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Assim, quando o eu-lírico de Cristiane Sobral esclarece que não vai mais lavar
os pratos por ter conhecido os livros e descreve atividade por atividade, além de
mencionar a abolição, o que se faz emerge como um ato de resistência e se transfigura
numa contribuição significativa para literatura contemporânea do país. Com esse
poema, Sobral inseriu na literatura uma temática que permeia discussões e estudos
contemporâneos relevantes referentes à realidade das mulheres no Brasil de hoje.
Ainda nessa perspectiva, pode-se analisar o doloroso conto “Maria”, presente
no livro “Olhos D’água”, de Conceição Evaristo (2014). No conto, a personagem Maria
pega o ônibus feliz, ao voltar para casa com alguma gorjeta e ao levar, para os filhos,
algumas frutas e um osso, que seria jogado fora pela“patroa”. No ônibus, ela encontra
o pai de seus filhos. Por meio do diálogo, o pai dos filhos de Maria aparenta ser uma
figura distante há algum tempo. Na sequência, ele assalta os passageiros e abandona o
ônibus. Maria fica tem seu diálogo com o assaltante denunciado pelos passageiros. Em
seguida, a mulher é xingada e linchada até a morte.
Esse conto expõe uma brutalidade difícil de ser lida, pois embora a violência
seja investida contra a personagem Maria, a quem o leitor conhece a pouco tempo,
sabe-se que o nome Maria – assim como o nome João – transforma as personagens
em figuras representativas de certos grupos da sociedade. O leitor conhece há pouco a
Maria do conto, mas, provavelmente, conhece há tempos muitas Marias: mulheres
negras, de pouca condição financeira, que são mães solteiras e trabalham duro para
manter o equilíbrio no lar para os filhos. O conto é brutal por expor a alta
vulnerabilidade das Marias, que é real em todos os níveis de sua existência.
Lélia Gonzalez (2019) expõe o mito da democracia racial ao explicar, com o
exemplo do carnaval, como todas as atenções recaem sobre a figura das chamadas
mulatas, elevando as mulheres negras para a condição de soberanas, elogiando-lhes os
traços “finos” e brancos. Contudo, essas mesmas mulheres em outros momentos do
ano, ou outras mulheres negras, que não obedecem a esse esteriótipo branco, são
tomadas pela sociedade na condição semelhante a da “mucama”. Isto é, cria-se a falsa
sensação da igualdade étnica, enquanto, na realidade, as mulheres negras, para
sobreviver, têm precisado ainda carregar as responsabilidades cotidianas da família
dos outros e dela própria – e sempre com a violência eminente, prestes a receber um
golpe sobre sua cor.
Ressalta-se que essa relação vai para além do mercado de trabalho. Lélia
também expõe que, nos serviços prestados pela mucama, os senhores brancos
enquadravam o estupro ou a exploração sexual, já que a figura da mulher branca
portuguesa e casta era perpetuada pela Igreja. Aí se mostram claramente no que se
baseiam uma das diferenças fundamentais entre as demandas de mulheres brancas e
negras dentro do feminismo. Enquanto as primeiras lutam pela libertação sexual, as
segundas lutam por uma sexualidade humanizada, já que são constantemente ligadas
ao sexo, mas nunca à reprodução e à família. As Marias não são mães solteiras por
acaso.
Por fim, cabe mencionar que as duas escritoras produzem literatura sobre
temáticas diversas. Buscou-se, porém, demonstrar, nesta análise, que suas
contribuições ultrapassam a produção de literária em si, e se inscrevem num quadro
importantíssimo na história da literatura brasileira, por exporem verdades atuais as
quais boa parte da sociedade não quer enxergar. Dessa forma, como disse Lélia
Gonzalez, para falar desses dedos que se colocam nas feridas (2014): “[...] o rei está
pelado” (GONZALEZ, [2019]).
REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2014.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Ed. Bazar do Tempo, 2019. E-book.
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 3. ed. revista e ampliada. Juiz de
fora: Ed. Garcia, 2016.