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Humberto Gessinger
Humberto Gessinger
1ª Edição/2ª Reimpressão
2012
copyright 2009 Humberto Gessinger
[2010]
© Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Belas-Letras Ltda.
Rua Coronel Camisão, 167
CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS
Fone: (54) 3025.3888
www.belasletras.com.br
ISBN 978-85-60174-45-4
1. Autobiografia. I. Título
09/34
CDU : 869.0(81)-94
1. Autobiografia 869.0(81)-94
123 Letras
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Nasci no dia 24 de dezembro, o que me deixou sem festa de aniversá-
rio a vida inteira. A vida inteira estudei numa mesma escola de classe alta. Só
porque meu pai trabalhava lá. Ele vivia correndo de colégio em colégio, dando
aulas de latim, depois francês, depois português. Enquanto os currículos esco-
lares eliminavam idiomas, o professor Huberto corria atrás do leite das crian-
ças. Quatro filhos pra criar. Nunca nos faltou nada, material ou espiritual.
Minha mãe também lecionava. Eram dela os livros mais bacanas
da casa. Grandes, com capa dura e muito mais figuras do que texto. Infeliz-
mente, em vez de aprender geografia nesses livros, tomei gosto por gráficos
e tabelas. Deve ser o que chamam de efeito colateral. Dona Casilda tem seus
mistérios. Um motor que não faz barulho. E anda! Na próxima encarnação,
quero ser neto dela.
Não tenho nada muito interessante pra contar dos tempos de colégio.
Quem não me conhecia me achava antipático. Ninguém me conhecia. Nenhum
dos meus colegas frequentava as mesmas ruas, quadras e esquinas que eu.
A cidade devia ser bem pequena vista de um avião. Por dentro, era enorme.
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Da escola não tenho nada muito interessante pra contar, a não ser
que eu era goleiro. Uma pequena vaidade. Sofrer solitariamente? Sim, mas com
fardamento diferente. Luva, bandana e joelheira.
Do gol, passei a jogar tênis. Bjorn Borg era o cara. E era frio, o Ice-
borg. Podia jogar 123 horas, ganhar ou perder, sem que seu rosto revelasse al-
guma emoção. Parecia saber algo que ninguém mais sabia. E parecia não poder
dividir o segredo com mais ninguém.
Com seu jeito de goleiro argentino, Borg parou de jogar no auge
da carreira. Há lendas nebulosas sobre tentativas de suicídio. Um tango
nórdico escrito por Wagner. Como geralmente acontece na dança dos ci-
clos, as características dele ficaram mais nítidas contrastadas com a manei-
ra de ser do cara que o sucedeu no topo do tênis mundial: John McEnroe,
um fanfarrão.
Eu nunca tive muito saco nem talento para competição. Depois de al-
guns minutos, me parecia absurdo ficar correndo atrás de uma bolinha que ou-
tro cara teimava em jogar cada vez mais longe. Treinar, eu achava legal. Passava
horas no paredão, só ouvindo minha respiração e os três sons que a bolinha
fazia: raquete-parede-chão, raquete-parede-chão. Um compasso ternário, uma
valsa, um chamamé, um-dois-três, 1-2-3, raquete-parede-chão.
Resumindo minha carreira tenística, desenvolvi um saque muito
bom. Acima de qualquer outro golpe, pois era o único que eu podia aperfeiçoar
sozinho. O golpe que começa e termina em si mesmo. Cordel Kill Bill.
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Cordel Kill Bill. Mente desligada. Hoje, consigo essa boa sensação es-
tranha percorrendo, mecanicamente, sem emoção, escalas no piano ou violão.
Lavar louça ou pregar botões também funciona, algumas vezes.
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Um conhecido dos meus pais trabalhava numa sociedade arrecadadora
de direitos autorais, por isso ganhava uma quantidade enorme de discos. Sem ter
o que fazer com eles, deixou todos com a gente. Era uma coleção fascinante por
ser completamente aleatória. Ninguém compraria aqueles, e só aqueles, discos.
No meio de todas as possibilidades musicais que os LPs ofereciam, eu
voltava sempre para Os Incríveis, conjunto da Jovem Guarda, e José Mendes,
cantor missioneiro. A causa do fascínio eram duas canções com uma caracterís-
tica comum: narravam uma história. Como um filme ou uma ópera. Histórias
tristes, sem final feliz.
Era um Garoto que como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones
começava com uma rajada de metralhadora e contava a história de um jovem
morto na guerra. Em Picaço Velho, era um cavalo que morria. Culpa de um
boi brasino. Foi por querer muito tocar essas duas músicas que ganhei meu
primeiro violão.
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Quem me deu o presente foi tia Bambina. Eu adorava esse nome até
o dia em que ela me explicou por que não gostava dele: Bambina quer dizer
“menina” em italiano. Era um antinome, nome nenhum.
Desde sempre escrevi, com a pior caligrafia da turma, letras de
músicas que não existiam. O violão foi ficando pra trás, acumulando poeira.
Quando eu tinha doze anos, meu pai adoeceu. Faleceu quando eu tinha catorze.
Tudo ficou em stand-by, nesse período, lá em casa. Acumulando poeira.
Muita coisa ficou em stand-by pra sempre. Não deu tempo pra ele me ensi-
nar a fazer a barba.
Enquanto meus colegas brigavam com seus pais na saudável busca de
identidade, à noite, eu colocava os chinelos do meu pai para andar no escuro da
casa. Fisicamente não nos parecíamos, mas o som dos chinelos caminhando era
igual. Matava um pouco da saudade.
O que havia de bom nessa época era ouvir música. Descobrir no-
vos grupos nas revistas compradas no segundo andar do mercado público.
Mais do que ouvintes, éramos torcedores das bandas. Quanto mais obscura
e menos conhecida, mais gostávamos. O ideal de todo fã é ter uma banda
só para si. Pelo menos era. Em algum ponto da estrada, vender mais discos
e dar mais entrevistas passou a ter valor, mesmo nas tribos que deveriam
oferecer alternativas.
Até no minúsculo mundo do rock inglês havia territórios e fronteiras,
uma divisão bem nítida entre estilos. Rock Pesado versus Rock Progressivo.
Este último era o meu time. Apesar de também gostarmos de outras bandas,
não podíamos admitir. Tínhamos que fazer pose de maduros defensores do rock
mais cabeça, desdenhando os cantores que só ficavam no baby, baby, baby...
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Concordávamos todos no pavor à Disco Music. É engraçado: o que
considerávamos mais superficial vingou e influencia o pop de hoje. O que
achávamos perene, micou. Continuo resistindo, achando que isso é só uma con-
sequência matemática da maior exposição do que chamávamos de som comer-
cial. Certamente não estou com a razão.
Meu coração de fã continua intacto. Não é pouca coisa, manter as
ilusões depois de ver a máquina por dentro. Sou completista: quando gosto de
algum artista, quero saber tudo sobre seu trabalho. Adoro as fases estranhas
pelas quais todos os artistas de longa carreira passam. Sempre tive um pé atrás
com as novas ondas, por isso, frequentemente me atraso. Fui o último cara da
minha turma a me dar conta de que Bob Marley era o que é.
Meu presente de quinze anos foi dinheiro suficiente pra comprar uma
guitarra e um amplificador. Faltou pro táxi e tive que levar a tralha pra casa de
ônibus. Decepção total com a guitarra. Não era um instrumento introspectivo.
Resolvi tomar aulas de violão. Cordas de náilon. Yankees go home!
Quando cheguei, na primeira aula, o professor estava tocando um
choro ao bandolim. Foi o fim do violão. Falei que queria aprender aquilo.
Ele disse que eu deveria formar um regional para me acompanhar. Consegui
três colegas, dois violões e um cavaquinho.
O chorinho virou uma paixão. Nos sábados, o professor nos passava
uma música e eu ia direto para as lojas de disco do centro catar tudo que eu
achava de Jacob do Bandolim e Valdir Azevedo. Os álbuns do Arthur Moreira
Lima interpretando Ernesto Nazareth estavam no topo de qualquer lista.
Fui ficando sozinho na paixão pelo choro. O regional de um homem
só. Na época, abriu-se uma janela de receptividade, até comercial, para uma
música instrumental bem mais complexa: jazz, Gismonti, Jean Luc-Ponty, Pat
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Metheny, Stanley Clarke, Weather Report... Assisti a John McLauglin num Gi-
gantinho quase lotado! Ainda que maravilhosa, essa música trazia uma sensa-
ção desestimulante. Tocar parecia algo reservado a poucos eleitos. Segui ouvin-
do meus discos e tocando meu violãozinho no quarto fechado.
Resolvi cursar Arquitetura, não sei bem por quê. Até não descarto
uma influência inconsciente de músicos que fizeram esse curso. Alguns da Bossa
Nova, outros da MPB. Até os caras do Pink Floyd, em biografias mal traduzidas,
estudaram Arquitetura.
Meu traço não era bom, mas eu gostava das matérias teóricas, história
da arte, história das cidades. Aquela esquina entre Artes Plásticas e Engenharia
era um lugar legal pra ficar olhando o movimento.
Entrei na Escola de Arquitetura da UFRGS em 1981. Havia dois gru-
pos de professores ideologicamente opostos. Dependendo de quem avaliasse
os nossos trabalhos, poderíamos tirar a melhor nota ou sermos reprovados.
Bela lição de relativismo cultural. Me foi muito útil fora da escola.
o sonho é popular
eu li isso em algum lugar
se não me engano, é Ferreira Gullar
falando da arquitetura de um Oscar
o concreto paira no ar
mais aqui do que em Chandigarh
o sonho é popular
No fim de 1984 rolou uma greve que fez as aulas se estenderem ja-
neiro adentro. Sem muito o que fazer no verão porto-alegrense, a estudantada
inventava atividades paralelas: exposições, festas, happenings… Numa des-
sas, me juntei a três colegas para fazer um show no auditório da faculdade.
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O baterista era Carlos Maltz, figuraça. Muito inteligente. A piada
que diz serem necessários dois bateristas pra trocar uma lâmpada (um pra
segurar a lâmpada e outro pra beber até a sala girar) não se aplica a ele. Mais
inquieto e rodado do que eu, Carlos já era casado e havia passado um tempo
em Israel e na Europa. Nossas diferenças ajudavam muito na invenção de
uma banda. Seguimos tocando juntos por muito tempo. Até brigarmos sem
brigar. Cada um foi pro seu canto e cada canto virou um mundo à parte. De-
pois de um tempo, voltamos a fazer algumas coisas juntos. Carlos é um dos
responsáveis por eu ter seguido escrevendo e tocando. 123 vezes resolvi largar
tudo e ele sempre me dizia, às vezes sem falar nada, pra continuar.
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Lembro de ter sugerido Frumelo & Os 7 Belos, brincando com o
nome das balas. Todo o mundo odiou. Engenheiros do Hawaii era uma brin-
cadeira com os estudantes de Engenharia e surfistas que frequentavam nosso
bar atrás das nossas colegas. Péssima escolha. Até hoje não sei nadar. Até hoje
tenho que explicar que nunca estudei Engenharia pra gente que não acredita
e jura que conhece outralguém que estudou comigo, Engenharia. Mas há uma
autoironia, no nome, que me agrada.
to be or not to be
engenheiros do Havaí
eles odeiam Albert Camus
eles só querem ler gibi
meninos de engenho
santa ingenuidade
santíssima trindade
sexo, drogas, rock’n’roll
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Não lembro bem do show, pois estava bêbado. Era a primeira vez
que eu tocava em público. Tracei uma linha na lista das músicas que ficava
aos meus pés, exatamente no que seria a metade do show. Enquanto tocava,
olhava o roteiro e pensava que, se chegasse até aquela linha vivo, iria até o fim.
Essa mania me acompanhou por alguns anos.
Em princípio, eu nem deveria cantar todas as canções, mas, no pro-
cesso, o pessoal foi tirando o corpo e sobrou pra mim. Cantar não era algo que
me dava prazer. O que eu queria fazer era tocar algum instrumento. E compor.
Esse primeiro show parece ter ido bem. Pintaram convites pra apresen-
tações em outras faculdades e alguns bares. A banda que montamos pra durar
uma única noite estava virando uma banda pra durar algumas semanas. Já como
um trio, tocávamos onde dava pra tocar. Onde não dava, também tocávamos.
O repertório ia mudando rapidamente. As colagens performáticas
foram dando lugar a um material mais pessoal, saído do velho caderno. Dos
bares, começamos a andar pelo interior. Era algo que as outras bandas menos-
prezavam. Ficavam umas tocando para as outras, no mesmo bar. Dizem as más
línguas que são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo (um
para tocar e 99 para dizer que fariam melhor). Não é bem assim, mas é quase.
A agenda da época mandava ser completamente urbano e cos-
mopolita, romper com qualquer influência da MPB ou de sua versão gaú-
cha, a MPG. Inventou-se que o rock no Brasil foi inventado nos anos 80.
Muita gente jogou fora seus discos antigos. Depois se arrependeu.
Nós éramos estranhos porque tínhamos e mantínhamos um pé
em cada um desses mundos: rock clássico, MPB, MPG e atitude punk
do-it-yourself. Deve ter sido essa salada que chamou a atenção de uma
gravadora do centro do país, que lançaria um disco com cinco bandas
gaúchas. Éramos a banda na qual ninguém acreditava e a banda que es-
tourou. O disco se chamou Rock Grande do Sul.
Vendo em retrospectiva, acho que, sem querer, os caras fizeram uma
seleção emblemática da cena local. Das cinco bandas, duas faziam um rock
clássico, sessentista e setentista. Outras duas bandas tinham pretensões de
pós-modernidade, rezavam pela cartilha das revistas e jornais de São Paulo.
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e nós ali no meio
no meio da cegueira
nós ali no meio
no meio das bandeiras
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Sempre achei as limitações de um trio estimulantes. Compor, fazer
arranjos e tocar nesse formato é estar numa interessante esquina entre arte
e ofício. Um lugar bom para ficar ouvindo o movimento. Pensei que, se eu
passasse para o baixo e encontrássemos alguém que também tocasse mais de
um instrumento, estaríamos livres para explorar o trio de uma maneira mais
versátil. Sem cair nas armadilhas de heroísmo dos power trios.
Talvez eu esteja mentindo. O real motivo para eu ter virado baixis-
ta pode ter sido aquele Rickenbacker Sunburst. E os Rickenbacker Creme
e Madeira que vieram depois. E os Steinberger, fretless e de dois braços.
Podem ter me feito baixista os Fender Precision do Roger Waters e do Phil
Lynnot, o Fender Jazz Bass do Jaco Pastorius, os amplificadores do Chris
Squire e do Jack Bruce, a palhetada do cara do New Model Army, de quem,
até hoje, não sei o nome.
Mais físico do que a guitarra, mais espiritual do que a bateria, o
contrabaixo fica na esquina entre ritmo e harmonia. Lugar legal para ficar
sentindo o movimento. Por acaso, virei baixista. Instrumento pelo qual a
maior parte dos fãs me identifica, mais do que guitarra, violão, teclado, har-
mônica ou viola caipira. Sou autodidata em todos esses instrumentos, mas
é o baixo que deixa minha precariedade técnica mais evidente. Não deixa de
ser constrangedor receber elogios nessa área. Talvez quem goste da maneira
como toco baixo saiba mais da vida do que eu. É impossível ser, ao mesmo
tempo, um coração e um cardiologista.
Falei com Maltz sobre a mudança. Ele achou legal a atitude irres-
ponsável de mexer no time que estava ganhando. Alguns dias depois, ao
encontrar Augusto Licks, num show, no Rio, Carlos o convidou para tocar
guitarra com a gente.
Conhecíamos o Augusto de trabalhos com o pessoal da MPG e de um
show, dos Engenheiros do Hawaii, no qual ele havia sido técnico de som. Além
do grande talento musical, achávamos que ele traria um estranhamento legal,
já que vinha de outro ambiente.
As mudanças de formação se tornaram frequentes na história
dos Engenheiros do Hawaii. Não que eu gostasse. Não que eu evitasse.
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Num mundo ideal, as pessoas ficariam juntas para sempre. Mas, num mun-
do ideal, talvez não se precise de música.
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interna, gravamos uma virada de bateria que caía no vazio. A levada não
seguia, morria ali, na entrada. Além disso, tiramos a letra dessa música do
encarte do LP.
Pode ser irrelevante, e certamente é ingênuo, mas algumas ati-
tudes como essa reforçavam a mistura de teimosia e irresponsabilidade
que fazia com que nossas impressões digitais sobrevivessem aos apertos
de mão. É natural que, ao conhecer um artista, a indústria, os críticos e os
fãs se perguntem com quem ele se parece. Mas é preciso que o artista se
pergunte o que é que só ele tem.
Na reunião em que mostramos o disco com Terra de Gigantes
para a gravadora, o clima foi de decepção total. Lembro das palavras
do chefão: “Esse disco é um Boeing com tanque cheio. Pode ir longe…
Se não explodir na decolagem”. Não creio que ele acreditasse na pri-
meira hipótese.
Saí da reunião direto para o aeroporto, achando que havíamos grava-
do nosso último disco. No voo para Porto Alegre, encontrei um grande artista
pop que estava indo ao Sul fazer alguns shows. Ele me mostrou, na fita K7 do
seu walkman, a música que lançaria em alguns dias. A canção, que seria um
grande hit, era bacana, seguia o formato dos singles radiofônicos da época.
Fiquei com a boa sensação estranha de que ele havia feito a coisa certa, nós
havíamos feito a coisa certa, os caras da gravadora estavam certos, tudo es-
tava certo. As luzes de Porto Alegre, lá embaixo, estavam certas, as estrelas,
lá em cima, estavam certas. Cada um na sua.
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situar o que fizemos nas correntes e tribos da época. Contribuiu para esse
alheamento, além da minha introspecção, a preguiça de encarar os clichês que
se realimentavam.
No Sul, éramos a trena pela qual o possível sucesso de outras
bandas era medido, o que gerava um justificado ciúme (são necessários
100 guitarristas gaúchos para gravar um solo…). Nunca quisemos ser por-
ta-vozes de nada. Nossa viagem era extremamente pessoal. Mas, infeliz-
mente, nos coube, no Sul, ser a banda que atravessou o Mampituba. Era
muito pouco e era chato.
No resto do país, depois de rock-chimarrão e rock de bombacha,
caiu sobre nós o clichê de odiados-pela-crítica-amados-pelo-público. Nada
disso era muito verdadeiro. Tudo isso era muito desestimulante. Não havia
diálogo acima dos clichês.
Enfim… Aproveitando a autonomia que conquistamos na indús-
tria, fui me fechando no meu próprio trabalho, que foi ficando cada vez mais
autorreferente. Era consciente disso e nunca me preocupei. Sempre achei
que tua maior virtude e teu maior defeito são irmãos siameses.
Discos compunham trilogias, melodias e capas se repetiam anos
depois, letras de músicas voltavam transformadas. Duas letras na mesma
melodia, duas melodias com a mesma letra… Um mundo à parte, um mun-
dinho à parte. Daqui pra frente, acho que as músicas falam por si.
Pra ser sincero, sorte mesmo, e sorte grande, foi casar com Adriane.
