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Revolução conservadora e neoliberalismo

parte 1
Ruy Fausto
Nota editorial:
Era conhecida a meticulosidade com que Ruy trabalhava seus textos.
À exaustão, procurava aparar cada detalhe, de forma e conteúdo. Ainda que
não estivesse pronto, o texto que ora apresentamos já estava em estágio muito
avançado e havia sido planejado pelo próprio Ruy para publicação na 2ª ou
3ª série do primeiro número da Rosa. Por conta disso, decidimos — com a
autorização e concordância de sua família — editá-lo para publicação.
O texto começou a ser pensado em meados de 2019. Depois de uma longa
pesquisa, Ruy redigiu a primeira versão em dezembro do ano passado (há
uma indicação precisa a respeito do dia 22 de dezembro). No entanto, pelas
notas ao final e por nossas conversas, sabemos que ele trabalhou nesse texto
até o final de abril de 2020.
Partindo dessa última versão, revisamos o texto, checamos as referências,
conferimos citações e explicitamos as fontes quando estavam esboçadas ou
não tinham sido apontadas. Também verificamos as traduções, fazendo as que
se encontravam apenas indicadas. É importante frisar: o texto encontra-se
quase idêntico ao que encontramos. Não há, com nossa edição, nenhum tipo
de mudança substancial, que altere suas teses, seu formato ou mesmo seu
estilo.
— Arthur Hussne Bernardo

Isabella C. Reiche.
A emergência ou florescimento, no plano mundial, de governos e movimentos
de extrema-direita modificou radicalmente a situação política, e ao mesmo
tempo, no registro mais teórico, deu origem a uma ampla discussão sobre o
caráter desses movimentos, suas perspectivas, e a atitude que se impõe à
esquerda e aos democratas em geral com vistas à derrota deles ou pelo menos à
sua neutralização. Se as raízes desses movimentos, em mais de um domínio, não
são propriamente novas, o seu progresso fulgurante nos últimos anos
representou, senão um raio em céu azul, pelo menos um raio num céu um pouco
nublado, mas sem anunciar tempestades. Hoje estamos em pleno ciclone.
O ritual de enumerar as figuras que dominam esse novo quadro se impõe cada
vez. E nunca estamos certos de ter fornecido a lista completa, porque ela vai se
alongando a cada dia. A enumeração parece sempre imperfeita, por causa das
diferenças que existem entre os diferentes personagens. Contudo, eles estão
ligados, pelo menos por algum traço, mesmo se este varia conforme a figura
considerada. Desde já observemos a variedade desses representantes da atual
extrema-direita: políticos profissionais, homens de negócio que se engajaram
numa carreira política, militares, ex-policiais. Essas diferenças têm algum peso
nas características da política posta em prática por cada um deles, mas a relação
é complexa.
Sem dúvida, fazem parte do nosso objeto os governos de Trump, Duterte,
Bolsonaro, Orbán, Kaczynsky, Erdogan e Modi, além de movimentos e partidos
como os de Salvini, na Itália, e de Le Pen, na França. Mas a lista não está
completa. Há boas razões para incluir Putin no grupo. E teríamos que
acrescentar a figura insólita do ideólogo norte-americano Steve Bannon, que
aparece como uma espécie de líder internacional da nova extrema-direita.
Como escreveu uma cientista política, em livro recente, o nosso primeiro (ou
último?) problema é saber como nomear a tendência política que esses
movimentos e governos encarnam. “Temos dificuldade até mesmo com a
denominação — trata-se de autoritarismo, de fascismo, de populismo, de
democracia iliberal, de liberalismo não-democrático, de plutocracia de direita?
Ou de outra coisa?”1 Há outras dificuldades. É difícil acompanhar o processo
político desses diferentes países. Os acontecimentos se sucedem muito
rapidamente, e sem o conhecimento da língua do país (o que acontece
necessariamente para todos os analistas, já que o leque linguístico é variado
demais) corremos sempre o risco de fazer considerações mais ou menos
apriorísticas. Cada um de nós pode conhecer bem a situação do seu país, e
razoavelmente as dos países de língua “acessível”. Quanto aos demais, temos de
confiar em fontes indiretas. De qualquer modo, a literatura sobre o problema vai
se avolumando, com livros e artigos de natureza mais propriamente teórica ou
mais empírica. Deve-se dizer que ela é, em geral, de boa qualidade. É impossível
discutir hoje o problema sem o conhecimento, pelo menos parcial, dessa
bibliografia. A acrescentar o estudo de algumas grandes obras sobre os
autoritarismos dos anos 1930–40 do século XX, mais alguns clássicos das
ciências sociais, em sentido geral.
Uma coisa fica evidente: com a discussão sobre a ofensiva atual de certa
extrema-direita, abre-se uma ampla teorização em torno do sentido do conjunto
da história contemporânea (senão moderna), do papel das políticas da direita e
do destino da esquerda. Nesse sentido, essa ofensiva é um objeto “bom de se
pensar”, como disse um clássico, a outro propósito. Só que, evidentemente, ela
não é boa para se viver… Pois, bem entendido, se a análise do curso atual da
política mundial abre um campo teórico de discussão, ela também, e por isso
mesmo, lança um desafio prático às esquerdas, e aos democratas em geral.
Apesar de tudo, e para além do sentido que lhe deram aqueles (dois russos) que
utilizaram esse mote como título para as suas obras (e não obstante as reservas
de Adorno), a pergunta “que fazer?” — claro, se respondida sem imediatismo,
nem demagogia — está longe de ser uma questão abstrata.

O fenômeno atual do fortalecimento de certa extrema-direita aparece


imediatamente sob a luz do que se denominou “neoliberalismo”.

O fenômeno atual do fortalecimento de certa extrema-direita aparece


imediatamente sob a luz do que se denominou “neoliberalismo” (a terminologia
vem, na origem, de um dos seus próprios cultores e remonta aos anos 1930).
Trata-se de um modelo prático e teórico interior ao capitalismo, e que comporta
bem mais do que uma política econômica, pelo menos em sentido estrito.
O neoliberalismo é, por um lado, uma tendência econômica que, sem ser a rigor
universalmente hegemônica, tem um peso considerável no capitalismo mundial,
tal como ele se apresenta hoje. 2 Mas ele conota ao mesmo tempo certa proposta
política assumida por partidos, grupos, tendências ou personalidades. Nos dois
casos, ele encarna certo tipo de racionalidade social: “(…) antes de ser uma
ideologia ou uma política econômica [o neoliberalismo] é primeira e
fundamentalmente uma racionalidade, e que, enquanto tal, tende a estruturar e
organizar não só a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos
governados”3. Nessa racionalidade, o mercado não é visto a partir da troca, mas
sim da concorrência, “definida (…) como relação de desigualdade entre
diferentes unidades de produção ou ‘empresas’”. 4 Além do papel hegemônico
que assume o capital financeiro, no núcleo propriamente econômico do que
chamamos de neoliberalismo estão as políticas bem conhecidas de privatização,
de desmantelamento do Estado de Bem-Estar e da legislação social, de baixo
nível de impostos (ou de taxação com pouca progressividade), de privilégio da
luta contra a inflação e de liberação dos movimentos do capital: “O
neoliberalismo é mais comumente associado a um feixe de políticas de
privatização de bens e serviços públicos, reduzindo radicalmente o Estado
social, contendo o movimento operário (labour), desregulando o capital, e
produzindo e criando um clima de impostos-e-tarifas amistoso para os
investidores diretos estrangeiros”. 5 Por outro lado, pode-se dizer que há
convergência entre diferentes autores em torno da ideia de que, longe de propor
um Estado não intervencionista, o neoliberalismo antes concebe uma política de
Estado, mas de intervenção estatal em favor do mercado.6 Nesse sentido, a ideia
corrente de que ele encarna a filosofia do laissez-faire é ilusória. Pode-se dizer
que ele gostaria de assumir essa política, pois o mercado mundial é o seu totem.
Porém, a não intervenção, ou a não intervenção pura e simples, implicaria, para
os neoliberais, em abandonar o mercado mundial à sua sorte. Para eles, à
diferença do liberalismo clássico, só por meio de uma audaciosa política de
Estado em favor do mercado, sem a qual este pode sucumbir às suas
fragilidades, é que ele ganha as condições necessárias para o seu bom
desenvolvimento.
O neoliberalismo tem uma longa história teórica e prática. Seus dois maiores
clássicos são os austríacos Ludwig Von Mises (1881–1973) e seu discípulo,
Friedrich Hayek (1899–1992).7 Se acompanharmos a narrativa crítica que
propõe Quinn Slobodian, a história do neoliberalismo começa nos anos 1920,
em Viena, com os seminários de Von Mises, que Hayek, entre outros, frequenta;
seminários cujo quadro não é a universidade, mas uma câmara de comércio e
indústria, de caráter semioficial. Pode-se dizer que a trajetória do
neoliberalismo continua então em Genebra, para onde se transfere Von Mises,
convidado, em 1934, a ensinar no Instituto Avançado de Estudos Internacionais.
Por Genebra passarão várias figuras importantes do neoliberalismo, inclusive
Hayek. E além de Von Mises, irá ensinar no Instituto, a partir de 1937, o
economista alemão Wilhelm Röpke, outro grande nome da tendência, obrigado,
com a ascensão de Hitler, a abandonar a Universidade alemã. Em 1938, muito
impressionado pela leitura das provas de um livro, sous presse, do jornalista
americano Walter Lippmann — provas que Hayek lhe havia transmitido —
Röpke escreve a Lippmann observando a proximidade entre suas ideias, e
afirmando a necessidade de um encontro de pessoas cujo pensamento era
convergente, para discutir aquelas questões. Nasceu assim o projeto de uma
reunião que ficou conhecida como o Colóquio Lippman, colóquio que se realizou
em Paris, em agosto de 1938, e do qual participaram, além de Röpke, Lippmann
e Hayek, Von Mises, o sociólogo alemão Alexander Rustow, próximo de Röpke,
e outros mais. A reunião se dá no quadro do Instituto Internacional de
Cooperação Intelectual, sendo o seu maître d’oeuvre um filósofo francês, adepto
do positivismo lógico, chamado Louis Rougier. No final do evento, decidiu-se
pela criação de um centro internacional de estudos para a renovação do
liberalismo, mas a ideia só iria se concretizar após a guerra, iniciada um ano
depois do colóquio. Em 1947 é fundada a Société du Mont Pélérin, nome tirado
da localidade suíça em que se realizou o encontro internacional que lhe deu
origem. Desta primeira reunião participam, entre outros, Hayek, Von Mises,
Röpke, Lionel Robbins, Milton Friedmann. A sociedade promove reuniões
regulares em diferentes cidades do mundo, primeiro anualmente, e depois a
cada dois anos.
No interior do movimento neoliberal, costuma-se distinguir vários ramos ou
“escolas”:
1. o austríaco, representado por Von Mises e Hayek;
2. o alemão, no interior da qual se distingue a escola de Freiburg, cujos
grandes representantes são W. Eucken e F. Bohn, e figuras como V.
Röpke, A. von Rustow e A. Müller-Armack, de Colônia. A designação
“ordoliberalismo” denota o ramo alemão do neoliberalismo,
particularmente, mas não só, a escola de Freiburg;
3. o americano, um terceiro ramo encarnado pela escola de Chicago, cujo
principal representante é Milton Friedmann.
Os neoliberais vivem certo tipo de marginalidade durante o período em que
predominou a política keynesiana (em parte nos anos 1930, com Roosevelt, mas
principalmente no pós-segunda guerra mundial). Mas essa marginalidade é
relativa, porque desde o início eles estiveram ligados a grupos econômicos
poderosos, a organizações internacionais financeiras, a universidades e
institutos de nível universitário de grande peso. Porém, eles virão à tona, por
assim dizer, com a crise do Estado de Bem-Estar, nos anos 1970.

