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Questões da literatura contemporânea: trabalho final

Maytê Cristine do Nascimento Moreira

Ao falarmos da literatura produzida no Brasil, a definição “literatura brasileira”


é sempre importante, pois a nomenclatura remete à literatura criada com o intuito de
construir uma identidade nacional, que, por sua vez, foi baseada na construção de uma
unidade que excluiu as diferenças culturais e étnicas existentes no país. As mulheres não
foram consideradas sujeitos históricos na formação da nação, e, menos ainda, a
população trazida do continente africano para a mão de obra escrava .
Hoje, mesmo desproporcionalmente, as escritoras têm ocupado espaço num
território que vinha sendo sempre reservado aos escritores. No entanto, mesmo dentro
da literatura brasileira feminina, é necessário que se rompa com a lógica de
representações unificadoras que esteve presente na gênese da literatura brasileira, e que
se revelem as pluralidades que existem entre as mulheres do país. Nesse sentido,
apresentam-se algumas reflexões sobre a literatura produzida por duas escritoras negras.
Cabe mencionar, sobre as escritoras, que Cristiane Sobral é graduada em Interpretação
Teatral pela Universidade de Brasília, Mestre em Artes com pesquisa sobre as estéticas
nos teatros negros brasileiros, além de membro da Academia de Letras do Brasil.
Conceição Evaristo, por sua vez, é mestra em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e
doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Conceição já
foi candidata a uma cadeira na Academia de Letras, mas não foi eleita, o que causou
polêmica entre seus leitores.
É difícil que tal discussão não seja iniciada pelo poema emblemático “Não vou
mais lavar os pratos”, de livro homônimo (2016), de Cristiane Sobral. “Não vou mais
lavar os pratos/ Não vou limpar a poeira dos móveis/ Sinto muito/ Comecei a ler”
(SOBRAL, 2016, p. 18), ela inicia. A linguagem é simples e clara, e a simplicidade –
além de lhe cair muito bem – lhe é necessária, pois a alguns poemas não cabe a
obscuridade de sentido, como é este o caso: por que a escritora, a mulher negra inscrita
nesse eu-lírico, iria querer dificultar o acesso ao sentido das próprias palavras, se já são
escassos os ouvidos interessados em compreendê-las?
Sobre esse sentido, no restante do poema, há uma clareza de identidade étnica,
posição social e profissão exercida pela mulher: negra e empregada doméstica. É de
conhecimento geral que a imagem da mulher negra, nas representações artísticas, é
ligada a esse tipo de trabalho. É necessário observar que essas representações não são
(ou nem sempre são) resultado do racismo autoral, mas do racismo estrutural, já que
parte massiva das mulheres negras desempenham as mesmas atividades que mulheres
negras desempenhavam antes da abolição.
Essa constatação é incômoda, mas foi feita por Beatriz Nascimento (2019), ao
observar que na história, por razões econômicas, as mulheres brancas precisaram ir ao
marcado de traballho, ocupando pequenos cargos burocráticos – sempre inferiores aos
dos homens – aos quais se encaixavam conforme sua educação. As mulheres negras, por
outro lado, ficaram sem acesso a essa opção por dois motivos:
[...] primeiro, porque a mulher negra ainda não teve acesso à educação
suficiente, a fim de qualificar-se para estes tipos de empregos burocráticos.
Segundo, porque esses empregos implicam relações públicas com relação
com o públicom como o comércio de mercadorias. Neste contexto, o critério
racial se faz muito mais seletivo, mantendo a mulher negra nos empregos
tradicionais ou, então, como operárias industriais (NASCIMENTO, [2019]).

