrugada
quando nada é imoral eu só quero estar com você
ficar com você
numa janela qualquer
do teu zoológico moral quando o tempo fecha e o céu quer desabar
vive um morto-vivo perto do limite, difícil de aguentar
um bom-selvagem-animal eu volto pra casa te peço pra ficar
no fundo é bom sujeito em silêncio, só ficar
cumpre condicional de madrugada
quando nada é ilegal eu tenho muitos amigos
tenho discos e livros
e o que se escondia no porão mas quando eu mais preciso
sai pelos poros pela transpiração eu só tenho você
lava tua alma, lava de vulcão
tenho sorte e juízo
um curto-circuito no teu círculo social cartão de crédito
apaga toda a tua memória e um imenso disco rígido
black-out total mas quando eu mais preciso
um porta-retratos quebrado no chão eu só tenho você
enterra todo o teu passado
queiras ou não tenho a consciência em paz
tenho mais do que preciso
numa vala qualquer mas, se eu preciso de paz
do teu cemitério racional eu só tenho você
numa esquina qualquer
da tua cidade natal tenho muito mais dúvidas
é um Deus-nos-acuda do que certezas
ninguém te ajuda de madrugada hoje, com certeza
quando as fadas dizem: “tchau!” eu só tenho você

o que se escondia no porão tenho medo de cobras


sai pelos poros pela transpiração já tive medo do escuro
petróleo das veias, panela de pressão tenho medo de te perder

transborda, porão!
alivia a pressão!

234
SEM VOCÊ (É FODA!)
letra e música: gessinger 1996 SEM VOCÊ (É FODA!)

um calor do cão Escrever é entrar num es-


um frio de rachar tado de santa ignorância. Uma
tudo aqui parece estar fora do lugar mistura de foco e ingenuidade.
Uma das imagens de ina-
uma sensação dequação da letra é a bandeira
difícil de explicar tricolor na sacada em frente
tudo aqui parece estar fora do lugar ao mar. Pra mim, sempre foi uma
bandeira do RS. Conversando
dia, noite com os colorados Luciano e
terra, fogo, água e ar Adal, durante a gravação dos
sem você tudo fica fora do lugar
backing vocals, descobri que
poderia ser a bandeira do
a bandeira tricolor
na sacada em frente ao mar
Grêmio. Tudo bem, ainda fun-
a caça e o caçador saindo pra jantar cionava, gaúcho ou gremista
em frente ao mar do Rio. Foi
a fila do cinema aí que o técnico de gravação
o sistema fora do ar falou: “Pensei que fosse a
tudo aqui parece estar fora do lugar bandeira do Fluzão!”.

sul e norte
terra, fogo, água e ar
sem você tudo fica fora do lugar

sem você tudo fica fora do lugar


fora de foco
difícil de enxergar

sem você tudo fica fora do lugar


fora de si
foda de se aguentar

235
VIDA REAL IRRADIAÇÃO FÓSSIL
letra e música: gessinger 1996 letra e música: gessinger 1996

cai a noite sobre a minha indecisão eu vi meu próprio corpo


sobrevoa o inferno minha timidez como fosse outra pessoa
um telefonema bastaria não me era um corpo estranho
passaria a limpo a vida inteira visto das alturas

cai a noite sem explicação eu estava livre


sem fazer a ligação um corpo em queda livre
livre
esperei chegar a hora certa
por acreditar que ela viria pra voltar à realidade
deixei no ar a porta aberta procurei um rosto amigo
no final de cada dia e vi meu próprio corpo
como fosse outra pessoa
cai a noite, doce escuridão
de madura vai ao chão luz: tempo-espaço
como se fosse fácil
na hora da canção em que eles dizem baby como se fosse possível
eu não soube o que dizer como se preciso fosse
ah, vida real!
como é que eu troco de canal? irradiação fóssil
fóssil
na hora da canção em que eles dizem baby
eu não soube o que dizer eu estava livre
ah, vida real! assim no céu como na terra
tchau! livre

luz da estrela que não brilha mais


voz de alguém que já não fala mais
eu vejo a luz sem acreditar
que aquela estrela não existe mais

irradiação fóssil
fóssil

236
FREUD FLINTSTONE
letra e música: gessinger 1996 FREUD FLINTSTONE

querem sangue Enquanto eu escrevia, pas-


querem lama sava, na TV, Sangue e Areia, an-
querem à força o beijo na lona tigo filme sobre um toureiro.
e querem ao vivo Não sei se me influenciou
ou se o fato de eu estar escre-
querem a lágrima doída vendo a música fez o progra-
do ídolo caindo mador da TV escolher esse
em câmera lenta filme. Talvez tudo no mundo
esteja ligado mais profunda-
querem lutar pelo que amam mente do que numa relação de
conquistar e destruir
causa e consequência.
o que amavam tanto
Outra possível influência é
faça uma prece pra Freud Flintstone
o texto Hircocervos, de Umberto
acenda uma vela pra Freud Flintstone Eco. Ele faz uma lista muito
sacrifique o bom-senso no seu altar divertida combinando nomes:
Fred Asterix, Freud Astaire,
na areia da arena Marcel Prost, John Lenin, Moby
sai de cena por decreto Duck, Mohammed Dalí, Ronald
a flor do deserto Reggae, Woody Alien. A união
dos nomes não é feita só pela
gran finale, última cena semelhança sonora, há um
no ar pelas antenas conceito.
a morte do toureiro

faça uma prece pra Freud Flintstone


acenda uma vela pra Freud Flintstone
que o satélite lhe seja leve

esqueça a prece pra Freud Flintstone


acenda a fogueira pra Freud Flintstone
vamos queimá-lo vivo, enterrá-lo vivo

o preço é uma prece


pague pra ver compre o ingresso
adeus Pink Freud Flintstone

fama fogo fúria fé


fã-clube Freud Flintstone
que o satélite lhe seja leve

237
A BOLA DA VEZ BANCO
letra e música: gessinger 1996 letra e música: gessinger 1997

a bola da vez deve haver alguma coisa


brilha em teu olhar que ainda te emocione
matar ou morrer
é a impressão que ela dá tudo errado no teu banco de dados
futuro presetado, passado deletado
no verde do veludo sinto te informar: tu estás mal informado!
tua chance
ao teu alcance deve haver alguma coisa
que ainda te emocione
a bola da vez uma garota
o paraíso e a maçã um bom combate
o arqueiro zen e sua fé pagã um gol aos 46
deve haver alguma coisa
tudo ou nada que ainda te emocione
agora ou nunca
um lance te vejo sentado no banco dos réus
a tua chance pra falir a banca bancando o coitado
quanto mais culpado melhor o advogado
o jogador é um fogo a queimar
beleza e horror de um jogo de azar deve haver alguma coisa
a gente sempre está a fim que ainda te emocione
a gente sempre está pela bola da vez um cavalo em disparada
pijamas
pela enésima vez nada pra fazer
vamos recomeçar deve haver alguma coisa
tudo outra vez que ainda te emocione
cada bola em seu lugar
tudo guardado num banco americano
no verde do veludo a sete chaves, o sétimo selo, o sétimo céu
é tudo exposto eu sinto te informar: o banco foi roubado!
é tudo aposta é o velho jogo: pedra, tesoura, papel

o jogador é um fogo a queimar deve haver alguma coisa


beleza e horror de um jogo de azar que ainda te emocione
a gente sempre está a fim um vinho tinto
a gente sempre está pela bola da vez um copo d’água
a chuva no telhado
um pôr de sol
deve haver alguma coisa
que ainda te emocione

238
DESERTO FREEZER
letra e música: gessinger 1997 DESERTO FREEZER

se é o medo que te move Aqui e ali brotam algumas


“não se mexa, fique onde está” músicas mais explicitamente
se é o ódio que te inspira gaúchas. Nunca deixa de me
não respire o ar viciado deste lugar espantar a lembrança de que o
grande Luiz Gonzaga forma-
eu tenho medo tou suas apresentações sob
do medo que as pessoas têm a influência do gaúcho Pedro
o sol nasce pra todos Raimundo. Os gaúchos deve-
todo dia de manhã riam pensar mais sobre o que
o mal nasce do medo da escuridão se seguiu a essa esquina nas
respectivas músicas regionais.
nesse deserto freezer
carnaval e solidão
andam lado a lado
em perfeito estado de conservação

é um navio fantasma
um cemitério de automóveis
é um deserto freezer
zero Kelvin, perfeição

eu tenho medo
do medo que as pessoas têm
o mal nasce do medo
como o ovo e a galinha
nasce do medo
do medo que as pessoas têm

eu tenho medo
do medo que as pessoas têm
o sol nasce pra todos
todo dia de manhã
eu tenho medo da escuridão

239
A MONTANHA 3 MINUTOS
letra e música: gessinger 1997 letra e música: gessinger 1997

nem tão longe que eu não possa ver se você me der 3 minutos
nem tão perto que eu possa tocar vai entender o que eu sinto
nem tão longe que eu não possa crer eu não sou santo
que um dia chego lá mas não minto
nem tão perto que eu possa acreditar não vou mentir
que o dia já chegou se você me der 3 minutos

no alto da montanha se você me der uma chance


num arranha-céu não vou deixar que a gente dance
esqueça o que pensa que sabe
se eu pudesse ao menos te contar duvide da crença e, quem sabe
o que se enxerga lá do alto vai sentir o que eu sinto
com o céu aberto, limpo e claro se você me der 3 minutos
ou com os olhos fechados
se eu pudesse ao menos te levar comigo só acredito
no que pode ser dito em 3 minutos
pr’o alto da montanha por isso eu grito
num arranha-céu só te peço 3 minutos
sem final feliz ou infeliz
atores sem papel no caos me sinto à vontade:
no alto da montanha a tempestade é meu elemento
à toa...ao léu no pampa o vento violino minuano
na fria janela de um apartamento
nem tão longe, impossível à espera do salto: perigo, suspense
nem tampouco lá já no alto inverno porto-alegrense
no alto da montanha
num arranha-céu só acredito
no que pode ser dito em 3 minutos
eu grito e repito
só te peço 3 minutos

só acredito
no que pode ser dito em 3 minutos
por isso eu peço aos 4 ventos
3 minutos

240
OUTROS TEMPOS
letra e música: gessinger 1997 OUTROS TEMPOS

quando te vi Quem gravou os teclados


tive a impressão foi Humberto Barros, que vol-
de que não era a primeira vez taria a trabalhar com a gente no
quando te vi Acústico MTV.
tive certeza A cada tentativa, eu pedia
de que não seria a última vez que ele tocasse, cada vez mais,
como se estivesse numa velha
quem vem lá? quem será? banda de rock progresivo. Após
que passa como um filme fazer uma cara enigmática, ele
na fumaça de um bar voltava às teclas. Depois me
explicou que há muito tempo
quem vem lá? quem será?
queria fazer um som assim.
que vai me salvar a vida outra vez
vai fazer de novo o que nunca fez
Mas as bandas com quem
ele tocava sempre achavam
os tempos são outros que rock progressivo era um
os erros, os mesmos palavrão. Assim era a cena.
me diz como é que eu posso Acho que ainda é.
te encontrar mais uma vez

os tempos são outros


os erros, os mesmos
me diz como é que eu faço
me diz como é que eu posso
te encontrar mais uma vez
pela primeira vez

241
NUVEM NA REAL
letra e música: gessinger 1997 letra e música: gessinger 1999

se está com ele, está sozinha encontrei


e sozinha não quer mais ficar depois de tanto tempo
se está com ele é porque quer viajei
porque não quer mudar passei o passado a limpo
dei rewind
diga adeus revi tudo em fast-forward
diga adeus ou não diga nada encontrei
diga adeus depois de tanto procurar
será que você existe?
se está chegando o fim da linha
tá na hora de saltar 12:00h
se está com ele, está sozinha há mais de uma semana
e sozinha não quer mais ficar piscam as luzes no videocassete
12 meses
diga adeus lá se vai um ano
diga adeus ou não diga nada e o outono parece não passar
diga adeus será que você existe?