O neoliberalismo tem uma aparição impressionante — porque inesperada e


radical — com a vitória do golpe de Pinochet e o assassinato de Allende no
Chile em 1973

O neoliberalismo tem uma aparição impressionante — porque inesperada e


radical — com a vitória do golpe de Pinochet e o assassinato de Allende no Chile
em 1973. Já conhecidos por esse nome nas universidades em que se haviam
instalados, os “Chicago Boys” vão dirigir a política econômica do governo
originado pelo golpe. Assim, o primeiro exemplo prático de uma doxa neoliberal
mais ou menos “pura” é o de um governo que não é apenas neoliberal, mas
também militar e ditatorial. Voltaremos aos problemas de interpretação que
levanta uma conjunção dessa ordem.
No final da década e começo da seguinte, será o momento dos dois governos
neoliberais “clássicos”, os de Margaret Thatcher, no Reino Unido, a partir de
1979, e o de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, a partir de 1981.
Encontraremos aí realizada a panóplia econômica dos neoliberais, incluindo
combates — vitoriosos — contra as organizações sindicais, sendo os episódios
mais conhecidos o enfrentamento da greve dos mineiros, no Reino Unido, e a
derrota da greve dos controladores de voo, nos Estados Unidos.
Para além desses exemplos, cite-se o peso do neoliberalismo na política
econômica dos governos alemães do pós-guerra, e a influência dos neoliberais
no processo de desenvolvimento da Unidade Europeia. Sobre o primeiro ponto,
a figura política decisiva é Ludwig Erhard (ministro da economia de setembro
de 1949 a dezembro de 1966, e chanceler — o equivalente a primeiro ministro —
de outubro de 1963 a dezembro de 1966). As duas tendências do
ordoliberalismo estão associadas à política de Erhard. A primeira, a da escola de
Freiburg, põe em evidência a necessidade de uma constituição econômica em
defesa das leis do “mercado mundial” (uma constituição que inclua dispositivos
régios que garantam esse domínio8). O outro grupo, cujo representante
politicamente mais ativo é A. Muller-Armac, vai arvorar a bandeira da
“economia social de mercado”, uma variante da visão neoliberal em que se
pretende satisfazer a certas exigências no plano da proteção ou da redistribuição
(Hayek nunca engoliu esse “social”, mas se os alemães foram obrigados a fazer
algumas concessões, eles não parecem, de forma alguma, ter traído a ortodoxia.
Voltaremos a isso). Quanto à Europa, a atitude dos neoliberais foi complexa.
Uma parte deles via com suspeita o lado intervencionista ou keynesiano do
projeto europeu (por exemplo, os subsídios à agricultura). Mas outro setor
começou a simpatizar com a iniciativa, principalmente pelo fato de que, com a
unidade europeia, limitava-se a soberania das nações em proveito de um
sistema legal que, em geral, era subserviente às exigências do mercado mundial.
Na realidade, ficou claro que o projeto de uma Europa democrática, projeto
pensável e realizável, não se fará sem uma luta aberta contra os neoliberais, que
aparecem estruturalmente como inimigos desse ideal.9
Finalmente, há que se referir a certo modelo de política econômica que as
organizações internacionais (o fmi, principalmente, mas também o Banco
Mundial) impuseram às nações do então chamado terceiro mundo, a partir do
final dos anos 1980. Esse receituário ficou conhecido com o nome de “consenso
de Washington”, mesmo se o seu inventor visasse um objeto um pouco diferente
daquele que se conheceu sob aquela denominação. As medidas impostas — mais
do que propostas — aos governos do países “subdesenvolvidos” (ou “não
desenvolvidos”, como escrevia uma das figuras da ortodoxia) eram, entre outras,
a redução dos gastos públicos, a reforma tributária (contrarreforma, a rigor), a
abertura cambial, a privatização das estatais, o afrouxamento da legislação
trabalhista, a liberdade de movimento do capital.
Tem-se aí uma ideia do que foi (e é) o movimento neoliberal. Um poderoso
movimento arregimentando economistas, filósofos, homens políticos, homens
de negócios, cujo objetivo é relançar o liberalismo econômico (projeto e
realidade), em oposição não apenas ao fascismo e ao comunismo (o que era
patente na sua origem), mas também, e decisivamente, à democracia social
(melhor do que “social-democracia”, denominação que seria no caso um pouco
estreita). Trata-se de combater as doutrinas que fazem do pleno emprego um
dos seus objetivos centrais, de uma bandeira de luta em favor do “livre”
movimento do capital, desentravando-o dos obstáculos que representariam a
intervenção do Estado e o movimento sindical. Se os neoliberais não são, pura e
simplesmente, adversários da democracia, ela só lhes interessa, de certo modo,
enquanto projeto mínimo, o de um tipo de governo que garante a “ordem”, no
centro da qual está, sem dúvida, o mercado. Porém, a democracia aparece com
frequência como um obstáculo: os mais pobres, ou os países mais pobres, no
plano internacional são acusados de tentar impor uma assimetria nas relações, o
que significa levantar exigências de redistribuição de riqueza, e de justiça social,
que prejudicam o livre jogo dos preços e o movimento do capital. A “voz das
massas” tem de ser neutralizada. Nesse sentido, o neoliberalismo se revela
profundamente antidemocrático. Pode-se dizer em geral que o que lhe interessa
é o mercado mundial, a liberdade de movimento desse mercado, o
que não significa, como já vimos, recusa da intervenção do Estado,
mas intervenção a serviço do mercado. Mas, quanto à forma política, eles são
mais ou menos indiferentes, com a precisão de que se declaram inimigos de
governos nazistas ou comunistas: tanto a democracia como certas formas
autoritárias podem desempenhar bem o papel que eles destinam às instituições
políticas. Há que ressaltar, em geral, o verdadeiro culto do mercado mundial
que praticam os adeptos da escola: a “variável independente” é o mercado.
Proteger esse totem é a finalidade do projeto. O resto são variáveis dependentes
que devem ser manipuladas e articuladas da maneira mais favorável àquela
finalidade “sublime” (essas observações poderiam ser um pouco atenuadas se
considerarmos certas variantes, principalmente a alemã e especialmente as de
verniz “social”; mas, no essencial, creio que se trata de uma caracterização
rigorosa).
Vemos assim a complexidade do fenômeno, dada a natureza nada simplista
da sua doutrina e a variedade das suas figurações. O neoliberalismo não é um
economismo, pelo menos se entendermos o termo como visando uma doutrina
que faz das relações econômicas o ponto central da abordagem teórica ou do
projeto prático, de tal modo que esse elemento hegemônico como que absorve
os outros aspectos. Bem entendido, a economia não é pouca coisa no projeto,
mas este é em grande parte político, de certo modo, acima de tudo político, e
também jurídico. Referindo-se em particular ao que ele chama de “escola de
Genebra” (“entidade” que reúne o grupo numeroso e variado de neoliberais que
de alguma forma atuaram nessa cidade) — mas a definição vale em grande
medida para o neoliberalismo em geral —, Quinn Slobodian escreve na
conclusão de seu livro: “A minha narrativa mostrou que o neoliberalismo da
Escola de Genebra é menos uma teoria do mercado ou da economia, do que
[uma teoria] da lei e do Estado”10. Coloca-se, então, o problema de saber se os
movimentos, partidos e governos de extrema-direita que vão surgindo pelo
mundo afora — por considerável que sejam a diversidade e a originalidade dos
seus traços — se encaixam sem dificuldade teórica no modelo neoliberal. Para
além da marca neoliberal inegável, as extremas-direitas atuais oferecem um
leque de características (sem dúvida, raramente presentes na sua totalidade em
qualquer uma das suas formas singulares) que parecem tornar problemático
considerá-las como avatares, mesmo se mais ou menos “exóticos”, da onda
neoliberal. Mas há quem defenda essa tese, e não sem brio. A questão é menos
acadêmica do que se poderia pensar. Na realidade, como já indiquei, para além
dos problemas que oferece a análise empírica, e também racional, do objeto, se
investem nessa discussão maneiras diferentes de pensar a história
contemporânea — no limite, de pensar a natureza do percurso histórico que vai
da Revolução Francesa até o nosso século. E, claro, cada leitura possível tem
implicações, implícitas, pelo menos, em termos de práticas políticas específicas.
A maneira de entender o que são esses monstros que ocupam hoje o cenário
político de uma série de países tende a privilegiar tal ou qual tipo de resistência
ou, de forma mais geral, de política a ser posta em prática pela esquerda e pelas
forças democráticas.
Uma posição extrema, ou pelo menos bem marcada e clara, nessa querela, é
a de Christian Laval e Pierre Dardot, os autores da Nova Razão do
Mundo. Insistindo no “caráter ao mesmo tempo plástico e plural do
neoliberalismo”, ambos consideram o conjunto dos extremismos de direita
recentes “uma forma política original”, mas no interior do neoliberalismo,
forma que, para os dois autores, “combina autoritarismo antidemocrático,
nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada”. É o que eles
chamam de “novo neoliberalismo”11 a contrapor ao “neoliberalismo clássico” —
“metamorfose” cristalizada numa formação que é “a continuação da antiga, para
pior”, e que “se reforça pela própria hostilidade política que ela suscita”.
Completa a argumentação a recusa do rótulo “fascista”, dado o fato de que não
se tem nos novos extremismos nem
partido único, nem proibição de toda oposição e de toda dissidência, nem
mobilização e arregimentação das massas em organizações hierárquicas
obrigatórias, nem corporativismo profissional, nem liturgias de uma religião
secular, nem o ideal do ‘cidadão soldado’, totalmente devotado ao Estado total
etc.12
Encontra-se uma leitura que vai em sentido oposto à de Dardot e Laval no
livro de Ugo Palheta La Possibilité du Fascisme, France, la trajectoire du
desastre.13 É verdade que o autor se ocupa principalmente da França, dando
destaque ao ex-fn e às forças que o circundam, embora afirme não fazer dele o
núcleo (coeur) do seu ensaio. No entanto, ele observa que “a ameaça se exprime
numa escala bem mais vasta e se afirma em numerosos países”. 14 E acrescenta:
“O acesso ao poder de Donald Trump nos Estados Unidos, da Liga na Itália ou
de Narendra Modi na Índia, a política posta em prática por Victor Orbán na
Hungria, a radicalização da direita israelense, a aceleração autoritária
impulsionada por Recep Tayyip Erdogan na Turquia, ou ainda a ofensiva
reacionária das direitas brasileira, argentina e venezuelana” mostram que “o
desenvolvimento das forças neofascistas, ou de fascização das forças existentes,
estão presentes em numerosas sociedades”, 15 Palheta não confunde
neoliberalismo com fascismo, nem fascismo com autoritarismo. Por outro lado,
a “atualidade do fascismo” de que ele fala, é, se podemos dizer assim, a
atualidade de uma possibilidade, porém de uma “possibilidade concreta”. Não é
menos verdade que é a categoria do fascismo (ainda que possível), e não a do
neoliberalismo, que ilumina a análise que ele faz da extrema-direita francesa,
extensível, dentro de certos limites, à de outros países, como acabamos de ver.
Mas como justificar o emprego desse conceito, que pode parecer anacrônico ou
emanando de “preguiça” intelectual? Se, para Palheta, o fascismo poderia ser
definido
como um movimento de massa que pretende trabalhar para uma ‘comunidade
imaginária’ considerada como orgânica (nação, raça e/ou civilização) através da
purificação etno-racial, da destruição de toda forma de conflito social e de toda
contestação (política, sindical, religiosa, jornalística, artística)”, ele observa
imediatamente que a comunidade mística não precisa ser “necessariamente
racial, no sentido pseudobiológico (…) ela pode ser cultural. 16
Por outro lado, a ausência de outras características, por exemplo, do
espetáculo das “hordas de indivíduos desfilando de camisa marrom ou a passo
de ganso”,17 de que são ciosas as “interpretações restritivas do fenômeno
fascista”,18 não nos devem induzir ao erro. “O fenômeno fascista sempre foi
proteiforme. Ele já se apresentava em formas variadas no período entreguerras
e a sua ascensão seguiu trajetórias distintas.” 19 Hoje estamos de novo diante de
projetos de “regeneração nacional”, projetos que se ajustam às possibilidades
presentes de ação política, mas que não escapam do modelo nos seus traços
gerais e essenciais. “Há (…) qualquer coisa de irresponsável em se recusar a pôr
em paralelo o fascismo clássico e a extrema direita contemporânea.” 20 O
paralelismo é “útil e produtivo”. Se recusar a pensá-lo seria supor “que essa
extrema direita nada teria herdado do passado ou que as condições presentes
seriam a tal ponto inéditas”21 que toda continuidade teria sido eliminada.
Os argumentos dos dois lados são respeitáveis. Digamos que o melhor, num
caso, é mostrar que quase tudo que apareceu recentemente pode ser encontrado
na história do neoliberalismo. O mais forte do outro campo é talvez o de mostrar
a plasticidade do fascismo. Voltarei ao argumento, mas também aos argumentos
que sustentam a tese oposta. Na realidade, ainda que já se tenha escrito
bastante, e bem, a respeito do assunto — assimilar essa bibliografia é, aliás, o
primeiro desafio para quem se dispuser a tratar do tema — parece-me que se
pode e deve voltar a ele. Tentarei aqui seguir um caminho analítico que oferece
seus riscos e dificuldades, mas que talvez funcione, e com alguma originalidade,
caso seja possível recompor ao final os resultados obtidos pela análise.
Quais são os elementos do momento recente que poderiam extravasar o
quadro do neoliberalismo? Isto é, quais seriam as características encontráveis
nos movimentos, partidos e governos das extremas direitas contemporâneas
que poderiam resistir a toda tentativa de subsumi-los sob a rubrica
“neoliberal”? Esse seria o ponto de partida que implica, evidentemente, um
confronto entre a extrema-direita atual e o neoliberalismo na sua essência (se
ele tem uma) e na sua história, mas que se abre também a outras explorações.
Sem adotar por ora qualquer tese a esse respeito, me permito, entretanto, supor
que é válido introduzir na discussão as experiências dos anos 1930/40 do século
XX. Em outras palavras, cabe, penso eu, como exigência prévia pelo menos, um
trabalho de confronto entre a nova extrema-direita e os fascismos do século
passado. Finalmente, teríamos três referências: o fascismo, o neoliberalismo e a
extrema-direita atual. Trata-se, para começar, de pôr os três “em movimento”
para tentar dizer o que são e, na medida do possível, de que forma se
relacionam.
A meu ver, os elementos que poderiam representar uma ruptura no quadro
da história dos neoliberalismos podem ser organizados do seguinte modo.
Por um lado, há o que se chama de populismo, mas eu preferiria dar destaque a
dois elementos presentes no universo populista (embora não sejam exclusivos
dele): o que se poderia denominar como “ruptura da liturgia”, em particular da
“liturgia política”, e o que se poderia intitular “niilismo”. Outro traço é
certamente o nacionalismo. Vem em seguida o conservadorismo moral-
religioso. A acrescentar certas linhas no interior da política econômica (que
frequentemente coexistem (?) com a política neoliberal), como o protecionismo
e o “crony capitalism”, o capitalismo dos amigos, espécie de capitalismo
oligárquico a serviço da “família”. Também o culto e/ou uso da violência. E para
terminar, o autoritarismo. Tentemos analisar cada um deles. Por ora, tratar-se-á
só de descrevê-los e confrontá-los com a tradição neoliberal. O confronto com os
fascismos dos anos 1930/40 do século XX também se impõe, mas deixo isso
para mais adiante.