Luz que não produz sombra. Estudamos no mesmo colégio e fomos colegas na
Arquitetura. Uma das primeiras coisas que ela me disse foi que eu era diferente
do que parecia ser. O tom de voz sugeria ser um elogio. Até hoje tenho dúvidas.
Será que ver de perto ou de longe muda tanto as coisas?
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Em 1992, nasceu minha filha, Clara. E o mundo se refez. Um dia,
quando eu estava cantando uma das minhas músicas favoritas para fazê-la
dormir (índia teus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não
tem luar), ela me perguntou por que a tal índia tinha os ombros caídos.
Acostumada com CDs, quando Clara viu, pela primeira vez, meus LPs
perguntou o que era aquilo. Respondi que eram discos, pra tocar música. Ela
falou: “Que legal, agora os discos vão ser grandões!”. Um mundo novo pode ser
uma nova forma de ver o velho mundo.
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• 1986 •
Após o sucesso de Segurança e Sopa de Letrinhas, na coletânea Rock
Grande do Sul, gravamos, em São Paulo, nosso primeiro LP, Longe Demais das
Capitais. Não consigo me lembrar se a canção deu nome ao disco ou se o nome
do disco sugeriu a canção. O que significa que canção e conceito nasceram mui-
to próximos um do outro.
Fizemos as fotos da capa perto de Porto Alegre, no lugar mais pare-
cido com o Pampa que encontramos. Sinalizava nossa falta de interesse pela
agenda da época, com suas paredes pichadas, latas de lixo em becos escuros e
bússolas apontando para Nova Iorque e Londres.
O disco teve Carlos Maltz na bateria, Marcelo Pitz no baixo e as
participações de Nei Lisboa em Toda Forma de Poder e Manito, saxofinista
d’Os Incríveis, em Segurança. MPG e Jovem Guarda engrossando nosso caldo.
Não era fácil conseguir instrumentos importados, na época. Consegui
que um-colega-do-primo-do-pai-da-irmã-do-vizinho-de-um-cara-que-tinha-
uma-kombi trouxesse dos EUA uma Fender Telecaster. Encomendei um modelo
clássico, anos 60. Para minha decepção, veio uma guitarra moderninha, pratea-
da, de metaleiro. Mas era minha e eu a adorava. Gravei esse disco com ela.
Surpresa foi a gravadora ter pintado a foto da capa, originalmen-
te P&B. A estética new wave impunha um colorido atroz. Mas o tiro saiu
pela culatra. A capa até ficou bacana com as cores artificiais. Parecia-se com
aqueles retratos antigos, artificialmente coloridos. Bucólico. Na edição do CD
restaurou-se o P&B outonal original.
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Longe Demais
1986 das Capitais
Humberto Gessinger
voz & guitarra
Marcelo Pitz
baixo & voz
Carlos Maltz
bateria
< A boa estranha
Telecaster. Aquela
mangueira presa ao
segundo microfone
faz parte do sistema
Voice Box. Por ela
vem o som da guitarra.
A boca se transforma
numa caixa de
ressonância e o
som é captado pelo
microfone. Som de
guitarra articulado
como voz, mais ou
menos isso…
Cartão-postal >
Longe Demais
1986 das Capitais
SEGURANÇA 2 gessinger
EU LIGO PRA VOCÊ 3 gessinger
NOSSAS VIDAS 4 gessinger
FÉ NENHUMA 5 gessinger
BEIJOS PRA TORCIDA 6 gessinger
CRÔNICA 11 gessinger
SOPA DE LETRINHAS 12 gessinger/pitz
• 1987 •
Seguimos na estrada todo o primeiro semestre, até a saída do
Pitz. Augusto, que assumiria a guitarra com minha passagem para o bai-
xo, não teve muito tempo para se ambientar. Éramos dois neófitos. Eu no
baixo, ele na banda. Isso fez muito bem ao disco que gravaríamos em São
Paulo e se chamaria A Revolta dos Dândis. O nome veio de um capítulo
do livro O Homem Revoltado, de Albert Camus. Julio Reny, que circulava
nos mesmos palcos que a gente, no início da carreira, dividia comigo os
vocais em Guardas da Fronteira.
O álbum tinha um som esparso e bem cru. Já começava a pintar a
digitalização dos equipamentos, mas não usamos nada que fosse posterior
ao início dos anos 70. Não por bravata ou estilo. Era o que nos bastava. Eu
achava muito xinfrim nós, aqui no terceiro mundo, nos arvorarmos à ponta
tecnológica. Não era o bom combate. Hoje é diferente, centro e periferia
tecnológica já não desenham um mapa linear.
As fotos da capa foram feitas no mesmo lugar do disco anterior.
O projeto gráfico iria se repetir no disco posterior. Assim como trechos
de músicas e letras reapareciam. Eterno retorno, pensando em loop.
Minha ladainha, longa milonga. Lenga-lenga, lero-lero. Pensando em loop
para sublinhar a continuidade.
O mundo pop é muito novidadeiro. A onda é vir, a cada ano, com
outra onda. Como se novidade fosse um valor em si. Sempre achei empobre-
cedor pensar assim. Prefiro artistas que abrem poucas portas e se jogam na
sala escura a artistas que abrem todas as portas só pra dar uma espiadinha.
Simples preferência, não vai nenhum juízo aí. Questão de escolher
a distância da qual se vai ver o quadro. Uma sinfonia de Berlioz, com aquele
mundaréu de gente, pode ter o tamanho do violão e voz do João Gilberto.
Depende de nós. Longe ou perto, dentro ou fora.
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A partir desse disco, começamos a usar engrenagens nas capas. Num
ensaio na casa do Maltz, chegou correspondência para o pai dele, vinda do sin-
dicato dos engenheiros. O símbolo era uma engrenagem. Carlos sugeriu criar
uma, para usarmos como assinatura visual.
A Revolta
1987 dos Dândis
Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra
Augusto Licks
guitarra, violão, harmônica & voz
Carlos Maltz
bateria, percussão & voz
Gravação do disco
>
Rickenbacker
Sunburst >
A Revolta
1987 dos Dândis
+ Escrevi, com Nei Lisboa, Deixa o Bixo. Está no disco Carecas da Jamaica.
Neste mesmo disco participei da faixa Carecas da Jamaica.
• 1988 •
Continuava a rotina de muitos shows, quase sempre em ginásios,
mesmo durante as gravações do Ouça o Que Eu Digo: Não Ouça Ninguém.
Gravado na mesma época do ano e no mesmo estúdio em que gravamos o disco
anterior, ambos compartilhavam, também, o mesmo estado de espírito. Não
havíamos amadurecido muito, mas estávamos mais entrosados como banda,
o que é bom, mas é ruim, mas é bom…
O disco abre com a música de mesmo nome. Eu queria que começasse
com um burburinho, vozes incompreensíveis. O produtor do disco estava me aju-
dando a gravar essas vozes e, do nada, começou a falar palavrões ligados ao nome
de pessoas bem conhecidas. Não me aguentei e comecei a rir. Na mixagem, ob-
viamente, tiramos as ofensas. Até hoje, quando ouço a música, fico com medo de
que elas voltem do além. Não seria nada engraçado, mas não me surpreenderia.
Na real, o que me intriga é que sempre escutemos a mesma versão
quando colocamos um disco. Me surpreende que a bola que estufou as redes,
num estádio qualquer no domingo à tarde, continue entrando nas inúmeras
repetições da TV à noite. Que, nas fotos das capas, não apareçam as rugas que
eu vejo no espelho, me espanta. Segura a onda agora, Dorian Gray.
A capa seguia a mesma matriz d’A Revolta dos Dândis, só mudava a
cor, de amarela para vermelha. Nos amarrávamos em cores primárias, na lin-
guagem de sinais de trânsito, placas de estrada e bandeiras.
Viesse depois um disco com capa verde, e teríamos uma trilogia com
as cores da bandeira rio-grandense. Mais do que um manifesto de regionalismo
mal focado, um piscar de olhos para os dinossauros do rock progressivo. Um
aceno aos seus pretensiosos álbuns conceituais a serem continuados, recheados
de músicas com várias partes. Sigo nesse time. Perder a guerra não significa
aderir. Éramos uma miniatura de dinossauro, o que deve ser uma lagartixa.
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Sugeri que as engrenagens, em vez de um conteúdo original, tivessem,
em seu interior, símbolos pré-existentes. O lance hippie, o céu da bandeira do Bra-
sil, o ying-yang, a cobra mordendo o próprio rabo. Deixava a coisa mais divertida
e menos aleatória. Os signos deveriam ter relação com o conceito do disco. Trazia
uma boa sensação estranha vê-los subordinados a engrenagens. É provável que
eu e Carlos tenhamos virado noites falando de Walter Gropius, Duchamp e Dalí,
tecendo longas teses sobre bigodes na Mona Lisa, relógios derretendo e mictórios
fora do lugar, enquanto especulávamos pequenas subversões visuais.
jagunço hi tech
perua low profile
cabelo vermelho ferrari
joia rara para a multidão
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Ouça o Que Eu Digo:
1988 Não Ouça Ninguém
Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra
Augusto Licks
guitarra, violão, teclados & voz
Carlos Maltz
bateria & percussão
< 16 de julho, o maracanaço. Minhas lembranças
de shows nunca são visuais. Seja por ter olho claro
ou por timidez, fico cego no palco. Talvez por isso
tenha levado um tombo logo nas primeiras músicas.
Tropecei em algo. Estava de botas, não era a chuteira
certa para o tipo de gramado. Tenho mania de colar
crucifixos nos meus instrumentos. No tombo, entortou
uma cravelha do Rickenbacker e sumiu o crucifixo.
Mau presságio. Será que levaríamos uma goleada?
Que nada, o show decolou e foi uma maravilha.
Um roadie achou o crucifixo embaixo do praticável
da bateria.
+ Escrevi a letra de O Que Você Faz à Noite, uma parceria com Dé, então baixista
do Barão Vermelho. Está no disco Carnaval.
• 1989 •
Pretendo tirar este parágrafo da edição gaúcha, pois vou falar que
simpatizo com o Botafogo e vão me cobrar monogamia tricolor. Bah, nem
falei do Grêmio ainda! Melhor pra vocês. Se começar a falar, não paro mais!
Do Botafogo, é mais fácil falar, é só um namoro passageiro.
Nesse ano, o Botafogo saiu de uma fila de 123 anos e foi campeão
carioca. Com técnico e alguns jogadores gaúchos. Aos poucos, foi ficando
alvinegro o meu ponto de vista nos bate-papos sobre o futebol do Rio. Se,
hoje, os cariocas são supercentrados no futebol deles, imaginem nos jurássicos
tempos de antes da internet.
Será que foi o escudo do Botafogo que me fez adotá-lo como time
filial? Nesse caso, desde minha infância, já estava escrito, não nas estre-
las, mas nos meus cadernos. Adorava desenhar escudos de times. Eu divi-
dia os distintivos em três tipos: os naturalistas (Vasco com sua caravela e
Corinthians com sua âncora), os artísticos, com suas letras entrelaçadas
(Inter, Flamengo e Fluminense) e os geométricos, feitos com esquadros e
alguns pontos de compasso (São Paulo e Grêmio). A estrela solitária, mais do
que as estrelas do Cruzeiro, fica num grupo particular, esquina entre poesia
e geometria. Um lugar legal pra ver o jogo.
Outro pecado capital para torcedor gaúcho: enquanto morava no Rio,
comecei, gradualmente, a parar de secar o Internacional. Perdesse Grêmio ou
perdesse Inter, algum carioca sempre pegava no meu pé. Não adiantava dizer
que só torcia pra um dos times, a resposta era sempre “é tudo gaúcho!”. A si-
tuação chegou ao máximo no dia em que o Figueirense perdeu para um time
carioca e alguém pegou no meu pé. “Figueirense é de Florianópolis!”, protestei.
Ouvi a frase de sempre: “É tudo gaúcho!”. Para desespero do meu lado racional,
bastou eu voltar a morar em Porto Alegre para que o secador renascesse.
48
para gravar o show. Eu gosto dos altos e baixos de uma estreia. O pessoal da
técnica sempre prefere a tranquilidade dos outros dias. Antes do segundo show,
ouvindo as gravações do dia anterior, descobrimos que não poderíamos utilizar
quase nada. Havia fãs com buzinas bem embaixo dos microfones que captavam
a audiência. Assim, o segundo dia virou estreia de novo. Altos e baixos, tensão
legal. O disco capturou bem o show.
Comecei a usar os baixos Steinberger. Perdia um pouco da impetuo-
sidade dos Rickenbacker, ganhava um pouco de chão, a âncora. Que maravilha,
um trio! Parece que expulsaram dois jogadores de cada time. Um campo enor-
me para correr e mandar às favas esquemas táticos.
49
Os horários dos shows eram esquisitos. Num dia tocamos às 12h e às
16h30min. O teatro era muito bacana. No primeiro show, levei um esporro tão
grande do zelador que, mesmo sem entender russo, entendi tudo o que ele ber-
rava. Eu estava entrando no palco com um copo de conhaque e ele esbravejava
que grandes bailarinos, atores e músicos tinham pisado naquele chão e nunca
ninguém com um copo de bebida alcoólica na mão. Ponto para ele. Estava cer-
to. Mas, cá pra nós, o conhaque era maravilhoso. Muito melhor do que a vodka.
Vinha numa garrafinha despretensiosa como as nossas de guaraná.
Ficamos hospedados num conjunto de vários prédios idênticos. Um
dia me perdi, entrei no prédio errado. Fiquei tentando abrir uma porta que não
era a minha. A enorme senhora que cuidava do corredor veio ver qual era. Não
conseguíamos nos comunicar. Um monte de portas se abriram. Todos os filmes
sobre espiões na Guerra Fria passaram pela minha cabeça. Um caos. Uma fita
K7 do Roger Waters (Radio K.A.O.S) no meu bolso fez com que um cara falasse
comigo no que parecia, remotamente, ser o idioma inglês. O cara ganhou a fita
e eu, uma orientação para chegar ao meu quarto.
Com cachê pago numa moeda que não poderia trazer para o Brasil, eu
quis comprar uma camisa da Seleção ou de qualquer time russo. Não tinha pra
vender. Quis comprar um instrumento. Eram intocáveis, vinham com o braço
separado do corpo e pregos para juntar.
O que eu trouxe foram uns pôsteres revolucionários e, na mente,
imagens das estações do metrô, o barulho dos limpadores de para-brisa, o
frio que era diferente do frio que eu conhecia. Trouxe também os olhos esbu-
galhados na janela do Aeroflot quando o avião pousou em Moscou, o cheiro
do cigarro russo, os pedidos de cigarro americano e a sensação de transe ao
passar dez dias ouvindo um idioma tão diferente. Parecia uma fita tocada ao
contrário, num velho álbum de rock progressivo. Restou uma contradição.
Como se, num quadro pontilhista, cada ponto fosse cinza e a imagem formada
fosse colorida.
50
Dizem que um especialista é um cara que está num lugar há mais de
vinte anos, ou há menos de vinte minutos. É verdade. Em cada paralelepípedo
de Moscou, eu via o Kremlin. Reverberava tudo que eu pensava saber sobre
aquele povo. Drops de Dostoiévski. Como uma série de bonecas russas, umas
dentro das outras, tudo depende de quão fundo queremos ou podemos ir. Perto
ou longe, dentro ou fora.
tudo que era certo, sólido
tudo que era líquido e certo
dissolve, desaba, dilui
desmancha no ar
Humberto Gessinger
voz, baixo & guitarra
Augusto Licks
guitarra & teclado
Carlos Maltz
bateria
< Também estavam programados shows em Leningrado mas,
infelizmente, ficamos só em Moscou. Guardo na mente, então,
a São Petersburgo dos livros de arquitetura.
56
um show. Irradiação fóssil. Eu vi a nuvem de baixo astral vinda do gramado
envolver tudo. Quando penso no ofício de estar do lado de cá do microfone,
sempre lembro dessa imagem. Afinal, que frequências estamos emitindo?
Uma questão interessante para a cena rock’n’roll, tantas vezes gigolô da
transgressão e prisioneira da pose.
57
É lugar-comum reclamar da redução de possibilidades gráficas do CD
comparado ao LP. Acho que é só uma questão de distância em relação ao qua-
dro. Sinto mais falta das duas aberturas e dos dois finais que o LP oferecia. Lado
A e lado B. Montar esses dois programas envolvia arte e ofício. Além do lance
musical, havia a matemática de fazer com que os dois lados tivessem a menor
diferença de tempo possível. Para equilibrar os sulcos no vinil e evitar que, na
fita K7, um dos lados ficasse muito tempo girando em silêncio.
O CD oferece mais tempo de música do que o LP, mas, com a
facilidade de, apertando um botão, irmos direto à faixa desejada, acho
que se ouve menos o disco na sua totalidade. A música que abria o lado
B, espaço nobre num LP, fica no meio de uma longa lista no CD. Co-
meçou a se desfazer a magia do álbum, que teve início nos anos 60 e
apogeu no meio dos 70.
58
eu entendo você que não me entende
encare a ilusão da sua ótica
Se não me engano, foi por essa época que chegou ao Brasil a MTV,
reforçando, por algum tempo, a utilidade desta inutilidade que é o videoclip.
Diretores bacanas como Cacá Diegues (O Exército de um Homem Só, Her-
deiro da Pampa Pobre) e Zelito Viana (Piano Bar) fizeram clips com a gente.
Depois pintou uma gurizada especializada na linguagem, muito legal. Tudo
certo, bons trabalhos. Mesmo assim, nunca vi nexo no formato. Problema
meu, certamente.
Descubro mais significados quando revejo antigas gravações de pro-
gramas de auditório, do tipo Chacrinha. Só se fazia uma dublagem rudimentar,
mas, pelo menos, o risco era maior. Para Terceira do Plural e O Papa É Pop
lembro de ter escrito roteiros, motivado pelas possibilidades que as letras ofe-
recem. Me disseram que eram inviáveis. Deviam ser mesmo, coisa de quem está
acostumado a depender só de lápis e papel para criar um mundo. Tudo bem,
tudo certo. Cada um na sua.
59
1990 O Papa É Pop
Humberto Gessinger
voz, baixo & teclados
Augusto Licks
violão, guitarra & teclados
Carlos Maltz
bateria
< Singles Era um Garoto...
e O Papa É Pop
Gravamos, no Rio, Várias Variáveis, o disco com capa verde que fe-
charia a trilogia da tricolor bandeira pampeana. Paradoxalmente, é nosso disco
mais paulista. A beleza de flutuar num país do tamanho e com a diversidade
do nosso é que os centros gravitacionais vão se alternando, girando pelo salão.
Além de Rio e São Paulo, Belo Horizonte entraria nesse bailado em breve. E
Fortaleza. E Porto Alegre voltaria…
Paradoxalmente, no nosso disco mais paulista, gravamos Herdeiro
da Pampa Pobre, do Gaúcho da Fronteira. Não é bem o filtro pelo qual a
inteligência gaúcha gosta de se ver, mas sempre me amarrei nos tradicio-
nalistas mais populares, como Gildo de Freitas. Da mesma forma, gosto de
Astor Piazzolla e Athauapa Yupanqui, dois dos melhores shows da minha
vida. Na esquina de onde vejo o movimento, laranjas, poemas e o mês de
abril convivem bem.