não vá perder a hora certa encontrei


com a pessoa errada depois de tanto tempo
diga adeus em vidas passadas
em noites passadas em branco
a vida não pode ser um conta-gotas na tua mão olho para o lado e nada vejo
chuva que não chove, sol que não sai já não sei
a vida não pode ser medida com precisão o que é verdade e o que é desejo
motor que não se move, nuvem que não se vai será que você existe?
será fruto da imaginação?
se está com ele, está sozinha
e sozinha não quer mais ficar miragens, fantasmas, OVNIs
se está chegando o fim da linha e o que mais for preciso para ser feliz
tá na hora de saltar meu coração visionário tá legal
e dispensa comentários
não vá perder a vida inteira ele nem pensa na real
com a pessoa errada
diga adeus miragens, fantasmas, viagens no tempo
delírio, desejo, vozes e visões
vai chover, vai secar será que você existe?
serão águas passadas será fruto da imaginação?
diga adeus

242
3x4
letra e música: gessinger 1999 3x4

diga a verdade Dedicada à Adriane.


ao menos uma vez na vida De fato, perdi minhas
você se apaixonou pelos meus erros chaves na primeira vez que
fui à casa dela. Tri a fim de
não fique pela metade causar uma boa impressão,
vá em frente, minha amiga acabei fazendo todo mundo
destrua a razão desse beco sem saída revirar móveis procurando
um chaveiro do Snoopy. Não
diga a verdade tive coragem de expor minha
ponha o dedo na ferida tese sobre sumiço de objetos,
você se apaixonou pelos meus erros
mundos paralelos, etc. Melhor
ficar com fama de trapalhão
eu perdi as chaves
mas que cabeça a minha!
do que de maluco.
agora vai ter que ser para toda a vida Anos depois, me dei conta
de que era um sinal. Uma
somos o que há de melhor premonição que não tive. Tava
somos o que dá pra fazer na cara que ia ser pra toda
o que não dá pra evitar vida.
e não se pode escolher

se eu tivesse a força
que você pensa que eu tenho
eu gravaria no metal da minha pele
o teu desenho

feitos um pro outro


feitos pra durar
uma luz que não produz sombra

somos o que há de melhor


somos o que dá pra fazer
o que não dá pra imitar
e não se pode esconder

243
EU QUE NÃO AMO VOCÊ
letra e música: gessinger 1999

eu que não fumo


queria um cigarro
eu que não amo você
envelheci dez anos ou mais
nesse último mês

senti saudade
vontade de voltar
fazer a coisa certa
aqui é o meu lugar

mas, sabe como é


difícil encontrar
a palavra certa
a hora certa de voltar
a porta aberta
a hora certa de chegar
o certo é que eu dancei
eu que não fumo sem querer dançar
queria um cigarro agora já nem sei
eu que não amo você qual é o meu lugar
envelheci dez anos ou mais
nesse último mês dia e noite sem parar
procurei sem encontrar
eu que não bebo a palavra certa
pedi um conhaque a hora certa de voltar
pra enfrentar o inverno a porta aberta
que entra pela porta a hora certa de chegar
que você deixou aberta ao sair
eu que não fumo
queria um cigarro
eu que não amo você
envelheci dez anos ou mais
nesse último mês

eu que não bebo


pedi um conhaque
pra enfrentar o inverno
que entra pela porta
que você deixou aberta ao sair

244
CONCRETO E ASFALTO SEGUIR VIAGEM
letra e música: gessinger 1999 letra e música: gessinger 1999

se eu fosse embora agora seguir viagem


será que você entenderia tirar os pés do chão
que há um tempo certo para tudo viver à margem
cedo ou tarde chega o dia correr na contramão

se eu fosse sem dizer palavra a tua imagem e perfeição


será que você escutaria segue comigo
o silêncio lhe dizendo e me dá a direção
que a culpa não foi sua
se dizem que é impossível
é que eu nasci com o pé na estrada eu digo: é necessário!
com a cabeça lá na lua se dizem que estou louco
(fazendo tudo ao contrário)
não vou ficar eu digo que é preciso
não vou ficar eu preciso... é necessário
fiz bandeira desses trapos
devorei concreto e asfalto seguir viagem
tirar os pés da terra firme
tenho feito meu caminho e seguir viagem
volta e meia fico só
reconheço meus defeitos seguir viagem
e o efeito dominó tirar os pés do chão
outros ares, sete mares
mas, se eu ficasse ao seu lado voar, mergulhar
de nada adiantaria
se eu fosse um cara diferente o que nos dá coragem
sabe lá como eu seria não é o mar nem o abismo
é a margem
não vou ficar o limite e sua negação
não vou ficar
fiz bandeira desses trapos se dizem que é impossível
devorei concreto e asfalto eu digo: é necessário!
fiz o meu caminho se dizem que é loucura
devorei concreto e asfalto eu provo o contrário
e digo que é preciso
eu preciso... é necessário

seguir viagem
tirar os pés da terra firme
e seguir viagem

245
PERDÃO É UMA BORRACHA MACIA O OLHO DO FURACÃO
letra e música: gessinger 1999 letra e música: gessinger 1999

escrever é tudo muda ao teu redor


quebrar a ponta o que era certo, sólido
apontar o lápis dissolve, desaba, dilui
livrar da casca que protege o grafite desmancha no ar
impedir que a mão aceite o limite
amassar o papel no moinho giram as pás
errar a cesta e o tempo vira pó
ir do céu ao chão por vocação de grão em grão
deixar em branco por entre os dedos
deixar no ar tudo parece escapar
ensinar a mosca a sair da garrafa
esperar que a garrafa sobreviva ao mar estamos no centro
por dentro de tudo
no olho do furacão

estamos no centro
de tudo que gira
na mira do canhão

se for parar pra pensar


não vai sair do lugar
não tem parada errada, não
no olho do furacão

tudo gira ao teu redor


o que era certo, sólido
evapora, vai-se embora
o que era líquido e certo

246
10.000 DESTINOS
letra: gessinger 1999 | música: dorfman 10.000 DESTINOS

há mais de mil destinos Devorando concreto e


em cada esquina asfalto e fazendo as contas na
outras vidas esperando ponta dos lápis:
em cada esquina
• mais de 1234 shows
há quase mil motivos • em 467 cidades
pra gente ignorar • nos 27 estados brasileiros
o que ouve, o que vê • por 6 países
em cada esquina
E eu, o que faço com
uma vitrine
esses números?
muito bandeira
um ímã na geladeira

alça de mira
lente de aumento
vampiro em frente ao espelho

por que será?


me diz, por que será
que a gente cruza o rio atrás de água
e diz que não está nem aí
finge que não está nem aí

gritos na torcida
sinos da catedral
uma palavra omitida do hino nacional

tambores
motores
pulso e coração

um minuto de silêncio antes da explosão

por que será?


me diz, por que será
que a gente cruza o rio atrás de água
e diz que não está nem aí
finge que não está nem aí

247
NÚMEROS
NÚMEROS letra e música: gessinger 2000

Li, não lembro onde, que última edição do Guiness Book


o mundo está na quatrocen- corações a mais de 1.000
tésima humanidade. Fiquei e eu com esses números?
pensando com que cálculo se
chega a esse número. Quantos 5 extinções em massa
anos constituem uma geração? 400 humanidades
Segundo alguns, teriam acon- e eu com esses números?
tecido cinco extinções em
massa na história do planeta. solidão a 2
Outro número com o qual é dívida externa
anos-luz
difícil se relacionar. Estranha
aos 33 Jesus na cruz
tendência de quantificar tudo.
Cabral no mar aos 33
Costurando o conceito, a frase e eu, o que faço com estes números?
de Santo Agostinho sobre a
medida do amor. a medida de amar é amar sem medida
Nascimento Silva 107 é velocidade máxima permitida
o endereço citado na música a medida de amar é amar sem medida
Carta ao Tom, de Vinícius
de Moraes. Corrientes 348 Nascimento Silva 107
é o endereço no tango Media Corrientes 348
Luz. Dois clássicos. e eu com estes números?

traço de audiência
tração nas 4 rodas
e eu, o que faço com estes números?

7 vidas
mais de 1.000 destinos
todos foram tão cretinos
quando elas se beijaram

a medida de amar é amar sem medida


preparar a decolagem
contagem regressiva
a medida de amar é amar sem medida

mega, ultra, híper, micro, baixas calorias


kilowatts, gigabytes
e eu, o que faço com esses números?

248
NOVOS HORIZONTES SURFANDO KARMAS & DNA
letra e música: gessinger 2000 letra e música: gessinger 2002

corpos em movimento quantas vezes eu estive


universo em expansão cara a cara com a pior metade
o apartamento que era tão pequeno a lembrança no espelho
não acaba mais a esperança na outra margem

vamos dar um tempo quantas vezes a gente sobrevive


não sei quem deu a sugestão à hora da verdade
aquele sentimento que era passageiro na falta de algo melhor
não acaba mais nunca me faltou coragem

novos horizontes se eu soubesse antes o que sei agora


se não for isto, o que será? erraria tudo exatamente igual
quem constrói a ponte
não conhece o lado de lá tenho vivido um dia por semana
acaba a grana, mês ainda tem
quero explodir as grades sem passado nem futuro
e voar eu vivo um dia de cada vez
não tenho pra onde ir
mas não quero ficar quantas vezes eu estive
cara a cara com a pior metade
suspender a queda livre quantas vezes a gente sobrevive
libertar à hora da verdade
o que não tem fim
sempre acaba assim se eu soubesse antes o que sei agora
iria embora antes do final

surfando karmas e DNA


não quero ter o que eu não tenho
não tenho medo de errar

surfando karmas e DNA


não quero ser o que eu não sou
eu não sou maior que o mar

na falta do que fazer


inventei a minha liberdade
surfando karmas e DNA

249
PRA FICAR LEGAL NEM + 1 DIA
letra: gessinger 2002 | música: galvão letra e música: gessinger 2002

agora não o café me deixou ligado


ainda é cedo pra entender você ficou de ligar
vou sair do ar um tempo a noite foi um inferno
desespero de esperar
na contramão
do que está por acontecer o passado voltou rasgando
vou respirar com paciência você ficou de voltar
antes que eu sentisse falta
sei que lá fora antes que faltasse o ar
brilham luzes artificiais
lá fora o sol voou rasante
o fogo das caldeiras pede mais e mais pra me bombardear
querem sempre mais
boca de extinguir espécies
louco pra ficar legal mãos de acelerar partículas
longe da euforia industrial antenas para radioatividade
louco pra ficar legal olhos de ler código de barras
longe da histeria carnaval
se viver fosse viver sem você
agora não que bom seria
é muito tarde pra entender mas não dá mais pra viver sem você
eu tô fechado pra balanço nem mais um dia

na contramão chame de exagero


de tudo que dizem que aconteceu diga que é bobagem
vou sair da área de alcance vou deletar meu corpo da tua tatuagem

sei que lá fora puro desespero


a banda toca em outro tom autossabotagem
lá fora tô fora do seu programa de milhagem
ainda rimam soluções
lá fora boca de extinguir espécies
violência vende mais mãos de acelerar partículas
antenas para radioatividade
louco pra ficar legal olhos de ler código de barras
longe de um romance policial
louco pra ficar legal se viver fosse viver sem você
longe Porto Alegre-Rio-Nepal que bom seria
louco pra ficar em paz mas não dá mais pra viver sem você
louco pra ficar legal nem mais um dia