Elementos do populismo

Parece não haver conceito mais problemático, e sobre cujo conteúdo se trave
mais discussão, do que o conceito de “populismo”
Parece não haver conceito mais problemático, e sobre cujo conteúdo se trave
mais discussão, do que o conceito de “populismo”. Vários autores, entre os quais
um a que me referi (Ugo Palheta), propõem simplesmente que se abandone o
termo, que traria mais inconvenientes do que vantagens. Não é a minha opinião,
embora com isso não negue as dificuldades que oferece o manejo do conceito (o
fato de que se supõe, em geral, a existência de um populismo de direita e um de
esquerda já mostra a sua complexidade). Há nos populismos (o plural é melhor)
mais de um elemento, porém, em linhas gerais, eles se caracterizam pela recusa
de mediações, por exemplo, as do legislativo, do judiciário, entre o poder
(suposto “popular” — do partido, do líder) e o “povo”, definido de modo
impreciso e idealizado. E pela exigência positiva, que vem desse diktat negativo,
de um contato direto do poder popular com o povo. Porém, no quadro dessa
análise, eu gostaria de me concentrar em dois aspectos, que coloco sob a rubrica
do populismo. Há certa afinidade entre esses dois elementos, mas eles não se
confundem. Um deles é, aliás, muito mais “profundo” do que o outro. Mas o
outro, que parece se situar num plano mais superficial, é também essencial.
Me refiro, por um lado, ao estilo de linguagem e de atitude que certo populismo
inaugura: a do homem político de oposição e depois governante que emprega
uma linguagem de uma extrema grosseria, a mesma coisa podendo ser dita das
atitudes que toma antes e depois de se instalar no poder (pense-se
principalmente no caso Trump, mas ele não está isolado nisso, e antes dele teve-
se o exemplo pioneiro de Berlusconi). São os palavrões, as bravatas sexuais, a
pornografia escrachada e outras coisas que tais. Elas instauram uma ruptura do
que se chama às vezes de “liturgia”, para o caso do governante, de “liturgia do
poder”. Há aí uma ruptura importante, que, diga-se desde logo, é estranha,
completamente estranha até onde sei, à tradição do neoliberalismo.
O segundo aspecto, de ordem mais profunda, é a ruptura com certas
exigências fundamentais do discurso — exigências que em princípio valem
também para o discurso político — no que se refere à verdade. Esse traço, que
coloco também sob a rubrica do populismo, é, na realidade, bastante geral nos
extremismos de direita contemporâneos. Entenda-se: é claro que todos os
políticos mentem, da direita como da esquerda (suponho que, em geral, a direita
mente mais do que a esquerda, isso se pusermos entre parênteses as
degenerescências totalitárias de uma e de outra). Porém, a mentira que aflora
no discurso da extrema-direita contemporânea é de outra ordem. É a mentira
hiperbólica. Não se trata de afirmações que, de algum modo, fazem violência à
verdade. Trata-se da corrupção pura e simples da verdade. Esse elemento
representa uma revolução, e voltarei a ele mais adiante. Pode-se encontrar uma
teorização desse problema, principalmente, nos textos de Wendy Brown,
quando ela se ocupa do niilismo.22

Como pensar o populismo, e aqueles dois traços, em particular, na história do


neoliberalismo?
Como pensar o populismo, e aqueles dois traços, em particular, na história
do neoliberalismo? Não vejo, salvo erro, nada dessa ordem, por exemplo, no
pensamento de Hayek, mesmo que possamos desconstruir de maneira radical o
discurso dele e dizer que o resultado tem algo de monstruoso. Mas isso não
significa que ele ponha entre parênteses a diferença entre a verdade e a mentira.
Na história prática do neoliberalismo, há certamente momentos que podem ser
chamados populistas, a começar pelo estilo político de Reagan, “o grande
comunicador”. Mas se Reagan era, de certo modo, populista, nem o lado
debochado-pornográfico nem, aparentemente, o da mentira hiperbólica (pelo
menos no nível que ela atingiu no período mais recente) podem ser
encontradas, a meu ver, no registro de suas declarações e iniciativas. A ruptura
radical com a verdade, a que assistimos nos nossos dias e que é um elemento-
chave do novo universo político, não tem medida comum com a prática da
direita normal (tem a ver, sim, com o universo do fascismo, mas isso
discutiremos mais adiante). Entramos no mundo da “dupla verdade”, que tem
só um vaga relação analógica com a dupla verdade de certos medievais; estes
últimos queriam conciliar a razão com a fé, enquanto hoje se trata de liquidar a
razão através da (má) fé.
Nacionalismo

Pode-se falar de um neoliberalismo nacionalista? Observe-se que isto não é


exatamente o mesmo que falar de “nacionalismo neoliberal”.
Eis aí um dos dois traços mais salientes da nova ideologia. Ela é visível em
Trump, em Orbán, certamente, também em Kackzynski, em Salvini, em
Erdogan, e em quase todos senão todos os outros. Em geral, se enraíza numa
tradição histórica conservadora, de que me ocuparei mais adiante.
Em princípio, o nacionalismo vem em ruptura direta com a tradição neoliberal.
O neoliberalismo nasce pregando a derrubada das muralhas entre os Estados,
reivindicação libertária do ponto de vista do capital. E a liberdade de
movimentos do capital, até em nome dos direitos humanos (!) continuou a ser
uma das principais bandeiras do movimento.23 O corte é evidente.
A descontinuidade, aliás, foi assumida por figuras importantes da galáxia
extremista, a começar por Steve Bannon. Ele se assume pró-capitalismo, mas
critica sua variante neoliberal.24 Marine Le Pen vai no mesmo sentido e, mais
caracteristicamente, a sua dissidente de extrema extrema-direita, a sobrinha
Marion Maréchal também. A crítica do capital internacional, como ave de
rapina liberada pelos governos cosmopolistas, vai se tornando
um leitmotiv desses ativistas. O antiglobalismo vai, de resto, junto com o
populismo.25 Bem entendido, não se pode assumir sem mais o que eles pensam
sobre eles mesmos, mas o outro extremo, a desconfiança absoluta de que eles
acreditam naquilo que dizem acreditar também não ajuda. 26 Pode-se falar de um
neoliberalismo nacionalista? Observe-se que isto não é exatamente o mesmo
que falar de “nacionalismo neoliberal”. O que é substantivo e o que é adjetivo
importa.

Conservadorismo moral e religioso


Os clássicos do neoliberalismo têm em geral uma atitude de indiferença para
com a religião. E Hayek termina um de seus livros, A constituição da liberdade,
com um texto clássico, em que toma distância em relação aos
conservadores.27 O motivo religioso está presente na pregação de Reagan, e vai
reaparecer no Tea Party, mas não na de Thatcher (ou muito menos).
O conservadorismo religioso é um componente ideológico extremamente
importante da nova extrema-direita. Numa recente entrevista ao Figaro, Steve
Bannon, de certo modo o guru do movimento, fez questão de marcar esse ponto,
sobre o qual não havia sido perguntado. 28 A religião é, em geral, o cristianismo
— católico ou protestante. O papel do protestantismo evangélico é essencial,
mas o fundamentalismo católico não está ausente. Netanyahu joga com o
fundamentalismo judeu, mas esse fundamentalismo não tem um papel central
na sua carreira. Contudo, o judaísmo é incorporado aos fundamentalismos
cristãos: Bannon, e não só ele — Bolsonaro! —, falam em civilização judaico-
cristã. Curiosa recuperação do judaísmo, que, há menos de um século, era o
inimigo a destruir. No plano dos costumes, prega-se a proibição do aborto e do
casamento de pessoas do mesmo sexo. Conforme o caso, como no Brasil,
propõe-se a abstinência antes do casamento.
A esse respeito, vale retomar um texto de 2006 em que Wendy Brown
analisa a relação complexa entre o neoliberalismo e conservadorismo.
Na realidade, os termos da sua análise são o neoliberalismo e o
neoconservadorismo americano, grupo heteróclito que não reunia apenas a
extrema-direita religiosa, mas também outras tendências, formado
principalmente por ex-esquerdistas que propugnavam uma política
notoriamente expansionista-imperialista. Apesar disso, dado o peso que tinham
os fundamentalistas nesse conglomerado — e a importância que a autora lhes dá
— vale a pena se demorar na análise proposta. Ela se pergunta:
Como uma racionalidade expressamente amoral, tanto no nível dos fins como
no dos meios (o neoliberalismo), intersecta com uma racionalidade
formalmente moral e regulatória (o neoconservadorismo)? Como um projeto
que esvazia o mundo de sentido, que desenraiza e diminui o valor da vida e que
explora abertamente o desejo se cruza com um projeto cujo eixo é o
restabelecimento e a imposição do sentido, a proteção de certos modos de vida,
a repressão e a regulamentação do desejo?
E continua: “Como o apoio a uma governança fundada no modelo da
empresa e um tecido socionormativo de interesses egoístas rejeita ou se casa
com um tipo de governança construída sob o modelo da autoridade religiosa e
um tecido socionormativo de autossacrifícios e de lealdade filial, o próprio
tecido que é retalhado pelo capitalismo selvagem?”. 29 A questão, formulada há
uma década e meia nos eua, é perfeitamente atual em 2020. A convergência é
difícil, mas ela se estabelece. Wendy Brown observa que os dois movimentos
convergem no esvaziamento “dos princípios e pressupostos há muito associados
à democracia constitucional. A igualdade não é um valor que figure nem no
universo neoliberal, nem no universo neoconservador; pelo contrário, o
igualitarismo é concebido como um ‘apelo demagógico pérfido’” e, por caminhos
distintos, ambos entendem “a redistribuição como uma injustiça em relação às
classes médias”. Ainda segundo a autora,
além do igualitarismo, liberdades civis, eleições justas e o Estado de direito
também perdem o seu valor no ponto de encontro entre o neoliberalismo e o
neoconservadorismo, tornando-se instrumentos ou símbolos em vez de
tesouros, tornando-se, na verdade, totalmente dessacralizados, mesmo quando
eles são retoricamente empunhados como faróis da democracia.
O neoliberalismo não os exige, e a prioridade neoconservadora dada aos valores
morais e ao poder de estado os marginaliza.
A conclusão é a de que, apesar das divergências, a racionalidade neoliberal
facilita em ampla medida a implantação do neoconservadorismo, mesmo se este
“visa a limitar e complementar certos efeitos”30 daquele.
Em In the Ruins of Neoliberalism…, a autora radicaliza essa análise (e, nesse
sentido, a modifica) e explora o lugar que estaria reservado à ética religiosa nos
textos clássicos (ela assinala aí algumas referências à religião, mas em geral se
trata de afirmar que os clássicos criam um vazio a ser preenchido pela ética
conservadora e a religião). O argumento é sobretudo o de que a liquidação do
papel protetor do Estado tem necessariamente como contrapartida o
fortalecimento da família tradicional, e também da filantropia individual.
Voltaremos a isso nas conclusões desse tópico.

