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parte 1
Ruy Fausto
Nota editorial:
Era conhecida a meticulosidade com que Ruy trabalhava seus textos.
À exaustão, procurava aparar cada detalhe, de forma e conteúdo. Ainda que
não estivesse pronto, o texto que ora apresentamos já estava em estágio muito
avançado e havia sido planejado pelo próprio Ruy para publicação na 2ª ou
3ª série do primeiro número da Rosa. Por conta disso, decidimos — com a
autorização e concordância de sua família — editá-lo para publicação.
O texto começou a ser pensado em meados de 2019. Depois de uma longa
pesquisa, Ruy redigiu a primeira versão em dezembro do ano passado (há
uma indicação precisa a respeito do dia 22 de dezembro). No entanto, pelas
notas ao final e por nossas conversas, sabemos que ele trabalhou nesse texto
até o final de abril de 2020.
Partindo dessa última versão, revisamos o texto, checamos as referências,
conferimos citações e explicitamos as fontes quando estavam esboçadas ou
não tinham sido apontadas. Também verificamos as traduções, fazendo as que
se encontravam apenas indicadas. É importante frisar: o texto encontra-se
quase idêntico ao que encontramos. Não há, com nossa edição, nenhum tipo
de mudança substancial, que altere suas teses, seu formato ou mesmo seu
estilo.
— Arthur Hussne Bernardo
Isabella C. Reiche.
A emergência ou florescimento, no plano mundial, de governos e movimentos
de extrema-direita modificou radicalmente a situação política, e ao mesmo
tempo, no registro mais teórico, deu origem a uma ampla discussão sobre o
caráter desses movimentos, suas perspectivas, e a atitude que se impõe à
esquerda e aos democratas em geral com vistas à derrota deles ou pelo menos à
sua neutralização. Se as raízes desses movimentos, em mais de um domínio, não
são propriamente novas, o seu progresso fulgurante nos últimos anos
representou, senão um raio em céu azul, pelo menos um raio num céu um pouco
nublado, mas sem anunciar tempestades. Hoje estamos em pleno ciclone.
O ritual de enumerar as figuras que dominam esse novo quadro se impõe cada
vez. E nunca estamos certos de ter fornecido a lista completa, porque ela vai se
alongando a cada dia. A enumeração parece sempre imperfeita, por causa das
diferenças que existem entre os diferentes personagens. Contudo, eles estão
ligados, pelo menos por algum traço, mesmo se este varia conforme a figura
considerada. Desde já observemos a variedade desses representantes da atual
extrema-direita: políticos profissionais, homens de negócio que se engajaram
numa carreira política, militares, ex-policiais. Essas diferenças têm algum peso
nas características da política posta em prática por cada um deles, mas a relação
é complexa.
Sem dúvida, fazem parte do nosso objeto os governos de Trump, Duterte,
Bolsonaro, Orbán, Kaczynsky, Erdogan e Modi, além de movimentos e partidos
como os de Salvini, na Itália, e de Le Pen, na França. Mas a lista não está
completa. Há boas razões para incluir Putin no grupo. E teríamos que
acrescentar a figura insólita do ideólogo norte-americano Steve Bannon, que
aparece como uma espécie de líder internacional da nova extrema-direita.
Como escreveu uma cientista política, em livro recente, o nosso primeiro (ou
último?) problema é saber como nomear a tendência política que esses
movimentos e governos encarnam. “Temos dificuldade até mesmo com a
denominação — trata-se de autoritarismo, de fascismo, de populismo, de
democracia iliberal, de liberalismo não-democrático, de plutocracia de direita?
Ou de outra coisa?”1 Há outras dificuldades. É difícil acompanhar o processo
político desses diferentes países. Os acontecimentos se sucedem muito
rapidamente, e sem o conhecimento da língua do país (o que acontece
necessariamente para todos os analistas, já que o leque linguístico é variado
demais) corremos sempre o risco de fazer considerações mais ou menos
apriorísticas. Cada um de nós pode conhecer bem a situação do seu país, e
razoavelmente as dos países de língua “acessível”. Quanto aos demais, temos de
confiar em fontes indiretas. De qualquer modo, a literatura sobre o problema vai
se avolumando, com livros e artigos de natureza mais propriamente teórica ou
mais empírica. Deve-se dizer que ela é, em geral, de boa qualidade. É impossível
discutir hoje o problema sem o conhecimento, pelo menos parcial, dessa
bibliografia. A acrescentar o estudo de algumas grandes obras sobre os
autoritarismos dos anos 1930–40 do século XX, mais alguns clássicos das
ciências sociais, em sentido geral.
Uma coisa fica evidente: com a discussão sobre a ofensiva atual de certa
extrema-direita, abre-se uma ampla teorização em torno do sentido do conjunto
da história contemporânea (senão moderna), do papel das políticas da direita e
do destino da esquerda. Nesse sentido, essa ofensiva é um objeto “bom de se
pensar”, como disse um clássico, a outro propósito. Só que, evidentemente, ela
não é boa para se viver… Pois, bem entendido, se a análise do curso atual da
política mundial abre um campo teórico de discussão, ela também, e por isso
mesmo, lança um desafio prático às esquerdas, e aos democratas em geral.
Apesar de tudo, e para além do sentido que lhe deram aqueles (dois russos) que
utilizaram esse mote como título para as suas obras (e não obstante as reservas
de Adorno), a pergunta “que fazer?” — claro, se respondida sem imediatismo,
nem demagogia — está longe de ser uma questão abstrata.
Elementos do populismo
Parece não haver conceito mais problemático, e sobre cujo conteúdo se trave
mais discussão, do que o conceito de “populismo”
Parece não haver conceito mais problemático, e sobre cujo conteúdo se trave
mais discussão, do que o conceito de “populismo”. Vários autores, entre os quais
um a que me referi (Ugo Palheta), propõem simplesmente que se abandone o
termo, que traria mais inconvenientes do que vantagens. Não é a minha opinião,
embora com isso não negue as dificuldades que oferece o manejo do conceito (o
fato de que se supõe, em geral, a existência de um populismo de direita e um de
esquerda já mostra a sua complexidade). Há nos populismos (o plural é melhor)
mais de um elemento, porém, em linhas gerais, eles se caracterizam pela recusa
de mediações, por exemplo, as do legislativo, do judiciário, entre o poder
(suposto “popular” — do partido, do líder) e o “povo”, definido de modo
impreciso e idealizado. E pela exigência positiva, que vem desse diktat negativo,
de um contato direto do poder popular com o povo. Porém, no quadro dessa
análise, eu gostaria de me concentrar em dois aspectos, que coloco sob a rubrica
do populismo. Há certa afinidade entre esses dois elementos, mas eles não se
confundem. Um deles é, aliás, muito mais “profundo” do que o outro. Mas o
outro, que parece se situar num plano mais superficial, é também essencial.
Me refiro, por um lado, ao estilo de linguagem e de atitude que certo populismo
inaugura: a do homem político de oposição e depois governante que emprega
uma linguagem de uma extrema grosseria, a mesma coisa podendo ser dita das
atitudes que toma antes e depois de se instalar no poder (pense-se
principalmente no caso Trump, mas ele não está isolado nisso, e antes dele teve-
se o exemplo pioneiro de Berlusconi). São os palavrões, as bravatas sexuais, a
pornografia escrachada e outras coisas que tais. Elas instauram uma ruptura do
que se chama às vezes de “liturgia”, para o caso do governante, de “liturgia do
poder”. Há aí uma ruptura importante, que, diga-se desde logo, é estranha,
completamente estranha até onde sei, à tradição do neoliberalismo.