250
ESPORTES RADICAIS
letra e música: gessinger 2002 ESPORTES RADICAIS

preso no trânsito de astros imóveis Me parece a continua-


faço as contas na ponta do lápis ção musical e temática de
e nada faz sentido INFINITA HIGHWAY. Ambas vêm
do mesmo lugar. Pra seguir
adrenalina é uma menina dormindo usando carros e estradas na
dançando em silêncio metáfora, ESPORTES RADICAIS
imaginando um reggae fala daquele momento em que
cansei de alimentar os motores a gente sai da estrada e entra
agora quero freios e airbag na cidade. Menos velocidade,
pois nada faz sentido mais gente em volta. A estrada
é sempre uma coisa solitária,
se capricórnio fosse câncer
parece que foi construída só
se Califórnia fosse França
a rampa que lança o skate ao céu
para nós. As ruas são de
seria nosso chão todos, por isso tantas esqui-
180, 360, 540 graus nas, sentidos obrigatórios e
girando, esquentando semáforos.
só pra ver até quando
o motor aguenta o caos

não vou ficar parado


não vou passar batido
se nada faz sentido há muito que fazer

não há alternativa
é a única opção
unir o otimismo da vontade
e o pessimismo da razão

contra toda expectativa


contra qualquer previsão
há um ponto de partida
há um ponto de união

sentir com inteligência


pensar com emoção

não vou ficar parado


não vou passar batido
se nada faz sentido há muito que fazer

251
e-STÓRIA
e-STÓRIA letra: gessinger/carlos maltz 2002
música: gessinger
Eu não falava com Carlos
fazia muito tempo. Nos reen- cara, tú não vai nem acreditar:
contramos na www. A con- continuo mergulhando sem saber nadar
versa resultou nessa letra. cara, ‘cê não vai acreditá:
A música, eu tinha desde o tô plantando manga na margem do Paranoá
primeiro show em 1985.
As parcerias com Maltz não acredito, cara! quer trocar de lugar?
seguiram um mesmo formato: (às vezes fico a fim de mandar tudo pro espaço)
eu já mandava música com calma aí maninho...tô voltando pro pedaço!
letra e estabelecíamos um (se isso não der samba, pelo menos dá um abraço)
diálogo. Em e-STÓRIA, lite-
agora...agora, virando as voltas que essa vida dá
ralmente um diálogo. Em
agora...agora, surfando karmas e DNA
SEGUNDA FEIRA BLUES,
Maltz acrescentou alguns cara, tú não vai nem acreditar:
versos. Em CINZA fez um rap. aqui em Porto Alegre anda tudo ZH
Estas par tes estão em cara, ‘cê não vai acreditá:
vermelho. aqui em Brasília tem gente que gosta de trabalhá

cara, tú não vai nem acreditar:


andei pensando no futuro com ortomolecular
legal mano, também vou experimentá!
mas se a coisa ficá preta o negócio é aquele chá
cara, tú não vai nem acreditar:
tava pensando mesmo nisso antes de conectar

agora...agora, virando as voltas que essa vida dá


agora...agora, surfando karmas e DNA

Com Master e Carlos no estúdio.

252
Pequeno Dicionário Afetivo:

• SP-2 e TC são carros espor-


tivos tupiniquins dos anos
70. Carros e bandas sempre
dividem garagens.

• O camburão da polícia na
avenida Carlos Gomes se
refere aos vários ataques que
sofríamos. Mais por conta dos
nossos cabelos do que pelo
nosso comportamento.

Adriane e Clara mandam beijos pra vocês • Silva Jardim 433 era o
(coisas que não cabem nos encartes dos CDs) endereço de uma danceteria
talvez no final do ano ou talvez no final do mês onde tocávamos muito no início
dou um pulo em Porto Alegre (Silva Jardim 433) da banda.

jogam bombas em Nova Iorque • Qual era o crepe favorito do


jogam bombas em Cabul Pitz? Foi a pergunta que fiz ao
como se jogassem a lata fora Carlos no primeiro e-mail. Para
depois de beber um Red Bull saber se era com ele mesmo
que eu estava falando.
Master de TC
Flap de SP-2 • Várias vezes quis mudar o
nós dois a pé na Carlos Gomes nome de Engenheiros do Hawaii
camburão pintou depois
para Advogados de Havana.
Não faz sentido mudar nome,
crepe de banana
Advogados de Havana
né? Marketing zero.
não pergunte quem foi Ana
nem o que é “trottoir” • Se eu ganhasse um centavo
cada vez que me peguntam
agora... agora quem foi Ana e o que quer dizer
virando as voltas que essa vida dá “trottoir”, estaria rico. Sem
o passado já foi, o futuro virá dúvida, as maiores dúvidas.
surfando karmas e DNA
• Rosana é filha do Carlos.
virando e-Stória, e-Stórias
Rosana chegou o futuro verá

253
3a DO PLURAL
3a DO PLURAL letra e música: gessinger 2002

Não acompanho as cor- corrida pra vender cigarro


ridas de Fórmula 1 desde cigarro pra vender remédio
que meu Autorama quebrou, remédio pra curar a tosse
mas ela me deu imagens para tossir, cuspir, jogar pra fora
duas canções: em TERCEIRA
DO PLURAL pinta o lado co- corrida pra vender os carros
mercial, os patrocínios; em pneu, cerveja e gasolina
OUTRAS FREQUÊNCIAS, um cabeça pra usar boné
cara, sentado no sofá com uma e professar a fé de quem patrocina
cerveja na mão e alguns quilos
eles querem te vender
a mais, reclama da lentidão da
eles querem te comprar
Ferrari do Barrichello.
querem te matar a sede
eles querem te sedar

quem são eles?


quem eles pensam que são?

corrida contra o relógio


silicone contra a gravidade
dedo no gatilho, velocidade
quem mente antes diz a verdade

satisfação garantida
obsolescência programada
eles ganham a corrida
antes mesmo da largada

eles querem te vender


eles querem te comprar
querem te matar de rir
querem te fazer chorar

quem são eles?


quem eles pensam que são?

vender, comprar, vedar os olhos


jogar a rede contra a parede
querem te deixar com sede
não querem te deixar pensar

254
SEI NÃO
letra: gessinger 2002 | música: galvão SEI NÃO

não sei qual foi a causa Quando a Teoria do


e quais serão as consequências Caos ficou pop, com vários
a borboleta bate as asas e o vento vira violência livros de divulgação científica
falando do assunto, era co-
não sei a soma exata mum resumi-la dizendo que o
só a ordem de grandeza bater de asas de uma borboleta
não sermos literais às vezes faz nossa beleza na China pode provocar um
furacão no Caribe. Há quem
às vezes faz nossa cabeça se pergunte, nesse caso, que
um par de olhos, um pôr do sol dano causaria o bater de asas
às vezes faz a diferença
de um urubu. O fim do mundo?
Não sei quanto o elástico que
tentei ficar na minha
tentei ficar contigo
une causa e consequência po-
o que há de mais moderno de ser esticado antes de
é um sonho muito antigo romper-se. Imagino que a
toda hora borboletas batam
tentei ser teu futuro asas na China…
tentei ser teu amigo
o que há de mais seguro
também corre perigo

não sei a quantas anda


é da nossa natureza
não saber o que fazer às vezes faz nossa certeza

às vezes faz nossa cabeça


um par de olhos, um pôr do sol
às vezes faz a diferença

tentei ficar na minha


tentei ficar contigo
o que há de mais moderno
é um sonho muito antigo

tentei ser teu futuro


tentei ser teu amigo
o que há de mais seguro
também corre perigo

255
DATAS E NOMES
DATAS E NOMES letra e música: gessinger 2002

Gosto muito da forma aceite o mal que eu fiz a mim mesmo


como as pausas musicais, como um cachimbo da paz
na primeira frase, vão alte- depois da explosão
rando seu sentido:
aceite o mal (parece que e, se não for pedir demais
é um mal metafísico) que eu um último beijo
fiz (agora é um mal pessoal) a e, se não for pedir demais
mim mesmo (fica mais do que mata esta vontade de viver
pessoal: suicida) como um
cachimbo da paz (agora se amanhã vamos rir de tudo isso
amanhã vamos trocar datas e nomes
trata de aceitar um presente e
amanhã o vinho vai brindar a uva
não resignar-se, como sugeria
amanhã
o início).
Só me dei conta disso entenda os sinais
depois de ter escrito a música. a mudança dos tempos
Tentei, várias vezes, repetir o lá vem vendaval na loja de cristais
efeito e nunca consegui.
e, se não for pedir demais
bola pra frente
semente no chão
bomba-relógio na mão

amanhã vamos rir de tudo isso


amanhã vamos trocar datas e nomes
amanhã o vinho vai brindar a uva
amanhã

hey, menina
sei que o tempo cicatriza
hey, menina
vamos rir do que nos fez chorar
amanhã

256
ARAME FARPADO DANÇANDO NO CAMPO MINADO
letra e música: gessinger 2002 letra e música: gessinger 2003

seria engraçado eu devo estar ficando louco


se não fosse triste será que eu escutei errado?
acesso negado a vida no maior sufoco
a gente não existe e os caras de papo furado

arame farpado todo o cuidado é pouco


silêncio de chumbo nem pense em ficar parado
seria absurdo estamos no melhor da festa
se não fosse lei dançando no campo minado

a serpente troca de pele os sinais estão no ar


a gente não esquece nas esquinas do país
o avião reabastece mensagem pelo celular
sem deixar de voar água batendo no nariz

não sofro mais eu devo estar ficando louco


agora eu sei será que eu escutei errado?
o que nos faz sobreviver a vida no maior sufoco
e os caras de papo furado
seria ruído
se não fosse um sinal será que eu vivo em outro mundo
só para iniciados distante e inexplorado
transe tribal na hora da invasão, silêncio
dançamos num campo minado
seriam ruínas
mas a gente não esquece os sinais estão no ar
o avião reabastece no chão da praça da matriz
em pleno ar mensagem pelo celular
cortar o mal pela raiz
não sofro mais
agora eu sei
o que nos fez sobreviver

257
DOM QUIXOTE FUSÃO A FRIO
letra: gessinger 2003 letra: gessinger 2003
música: galvão música: galvão

muito prazer, meu nome é otário ninguém sabe como serão


vindo de outros tempos os filhos deste casamento
mas sempre no horário indústria da informação
peixe fora d’água +
borboletas no aquário indústria do entretenimento

muito prazer, meu nome é otário promessas de fusão a frio


na ponta dos cascos e fora do páreo desvio de comportamento
puro-sangue puxando carroça indústria da informação
+
um prazer cada vez mais raro indústria do entretenimento
aerodinâmica num tanque de guerra
vaidades que a terra um dia há de comer ninguém sabe como serão
os filhos deste casamento
ás de espadas fora do baralho indústria da informação
grandes negócios, pequeno empresário +
muito prazer, me chamam de otário indústria do entretenimento

por amor às causas perdidas promessas de fusão a frio


diversão e conhecimento
tudo bem, até pode ser a única escolha que temos
que os dragões sejam moinhos de vento é a forma de pagamento
tudo bem, seja o que for
seja por amor às causas perdidas em doses homeopáticas
por amor às causas perdidas em escala industrial
tudo acaba em samba
tudo bem, até pode ser é sempre carnaval
que os dragões sejam moinhos de vento tudo acaba em sombras
muito prazer, ao seu dispor é sempre vendaval
se for por amor às causas perdidas
por amor às causas perdidas