Economia
A política econômica da nova extrema-direita não é sempre muito simples de
interpretar.
A política econômica da nova extrema-direita não é sempre muito simples de
interpretar. Claro que o neoliberalismo está presente, ver por exemplo a
orientação do ministro brasileiro da economia (um outro problema é saber se
Bolsonaro está sempre contente com isso): privatizações, austeridade, desmonte
da legislação social etc. Elementos neoliberais também podem ser encontrados
na política dos governos da Europa Oriental e nas práticas de Trump. Porém, há
certos elementos que destoam da vulgata neoliberal. Entre eles, creio que há
dois mais evidentes: o protecionismo econômico (que vem ligado ao
nacionalismo) e o fenômeno do capitalismo de compadres (ou crony
capitalism), o da constituição de uma espécie de oligarquia capitalista
estreitamente ligada ao poder. O protecionismo é assumido por Trump, Orbán e
Modi. Le Pen também o defende. O fenômeno do crony capitalism é muito
visível na Europa Oriental, como no caso exemplar da Hungria. Orban
nacionaliza ou privatiza não conforme alguma filosofia mais alta, mas em
função dos interesses da sua família, família biológica, primeiro, mas também
família política. A tal ponto que na oposição húngara se construiu o conceito
de Estado Mafioso (Mafia State) para dar conta do que lhes pareceu ser um tipo
de Estado que não se encaixa em nenhum dos modelos da tradição 31.
O protecionismo econômico é estranho à tradição neoliberal, que esposa a tese
contrária, a da liberdade de movimento do capital. O capitalismo de compadres,
pode-se dizer, é um dos alvos importantes na crítica dos clássicos do
neoliberalismo. Eles pretendem defender o mercado mundial, não o interesse
deste ou daquele. E as vantagens que tais ou tais personagens podem obter pela
proximidade em que se situam em relação ao poder é tudo aquilo que existe de
mais condenável no interior da política e da ética neoliberal. Talvez se pudesse
acrescentar ainda certo populismo de estilo social, como o que à sua maneira
pratica Orban, ou o polonês Kaczynski. Como se sabe, os neoliberais (Hayek,
pelo menos) não são inteiramente infensos nem a seguros de saúde, nem ao
auxílio às populações mais desmunidas. Mas o estilo de “ajuda econômica”
proposto por um Kaczynski parece mais próximo de um populismo social do
que do auxílio admitido pelos ícones do neoliberalismo.

Violência
Há um outro aspecto a ser destacado. É a presença da violência (violência
direta, morticínio…) como prática política de pelo menos um dos governos da
atual constelação da extrema-direita. É o governo de Duterte, nas Filipinas.
A informação a respeito não é extensa (pelo menos aquela de que disponho),
mas se sabe que ele procede a matanças sistemáticas, em princípio contra os
traficantes de drogas, o que por si só já é grave, e não sabemos se ele fica por aí.
Outro caso é o de Bolsonaro. Ele tem uma relação muito particular com a
violência. Observo que se trata de um militar. Salvo erro, o único militar do
grupo. Para analisar a relação de Bolsonaro com a violência, é preciso ter em
conta a situação do Brasil a propósito desse tipo de problema. País que está
entre os recordistas mundiais no que se refere à taxa de homicídios. Bolsonaro
se valeu desse tema na sua campanha, mas através de uma duplicação da
violência. Ele pregou uma pretensa violência contra a violência, que não é muito
diferente da violência. Em termos práticos, passa-se das organizações
criminosas “tradicionais” às milícias, às quais Bolsonaro e sua família estão
ligados. O uso da arma — a chamada “arminha” — foi o símbolo da sua
campanha, no quadro da qual indicou expressamente a esquerda como o seu
alvo, ou pelo menos um dos seus alvos. Uma vereadora e líder feminista de
esquerda foi assassinada junto com o seu motorista, no Rio de Janeiro, por
milicianos muito ligados ao poder. O governo Bolsonaro dá carta branca à
violência contra os indígenas, que já existia sob os governos anteriores. E apoia
mais ou menos explicitamente os motins organizados pelos policiais militares.
O governo Erdogan é muito repressivo, mas aqui estou me concentrando mais
no fenômeno de uma violência “ilegítima” de Estado, isto é, uma violência que
se faz como que paralelamente ao poder de Estado, mais do que aquela que,
justa ou injusta — no caso, injusta — se faz como emanação direta do Estado, e,
em alguma medida, legitimado por ele.

Autoritarismo
Ao analisarmos a questão do autoritarismo, e da natureza do poder de Estado
nas formas atuais dos governos extremistas de direita, encaramos a questão que
é provavelmente a mais importante dessa sucessão de fenômenos. Deixo a
discussão detalhada desse ponto para mais adiante. Dou aqui indicações que,
até certo ponto são ainda relativamente gerais.
Todos os governos e movimentos que analisamos (Bolsonaro, Salvini, Le
Pen, Orban, Duterte, Kaczynnski, Trump, Modi, Erdogan) têm uma clara
inclinação antidemocrática, e pode-se dizer que, de forma direta ou indireta,
trabalham em favor de uma forma autocrática de poder. Como essa
característica situa as novas extremas-direitas em relação à tradição neoliberal
(teórica — Von Mises, Hayek, Ordoliberalismo, etc. — e prática — poderes
classicamente neoliberais: Reagan e Thatcher)? Diante das tendências
autoritárias de governos cuja política econômica se supõe “neoliberal” (o que, de
resto, como já vimos nem sempre é um fato), costuma-se evocar a atitude mais
do que ambígua dos ícones do pensamento neoliberal sobre a democracia.
Arrola-se principalmente as viagens de Hayek e de Friedmann ao Chile de
Pinochet, e as declarações do primeiro de que prefere ditaduras liberais a
democracia sem liberalismo.32 Mas, antes disso, é preciso assinalar o elogio de
Mussolini por Von Mises em 1927. 33 Porém, o caso extremo, bem menos
conhecido (porque foi voluntariamente ocultado), embora se trate de uma
tomada de posição que não foi aprovada por outras grandes figuras do
movimento, incluindo Hayek e Mises, foi o apoio que o ordoliberal Wilhelm
Röpke deu aos governos racistas da África do Sul e da Rodésia (posição que, por
outro lado, marcava uma ruptura com as suas convicções
anteriores).34 Aproximando-se então da extrema-direita americana, Röpke
afirmou que os negros da África do Sul estavam “num estágio de
desenvolvimento que exclui a verdadeira integração política e espiritual com os
brancos altamente civilizados, e atualmente são em tal número que ameaçam se
sobrepor aos últimos, que são, nesse momento, os defensores da ordem política,
cultural e econômica”.35 É verdade que a posição de Röpke provocou uma
ruptura no movimento (ela projetou, aliás, a fundação de uma associação
paralela, alternativa à Societé du Mont Pélérin). Mas a aventura de Röpke nos
interessa por duas razões. Por um lado, porque ela foi só o caso mais extremo de
uma deriva não só radicalmente antidemocrática do neoliberalismo, mas
também racialista. A posição dos neoliberais mais moderados, ortodoxos,
digamos, não sendo racialista, foi, entretanto, até a condenação das sanções
contra os Estados racistas (Friedman e Hayek), senão à condenação do sufrágio
universal nesses países (Friedmann e outros) 36. Assim, a história das relações
entre os Estados racistas e o neoliberalismo não se esgota com o caso Röpke.
Por outro lado, porque, mesmo que Röpke tenha sido um dissidente, cuja
tomada de posição não foi aceita pelos demais, 37 isso mostra, se se pode dizer
assim, certas potencialidades teóricas e práticas do movimento neoliberal.
Ou, se disserem que vou longe demais com o argumento: a aventura de Röpke
tem interesse porque até certo ponto ela se antecipa ao que está acontecendo
nos nossos dias. Ao tomar aquela posição, Röpke foi, em boa medida, um
precursor dos iliberais dos nossos dias. Como diz Slobodian, ele propôs a
reunião do projeto neoliberal com o conservadorismo tradicional, 38 o que viria a
se tornar um movimento efetivo no plano mundial meio século depois.