Paradoxalmente, somos mais gaúchos fora do RS. No estado de ori-
gem, somos só mais um. Se não te deixar insensível, a distância pode colocar
tudo em perspectiva. Na capa, estou de bombacha. Fiz toda a turnê assim. Um
gaúcho “para exportação”, ainda assim, um gaúcho.
Pelo terceiro ano consecutivo, o ginásio Gigantinho foi o lu-
gar onde tocamos em Porto Alegre. Acho que nenhum artista gaúcho
conseguiu isso. O mais legal foi ter chegado ali passando por todos os
outros degraus. Bares, danceterias, teatros, auditório Araújo Viana.
64
Era comum, na maioria das cidades, tocarmos no maior espaço. Mas só
em Porto Alegre tocamos em todos os espaços.
Foi por essa época que desenvolvi um terrível defeito: aprendi todas
as piadas de gaúcho a que tive acesso. Basta o estrangeiro contar uma, esperan-
do uma reação mal humorada, eu disparo todas as outras. Infalivelmente, meu
interlocutor fica com cara de criança cujo balão foi estourado. Também pos-
so usar meu arsenal de piadas de gaúcho contra gauchistas. Paradoxalmente.
Quase um fogo amigo. Quase sempre divertido.
65
1991 Várias Variáveis
Humberto Gessinger
voz, baixo & teclado
Augusto Licks
guitarra, violão & teclado
Carlos Maltz
bateria & percussão
1991 Várias Variáveis
70
horas da manhã. Por pouco não descobri da pior maneira possível. Por sorte,
as únicas consequências foram as buzinas e os palavrões que ouvi. Injusta
fama de indisciplinados têm os cariocas. Não sei em que outra cidade do mun-
do seria possível, por algumas horas, mudar o sentido de quase tudo sem que
o caos se instaurasse.
72
1992 Gessinger, Licks & Maltz
Humberto Gessinger
voz, baixo, violão & teclado
Augusto Licks
guitarra, violão & teclado
Carlos Maltz
bateria & percussão
Meus primeiros anos como <
baixista passei com vários
Rickenbacker. Sunburst,
creme ou cor de madeira
como o que está pendurado
na foto. Com a histeria de
renovação de equipamentos
que rolava na época,
eram difíceis de encontrar.
Estavam fora de linha.
Melhor assim, os que
eu tinha já vinham com
muitas horas de voo,
sabe-se lá em que palcos,
fazendo qual som…
78
Se a agenda da cena manda requentar a rebeldia, qual a coisa certa a
fazer? O contrário. Raspei meu cabelo. O próximo disco seria o mais leve pos-
sível, com orquestra, gravado ao vivo na sala Cecília Meireles. Este é o Filmes
de Guerra, Canções de Amor. Arranjos e regência de Wagner Tiso, um mestre.
Participação muito especial de Paulo Moura. Dei um tempo no baixo, Carlos
deu um tempo na bateria. O trio ficou com duas guitarras semiacústicas e per-
cussão. Também toquei acordeón.
O show foi lançado em LP, CD, K7 e VHS. Anos depois, em DVD. Boa
sensação estranha de sobreviver aos suportes. Acho que é por isso que não me
fascino por novos formatos, convergência, essa espuma toda. São ferramentas,
instrumentos. O cerne está onde sempre esteve, desde antes das palavras, em
volta de uma fogueira pré-histórica.
O repertório não era muito óbvio, mesmo para os fãs. Os arranjos
eram bem diferentes, cheguei a reescrever algumas letras. Era muito bacana
ver o estranhamento do público se transformando em cumplicidade enquanto
o show avançava. As adaptações que rolam quando dois seres vivos começam
a se relacionar podem ser uma pegada de Deus. Aquele que, se não existisse,
teríamos que criar.
79
Todo país tem seus problemas. Quanto mais avançado, mais pessoais
são esses problemas. O que não os torna problemas menores. Defeito ou virtu-
de, achei a formalidade japonesa muito liberadora. Disciplina não é liberdade?
Aqui nos trópicos, temos o vezo de nos acharmos muito íntimos e chegados.
Infantilmente informais, vivemos nos tocando. Se fosse tão bom, estaríamos no
paraíso. Estamos?
80
Filmes de Guerra,
1993 Canções de Amor
Humberto Gessinger
voz, baixo, guitarra,
acordeón & teclado
Augusto Licks
guitarra, harmônica & violão
Carlos Maltz
bateria & percussão
MAPAS DO ACASO 1 gessinger
ALÉM DOS OUTDOORS 2 gessinger
PRA ENTENDER 3 gessinger
? QUANTO VALE A VIDA ? 4 gessinger
* PARABÓLICA 5 gessinger/licks
* NINGUÉM = NINGUÉM 6 gessinger
* REFRÃO DE BOLERO 7 gessinger
* TODO MUNDO É UMA ILHA 8 gessinger
CRÔNICA 9 gessinger
ÀS VEZES NUNCA 10 gessinger
MUROS E GRADES 11 gessinger/licks
ALÍVIO IMEDIATO 12 gessinger
* PERFEITA SIMETRIA 13 gessinger
ANDO SÓ 14 gessinger
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ 1 e 2 15 gessinger/licks
REALIDADE VIRTUAL 16 gessinger
* ? ATÉ QUANDO VOCÊ VAI FICAR ? 17 gessinger
PRA SER SINCERO 18 gessinger/licks
Filmes de Guerra,
1993 Canções de Amor
• 1994 •
Augustinho saiu da banda. Brigamos sem brigar, cada um foi ficando
no seu canto. A culpa deve ter sido minha. Enquanto ele via a árvore e Carlos via
a floresta, eu deveria ter sido mais maduro para guiar aquela nau.
Não ter tido festas de aniversário a vida inteira não me redime, pois,
mesmo sem apagar as velinhas, a gente envelhece. Deveria aproveitar para
amadurecer. O lado bom é que fizemos, juntos, o que tínhamos que fazer e só o
que deveríamos fazer. O que emitimos continua a soar. Irradiação fóssil? Pode
ser, mas o que é o presente? Existe?
planos de voo
tava tudo em cima, céu de brigadeiro sobre nós
pane, pânico
perdemos altura, puxaram o tapete voador
87
• 1995 •
Nunca estive tão perto do mainstream quanto nesse ano. Me faltou
saco. Ou culhões. Apesar de anatomicamente próximos, são coisas opostas.
Algo me faltou para que esse ano desse mais frutos.
Um clima estranho no ar culminou num acidente de carro, a cami-
nho de um show no Espírito Santo. De repente, os pneus seguiram em frente
sem girar. Os faróis apontaram para o lado direito, para trás, para o lado es-
querdo, para frente, para o lado direito… Os dois fachos de luz já não eram
paralelos ao chão. O asfalto ficou mais perto da cabeça do que dos pés. Dois
giros, duas voltas. Dois pra lá e dois pra cá. No fim da dança, silêncio total,
total escuridão.
Quem viu a foto do carro depois do acidente não acreditou que al-
guém tivesse sobrevivido. Algum projetista da BMW, que nunca conhecerei,
salvou minha vida. Só machuquei a mão, fiquei sem tocar um mês. Não faltou
quem dissesse que era algo sintomático. Nessas horas, o que menos precisa-
mos é ouvir papos esotéricos tecendo mitos entre causa e efeito.
88
começo a frase com “você” e sigo errando a concordância. Na hora de cantar
“consigo”, não consigo. Canto “contigo”.
Até aí, tudo bem. Rima com alguns pequenos pecados harmôni-
cos que gosto de cometer. O que mais me intriga é que, na vida real, na
vida falada, nunca uso “você”. Só falo “tu”. Quando uso “você”, soa como
palavrões falados em filmes brasileiros dos anos 70. Naturalidade zero.
Quando canto, ocorre o inverso. Cantando “tu”, me sinto como a estátua
do Laçador: olhar no horizonte, insensível aos aviões que pousam e deco-
lam no aeroporto ali ao lado.
Será porque “tu” é muito duro? Será porque “você” rima com qual-
quer verbo que acabe em “er”? Será só macaquice, de tanto ouvir os outros?
Hoje, quando ouço o disco, sinto uma boa sensação estranha.
Nem todo o mundo pode ser gilchicaetano, juntar forma e conteúdo,
correção política e gramatical. Nem todo colombiano escreve 123 anos
de solidão. Se psicanálise fosse uma possibilidade, falaria sobre isso
n’alguma sessão.
Humberto Gessinger
voz, baixo & violão
Carlos Maltz
bateria & percussão
Ricardo Horn
guitarra, violão, viola & bandolim
Fernando Deluqui
guitarra
Paulo Casarin
teclado & acordeón
1995 Simples de Coração
A PERIGO 2 gessinger
SIMPLES DE CORAÇÃO 3 gessinger
LANCE DE DADOS 4 gessinger
A PROMESSA 5 gessinger/casarin
POR ACASO 6 gessinger
94
Sempre desconfiei dos atalhos. Não gosto de seguir literalmente carti-
lhas. As indústrias que crescem na periferia da produção artística têm os mesmos
vícios de qualquer indústria. Vivem criando seus presets. Camisas pretas e gui-
tarras pontudas para o heavy metal. Meninas tocando baixo para os alternativos.
Guitarras semiacústicas e terninhos para os retrôs. Bonés dos Yankees e Adidas
pros rappers. Se vacilar, até o tipo de droga, ou a não-utilização de drogas, já
vem no cardápio do estilo. Quando eu acabar de escrever essa frase, os modelos
podem ter mudado, mas a existência de um modelo certamente persistirá.
95
1996 Humberto Gessinger Trio
Humberto Gessinger
voz & baixo
Luciano Granja
guitarra & violão
Adal Fonseca
bateria & percussão
Há palcos especiais espalhados pelas <
cidades por onde passamos.
Em São Paulo, o Pallace, onde gravamos
dois discos e que já teve tantos nomes
que nem sei como se chama hoje.
A Concha do Teatro Castro Alves em
Salvador. Teatro Guaíra em Curitiba.
Auditório Araujo Vianna em Porto Alegre.
Palácio da Artes ou qualquer lugar
em Belo Horizonte…
100
Quando eu deveria ficar mais no eixo Rio-São Paulo para gravar e
divulgar o disco, voltei para o Sul. Meu apartamento, na Lagoa, só tinha cama,
TV e telefone. A família e as tralhas todas já estavam em Porto Alegre.
101
Assisti ao jogo sozinho, no apartamento escuro, só iluminado
pela TV. A cidade, parada. Excepcionalmente silenciosa. Abrimos o mar-
cador, Grêmio 1 a 0. Uma gritaria de vascaínos vinda dos prédios vizinhos
dialogou com meus próprios gritos. Segue o jogo, 1 a 1. Euforia na noite
carioca, só superada pelo carnaval de vozes que explodiu quando Romário
virou o jogo. Flamengo 2 a 1. Faltando alguns minutos para terminar a
partida, desliguei a TV. Sempre acho que, se eu não estiver assistindo ao
jogo, o tempo passará mais lentamente. Mais tempo de jogo aumentaria
as chances de acontecer o empate que daria o título ao Grêmio. Uma visão
otimista da covardia da avestruz.
Tinha dúvida de que o gol aconteceria, mas tinha certeza de que,
se acontecesse, a vizinhança vascaína me avisaria. Passava o tempo e eu
não olhava para o relógio. A velha esperança de que, se não olhasse, o tem-
po passaria mais devagar. Silêncio total. Quantos minutos teriam passado?
Mais silêncio, tempo demais. Por que ninguém gritava, nem vascaínos se-
cadores nem flamenguistas campeões? Não resisto, ligo a TV. Já não esta-
vam transmitindo o jogo. Toca o telefone, minha irmã, chorando, desfaz o
suspense: éramos campeões. Havia mais de quinze minutos! Os vascaínos
102
devem ter ido dormir antes do fim do jogo. Não me avisaram. Sofri quinze
minutos desnecessários, já campeão.
103
1997 Minuano
Humberto Gessinger
voz & baixo
Luciano Granja
guitarra & violão
Lúcio Dorfman
teclado
Adal Fonseca
bateria & percussão
1997 Minuano
BANCO 1 gessinger
A MONTANHA 2 gessinger
FAZ PARTE 3 gessinger
SEM PROBLEMA 4 gessinger
3 MINUTOS 5 gessinger
NUVEM 6 gessinger
NOVE ZERO CINCO UM 7 gessinger
DESERTO FREEZER 8 gessinger
ALUCINAÇÃO 9 belchior
A ILHA NÃO SE CURVA 10 gessinger/granja/adal
HUMANO DEMAIS 11 gessinger/granja/adal
OUTROS TEMPOS 12 gessinger
• 1998 •
Ano sem disco, mas com muitos shows. Tocamos, pela primeira vez,
na Argentina e no Uruguai. Nos mapas, esses países parecem estar mais próxi-
mos de nós do que Japão e Rússia. Na vida real, vieram depois.
123 mil anjos sempre me guardaram e guiaram. Mundo afora, noite
adentro. Reto por linhas tortas, como nenhum GPS faria. 123 mil anjos. Alguns
me fazendo seguir viagem, uma me dizendo que eu era diferente do que parecia
ser, outra simplesmente nascendo.
Um desses anjos é fumante e tem barba sempre mal feita. O último
existencialista, Alexandre Master, nunca leu escritores franceses. Trabalha co-
migo desde sempre. Deve ter sido técnico de som da orquestra familiar do meu
avô, lá no interior do RS, na primeira metade do século passado. Deve ter sido
roadie das freiras que cantaram ave-maria meia hora antes de eu nascer. Certo
é que gravou a primeira demo da banda. 123 vezes nos mandamos, reciproca-
mente, pastar. Passa um tempo, lá está ele de volta na mesa de som.
Em Belém, na manhã seguinte a um show, acordei com alguém
gritando “Arara! Arara! Fala comigo, arara!”. Era Alexandre, agarrado às
grades de um viveiro de pássaros do hotel, querendo dialogar com o bicho.
Tá fora, tá fora!
No longo voo noturno de volta a Porto Alegre, eu achava que era o
único acordado, quando ouvi uma voz beirando o choro. Olho para o fim do
corredor e vejo o que parecia ser Jesus Menino no colo de Nossa Senhora. Era
Master, sentado no chão, com a cabeça sobre os joelhos de uma aeromoça.
Desolado, ele repetia: “Meu pai acha que o que faço não é trabalho…” A aero-
moça só parava de fazer cafuné nele para secar algumas lágrimas. Surreal. Tá
dentro, tá dentro!
A alcunha “Master” eu coloquei porque ele sabe tudo. Além disso, o
nome dele é hilário. Alexandre Hilário. Não dá pra levar a sério.
108
Um anjo me conectou à rede mundial de computadores. Melissa me
conta que era fã desde pequena. Quando a conheci, já era web designer e fo-
tógrafa. Hoje é arquiteta, professora. Traduziu Pouca Vogal para traços, cores
e telas de computadores. Putz, as crianças vão crescendo!
De 1998 a 2003, Melissa organizou, no site www.engenheirosdo-
hawaii.com.br, chats mensais. Sempre no dia 11, para lembrar a data do pri-
meiro show. Às vezes eu estava em casa, às vezes, na estrada. Ela, sempre em
Florianópolis. Outros anjos, espalhados pelo mundo, se encontravam na rede.
As perguntas variavam de “Que tipo de cordas você usa?” a “Qual é o sentido
da vida?”. Rolavam, também, as inevitáveis “Quem foi Ana?” e “O que quer
dizer trottoir?”. Eu respondia todas com a mesma falta de ciência. Cordel Kill
Bill. Sem pensar, com a rapidez que meus dedos nas teclas permitissem. Papo
de boteco virtual.
109
>>> 11.08.1998 – Tocar aos 60 anos deve ser o máximo. Acho que a vida deve
começar a ficar boa depois dos 58. Tomara que eu chegue lá. 11.10.1998 – Ouço vozes, tenho
pavor de cobras e às vezes tenho medo de começar a flutuar e não conseguir descer. Fico atento às
árvores e aos fios elétricos para me agarrar caso aconteça. 11.11.1998 – A pirataria de bootlegs é
algo necessário, eu diria. 11.12.1998 – Acho que sou o último fã de rock progressivo do mundo.
11.02.1999 – Uma possível medida de felicidade seria o número de relações não capitalistas que
um cara tem… tem gente que até com a mãe tem uma relação de custo/benefício. 11.04.1999
– Hoje, acho que a obra de arte não pode ser só o disco… tem que ser a vida, 24 horas por dia.
11.06.1999 – Cada dia é mais percentagem da minha vida. E cada vez me sinto menos profis-
sional. 11.07.1999 – Acho que sou meio de lua e muito exigente em relação à banda. Não passo
tanto tempo fora de casa para fazer a coisa mal feita. Quero a perfeição sabendo que é impossível.
11.08.1999 – Minha única dúvida é se eu deveria ter continuado depois de gravar o Longe Demais
das Capitais. 11.09.1999 – O medo do medo é uma merda… o medo de ser frágil, sincero... medo
de depender. E depender de alguém é o limite máximo do amor. 11.10.1999 – Ser livre cansa mais,
né? Mas não adianta, não dá pra escolher. 11.01.2000 – Política tá me dando nos nervos… nin-
guém sonha mais… parece que todo o mundo descobriu que vai morrer amanhã… não há mais a
noção de transcendência, inclusive na arte. 11.02.2000 – Não sei me expressar bem, tenho aquela
ética silenciosa do cowboy numa cidade estranha… não faço juras de amor. 11.04.2000 – A ten-
tativa de autoconhecimento é o que me faz cair na estrada, a busca de um espelho que não esteja
embaçado pela minha própria respiração. 11.05.2000 – Jogo horas de tênis tentando compreender
algumas canções que eu não alcancei por outras vias… vou dormir muito cansado e não tenho so-
nhado. 24.06.2000 – Destino? Essa é a questão, tava escrito ou nós é que escrevemos? Acho que
nós escrevemos com a caneta que nos foi dada e suas limitações… de fato, é lápis e não caneta…
qualquer coisa, o tempo apaga. 11.08.2000 – Não há mais juventude… todos são jovens: Clara e
a vó dela têm a mesma idade, são os tempos pós-modernos… eu sou o último velho do mundo.