258
CAMUFLAGEM OUTONO EM PORTO ALEGRE
letra: gessinger 2003 letra: gessinger 2003
música: galvão música: galvão

foto de satélite nem tudo está perdido


visão de raio-X nem sinal de pedra no peito
cães farejadores o horóscopo do jornal
detectores de metal arriscou “um belo dia”
currículo escolar liguei o rádio na hora certa
teste de QI era a canção que eu queria
previsões do tempo no telejornal
não captarão nem tudo está perdido
tudo em paz no reino da química
capa de revista ninguém me telefonou
lista de dez mais enquanto eu dormia
grampo telefônico sonhei com meu pai e ele sorria
malha fina chimarrão pra acordar
a lei da selva e dos tribunais era só o que eu queria
leitura de mãos
regressão a outras vidas veja você, que surpresa
não captarão que coisa incrível
descobri que sou feliz
sem soar o alarme
sem fazer alarde veja você, quem diria
vai passar batido, despercebido que ironia
talvez até já tenha acontecido sem você eu sou feliz

sondas e radares não captarão nem tudo está perdido


revisores ortográficos também não outono em Porto Alegre
pesquisa de opinião sou o dono dos meus passos
câmera escondida sobre folhas mortas
os caras ligados se atrasarão o mundo fica para outro dia
e não captarão andar por aí era tudo que eu queria

sem soar o alarme veja você, que surpresa


sem fazer alarde que coisa incrível
sem bater na porta descobri que sou feliz
sem mandar aviso
sem passar recibo veja você, quem diria
sem hora certa que ironia
vai passar batido, despercebido sem você eu sou feliz
talvez até já tenha acontecido

259
ROTA DE COLISÃO SEGUNDA FEIRA BLUES
letra: gessinger 2003 letra: gessinger/maltz 2003
música: fonseca música: gessinger

as fases da lua 1.
a crise dos mercados onde estão os caras
o movimento das marés que lutavam dia a dia
sem perder a ternura jamais?
a hora da verdade
a idade da razão onde estão os caras
a diferença que desmaterializavam
do que se pensa e o que se faz moedas de dez mil reais?

isso nos coloca em rota de colisão onde estão os caras


estamos em rota de colisão que desconheciam limites
(universal e singular)?
“ao encontro de”
“de encontro a” onde estão os caras
seja o que for que desenhavam novas cidades
o bom português não vai nos salvar em guardanapos na mesa de um bar?

o lado escuro da lua onde estão as provas?


as luzes da cidade onde estão os fatos?
a diferença as boas novas eram só boatos?
do que se pensa e o que se faz onde estão os atos de bravura e rebeldia
ternura guerreada dia a dia
isso nos coloca em rota de colisão será que estamos sós?
estamos em rota de colisão
seja o que for
isso nos coloca em rota de colisão

260
2.
onde estão os caras
que diziam que a guerra ia acabar?

onde estão os caras


que diziam que a maré ia virar?
(eles garantiam que Freud explicava tudo)
onde estão os sobreviventes daquele mundo?

onde estão os caras


que usavam palavras precisas
pra nos livrar da tirania do mal?
onde estão os caras
que pregavam no deserto? onde estão os filhos da revolução sexual?
(o deserto continua lá) donde están los herderos de la falacia liberal?

onde estão os caras onde estão as provas?


que deixavam as portas abertas onde estão os fatos?
para a vida poder circular? as boas novas eram só boatos?
onde estão os caras que lutavam e cantavam?
onde está o teatro mágico por um mundo ideal se perguntavam:
só para iniciados? onde estamos nós?
onde está o espaço não privatizado?

onde estão os caras


que acenavam com a mão invisível
um mercado para todos nós?

onde estão as provas?


onde estão os fatos?
as boas novas eram só boatos?
onde estão os caras que lutavam e cantavam
por um mundo ideal eles gritavam:
não estamos sós!

onde estão os caras que espalharam o vírus


prometeram a cura e viraram as costas?
onde está o outro, onde está o diferente?
onde está o comum a toda gente?

261
NA VEIA
NA VEIA letra e música: gessinger 2003

Nesta música voltou a se você perguntar por mim


aparecer o Voice Box que vão dizer que eu ando muito estranho
eu havia usado em FÉ vão dizer que eu ando por aí
NENHUMA. se você perguntar por mim
Fizemos um clip em
que Bernardo toca fogo quando você perguntar por mim
num baixo e eu estou com vão dizer as coisas mais estranhas
meu casaco favorito: uma nenhuma resposta vai satisfazer
réplica do modelo que Borg quando você perguntar por mim
usava. Comprei também a
vem! ver com os próprios olhos
camiseta dele. Desde então,
vem! ver a vida como ela é
passo todas as noites de
Ano-Novo com ela. Misto de se você está mesmo a fim
superstição e saudosismo. de saber por onde eu ando
No futuro, pretendo de saber por que eu ando assim
substituí-la pelo macacão é melhor nem perguntar por mim
branco que Elvis usava em
Las Vegas. Vai melhorar vem! ver com os próprios olhos
muito a dublagem que faço vem! ver a vida como ela é
de Suspicious Mind. Sem- sem filtro, na veia
pre depois da meia-noite. sem filtro, na veia
Sempre sem testemunhas.

262
ATÉ O FIM OUTRAS FREQUÊNCIAS
letra e música: gessinger 2003 letra e música: gessinger 2004

não vim até aqui pra desistir agora seria mais fácil
entendo você se você quiser ir embora fazer como todo mundo faz
não vai ser a primeira vez o caminho mais curto
nas últimas 24 horas produto que rende mais
mas eu não vim até aqui pra desistir agora
seria mais fácil
minhas raízes estão no ar fazer como todo mundo faz
minha casa é qualquer lugar um tiro certeiro
se depender de mim eu vou até o fim modelo que vende mais

voando sem instrumentos mas nós dançamos no silêncio


ao sabor do vento choramos no carnaval
se depender de mim eu vou até o fim não vemos graça nas gracinhas da tv
morremos de rir no horário eleitoral
não vim até aqui pra desistir agora
entendo você se você quiser ir embora seria mais fácil
não vai ser a primeira vez fazer como todo mundo faz
em menos de 24 horas sem sair do sofá
a ilha não se curva deixar a Ferrari pra trás
noite adentro, vida afora como todo mundo faz
o milésimo gol
toda a vida, o dia inteiro sentado na mesa de um bar
não seria exagero
se depender de mim eu vou até o fim mas nós vibramos em outra frequência
sabemos que não é bem assim
cada célula, todo fio de cabelo se fosse fácil achar o caminho das pedras
falando assim parece exagero tantas pedras no caminho não seria ruim
mas se depender de mim eu vou até o fim

não vim até aqui pra desistir agora

263
ARMAS QUÍMICAS E POEMAS
letra e música: gessinger 2004

eu me lembro muito bem


como se fosse a manhã
o sol nascendo
sem saber o que iria iluminar

eu abri meu coração


como se fosse um motor
e, na hora de voltar
sobravam peças pelo chão
mesmo assim eu fui à luta
eu quis pagar pra ver

aonde leva essa loucura


qual é a lógica do sistema
onde estavam as armas químicas
o que diziam os poemas

afinal de contas
o que nos trouxe até aqui?
medo ou coragem?
talvez nenhum dos dois
sopra o vento
um carro passa pela praça
e já foi… já foi
por acaso eu fui à luta
eu quis pagar pra ver

aonde leva essa loucura


qual é a lógica do sistema
onde estavam as armas químicas
o que diziam os poemas

o tempo nos faz esquecer


o que nos trouxe até aqui
mas eu lembro muito bem
como se fosse amanhã
quem prometeu descanso em paz
pra depois dos comerciais?
quem ficou pedindo mais
armas químicas e poemas?

264
NO MEIO DE TUDO, VOCÊ CORAÇÃO BLINDADO
letra e música: gessinger 2006 letra: gessinger 2006
música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.
selva
a gente se acostuma a muito pouco fácil falar
a gente fica achando que é demais fazer previsões depois que aconteceu
quando chega em casa do trabalho quase vivo fácil pintar o quadro geral
da janela de um arranha-céu
selva
a gente se acostuma a muito pouco sem ter que sujar as mãos
a gente fica achando que é o máximo sem ter nada a perder
liberdade pra escolher a cor da embalagem sem o risco de pagar
pelos erros que cometeu
nessa selva
a gente se acostuma a muito pouco fácil achar o caminho a seguir
a gente fica achando que é normal num mapa, com lápis de cor
entrar na fila, comprar ingresso moleza mandar a tropa atacar
pra levar porrada na tela do computador

no meio de tudo, você sem o cheiro


me salva da selva sem o som
salva da selva sem ter nunca estado lá
sem ter que voltar pra ver o que restou
selva
a gente se acostuma a muito pouco com a coragem que a distância dá
a gente fica achando que é demais em outro tempo
um pouco de silêncio em outro lugar
um copo de água pura fica mais fácil

selva fácil demais


a gente se acostuma a muito pouco fazer previsões depois que aconteceu
a gente fica achando que é o máximo fácil sonhar condições ideais
se o cara mente mas tem cara de honesto que nunca existirão

nessa selva sempre à distância


a gente se acostuma a muito pouco sem noção
a gente fica achando que é normal o que rola pelo chão
finge que não vê, diz que não foi nada não são as peças de um jogo de xadrez
e leva mais porrada
com a coragem que a distância dá
no meio de tudo, você em outro tempo
me salva da selva em outro lugar
salva da selva tudo é tão fácil

265
NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM
Nas músicas que com- letra: gessinger 2006
pus com Bernardo, Gláucio, música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.
Aranha e Pedro, eles me man-
davam bases gravadas sobre não quero seduzir
as quais eu escrevia as letras. teu coração turista
Funcionavam assim, também, não quero te vender
as parcerias com Paulinho meu ponto de vista
Galvão, Fernando Deluqui e
com o trio Luciano, Lúcio e eu tive um sonho
Adal. há muito não sonhava
Os estúdios caseiros sim- lembranças do futuro
plificaram o processo. Mas, que a gente imaginava
às vezes, é necessário driblar
nem sempre foi assim
os enfeites de uma demo para
outro mundo é possível
descobrir onde está, na real, a pode até ser o fim
música. mas será que é inevitável?

não vá dizer
que eu estou ficando louco
só porque não consigo odiar ninguém
do goleiro ao centroavante
do juiz ao presidente
eu não consigo odiar ninguém

o tempo parou feito fotografia


amarelou tudo que não se movia
o tempo passou, claro que passaria
como passam as vontades
que voltam no outro dia

não vá dizer
que eu estou ficando louco
só porque não consigo odiar ninguém
do goleiro ao centroavante
do juiz ao presidente
eu não consigo odiar ninguém

eu tive um sonho
o mesmo do outro dia
lembranças do futuro
que a gente merecia

266
GUANTÁNAMO QUEBRA-CABEÇA
letra: gessinger 2006 letra: gessinger 2006
música: fonseca/ayala/aranha/pedro a. música:
fonseca/ayala/aranha/pedro a.
quem foi que disse “te quero”?
qual era mesmo a canção? pode ser pra sempre
quem viu a cor do dinheiro? pode não ser mais
qual a melhor tradução? pode ter certeza e voltar atrás

quem foi ao Rio de Janeiro? pode ser perfeito


qual era a intenção? fruto da imaginação
qual foi o dia e a hora? pode ter defeito de fabricação
quem foi embora?
adeus! tá faltando peça no quebra-cabeça
eu não tenho pressa
— me tira daqui! o meu tempo é todo teu
— não adianta gritar
— me ajuda a fugir! é tudo que eu posso oferecer
— ninguém vai escutar é pouco
não aguento mais! mas é tudo que eu posso oferecer
eu não sei a resposta! é quase nada
mas é tudo que eu posso oferecer
quem sabe o que vem primeiro?
quem sabe o que vem depois? pode estar no ponto
quem cabe no mundo inteiro? ponto de interrogação
quem mais além de nós dois? pode ser encontro ou separação

quem chama ao telefone? pode correr risco


por que não bate na porta? arriscado sempre é
que chama arde teu nome? só não pode o medo te paralisar
será que alguém se importa?
tá faltando peça no quebra-cabeça
— me tira daqui! eu não tenho pressa
— não adianta gritar o meu tempo é todo teu
— me ajuda a fugir!
— ninguém vai escutar é tudo que eu posso oferecer
não aguento mais! é pouco
eu não sei a resposta! mas é tudo que eu posso oferecer
é quase nada
qual é a droga que salva? mas é tudo que eu tenho
qual é a dose letal? tudo que eu posso oferecer
quem quer saber tudo isso
será que aguenta a pressão?