Para além do caso africano, a atitude dos neoliberais em relação à democracia


foi sempre ambígua.
Para além do caso africano, a atitude dos neoliberais em relação à
democracia foi sempre ambígua. Eles não se declaram
antidemocratas.39 Entretanto, eles acrescentam tantos “ses” que fica evidente
que os neoliberais têm sérias reticências em relação ao regime democrático.
De uma forma mais geral, há o temor do governo “das massas” e também da
luta de interesses40 (o que poderia parecer, à primeira vista, paradoxal). Existe
finalmente a atração pelo “governo forte”41 capaz de conter a instabilidade
gerada pela soberania popular (noção que eles taxam de “metafísica” 42). Assim,
se Hayek aprecia a democracia, porque ela permite transições de poder sem
violência, ele teme o impacto do voto popular sobre as leis eternas do mercado
mundial.43
Diante de um tal panorama, não foi difícil ler a trajetória dos atuais
governos e movimentos iliberais como se ela representasse uma expressão bem
típica da filosofia neoliberal. Quando se aponta o que há, digamos, de
profundamente autoritário na política de um Bolsonaro ou de um Orban, para
tentar contrapô-los a Hayek, Mises ou os ordoliberais, a resposta é sempre a de
que esse modelo já se encontraria no cerne da mensagem neoliberal. E, no
entanto, há aí, a meu ver, certo número de problemas, ou, preferindo, um
problema. Se mais do que zestos de autoritaritarismo podem ser encontrados,
como vimos, nos neoliberais, tanto nos pais fundadores, como nas gerações
subsequentes, a atitude deles parece se diferenciar de maneira bem nítida da
postura do extremismo direitista atual pelo fato de que, por mais que o
neoliberalismo desconfie da democracia, ou mesmo proponha soluções
autoritárias, pode-se dizer, entretanto, que o centro das suas preocupações não
é a instauração de um governo desse tipo, mas a defesa do mercado mundial.
Finalmente, a sua estrela polar é o mercado mundial, e não o governo
autoritário. Bem entendido, isso não quer dizer, como já vimos, que eles sejam
favoráveis ao laissez-faire (este não serve, porque, digamos, com as suas
melhores intenções, acaba prejudicando o mercado mundial, que, no fundo, é
frágil), nem inversamente que eles desprezem a política em proveito da
economia (a política lhes é certamente essencial, e é verdade que, nas suas obras
principais, Hayek fala muito mais de política e de direito do que de economia),
mas significa que eles nunca abandonam o seu norte, que era originalmente, e
continua a ser até hoje, as leis do mercado mundial. Ora, poderíamos dizer em
sã consciência que essa é a filosofia de um Orban ou de um Bolsonaro, de um
Erdogan, de um Salvini, de um Duterte, provavelmente também de um Trump,
sem falar em Le Pen etc.? Não, de forma alguma, a meu ver. Todos esses
personagens são cultores do governo forte e conservador, tendo em vista o
próprio governo forte e conservador. Não são cultores do mercado mundial.
A relação é inversa. Bem entendido, eles aderiram, mais ou menos, em muitos
casos, ao modelo neoliberal (talvez seria melhor dizer, em parte, ou em alguns
casos), mas o acento tônico não está aí, mas no projeto político e ideológico.
Assim, cada vez que se aponta o que me parece representar o essencial do
projeto de Orban, de Bolsonaro, de Erdogan, ou de Modi, a resposta chega
rapidamente: “mas Hayek apoiou Pinochet, Friedmann também, Von Mises
flertou com o fascismo” etc etc. Muito bem. Mas não estamos falando de Hayek,
falamos dos iliberais dos nossos dias. Vamos estudar esses objetos tais como
eles se apresentam. Se necessário, falaremos também de Hayek, mas não
transformemos Hayek num biombo que nos impossibilita analisar com rigor o
que o fenômeno iliberal representa. De certo modo, trata-se de percorrer não o
caminho do neoliberalismo como política econômica à sua efetivação como
projeto geral de governo, mas do contrário: trata-se de percorrer e entender o
caminho que leva os autoritários iliberais de suas convicções políticas e
ideológicas ao neoliberalismo (quando e até onde isso acontece). Assim, quando
dizemos Orban ou Bolsonaro, examinemos Orban ou Bolsonaro, depois
invocaremos Hayek e Mises, quando e se necessário. Deixo claro, de resto, que
com isso não subestimo nem certo tipo de presença — veremos qual — nesses
governos e movimentos, nem muito menos a própria realidade, “maciça”, do
movimento neoliberal, cuja existência alguns pretendem negar (!).

Notas
1. Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism, the rise of antidemocratic politics in the west, Columbia University
Press, 2019, p. 2. ↺
2. A afirmação de que ele é “o modo de existência do capitalismo contemporâneo” parece excessivo. Ela se encontra em
Alison J. Ayers e Alfredo Saad-Filho, “Democracy Against Neoliberalism: Paradoxes, Limitation,
Transcendence”, Critical Sociology, 41 (4–5), p. 603, citado por Damien Cahill & Martijn Konings, Neoliberalism, Polity
Press, Cambridge (UK) e Medford (USA). 2019 (2017), p. 19. ↺
3. Pierre Dardot e Christian Laval, La Nouvelle Raison du Monde, essai sur la société néolibérale, Paris, La Découverte,
2009, pp. 13, grifos dos autores. Para definir a “racionalidade neoliberal“ — remetendo, entre outras passagens de
Foucault, aos textos bem conhecidos sobre o neoliberalismo de Naissance de la biopolitique (Paris, Seuil/Gallimard,
2004) — Dardot e Laval se valem da noção foucaultiana de “governamentalidade" (que tem uma conotação mais vasta
do que a de um simples modo de governar). ↺
4. Idem, ibidem, p. 457. ↺
5. Wendy Brown, op. cit., pp. 17 e 18. ↺
6. Ver, por exemplo, Laval e Dardot, La Nouvelle Raison du Monde…, op. cit., pp. 10–13, especialmente ; Brown, In The
Ruins…, op. cit., p. 63 ; Cahill & Konings, Neoliberalism, op. cit, p. 28 e s. Quinn Slobodian, Globalists, the end of
Empire and the Birth of Neoliberalism (Cambridge, Massaschusets, London, England, Harvard University Press,
2018), passim. ↺
7. Uma análise profunda e detalhada da histórica teórica do neoliberalismo pode ser encontrada no livro de Quinn
Slobodian, Globalists, the end of Empire and the Birth of Neoliberalism. op. cit. ↺
8. A dimensão jurídica também é essencial à concepção de Hayek (é o mínimo que se deve dizer). Discute-se o quanto
ele se aproxima da escola de Freiburg (há autores que se recusam a fazer a distinção). Há, entretanto, diferenças: por
exemplo, o lado tecnologizante dos freiburgianos. ↺
9. Sobre o problema da relação entre os neoliberais e a União Europeia, ler o livro recente, muito importante, de Thomas
Biebricher, The Political Theory of Neoliberalism, Stanford (California), Stanford University Press, 2018. ↺
10. Slobodian, op. cit., p. 268. ↺
11. Grifo meu. ↺
12. Pierre Dardot e Christian Laval, “Anatomie du noveau néolibéralisme”, in Réflexions & Échanges Insoumis, 2 de
junho de 2019, publicado anteriormente no número 41 de Contretemps. Texto redigido para servir como avant-propos à
tradução inglesa do livro Ce cauchemard qui n’en finit pas, livro dos mesmos autores, publicado pelas edições La
Découverte (Paris), em 2016. O grifo é dos autores — trata-se de referência a uma expressão do historiador italiano
Emilio Gentile. ↺
13. Ugo Palheta, La Possibilité du Fascime, France, la trajectoire du désastre, Paris, La Découverte, 2018. ↺
14. Idem, ibidem, p. 52. ↺
15. Idem, ibidem, p. 53. ↺
16. Idem, ibidem, p. 31. ↺
17. Idem, ibidem, p. 244. ↺
18. Idem, ibidem, p. 39. ↺
19. Idem, ibidem, p. 244. ↺
20. Idem, ibidem, p. 42. ↺
21. Idem, ibidem, p. 43. ↺
22. Ver Wendy Brown, “Neoliberalism’s Frankenstein, Authoritarian Freedom in Twenty-First Century ‘Democracies’”,
in Wendy Brown, Peter Gordon e Max Pensy, Authoritarianism, three inquiries in critical theory, Chicago e Londres,
The University of Chicago Press, 2018, p. 26–29 e Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism, the rise of
antidemocratic politics in the west, New York, Columbia University Press, 2019, capítulo 5, p. 161 -188. ↺
23. Sobre a quebra das barreiras, ver o capítulo 1, “Um mundo de muralhas” do livro, citado, de Slobodian.
Um simpatizante da escola chegou a montar uma maquete da Europa, com os países cercados por muralhas de tamanho
proporcional às exigências da sua legislação alfandegária (ver a foto da maquete na página 38 do livro de Slobodian).
A representação, em três dimensões, ou em duas, correu mundo. Sobre o delicioso tema dos “direitos humanos do
capital", sobre o qual é obrigatório voltar, ver o capítulo 4 do mesmo livro, “Um mundo de direitos”. ↺
24. [Nota Arthur: não havia nenhuma indicação clara sobre essa referência. Isto é, havia um asterisco ao lado da frase,
como em alguns outros lugares, mostrando que essa informação estava baseada em alguma referência, e que Ruy queria
explicitá-la. Tudo leva a crer — dado o momento em que o artigo foi escrito, o conteúdo ao qual a nota se refere e a
nossas conversas com Ruy — que se trata de uma entrevista dada por Bannon ao jornal francês de direita Le Figaro,
entrevista que também é usada mais adiante. ↺
Ver : "Les peuples n’ont pas besoin de moi pour détruire les partis au pouvoir dans leurs pays", por Alexandre
Devecchio e Etienne Campion, 11 de abril de 2019. Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/politique/steve-bannon-
les-peuples-n-ont-pas-besoin-de-moi-pour-detruire-les-partis-au-pouvoir-dans-leurs-pays-20190411 (acessado em
31.08.2020).
Nessa entrevista, ao ser perguntando sobre sua opinião acerca da Escola de Chicago, Bannon responde : “Eu não
acredito no modelo neoliberal. Claro, sou favorável a uma parte do capitalismo, mas sob a condição de que seja um
capitalismo real, um capitalismo prático”.]
25. “(…) não se trata de afirmar que o neoliberalismo é onipotente. Desde a crise financeira global de 2008, os chamados
movimentos populistas da esquerda à direita se multiplicaram e tomaram como alvo muitas das instituições descritas
(…) [por exemplo, o GATT, e o OMC, o fmi etc]. (…) o próprio globalismo passou da condição de termo obscuro de
análise acadêmica para alvo do opróbrio direitista, ajudando a alimentar a campanha do candidato vitorioso ao posto de
maior poder no mundo. Os globalistas, definidos (quando o são) como a combinação cambiante e algo obscura da elite
financeira, política e acadêmica se tornam frequentemente os bodes expiatórios de tudo o que prejudica o corpo político,
e são vistos como espectros de uma identidade perigosamente desligada das preocupações do povo comum”
(Slobodian, op. cit., p. 25). ↺
26. Ugo Palheta define o problema de maneira muito lúcida (ele se refere à ideologia "fascista", mas a questão pode ser
generalizada): “Impõe-se (…) encontrar um ponto de equilíbrio entre a indiferença em relação à ideologia fascista, que
proíbe se interrogar sobre a persistência ou as transformações de um "projeto" fascista (…) e a focalização exclusiva na
ideologia, que pode levar a aceitar sem mais (prendre au mot) o que os fascistas dizem sobre o que eles são, sobre o que
eles fazem e sobre os seus objetivos, ou pelo menos a não manter distância em relação aos discursos que pronunciam ou
que pronunciaram” (La Possibilité du Fascisme…, op. cit., p. 32–33). ↺
27. Friedrich Hayek, Postscript “Why I am not a Conservative”, in The Constitution of Liberty : the definitive edition,
editado por Ronald Hamowy, The Collected Works of F. A. Hayek, volume XVII, The University of Chicago Press, 2011
[1960], p. 517–33. ↺
28. [Nota Arthur: Ver a entrevista, já citada, de Bannon ao Le Figaro, “Les peuples n’ont pas besoin de moi pour
détruire les partis au pouvoir dans leurs pays”, por Alexandre Devecchio e Etienne Campion, 11 de abril de 2019.
Disponível em: https://www.lefigaro.fr/vox/politique/steve-bannon-les-peuples-n-ont-pas-besoin-de-moi-pour-
detruire-les-partis-au-pouvoir-dans-leurs-pays-20190411. Em certo momento, falando de sua trajetória, Bannon diz que
foi criado na tradição católica e, a respeito de geopolítica, faz questão de usar a expressão “Ocidente judeu-cristão”.] ↺
29. Wendy Brown, American Nightmare: Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization, Political Theory,
Vol. 34, No. 6 (Dec., 2006), pp. 692–693. Para a edição francesa: Wendy Brown, Le Cauchemard Américain,
néolibéralisme, néo-conservantisme, et dé-démocratisation, in Les Habits neufs de la politique mondiale,
néolibéralisme et néo-conservantisme, tradução de Christine Vivier (com Philippe Mangeot e Isabelle Saint-Saëns),
prefácio de Laurent Jeanpierre, introdução (avant propos) inédita, de Wendy Brown, Paris, Les Praires Ordinaires,
2007, p. 95. ↺
30. Idem, ibidem, p. 111–3. ↺
31. É a teoria elaborada por Bálint Magyar, politico de direita republicana e sociólogo. Ver Bálint Magyar, Post-
Comunist Mafia State, tradução inglesa de Bálint Bethlenfalvy, Ágnes Simon, Steven Nelson e Kata Paulin, Budapeste e
New York, Ceu Press, en associação com Noran Libro, 2016. E mais recentemente, Bálint Magyar e Júlia Vásárhelyi
(ed), Twenty-Five Sides of A Post-Communist Mafia State, tradução inglesa de Bálint Bethlenfalvy, Steven Nelson, Kata
Paulin, Ágnes Simon, Anna Szemere, Robert Young, Frank T.Zsigó, 2017. ↺
32. Ver a respeito Slobodian, op. cit., p. 277: “Referindo-se a Pinochet, Hayek disse que ele ‘preferiria um ditador liberal
a um governo democrático carente de liberalismo’ e que ‘é possível para um ditador governar de um modo liberal’ —
com a especificação de que isto seria apenas ‘um arranjo provisório de transição’". Ver também, Biebricher, op. cit., p.
74. Na opinião de Biebricher, “[Friedmann] parece ter sido menos favoravelmente inclinado à forma do regime [chileno]
do que Hayek. Entretanto, ele ofereceu assessoria econômica em uma carta para Pinochet, a acrescentar os outros
“Chicago Boys”, ou os que foram treinados em Chicago, os quais tiveram um papel vital na implementação das reformas
econômicas” (Biebricher, op. cit., p. 232, n. 5). As declarações de Hayek não são tiradas de um texto do economista, mas
de uma entrevista que deu ao jornal conservador chileno El Mercurio, em 1981 (ver Biebrecher, op. cit., p. 74).
A principal referência bibliográfica de Biebrecher a respeito da questão, que deu origem a uma polêmica — os defensores
do neoliberalismo tentando limitar o alcance das intervenções dos dois ícones da escola — é o artigo de John
Meadowcroft e William Ruger, “Hayek, Friedman, and Buchanan: On public life, Chile, and the Relationship between
Liberty and Democracy“, Review of Political Economy 26 (3), 2014, que Biebrecher considera equilibrado. ↺
33. Ver Slobodian, op. cit., p. 277 : “As afirmações de Hayek lembram tanto a discussão de Röpke sobre a “democracia
ditatorial” em 1940, como a observação de Mises em 1927 de que ‘o fascismo [italiano] e movimentos similares que
visam ao estabelecimento de uma ditadura estão cheios de boas intenções e a sua intervenção, por ora, salvou a
civilização europeia. O mérito que, com isso, o fascismo ganhou para si, viverá eternamente na história’”. Slobodian cita
ainda um texto muito revelador de von Mises, texto que é de 1922: “O conjunto de nossa civilização baseia-se no fato de
que os homens sempre tiveram êxito em derrotar o ataque dos redistribuidores” (ib.). ↺
34. Ver Slobodian, op. cit., p. 150. ↺
35. Idem, ibidem, p. 152–3. ↺
36. Idem, ibidem, p. 178. ↺
37. Hayek escreveu a parte final da Constituição da liberdade — “Porque não sou um conservador” — explicitamente
contra Russell Kirk, um dos líderes da extrema-direita americana com quem Röpke se associou. Ver Slobodian, op.
cit., p. 172. ↺
38. Ver Slobodian, op. cit., p. 167 e 150. ↺
39. Idem, ibidem., p. 81. Cf. ibidem, p. 85. ↺
40. Ver Biebricher, op. cit., p. 86. ↺
41. Ver a perspectiva do ordoliberal Eucken, em Biebricher, op. cit., p. 87. ↺
42. Ver Biebricher, The political theory…, op. cit., p. 82. ↺
43. Deixo de lado a análise da utopia política proposta por Hayek na sua trilogia Direito, Legislação e Liberdade. 