11.10.2000 – O sentido da vida é aprender a respirar certo. 24.12.2000 – Vamos descobrir que o
que enxergamos são as sombras do fogo na caverna. 11.01.2001 – Dá vontade de ser menor, invi-
sível, algumas vezes… se transformar em pura passagem de tempo… estranhar o tamanho e a voz
da filha ao telefone. 11.02.2001 – Não sei falar e agradecer entre as músicas, muita gente me acha
frio por isso. Sou do tempo em que entreter, mais do que objetivo, era consequência da tentativa de
comunicar. Somos todos peixes, cada um num aquário diferente. Cantar é tentar trazer todos para
o mesmo mar, eu acho. 13.04.2001 – De cada 10 palavras, sete se perdem. 11.06.2001 – Sobre
>>>
>>>
rádio e mídia, não sei, não me interessa, nunca me interessou tão pouco. 27.07.2001 – Não me
arrependo de nada pois o erro faz parte… isso é importante para entender os EngHaw. 30.07.2001
– Eu dissolvo a banda quase toda segunda-feira. 11.09.2001 – Concreto e Asfalto, para mim, é uma
oração. Gostaria de cantar para Jesus Cristo… ele ia achar uma merda e eu ia entender. 11.11.2001
– O disco novo tá superbom, mas é diferente de tudo que tenho ouvido. Seria mais fácil fazer parte
de alguma bruxaria do showbizz… é meio solitário aqui. 11.12.2001 – Este ano foi maravilhoso…
gravamos dois discos, renovei contrato, participei do disco do Carlos, encontrei uma galera nova
e, principalmente, reencontrei minha fé na produção musical. 11.02.2002 – O tempo fortalece…
o que não mata, engorda. A juvenilização é uma das armadilhas deste último capitalismo. Sigo
tecendo minhas teias, não são para prender ninguém… só pra não pisar no chão. 11.03.2002 – Os
discos novos são como refil… sabe como é, já tens a caneta, não joga fora, só compra a carga…
ecológico. 11.05.2002 – Gostaria de continuar minha guerrilha emocional… tenho muito orgulho
do meu artesanato. 11.06.2002 – O show é transe, não vejo nada direito. Não gosto de falar entre
as músicas. Santana toca horas sem dizer nada, Miles tocava de costas… mas no Brasil pós-axé
tem gente que acha que é estrelismo. 11.07.2002 – Ainda não fiz minha música, nem meu disco…
talvez nunca faça, talvez eu nem seja um artista… o artista que preciso ser. 11.09.2002 – Há,
no fundo de tudo, uma luta entre as luzes e o obscurantismo. 30.09.2002 – Não quero virar uma
indústria. Sou artesanal. 16.12.2002 – Felicidade é como preparo físico: dá pra melhorar ou piorar
um pouco, mas sempre há limites… não sou hedonista, as coisas que mais me deixam feliz são
corriqueiras e sem importância… uma rajada de vento, por exemplo. 11.02.2003 – Inconsciente
coletivo, sei lá… há quem ache que nada é fortuito… não vou a tanto. Na verdade, o universo da
música popular ocidental é, tecnicamente, bem limitado. 10.04.2003 – Cada vez tenho menos inte-
resse em falar… comecei a pensar na divulgação do disco, é um calvário. 17.07.2003 – A banda é
mais do que uns caras tocando. É difícil saber o que é… mas dá pra sentir. 11.08.2003 – Na escola
eu fazia muito avião de papel. Os raros que voavam bem me davam a mesma sensação que a
música Dom Quixote dá. 11.11.2003 – Cada disco tem sua vibração, seu momento. Eles não estão
competindo… estão se complementando. Não dá pra escolher um. 04.11.2004 – Sempre gostei
de ler, mas as influências nem sempre se manifestam de forma linear. Geralmente é difícil saber o
que gerou o quê. 16.03.2005 – Semana passada, num show, tocando O Papa É Pop, troquei a frase
“uma palavra na tua camiseta” por “Che Guevara na tua camiseta”. Putz, ficou muito melhor. Agora
ficou pronta… 15 anos depois de gravar. 17.03.2005 – O mundo anda estranho… melhor aprender
a lidar com a velocidade. Tecnologia não é boa, nem má. Depende do uso. <<<
• 1999 •
Ano de mudança de gravadora. A antiga lançou a lata Infinita High-
way, com dez CDs remasterizados. Pela nova, lançamos !Tchau Radar!. Tecni-
camente, talvez seja o disco com melhor som, todo analógico. Gosto muito do
título, é meu preferido, ao lado de Surfando Karmas & DNA. A capa revela que
eu não tive nenhuma ideia para capa ou, visto pelo lado positivo, a vontade de
deixar as músicas livres de um conceito norteador. Afinal, era !Tchau Radar!.
Foi gravado no Rio e mixado em Los Angeles. Arranjos de cordas
bacanas feitos por Jaques Morelenbaum e Eduardo Souto Neto. Nos tempos
pós-iPod é, ao lado do Dançando no Campo Minado, o disco que mais ouço.
Dado insignificante, pois raramente ouço meus discos. É como filmar o parto
do próprio filho, assitir a um show pelo display da filmadora de um telefone ce-
lular. Substituir a vida pela representação da vida é legal, mas tem sua medida.
As músicas estão todas vivas, o disco é uma foto de como elas foram um dia.
Fechamos e abrimos o século tocando no réveillon da Avenida
Paulista. As pessoas geralmente acham que esses grandes eventos e festivais
de verão são o melhor ambiente para se tocar. Não é bem assim. Não que
sejam ruins, mas, de onde olho, são mais um passeio turístico do que uma
viagem coletiva.
112
Falta de educação desmitificar coisas tão legais? É só minha opinião,
e ela não quer hegemonia. Então, viva os festivais! Você não pode perder! Todo
o mundo vai estar lá! Quem não for é mané! Quem não for é diferente, e to-
dos temos que ser diferentes da mesma forma, na mesma hora, pois somos a
juventude, um exército movido a um refrigerante preto que é completamente
diferente de outro refrigerante preto que tem o mesmo sabor.
Outra coisa que “não é bem assim”, ao menos para mim, é o ato de
compor. Nem sempre é linear como as pessoas imaginam. É sempre autobio-
gráfico, mas a biografia pode ser escrita num código indecifrável até pra quem
escreve. Pintam músicas alegres quando a gente está triste. O contrário disso
também pinta. Se escrevêssemos só para nos revelarmos, seria mais lógico um
boletim semanal com gráficos. Coloridos livros de geografia sentimental. Mui-
tas vezes a gente escreve em busca de balanço. Um balanço dos quadris ou um
balanço de tudo que passou. Geralmente é um balanço de equilíbrio.
113
1999 ¡Tchau Radar!
Humberto Gessinger
voz & baixo
Luciano Granja
guitarra
Lúcio Dorfman
teclado
Adal Fonseca
bateria
< Depois das fases Rickenbacker e Steinberger,
para onde iria o pêndulo? Qual a terceira
margem? Nem retrô, nem high tech.
Fiquei menos rígido na escolha dos
instrumentos. Toquei com vários baixos
de várias marcas. Zeta, Warwick, Yamaha,
Tobias, Rivoli… Guiando a escolha, uma
mistura: som, visual, história, casca grossa
para aguentar os abusos da estrada e,
principalmente, astral.
118
• 2001 •
Em janeiro participamos da terceira edição do Rock in Rio. Desta
vez, durante o show, não fiquei imaginando se haveria alguma banda em al-
guma escola de arquitetura fazendo seu primeiro e último show. O mundo já
era bem outro.
lembranças do futuro
que a gente imaginava
Tenho um defeito que não consigo ver como virtude, nem de perto
nem de longe: uma enorme dificuldade de reconhecer rostos, guardar fisiono-
mias. Fui piorando com o tempo. Estou sempre encontrando pessoas que di-
zem que fomos colegas em escolas onde nunca estudei, vizinhos em ruas onde
nunca morei. Sem querer, fui me acostumando a ficar à meia-distância. Muitas
vezes pode passar uma impressão antipática.
No dia do show no Rock in Rio, encontrei, no elevador do hotel, um
cara que julguei ser o presidente da nossa antiga gravadora. Perguntei como
iam as coisas e ele não respondeu. Ficou um clima péssimo, ele olhando para o
chão e eu olhando para a luzinha vermelha que demorou uma eternidade para
pular do “11” ao “T”. O tempo amplificado pelo silêncio do elevador. Imaginei
que ele estivesse indignado com minha ida para outra gravadora. Quando, fi-
nalmente, a porta se abriu, várias pessoas vieram falar em inglês com o cara que
estava ao meu lado no elevador. Um menino mostrava uma guitarra pedindo
autógrafo. Putz, só aí caiu a ficha: era o Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppe-
lin! Imagem superpresente na minha adolescência. Nem é muito parecido com
o tal presidente da gravadora. E eu, puxando conversa em português! Imagino
quantos autógrafos com o nome errado eu devo ter dado na minha vida.
Também acontece o contrário disso. Em algumas cidades rolam uns
HG covers. Na gravação de um programa, em São Paulo, alguém da produção
me disse: “Espero que o camarim esteja melhor, do teu agrado, agora”. “Como
assim, melhor, do meu agrado?”, perguntei. Um cara tinha estado ali, antes, se
fazendo passar por mim. Meu sósia havia armado o maior barraco reclamando
da disposição dos móveis no camarim.
119
No mundo virtual, essas malas se multiplicam, pela facilidade do ano-
nimato. Não estou no Orkut nem no Facebook, mas há um monte de “eus” lá.
Quando eu acabar de escrever esta frase, os pontos de encontro digitais serão
outros, mas a vontade de ser outra pessoa na escuridão do anonimato persistirá.
120
Vem à mente a história dos teclados QWERT. No início, as máquinas
de escrever tinham teclas dispostas de maneira a facilitar a digitação. Digitar
rápido virou um esporte, até competições aconteciam. Com o aumento da ve-
locidade, as hastes com os tipos acabavam acavalando, trancando umas nas
outras. Para resolver essa questão, mudaram a disposição das letras para que
a digitação ficasse mais difícil. Batendo à máquina mais lentamente, o proble-
ma não existiria. Com a chegada das máquinas elétricas e dos computadores,
se manteve a disposição QWERT, já sem necessidade. Um arranjo de letras
absurdo para uma tecnologia que não oferece riscos de embaralhar hastes. O
processo já não é mecânico, não existem mais hastes. Persistiu esse arranjo de
teclas pela cultura, pelo costume.
Essa história expressa como me sentia tocando baixo nos últimos
tempos: seguindo minhas próprias pegadas. É claro que todo instrumento, por
mais limitado que seja, é, em tese, inesgotável. Mas teses não têm só cinco de-
dos em cada mão, nem só uma cabeça sobre o pescoço.
Com a guitarra, eu voltava ao instrumento com o qual comecei a tocar
para os outros. Será que estou mentindo? Será que a verdadeira razão da volta
é o desenho das Gibson SG? Foi esse modelo de guitarra que comecei a usar.
A SG é uma irmã bastarda das heroicas Fender Stratocaster e Gibson Les Paul.
Sem o astral coitadinho das Fender Jazzmaster e Jaguar.
A nova escalação deu muito certo. Não demorou para soarmos legal.
Veio a vontade de registrar, em disco, o momento. Sublinhando a continuida-
de num momento de mudança, gravamos o 10.001 Destinos. Mais um disco
com espírito de refil, recarga de bateria. Mesmo projeto gráfico do disco an-
terior, só mudava a cor. Um disco duplo, unindo o show do 10.000 Destinos
com músicas gravadas em estúdio. Nenhuma nova composição no repertório.
121
O foco estava na busca de identidade instrumental. Resultou algo interessan-
te, fundamental para quem acompanha a banda.
Gravado no estúdio onde ensaiávamos, sinalizava que nosso namoro
com o mainstream já era só um retrato na parede. Sem muita paciência para ves-
tir o uniforme underground, sobrava a boa sensação estranha de estar num lim-
bo, sem obrigações com nenhuma cena, nenhuma agenda. O que não quer dizer
que a venda de discos ou o volume de shows tenha mudado muito. Os fãs de fé es-
tavam sempre ao lado. Já havíamos vendido discos em cruzeiros, cruzeiros novos,
cruzados, cruzados novos, reais… Boa sensação estranha de sobreviver às moedas.
Nesse disco, Carlos Maltz voltou a aparecer. Não nos falávamos fazia al-
guns anos. Eu recebia muitos e-mails de pessoas dizendo ser ele. Anonimato calhor-
da digital. Uma das mensagens me chamou atenção. Resolvi replicar fazendo uma
pergunta que só o verdadeiro Maltz saberia responder. Era ele. Estava morando em
Brasília, trabalhando com astrologia e estudando psicologia. Escrevemos por e-mail
a letra de e-Stória. A música eu já tinha desde os tempos da Arquitetura. Gravamos
juntos a faixa, que teve a participação sempre especial de Renato Borghetti.
123
Humberto Gessinger
voz, baixo & violão
Luciano Granja
guitarra & violão
Lúcio Dorfman
teclado
Adal Fonseca
bateria
Humberto Gessinger
voz & guitarra
Paulo Galvão
guitarra
Gláucio Ayala
bateria
Bernardo Fonseca
baixo
A MONTANHA 1 gessinger
* SOPA DE LETRINHAS 2 gessinger/pitz
* OUÇA O QUE EU DIGO: NÃO OUÇA NINGUÉM 3 gessinger
* EU QUE NÃO AMO VOCÊ 4 gessinger
PRA SER SINCERO 5 gessinger/licks
SOMOS QUEM PODEMOS SER 6 gessinger
PIANO BAR 7 gessinger
NINGUÉM = NINGUÉM 8 gessinger
ALÍVIO IMEDIATO 9 gessinger
ILEX PARAGUARIENSIS gessinger
TERRA DE GIGANTES 10 gessinger
? QUANTO VALE A VIDA ? gessinger
ERA UM GAROTO… 11 luzini/migliaci/vs: brancato
TODA FORMA DE PODER 12 gessinger
ILUSÃO DE ÓTICA gessinger
REFRÃO DE BOLERO 13 gessinger
PARABÓLICA 14 gessinger/licks
INFINITA HIGHWAY 15 gessinger
A PROMESSA 16 gessinger/casarin
* Só em video * NEGRO AMOR 17 dylan/vs: veloso/cavalcanti
** Só em CD O PAPA É POP 18 gessinger
*** Só no 10.001 Destinos RÁDIO PIRATA 19 schiavon/p. ricardo
** NÚMEROS 20 gessinger
** NOVOS HORIZONTES 21 gessinger
** QUANDO O CARNAVAL CHEGAR 22 chico buarque
*** SEM VOCÊ (!É FODA!) 23 gessinger
*** FREUD FLINTSTONE 24 gessinger
*** A PERIGO 25 gessinger
*** NUNCA SE SABE 26 gessinger
*** CONCRETO E ASFALTO 27 gessinger
• 2002 •
Surfando Karmas e DNA chegou às lojas no início do ano. A música
chamada “de trabalho” era Terceira do Plural. Adorei que fosse. Nunca meti
minha colher nessas escolhas. Depois de gravar várias canções para um disco,
era irritante escolher só uma para mandar para as rádios. Antes da era dos ví-
deos, o lance era menos homogêneo, músicas diferentes rolavam em diferentes
lugares. Com os vídeos custando cada vez mais caro, tudo ficava mais lento. A
lógica da indústria era massificar uma canção de cada vez.
Geralmente escolhiam a canção mais parecida com o que estivesse
fazendo sucesso. Nem sempre, quase nunca, tínhamos muito a oferecer nesse
sentido. Uma vez que eu só gravava o que quisesse e da maneira como quisesse,
por mim, podiam mandar qualquer música para as rádios. As canções têm uma
sabedoria própria, dão um jeito de achar os ouvidos a que estão destinadas. As
menos óbvias acabam ganhando o divertido status de “lado B”, a delícia dos fãs
mais radicais.
A ideia de surfar karmas e DNA recorre no disco como uma onda. A
grande sabedoria: saber ser pequeno. As ondas nem sempre são naturais, aque-
las dependentes de marés e fases da lua. Às vezes é um transatlântico que passa
pela nossa jangada fazendo onda.
nau à deriva
no asfalto ou em alto mar
Perigo! Perigo!
perdidos no espaço sideral
128
Não acho importante o que penso sobre o assunto, não quero dizer a ninguém o
que fazer. Não uso porque não me fazem bem e não me dão prazer. Só acho um
desperdício, uma falta de colorido e variedade reduzirem-se os pontos de vista.
Mais chato do que papo de drogado, só papo de ex-drogado. Papo
de quem é histericamente contra ou radicalmente a favor também é um saco.
Como uma questão tão interessante pode ser discutida sem sutileza? Quanta
riqueza se perde! É um dos papos mais interessantes: alteração de percepção,
aumento ou diminuição de consciência, e se fala disso na linguagem do “foi
impedimento ou não”.
129
2002 Surfando Karmas & DNA
Humberto Gessinger
voz, guitarra, violão & teclado
Paulinho Galvão
guitarra & violão
Bernardo Fonseca
baixo
Gláucio Ayala
bateria & percussão
Quando decido mudar do baixo para a guitarra ou <
da guitarra para a viola caipira, não penso muito.
Por outro lado, sou muito específico em relação
a marcas e modelos. Como se houvesse mais
diferenças entre duas guitarras Gibson SG do que
entre um baixo e um acordeón. Não me pergunte
a razão dessa diferença de atitude, no geral e no
particular. Eu seria obrigado a confessar que vejo
mais diferenças entre dois baixos Steinberger
do que entre um bandolim e um piano.
134
Fizemos uma das turnês mais bonitas. O show era denso, quase ten-
so. O cenário, bonitaço. Tudo encaixava. É bom quando acontece, amplifica a
sensação de estar vivo. Voltamos aos Estados Unidos para fazer shows em sete
cidades. A viagem dentro da viagem foi tocar para pessoas que não conheciam
a banda nem seu idioma, como dois policiais que ficaram no palco, fazendo a
segurança, em Boston. É a sensação de estar começando de novo. Um espelho
zero km, desembaçado, pra gente sacar a quantas anda.
Senti na pele os reflexos da paranoia que tomou conta dos EUA de-
pois do ataque às torres gêmeas. Ficar sem sapatos naqueles aeroportos tão
modernos não fazia sentido para um cara tão formal quanto eu.
Dois anos atrás, no dia 11 de setembro, eu estava ouvindo o som da
bolinha (raquete-parede-chão, raquete-parede-chão), quando fiquei sabendo
da estupidez no céu de Nova Iorque. À noite, fizemos o chat mensal. Entre per-
guntas sobre músicas e shows, rolou o seguinte diálogo:
Humberto, você acha q a 3a Guerra Mundial está mais
próxima?
Não... fiquei assistindo a tudo desde o início, ali pelas sete horas a
agitação virava depressão, fui caminhar um pouco, voltei agora... não sei os
lances mais recentes... Talvez vá ser teocracia esquisita versus democracia
desvirtuada... alguém falou que o atentado foi LoTech, mas de alta concep-
ção… exatamente o calcanhar de Aquiles da América: eles são HiTech e de
baixa profundidade... ainda tem o Bush, figura triste, despreparada.
Dançando no
2003 Campo Minado
Humberto Gessinger
voz, guitarra, violão,
harmônica & teclado
Paulinho Galvão
guitarra
Bernardo Fonseca
baixo
Gláucio Ayala
bateria, percussão & voz
Tenho uma relação bem intensa com os instrumentos. Nela, o som é só um dos aspectos.
<
Design, a história e astral entram na equação. Assim como acontece com minhas raquetes,
acho um mau sinal quando o modelo que está em milhares de lojas pelo mundo me satisfaz
sem necessidade de alguma alteração. As guitarras que fiz com o luthier gaúcho Cheruti
misturam corpo de Gibson SG, captação de Fender Telecaster e braço da Stratocaster
do Jeff Beck. A doubleneck branca construí juntando dois Steinbergers. Mas depois de tirar
deles os sons que estavam esperando, não me apego aos instrumentos. Não gosto de vê-los
nos cases, parecem mortos. Não tenho mais comigo os Rickenbackers do início nem as
Gibson 335 e 350 que usei no FGCA.