267
FAZ DE CONTA
letra: gessinger/melissa mattos 2006
música: gessinger

era claro
espelho d’água
perfeição que a pedra destruiu

uma onda
mais uma onda
outras ondas e já não tem fim

agora é centro do movimento


a qualquer momento pode transbordar
Com Melissa, no backstage em SC.
quando a pedra caiu na água
quando o espelho foi ao chão
quem estava ao teu lado?
quem estava com a razão?

a pedra afundou
a onda inundou
faz de conta que eu fui mais legal

malas prontas
de hoje em diante
mais distante
talvez menos mal

desencanto na garganta
faz de conta que eu fui mais legal

quando a pedra caiu na água


quando o espelho foi ao chão
quem estava ao teu lado?
quem estava com a razão?

a pedra afundou
a onda inundou
faz de conta que eu fui mais legal

268
CINZA
letra: gessinger/carlos maltz 2006
música: gessinger

o mundo é teu, é teu umbigo


chapado e aquecido
deve ser o fogo amigo
queimando tudo, joio e trigo

corre mundo um aviso:


corre risco teu umbigo vamos visitar o passado
se correr, o bicho pega mundo distante passado muito além
se ficar, corre perigo onde a pessoa não valia pelo que ela é
só valia por aquilo que ela tem
bruxas dançam na fogueira
inimigos na trincheira vamos assistir o naufrágio
um calor infernal de um Titanic pesado e frágil
congela teu sorriso que foi a pique sem dó nem piedade
e o paraíso tropical pela febre da ganância pela falta de humildade

sangue suor e óleo diesel vamos perdoar aquela gente


com limão e muito gelo que não soube enxergar um pouquinho na frente
arco-íris made in china e secou tudo até a última fonte
de bobeira à beira da piscina queimou a floresta, matou a semente
o mundo é teu até o final
pra sempre em tempo real vamos celebrar a nova civilização
que nasceu da destruição
bruxas dançam na fogueira e já nasceu cuidando do que tem
inimigos na trincheira pra não ter que aprender perdendo tudo também
um calor infernal
congela o paraíso bruxas dançam na fogueira
o sorriso é glacial bruxas dançam na fogueira
inimigos na trincheira
celebrando a nova civilização
um calor infernal
congela teu sorriso
o paraíso é virtual

corre risco teu sorriso


corre atrás do pre-juízo-final

269
PRA QUEM GOSTA DE NÓS
PRA QUEM GOSTA DE NÓS letra e música: gessinger 2006

Um nó nos prende ou nos formataram a mentira


leva na velocidade de uma deram nome: nickname
milha marítima por hora. Um nó sem a senha só em sonho
amarra o laço ou o lenço. impossível acessar
Foi esta música que me
fez voltar a utilizar o PK5, pra quem gosta de nós é um prato cheio
um teclado que fica no chão lenço no pescoço, laço no rodeio
para ser tocado com os pés. pra quem gosta de nós
Eu usava nos tempos de trio.
Funciona bem em ambientes mapearam o genoma
o acaso vai dançar
minimalistas.
sem a senha nem em sonho
A primeira demo foi um
impossível disfarçar
dos vídeos colocados no site
antes da gravação do Novos pra quem gosta de nós é um prato cheio
Horizontes. Só no Pouca Vogal vela vai veloz, vamos sem receio
achou sua casa. As canções pra quem gosta de nós
sempre sabem o que querem.
asfaltaram os caminhos
que voltam ao mesmo lugar
sem a senha só em sonho
impossível avançar

pra quem gosta de nós é um prato cheio


tudo amarrado, caminho do meio
pra quem gosta de nós

pra quem gosta de nós é um prato cheio


corda no pescoço, vamos sem rodeio
pra quem gosta de nós é um prato cheio
vento vai veloz, vamos sem receio
tudo amarrado, caminho do meio
pra quem gosta de nós é um prato cheio

270
LUZ PLANO B
letra e música: gessinger 2006 letra e música: gessinger 2007

onde estão teus olhos todo dia é assim


agora que tô bem na foto nem me lembro desde quando
agora que achei o foco hoje não estou afim
onde estão teus olhos de seguir nenhum comando
recebi o seu recado
sem eles não existo você só pode estar brincando
fico cego e invisível
sem eles não existo hoje a noite é plano B
queimo o filme e rasgo a foto pra variar e pra valer
no limite é plano B
onde estão teus olhos pra variar e pra valer
agora que domei a fera
agora que a dor já era
onde estão teus olhos todo dia é assim
nem me lembro desde quando
sem eles não existo sem ensaio nem rascunho
fico cego e invisível o caminho a gente faz andando
sem eles não existo qual seria o plano B
só enxergo o silêncio você está se perguntando

juntos para sempre não existe plano B


objeto e observador no limite é pra valer
física moderna não existe plano B
velhas canções de amor no limite é pra valer

onde estão teus olhos


onde estão teus olhos
sem eles não existo
longe deles nada existe

271
POUCA VOGAL
Pequeno Dicionário Reflexivo: letra e música: gessinger 2008

• Quem conhece o Morro Dois pouca vogal


Irmãos, cartão-postal carioca, polka tri legal
talvez não conheça Dois Ir- meridional
mãos, uma das primeiras ci- na serra
dades da colonização alemã no vale
no RS. E vice-versa. oriundi alles blau
samba sem know-how
• Terá alguém ouvido os ir- pouca vogal
mãos Kleiton e Kledir can- muito micuim
tando “deu pra ti, baixo astral” tem pinguim no litoral
em pleno carnaval
no mesmo táxi em que Julio
são imigrantes
Iglesias, Willie Nelson e Bob
com suas consoantes
Marley me davam razão?
no táxi que me trouxe até aqui
• Polka: swing esquisito. cantavam dois irmãos
tchau astral estranho deu pra ti
• Oriundi: o descendente de vou pegar o avião
italianos.
pouca vogal
• Alles Blau: tudo azul. clássico grenal
swing esquisito
• Micuim: aquele bichinho sem favorito
chato da grama. Tem muito sem nada igual
por aqui. nem a pau
viva a diferença
chame de schmier a geleia geral
• Pinguim no litoral: juro que vi.
e o escambau
Não poderia jurar que foi num
pouca vogal
carnaval.
ó o auê aí

• O Google não me ensinou a do táxi que me trouxe até aqui


grafia cer ta, será schimier? vi o morro Dois Irmãos
Geleia é mais fácil. Ximía (ou chega de saudade vou sentir
schimiere) é mais divertido. ouvindo o samba do avião

o táxi que me trouxe até aqui


passou por Dois Irmãos
tchau astral estranho já cheguei
já botei os pés no chão

272
O VOO DO BESOURO
letra e música: gessinger 2008 VOO DO BESOURO
O maior empresário do
fala sério, o que (é) que há Brasil andou querendo nos
o que falta enxergar contratar. Não achávamos que
nessa noite de luar tinha a ver com nosso arte-
nesse dia devagar sanato, mas nos reunimos com
fala sério, o que (é) que há ele duas ou três vezes. Ele ia
o que falta enxergar ao Rio, almoçávamos e não
se falava de negócios. Depois
quem não sabe finge saber de deixá-lo no aeroporto, um
quando vê o ouro brilhar outro cara da empresa falava
quando vê o couro comer de números. A proposta era
e o besouro voar
boa, mas não tinha nossa
onda. Restou uma frase que
fala sério, o que (é) que tem
quem tem medo de enfrentar
ouvi: “Sabendo aonde se quer
a lembrança sempre vem chegar, já é difícil. Sem saber é
numa noite sem luar impossível”.
fala sério, o que (é) que foi Por anos tomei isso como
onde a gente foi parar uma grande verdade saída de
um livro de autoajuda empre-
quem não sabe finge saber sarial. Mas sempre ficava um
quando vê o ouro brilhar ruído. Grandes frases devem
quando vê o couro comer soar como um acorde maior, um
e o besouro voar sol no violão, um ré no piano.
Essa soava estranho. Um dia
fala agora onde está me deu um estalo: ela não quer
quem está no seu lugar dizer nada. O caminho a gente
no espelho
faz andando. Nem sempre, qua-
na estrada
se nunca, se sabe a rota.
esperando o inesperado
fala sério, o que (é) que há
Algumas pessoas fingem
o que falta enxergar saber quando veem a força do
ouro ou do chicote. Algumas
quem não sabe finge saber quando veem o improvável voo
quando vê o ouro brilhar do besouro. Se um estudante
quando vê o couro comer de design tivesse projetado um
e o besouro voar besouro, certamente teria sido
reprovado. Nada ali favorece o
voo. Mas, por amor às causas
perdidas, ele voa.

273
TENTENTENDER
TENTENTENDER letra: gessinger 2008
música: gessinger/leindecker
Numa das rotas de volta
a Por to Alegre, os aviões se eu disser que vi rastejar
sobrevoam Gramado. Dá pra a sombra do avião
ver lugares familiares se o céu feito cobra no chão
estiver limpo, se a poltrona for tent’entender minha alegria:
numa janela do lado direito e eu a sombra mostrou
não estiver dormindo. Nesses o que a luz escondia
voos, domingo ou segunda de
manhã, sempre estou caindo se eu quiser ser mais direto
de sono depois de algum show, vou me perder
melhor deixar quieto
algumas horas de asfalto e de
tent’entender
aeroporto.
tent’enxergar
Num dia lindo, fiquei se- o meu olhar
guindo a sombra do avião lá pela janela do avião
embaixo, passando pelas es-
tradas da serra que parecem que amor era esse
serpentes envolvendo os mor- que não saiu do chão?
ros. Escrevi a letra num guar- não saiu do lugar
danapo da TAM. A música pin- só fez rastejar o coração
tou muito rápido. Duca ajudou a
pensar uns acordes no refrão. se eu disser
Voltando de Gramado, que tive na mão a bola do jogo
mas pelo asfalto, escrevi DES- não acredite
CENDO A SERRA. Está no tent’entender a minha ironia
Várias Variáveis, um disco com se eu disser que já sabia
muitas cobras. Na capa e nas
o jogo acabou de repente
letras.
o céu desabou sobre a gente
tent’entender: eu quero abrigo
e não consigo ser mais direto

que amor era esse


que não saiu do chão?
não saiu do lugar
só fez rastejar o coração

274
ALÉM DA MÁSCARA
letra e música: gessinger 2008

agora que a terra é redonda


e o centro do universo é outro lugar
é hora de rever os planos
o mundo não é plano
não para de girar
agora que tudo está exposto
agora que o tempo é relativo a máscara e o rosto
não há tempo perdido trocam de lugar
não há tempo a perder
tô fora, se esse é o caminho
num piscar de olhos se a vida é um filme
tudo se transforma não conheço diretor
tá vendo? já passou!
tô fora, sigo o meu caminho
mas ao mesmo tempo às vezes tô sozinho
fica o sentimento quase sempre tô em paz
de um mundo sempre igual
num piscar de olhos
igual ao que já era tudo se transforma
de onde menos se espera tá vendo? já passou!
dali mesmo é que não vem
mas ao mesmo tempo
esse mundo em movimento
parece não mudar