Revolução conservadora e neoliberalismo


parte 2
Ruy Fausto

Nota editorial:
Era conhecida a meticulosidade com que Ruy trabalhava seus textos.
À exaustão, procurava aparar cada detalhe, de forma e conteúdo. Ainda que
não estivesse pronto, o texto que ora apresentamos já estava em estágio muito
avançado e havia sido planejado pelo próprio Ruy para publicação na 2ª ou
3ª série do primeiro número da Rosa. Por conta disso, decidimos — com a
autorização e concordância de sua família — editá-lo para publicação.
O texto começou a ser pensado em meados de 2019. Depois de uma longa
pesquisa, Ruy redigiu a primeira versão em dezembro do ano passado (há
uma indicação precisa a respeito do dia 22 de dezembro). No entanto, pelas
notas ao final e por nossas conversas, sabemos que ele trabalhou nesse texto
até o final de abril de 2020.
Partindo dessa última versão, revisamos o texto, checamos as referências,
conferimos citações e explicitamos as fontes quando estavam esboçadas ou
não tinham sido apontadas. Também verificamos as traduções, fazendo as que
se encontravam apenas indicadas. É importante frisar: o texto encontra-se
quase idêntico ao que encontramos. Não há, com nossa edição, nenhum tipo
de mudança substancial, que altere suas teses, seu formato ou mesmo seu
estilo.
— Arthur Hussne Bernardo