Dançando no
2003 Campo Minado
CAMUFLAGEM 1 gessinger/galvão
DUAS NOITES NO DESERTO 2 gessinger
ROTA DE COLISÃO 3 gessinger/fonseca
DANÇANDO NO CAMPO MINADO 4 gessinger
SEGUNDA-FEIRA BLUES parte 1 5 gessinger/maltz
DOM QUIXOTE 6 gessinger/galvão
ATÉ O FIM 7 gessinger
NA VEIA 8 gessinger
FUSÃO A FRIO 9 gessinger/galvão
SEGUNDA-FEIRA BLUES parte 2 10 gessinger/maltz
OUTONO EM PORTO ALEGRE 11 gessinger/galvão
• 2004 •
Um ano sabático. Desde o início da banda, só em 1994 eu havia
tirado o time de campo por alguns meses. Depois dos shows de verão,
me recolhi. No fim do ano, o pêndulo, que havia viajado a um extremo,
num disco pesado, disparou no sentido oposto. Gravaríamos o CD/DVD
Acústico MTV.
Já havíamos feito o que se convencionou chamar “disco acústico”
em 1993, no Filmes de Guerra, Canções de Amor. Desde 86, com o acor-
deón na demo de Segurança, essa sonoridade estava presente no nosso
trabalho. Instrumentos acústicos, músicas sem bateria, não eram novida-
de para nós.
Me diverti muito selecionando o material e fazendo os arranjos para
violão, harmônica, bandolim e piano. Meu único medo era de que o projeto
fosse algo episódico na história da banda, um disco entre parênteses. Não te-
nho muita paciência para coisas que não vêm de lugar nenhum e não vão a
nenhum lugar. Acabou dando frutos. Nos próximos trabalhos, eu mergulharia
ainda mais nessa viagem.
vertical
de corpo e alma
mergulho ou decolagem
tanto faz
140
enfatizavam o caráter “desproduzido”, quase caseiro, que eu queria dar
ao projeto.
Com Carlos Maltz nos vocais gravamos Depois de Nós, uma bela can-
ção que ele escreveu. Clara cantou Pose. A participação dela foi bem casual.
Enquanto eu ia planejando o disco, fazendo os arranjos e as demo, em casa, ela
estava sempre por ali. Nem lembro quando cantou pela primeira vez, foi muito
natural. A versão original da canção era bem mais longa. Reescrita, virou uma
música dela.
Lincoln Olivetti fez os arranjos de cordas e, a partir desse disco, Fernan-
do Aranha, no violão, e Pedro Augusto, nos teclados, engrossavam nosso caldo.
2004 Acústico MTV
Humberto Gessinger
voz, violão, harmônica, bandolim & teclado
Paulinho Galvão
violão
Fernando Aranha
violão
Bernardo Fonseca
baixo
Humberto Barros
teclado
Gláucio Ayala
bateria & voz
O PAPA É POP
ATÉ O FIM
1
2
gessinger
gessinger
+ Participei do CD/DVD
Um Barzinho, Um Violão
ARMAS QUÍMICAS E POEMAS 3 gessinger Jovem Guarda, tocando
O Vagabundo.
O PREÇO 4 gessinger
A REVOLTA DOS DÂNDIS 1 e 2 5 gessinger No CD/DVD Teixeirinha -
POSE 6 gessinger Coração do Rio Grande,
INFINITA HIGHWAY 7 gessinger gravei, ao lado de
DOM QUIXOTE 8 gessinger/galvão Luis Carlos Borges,
VIDA REAL 9 gessinger Coração de Luto.
SURFANDO KARMAS & DNA 10 gessinger
OUTRAS FREQUÊNCIAS 11 gessinger Participei do CD/DVD
Cidadão Quem
TERRA DE GIGANTES 12 gessinger
No Theatro São Pedro.
NÚMEROS gessinger Tocamos
3x4 13 gessinger Terra de Gigantes.
* EU QUE NÃO AMO VOCÊ 14 gessinger
REFRÃO DE BOLERO 15 gessinger
3ª DO PLURAL 16 gessinger
DEPOIS DE NÓS 17 maltz
SOMOS QUEM PODEMOS SER 18 gessinger
ERA UM GAROTO... 19 luzini/migliaci/vs: brancato
* DE FÉ 20 gessinger
* Apenas no DVD
146
No elevador, encontrei Gláucio, grande batera. Ele começou o que se
transformaria num diálogo surreal. Não me lembro das palavras exatas pois o
papo foi sucedido por uma explosão de euforia:
– Caraca, que lance incrível, meu irmão!
– É…
– Nunca vi disso!
– Nem me fala…
– É muita sorte. Que gol!
– Sorte é o c… Vamos amargar mais um ano na segundona!
– Como assim? Você não viu? Os caras erraram o pênalti e o Grêmio
fez um gol!
Nunca na história dos elevadores alguém havia entrado com uma cara
tão diferente da cara com que tinha saído! Durante a passagem de som e por
algumas horas me senti um super-homem, imortal. Tirei a maior onda com o
pessoal da banda e da equipe, todos cariocas. Incorporei por um tempo todos os
trejeitos e frases de valentia gaúchos. Sem confessar que havia agido, mais uma
vez, como uma avestruz, no quarto do hotel.
147
• 2006 •
Os shows acústicos pareciam mais atemporais. Abriam a possibili-
dade de renovação permanente do repertório. Buscar coisas esquecidas e reler
com novos arranjos. Geralmente, passávamos mais de uma vez pelas cidades. A
turnê foi se estendendo e novos elementos, aparecendo.
Comecei a tocar viola caipira, instrumento que a gente passa metade
do tempo afinando e metade do tempo tocando desafinado. Não é comum no
Sul. Violão com cordas de náilon é a nossa tradição. Talvez por isso eu tenha
demorado tanto a chegar à viola que, há muito tempo, me fascinava. O som
do Brasil profundo. Um presente que Minas me deu. Com nenhum outro ins-
trumento me senti tão à vontade em tão pouco tempo. Novas músicas e novos
arranjos para velhas músicas começaram a brotar, trazendo a vontade de regis-
trar esse processo.
Nem sempre, e quase nunca, nosso relógio interno bate em uníssono
com o relógio do ambiente. Nos primeiros tempos de banda, eu não queria
nem saber, o relógio interno mandava sempre. Depois de tantos anos de es-
trada e de janela, comecei a respirar mais fundo, esperando um terreno mais
propício para jogar a semente. Tínhamos um novo disco pronto, mas não gra-
varíamos agora.
Coloquei vídeos de algumas canções novas no site da banda. Uma
experiência bacana, compartilhar a feitura de um álbum. Brincava que eram
“VideOsamas”, propositadamente rudimentares. Mensagens enviadas de uma
caverna. Câmera num tripé, eu tocando a música, sem cortes, na versão mais
primitiva possível, assim que eu achasse que ela estava pronta (aí vai mais
uma mentira: nunca se sabe se uma canção está pronta. Mas, tudo bem, se
formos literais, a vida em sociedade fica impossível. Então, fazemos de conta
que uma canção, um dia, fica pronta). Outro conjunto de canções já disponi-
bilizei num estágio mais avançado. Só áudio, mas gravado com toda a banda,
em estúdio.
É uma questão delicada, essa: o jogo entre claro e escuro. O que
mostrar, o que sugerir, o que esconder. Que poder dar ao ouvinte, ao fã?
Pra ser sincero, eu, como fã, não quero poder nenhum. Não quero que meus
148
artistas favoritos me perguntem que músicas gravar, que roupas usar. Não
quero que políticos me perguntem que palavras gosto de ouvir. A função deles
(a minha) é buscar a voz interior. E torcer para que alguns malucos queiram
acompanhar a caminhada. Correndo o risco de ficar falando sozinho, tocando
para as poltronas, num teatro vazio.
Por outro lado, a possibilidade de chegar às pessoas com o menor nú-
mero de filtros possível é sempre bem-vinda. Boa sensação estranha, sobreviver
ao funil da divulgação via meios de comunicação de massas.
149
• 2007 •
Chegava a hora do velho disco novo, Novos Horizontes, lançado em
CD e DVD. Foi gravado ao vivo no mesmo local onde gravamos o 10.000 Desti-
nos. Quase todas as turnês passaram por essa tradicional casa de shows de São
Paulo. Ela já teve vários nomes, os últimos vinculados a patrocinadores. Boa
sensação estranha de sobreviver aos nomes.
O disco aprofundava a viagem iniciada no Acústico MTV. A principal
diferença, além da viola caipira, era o número maior de músicas inéditas: oito.
Gravar ao vivo passou a ser fundamental para mim. Quanto mais cosméticos a
tecnologia de estúdio oferece, mais me fascina o que só acontece uma vez, numa
noite, em frente a algumas pessoas.
A diferença entre músicas inéditas e regravações foi ficando cada vez mais
irrelevante para mim. Boa sensação estranha de que tudo se misturava e construía
uma única infinita canção. Esses são os novos horizontes: livres, desformatados.
151
2007 Novos Horizontes
Humberto Gessinger
voz, violão, viola caipira, bandolim,
harmônica & teclado
Fernando Aranha
violão
Bernardo Fonseca
baixo
Gláucio Ayala
bateria & voz
Pedro Augusto
teclado
TODA FORMA DE PODER 1 gessinger
CHUVA DE CONTAINERS gessinger
VERTICAL 2 gessinger
GUANTÁNAMO 3 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
A MONTANHA 4 gessinger
QUEBRA-CABEÇA 5 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
NO MEIO DE TUDO, VOCÊ 6 gessinger
NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM 7 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
CINZA 8 gessinger/maltz
CORAÇÃO BLINDADO 9 gessinger/fonseca/ayala/aranha/pedro a
A ONDA 10 gessinger
PARABÓLICA 11 gessinger/licks
FAZ DE CONTA 12 gessinger/mattos
NOVOS HORIZONTES 13 gessinger
ALÍVIO IMEDIATO gessinger
SIMPLES DE CORAÇÃO 14 gessinger
PIANO BAR 15 gessinger
LUZ 16 gessinger
PRA SER SINCERO 17 gessinger/licks
< Com Maltz
em Cinza
156
repórter muito chato. Até combinei de ligar para mim mesmo, hora dessas,
para continuar o papo.
157
como Pena Branca & Xavantinho, um lance pop como Simon & Garfunkel ou
jazz como Larry Coryell & Philip Catherine, há algo especial quando duas pes-
soas estão tocando. Depois do solo, é o mínimo. Mas, nesse mínimo, pode rolar
o máximo diálogo musical.
HG: Quais instrumentos vocês usam?
AgAgê: Eu sigo nos instrumentos acústicos: violão, viola caipira,
harmônicas, piano. Além da MIDI Pedalboard, que é um teclado que toco com
os pés. Duca toca guitarra e violão. Com os pés, ele faz percussão, bombo le-
guero e pandeiro.
É bem intenso. Geralmente, quando um artista chega à quilometra-
gem a que chegamos, pensa em desfrutar do conforto de um repertório já co-
nhecido e de vários bons músicos aparando arestas. Mas nós estamos vibran-
do em outras frequências. Queremos sair da zona de conforto, por achar que
só tensa a corda vibra legal. A vida é mesmo muito curta pra ser pequena.
HG: Que tipo de reação vocês esperam dos fãs das bandas
Engenheiros do Hawaii e Cidadão Quem?
AgAgê: Acho que o maior sinal de respeito de um artista em relação
ao seu público é não pensar nele na hora em que cria. Eu não quero que os
artistas dos quais eu gosto pensem em mim quando criam. Não quero que os
políticos nos quais eu voto façam pesquisas pra saber como quero que eles fa-
lem e atuem. Quero que eles tenham uma visão e corram o risco de encontrar
ou não quem se interesse por ela.
Resumir todas as pessoas que gostam do teu trabalho num estere-
ótipo de “fã” também me parece grosseiro. Cada fã é fã da sua forma, com
suas particularidades. Cada um tem seu caminho, sua maneira de passear
pela obra. Não gosto que me vejam como produto, por isso não penso ne-
les como consumidores. Obviamente será maravilhoso se todos gostarem de
tudo. Se os teatros estiverem todos lotados e as bocas todas sorrindo e pedin-
do bis. Caso esse mundo ideal não se concretize, estaremos tranquilos, por
estar seguindo nossa visão.
158
159
• 2009 •
É o ano em que estou escrevendo este texto. Ainda não terminou.
Gravamos o CD/DVD Pouca Vogal Ao Vivo em Porto Alegre. Ainda não lança-
mos. Vida que segue. Escrevo agora dentro de um ônibus, depois de um show.
Uma pergunta que ouvi recorrentemente nesses anos todos é sobre
inspiração. Quando pintam as canções? Algum lugar especial para compor?
De onde vêm as canções? Não há resposta. Elas chegam a qualquer hora, em
qualquer lugar. Vindas não sei de onde.
O que mais se aproximaria, no meu caso, de um lugar inspirador,
seria, exatamente, um ônibus. Na escuridão da madrugada. Depois de um
show, às vésperas de outro. Enquanto músicos e equipe estão dormindo. Os
faróis iluminando uma fatia mínima de asfalto, as músicas que tocamos e a
reação da plateia ainda na cabeça. Para mim, sempre foi inspirador. Muitas
ideias nasceram assim.
Caminhar e jogar tênis também são momentos bons para pen-
sar sem pensar. Muitas lembranças para este livro me vieram na quadra,
entre sets e games. Foi péssimo para o nível técnico do meu jogo, espero
que tenha sido bom para o texto. Até um tempo atrás eu gostava de imagi-
nar jogos entre o jovem Agagê e o veterano HG. Quem venceria? O maior
preparo físico ou a maior experiência? Nunca cheguei a nenhuma conclu-
são. Talvez porque nossa jornada seja mais parecida com frescobol do que
com tênis. Mais diálogo do que competição. Conversas entre quem fomos
e quem queremos ser.
Gostaria muito de ler o que escrevi, sem ter escrito, sem ter vivido o
que narrei. Ver meu próprio corpo como se fosse outra pessoa. Talvez entendes-
se melhor “qual é”. Imagino que várias frases do texto, tiradas do seu contexto,
podem dizer o contrário do que dizem. Minhas canelas cheias de marcas de
chuteira provam que sempre corri esse risco.
Parece que Nietzsche disse que “o que não aniquila, fortalece”. Na
dúvida, fico com o que dizia minha vó: “O que não mata, engorda”. Canelas
lanhadas, mãos cheias de calos, olhos cansados e ouvidos impacientes são me-
dalhas que trago no peito.
160
Escrevi com o coração e tentei não ser um cardiologista. Ignorei a
proporcionalidade racional entre fatos importantes e irrelevantes. Se me esten-
di sobre bobagens e esqueci lances cruciais, deve haver algum motivo. Depende
da distância, longe ou perto, dentro ou fora.
O próprio tempo é uma questão de distância, basta olhar a irradiação
fóssil das estrelas lá fora. Continuam brilhando e já não existem. É como sem-
pre digo para meu amigo Freud Flintstone, quando ele aparece na escuridão
do ônibus, refletido na janela: “Você, que tem ideias tão modernas, é o mesmo
homem que vivia nas cavernas”.
Humberto Gessinger
voz, viola caipira, violão,
harmônica & teclado
Duca Leindecker
voz, violão, guitarra & percussão
DEPOIS DA CURVA 1 gessinger/leindecker
ATÉ O FIM 2 gessinger
GIRASSÓIS 3 leindecker
BREVE 4 gessinger/leindecker
DIA ESPECIAL 5 leindecker
ALÉM DA MÁSCARA 6 gessinger
SOMOS QUEM PODEMOS SER 7 gessinger
O VOO DO BESOURO 8 gessinger
MÚSICA INÉDITA 9 leindecker
NA PAZ E NA PRESSÃO 10 leindecker
PINHAL 11 leindecker
PRA QUEM GOSTA DE NÓS 12 gessinger
TODA FORMA DE PODER + BANCO 13 gessinger
REFRÃO DE BOLERO 14 gessinger
AO FIM DE TUDO 15 leindecker
TENTENTENDER 16 gessinger/leindecker
O AMANHÃ COLORIDO 17 leindecker
POUCA VOGAL 18 gessinger
A MONTANHA 19 gessinger
A FORÇA DO SILÊNCIO 20 gessinger/leindecker
172
CAUSA MORTIS
letra e música: gessinger 1984 CAUSA MORTIS
dia após dia, cada vez mais fria O jeitinho cão andaluz vem
você matou sua mãe pra estudar anatomia da cena da navalha no olho do
ano após ano, seu sorriso insano filme de Buñuel. Aguentar os
você matou seu pai com veneno no cinzano punks de butique da época
era um saco. Sempre há quem
você matou o presidente norte-americano ache que a credibilidade está
você era democrata, ele republicano em falar alto.
você matou sua avó ouvindo Mano a Mano
matou seu avô — não me diz que foi engano
173
SEGURANÇA
SEGURANÇA letra e música: gessinger 1985
174
TODA FORMA DE PODER
letra e música: gessinger 1986 TODA FORMA DE PODER
o fascismo é fascinante
deixa gente ignorante fascinada
é tão fácil ir adiante
esquecer que a coisa toda tá errada
eu presto atenção no que eles dizem
mas eles não dizem nada
se tudo passa
talvez você passe por aqui
e me faça esquecer tudo que eu vi
175
LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS CRÔNICA
letra e música: gessinger 1986 letra e música: gessinger 1986
eu sempre quis viver no velho mundo a cidade, cada vez mais violenta
na velha forma de viver (tipo Chicago nos anos quarenta)
o 3º sexo e você, cada vez mais violento
a 3ª guerra no seu apartamento ninguém fala com você
o 3º mundo
são tão difíceis de entender que tem ideias tão modernas
e é o mesmo homem que vivia nas cavernas
176
FÉ NENHUMA
letra e música: gessinger 1986 FÉ NENHUMA
177
BEIJOS PRA TORCIDA
BEIJOS PRA TORCIDA letra e música: gessinger 1986
em todo lugar
um pedaço do fim
um furo de bala
um muro de Berlim
178
A REVOLTA DOS DÂNDIS
letra e música: gessinger 1987
1 2
entre um rosto e um retrato já não vejo diferença
o real e o abstrato entre os dedos e os anéis
entre a loucura e a lucidez já não vejo diferença
entre o uniforme e a nudez entre a crença e os fiéis
entre o fim do mundo e o fim do mês tudo é igual quando se pensa
entre a verdade e o rock inglês em como tudo deveria ser
entre os outros e vocês há tão pouca diferença
há tanta coisa a fazer
eu me sinto um estrangeiro
passageiro de algum trem esquerda & direita, direitos & deveres,
que não passa por aqui os 3 patetas, os 3 poderes
que não passa de ilusão ascensão & queda
são dois lados da mesma moeda
entre mortos e feridos tudo é igual quando se pensa
entre gritos e gemidos em como tudo deveria ser
a mentira e a verdade há tão pouca diferença
a solidão e a cidade há tanta coisa a escolher
entre um copo e outro
da mesma bebida nossos sonhos são os mesmos há muito tempo
entre tantos corpos mas não há mais muito tempo pra sonhar
com a mesma ferida
pensei que houvesse um muro
eu me sinto um estrangeiro entre o lado claro e o lado escuro
passageiro de algum trem pensei que houvesse diferença
que não passa por aqui entre gritos e sussurros
que não passa de ilusão mas foi um engano, foi tudo em vão
já não há mais diferença entre a raiva e a razão
entre americanos e soviéticos
gregos e troianos esquerda & direita, direitos & deveres,
entra ano e sai ano os 3 porquinhos, os 3 poderes
sempre os mesmos planos ascensão & queda
entre a minha boca e a tua são dois lados da mesma moeda
há tanto tempo, há tantos planos tudo é igual quando se pensa
mas eu nunca sei pra onde vamos em como tudo poderia ser
há tantos sonhos a sonhar
eu me sinto um estrangeiro há tantas vidas a viver
passageiro de algum trem
que não passa por aqui nossos sonhos são os mesmos há muito tempo
que não passa de ilusão mas não há mais muito tempo pra sonhar
179
TERRA DE GIGANTES
letra e música: gessinger 1987
hey, mãe
eu tenho uma guitarra elétrica
durante muito tempo
isso foi tudo que eu queria ter
hey, mãe
tenho uns amigos tocando comigo
eles são legais e além do mais
não querem nem saber
180
FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR
letra e música: gessinger 1987
181
INFINITA HIGHWAY
INFINITA HIGHWAY letra e música: gessinger 1987
182
escute, garota o vento canta uma canção
dessas que a gente nunca canta sem razão
me diga, garota “Será a estrada uma prisão?”