Assim, quando o eu-lírico de Cristiane Sobral esclarece que não vai mais lavar
os pratos por ter conhecido os livros e descreve atividade por atividade, além de
mencionar a abolição, o que se faz emerge como um ato de resistência e se transfigura
numa contribuição significativa para literatura contemporânea do país. Com esse
poema, Sobral inseriu na literatura uma temática que permeia discussões e estudos
contemporâneos relevantes referentes à realidade das mulheres no Brasil de hoje.
Ainda nessa perspectiva, pode-se analisar o doloroso conto “Maria”, presente
no livro “Olhos D’água”, de Conceição Evaristo (2014). No conto, a personagem Maria
pega o ônibus feliz, ao voltar para casa com alguma gorjeta e ao levar, para os filhos,
algumas frutas e um osso, que seria jogado fora pela“patroa”. No ônibus, ela encontra
o pai de seus filhos. Por meio do diálogo, o pai dos filhos de Maria aparenta ser uma
figura distante há algum tempo. Na sequência, ele assalta os passageiros e abandona o
ônibus. Maria fica tem seu diálogo com o assaltante denunciado pelos passageiros. Em
seguida, a mulher é xingada e linchada até a morte.
Esse conto expõe uma brutalidade difícil de ser lida, pois embora a violência
seja investida contra a personagem Maria, a quem o leitor conhece a pouco tempo,
sabe-se que o nome Maria – assim como o nome João – transforma as personagens
em figuras representativas de certos grupos da sociedade. O leitor conhece há pouco a
Maria do conto, mas, provavelmente, conhece há tempos muitas Marias: mulheres
negras, de pouca condição financeira, que são mães solteiras e trabalham duro para
manter o equilíbrio no lar para os filhos. O conto é brutal por expor a alta
vulnerabilidade das Marias, que é real em todos os níveis de sua existência.
Lélia Gonzalez (2019) expõe o mito da democracia racial ao explicar, com o
exemplo do carnaval, como todas as atenções recaem sobre a figura das chamadas
mulatas, elevando as mulheres negras para a condição de soberanas, elogiando-lhes os
traços “finos” e brancos. Contudo, essas mesmas mulheres em outros momentos do
ano, ou outras mulheres negras, que não obedecem a esse esteriótipo branco, são
tomadas pela sociedade na condição semelhante a da “mucama”. Isto é, cria-se a falsa
sensação da igualdade étnica, enquanto, na realidade, as mulheres negras, para
sobreviver, têm precisado ainda carregar as responsabilidades cotidianas da família
dos outros e dela própria – e sempre com a violência eminente, prestes a receber um
golpe sobre sua cor.
Ressalta-se que essa relação vai para além do mercado de trabalho. Lélia
também expõe que, nos serviços prestados pela mucama, os senhores brancos
enquadravam o estupro ou a exploração sexual, já que a figura da mulher branca
portuguesa e casta era perpetuada pela Igreja. Aí se mostram claramente no que se
baseiam uma das diferenças fundamentais entre as demandas de mulheres brancas e
negras dentro do feminismo. Enquanto as primeiras lutam pela libertação sexual, as
segundas lutam por uma sexualidade humanizada, já que são constantemente ligadas
ao sexo, mas nunca à reprodução e à família. As Marias não são mães solteiras por
acaso.
Por fim, cabe mencionar que as duas escritoras produzem literatura sobre
temáticas diversas. Buscou-se, porém, demonstrar, nesta análise, que suas
contribuições ultrapassam a produção de literária em si, e se inscrevem num quadro
importantíssimo na história da literatura brasileira, por exporem verdades atuais as
quais boa parte da sociedade não quer enxergar. Dessa forma, como disse Lélia
Gonzalez, para falar desses dedos que se colocam nas feridas (2014): “[...] o rei está
pelado” (GONZALEZ, [2019]).

REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição. Olhos D’água. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2014.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, Heloísa
Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Ed. Bazar do Tempo, 2019. E-book.

NASCIMENTO, Beatriz. A mulher negra no mercado de trabalho. In: HOLLANDA, Heloísa


Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de
Janeiro: Ed. Bazar do Tempo, 2019. E-book.

SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. 3. ed. revista e ampliada. Juiz de
fora: Ed. Garcia, 2016.

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