Isabella C. Reiche.
A presença de todos esses elementos lança certamente muitas dúvidas a respeito
da validade da tese de que estamos diante de uma variedade, mesmo se uma
variedade bastante “especial” de neoliberalismo. A relação da atual extrema
direita com o neoliberalismo é, entretanto, inegável. O problema é saber que
relação é esta. Uma pista nos é lançada já pelo título do livro de Wendy
Brown Nas ruínas do neoliberalismo, a ascensão da política antidemocrática
no ocidente (grifo meu). Longe de serem elas mesmas um neoliberalismo, as
atuais extremas direitas nascem da ruína deste… Yascha Mounk, em O povo
contra a democracia vai no mesmo sentido. Entre as condições do
aparecimento das formas políticas atuais da extrema direita estão o desemprego
e a desigualdade, mas estas são, em parte pelo menos, consequências
nefastas das práticas de governo neoliberais. 1 Valeria a pena se deter no livro de
Mounk. Ele pode servir de base (mas o utilizarei criticamente) para retomar o
conjunto dos problemas anteriores, e depois avançar introduzindo também o
outro polo da controvérsia, o confronto com os fascismos.
Para Mounk, as “origens” das formações políticas e governamentais de
extrema direita que encontramos hoje residem em três elementos: as condições
econômicas, a que me referi, a questão da identidade e uma revolução
tecnológica.2 A revolução tecnológica — a Internet e as redes — dá as bases
técnicas dos fenômenos de tipo populista. Ou talvez até mais do que isto.
A revolução tecnológica nos meios de comunicação, que se supunha
democrática ou favorável à democracia, deu a palavra menos ao “povo” do que à
“multidão”. A possibilidade da intervenção de “todos” liberou menos a palavra
do povo em termos de reforma, ou de revolução social, do que os impulsos mais
primitivos de violência e de intolerância (mais precisamente, liberou-se também
a palavra democrática, mas, nos últimos tempos esta última vem ofuscada pelos
reflexos de agressividade e intolerância). A ruptura da liturgia e o niilismo tem
certamente a ver com esse elemento. Ambos teriam sua origem na revolução
tecnológica, ou ela simplesmente sobredetermina práticas sociais em
desenvolvimento? E essas práticas vêm dos porões da sociedade civil, ou se
originam nos projetos e na palavra dos líderes? O potencial próprio das novas
tecnologias aparece no fato de que seus efeitos negativos (embora haja também
os positivos) são mais ou menos universais. A vulgaridade de certas redes
francesas não é muito menor do que se pode encontrar no Brasil. Mas,
evidentemente, outros fatores pesam, pelo menos em termos de
sobredeterminação. Tenho a impressão de que é em relação à liquidação da
liturgia que a nova tecnologia tem um papel mais determinante. O niilismo é um
fenômeno mais complexo, e também, em geral, mais antigo. É preciso se
debruçar sobre o seu significado. Em termos históricos, ele tem qualquer coisa a
ver com a sofística grega, pelo menos com o discurso de certos sofistas tal como
eles aparecem na versão de Platão. Sem entrar aqui em considerações mais
precisas sobre o significado da sofística (fenômeno de significação, sem dúvida,
complexa, e para a análise do qual me falta maior competência), parece-me que
foi o primeiro momento em que apareceu uma espécie de discurso da violência e
do cinismo, e de ruptura com a exigência de verdade. No fundo, seria um
discurso à margem das querelas entre as posições políticas, digamos, “normais”
da cidade (a menos que eu esteja idealizando essas últimas). Esse momento está
no lado populista dos Trump ou dos Bolsonaro. Não se trata de mentir, de
falsificar dados, ou de apresentar argumentos mais ou menos sofísticos, a
empreitada é mais radical. Trata-se de pôr em dúvida a própria ideia de
verdade.
O outro aspecto (além das condições econômicas) é a questão da identidade.
Ela se liga, entre os elementos que arrolei mais acima, com o nacionalismo e
com o conservadorismo religioso. A tese de Yascha Mounk, em O povo contra a
democracia, é de que há uma espécie de alternativa entre a democracia e a
tolerância étnica ou religiosa. Ele dá o exemplo da democracia grega que era
extremamente exclusivista. Não só as mulheres e os escravos não tinham
direitos cívicos, mas também os metecos. E a lei era bastante estrita. Ele utiliza
esse exemplo para iluminar o racismo dos brancos americanos e a rejeição dos
imigrantes pelos europeus (na Europa, não existia diversidade étnica
importante; na América, havia, mas uma etnia ou religião era a dominante, e as
demais “reprimidas ou escravizadas”). 3 A tese parece ter certa verdade, mas nos
perguntamos sobre seu alcance, pois parece haver alguma imprecisão no
argumento. Ao ilustrá-la ele dá o exemplo dos nacionalismos do século XIX, que
buscavam o autogoverno, mas eram, ao mesmo tempo, exclusivistas. 4 Só que aí
“governar a si mesmos” e “nação autogovernada” não significam, em princípio,
democracia, mas independência nacional. Porém, mais do que isto. O que quer
dizer Mounk: que quanto mais democrático um país, mais exclusivista? Não.
Mas, em todo caso, o exclusivismo deveria fortalecer a democracia e vice-versa.
Ora, o fenômeno a que assistimos frequentemente é o da decomposição tanto da
democracia quanto da tolerância. Diria que a tolerância aparece como um grau
superior de democracia, em direção ao qual ela caminha, sob um aspecto, e
contra o qual se insurge, por outro. Quero dizer que historicamente, em grandes
linhas, há um movimento que vai da democracia, como garantia dos direitos dos
nacionais, para um impulso de respeito pelos direitos dos outros povos (e, em
geral, a tolerância). Mas sem dúvida, há forças que agem no outro sentido, o de
impedir a passagem de uma democracia exclusivista a uma democracia mais
aberta. Creio que esse problema, como um outro mais geral que se encontra no
livro do Mounk, exigiria uma narrativa mais ampla tentando analisar as grandes
linhas de força que ligam a Revolução Francesa aos nossos dias. Para concluir
minha crítica a Mounk: talvez se possa resumi-la dizendo que ele extrapola para
a modernidade a alternativa Grécia-Roma (mais democracia, menos abertura;
menos democracia, mais abertura). A partir da Revolução Francesa, as coisas
parecem se colocar de uma forma uma pouco diferente. Pode haver democracia
e bastante abertura (Europa ocidental, até certa época) e fechamento sem
democracia.
Um ponto a levantar nesse contexto é o de que a recusa exclusivista por
parte não apenas de governos, mas também de certas populações, vem ligada a
preconceitos em termos de costumes. Esse aspecto parece ausente das
considerações de Mounk. Entre as origens do extremismo de direita
contemporâneo, creio que deveria ser incluído também esse fator. De fato, ele é
muito visível, e tem um peso específico no desenvolvimento daqueles
movimentos. Na realidade, houve uma liberação de costumes (cujas origens, por
sua vez, teriam de ser estudadas), liberação que, como se diz às vezes, foi muito
rápida e, em certo sentido, desvinculada de um progresso em outros planos.
As atuais extremas direitas representam uma espécie de backlash, de reação
contra aqueles progressos. Boltanski falou (em intervenção oral) de
“contrarrevolução sexual”, e tem-se a impressão de que se trata de um
fenômeno desse tipo.
Voltando ao livro de Mounk, nele não se encontra apenas uma tentativa de
analisar as origens do fenômeno que analisamos, mas de precisar a sua
natureza. Essa é a questão principal do livro. E isto corresponde à menção do
“autoritarismo” que fiz mais acima. Utilizando uma distinção que vem de Hayek
(e que foi retomada pelo politólogo Fareed Zakaria), Mounk diferencia
democracia e liberalismo, para caracterizar as novas autocracias como
“democracias iliberais”:
Mas hoje que as convicções dos cidadãos privilegiam o antiliberalimo e as
preferências das elites a antidemocracia, o liberalismo e a democracia entram
em choque. A democracia liberal, essa mistura única de liberdade individual e
de soberania popular, que durante muito tempo caracterizou a maioria dos
governos da América do Norte e da Europa ocidental, se rasga por dentro. No
lugar dela, aquilo a que assistimos é ao nascimento de democracias iliberais, ou
democracias sem liberdade, e de um liberalismo antidemocrático, ou liberdades
sem democracia.5
O esquema parece muito claro e convincente. Tem certa verdade, mas, a
meu ver, é só aparentemente rigoroso. Toda a questão é discutir o que ele
entende por “democracia” e o que ele entende por “liberalismo”. A democracia
aparece para ele como o poder que obedece à soberania do povo: “[…] os
populistas são democratas profundos: eles defendem com muito mais fervor do
que os políticos tradicionais a necessidade de que o demos esteja no
poder”.6 O liberalismo, por sua vez, defende as “instituições independentes” e as
“liberdades individuais”.7 Mas há ambiguidade no desenvolvimento das duas
noções. Para se dar conta disso, é preciso examinar precisamente os exemplos
que ele dá. Orbán seria iliberal, mas democrata. Democrata? Sem dúvida, ele
obteve maioria absoluta em certo processo eleitoral. E ele (também outros,
como Bolsonaro) faz constantemente apelo à vontade do povo e à legitimidade
que lhe dá o fato de ter sido amplamente eleito. Mas isto bastaria para que
pudéssemos qualificá-lo de democrata?
A vitória eleitoral de Orbán, como em outros casos, de novo, foi feita na base
de uma série de manobras, por exemplo, de conceder direito de voto a cidadãos
de outros países com ancestrais húngaros (Bolsonaro, por sua vez, usou de
todos os métodos, legais e ilegais para se fazer eleger. Curioso democrata).
Orbán se aproveita agora da pandemia do coronavírus para se atribuir plenos
poderes por tempo ilimitado, um verdadeiro golpe de Estado, cujo caráter
“democrático” poderia pelo menos ser discutido. Mas não temos aí as consultas
eleitorais pura e simplesmente fictícias. As eleições na Hungria atual, por
exemplo, têm, digamos, certo tipo de “verdade”. Mas elas são deformadas pelo
processo eleitoral e seus antecedentes (o que não impede vitórias da oposição,
como aconteceu em quatro capitais de países com governos mais ou menos
extremistas). Porém, é preciso bem definir em que consiste essa “deformação”, e
que papel ela tem no “funcionamento” do sistema. Em linhas gerais, como
muitos já assinalaram, tem-se governos que praticam (ou movimentos que
propõem) uma espécie de respeito pelo poder das maiorias eleitorais, mas
ligado a um desrespeito brutal, uma vez ganho o poder, pelas garantias que se
devem às minorias (reais, ou supostas como tais). De fato, a nova extrema
direita começa por obter uma vitória eleitoral (se podemos dizer assim). A partir
daí, faz praça do poder do povo, isto é, aproveita ao máximo a legitimidade
obtida com essa vitória, para intervir de forma brutal no conjunto da máquina
estatal, de forma a tornar impossível a alternância.
A forma pela qual o autor utiliza a noção de “liberalismo” também é
questionável. Em oposição à democracia tal como ele a concebe, os liberais são
aqueles que defendem não especificamente a vontade do povo, mas sim o
respeito às instituições. No caso considerado, o respeito por parte das maiorias
eleitas em relação aos direitos das minorias. Em última análise, a garantia da
alternância. A questão é muito antiga. Ela está no cerne das discussões
propostas por alguns dos pais fundadores da chamada revolução americana. É o
velho problema dos “pais fundadores” e também da tradição liberal: o do perigo
da “tirania da maioria”.8 O tema está também em Tocqueville, como se sabe.
Mais curiosamente, ele se encontra também em… Hayek. Basta consultar as
suas obras mais importantes, como a Constituição da liberdade. Só que o que
ele teme são as políticas sociais… O medo da tirania, no seu caso, é
essencialmente medo do welfare state! Em todo caso, é curioso observar essa
postura. E, como veremos, vale a pena explorar as suas implicações. 9 Mas no
caso presente, a “tirania das maiorias”, que é, na realidade, “tirania dos que
obtiveram uma vitória eleitoral” (e por isso mesmo é real e não mítica, como é,
por exemplo, o caso, na crítica hayekiana do new deal), serve à direta, não à
esquerda. E em alguns dos casos pelo menos serve especificamente ao
neoliberalismo… Veja-se o que aconteceu na Hungria, e de forma, até aqui,
ainda bem diferente, no Brasil. Obtida uma vitória eleitoral (no caso brasileiro,
em condições muito excepcionais, em vários sentidos), o poder instalado se
empenha em minar as instituições, tentando desmoralizar o parlamento, obter
maioria no Supremo Tribunal Federal (à maneira de como agiu Orbán na corte
suprema da Hungria), com uma linguagem dúbia em relação à democracia: ele
dá ênfase à sua legitimidade eleitoral (o povo nos escolheu e o povo é soberano),
ao mesmo tempo em que se empenha no processo de dominação dos outros
poderes pelo executivo, sem hesitar, inclusive, diante do elogio nostálgico da
ditadura militar dos anos 1960–1970. Vê-se o quanto essa forma autoritária (em
sentido genérico) se distingue dos governos que nascem de golpes militares.
Aqui a arma não são os tanques, mas, até certo ponto, a caneta.
Assim, os “liberais” seriam os defensores das instituições, e mais
precisamente, da alternância, diante da violência transgressiva de governos
eleitos por maiorias. Acontece que a palavra não tem só esse sentido no livro de
Mounk. É dito liberal também o tecnocrata que impõe a Tsipras, o dirigente da
esquerda grega, os protocolos econômicos das instituições internacionais — e,
evidentemente, seriam liberais também os tecnocratas dessas instituições. Isso
significa que o autor define os “liberais”, à maneira de Hayek, como os
defensores de uma liberdade que é também, ou principalmente, a liberdade do
capital. Mesmo falando dos tecnocratas e das políticas econômicas de
autoridade, não saímos da política. E, de modo correspondente no plano da
forma, não vamos além das identidades. Vê-se que há alguma coisa que não
funciona no esquema de Mounk.
Ao criticar esse esquema, já entramos na teorização geral dos fenômenos
que estamos estudando. Voltamos à discussão, nada secundária, sobre a
denominação, sobre o nome que se deve dar aos atuais movimentos, se for
verdade que eles merecem uma denominação especial. Acredito que é enganoso
conceder a esses regimes o epíteto de democracias iliberais. É supor que a
noção de “democracia” se esgota com o respeito pelas maiorias eleitorais.
O resto seria estranho a ela e deveria ser acrescentado. Nesse sentido, poderia
haver democracias totalitárias, segundo a concepção bem conhecida de Jacob
Talmon10 (não se trata de negar a ideia de que um igualitarismo absoluto gera
um poder totalitário, mas não creio que se deve considerar o primeiro como
“democrático”: a democracia implica no seu próprio conceito, equilíbrio e
limitação). Assim, não creio que a expressão “democracia iliberal” sirva para
designar os novos governos de extrema direita. A meu ver, a democracia é ao
mesmo tempo exigência de remeter o poder à maioria e respeito pelas
instituições e pelas minorias. Mas talvez se possa falar de “iliberalismo” a
propósito dos novos autoritarismos, se denominarmos a exigência do respeito
pelas “minorias”, exigência que é da democracia como exigência liberal (o
liberalismo, entendido assim, é “momento” da democracia). Em todo caso, o
termo “liberal” é ambíguo: o inglês “liberal” remete aproximadamente ao que
chamaríamos de “democrata”. Por outro lado, “liberal” designa o liberalismo
econômico. Minha impressão é que, retendo o sentido que tem a palavra na
realidade norte-americana — e na falta de uma melhor denominação —
poderíamos guardar o termo “iliberal” para designar as novas autocracias (com
o que não dizemos, absolutamente, que elas seriam “democratas”, mas
precisamente o contrário…). Então, na falta de um melhor termo, talvez se
pudesse guardar a noção de “iliberalismo” como designação. Teríamos aí uma
solução possível (ainda que muito imperfeita) do problema que mencionei no
início, e que é levantado por Wendy Brown, o de dar um nome ao fenômeno… O
que evidentemente não é uma questão secundária, ou puramente terminológica.
A outra possibilidade, diga-se de passagem, não sendo má, tem a desvantagem
de se tratar de um neologismo. De fato, se não utilizarmos os termos
“iliberalismo”, “iliberal”, teríamos de recorrer ao neologismo “democratura” (e,
para os seus representantes, mais pesado ainda: “democraturos”), isto é,
mistura de democracia e de ditatura. Ou ditadura que conserva formas
democráticas. Na falta de boas denominações, não creio que seja de jogar fora,
mas prefiro “iliberal”, e farei uso do termo nesse texto a partir deste ponto.
Chegamos assim a traçar um quadro geral do iliberalismo, através do qual,
creio eu, se torna muito difícil considerá-lo como simples avatar do
neoliberalismo. Mas tentemos primeiro recapitular o que incluímos nesse
quadro. O iliberalismo aparece como uma forma antidemocrática, cujas origens
têm alguma coisa a ver com as mudanças que se operaram na economia,
principalmente por causa do impacto do chamado neoliberalismo. Mas ele
também está ligado a uma crise de identidade das populações da Europa e
dos eua, levando-as a abraçar o nacionalismo e o moralismo religioso, que se
apresenta com traços populistas (niilismo, ruptura das liturgias) muito
alimentados pelas novas tecnologias da informação e que em muitos casos faz o
culto da violência e a pratica. Em termos de política econômica, esse
iliberalismo porta traços do neoliberalismo que se somam a outros que são
estranhos à tradição neoliberal, como o protecionismo econômico e o crony
capitalism. Aqui há que considerar não só os traços diferenciais do iliberalismo
em relação ao neoliberalismo, mas o conjunto das suas características. Na
realidade, creio que não há muito a indicar para além daqueles traços, senão a
sua ligação, que não deixo de reconhecer, mas que é complexa, com os
neoliberais. Se, nesses termos, o iliberalismo se afasta em boa medida do
neoliberalismo — digamos, o essencial é que se trata, a meu ver, de um outro
fenômeno —, seria preciso, conforme o nosso projeto inicial, compará-lo com os
fascismos do século XX.
Comparado aos fascismos, o iliberalismo (poderíamos e talvez devêssemos
falar também em iliberalismos) se apresenta algo assim como uma nova
constelação, que, entretanto, pertence à mesma galáxia dos fascismos dos anos
1920–1940: a galáxia das revoluções conservadoras. Desde já devo assinalar a
complexidade dessa comparação, pois os fascismos, como também os
iliberalismos, são muitos. O livro mais importante para descrever e teorizar
essas várias expressões é o excelente Anatomia do Fascismo, de Robert O.
Paxton.11 Na primeira constelação, a forma hegemônica acabou sendo o
nazismo, mas ela ganhou o nome genérico de “fascismo”, que é o da sua
primeira grande manifestação. Há o núcleo constituído pelo fascismo (em
sentido específico: o fascismo italiano), e o nazismo, alemão. Mas há outros
regimes cujas características se aproximam do nazifascismo, sem, contudo, se
identificarem com eles. Levanta-se evidentemente o problema de saber se
Franco, Salazar, Horthy, Antonescu e outros eram realmente fascistas (aliás, o
problema já se coloca a propósito do fascismo italiano: Arendt o separa do
nazismo, e não o considera um “totalitarismo”). A diferença entre eles, de um
lado, e o nazismo e o fascismo italiano, de outro, está numa muito menor
arregimentação das populações (não creio que se possa falar em não
arregimentação, então se imporia batizá-los apenas “autoritarismos”). Na
mesma linha vai uma intervenção menor na vida privada. Há além disso um
traço muito importante, que, tenho a impressão, foi pouco observado: os
fascismos ibéricos praticam religiões tradicionais e não as religiões seculares do
nazifascismo propriamente dito.12
No livro de Paxton, há certa hesitação prudente na caracterização desses
regimes. A resposta que ele dá é, entretanto, globalmente negativa (ele mostra,
por exemplo, como Franco neutraliza a Falange, e transforma seu poder em
ditadura não fascista baseada no exército, na Igreja, e nas forças econômicas).
Mas a sua resposta não é tão nítida como se poderia pensar. Creio que se
poderia chamar os regimes de Franco ou de Salazar de fascistas, embora neles
não encontremos todas as características do nazifascismo. Digo isso em parte
com base na ideia de que, embora admitindo que a análise particular desses
regimes não nos leva a reconhecer rigorosamente formas fascistas, em razoável
medida, eles faziam parte da “constelação fascista”, no sentido de que de uma
forma ou de outra (e mesmo se às vezes se manifestavam independentes)
giravam em torno dele. Sua dependência para com o campo total, que foi mais
estreita do que se pensa, impõe a caracterização, apesar das diferenças. O termo
“fascismo derivado” ou “fascismo secundário”, 13 que se encontram no livro de
Paxton, serviriam bem nesses casos. Fiz esse longo circunlóquio, porque parece
importante na comparação iliberalismo-fascismo dar um lugar particular aos
“fascismos derivados”.
Se a primeira constelação da galáxia — a galáxia se chama “revolução
conservadora” — apresenta estrelas de natureza e força bem variáveis, o mesmo
acontece com a segunda constelação. Aqui a força hegemônica não é mais o
nazifascismo (hoje existem ou existiram partidos autenticamente nazifascistas,
na Grécia, na Polônia e na Hungria, por exemplo), mas eles não são
hegemônicos, nem são os mais perigosos, como assinala Paxton. 14 A forma
dominante é hoje precisamente a do iliberalismo, ou da democratura. Forma
dominante que se encontra, por exemplo, na Hungria, mas que caracteriza
também o conjunto das manifestações da nova leva da revolução conservadora.
É nesse sentido que apesar das diferenças, as novas formas são funcionalmente
equivalentes ao fascismo clássico. De fato, Paxton fala em “equivalente
funcional”:
Armados de conhecimento histórico, estaremos capacitados para distinguir as
imitações desprezíveis [do fascismo], mas isoladas de hoje em dia, com suas
cabeças raspadas e tatuagens de suásticas, dos autênticos equivalentes
funcionais do fascismo, na forma de alianças maduras entre fascistas e
conservadores.
E ele acrescenta: “Se prevenidos, podemos nos tornar capazes de detectar a
verdadeira ameaça quando ela surgir”.15
De forma mais precisa, como se distinguem os “iliberalismos” dos
“fascismos”? Como se distinguem as duas constelações da galáxia
neoconservadora? Esse é talvez o momento mais interessante da pesquisa,
porque se se costuma indicar diferenças, em geral se fica num nível descritivo.
Comecemos retomando aqueles elementos que considerei como distintivos do
novo autoritarismo nas suas relações com o neoliberalismo: populismo
(niilismo e ruptura da liturgia), nacionalismo, violência, formas originais de
política econômica (protecionismo e crony capitalism), conservadorismo
moral-religioso, autoritarismo fundamental. Em que medida isso “já” se
encontra nos fascismos?
Referi-me aos traços propriamente populistas do iliberalismo: primeiro a
ruptura com a liturgia, o lado boçal, mesmo gangsteresco (ver Trump,
Bolsonaro, Olavo). O fascismo clássico teve muito disso. Hitler e Mussolini
aparecem como personagens que rompem com o protocolo, já pelas suas
biografias (pintor fracassado, boêmio; e professor primário, agitador). Pelo
menos o establishment alemão levou bastante tempo para adotar o pequeno
“cabo austríaco”. Quando ele finalmente chega ao poder, supunha-se que o
chanceler “fascinaria as massas (…) enquanto o vice-chanceler Von Papen
governaria o Estado”.16 Não foi isso o que aconteceu. Entre os iliberais é talvez
Trump que tenha provocado mais escândalo, com as suas tiradas obscenas e
machistas, bem absorvidas pelos seus partidários.
Quanto ao que chamei de “niilismo”, definindo-o como uma corrupção
radical da ideia de verdade, isso é típico dos fascistas clássicos, uma verdadeira
invenção deles. Como já observei, não se trata da prática da mentira, o que é
usual em vários campos, nem de aproximações e falsificações astutas, é muito
mais do que isso. Uma espécie de mentira hiperbólica, porque se choca
escandalosamente com a verdade. Assim, ao mesmo tempo em que começam a
perseguir sistematicamente os judeus, Goebbels denuncia nos seus discursos a
conspiração judaica. Hitler faz o mesmo. O discurso iliberal segue as mesmas
regras, ainda que num plano mais modesto quanto ao conteúdo. Bolsonaro jura
que o presidente da Organização Mundial de Saúde confirma as suas posições,
quando, na verdade, ele diz o contrário. Olavo de Carvalho fala de
cumplicidades de Barack Obama com o fundamentalismo islâmico etc. Num
plano maior, o discurso dos fascistas e o dos iliberais têm em comum uma
ruptura radical com a exigência de verdade. Diz-se o que convier, mesmo e
principalmente o mais absurdo. Isso assinala, sem dúvida, um parentesco
perturbador entre os dois. Diria que os iliberais “mentem à la Goebbels”, mesmo
se os seus objetos são, em geral, “menores”.
O nacionalismo que caracteriza todos ou quase todos os movimentos e
governos iliberais (Trump, Putin, Salvini, Le Pen, Bolsonaro etc.) era um
elemento essencial no fascismo clássico, embora o seu peso variasse de caso a
caso. Creio que o fascismo italiano foi mais nacionalista que o nazismo, pela
ênfase que ele dá ao novo renascimento da Itália (Hitler diz que o nazismo não é
exportável, que seria assunto entre ele e o povo alemão; 17 porém o biologismo
racista, como sublinha Arendt, e o movimento final, que assinala uma espécie de
ruptura com o próprio povo alemão, mostram como a nação era menos
fundamental para os nazis do que a raça). O nacionalismo está bastante
presente nos “fascismos derivados”. Deve ter sido mesmo o seu elemento
fundamental.
A violência é, bem entendido, um traço comum ao fascismo e a certas formas
do iliberalismo, ainda que não a todas, pelo menos no seu estágio atual de
desenvolvimento. Os dois governos em que o culto da violência e também a sua
prática (mas em níveis, apesar de tudo, por ora pelo menos ainda diferentes) são
os de Bolsonaro e de Duterte, nas Filipinas. Nesse último caso temos um
verdadeiro regime “de massacre”, de uma brutalidade inaudita. A violência se
manifesta muito marcadamente no regime fascista italiano, e evidentemente,
em forma paroxística, no regime genocidário nazista. Paxton observa que o
fascismo italiano foi mais violento que o nazismo no período anterior à tomada
do poder; depois da tomada, deu-se o contrário. 18 Mas o último episódio do
fascismo italiano, o da República de Salò, é particularmente sangrento
(Mussolini liquida até o Conde Ciano, seu genro), mas “mesmo assim, todo o
sangue derramado pela República de Salò não passou de umas poucas gotas, se
comparado ao que foi derramado nos dias finais do nazismo”.19
No plano econômico, aparece, apesar de tudo, uma diferença importante
entre os iliberalismos e o fascismo. Insisti nos traços não neoliberais que estão
presentes nas políticas econômicas dos governos iliberais. Mas as marcas do
neoliberalismo são, de qualquer modo, sensíveis (isso não permite definir o
iliberalismo pelo neoliberalismo: é preciso saber que peso, em seu projeto
político, tem a relação com o capital). Os fascismos eram bastantes estatizantes
(porém, segundo Paxton, Mussolini queria um Estado mínimo até
1925).20 O estatismo dos fascismos clássicos estava na regulação da economia e
nos obstáculos impostos ao comércio exterior. Porém, menos no final, os
capitalistas se acomodam bem ao novo sistema. 21 O crony capitalism, o
capitalismo oligárquico, a serviço dos “amigos”, tão visível na Hungria de hoje,
como também na Polônia, estava presente nos fascismos: vejam-se as vantagens
de que desfrutava Goering, chefe de partido e industrial. Os casos atuais
parecem ser, entretanto, de um tipo diferente. Para me ater apenas à Hungria,
sobre a qual se pode ter acesso a uma literatura importante, o crony
capitalism parece quase definir o regime. Um opositor ao regime de Orbán
inventou o termo “Estado Mafioso” (Mafia State)22 para exprimir a essência do
regime (Estado a serviço de uma máfia que controla a economia e os centros de
poder). A diferença é que precisamente o lado mafioso do Estado húngaro não é
um traço, ele representa o conjunto: não há um Estado fascista clássico por trás
disso. Em todo caso, a semelhança deve ser assinalada.