O segundo aspecto, de ordem mais profunda, é a ruptura com certas
exigências fundamentais do discurso — exigências que em princípio valem
também para o discurso político — no que se refere à verdade. Esse traço, que
coloco também sob a rubrica do populismo, é, na realidade, bastante geral nos
extremismos de direita contemporâneos. Entenda-se: é claro que todos os
políticos mentem, da direita como da esquerda (suponho que, em geral, a direita
mente mais do que a esquerda, isso se pusermos entre parênteses as
degenerescências totalitárias de uma e de outra). Porém, a mentira que aflora
no discurso da extrema-direita contemporânea é de outra ordem. É a mentira
hiperbólica. Não se trata de afirmações que, de algum modo, fazem violência à
verdade. Trata-se da corrupção pura e simples da verdade. Esse elemento
representa uma revolução, e voltarei a ele mais adiante. Pode-se encontrar uma
teorização desse problema, principalmente, nos textos de Wendy Brown,
quando ela se ocupa do niilismo.22
Economia
A política econômica da nova extrema-direita não é sempre muito simples de
interpretar.
A política econômica da nova extrema-direita não é sempre muito simples de
interpretar. Claro que o neoliberalismo está presente, ver por exemplo a
orientação do ministro brasileiro da economia (um outro problema é saber se
Bolsonaro está sempre contente com isso): privatizações, austeridade, desmonte
da legislação social etc. Elementos neoliberais também podem ser encontrados
na política dos governos da Europa Oriental e nas práticas de Trump. Porém, há
certos elementos que destoam da vulgata neoliberal. Entre eles, creio que há
dois mais evidentes: o protecionismo econômico (que vem ligado ao
nacionalismo) e o fenômeno do capitalismo de compadres (ou crony
capitalism), o da constituição de uma espécie de oligarquia capitalista
estreitamente ligada ao poder. O protecionismo é assumido por Trump, Orbán e
Modi. Le Pen também o defende. O fenômeno do crony capitalism é muito
visível na Europa Oriental, como no caso exemplar da Hungria. Orban
nacionaliza ou privatiza não conforme alguma filosofia mais alta, mas em
função dos interesses da sua família, família biológica, primeiro, mas também
família política. A tal ponto que na oposição húngara se construiu o conceito
de Estado Mafioso (Mafia State) para dar conta do que lhes pareceu ser um tipo
de Estado que não se encaixa em nenhum dos modelos da tradição 31.
O protecionismo econômico é estranho à tradição neoliberal, que esposa a tese
contrária, a da liberdade de movimento do capital. O capitalismo de compadres,
pode-se dizer, é um dos alvos importantes na crítica dos clássicos do
neoliberalismo. Eles pretendem defender o mercado mundial, não o interesse
deste ou daquele. E as vantagens que tais ou tais personagens podem obter pela
proximidade em que se situam em relação ao poder é tudo aquilo que existe de
mais condenável no interior da política e da ética neoliberal. Talvez se pudesse
acrescentar ainda certo populismo de estilo social, como o que à sua maneira
pratica Orban, ou o polonês Kaczynski. Como se sabe, os neoliberais (Hayek,
pelo menos) não são inteiramente infensos nem a seguros de saúde, nem ao
auxílio às populações mais desmunidas. Mas o estilo de “ajuda econômica”
proposto por um Kaczynski parece mais próximo de um populismo social do
que do auxílio admitido pelos ícones do neoliberalismo.
Violência
Há um outro aspecto a ser destacado. É a presença da violência (violência
direta, morticínio…) como prática política de pelo menos um dos governos da
atual constelação da extrema-direita. É o governo de Duterte, nas Filipinas.
A informação a respeito não é extensa (pelo menos aquela de que disponho),
mas se sabe que ele procede a matanças sistemáticas, em princípio contra os
traficantes de drogas, o que por si só já é grave, e não sabemos se ele fica por aí.
Outro caso é o de Bolsonaro. Ele tem uma relação muito particular com a
violência. Observo que se trata de um militar. Salvo erro, o único militar do
grupo. Para analisar a relação de Bolsonaro com a violência, é preciso ter em
conta a situação do Brasil a propósito desse tipo de problema. País que está
entre os recordistas mundiais no que se refere à taxa de homicídios. Bolsonaro
se valeu desse tema na sua campanha, mas através de uma duplicação da
violência. Ele pregou uma pretensa violência contra a violência, que não é muito
diferente da violência. Em termos práticos, passa-se das organizações
criminosas “tradicionais” às milícias, às quais Bolsonaro e sua família estão
ligados. O uso da arma — a chamada “arminha” — foi o símbolo da sua
campanha, no quadro da qual indicou expressamente a esquerda como o seu
alvo, ou pelo menos um dos seus alvos. Uma vereadora e líder feminista de
esquerda foi assassinada junto com o seu motorista, no Rio de Janeiro, por
milicianos muito ligados ao poder. O governo Bolsonaro dá carta branca à
violência contra os indígenas, que já existia sob os governos anteriores. E apoia
mais ou menos explicitamente os motins organizados pelos policiais militares.
O governo Erdogan é muito repressivo, mas aqui estou me concentrando mais
no fenômeno de uma violência “ilegítima” de Estado, isto é, uma violência que
se faz como que paralelamente ao poder de Estado, mais do que aquela que,
justa ou injusta — no caso, injusta — se faz como emanação direta do Estado, e,
em alguma medida, legitimado por ele.
Autoritarismo
Ao analisarmos a questão do autoritarismo, e da natureza do poder de Estado
nas formas atuais dos governos extremistas de direita, encaramos a questão que
é provavelmente a mais importante dessa sucessão de fenômenos. Deixo a
discussão detalhada desse ponto para mais adiante. Dou aqui indicações que,
até certo ponto são ainda relativamente gerais.
Todos os governos e movimentos que analisamos (Bolsonaro, Salvini, Le
Pen, Orban, Duterte, Kaczynnski, Trump, Modi, Erdogan) têm uma clara
inclinação antidemocrática, e pode-se dizer que, de forma direta ou indireta,
trabalham em favor de uma forma autocrática de poder. Como essa
característica situa as novas extremas-direitas em relação à tradição neoliberal
(teórica — Von Mises, Hayek, Ordoliberalismo, etc. — e prática — poderes
classicamente neoliberais: Reagan e Thatcher)? Diante das tendências
autoritárias de governos cuja política econômica se supõe “neoliberal” (o que, de
resto, como já vimos nem sempre é um fato), costuma-se evocar a atitude mais
do que ambígua dos ícones do pensamento neoliberal sobre a democracia.