é igual ao que já era


de onde menos se espera
dali mesmo é que não vem

visão de raio-X
o X dessa questão:
ver além da máscara

além do que é sabido


além do que é sentido
ver além da máscara

275
SEGURA A ONDA AGORA, D.G.
SEGURA A ONDA AGORA, D.G. letra e música: gessinger 2009

Neil Young avisa que a que susto eu levei quando olhei o espelho
ferrugem não descansa e caralho, como estou ficando velho!
afirma ser melhor explodir do ainda bem que tu estás comigo
que ir se apagando aos poucos. cada vez mais bela, cada vez mais velha
Pete Tonwshend deu voz à sua cada vez mais
geração cantando a vontade
de morrer antes de ficar que pena ter que ter só 2.000 anos
velho. Parece que estas duas cara, falta tempo, sobram planos!
canções tocaram na mente já não sei mais nada que eu sabia
de Kurt Cobain nos seus cada vez que gira, o ponteiro gira
cada vez mais
últimos dias. Oscar Wilde fez o
retrato envelhecer no lugar do
segura a onda agora, Dorian Gray
retratado. “better to burn out, than to fade away”
Vaidade, tudo é vaidade? segura a onda, sai dessa agora, Dorian Gray
Estaremos todos de joelhos
no altar de Peter Pan? que horas este sol vai dar um tempo?
que barraco do balacobaco
Nosferatu já encheu o saco
do verão eterno, infinito inverno
cada vez mais

que sarro aquela cara no espelho


velho, saca só esse moleque!
fazendo seu caminho pelo mundo
cada vez que volta, tá cada vez mais longe
cada vez mais

segura a onda agora, Dorian Gray


“better to burn out, than to fade away”
segura a onda, sai dessa agora, Dorian Gray

tchê louco, que momento, que viagem!


os deuses devem estar de sacanagem
ainda bem que ela está comigo
cada vez mais bela, cada vez mais velha
cada vez mais linda, agora mais ainda
cada vez mais

276
Luís Augusto Fischer
Vista a situação daqui do alto, panoramicamente, numa hipotética
mesa de bar, o prezado leitor diria que é qual o ideal de um artista? Como se
pode saber que um artista deu certo?
Sucesso de público? Pode ser. O cara vive do que faz, pinta, escreve,
canta, compõe, desenha, filma, porque tem bastante gente ali, do outro lado,
que paga para receber o produto que o artista concebeu e deu à luz, que fica feliz
quando entra em sintonia com o que ele inventou, que compartilha sentimen-
tos profundos e difíceis de traduzir ao ter contato com a obra dele, que convive
melhor com coisas que já estavam dentro de seu coração e sua alma mas que
nem pareciam estar ali.
Sucesso de crítica? Também pode ser. O artista acertou a mão no
quadro, no romance, na canção, na gravura, no filme, mas acertou num nível
sofisticado e sutil, que chamou a atenção da crítica especializada e a fez delirar,
a fez pirar o cabeção, a fez vibrar pelo encontro com arte tão significativa. Pode
até ser que o público em geral não tenha gostado tanto; mas se aqueles leitores
especiais que são (na melhor hipótese) os críticos prestaram atenção e bateram
palma, é porque o artista chegou lá.
Outro critério?

Tem um outro: é quando, para além de (apesar de, por fora de) fazer
sucesso de público e/ou de crítica, o artista grava, inscreve, engasta uma fra-
se, um par de versos, uma metáfora que seja, no repertório da linguagem das
gentes, na fala de todo mundo.
Óbvio ululante, por exemplo, é um sucesso mundial no Brasil e
tem um criador conhecido, Nelson Rodrigues. Oh, que saudades que eu ten-
ho / da aurora da minha vida, não tem jeito, está na alma da língua portu-
guesa no Brasil, mas saiu da mão de Casimiro de Abreu. Num plano mais
sofisticado, Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da

280
nossa miséria é a frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, criação
genial de Machado de Assis. Se a gente fosse para fora do país, encontraria
muitas frases assim, clássicas, de autoria de Cervantes, de Edgar Allan Poe
(Nunca mais!, Nunca mais!), de Shakespeare (Há mais coisas entre o céu e a
terra do que sonha a nossa vã filosofia).
No universo da canção, então, aí temos uma agradável fartura, no
Brasil. Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor.
Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar.
Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar cantan-
do coisas de amor. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura
por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um
outro qualquer? Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.

No momento em que este texto estava sendo concebido, eu caçava


um jeito de começar a falar do assunto principal dele, a carreira do Humberto
Gessinger e dos Engenheiros do Hawaii. Cogitei iniciar contando de quando
o conheci, da nossa amizade silenciosa, um monte de hipóteses. E nada me
satisfazia direito.
Até que, lendo uma matéria numa revista carioca, que falava de um
evento de lá mesmo, da cidade do Rio de Janeiro, matéria que trazia, num box
separado, uma análise feita por um sujeito que é tido como um competente
comentarista cultural da geração 2000, me deparo com uma passagem em
que ele, em meio ao seu arrazoado, diz, citando uma frase que todo mundo
entende sem precisar explicar, que para muitos “a juventude é uma banda
numa propaganda de refrigerante”, etcétera e tal.
Estava ali a demonstração viva da presença do Humberto e dos En-
genheiros: uma frase de uma canção — e não custa lembrar que milhares de
canções e milhões de frases andam por aí, todo o santo dia —, uma particu-

281
lar frase de uma específica canção, era citada para compartilhar todo um co-
mentário, toda uma visão de mundo, toda uma experiência geracional. (Se
eu fosse o autor da frase, nem sei como reagiria. Com vaidade? Com serena
sabedoria? Ligaria pro cara exigindo que ele dissesse meu nome? Como é que
o prezado leitor agiria se fosse o autor da frase?)
Pois é isso: numa canção que nunca escondeu sua condição de música
pop, composta e gravada há impressionantes 22 anos — em 1987 —, se esconde,
ou melhor, se revela uma pérola dessas, capaz de nos expressar melhor do que
discursos inteiros.

A virtude que combina brevidade com eficácia, no tiro ao alvo que


é a empreitada artística — o artista aqui, apontando a arma, lá adiante o
público a ser atingido —, se encontra de corpo inteiro na forma chamada
canção: negócio rápido, pá-pum, três minutos e quase nada mais, o disparo
da arte, a viagem do objeto artístico e, quando dá certo, o coração, o corpo,
a cabeça do público.
Outras linguagens e outros gêneros demoram muito mais — um ro-
mance pode levar 300 páginas, um filme demora 100 minutos, por aí afora —,
mas a canção tem isso de bom, rapidez, como a caricatura, a crônica, quem
sabe o conto e a gravura, gêneros assim breves. Mas ela tem a vantagem de
ser letra e melodia, poesia e som, ideias em palavras e a instrumentação que
pode variar muito e acrescentar enormidades, tudo isso mais a performance,
o artista ali remexendo a cabeleira, confidenciando ao microfone, piscando
para a plateia, grunhindo, fazendo de conta que chora e se alegra por nós.
Canção, que bela invenção humana. Ao longo de tanto tempo um
monte de gente limando, aprimorando, tirando excessos, propondo variações,
e aqui estamos nós, fazendo samba e rock, balada e funk, pop aguado e pop
cabeça, tango e reggae, e sabe-se lá o que mais, pelos tempos afora.

282
Fazendo de conta: aqui temos uma das chaves para abrir o cofre da
arte. Ela, qualquer que seja, da pintura à canção, faz de conta e nos convence.
Todo mundo conhece, e se não conhece precisa conhecer, o poema do Fernan-
do Pessoa que se chama Autopsicografia, título que já é um faz de conta — em
vez da psicografia convencional, em que o artista “recebe” a inspiração de
outra fonte, de alguma origem fora de si, o genial poeta português inventa a
autopsicografia, uma atividade segundo a qual o artista “recebe” a inspiração
e o fôlego artístico de fora e (mas) de dentro, como se o artista fosse mais de
um. (Bem, Fernando Pessoa era mesmo mais de um, como se sabe; assinou
centenas de poemas com seu nome de batismo, mas pilhas de outros com
alteregos, que ele chamava de heterônimos, como Álvaro de Campos, Ricardo
Reis, Alberto Caeiro, entre os mais famosos).
Pois diz a Autopsicografia:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,


Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda


Gira, a entreter a razão,
Este comboio de corda
Que se chama o coração.

A primeira estrofe fala exatamente de fingimento, de faz de conta:


o poeta sempre finge. Mas finge de um jeito tão intenso que até mesmo a sua
dor verdadeira ele finge. (A segunda estrofe é mais cheia de voltinhas, falando

283
do leitor, que ao entrar em contato com a dor fingida do poeta — seja ela de
origem inventada ou real — descobre em si, por banal milagre da arte, uma
dor que até então não existia. A terceira faz, à maneira portuguesa, um pa-
ralelo entre os trilhos de trem e a atividade do coração, que entretém, dribla,
desorganiza a razão).
Uma das coisas ao mesmo tempo mais intrigantes e mais charmosas
— são a mesma coisa? — da arte de Humberto Gessinger tem a ver exatamente
com a natureza de seu fingimento. Em forma de silogismo inicial, ficaria assim:
1. Todo artista mente (inventa, faz de conta). 2. Humberto Gessinger é artista.
3. Logo, ele mente (inventa, faz de conta).
Mas é pouco para o caso dele. Sim, todo artista mente; sim, ele é um
artista; e sim, ele mente, inventa, faz de conta. Mas há mais, bem mais que
isso em sua obra: ocorre que, há pelo menos 250 anos, desde o Romantismo, a
arte ocidental sabe que ela vive no mercado, do mercado, para o mercado, por
causa do mercado, tudo isso ou alguma combinação disso. Não existe, ou, vá
lá, praticamente não existe artista que possa de cara limpa dizer que não de-
pende do mercado; e o mercado, essa diabólica e magnífica invenção humana
que nos torna capazes de conviver ao mesmo tempo num mesmo espaço, tem
suas exigências.
O mercado, se depender dele apenas, quer é coisas vendáveis, que
não façam o comprador sair muito do seu lugar. Aliás, o mercado quer mesmo
é que o sujeito deixe de ser propriamente um sujeito, e aja sem pensar muito.
O que importa é que compre, que faça girar a roda do consumo puro e sim-
ples. Agora me diz: como se faz arte nesse cenário, que nos últimos 50 anos
— a idade do rock, mais ou menos — acelerou ainda mais essas exigências?
Faz aí que eu quero ver.

O silogismo então complicaria de vez: 1. Todo artista mente (in-


venta...). 2. Todo artista vive no/do/pelo/para o mercado. 3. Mas nem todo
artista se contenta em viver assim. 4. Humberto Gessinger, como vários ou-

284
tros valorosos artistas de nosso tempo, é um que pelo menos levanta a mão
pra tomar a palavra dizer que não é bem assim, que nem sempre precisa ser
assim, ou ainda, no limite, que a arte, ok, vive mergulhada no mercado, mas
isso não anula outras dimensões possíveis. 5. Mas também essa resistência é
inútil, porque a força do mercado e a lógica da mercadoria são superiores às
coisas que resistem a elas...
O silogismo foi pro espaço, não tem como seguir com ele, porque aqui
a gente tem a sensação de ter entrado num labirinto, ou pior ainda, de estar
entre dois espelhos, um a refletir a imagem do outro infinitamente, sem parar,
gerando aquela sensação de abismo, e abismo perverso, desagradável, que não
permite nem o gozo da vertigem.
E de mais a mais os 50 anos mencionados acima são também mais ou
menos os anos do pop, e aí já descemos mais um degrau nessa maluquice, en-
tramos mais ainda no jogo de espelhos e de fundos falsos. Porque o pop nasceu
de dentro do mercado, ao contrário de outros modos de praticar a arte, nascidos
nos salões aristocráticos ou nos salões de igreja (como grande parte da música
erudita), ou brotados no meio da rua e sem qualquer pedigree (como, falando
nisso, a canção para comentar a vida diária e falar mal dos vizinhos, nas feiras
medievais). Pop não tem jeito: ou faz sucesso, ou não existe. E fazer sucesso
combina com fazer de conta? E pode conviver com aquela onda de fingir uma
dor verdadeira, também? (De repente, este comentário aqui se contaminou do
paradoxo, espelho contra outro).