eu acho que sim, você finge que não
mas nem por isso ficaremos parados
com a cabeça nas nuvens e os pés no chão
tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre
se tanta gente vive sem ter como viver
estamos sós
nenhum de nós sabe onde quer chegar
estamos vivos sem motivos
que motivos temos pra estar
atrás de palavras escondidas
nas entrelinhas do horizonte desta highway
silenciosa highway minha vida é tão confusa
quanto a América Central
eu vejo o horizonte trêmulo por isso não me acuse de ser irracional
tenho os olhos úmidos escute garota, façamos um trato:
eu posso estar completamente enganado você desliga o telefone
posso estar correndo pro lado errado se eu ficar muito abstrato
mas “a dúvida é o preço da pureza” eu posso ser um beatle
é inútil ter certeza um beatnik ou um bitolado
eu vejo as placas dizendo mas eu não sou ator
“não corra”, “não morra”, “não fume” eu não ‘tô à toa do teu lado
eu vejo as placas cortando o horizonte por isso garota, façamos um pacto:
elas parecem facas de dois gumes não usar a highway pra causar impacto
183
ALÉM DOS OUTDOORS
letra e música: gessinger 1987
no ar da nossa aldeia
há rádio, cinema & televisão
mas o sangue só corre nas veias
por pura falta de opção
184
QUEM TEM PRESSA NÃO SE INTERESSA VOZES
letra: gessinger 1987 | música: gessinger/maltz letra e música: gessinger 1987
185
GUARDAS DA FRONTEIRA REFRÃO DE BOLERO
letra e música: gessinger 1987 letra e música: gessinger 1987
além do mito que limita o infinito teus lábios são labirintos, Ana
além da cegueira que atraem os meus instintos mais sacanas
das barreiras, das fronteiras teu olhar sempre distante sempre me engana
eu sigo a tua pista todo dia da semana
foi então que eu resolvi jogar
as cartas na mesa e o vaso pela janela teus lábios são labirintos, Ana
só pra ver o que acontece na vida que atraem os meus amigos mais sacanas
quando alguém faz o que quer com ela eu entro sempre na tua dança de cigana
é o fim do mundo todo dia da semana
acontece que eu não tenho escolha
por isso mesmo é que eu sou livre
não sou eu o mentiroso
foi Sartre quem escreveu o livro
não sou a fim de violência
mas paciência tem limite
186
CIDADE EM CHAMAS
letra e música: gessinger 1988
no meio da confusão
andando sem direção
a fim de sobreviver
só pra ver como brilha
a cidade em chamas
187
OUÇA O QUE EU DIGO:
SOMOS QUEM PODEMOS SER
NÃO OUÇA NINGUÉM
letra e música: gessinger 1988
Já toquei essa música na
guitarra, baixo fretless, acor- tantas pessoas paradas na esquina
deón, piano, bandolim, viola assistindo à cena:
caipira e violão. Ergo 123 mãos pele morena vendendo jornais
aos céus por ter um público vendendo muito mais
que acompanha e até incen- do que queria vender
tiva essa maneira de tratar as
canções, como organismos vozes à toa
vivos. Não precisei virar cover ecos na esquina narrando a cena
de mim mesmo. pele morena vendendo jornais
Nada contra bandas precisando de mais venenos mortais
cover. Tenho até inveja de quem
consegue simular o som dos o que nos devem queremos em dobro
outros, é um talento que não queremos em dólar
tenho. Desde criança, sempre o que nos devem queremos em dobro
queremos agora
que eu tentava tocar músicas
de outras pessoas, acabava
se te disseram pra não virar a mesa
escrevendo uma nova antes de se te disseram que o ataque é a pior defesa
conseguir. se te imploraram: “por favor, não vire a mesa”
Outro pessoal que invejo ouça o que eu digo: não ouça ninguém
são os compositores de jingle. ouça o que eu digo: não ouça ninguém
Não consigo escrever nada
“de propósito”. O que se con- tantas pessoas paradas na esquina
vencionou chamar “talento fingindo pena
musical”, na verdade, tem vá- criança pequena cheirando cola
rias facetas: reproduzir, criar beijando a sola dos sapatos
instintivamente, criar racio-
nalmente, ouvir… Esta, para o que nos devem queremos em dobro
mim, é a mais importante. queremos em dólar
Conheço um monte de o que nos devem queremos em dobro
queremos agora
gente que aprendeu a tocar.
Não conheço ninguém que
se te disseram pra não virar a mesa
tenha aprendido a ouvir. se te disseram que o ataque é a pior defesa
se te disseram pra esperar a sobremesa
ouça o que eu digo: não ouça ninguém
ouça o que eu digo: não ouça ninguém
188
SOMOS QUEM PODEMOS SER
letra e música: gessinger 1988
um dia me disseram
que as nuvens não eram de algodão
um dia me disseram
que os ventos às vezes erram a direção
um dia me disseram
que as nuvens não eram de algodão
sem querer eles me deram
as chaves que abrem esta prisão
189
PRA ENTENDER
TRIBOS E TRIBUNAIS letra e música: gessinger 1988
pra entender
basta uma noite de insônia
um sonho que não tem fim
um filme sem muita graça
uma praça sem muito sol
seis cordas pra guitarra
seis sentidos na mesma direção
seiscentos anos de estudo
ou seis segundos de atenção
190
TRIBOS E TRIBUNAIS
letra: gessinger 1988 | música: licks
críticos de arte
arte pela arte
Pink Floyd sem Roger Waters
forma sem função
fascistas de direita
fascistas de esquerda
empresas sem fins lucrativos
empresas que lucram demais
191
NUNCA SE SABE
letra e música: gessinger 1988
192
?DESDE QUANDO?
letra e música: gessinger 1988
desde quando?
até quando?
193
A VERDADE A VER NAVIOS
letra e música: gessinger 1988
na hora H no dia D
na hora de pagar pra ver
ninguém diz o que disse
(não era bem assim)
na hora H no dia D
na hora de acender a luz
ninguém dá nome aos bois
(tudo fica pra depois)
na hora H no dia D
ninguém paga pra ver
tudo fica pra trás
(querem mais é esquecer)
é muito engraçado
mas é impossível repetir que todos tenham os mesmos sonhos
o que só acontece uma vez e que o sonho nunca vire realidade
é impossível reprimir
o que acontece toda vez é muito engraçado
que alguém acorda que estejam do mesmo lado
porque já não aguenta mais os que querem iluminar
e a corda arrebenta no lado mais forte e os que querem iludir
é muito engraçado
que todo mundo tenha
armas capazes de tudo
de todo mundo acabar
no dia D na hora H
é impossível repetir
o que só acontece uma vez
é impossível reprimir
o que acontece toda vez
que chega a hora
de dizer chega a hora de dizer…
chega!
194
NAU À DERIVA
letra e música: gessinger 1989 NAU À DERIVA
195
ALÍVIO IMEDIATO ALÍVIO IMEDIATO
letra e música: gessinger 1989 letra e música : gessinger 1993
que a chuva caia como uma luva que a noite caia de repente
um dilúvio, um delírio caia tão demente quanto um raio
que a chuva traga alívio imediato que a noite traga alívio imediato
e
que a noite caia de repente que os muros e as grades caiam
caia tão demente quanto um raio
que a noite traga alívio imediato
196
EM PAZ
letra e música: gessinger 1990 ALÍVIO IMEDIATO
197
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ
letra: gessinger 1990 | música: licks
1
não importa se só tocam
o primeiro acorde da canção
a gente escreve o resto
em linhas tortas
nas portas da percepção
em paredes de banheiro
nas folhas que o outono leva ao chão somos um exército
em livros de stória o exército de um homem só
seremos a memória dos dias que virão no difícil exercício de viver em paz
(se é que eles virão)
somos um exército
não importa se só tocam o exército de um homem só
o primeiro verso da canção sem bandeiras
a gente escreve o resto sem fronteiras para defender
sem muita pressa
com muita precisão não interessa o que o bom senso diz
não interessa o que diz o rei
nos interessa o que não foi impresso se no jogo não há juiz
e continua sendo escrito a mão não há jogada fora da lei
escrito à luz de velas
quase na escuridão não interessa o que diz o ditado
longe da multidão não interessa o que o estado diz
nós falamos outra língua
não importa se só ouvem moramos em outro país
a primeira nota da canção
a gente escreve o resto somos um exército
e o resto é resto o exército de um homem só
é falsificação no difícil exercício de viver em paz
198
O EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ
É título de um livro do
Moacyr Scliar. Já fazia muito
tempo que eu tinha lido quando
escrevi a letra. Confesso que
não sei se os dois têm algo a
ver além do título.
Importante para mim era
que as duas partes, junto com
Era um Garoto…, compu-
sessem um tríptico. A versão
d’Os Incríveis com aquele
sotaque paulista é imbatível
(quando ouço a rajada de me-
tralhadora da introdução vol-
2 to imediatamente à minha in-
somos kamikazes fância. Suspeito que guitarra e
incapazes de ir à luta baixo sejam influência da versão
somos quase livres de Mr. Tambourine Man do
(isto é pior do que a prisão) Byrds). Não acho que a nossa
gravação tenha acrescentado
somos um exército muita coisa. O segredo dela
o exército de um homem só está nas circunstâncias.
um bando de vampiros
que odeiam sangue
sem bandeira
sem fronteiras para defender
somos um exército
o exército de um homem só
nesse exército
no exército de um homem só
todos sabem que tanto faz
ser culpado ou ser capaz
tanto faz
199
O PAPA É POP
letra e música: gessinger 1990
qualquer nota
qualquer notícia
páginas em branco, fotos coloridas
200
PERFEITA SIMETRIA
letra e música: gessinger 1990
201
A VIOLÊNCIA TRAVESTIDA FAZ SEU TROTTOIR
letra e música: gessinger 1990
a violência travestida faz seu trottoir nela ele dizia que já não era criança
em anúncios luminosos que a esperança também dança
lâminas de barbear como monstros de um filme japonês
armas de brinquedo
medo de brincar tudo que ele tinha
a violência travestida faz seu trottoir era uma foto desbotada
recortada de revista
no vídeo, idiotice intergaláctica especializada em vida de artista
na mídia, na moda, nas farmácias
no quarto de dormir, na sala de jantar tudo que ele queria
a morte anda tão viva era encontrá-la um dia
a vida anda pra trás (todo suicida acredita na vida
é a livre iniciativa depois da morte)
igualdade aos desiguais
na hora de dormir, na sala de estar tudo que ele tinha
a violência travestida faz seu trottoir cabia no bolso da jaqueta
a vida, quando acaba,
cabe em qualquer lugar
e a violência travestida faz seu trottoir
202
PRA SER SINCERO
letra: gessinger 1990 | música: licks
um dia desses
não se renda às evidências num desses encontros casuais
não se prenda à primeira impressão talvez a gente se encontre
eles dizem com ternura talvez a gente encontre explicação
“o que vale é a intenção”
e te dão um cheque sem fundos um dia desses
do fundo do coração num desses encontros casuais
talvez eu diga, minha amiga
no ar que se respira pra ser sincero
nessa total falta de ar prazer em vê-la… até mais
a violência travestida faz seu trottoir
nós dois temos os mesmos defeitos
em armas de brinquedo sabemos tudo a nosso respeito
medo de brincar somos suspeitos de um crime perfeito
em anúncios luminosos mas crimes perfeitos não deixam suspeitos
lâminas de barbear
nos anúncios de cigarro
que avisam que fumar faz mal
a violência travestida faz seu trottoir
203
ANOITECEU EM PORTO ALEGRE
letra e música: gessinger 1990
na escuridão
a luz vermelha do walkman
sobre edifícios
a luz vermelha avisa aviões quinze pr’as duas, ruas escuras
nas esquinas que passaram quem tem o mapa? qual é a direção?
nas esquinas que virão
verde, amarelo, vermelho, duas e meia, castelos de areia
espelho retrovisor cabelos castanhos, estranhos sinais
aconteceu à meia-noite
anoiteceu em Porto Alegre
aconteceu a noite inteira
aconteceu em Porto Alegre
204
ANOITECEU EM PORTO ALEGRE
nada diferente
chegamos finalmente ao dia de amanhã
em Porto Alegre
205
A NOITE INTEIRA OLHOS IGUAIS AOS SEUS
letra e música: gessinger 1990 letra e musica: gessinger 1990
206
QUARTOS DE HOTEL
letra e música: gessinger 1991
207
O SONHO É POPULAR
PIANO BAR letra e música: gessinger 1991
um golpe em 61
um golpe qualquer
num lugar-comum
208
PIANO BAR
letra e música: gessinger 1991
o que você não pode eu não vou lhe pedir toda vez que falta luz
o que você não quer eu não quero insistir toda vez que algo nos falta
diga a verdade, doa a quem doer (alguém que parte e não volta)
doe sangue e me dê seu telefone o invisível nos salta aos olhos
um salto no escuro da piscina
todos os dias eu venho ao mesmo lugar
às vezes fica longe, difícil de encontrar o fogo ilumina muito
mas quando o neon é bom por muito pouco tempo
toda noite é noite de luar em muito pouco tempo
o fogo apaga tudo
no táxi que me trouxe até aqui tudo um dia vira luz
Julio Iglesias me dava razão toda vez que falta luz
“as últimas do esporte, o invisível nos salta aos olhos
hora certa, crime e religião”
na verdade, “nada” ontem à noite eu conheci uma guria
é uma palavra esperando tradução já era tarde, era quase dia
era o princípio
num precipício era o meu corpo que caía
209
MUROS & GRADES
MUROS E GRADES letra: gessinger 1991 | música: licks
um dia súper
uma noite súper
uma vida superficial
entre cobras
entre as sobras da nossa escassez
um dia súper
uma noite súper
uma vida superficial
entre sombras
entre escombros da nossa solidez
210
nas grandes cidades meninos de rua
de um país tão surreal delírios de ruína
os muros e as grades violência nua e crua
nos protegem de nosso próprio mal verdade clandestina
211
NÃO É SEMPRE
letra e música: gessinger 1991
às vezes tudo
às vezes nada
às vezes tudo ou nada
às vezes 50%
às vezes a todo momento
às vezes nunca
como tudo na vida
não é sempre
212
NUNCA É SEMPRE ANDO SÓ
letra e música: gessinger 1991 letra e música: gessinger 1991
ando só
como um pássaro voando
ando só
como se voasse em bando
ando só
pois só eu sei andar
sem saber até quando
ando só
213
DESCENDO A SERRA
SAMPA NO WALKMAN letra e música: gessinger 1991
um dia de cão
um mês de cães danados
ordem no caos
olhos cansados
não há nada de novo
no ovo da serpente
214
SAMPA NO WALKMAN
letra e música: gessinger 1991
este sou eu
parado na esquina
(o barulho termina, começa a canção)
a mesma esquina em outra canção
é a verdade
a-ver-a-cidade este sou eu
alguma coisa acontece no meu coração parado na esquina
a-ver-a-cidade ouvindo a canção
estas são elas
tuas meninas deuses da chuva
nordestinas erundinas demônios da garoa
tua mais completa contradição garotas-propaganda além dos outdoors
este sou eu
na esquina de novo
tudo é tão novo quanto esta canção
será que alguém presta atenção?