Arrola-se principalmente as viagens de Hayek e de Friedmann ao Chile de
Pinochet, e as declarações do primeiro de que prefere ditaduras liberais a
democracia sem liberalismo.32 Mas, antes disso, é preciso assinalar o elogio de
Mussolini por Von Mises em 1927. 33 Porém, o caso extremo, bem menos
conhecido (porque foi voluntariamente ocultado), embora se trate de uma
tomada de posição que não foi aprovada por outras grandes figuras do
movimento, incluindo Hayek e Mises, foi o apoio que o ordoliberal Wilhelm
Röpke deu aos governos racistas da África do Sul e da Rodésia (posição que, por
outro lado, marcava uma ruptura com as suas convicções
anteriores).34 Aproximando-se então da extrema-direita americana, Röpke
afirmou que os negros da África do Sul estavam “num estágio de
desenvolvimento que exclui a verdadeira integração política e espiritual com os
brancos altamente civilizados, e atualmente são em tal número que ameaçam se
sobrepor aos últimos, que são, nesse momento, os defensores da ordem política,
cultural e econômica”.35 É verdade que a posição de Röpke provocou uma
ruptura no movimento (ela projetou, aliás, a fundação de uma associação
paralela, alternativa à Societé du Mont Pélérin). Mas a aventura de Röpke nos
interessa por duas razões. Por um lado, porque ela foi só o caso mais extremo de
uma deriva não só radicalmente antidemocrática do neoliberalismo, mas
também racialista. A posição dos neoliberais mais moderados, ortodoxos,
digamos, não sendo racialista, foi, entretanto, até a condenação das sanções
contra os Estados racistas (Friedman e Hayek), senão à condenação do sufrágio
universal nesses países (Friedmann e outros) 36. Assim, a história das relações
entre os Estados racistas e o neoliberalismo não se esgota com o caso Röpke.
Por outro lado, porque, mesmo que Röpke tenha sido um dissidente, cuja
tomada de posição não foi aceita pelos demais, 37 isso mostra, se se pode dizer
assim, certas potencialidades teóricas e práticas do movimento neoliberal.
Ou, se disserem que vou longe demais com o argumento: a aventura de Röpke
tem interesse porque até certo ponto ela se antecipa ao que está acontecendo
nos nossos dias. Ao tomar aquela posição, Röpke foi, em boa medida, um
precursor dos iliberais dos nossos dias. Como diz Slobodian, ele propôs a
reunião do projeto neoliberal com o conservadorismo tradicional, 38 o que viria a
se tornar um movimento efetivo no plano mundial meio século depois.
Notas
1. Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism, the rise of antidemocratic politics in the west, Columbia University
Press, 2019, p. 2. ↺
2. A afirmação de que ele é “o modo de existência do capitalismo contemporâneo” parece excessivo. Ela se encontra em
Alison J. Ayers e Alfredo Saad-Filho, “Democracy Against Neoliberalism: Paradoxes, Limitation,
Transcendence”, Critical Sociology, 41 (4–5), p. 603, citado por Damien Cahill & Martijn Konings, Neoliberalism, Polity
Press, Cambridge (UK) e Medford (USA). 2019 (2017), p. 19. ↺
3. Pierre Dardot e Christian Laval, La Nouvelle Raison du Monde, essai sur la société néolibérale, Paris, La Découverte,
2009, pp. 13, grifos dos autores. Para definir a “racionalidade neoliberal“ — remetendo, entre outras passagens de
Foucault, aos textos bem conhecidos sobre o neoliberalismo de Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard,
2004) — Dardot e Laval se valem da noção foucaultiana de “governamentalidade" (que tem uma conotação mais vasta
do que a de um simples modo de governar). ↺
4. Idem, ibidem, p. 457. ↺
5. Wendy Brown, op. cit., pp. 17 e 18. ↺
6. Ver, por exemplo, Laval e Dardot, La Nouvelle Raison du Monde…, op. cit., pp. 10–13, especialmente ; Brown, In The
Ruins…, op. cit., p. 63 ; Cahill & Konings, Neoliberalism, op. cit, p. 28 e s. Quinn Slobodian, Globalists, the end of
Empire and the Birth of Neoliberalism (Cambridge, Massaschusets, London, England, Harvard University Press,
2018), passim. ↺
7. Uma análise profunda e detalhada da histórica teórica do neoliberalismo pode ser encontrada no livro de Quinn
Slobodian, Globalists, the end of Empire and the Birth of Neoliberalism. op. cit. ↺
8. A dimensão jurídica também é essencial à concepção de Hayek (é o mínimo que se deve dizer). Discute-se o quanto
ele se aproxima da escola de Freiburg (há autores que se recusam a fazer a distinção). Há, entretanto, diferenças: por
exemplo, o lado tecnologizante dos freiburgianos. ↺
9. Sobre o problema da relação entre os neoliberais e a União Europeia, ler o livro recente, muito importante, de Thomas
Biebricher, The Political Theory of Neoliberalism, Stanford (California), Stanford University Press, 2018. ↺
10. Slobodian, op. cit., p. 268. ↺
11. Grifo meu. ↺
12. Pierre Dardot e Christian Laval, “Anatomie du noveau néolibéralisme”, in Réflexions & Échanges Insoumis, 2 de
junho de 2019, publicado anteriormente no número 41 de Contretemps. Texto redigido para servir como avant-propos à
tradução inglesa do livro Ce cauchemard qui n’en finit pas, livro dos mesmos autores, publicado pelas edições La
Découverte (Paris), em 2016. O grifo é dos autores — trata-se de referência a uma expressão do historiador italiano
Emilio Gentile. ↺
13. Ugo Palheta, La Possibilité du Fascime, France, la trajectoire du désastre, Paris, La Découverte, 2018. ↺
14. Idem, ibidem, p. 52. ↺
15. Idem, ibidem, p. 53. ↺
16. Idem, ibidem, p. 31. ↺
17. Idem, ibidem, p. 244. ↺
18. Idem, ibidem, p. 39. ↺
19. Idem, ibidem, p. 244. ↺
20. Idem, ibidem, p. 42. ↺
21. Idem, ibidem, p. 43. ↺
22. Ver Wendy Brown, “Neoliberalism’s Frankenstein, Authoritarian Freedom in Twenty-First Century ‘Democracies’”,
in Wendy Brown, Peter Gordon e Max Pensy, Authoritarianism, three inquiries in critical theory, Chicago e Londres,
The University of Chicago Press, 2018, p. 26–29 e Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism, the rise of
antidemocratic politics in the west, New York, Columbia University Press, 2019, capítulo 5, p. 161 -188. ↺
23. Sobre a quebra das barreiras, ver o capítulo 1, “Um mundo de muralhas” do livro, citado, de Slobodian.
Um simpatizante da escola chegou a montar uma maquete da Europa, com os países cercados por muralhas de tamanho
proporcional às exigências da sua legislação alfandegária (ver a foto da maquete na página 38 do livro de Slobodian).
A representação, em três dimensões, ou em duas, correu mundo. Sobre o delicioso tema dos “direitos humanos do
capital", sobre o qual é obrigatório voltar, ver o capítulo 4 do mesmo livro, “Um mundo de direitos”. ↺
24. [Nota Arthur: não havia nenhuma indicação clara sobre essa referência. Isto é, havia um asterisco ao lado da frase,
como em alguns outros lugares, mostrando que essa informação estava baseada em alguma referência, e que Ruy queria
explicitá-la. Tudo leva a crer — dado o momento em que o artigo foi escrito, o conteúdo ao qual a nota se refere e a
nossas conversas com Ruy — que se trata de uma entrevista dada por Bannon ao jornal francês de direita Le Figaro,
entrevista que também é usada mais adiante. ↺
Ver : "Les peuples n’ont pas besoin de moi pour détruire les partis au pouvoir dans leurs pays", por Alexandre
Devecchio e Etienne Campion, 11 de abril de 2019. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/politique/steve-bannon-
les-peuples-n-ont-pas-besoin-de-moi-pour-detruire-les-partis-au-pouvoir-dans-leurs-pays-20190411 (acessado em
31.08.2020).
Nessa entrevista, ao ser perguntando sobre sua opinião acerca da Escola de Chicago, Bannon responde : “Eu não
acredito no modelo neoliberal. Claro, sou favorável a uma parte do capitalismo, mas sob a condição de que seja um
capitalismo real, um capitalismo prático”.]