Por isso tudo, combinadamente, é que eu aprecio muito a obra do HG


(hg não é o mercúrio, aquele que muda de lugar, que não se deixa pegar assim
no mais?). Faz tempo. A gente se conhece desde antes de conversar, famílias
conhecidas, mesma classe e mesma posição geográfica no mundo. Uns pou-
cos anos de diferença, porém, não nos proporcionaram conviver — são aqueles
poucos anos que entre os cinco e os 25 impõem uma intransponível barreira,
mas que depois viram pó. E calhou que, quando eu comecei a dar aulas, fui

285
professor da turma dele: exatamente no meu primeiro ano de profissional ele
estava no último do colégio. Duas, três conversas, nada mais.
Aí eu fiquei de longe observando. Tínhamos amigos comuns. E ele
em seguida se apresentou no cenário artístico da cidade e do país como uma
coisa nova, uma daquelas informações artísticas que azucrinam porque di-
vergem, saem do óbvio, ironizam. Parecia com muitos outros, mas já mar-
cava diferença. E tudo que se falava dos Engenheiros sugeria que era melhor
considerar duas vezes, pensar enviesado, sentir mediadamente. A começar
pelo nome, claro.
Na época as bandas se batizavam com nomes regressivos ou
retrôs pretendendo um certo chique — Os Titãs do Iê-Iê-Iê (depois caiu a
segunda parte desse nome), Barão Vermelho —, ou faziam trocadilho puro
e simples — Ultraje a Rigor, Capital Inicial —, ou ostentavam uma atitude
mais claramente identificada com o aspecto transgressivo do rock, adotan-
do nomes que eram uma espécie de ameaça — Camisa de Vênus (expressão
que não se usava na frente dos mais velhos, acredite), TNT —, ou brinca-
vam com certo nonsense, namorando ao mesmo tempo as denonimações
retrô — Paralamas do Sucesso.
E o nome dos Engenheiros do Hawaii era o que, nesse bolo? Era
nonsense também, mas parecia algo que girava em falso, porque as imagens
sugeridas no nome não se ancoravam em lugar nenhum. De que se tratava?
Logo o próprio Humberto disse, em entrevista, que era uma homenagem a duas
grandes comunidades porto-alegrenses, os engenheiros e os havaianos.
Bela piada, excelente ironia. Porto Alegre fica a cem quilômetros
do mar mais próximo, mas ali as ondas são fracas, baixas, insuficientes para
a prática do famoso esporte havaiano, o surfe. E mesmo esse dado de indes-
mentível realidade não impediu a explosão de havaianos na cidade. Fenômeno
daquele momento, que o nome inventado ajudou a fixar.
Quanto aos engenheiros, pode ser também piada pura, ironia que flu-
tua no espaço infinito sem oferecer ponto de amarração, mas também pode ser
colada à rixa entre estudantes de Arquitetura, como era o caso do HG, e estu-
dantes de Engenharia, que além de numerosos são também típicos, em grande

286
medida. (Tive oportunidade de conviver com parte dessa fauna, quando ingres-
sei na universidade para cursar Geologia, que abandonei no terceiro ano. Mas
não por causa dos engenheiros).
Pode também não ser nada disso, e ainda assim o aspecto brincalhão
do par de nomes fica boiando na percepção, não fica? Fica, como um objeto não
muito claramente identificado que no entanto não sai de perto, condição que é
tudo que a arte quer e busca.

Primeiro disco, outra declaração indireta, daquelas que quem en-


tende entende e quem não entende pode até se perder, mas ficará com a frase
ecoando na percepção: Longe Demais das Capitais. Capitais? Quais eram elas
mesmo? Longe? Longe demais? Quanto é demais? Estar perto ou longe é um
problema sério para quem não está no centro, e simplesmente inexiste para
os que lá estão. Simples assim. Mas precisa o artista vir aqui e dizer, inventar,
fazer de conta — ou, neste caso, desfazer o faz de conta que renega a distância.
(Cai a neve na vitrine, e a gente derrete ao sol, diz uma canção que olha para
isso com um mix de crítica e carinho).
Na minha recepção, é como se a gente tivesse ouvido desde sempre
na obra do Humberto certas precisas declarações, menos nas palavras pronun-
ciadas do que nas entrelinhas: eu estou aqui e não estou, não tenham tanta
certeza, mas é certo que é da vida que eu estou falando, sabe como é? Essa
mesmo, a que eu vivo e finjo, a que todo mundo vive e finge.
Aquele tempo, meados dos anos 1980, estava ainda fazendo o luto
pela perda de força da chamada MPB — aquela música próxima dos gêneros
populares brasileiros, com letras de combate à ditadura e ao conservadorismo
—, e ainda não celebrava o rock, que estava vendo nascer uma geração de
grandes talentos, como os que viriam a ser, nos anos seguintes, reconhecidos
como intérpretes legítimos da experiência da juventude. Entre eles, alguns
grandes talentos, e três principais, ao que parece — Cazuza, mais perto da

287
tradição da canção brasileira, quer dizer, carioca; Renato Russo, com todo
o figurino do pop-rock melancólico; HG, pendurado na ironia, mas capaz de
grandes momentos líricos (ou vice-versa).
Naquele tempo, o que havia no campo do rock era, ultimamente, a
Blitz fazendo canção análoga ao teatro besteirol, leve, carioca, mais os Mu-
tantes lá no fundo, inventando mesmo depois de separados, e o enigma Raul
Seixas, fora de padrão como sempre, rockeiro portanto. Criou-se o festival com
nome de trocadilho, Rock in Rio; as gravadoras viram que cabia; toda uma nova
massa de ouvintes queria dançar e cantar, agora já sem o choro setentista pelo
advento da ditadura, agora de olhos postos num aqui e agora vivo.

Em todos os discos, a cada ano, mudando a formação da banda e al-


terando os instrumentos que entravam em cena para ajudar a dizer, lá estava o
Humberto para comentar a vida. Como a obra dele se ancora em fatos, em even-
tos significativos, não é? Já viu? Não era nas coisas da província gaúcha, em-
bora também elas estivessem ali como paisagem (sonora, temática), nem nas
coisas da moda imediata vivida pelos adolescentes: era nos aspectos amplos,
que de tão fortes nem apareciam direito — Fidel e Pinochet na mesma linha,
terrorismo em qualquer parte, tudo coisa relativamente remota para quem é
muito jovem, que a música dos Engenheiros trazia para perto (para perto da
conversa, para longe da ingenuidade).
Mas ao mesmo tempo sua obra não é muito dependente de infor-
mações localizáveis no tempo e no espaço, já reparou? Vai ver de perto, tá
cheio de amadores desiludidos, de andarilhos desenganados, de brincadeira
autoirônica alusiva ao massacre que os meios de comunicação massivos perpe-
tram cotidianamente, tudo podendo ser referido a uma situação particular ou a
qualquer experiência passada nos tempos atuais: tem ali um “eu” que funciona
para qualquer um.

288
HG funciona muito pelo trocadilho — não passa por aqui, não passa
de ilusão —, talvez porque sua arte se oxigene exatamente na linguagem comum,
essa matéria-prima rebaixada. Pode bem ser que os jogos de sentido pescados
no cotidiano da fala dependam dessa origem para brilhar: ali, na linguagem
banal, que se usa sem pensar, o artista vai colher o alimento de sua arte, que
porém vai reprocessar o que recolheu mediante aproximações e afastamentos,
analogias e contrastes. O resultado é que a gente ouve o que ele faz e reconhece
desconhecendo, desconhece reconhecendo.
Uma forma de dizer isso, de explicar esse processo, é meio complicada,
mas me parece exata: HG opera por trocadilhos, que acrescentam dimensões no
discurso ao aproximar conteúdos inusitados, e por saltos semânticos, que aproxi-
mam dimensões distantes. Sua arte caminha mediante reiterações de som e de for-
ma — por pura falta de opção, púrpura é cor do coração —, que são recombinações
de sentido e não deixam de ter sempre alguma coisa da estrutura do sonho.
Sabe no sonho, na estrutura narrativa do sonho, quando acontece
de um evento, uma pessoa, uma frase, alguma coisa repetir-se? Sempre que
aparece pela segunda vez, a gente se dá conta de que houve algum movimento,
algum deslocamento, de forma que entre as palavras e as coisas referidas por
elas parece ter havido uma mudança inesperada, geradora do estranho, que dá
prazer, mas pode ser triste, como o tapete que saiu do lugar já manchado sobre
o piso, mas a gente só se dá conta depois, quando passou o momento de ajeitar.
É uma estrutura que tem muito a ver com o chamado loop, ou looping, um re-
torno, seja ele calculado ou inesperado, uma volta ao ponto que se acreditava
deixado pra trás, um frio na barriga pelo reencontro com o rastro, por aí.

E onde para isso tudo? Para na percepção do ouvinte da obra dos En-
genheiros, na obra desse engenheiro andante chamado Humberto Gessinger.
A percepção é um território entre a alma e a inteligência, que a arte visita sem-

289
pre que consegue furar a barreira da indiferença. (HG fura essa barreira com
o trocadilho, a reiteração que é deslocamento de sentido, a recombinação que
proporciona um salto de significado. Mas eu já falei isso). Ouça o que eu digo:
não ouça ninguém.
Fico tentado, por temperamento, a fazer uma síntese: qual é a dele?
No fim das contas, tudo considerado, o que resta de sua obra no ouvinte? Eu
não sei se tem como dizer algo decente aqui, mas desconfio do seguinte: com
suas canções ao mesmo tempo simples mas comunicativas, limpas mas com res-
saltos, com seu pop que não se conforma com a mera condição de pop (e sabe
que o pop não poupa ninguém, mais uma verdade eterna desta semana), ele faz
reviver esteticamente algo de muito grave e profundo da experiência deste tempo
— este aqui, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro, o tempo da instantaneidade
da comunicação, mas que guarda muito ainda do nosso velho jeitão hippie de ser
—: como suas canções, também nós vivemos entalados entre o cotidiano, a bana-
lidade e a exaltação, a excepcionalidade. Entre a indiferença, ou a falta de sentido,
e a paranoia, ou o excesso dele. Entre a afasia, a incapacidade de dizer qualquer
coisa, e a falastrice, a urgência de falar sem parar, mesmo sem fazer sentido.
Fazer sentido, aí está: para mim e, muito mais importante, para seus
entranhados fãs, Humberto Gessinger ajuda a fazer sentido, a compor signifi-
cado na vida, presos que estamos nesses paradoxos, como o de estarmos cor-
rendo muito, talvez para o lado errado.

290
Agradeço e dedico este livro a todos
que participaram desta história,
tocando, gravando, fotografando,
produzindo, desenhando, ouvindo
o que eu digo, não ouvindo ninguém,
surfando karmas e dançando em
campos minados. Valeu!
Índice de Músicas pág.

1. 10.000 DESTINOS____________________________________ 245


2. 3 MINUTOS_________________________________________ 238
3. 3ª DO PLURAL______________________________________ 252
4. 3x4_______________________________________________ 241
5. ALÉM DA MÁSCARA__________________________________ 273
6. ALÉM DOS OUTDOORS________________________________ 182
7. ALÍVIO IMEDIATO____________________________________ 194
8. ANDO SÓ__________________________________________ 211
9. ANOITECEU EM PORTO ALEGRE_________________________ 202
10. ARAME FARPADO____________________________________ 255
11. ARMAS QUIMICAS E POEMAS__________________________ 262
12. ÀS VEZES NUNCA____________________________________ 225
13. ATÉ O FIM__________________________________________ 261
14. BANCO____________________________________________ 236
15. BEIJOS PRA TORCIDA________________________________ 176
16. A BOLA DA VEZ______________________________________ 236
17. CAMUFLAGEM______________________________________ 257
18. CAUSA MORTIS_____________________________________ 171
19. CHUVA DE CONTAINERS_______________________________ 222
20. CIDADE EM CHAMAS_________________________________ 185
21. CINZA_____________________________________________ 267
22. CONCRETO E ASFALTO________________________________ 243
23. A CONQUISTA DO ESPAÇO_____________________________ 216
24. A CONQUISTA DO ESPELHO____________________________ 217
25. CORAÇÃO BLINDADO_________________________________ 263
26. CRÔNICA__________________________________________ 174
27. DANÇANDO NO CAMPO MINADO________________________ 255
28. DATAS E NOMES_____________________________________ 254
29. DE FÉ_____________________________________________ 232
30. DESCENDO A SERRA_________________________________ 212
31. ?DESDE QUANDO?___________________________________ 191
pág.