215
NINGUÉM = NINGUÉM
PAMPA NO WALKMAN letra e música: gessinger 1992
todos iguais
todos iguais
mas uns mais iguais que os outros
216
PAMPA NO WALKMAN
letra e música: gessinger 1992
217
A CONQUISTA DO ESPAÇO
letra e música: gessinger 1992
218
A CONQUISTA DO ESPELHO NO INVERNO FICA TARDE + CEDO
letra e música: gessinger 1992 letra e música: gessinger 1992
219
PARABÓLICA
letra: gessinger 1992 | música: licks
ela para
e fica ali parada
olha-se para nada
(paraná)
fica parecida
(paraguaia)
para-raios em dia de sol
só para mim
se a TV estiver fora do ar
quando passarem
os melhores momentos da sua vida
pela janela alguém estará
de olho em você
(paranoia)
eu paro
e fico aqui parado
olho-me para longe
a distância não separabólica
220
POSE (ANOS 90)
letra e música: gessinger 1992
é pura pose
pois é
pós-qualquer coisa
e o pior não é isso
é pura pose
é dose
posteridade
e o pior não é isso
221
TÚNEL DO TEMPO
letra e música: gessinger 1992
te vejo infinita
invejo quem grita
o fim do silêncio:
canção que não acabou há vida na terra
há chances de erro
interna luz em fuga não há nada que possa nos proteger
lanterna sangra e suga
pra ouvir melhor: acontece a qualquer hora
melhor apagar a luz acontece a qualquer um
não há nada de errado com a gente
deve ser o que chamam
Canto Do Cisne deve ser o que chamam
44 minutos do 2º tempo Telhado De Vidro
chuva de granizo
pra frente é que se anda vitrines & vitrais
para a praça, ver a banda passar
se você for, eu vou atire a 1ª pedra quem nunca atirou
se você vier, eu estou no mesmo lugar espere pelo sangue
que o bumerangue despertou
pra frente é que se anda
na rua a banda continua a tocar atire a 2ª pedra, a 3ª, o milhar
sem você eu fico longe na idade das pedras que não criam limo
com você tudo volta ao lugar os Flintstones continuam a rolar
222
PROBLEMAS... SEMPRE EXISTIRAM
letra e música: gessinger 1992
não fui eu
não foi você
nem foi a máquina de escrever
que matou a poesia
o fim de semana
o fim do planeta
a palavra “sarjeta” no fim do poema
problemas... sempre existiram
esteroides anabolizantes
(samplers)
dicionários de rima
o medo do fim no final das contas
problemas... sempre existiram por que você não soa quando toca?
sempre existirão por que você não sua quando ama?
ninguém derrama sangue
a última palavra é a mãe de todo o silêncio quando perde guerras de fliperama
façamos silêncio para ouvir o último suspiro
descanse em paz a mãe de todas as batalhas por que você não sua quando toca?
por que você não soa quando ama?
a última palavra é a mãe de todo o silêncio por que você não soa quando toca?
descanse em paz, dê o último suspiro por que você não sua quando ama?
façamos silêncio para ouvir o último poema
as mentiras da arte são tantas
são plantas artificiais
artifícios que usamos para sermos
(ou parecermos) mais reais
um pedaço do paraíso
uma estação no inferno
uma soma muito maior do que as partes:
as mentiras da arte
o último poema
223
CHUVA DE CONTAINERS
letra e música: gessinger 1992
falta pão
o pão nosso de cada dia
sobra pão
o pão que o diabo amassou
triste vocação
a nossa elite burra
se empanturra de biscoito fino
triste destino
engolir sem mastigar
chuva de containers
entertainers no ar
falta pão
o pão nosso de cada dia
sobra pão
o pão que o diabo amassou
falta circo
no mundo que nos cerca
sobra circo
é só pular a cerca
224
?QUANTO VALE A VIDA?
letra e música: gessinger 1993
225
REALIDADE VIRTUAL
REALIDADE VIRTUAL letra e música: gessinger 1993
226
ÀS VEZES NUNCA
letra e música: gessinger 1993
227
MAPAS DO ACASO
MAPAS DO ACASO letra e música: gessinger 1993
228
SIMPLES DE CORAÇÃO HORA DO MERGULHO
letra e música: gessinger 1995 letra e música: gessinger 1995
volta voando, vinda do alto “se queres paz, te prepara para a guerra”
derrete o chumbo do céu se não queres nada, descansa em paz
antes que eu saia pela tangente “Luz!” pediu o poeta
no giro do carrossel (últimas palavras, lucidez completa)
depois: silêncio
falta uma volta
ponteiros parados esqueça a luz
tudo dança em torno de ti respire o fundo
volta voando, fim da viagem eu sou um déspota esclarecido
bem-vinda à vida real nessa escura e profunda mediocracia
simples de coração
229
LANCE DE DADOS
ILEX PARAGUARIENSIS letra e música: gessinger 1995
230
ILEX PARAGUARIENSIS
letra e música: gessinger 1995
eu acordei
agora eu sei viver no escuro
até que a chama se acenda nunca me deram mole, não
melhor assim
verde... quente... erva não sou a fim de pactuar
ventre... dentro... entranhas sai pra lá
mate amargo noite adentro
estrada estranha se pensam que tenho as mãos vazias e frias
se pensam que as minhas mãos estão presas
surpresa: mãos e coração, livres e quentes
chimarrão e leveza
ilex paraguariensis
ilex paraguariensis
relax
agora, paciência
231
LADO A LADO
letra: gessinger 1995 | música: casarin
me dá a tua mão
vem viver, vem lutar
lado a lado
desarme as armadilhas
não me peça explicação
o filme favorito
Com Francisco, meu sobrinho,
time do coração
gravando a demo de Lado a Lado.
o lugar mais esquisito
Escrevi a letra pensando nele.
onde já fiz uma canção
esqueça o roteiro
não pergunte que horas são
eu não sei
me dá a tua mão
vem lutar, vem viver
ao meu lado
vem aprender
VÍCIOS DE LINGUAGEM a ganhar e a perder
lado a lado
A parte em inglês tem
se tu quiseres saber quem eu sou
origem bem pragmática. Gra-
vem
vamos em Los Angeles, as se tu quiseres saber quem eu sou
meninas que fizeram os vocais
eram americanas. Em portu- me dá a tua mão
guês, soava estranho. vem viver, vem lutar
lado a lado
me dá a tua mão
me protege e terás proteção
minha mão
meu irmão
232
VÍCIOS DE LINGUAGEM
letra e música: gessinger 1995
tudo se resume
a uma briga de torcidas
e a gente ali no meio
no meio das bandeiras
tudo se reduz
a um campo de batalha
e a gente ali no meio
tudo se resume
a disputa entre partidos
lama na imprensa
sangue nas bandeiras
tudo se produz
a verdade passa ao largo na mesma linha de montagem
como se não existisse apogeu e decadência
e a gente ali no meio na mais nobre linhagem
como se não existisse
votos de silêncio
tudo se reduz vícios de linguagem
a uma cruz e uma espada nada traduz
tchê, de que lado tu estás? hey, don’t you know that you are
ninguém pode agradar aos dois lados in the middle of a war (yes, you are)?
hey, it’s time to make a choice tchê, de que lado tu estás?
we all want to hear your voice (it’s true) ninguém pode ficar no meio do tiroteio
faça a sua aposta, tome a sua decisão now it’s time to say whose side you’re on
tudo se presume
se resume
se reduz
233
PORÃO DE FÉ
letra: gessinger 1995 | música: deluqui letra e música: gessinger 1996
transborda, porão!
alivia a pressão!
234
SEM VOCÊ (É FODA!)
letra e música: gessinger 1996 SEM VOCÊ (É FODA!)
sul e norte
terra, fogo, água e ar
sem você tudo fica fora do lugar
235
VIDA REAL IRRADIAÇÃO FÓSSIL
letra e música: gessinger 1996 letra e música: gessinger 1996
irradiação fóssil
fóssil
236
FREUD FLINTSTONE
letra e música: gessinger 1996 FREUD FLINTSTONE
237
A BOLA DA VEZ BANCO
letra e música: gessinger 1996 letra e música: gessinger 1997
238
DESERTO FREEZER
letra e música: gessinger 1997 DESERTO FREEZER
é um navio fantasma
um cemitério de automóveis
é um deserto freezer
zero Kelvin, perfeição
eu tenho medo
do medo que as pessoas têm
o mal nasce do medo
como o ovo e a galinha
nasce do medo
do medo que as pessoas têm
eu tenho medo
do medo que as pessoas têm
o sol nasce pra todos
todo dia de manhã
eu tenho medo da escuridão
239
A MONTANHA 3 MINUTOS
letra e música: gessinger 1997 letra e música: gessinger 1997
nem tão longe que eu não possa ver se você me der 3 minutos
nem tão perto que eu possa tocar vai entender o que eu sinto
nem tão longe que eu não possa crer eu não sou santo
que um dia chego lá mas não minto
nem tão perto que eu possa acreditar não vou mentir
que o dia já chegou se você me der 3 minutos
só acredito
no que pode ser dito em 3 minutos
por isso eu peço aos 4 ventos
3 minutos
240
OUTROS TEMPOS
letra e música: gessinger 1997 OUTROS TEMPOS
241
NUVEM NA REAL
letra e música: gessinger 1997 letra e música: gessinger 1999
242
3x4
letra e música: gessinger 1999 3x4
se eu tivesse a força
que você pensa que eu tenho
eu gravaria no metal da minha pele
o teu desenho
243
EU QUE NÃO AMO VOCÊ
letra e música: gessinger 1999
senti saudade
vontade de voltar
fazer a coisa certa
aqui é o meu lugar
244
CONCRETO E ASFALTO SEGUIR VIAGEM
letra e música: gessinger 1999 letra e música: gessinger 1999
seguir viagem
tirar os pés da terra firme
e seguir viagem
245
PERDÃO É UMA BORRACHA MACIA O OLHO DO FURACÃO
letra e música: gessinger 1999 letra e música: gessinger 1999
estamos no centro
de tudo que gira
na mira do canhão
246
10.000 DESTINOS
letra: gessinger 1999 | música: dorfman 10.000 DESTINOS
alça de mira
lente de aumento
vampiro em frente ao espelho
gritos na torcida
sinos da catedral
uma palavra omitida do hino nacional
tambores
motores
pulso e coração
247
NÚMEROS
NÚMEROS letra e música: gessinger 2000
traço de audiência
tração nas 4 rodas
e eu, o que faço com estes números?
7 vidas
mais de 1.000 destinos
todos foram tão cretinos
quando elas se beijaram
248
NOVOS HORIZONTES SURFANDO KARMAS & DNA
letra e música: gessinger 2000 letra e música: gessinger 2002
249
PRA FICAR LEGAL NEM + 1 DIA
letra: gessinger 2002 | música: galvão letra e música: gessinger 2002
250
ESPORTES RADICAIS
letra e música: gessinger 2002 ESPORTES RADICAIS
não há alternativa
é a única opção
unir o otimismo da vontade
e o pessimismo da razão
251
e-STÓRIA
e-STÓRIA letra: gessinger/carlos maltz 2002
música: gessinger
Eu não falava com Carlos
fazia muito tempo. Nos reen- cara, tú não vai nem acreditar:
contramos na www. A con- continuo mergulhando sem saber nadar
versa resultou nessa letra. cara, ‘cê não vai acreditá:
A música, eu tinha desde o tô plantando manga na margem do Paranoá
primeiro show em 1985.
As parcerias com Maltz não acredito, cara! quer trocar de lugar?
seguiram um mesmo formato: (às vezes fico a fim de mandar tudo pro espaço)
eu já mandava música com calma aí maninho...tô voltando pro pedaço!
letra e estabelecíamos um (se isso não der samba, pelo menos dá um abraço)
diálogo. Em e-STÓRIA, lite-
agora...agora, virando as voltas que essa vida dá
ralmente um diálogo. Em
agora...agora, surfando karmas e DNA
SEGUNDA FEIRA BLUES,
Maltz acrescentou alguns cara, tú não vai nem acreditar:
versos. Em CINZA fez um rap. aqui em Porto Alegre anda tudo ZH
Estas par tes estão em cara, ‘cê não vai acreditá:
vermelho. aqui em Brasília tem gente que gosta de trabalhá
252
Pequeno Dicionário Afetivo:
• O camburão da polícia na
avenida Carlos Gomes se
refere aos vários ataques que
sofríamos. Mais por conta dos
nossos cabelos do que pelo
nosso comportamento.
Adriane e Clara mandam beijos pra vocês • Silva Jardim 433 era o
(coisas que não cabem nos encartes dos CDs) endereço de uma danceteria
talvez no final do ano ou talvez no final do mês onde tocávamos muito no início
dou um pulo em Porto Alegre (Silva Jardim 433) da banda.
253
3a DO PLURAL
3a DO PLURAL letra e música: gessinger 2002
satisfação garantida
obsolescência programada
eles ganham a corrida
antes mesmo da largada
254
SEI NÃO
letra: gessinger 2002 | música: galvão SEI NÃO
255
DATAS E NOMES
DATAS E NOMES letra e música: gessinger 2002
hey, menina
sei que o tempo cicatriza
hey, menina
vamos rir do que nos fez chorar
amanhã
256
ARAME FARPADO DANÇANDO NO CAMPO MINADO
letra e música: gessinger 2002 letra e música: gessinger 2003
257
DOM QUIXOTE FUSÃO A FRIO
letra: gessinger 2003 letra: gessinger 2003
música: galvão música: galvão
258
CAMUFLAGEM OUTONO EM PORTO ALEGRE
letra: gessinger 2003 letra: gessinger 2003
música: galvão música: galvão
259
ROTA DE COLISÃO SEGUNDA FEIRA BLUES
letra: gessinger 2003 letra: gessinger/maltz 2003
música: fonseca música: gessinger
as fases da lua 1.
a crise dos mercados onde estão os caras
o movimento das marés que lutavam dia a dia
sem perder a ternura jamais?
a hora da verdade
a idade da razão onde estão os caras
a diferença que desmaterializavam
do que se pensa e o que se faz moedas de dez mil reais?
260
2.
onde estão os caras
que diziam que a guerra ia acabar?
261
NA VEIA
NA VEIA letra e música: gessinger 2003
262
ATÉ O FIM OUTRAS FREQUÊNCIAS
letra e música: gessinger 2003 letra e música: gessinger 2004
não vim até aqui pra desistir agora seria mais fácil
entendo você se você quiser ir embora fazer como todo mundo faz
não vai ser a primeira vez o caminho mais curto
nas últimas 24 horas produto que rende mais
mas eu não vim até aqui pra desistir agora
seria mais fácil
minhas raízes estão no ar fazer como todo mundo faz
minha casa é qualquer lugar um tiro certeiro
se depender de mim eu vou até o fim modelo que vende mais
263
ARMAS QUÍMICAS E POEMAS
letra e música: gessinger 2004
afinal de contas
o que nos trouxe até aqui?
medo ou coragem?
talvez nenhum dos dois
sopra o vento
um carro passa pela praça
e já foi… já foi
por acaso eu fui à luta
eu quis pagar pra ver
264
NO MEIO DE TUDO, VOCÊ CORAÇÃO BLINDADO
letra e música: gessinger 2006 letra: gessinger 2006
música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.
selva
a gente se acostuma a muito pouco fácil falar
a gente fica achando que é demais fazer previsões depois que aconteceu
quando chega em casa do trabalho quase vivo fácil pintar o quadro geral
da janela de um arranha-céu
selva
a gente se acostuma a muito pouco sem ter que sujar as mãos
a gente fica achando que é o máximo sem ter nada a perder
liberdade pra escolher a cor da embalagem sem o risco de pagar
pelos erros que cometeu
nessa selva
a gente se acostuma a muito pouco fácil achar o caminho a seguir
a gente fica achando que é normal num mapa, com lápis de cor
entrar na fila, comprar ingresso moleza mandar a tropa atacar
pra levar porrada na tela do computador
265
NÃO CONSIGO ODIAR NINGUÉM
Nas músicas que com- letra: gessinger 2006
pus com Bernardo, Gláucio, música: fonseca/ayala/aranha/pedro a.
Aranha e Pedro, eles me man-
davam bases gravadas sobre não quero seduzir
as quais eu escrevia as letras. teu coração turista
Funcionavam assim, também, não quero te vender
as parcerias com Paulinho meu ponto de vista
Galvão, Fernando Deluqui e
com o trio Luciano, Lúcio e eu tive um sonho
Adal. há muito não sonhava
Os estúdios caseiros sim- lembranças do futuro
plificaram o processo. Mas, que a gente imaginava
às vezes, é necessário driblar
nem sempre foi assim
os enfeites de uma demo para
outro mundo é possível
descobrir onde está, na real, a pode até ser o fim
música. mas será que é inevitável?
não vá dizer
que eu estou ficando louco
só porque não consigo odiar ninguém
do goleiro ao centroavante
do juiz ao presidente
eu não consigo odiar ninguém
não vá dizer
que eu estou ficando louco
só porque não consigo odiar ninguém
do goleiro ao centroavante
do juiz ao presidente
eu não consigo odiar ninguém
eu tive um sonho
o mesmo do outro dia
lembranças do futuro
que a gente merecia
266
GUANTÁNAMO QUEBRA-CABEÇA
letra: gessinger 2006 letra: gessinger 2006
música: fonseca/ayala/aranha/pedro a. música:
fonseca/ayala/aranha/pedro a.
quem foi que disse “te quero”?
qual era mesmo a canção? pode ser pra sempre
quem viu a cor do dinheiro? pode não ser mais
qual a melhor tradução? pode ter certeza e voltar atrás
267
FAZ DE CONTA
letra: gessinger/melissa mattos 2006
música: gessinger
era claro
espelho d’água
perfeição que a pedra destruiu
uma onda
mais uma onda
outras ondas e já não tem fim
a pedra afundou
a onda inundou
faz de conta que eu fui mais legal
malas prontas
de hoje em diante
mais distante
talvez menos mal
desencanto na garganta
faz de conta que eu fui mais legal
a pedra afundou
a onda inundou
faz de conta que eu fui mais legal
268
CINZA
letra: gessinger/carlos maltz 2006
música: gessinger
269
PRA QUEM GOSTA DE NÓS
PRA QUEM GOSTA DE NÓS letra e música: gessinger 2006
270
LUZ PLANO B
letra e música: gessinger 2006 letra e música: gessinger 2007
271
POUCA VOGAL
Pequeno Dicionário Reflexivo: letra e música: gessinger 2008
272
O VOO DO BESOURO
letra e música: gessinger 2008 VOO DO BESOURO
O maior empresário do
fala sério, o que (é) que há Brasil andou querendo nos
o que falta enxergar contratar. Não achávamos que
nessa noite de luar tinha a ver com nosso arte-
nesse dia devagar sanato, mas nos reunimos com
fala sério, o que (é) que há ele duas ou três vezes. Ele ia
o que falta enxergar ao Rio, almoçávamos e não
se falava de negócios. Depois
quem não sabe finge saber de deixá-lo no aeroporto, um
quando vê o ouro brilhar outro cara da empresa falava
quando vê o couro comer de números. A proposta era
e o besouro voar
boa, mas não tinha nossa
onda. Restou uma frase que
fala sério, o que (é) que tem
quem tem medo de enfrentar
ouvi: “Sabendo aonde se quer
a lembrança sempre vem chegar, já é difícil. Sem saber é
numa noite sem luar impossível”.
fala sério, o que (é) que foi Por anos tomei isso como
onde a gente foi parar uma grande verdade saída de
um livro de autoajuda empre-
quem não sabe finge saber sarial. Mas sempre ficava um
quando vê o ouro brilhar ruído. Grandes frases devem
quando vê o couro comer soar como um acorde maior, um
e o besouro voar sol no violão, um ré no piano.
Essa soava estranho. Um dia
fala agora onde está me deu um estalo: ela não quer
quem está no seu lugar dizer nada. O caminho a gente
no espelho
faz andando. Nem sempre, qua-
na estrada
se nunca, se sabe a rota.
esperando o inesperado
fala sério, o que (é) que há
Algumas pessoas fingem
o que falta enxergar saber quando veem a força do
ouro ou do chicote. Algumas
quem não sabe finge saber quando veem o improvável voo
quando vê o ouro brilhar do besouro. Se um estudante
quando vê o couro comer de design tivesse projetado um
e o besouro voar besouro, certamente teria sido
reprovado. Nada ali favorece o
voo. Mas, por amor às causas
perdidas, ele voa.
273
TENTENTENDER
TENTENTENDER letra: gessinger 2008
música: gessinger/leindecker
Numa das rotas de volta
a Por to Alegre, os aviões se eu disser que vi rastejar
sobrevoam Gramado. Dá pra a sombra do avião
ver lugares familiares se o céu feito cobra no chão
estiver limpo, se a poltrona for tent’entender minha alegria:
numa janela do lado direito e eu a sombra mostrou
não estiver dormindo. Nesses o que a luz escondia
voos, domingo ou segunda de
manhã, sempre estou caindo se eu quiser ser mais direto
de sono depois de algum show, vou me perder
melhor deixar quieto
algumas horas de asfalto e de
tent’entender
aeroporto.
tent’enxergar
Num dia lindo, fiquei se- o meu olhar
guindo a sombra do avião lá pela janela do avião
embaixo, passando pelas es-
tradas da serra que parecem que amor era esse
serpentes envolvendo os mor- que não saiu do chão?
ros. Escrevi a letra num guar- não saiu do lugar
danapo da TAM. A música pin- só fez rastejar o coração
tou muito rápido. Duca ajudou a
pensar uns acordes no refrão. se eu disser
Voltando de Gramado, que tive na mão a bola do jogo
mas pelo asfalto, escrevi DES- não acredite
CENDO A SERRA. Está no tent’entender a minha ironia
Várias Variáveis, um disco com se eu disser que já sabia
muitas cobras. Na capa e nas
o jogo acabou de repente
letras.
o céu desabou sobre a gente
tent’entender: eu quero abrigo
e não consigo ser mais direto
274
ALÉM DA MÁSCARA
letra e música: gessinger 2008
visão de raio-X
o X dessa questão:
ver além da máscara
275
SEGURA A ONDA AGORA, D.G.