25. “(…) não se trata de afirmar que o neoliberalismo é onipotente. Desde a crise financeira global de 2008, os chamados
movimentos populistas da esquerda à direita se multiplicaram e tomaram como alvo muitas das instituições descritas
(…) [por exemplo, o GATT, e o OMC, o fmi etc]. (…) o próprio globalismo passou da condição de termo obscuro de
análise acadêmica para alvo do opróbrio direitista, ajudando a alimentar a campanha do candidato vitorioso ao posto de
maior poder no mundo. Os globalistas, definidos (quando o são) como a combinação cambiante e algo obscura da elite
financeira, política e acadêmica se tornam frequentemente os bodes expiatórios de tudo o que prejudica o corpo político,
e são vistos como espectros de uma identidade perigosamente desligada das preocupações do povo comum”
(Slobodian, op. cit., p. 25). ↺
26. Ugo Palheta define o problema de maneira muito lúcida (ele se refere à ideologia "fascista", mas a questão pode ser
generalizada): “Impõe-se (…) encontrar um ponto de equilíbrio entre a indiferença em relação à ideologia fascista, que
proíbe se interrogar sobre a persistência ou as transformações de um "projeto" fascista (…) e a focalização exclusiva na
ideologia, que pode levar a aceitar sem mais (prendre au mot) o que os fascistas dizem sobre o que eles são, sobre o que
eles fazem e sobre os seus objetivos, ou pelo menos a não manter distância em relação aos discursos que pronunciam ou
que pronunciaram” (La Possibilité du Fascisme…, op. cit., p. 32–33). ↺
27. Friedrich Hayek, Postscript “Why I am not a Conservative”, in The Constitution of Liberty : the definitive edition,
editado por Ronald Hamowy, The Collected Works of F. A. Hayek, volume XVII, The University of Chicago Press, 2011
[1960], p. 517–33. ↺
28. [Nota Arthur: Ver a entrevista, já citada, de Bannon ao Le Figaro, “Les peuples n’ont pas besoin de moi pour
détruire les partis au pouvoir dans leurs pays”, por Alexandre Devecchio e Etienne Campion, 11 de abril de 2019.
Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/politique/steve-bannon-les-peuples-n-ont-pas-besoin-de-moi-pour-
detruire-les-partis-au-pouvoir-dans-leurs-pays-20190411. Em certo momento, falando de sua trajetória, Bannon diz que
foi criado na tradição católica e, a respeito de geopolítica, faz questão de usar a expressão “Ocidente judeu-cristão”.] ↺
29. Wendy Brown, American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization, Political Theory,
Vol. 34, No. 6 (Dec., 2006), pp. 692–693. Para a edição francesa: Wendy Brown, Le Cauchemard Américain,
néolibéralisme, néo-conservantisme, et dé-démocratisation, in Les Habits neufs de la politique mondiale,
néolibéralisme et néo-conservantisme, tradução de Christine Vivier (com Philippe Mangeot e Isabelle Saint-Saëns),
prefácio de Laurent Jeanpierre, introdução (avant propos) inédita, de Wendy Brown, Paris, Les Praires Ordinaires,
2007, p. 95. ↺
30. Idem, ibidem, p. 111–3. ↺
31. É a teoria elaborada por Bálint Magyar, politico de direita republicana e sociólogo. Ver Bálint Magyar, Post-
Comunist Mafia State, tradução inglesa de Bálint Bethlenfalvy, Ágnes Simon, Steven Nelson e Kata Paulin, Budapeste e
New York, Ceu Press, en associação com Noran Libro, 2016. E mais recentemente, Bálint Magyar e Júlia Vásárhelyi
(ed), Twenty-Five Sides of A Post-Communist Mafia State, tradução inglesa de Bálint Bethlenfalvy, Steven Nelson, Kata
Paulin, Ágnes Simon, Anna Szemere, Robert Young, Frank T.Zsigó, 2017. ↺
32. Ver a respeito Slobodian, op. cit., p. 277: “Referindo-se a Pinochet, Hayek disse que ele ‘preferiria um ditador liberal
a um governo democrático carente de liberalismo’ e que ‘é possível para um ditador governar de um modo liberal’ —
com a especificação de que isto seria apenas ‘um arranjo provisório de transição’". Ver também, Biebricher, op. cit., p.
74. Na opinião de Biebricher, “[Friedmann] parece ter sido menos favoravelmente inclinado à forma do regime [chileno]
do que Hayek. Entretanto, ele ofereceu assessoria econômica em uma carta para Pinochet, a acrescentar os outros
“Chicago Boys”, ou os que foram treinados em Chicago, os quais tiveram um papel vital na implementação das reformas
econômicas” (Biebricher, op. cit., p. 232, n. 5). As declarações de Hayek não são tiradas de um texto do economista, mas
de uma entrevista que deu ao jornal conservador chileno El Mercurio, em 1981 (ver Biebrecher, op. cit., p. 74).
A principal referência bibliográfica de Biebrecher a respeito da questão, que deu origem a uma polêmica — os defensores
do neoliberalismo tentando limitar o alcance das intervenções dos dois ícones da escola — é o artigo de John
Meadowcroft e William Ruger, “Hayek, Friedman, and Buchanan: On public life, Chile, and the Relationship between
Liberty and Democracy“, Review of Political Economy 26 (3), 2014, que Biebrecher considera equilibrado. ↺
33. Ver Slobodian, op. cit., p. 277 : “As afirmações de Hayek lembram tanto a discussão de Röpke sobre a “democracia
ditatorial” em 1940, como a observação de Mises em 1927 de que ‘o fascismo [italiano] e movimentos similares que
visam ao estabelecimento de uma ditadura estão cheios de boas intenções e a sua intervenção, por ora, salvou a
civilização europeia. O mérito que, com isso, o fascismo ganhou para si, viverá eternamente na história’”. Slobodian cita
ainda um texto muito revelador de von Mises, texto que é de 1922: “O conjunto de nossa civilização baseia-se no fato de
que os homens sempre tiveram êxito em derrotar o ataque dos redistribuidores” (ib.). ↺
34. Ver Slobodian, op. cit., p. 150. ↺
35. Idem, ibidem, p. 152–3. ↺
36. Idem, ibidem, p. 178. ↺
37. Hayek escreveu a parte final da Constituição da liberdade — “Porque não sou um conservador” — explicitamente
contra Russell Kirk, um dos líderes da extrema-direita americana com quem Röpke se associou. Ver Slobodian, op.
cit., p. 172. ↺
38. Ver Slobodian, op. cit., p. 167 e 150. ↺
39. Idem, ibidem., p. 81. Cf. ibidem, p. 85. ↺
40. Ver Biebricher, op. cit., p. 86. ↺
41. Ver a perspectiva do ordoliberal Eucken, em Biebricher, op. cit., p. 87. ↺
42. Ver Biebricher, The political theory…, op. cit., p. 82. ↺
43. Deixo de lado a análise da utopia política proposta por Hayek na sua trilogia Direito, Legislação e Liberdade.
Nota editorial:
Era conhecida a meticulosidade com que Ruy trabalhava seus textos.
À exaustão, procurava aparar cada detalhe, de forma e conteúdo. Ainda que
não estivesse pronto, o texto que ora apresentamos já estava em estágio muito
avançado e havia sido planejado pelo próprio Ruy para publicação na 2ª ou
3ª série do primeiro número da Rosa. Por conta disso, decidimos — com a
autorização e concordância de sua família — editá-lo para publicação.