32. DESERTO FREEZER___________________________________ 237


33. DOM QUIXOTE______________________________________ 256
34. e-STÓRIA__________________________________________ 250
35. EM PAZ____________________________________________ 195
36. ENGENHEIROS DO HAWAII, A CANÇÃO___________________ 170
37. ESPORTES RADICAIS_________________________________ 249
38. EU QUE NÃO AMO VOCÊ_______________________________ 242
39. O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ_________________________ 196
40. FAZ DE CONTA______________________________________ 266
41. FÉ NENHUMA_______________________________________ 175
42. FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR_________________ 179
43. FREUD FLINTSTONE__________________________________ 235
44. FUSÃO A FRIO______________________________________ 256
45. GUANTÁNAMO______________________________________ 265
46. GUARDAS DA FRONTEIRA_____________________________ 184
47. HORA DO MERGULHO________________________________ 227
48. ILEX PARAGUARIENSIS_______________________________ 229
49. INFINITA HIGHWAY___________________________________ 180
50. IRRADIAÇÃO FÓSSIL_________________________________ 234
51. LADO A LADO_______________________________________ 230
52. LANCE DE DADOS____________________________________ 228
53. LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS__________________________ 174
54. LUZ_______________________________________________ 269
55. MAPAS DO ACASO___________________________________ 226
56. A MONTANHA_______________________________________ 238
57. MUROS & GRADES___________________________________ 206
58. NA REAL___________________________________________ 240
59. NA VEIA___________________________________________ 260
60. NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM________________________ 264
61. NÃO É SEMPRE_____________________________________ 210
62. NAU À DERIVA______________________________________ 193
pág.

63. NEM + 1 DIA_______________________________________ 248


64. NINGUÉM=NINGUÉM_________________________________ 214
65. NO INVERNO FICA TARDE MAIS CEDO____________________ 217
66. NO MEIO DE TUDO, VOCÊ______________________________ 263
67. A NOITE INTEIRA____________________________________ 204
68. NOVOS HORIZONTES_________________________________ 247
69. NÚMEROS_________________________________________ 246
70. NUNCA É SEMPRE___________________________________ 211
71. NUNCA SE SABE_____________________________________ 190
72. NUVEM____________________________________________ 240
73. O OLHO DO FURACÃO________________________________ 244
74. OLHOS IGUAIS AOS SEUS_____________________________ 204
75. OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM_______________ 186
76. OUTONO EM PORTO ALEGRE___________________________ 257
77. OUTRAS FREQUÊNCIAS_______________________________ 261
78. OUTROS TEMPOS____________________________________ 239
79. PAMPA NO WALKMAN________________________________ 215
80. O PAPA É POP_______________________________________ 198
81. PARABÓLICA_______________________________________ 218
82. PERDÃO É UMA BORRACHA MACIA______________________ 244
83. PERFEITA SIMETRIA__________________________________ 199
84. PIANO BAR_________________________________________ 207
85. PLANO B___________________________________________ 269
86. PORÃO____________________________________________ 232
87. POSE (ANOS 90)_____________________________________ 219
88. POUCA VOGAL______________________________________ 270
89. PRA ENTENDER_____________________________________ 188
90. PRA FICAR LEGAL___________________________________ 248
91. PRA QUEM GOSTA DE NÓS_____________________________ 268
92. PRA SER SINCERO___________________________________ 201
93. PROBLEMAS… SEMPRE EXISTIRAM_____________________ 221
pág.

94. ?QUANTO VALE A VIDA?______________________________ 223


95. QUARTOS DE HOTEL_________________________________ 205
96. QUEBRA-CABEÇA____________________________________ 265
97. QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA__________________ 183
98. REALIDADE VIRTUAL_________________________________ 224
99. REFRÃO DE BOLERO__________________________________ 184
100. A REVOLTA DOS DÂNDIS______________________________ 177
101. ROTA DE COLISÃO___________________________________ 258
102. SAMPA NO WALKMAN________________________________ 213
103. SEGUIR VIAGEM_____________________________________ 243
104. SEGUNDA FEIRA BLUES_______________________________ 258
105. SEGURA A ONDA AGORA, D.G.__________________________ 274
106. SEGURANÇA________________________________________ 172
107. SEI NÃO___________________________________________ 253
108. SEM VOCÊ (É FODA!)_________________________________ 233
109. SIMPLES DE CORAÇÃO_______________________________ 227
110. SOMOS QUEM PODEMOS SER__________________________ 187
111. O SONHO É POPULAR_________________________________ 206
112. SURFANDO KARMAS & DNA___________________________ 247
113. TENTENTENDER_____________________________________ 272
114. TERRA DE GIGANTES_________________________________ 178
115. TODA FORMA DE PODER______________________________ 173
116. TRIBOS E TRIBUNAIS_________________________________ 189
117. TÚNEL DO TEMPO___________________________________ 220
118. A VERDADE A VER NAVIOS____________________________ 192
119. VÍCIOS DE LINGUAGEM_______________________________ 231
120. VIDA REAL_________________________________________ 234
121. A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR_____________ 200
122. O VOO DO BESOURO_________________________________ 271
123. VOZES____________________________________________ 183
Músicas/Editoras
As letras das canções presentes neste livro foram editadas por:

BMG Music Publishing Brasil


3 Minutos; Banco; A Bola da Vez; Causa Mortis; De Fé; Deserto Freezer; Freud
Flintstone; Hora do Mergulho; Ilex Paraguariensis; Irradiação Fóssil; Lado a Lado;
Lance de Dados; A Montanha; Nuvem; Porão; Sem Você (É Foda!); Simples de
Coração; Vícios de Linguagem e Vida Real.

Universal Music Publishing


10.000 Destinos; 3a do Plural; 3x4; Além da Máscara; Arame Farpado; Armas
Químicas e Poemas; Até o Fim; Camuflagem; Cinza; Concreto e Asfalto; Coração
Blindado; Dançando no Campo Minado; Datas e Nomes; Dom Quixote; e-Stória;
Em Paz; Esportes Radicais; Eu que Não Amo Você; Faz de Conta; Fusão a Frio;
Guantánamo; Luz; Na Real; Na Veia; Não Consigo Odiar Ninguém; Nem + 1 Dia;
No Inverno Fica Tarde + Cedo; No Meio de Tudo, Você; Novos Horizontes; Números;
O Olho do Furacão; Outono em Porto Alegre; Outras Frequências; Outros Tempos;
Pouca Vogal; Pra Ficar Legal; Pra Quem Gosta de Nós; Quebra-Cabeça; Rota de
Colisão; Seguir Viagem; Segunda Feira Blues; Sei Não; Surfando Karmas & DNA;
Tententender; Tribos e Tribunais e O Voo do Besouro.

Warner Chappel
Além dos OutDoors; Alívio Imediato; Ando Só; Anoiteceu Em Porto Alegre; Às Vezes
Nunca; Beijos Pra Torcida; Chuva de Containers; Cidade Em Chamas; A Conquista
do Espaço; A Conquista do Espelho; Crônica; Descendo a Serra; ?Desde Quando?;
O Exército de Um Homem Só; Fé Nenhuma; Filmes de Guerra, Canções de Amor;
Guardas da Fronteira; Infinita Highway; Longe Demais das Capitais; Mapas do
Acaso; Muros e Grades; Não é Sempre; Nau à Deriva; Ninguém = Ninguém; A Noite
Inteira; Nunca é Sempre; Nunca Se Sabe; Olhos Iguais Aos Seus; Ouça O Que Eu
Digo: Não Ouça Ninguém; Pampa No Walkman; O Papa é Pop; Parabólica; Perfeita
Simetria; Piano Bar; Pose (Anos 90); Pra Entender; Pra Ser Sincero; Problemas...
Sempre Existiram; ?Quanto Vale a Vida?; Quartos de Hotel; Quem Tem Pressa Não
Se Interessa; Realidade Virtual; Refrão de Bolero; A Revolta dos Dândis; Sampa
No Walkman; Segurança; Somos Quem Podemos Ser; O Sonho é Popular; Terra
de Gigantes; Toda Forma de Poder; Túnel do Tempo; A Verdade A Ver Navios; A
Violência Travestida Faz Seu Trottoir e Vozes.

Exceto as canções inéditas:


Engenheiros do Hawaii - A Canção, Perdão É uma Borracha Macia, Plano B e Segura
a Onda Agora, D.G.
Créditos das Imagens
Todos os esforços foram feitos para creditar devidamente os detentores
dos direitos das imagens utilizadas neste livro. Eventuais omissões
de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente
solucionadas nas próximas edições, bastando que seus proprietários
contatem os editores.

FOTOGRAFIAS
Arquivo Pessoal Humberto Gessinger | Páginas 8, 9, 10, 12, 18, 19, 20,
25, 26, 28, 32/33, 39B, 49, 69, 74/75, 87, 97, 139, 145, 148A, 153, 157,
159, 230, 250, 266 e 268

Adriane Pitigliani | Páginas 84, 102/103 e 104

Adriano Machado | Página 114

André Diehl | Página 90

Bruno Castaing | Páginas 128/129

Dario Zalis | Páginas 50/51, 58/59, 63, 64/65, 66, 72/73, 80/81, 82,
88/89, 94/95 e 96

Denise Yamassake | Páginas 116 e 136

Eurico Salis | Páginas 30/31, 35, 36/37, 39A e 42/43

Fernando Seixas | Páginas 44/45

Fernando Witt | Página 38

Ivan Capelli | Página 124

Jeff Minchef | Páginas 75, 115, 131, 137 e 203


Luis Saguar | Páginas 120, 130 e 134/135

Marco de Bari/Editora Abril | Capa e contra-capa

Marcos Hermes | Páginas 5, 122/123, 140/141 e 142

Marisa Cauduro | Página 79

Melissa Mattos | Páginas 6, 100, 101, 112/113, 143, 148B, 148E, 150/151,
152, 160/161, 162, 163, 166, 218, 276, 290/291, 297 e 300/301

Randal de Lima | Página 52

Regina Protskof/La Photo Stúdio | Página 99

Vera Donato | Página 148C

Washington Possato | Página 148D

Fotógrafo não-identificado | Página 60

ILUSTRAÇÕES
Todas as ilustrações são de autoria de Andrews & Bola, exceto:
• Página 127, de Humberto Gessinger
• Página 253, de Luis Trimano (para a capa de Surfando Karmas & DNA)
• Página 235 de Fredy Varela

CAPAS DE DISCOS/MATERIAL DE DIVULGAÇÃO


BMG Brasil | Páginas 32, 33, 38, 44, 53, 61, 67, 69A, 74, 83, 91, 96 e 105
Universal Music Brasil | Páginas 114, 124, 130, 136, 142 e 152
Som Livre | Página 162

JORNAIS E REVISTAS
Reprodução | Páginas 71 e 164/165
Para saber mais sobre o nosso catálogo, acesse:
www.belasletras.com.br
1ª edição / 2ª reimpressão / 2012
Impresso na Gráfica Pallotti em fevereiro de 2012.

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