SEGURA A ONDA AGORA, D.G. letra e música: gessinger 2009
Neil Young avisa que a que susto eu levei quando olhei o espelho
ferrugem não descansa e caralho, como estou ficando velho!
afirma ser melhor explodir do ainda bem que tu estás comigo
que ir se apagando aos poucos. cada vez mais bela, cada vez mais velha
Pete Tonwshend deu voz à sua cada vez mais
geração cantando a vontade
de morrer antes de ficar que pena ter que ter só 2.000 anos
velho. Parece que estas duas cara, falta tempo, sobram planos!
canções tocaram na mente já não sei mais nada que eu sabia
de Kurt Cobain nos seus cada vez que gira, o ponteiro gira
cada vez mais
últimos dias. Oscar Wilde fez o
retrato envelhecer no lugar do
segura a onda agora, Dorian Gray
retratado. “better to burn out, than to fade away”
Vaidade, tudo é vaidade? segura a onda, sai dessa agora, Dorian Gray
Estaremos todos de joelhos
no altar de Peter Pan? que horas este sol vai dar um tempo?
que barraco do balacobaco
Nosferatu já encheu o saco
do verão eterno, infinito inverno
cada vez mais
276
Luís Augusto Fischer
Vista a situação daqui do alto, panoramicamente, numa hipotética
mesa de bar, o prezado leitor diria que é qual o ideal de um artista? Como se
pode saber que um artista deu certo?
Sucesso de público? Pode ser. O cara vive do que faz, pinta, escreve,
canta, compõe, desenha, filma, porque tem bastante gente ali, do outro lado,
que paga para receber o produto que o artista concebeu e deu à luz, que fica feliz
quando entra em sintonia com o que ele inventou, que compartilha sentimen-
tos profundos e difíceis de traduzir ao ter contato com a obra dele, que convive
melhor com coisas que já estavam dentro de seu coração e sua alma mas que
nem pareciam estar ali.
Sucesso de crítica? Também pode ser. O artista acertou a mão no
quadro, no romance, na canção, na gravura, no filme, mas acertou num nível
sofisticado e sutil, que chamou a atenção da crítica especializada e a fez delirar,
a fez pirar o cabeção, a fez vibrar pelo encontro com arte tão significativa. Pode
até ser que o público em geral não tenha gostado tanto; mas se aqueles leitores
especiais que são (na melhor hipótese) os críticos prestaram atenção e bateram
palma, é porque o artista chegou lá.
Outro critério?
Tem um outro: é quando, para além de (apesar de, por fora de) fazer
sucesso de público e/ou de crítica, o artista grava, inscreve, engasta uma fra-
se, um par de versos, uma metáfora que seja, no repertório da linguagem das
gentes, na fala de todo mundo.
Óbvio ululante, por exemplo, é um sucesso mundial no Brasil e
tem um criador conhecido, Nelson Rodrigues. Oh, que saudades que eu ten-
ho / da aurora da minha vida, não tem jeito, está na alma da língua portu-
guesa no Brasil, mas saiu da mão de Casimiro de Abreu. Num plano mais
sofisticado, Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da
280
nossa miséria é a frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, criação
genial de Machado de Assis. Se a gente fosse para fora do país, encontraria
muitas frases assim, clássicas, de autoria de Cervantes, de Edgar Allan Poe
(Nunca mais!, Nunca mais!), de Shakespeare (Há mais coisas entre o céu e a
terra do que sonha a nossa vã filosofia).
No universo da canção, então, aí temos uma agradável fartura, no
Brasil. Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor.
Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar.
Estava à toa na vida, o meu amor me chamou pra ver a banda passar cantan-
do coisas de amor. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura
por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um
outro qualquer? Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.
281
lar frase de uma específica canção, era citada para compartilhar todo um co-
mentário, toda uma visão de mundo, toda uma experiência geracional. (Se
eu fosse o autor da frase, nem sei como reagiria. Com vaidade? Com serena
sabedoria? Ligaria pro cara exigindo que ele dissesse meu nome? Como é que
o prezado leitor agiria se fosse o autor da frase?)
Pois é isso: numa canção que nunca escondeu sua condição de música
pop, composta e gravada há impressionantes 22 anos — em 1987 —, se esconde,
ou melhor, se revela uma pérola dessas, capaz de nos expressar melhor do que
discursos inteiros.
282
Fazendo de conta: aqui temos uma das chaves para abrir o cofre da
arte. Ela, qualquer que seja, da pintura à canção, faz de conta e nos convence.
Todo mundo conhece, e se não conhece precisa conhecer, o poema do Fernan-
do Pessoa que se chama Autopsicografia, título que já é um faz de conta — em
vez da psicografia convencional, em que o artista “recebe” a inspiração de
outra fonte, de alguma origem fora de si, o genial poeta português inventa a
autopsicografia, uma atividade segundo a qual o artista “recebe” a inspiração
e o fôlego artístico de fora e (mas) de dentro, como se o artista fosse mais de
um. (Bem, Fernando Pessoa era mesmo mais de um, como se sabe; assinou
centenas de poemas com seu nome de batismo, mas pilhas de outros com
alteregos, que ele chamava de heterônimos, como Álvaro de Campos, Ricardo
Reis, Alberto Caeiro, entre os mais famosos).
Pois diz a Autopsicografia:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
283
do leitor, que ao entrar em contato com a dor fingida do poeta — seja ela de
origem inventada ou real — descobre em si, por banal milagre da arte, uma
dor que até então não existia. A terceira faz, à maneira portuguesa, um pa-
ralelo entre os trilhos de trem e a atividade do coração, que entretém, dribla,
desorganiza a razão).
Uma das coisas ao mesmo tempo mais intrigantes e mais charmosas
— são a mesma coisa? — da arte de Humberto Gessinger tem a ver exatamente
com a natureza de seu fingimento. Em forma de silogismo inicial, ficaria assim:
1. Todo artista mente (inventa, faz de conta). 2. Humberto Gessinger é artista.
3. Logo, ele mente (inventa, faz de conta).
Mas é pouco para o caso dele. Sim, todo artista mente; sim, ele é um
artista; e sim, ele mente, inventa, faz de conta. Mas há mais, bem mais que
isso em sua obra: ocorre que, há pelo menos 250 anos, desde o Romantismo, a
arte ocidental sabe que ela vive no mercado, do mercado, para o mercado, por
causa do mercado, tudo isso ou alguma combinação disso. Não existe, ou, vá
lá, praticamente não existe artista que possa de cara limpa dizer que não de-
pende do mercado; e o mercado, essa diabólica e magnífica invenção humana
que nos torna capazes de conviver ao mesmo tempo num mesmo espaço, tem
suas exigências.
O mercado, se depender dele apenas, quer é coisas vendáveis, que
não façam o comprador sair muito do seu lugar. Aliás, o mercado quer mesmo
é que o sujeito deixe de ser propriamente um sujeito, e aja sem pensar muito.
O que importa é que compre, que faça girar a roda do consumo puro e sim-
ples. Agora me diz: como se faz arte nesse cenário, que nos últimos 50 anos
— a idade do rock, mais ou menos — acelerou ainda mais essas exigências?
Faz aí que eu quero ver.
284
tros valorosos artistas de nosso tempo, é um que pelo menos levanta a mão
pra tomar a palavra dizer que não é bem assim, que nem sempre precisa ser
assim, ou ainda, no limite, que a arte, ok, vive mergulhada no mercado, mas
isso não anula outras dimensões possíveis. 5. Mas também essa resistência é
inútil, porque a força do mercado e a lógica da mercadoria são superiores às
coisas que resistem a elas...
O silogismo foi pro espaço, não tem como seguir com ele, porque aqui
a gente tem a sensação de ter entrado num labirinto, ou pior ainda, de estar
entre dois espelhos, um a refletir a imagem do outro infinitamente, sem parar,
gerando aquela sensação de abismo, e abismo perverso, desagradável, que não
permite nem o gozo da vertigem.
E de mais a mais os 50 anos mencionados acima são também mais ou
menos os anos do pop, e aí já descemos mais um degrau nessa maluquice, en-
tramos mais ainda no jogo de espelhos e de fundos falsos. Porque o pop nasceu
de dentro do mercado, ao contrário de outros modos de praticar a arte, nascidos
nos salões aristocráticos ou nos salões de igreja (como grande parte da música
erudita), ou brotados no meio da rua e sem qualquer pedigree (como, falando
nisso, a canção para comentar a vida diária e falar mal dos vizinhos, nas feiras
medievais). Pop não tem jeito: ou faz sucesso, ou não existe. E fazer sucesso
combina com fazer de conta? E pode conviver com aquela onda de fingir uma
dor verdadeira, também? (De repente, este comentário aqui se contaminou do
paradoxo, espelho contra outro).
285
professor da turma dele: exatamente no meu primeiro ano de profissional ele
estava no último do colégio. Duas, três conversas, nada mais.
Aí eu fiquei de longe observando. Tínhamos amigos comuns. E ele
em seguida se apresentou no cenário artístico da cidade e do país como uma
coisa nova, uma daquelas informações artísticas que azucrinam porque di-
vergem, saem do óbvio, ironizam. Parecia com muitos outros, mas já mar-
cava diferença. E tudo que se falava dos Engenheiros sugeria que era melhor
considerar duas vezes, pensar enviesado, sentir mediadamente. A começar
pelo nome, claro.
Na época as bandas se batizavam com nomes regressivos ou
retrôs pretendendo um certo chique — Os Titãs do Iê-Iê-Iê (depois caiu a
segunda parte desse nome), Barão Vermelho —, ou faziam trocadilho puro
e simples — Ultraje a Rigor, Capital Inicial —, ou ostentavam uma atitude
mais claramente identificada com o aspecto transgressivo do rock, adotan-
do nomes que eram uma espécie de ameaça — Camisa de Vênus (expressão
que não se usava na frente dos mais velhos, acredite), TNT —, ou brinca-
vam com certo nonsense, namorando ao mesmo tempo as denonimações
retrô — Paralamas do Sucesso.
E o nome dos Engenheiros do Hawaii era o que, nesse bolo? Era
nonsense também, mas parecia algo que girava em falso, porque as imagens
sugeridas no nome não se ancoravam em lugar nenhum. De que se tratava?
Logo o próprio Humberto disse, em entrevista, que era uma homenagem a duas
grandes comunidades porto-alegrenses, os engenheiros e os havaianos.
Bela piada, excelente ironia. Porto Alegre fica a cem quilômetros
do mar mais próximo, mas ali as ondas são fracas, baixas, insuficientes para
a prática do famoso esporte havaiano, o surfe. E mesmo esse dado de indes-
mentível realidade não impediu a explosão de havaianos na cidade. Fenômeno
daquele momento, que o nome inventado ajudou a fixar.
Quanto aos engenheiros, pode ser também piada pura, ironia que flu-
tua no espaço infinito sem oferecer ponto de amarração, mas também pode ser
colada à rixa entre estudantes de Arquitetura, como era o caso do HG, e estu-
dantes de Engenharia, que além de numerosos são também típicos, em grande
286
medida. (Tive oportunidade de conviver com parte dessa fauna, quando ingres-
sei na universidade para cursar Geologia, que abandonei no terceiro ano. Mas
não por causa dos engenheiros).
Pode também não ser nada disso, e ainda assim o aspecto brincalhão
do par de nomes fica boiando na percepção, não fica? Fica, como um objeto não
muito claramente identificado que no entanto não sai de perto, condição que é
tudo que a arte quer e busca.
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tradição da canção brasileira, quer dizer, carioca; Renato Russo, com todo
o figurino do pop-rock melancólico; HG, pendurado na ironia, mas capaz de
grandes momentos líricos (ou vice-versa).
Naquele tempo, o que havia no campo do rock era, ultimamente, a
Blitz fazendo canção análoga ao teatro besteirol, leve, carioca, mais os Mu-
tantes lá no fundo, inventando mesmo depois de separados, e o enigma Raul
Seixas, fora de padrão como sempre, rockeiro portanto. Criou-se o festival com
nome de trocadilho, Rock in Rio; as gravadoras viram que cabia; toda uma nova
massa de ouvintes queria dançar e cantar, agora já sem o choro setentista pelo
advento da ditadura, agora de olhos postos num aqui e agora vivo.
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HG funciona muito pelo trocadilho — não passa por aqui, não passa
de ilusão —, talvez porque sua arte se oxigene exatamente na linguagem comum,
essa matéria-prima rebaixada. Pode bem ser que os jogos de sentido pescados
no cotidiano da fala dependam dessa origem para brilhar: ali, na linguagem
banal, que se usa sem pensar, o artista vai colher o alimento de sua arte, que
porém vai reprocessar o que recolheu mediante aproximações e afastamentos,
analogias e contrastes. O resultado é que a gente ouve o que ele faz e reconhece
desconhecendo, desconhece reconhecendo.
Uma forma de dizer isso, de explicar esse processo, é meio complicada,
mas me parece exata: HG opera por trocadilhos, que acrescentam dimensões no
discurso ao aproximar conteúdos inusitados, e por saltos semânticos, que aproxi-
mam dimensões distantes. Sua arte caminha mediante reiterações de som e de for-
ma — por pura falta de opção, púrpura é cor do coração —, que são recombinações
de sentido e não deixam de ter sempre alguma coisa da estrutura do sonho.
Sabe no sonho, na estrutura narrativa do sonho, quando acontece
de um evento, uma pessoa, uma frase, alguma coisa repetir-se? Sempre que
aparece pela segunda vez, a gente se dá conta de que houve algum movimento,
algum deslocamento, de forma que entre as palavras e as coisas referidas por
elas parece ter havido uma mudança inesperada, geradora do estranho, que dá
prazer, mas pode ser triste, como o tapete que saiu do lugar já manchado sobre
o piso, mas a gente só se dá conta depois, quando passou o momento de ajeitar.
É uma estrutura que tem muito a ver com o chamado loop, ou looping, um re-
torno, seja ele calculado ou inesperado, uma volta ao ponto que se acreditava
deixado pra trás, um frio na barriga pelo reencontro com o rastro, por aí.
E onde para isso tudo? Para na percepção do ouvinte da obra dos En-
genheiros, na obra desse engenheiro andante chamado Humberto Gessinger.
A percepção é um território entre a alma e a inteligência, que a arte visita sem-
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pre que consegue furar a barreira da indiferença. (HG fura essa barreira com
o trocadilho, a reiteração que é deslocamento de sentido, a recombinação que
proporciona um salto de significado. Mas eu já falei isso). Ouça o que eu digo:
não ouça ninguém.
Fico tentado, por temperamento, a fazer uma síntese: qual é a dele?
No fim das contas, tudo considerado, o que resta de sua obra no ouvinte? Eu
não sei se tem como dizer algo decente aqui, mas desconfio do seguinte: com
suas canções ao mesmo tempo simples mas comunicativas, limpas mas com res-
saltos, com seu pop que não se conforma com a mera condição de pop (e sabe
que o pop não poupa ninguém, mais uma verdade eterna desta semana), ele faz
reviver esteticamente algo de muito grave e profundo da experiência deste tempo
— este aqui, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro, o tempo da instantaneidade
da comunicação, mas que guarda muito ainda do nosso velho jeitão hippie de ser
—: como suas canções, também nós vivemos entalados entre o cotidiano, a bana-
lidade e a exaltação, a excepcionalidade. Entre a indiferença, ou a falta de sentido,
e a paranoia, ou o excesso dele. Entre a afasia, a incapacidade de dizer qualquer
coisa, e a falastrice, a urgência de falar sem parar, mesmo sem fazer sentido.
Fazer sentido, aí está: para mim e, muito mais importante, para seus
entranhados fãs, Humberto Gessinger ajuda a fazer sentido, a compor signifi-
cado na vida, presos que estamos nesses paradoxos, como o de estarmos cor-
rendo muito, talvez para o lado errado.
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Agradeço e dedico este livro a todos
que participaram desta história,
tocando, gravando, fotografando,
produzindo, desenhando, ouvindo
o que eu digo, não ouvindo ninguém,
surfando karmas e dançando em
campos minados. Valeu!
Índice de Músicas pág.
Warner Chappel
Além dos OutDoors; Alívio Imediato; Ando Só; Anoiteceu Em Porto Alegre; Às Vezes
Nunca; Beijos Pra Torcida; Chuva de Containers; Cidade Em Chamas; A Conquista
do Espaço; A Conquista do Espelho; Crônica; Descendo a Serra; ?Desde Quando?;
O Exército de Um Homem Só; Fé Nenhuma; Filmes de Guerra, Canções de Amor;
Guardas da Fronteira; Infinita Highway; Longe Demais das Capitais; Mapas do
Acaso; Muros e Grades; Não é Sempre; Nau à Deriva; Ninguém = Ninguém; A Noite
Inteira; Nunca é Sempre; Nunca Se Sabe; Olhos Iguais Aos Seus; Ouça O Que Eu
Digo: Não Ouça Ninguém; Pampa No Walkman; O Papa é Pop; Parabólica; Perfeita
Simetria; Piano Bar; Pose (Anos 90); Pra Entender; Pra Ser Sincero; Problemas...
Sempre Existiram; ?Quanto Vale a Vida?; Quartos de Hotel; Quem Tem Pressa Não
Se Interessa; Realidade Virtual; Refrão de Bolero; A Revolta dos Dândis; Sampa
No Walkman; Segurança; Somos Quem Podemos Ser; O Sonho é Popular; Terra
de Gigantes; Toda Forma de Poder; Túnel do Tempo; A Verdade A Ver Navios; A
Violência Travestida Faz Seu Trottoir e Vozes.
FOTOGRAFIAS
Arquivo Pessoal Humberto Gessinger | Páginas 8, 9, 10, 12, 18, 19, 20,
25, 26, 28, 32/33, 39B, 49, 69, 74/75, 87, 97, 139, 145, 148A, 153, 157,
159, 230, 250, 266 e 268
Dario Zalis | Páginas 50/51, 58/59, 63, 64/65, 66, 72/73, 80/81, 82,
88/89, 94/95 e 96
Melissa Mattos | Páginas 6, 100, 101, 112/113, 143, 148B, 148E, 150/151,
152, 160/161, 162, 163, 166, 218, 276, 290/291, 297 e 300/301
ILUSTRAÇÕES
Todas as ilustrações são de autoria de Andrews & Bola, exceto:
• Página 127, de Humberto Gessinger
• Página 253, de Luis Trimano (para a capa de Surfando Karmas & DNA)
• Página 235 de Fredy Varela
JORNAIS E REVISTAS
Reprodução | Páginas 71 e 164/165
Para saber mais sobre o nosso catálogo, acesse:
www.belasletras.com.br
1ª edição / 2ª reimpressão / 2012
Impresso na Gráfica Pallotti em fevereiro de 2012.