O texto começou a ser pensado em meados de 2019. Depois de uma longa
pesquisa, Ruy redigiu a primeira versão em dezembro do ano passado (há
uma indicação precisa a respeito do dia 22 de dezembro). No entanto, pelas
notas ao final e por nossas conversas, sabemos que ele trabalhou nesse texto
até o final de abril de 2020.
Partindo dessa última versão, revisamos o texto, checamos as referências,
conferimos citações e explicitamos as fontes quando estavam esboçadas ou
não tinham sido apontadas. Também verificamos as traduções, fazendo as que
se encontravam apenas indicadas. É importante frisar: o texto encontra-se
quase idêntico ao que encontramos. Não há, com nossa edição, nenhum tipo
de mudança substancial, que altere suas teses, seu formato ou mesmo seu
estilo.
— Arthur Hussne Bernardo
Isabella C. Reiche.
A presença de todos esses elementos lança certamente muitas dúvidas a respeito
da validade da tese de que estamos diante de uma variedade, mesmo se uma
variedade bastante “especial” de neoliberalismo. A relação da atual extrema
direita com o neoliberalismo é, entretanto, inegável. O problema é saber que
relação é esta. Uma pista nos é lançada já pelo título do livro de Wendy
Brown Nas ruínas do neoliberalismo, a ascensão da política antidemocrática
no ocidente (grifo meu). Longe de serem elas mesmas um neoliberalismo, as
atuais extremas direitas nascem da ruína deste… Yascha Mounk, em O povo
contra a democracia vai no mesmo sentido. Entre as condições do
aparecimento das formas políticas atuais da extrema direita estão o desemprego
e a desigualdade, mas estas são, em parte pelo menos, consequências
nefastas das práticas de governo neoliberais. 1 Valeria a pena se deter no livro de
Mounk. Ele pode servir de base (mas o utilizarei criticamente) para retomar o
conjunto dos problemas anteriores, e depois avançar introduzindo também o
outro polo da controvérsia, o confronto com os fascismos.
Para Mounk, as “origens” das formações políticas e governamentais de
extrema direita que encontramos hoje residem em três elementos: as condições
econômicas, a que me referi, a questão da identidade e uma revolução
tecnológica.2 A revolução tecnológica — a Internet e as redes — dá as bases
técnicas dos fenômenos de tipo populista. Ou talvez até mais do que isto.
A revolução tecnológica nos meios de comunicação, que se supunha
democrática ou favorável à democracia, deu a palavra menos ao “povo” do que à
“multidão”. A possibilidade da intervenção de “todos” liberou menos a palavra
do povo em termos de reforma, ou de revolução social, do que os impulsos mais
primitivos de violência e de intolerância (mais precisamente, liberou-se também
a palavra democrática, mas, nos últimos tempos esta última vem ofuscada pelos
reflexos de agressividade e intolerância). A ruptura da liturgia e o niilismo tem
certamente a ver com esse elemento. Ambos teriam sua origem na revolução
tecnológica, ou ela simplesmente sobredetermina práticas sociais em
desenvolvimento? E essas práticas vêm dos porões da sociedade civil, ou se
originam nos projetos e na palavra dos líderes? O potencial próprio das novas
tecnologias aparece no fato de que seus efeitos negativos (embora haja também
os positivos) são mais ou menos universais. A vulgaridade de certas redes
francesas não é muito menor do que se pode encontrar no Brasil. Mas,
evidentemente, outros fatores pesam, pelo menos em termos de
sobredeterminação. Tenho a impressão de que é em relação à liquidação da
liturgia que a nova tecnologia tem um papel mais determinante. O niilismo é um
fenômeno mais complexo, e também, em geral, mais antigo. É preciso se
debruçar sobre o seu significado. Em termos históricos, ele tem qualquer coisa a
ver com a sofística grega, pelo menos com o discurso de certos sofistas tal como
eles aparecem na versão de Platão. Sem entrar aqui em considerações mais
precisas sobre o significado da sofística (fenômeno de significação, sem dúvida,
complexa, e para a análise do qual me falta maior competência), parece-me que
foi o primeiro momento em que apareceu uma espécie de discurso da violência e
do cinismo, e de ruptura com a exigência de verdade. No fundo, seria um
discurso à margem das querelas entre as posições políticas, digamos, “normais”
da cidade (a menos que eu esteja idealizando essas últimas). Esse momento está
no lado populista dos Trump ou dos Bolsonaro. Não se trata de mentir, de
falsificar dados, ou de apresentar argumentos mais ou menos sofísticos, a
empreitada é mais radical. Trata-se de pôr em dúvida a própria ideia de
verdade.
O outro aspecto (além das condições econômicas) é a questão da identidade.
Ela se liga, entre os elementos que arrolei mais acima, com o nacionalismo e
com o conservadorismo religioso. A tese de Yascha Mounk, em O povo contra a
democracia, é de que há uma espécie de alternativa entre a democracia e a
tolerância étnica ou religiosa. Ele dá o exemplo da democracia grega que era
extremamente exclusivista. Não só as mulheres e os escravos não tinham
direitos cívicos, mas também os metecos. E a lei era bastante estrita. Ele utiliza
esse exemplo para iluminar o racismo dos brancos americanos e a rejeição dos
imigrantes pelos europeus (na Europa, não existia diversidade étnica
importante; na América, havia, mas uma etnia ou religião era a dominante, e as
demais “reprimidas ou escravizadas”). 3 A tese parece ter certa verdade, mas nos
perguntamos sobre seu alcance, pois parece haver alguma imprecisão no
argumento. Ao ilustrá-la ele dá o exemplo dos nacionalismos do século XIX, que
buscavam o autogoverno, mas eram, ao mesmo tempo, exclusivistas. 4 Só que aí
“governar a si mesmos” e “nação autogovernada” não significam, em princípio,
democracia, mas independência nacional. Porém, mais do que isto. O que quer
dizer Mounk: que quanto mais democrático um país, mais exclusivista? Não.
Mas, em todo caso, o exclusivismo deveria fortalecer a democracia e vice-versa.
Ora, o fenômeno a que assistimos frequentemente é o da decomposição tanto da
democracia quanto da tolerância. Diria que a tolerância aparece como um grau
superior de democracia, em direção ao qual ela caminha, sob um aspecto, e
contra o qual se insurge, por outro. Quero dizer que historicamente, em grandes
linhas, há um movimento que vai da democracia, como garantia dos direitos dos
nacionais, para um impulso de respeito pelos direitos dos outros povos (e, em
geral, a tolerância). Mas sem dúvida, há forças que agem no outro sentido, o de
impedir a passagem de uma democracia exclusivista a uma democracia mais
aberta. Creio que esse problema, como um outro mais geral que se encontra no
livro do Mounk, exigiria uma narrativa mais ampla tentando analisar as grandes
linhas de força que ligam a Revolução Francesa aos nossos dias. Para concluir
minha crítica a Mounk: talvez se possa resumi-la dizendo que ele extrapola para
a modernidade a alternativa Grécia-Roma (mais democracia, menos abertura;
menos democracia, mais abertura). A partir da Revolução Francesa, as coisas
parecem se colocar de uma forma uma pouco diferente. Pode haver democracia
e bastante abertura (Europa ocidental, até certa época) e fechamento sem
democracia.
Um ponto a levantar nesse contexto é o de que a recusa exclusivista por
parte não apenas de governos, mas também de certas populações, vem ligada a
preconceitos em termos de costumes. Esse aspecto parece ausente das
considerações de Mounk. Entre as origens do extremismo de direita
contemporâneo, creio que deveria ser incluído também esse fator. De fato, ele é
muito visível, e tem um peso específico no desenvolvimento daqueles
movimentos. Na realidade, houve uma liberação de costumes (cujas origens, por
sua vez, teriam de ser estudadas), liberação que, como se diz às vezes, foi muito
rápida e, em certo sentido, desvinculada de um progresso em outros planos.
As atuais extremas direitas representam uma espécie de backlash, de reação
contra aqueles progressos. Boltanski falou (em intervenção oral) de
“contrarrevolução sexual”, e tem-se a impressão de que se trata de um
fenômeno desse tipo.
Voltando ao livro de Mounk, nele não se encontra apenas uma tentativa de
analisar as origens do fenômeno que analisamos, mas de precisar a sua
natureza. Essa é a questão principal do livro. E isto corresponde à menção do
“autoritarismo” que fiz mais acima. Utilizando uma distinção que vem de Hayek
(e que foi retomada pelo politólogo Fareed Zakaria), Mounk diferencia
democracia e liberalismo, para caracterizar as novas autocracias como
“democracias iliberais”:
Mas hoje que as convicções dos cidadãos privilegiam o antiliberalimo e as
preferências das elites a antidemocracia, o liberalismo e a democracia entram
em choque. A democracia liberal, essa mistura única de liberdade individual e
de soberania popular, que durante muito tempo caracterizou a maioria dos
governos da América do Norte e da Europa ocidental, se rasga por dentro. No
lugar dela, aquilo a que assistimos é ao nascimento de democracias iliberais, ou
democracias sem liberdade, e de um liberalismo antidemocrático, ou liberdades
sem democracia.5
O esquema parece muito claro e convincente. Tem certa verdade, mas, a
meu ver, é só aparentemente rigoroso. Toda a questão é discutir o que ele
entende por “democracia” e o que ele entende por “liberalismo”. A democracia
aparece para ele como o poder que obedece à soberania do povo: “[…] os
populistas são democratas profundos: eles defendem com muito mais fervor do
que os políticos tradicionais a necessidade de que o demos esteja no
poder”.6 O liberalismo, por sua vez, defende as “instituições independentes” e as
“liberdades individuais”.7 Mas há ambiguidade no desenvolvimento das duas
noções. Para se dar conta disso, é preciso examinar precisamente os exemplos
que ele dá. Orbán seria iliberal, mas democrata. Democrata? Sem dúvida, ele
obteve maioria absoluta em certo processo eleitoral. E ele (também outros,
como Bolsonaro) faz constantemente apelo à vontade do povo e à legitimidade
que lhe dá o fato de ter sido amplamente eleito. Mas isto bastaria para que
pudéssemos qualificá-lo de democrata?
A vitória eleitoral de Orbán, como em outros casos, de novo, foi feita na base
de uma série de manobras, por exemplo, de conceder direito de voto a cidadãos
de outros países com ancestrais húngaros (Bolsonaro, por sua vez, usou de
todos os métodos, legais e ilegais para se fazer eleger. Curioso democrata).
Orbán se aproveita agora da pandemia do coronavírus para se atribuir plenos
poderes por tempo ilimitado, um verdadeiro golpe de Estado, cujo caráter
“democrático” poderia pelo menos ser discutido. Mas não temos aí as consultas
eleitorais pura e simplesmente fictícias. As eleições na Hungria atual, por
exemplo, têm, digamos, certo tipo de “verdade”. Mas elas são deformadas pelo
processo eleitoral e seus antecedentes (o que não impede vitórias da oposição,
como aconteceu em quatro capitais de países com governos mais ou menos
extremistas). Porém, é preciso bem definir em que consiste essa “deformação”, e
que papel ela tem no “funcionamento” do sistema. Em linhas gerais, como
muitos já assinalaram, tem-se governos que praticam (ou movimentos que
propõem) uma espécie de respeito pelo poder das maiorias eleitorais, mas
ligado a um desrespeito brutal, uma vez ganho o poder, pelas garantias que se
devem às minorias (reais, ou supostas como tais). De fato, a nova extrema
direita começa por obter uma vitória eleitoral (se podemos dizer assim). A partir
daí, faz praça do poder do povo, isto é, aproveita ao máximo a legitimidade
obtida com essa vitória, para intervir de forma brutal no conjunto da máquina
estatal, de forma a tornar impossível a alternância.
A forma pela qual o autor utiliza a noção de “liberalismo” também é
questionável. Em oposição à democracia tal como ele a concebe, os liberais são
aqueles que defendem não especificamente a vontade do povo, mas sim o
respeito às instituições. No caso considerado, o respeito por parte das maiorias
eleitas em relação aos direitos das minorias. Em última análise, a garantia da
alternância. A questão é muito antiga. Ela está no cerne das discussões
propostas por alguns dos pais fundadores da chamada revolução americana. É o
velho problema dos “pais fundadores” e também da tradição liberal: o do perigo
da “tirania da maioria”.8 O tema está também em Tocqueville, como se sabe.
Mais curiosamente, ele se encontra também em… Hayek. Basta consultar as
suas obras mais importantes, como a Constituição da liberdade. Só que o que
ele teme são as políticas sociais… O medo da tirania, no seu caso, é
essencialmente medo do welfare state! Em todo caso, é curioso observar essa
postura. E, como veremos, vale a pena explorar as suas implicações. 9 Mas no
caso presente, a “tirania das maiorias”, que é, na realidade, “tirania dos que
obtiveram uma vitória eleitoral” (e por isso mesmo é real e não mítica, como é,
por exemplo, o caso, na crítica hayekiana do new deal), serve à direta, não à
esquerda. E em alguns dos casos pelo menos serve especificamente ao
neoliberalismo… Veja-se o que aconteceu na Hungria, e de forma, até aqui,
ainda bem diferente, no Brasil. Obtida uma vitória eleitoral (no caso brasileiro,
em condições muito excepcionais, em vários sentidos), o poder instalado se
empenha em minar as instituições, tentando desmoralizar o parlamento, obter
maioria no Supremo Tribunal Federal (à maneira de como agiu Orbán na corte
suprema da Hungria), com uma linguagem dúbia em relação à democracia: ele
dá ênfase à sua legitimidade eleitoral (o povo nos escolheu e o povo é soberano),
ao mesmo tempo em que se empenha no processo de dominação dos outros
poderes pelo executivo, sem hesitar, inclusive, diante do elogio nostálgico da
ditadura militar dos anos 1960–1970. Vê-se o quanto essa forma autoritária (em
sentido genérico) se distingue dos governos que nascem de golpes militares.
Aqui a arma não são os tanques, mas, até certo ponto, a caneta.
Assim, os “liberais” seriam os defensores das instituições, e mais
precisamente, da alternância, diante da violência transgressiva de governos
eleitos por maiorias. Acontece que a palavra não tem só esse sentido no livro de
Mounk. É dito liberal também o tecnocrata que impõe a Tsipras, o dirigente da
esquerda grega, os protocolos econômicos das instituições internacionais — e,
evidentemente, seriam liberais também os tecnocratas dessas instituições. Isso
significa que o autor define os “liberais”, à maneira de Hayek, como os
defensores de uma liberdade que é também, ou principalmente, a liberdade do
capital. Mesmo falando dos tecnocratas e das políticas econômicas de
autoridade, não saímos da política. E, de modo correspondente no plano da
forma, não vamos além das identidades. Vê-se que há alguma coisa que não
funciona no esquema de Mounk.
Ao criticar esse esquema, já entramos na teorização geral dos fenômenos
que estamos estudando. Voltamos à discussão, nada secundária, sobre a
denominação, sobre o nome que se deve dar aos atuais movimentos, se for
verdade que eles merecem uma denominação especial. Acredito que é enganoso
conceder a esses regimes o epíteto de democracias iliberais. É supor que a
noção de “democracia” se esgota com o respeito pelas maiorias eleitorais.
O resto seria estranho a ela e deveria ser acrescentado. Nesse sentido, poderia
haver democracias totalitárias, segundo a concepção bem conhecida de Jacob
Talmon10 (não se trata de negar a ideia de que um igualitarismo absoluto gera
um poder totalitário, mas não creio que se deve considerar o primeiro como
“democrático”: a democracia implica no seu próprio conceito, equilíbrio e
limitação). Assim, não creio que a expressão “democracia iliberal” sirva para
designar os novos governos de extrema direita. A meu ver, a democracia é ao
mesmo tempo exigência de remeter o poder à maioria e respeito pelas
instituições e pelas minorias. Mas talvez se possa falar de “iliberalismo” a
propósito dos novos autoritarismos, se denominarmos a exigência do respeito
pelas “minorias”, exigência que é da democracia como exigência liberal (o
liberalismo, entendido assim, é “momento” da democracia). Em todo caso, o
termo “liberal” é ambíguo: o inglês “liberal” remete aproximadamente ao que
chamaríamos de “democrata”. Por outro lado, “liberal” designa o liberalismo
econômico. Minha impressão é que, retendo o sentido que tem a palavra na
realidade norte-americana — e na falta de uma melhor denominação —
poderíamos guardar o termo “iliberal” para designar as novas autocracias (com
o que não dizemos, absolutamente, que elas seriam “democratas”, mas
precisamente o contrário…). Então, na falta de um melhor termo, talvez se
pudesse guardar a noção de “iliberalismo” como designação. Teríamos aí uma
solução possível (ainda que muito imperfeita) do problema que mencionei no
início, e que é levantado por Wendy Brown, o de dar um nome ao fenômeno… O
que evidentemente não é uma questão secundária, ou puramente terminológica.
A outra possibilidade, diga-se de passagem, não sendo má, tem a desvantagem
de se tratar de um neologismo. De fato, se não utilizarmos os termos
“iliberalismo”, “iliberal”, teríamos de recorrer ao neologismo “democratura” (e,
para os seus representantes, mais pesado ainda: “democraturos”), isto é,
mistura de democracia e de ditatura. Ou ditadura que conserva formas
democráticas. Na falta de boas denominações, não creio que seja de jogar fora,
mas prefiro “iliberal”, e farei uso do termo nesse texto a partir deste ponto.
Chegamos assim a traçar um quadro geral do iliberalismo, através do qual,
creio eu, se torna muito difícil considerá-lo como simples avatar do
neoliberalismo. Mas tentemos primeiro recapitular o que incluímos nesse
quadro. O iliberalismo aparece como uma forma antidemocrática, cujas origens
têm alguma coisa a ver com as mudanças que se operaram na economia,
principalmente por causa do impacto do chamado neoliberalismo. Mas ele
também está ligado a uma crise de identidade das populações da Europa e
dos eua, levando-as a abraçar o nacionalismo e o moralismo religioso, que se
apresenta com traços populistas (niilismo, ruptura das liturgias) muito
alimentados pelas novas tecnologias da informação e que em muitos casos faz o
culto da violência e a pratica. Em termos de política econômica, esse
iliberalismo porta traços do neoliberalismo que se somam a outros que são
estranhos à tradição neoliberal, como o protecionismo econômico e o crony
capitalism. Aqui há que considerar não só os traços diferenciais do iliberalismo
em relação ao neoliberalismo, mas o conjunto das suas características. Na
realidade, creio que não há muito a indicar para além daqueles traços, senão a
sua ligação, que não deixo de reconhecer, mas que é complexa, com os
neoliberais. Se, nesses termos, o iliberalismo se afasta em boa medida do
neoliberalismo — digamos, o essencial é que se trata, a meu ver, de um outro
fenômeno —, seria preciso, conforme o nosso projeto inicial, compará-lo com os
fascismos do século XX.
Comparado aos fascismos, o iliberalismo (poderíamos e talvez devêssemos
falar também em iliberalismos) se apresenta algo assim como uma nova
constelação, que, entretanto, pertence à mesma galáxia dos fascismos dos anos
1920–1940: a galáxia das revoluções conservadoras. Desde já devo assinalar a
complexidade dessa comparação, pois os fascismos, como também os
iliberalismos, são muitos. O livro mais importante para descrever e teorizar
essas várias expressões é o excelente Anatomia do Fascismo, de Robert O.
Paxton.11 Na primeira constelação, a forma hegemônica acabou sendo o
nazismo, mas ela ganhou o nome genérico de “fascismo”, que é o da sua
primeira grande manifestação. Há o núcleo constituído pelo fascismo (em
sentido específico: o fascismo italiano), e o nazismo, alemão. Mas há outros
regimes cujas características se aproximam do nazifascismo, sem, contudo, se
identificarem com eles. Levanta-se evidentemente o problema de saber se
Franco, Salazar, Horthy, Antonescu e outros eram realmente fascistas (aliás, o
problema já se coloca a propósito do fascismo italiano: Arendt o separa do
nazismo, e não o considera um “totalitarismo”). A diferença entre eles, de um
lado, e o nazismo e o fascismo italiano, de outro, está numa muito menor
arregimentação das populações (não creio que se possa falar em não
arregimentação, então se imporia batizá-los apenas “autoritarismos”). Na
mesma linha vai uma intervenção menor na vida privada. Há além disso um
traço muito importante, que, tenho a impressão, foi pouco observado: os
fascismos ibéricos praticam religiões tradicionais e não as religiões seculares do
nazifascismo propriamente dito.12
No livro de Paxton, há certa hesitação prudente na caracterização desses
regimes. A resposta que ele dá é, entretanto, globalmente negativa (ele mostra,
por exemplo, como Franco neutraliza a Falange, e transforma seu poder em
ditadura não fascista baseada no exército, na Igreja, e nas forças econômicas).
Mas a sua resposta não é tão nítida como se poderia pensar. Creio que se
poderia chamar os regimes de Franco ou de Salazar de fascistas, embora neles
não encontremos todas as características do nazifascismo. Digo isso em parte
com base na ideia de que, embora admitindo que a análise particular desses
regimes não nos leva a reconhecer rigorosamente formas fascistas, em razoável
medida, eles faziam parte da “constelação fascista”, no sentido de que de uma
forma ou de outra (e mesmo se às vezes se manifestavam independentes)
giravam em torno dele. Sua dependência para com o campo total, que foi mais
estreita do que se pensa, impõe a caracterização, apesar das diferenças. O termo
“fascismo derivado” ou “fascismo secundário”, 13 que se encontram no livro de
Paxton, serviriam bem nesses casos. Fiz esse longo circunlóquio, porque parece
importante na comparação iliberalismo-fascismo dar um lugar particular aos
“fascismos derivados”.
Se a primeira constelação da galáxia — a galáxia se chama “revolução
conservadora” — apresenta estrelas de natureza e força bem variáveis, o mesmo
acontece com a segunda constelação. Aqui a força hegemônica não é mais o
nazifascismo (hoje existem ou existiram partidos autenticamente nazifascistas,
na Grécia, na Polônia e na Hungria, por exemplo), mas eles não são
hegemônicos, nem são os mais perigosos, como assinala Paxton. 14 A forma
dominante é hoje precisamente a do iliberalismo, ou da democratura. Forma
dominante que se encontra, por exemplo, na Hungria, mas que caracteriza
também o conjunto das manifestações da nova leva da revolução conservadora.
É nesse sentido que apesar das diferenças, as novas formas são funcionalmente
equivalentes ao fascismo clássico. De fato, Paxton fala em “equivalente
funcional”:
Armados de conhecimento histórico, estaremos capacitados para distinguir as
imitações desprezíveis [do fascismo], mas isoladas de hoje em dia, com suas
cabeças raspadas e tatuagens de suásticas, dos autênticos equivalentes
funcionais do fascismo, na forma de alianças maduras entre fascistas e
conservadores.
E ele acrescenta: “Se prevenidos, podemos nos tornar capazes de detectar a
verdadeira ameaça quando ela surgir”.15
De forma mais precisa, como se distinguem os “iliberalismos” dos
“fascismos”? Como se distinguem as duas constelações da galáxia
neoconservadora? Esse é talvez o momento mais interessante da pesquisa,
porque se se costuma indicar diferenças, em geral se fica num nível descritivo.
Comecemos retomando aqueles elementos que considerei como distintivos do
novo autoritarismo nas suas relações com o neoliberalismo: populismo
(niilismo e ruptura da liturgia), nacionalismo, violência, formas originais de
política econômica (protecionismo e crony capitalism), conservadorismo
moral-religioso, autoritarismo fundamental. Em que medida isso “já” se
encontra nos fascismos?
Referi-me aos traços propriamente populistas do iliberalismo: primeiro a
ruptura com a liturgia, o lado boçal, mesmo gangsteresco (ver Trump,
Bolsonaro, Olavo). O fascismo clássico teve muito disso. Hitler e Mussolini
aparecem como personagens que rompem com o protocolo, já pelas suas
biografias (pintor fracassado, boêmio; e professor primário, agitador). Pelo
menos o establishment alemão levou bastante tempo para adotar o pequeno
“cabo austríaco”. Quando ele finalmente chega ao poder, supunha-se que o
chanceler “fascinaria as massas (…) enquanto o vice-chanceler Von Papen
governaria o Estado”.16 Não foi isso o que aconteceu. Entre os iliberais é talvez
Trump que tenha provocado mais escândalo, com as suas tiradas obscenas e
machistas, bem absorvidas pelos seus partidários.
Quanto ao que chamei de “niilismo”, definindo-o como uma corrupção
radical da ideia de verdade, isso é típico dos fascistas clássicos, uma verdadeira
invenção deles. Como já observei, não se trata da prática da mentira, o que é
usual em vários campos, nem de aproximações e falsificações astutas, é muito
mais do que isso. Uma espécie de mentira hiperbólica, porque se choca
escandalosamente com a verdade. Assim, ao mesmo tempo em que começam a
perseguir sistematicamente os judeus, Goebbels denuncia nos seus discursos a
conspiração judaica. Hitler faz o mesmo. O discurso iliberal segue as mesmas
regras, ainda que num plano mais modesto quanto ao conteúdo. Bolsonaro jura
que o presidente da Organização Mundial de Saúde confirma as suas posições,
quando, na verdade, ele diz o contrário. Olavo de Carvalho fala de
cumplicidades de Barack Obama com o fundamentalismo islâmico etc. Num
plano maior, o discurso dos fascistas e o dos iliberais têm em comum uma
ruptura radical com a exigência de verdade. Diz-se o que convier, mesmo e
principalmente o mais absurdo. Isso assinala, sem dúvida, um parentesco
perturbador entre os dois. Diria que os iliberais “mentem à la Goebbels”, mesmo
se os seus objetos são, em geral, “menores”.
O nacionalismo que caracteriza todos ou quase todos os movimentos e
governos iliberais (Trump, Putin, Salvini, Le Pen, Bolsonaro etc.) era um
elemento essencial no fascismo clássico, embora o seu peso variasse de caso a
caso. Creio que o fascismo italiano foi mais nacionalista que o nazismo, pela
ênfase que ele dá ao novo renascimento da Itália (Hitler diz que o nazismo não é
exportável, que seria assunto entre ele e o povo alemão; 17 porém o biologismo
racista, como sublinha Arendt, e o movimento final, que assinala uma espécie de
ruptura com o próprio povo alemão, mostram como a nação era menos
fundamental para os nazis do que a raça). O nacionalismo está bastante
presente nos “fascismos derivados”. Deve ter sido mesmo o seu elemento
fundamental.
A violência é, bem entendido, um traço comum ao fascismo e a certas formas
do iliberalismo, ainda que não a todas, pelo menos no seu estágio atual de
desenvolvimento. Os dois governos em que o culto da violência e também a sua
prática (mas em níveis, apesar de tudo, por ora pelo menos ainda diferentes) são
os de Bolsonaro e de Duterte, nas Filipinas. Nesse último caso temos um
verdadeiro regime “de massacre”, de uma brutalidade inaudita. A violência se
manifesta muito marcadamente no regime fascista italiano, e evidentemente,
em forma paroxística, no regime genocidário nazista. Paxton observa que o
fascismo italiano foi mais violento que o nazismo no período anterior à tomada
do poder; depois da tomada, deu-se o contrário. 18 Mas o último episódio do
fascismo italiano, o da República de Salò, é particularmente sangrento
(Mussolini liquida até o Conde Ciano, seu genro), mas “mesmo assim, todo o
sangue derramado pela República de Salò não passou de umas poucas gotas, se
comparado ao que foi derramado nos dias finais do nazismo”.19
No plano econômico, aparece, apesar de tudo, uma diferença importante
entre os iliberalismos e o fascismo. Insisti nos traços não neoliberais que estão
presentes nas políticas econômicas dos governos iliberais. Mas as marcas do
neoliberalismo são, de qualquer modo, sensíveis (isso não permite definir o
iliberalismo pelo neoliberalismo: é preciso saber que peso, em seu projeto
político, tem a relação com o capital). Os fascismos eram bastantes estatizantes
(porém, segundo Paxton, Mussolini queria um Estado mínimo até
1925).20 O estatismo dos fascismos clássicos estava na regulação da economia e
nos obstáculos impostos ao comércio exterior. Porém, menos no final, os
capitalistas se acomodam bem ao novo sistema. 21 O crony capitalism, o
capitalismo oligárquico, a serviço dos “amigos”, tão visível na Hungria de hoje,
como também na Polônia, estava presente nos fascismos: vejam-se as vantagens
de que desfrutava Goering, chefe de partido e industrial. Os casos atuais
parecem ser, entretanto, de um tipo diferente. Para me ater apenas à Hungria,
sobre a qual se pode ter acesso a uma literatura importante, o crony
capitalism parece quase definir o regime. Um opositor ao regime de Orbán
inventou o termo “Estado Mafioso” (Mafia State)22 para exprimir a essência do
regime (Estado a serviço de uma máfia que controla a economia e os centros de
poder). A diferença é que precisamente o lado mafioso do Estado húngaro não é
um traço, ele representa o conjunto: não há um Estado fascista clássico por trás
disso. Em todo caso, a semelhança deve ser assinalada.