Os fascismos “derivados” estão estruturalmente ligados às formas e


instituições tradicionais da religião.
O conservadorismo religioso é um aspecto problemático, sobre o qual será
necessário voltar. Ele mais separa do que aproxima iliberalismo e fascismo.
O conservadorismo religioso aparece nos “fascismos derivados”, mas não,
propriamente, no fascismo nuclear, que, pelo contrário, se lhe opõe.
Os fascismos, conforme uma expressão que se tornou clássica, praticam uma
religião laica, e não uma religião tradicional (isso, apesar das acomodações com
a Igreja Católica a que Mussolini foi obrigado a fazer). Os fascismos “derivados”
estão estruturalmente ligados às formas e instituições tradicionais da religião.
Há outros elementos de diferenciação, como um grau muito menor de
arregimentação das populações e de invasão da vida privada. Isso é até certo
ponto comum com os fascismos derivados, mas em nenhum dos dois casos essa
arregimentação está ausente de forma absoluta, pelo menos se considerarmos
regimes como os da Hungria e da Polônia e potencialmente também o do Brasil:
pense-se nos projetos de Bolsonaro em matéria de educação.
Finalmente, o autoritarismo existe certamente no iliberalismo e no fascismo,
mas sob formas diferentes. Diria (contra Mounk) que os dois são
antidemocráticos, mas sob formas diferentes. O fascismo liquida de forma
radical as formas democráticas, o Estado de Direito. O iliberalismo a liquida de
forma sutil. Ele deixa subsistir a democracia — ou, antes, um dos componentes
dela, as eleições e o princípio majoritário, os quais subsistem, mais ou menos
livres, mas não em forma puramente fictícia. A diferença é importante.
Há outras: o fascismo é expansionista, conquistador, em ato, os governos
iliberais, talvez obrigados pelas circunstâncias, ou se abstém pura e
simplesmente dos projetos expansionistas, ou os alimentam (Putin, Orbán),
mas em formas, de qualquer modo, mais discretas do que Hitler e Mussolini.
Putin é o que foi mais longe no que se refere a isso, o que se vê em sua ocupação
da Crimeia e também em sua política no Cáucaso. Porém, até aqui trata-se mais
de recuperar territórios perdidos, e garantir a permanência dos que detém, do
que de guerras de conquista.
Poderíamos agora tentar uma síntese. Os iliberalismos não são estritamente
fascistas, mas guardam alguns traços deles e podem ser ditos “equivalentes
funcionais do fascismo”.23 Passamos então para um resumo das principais
diferenças. Elas parecem estar em três pontos: religião (ou moral e religião),
economia e forma de dominação política. Desenvolvendo esses pontos,
precisamos o que separa o fascismo do iliberalismo, que lhe é entretanto o
“equivalente funcional”. E mais adiante podemos reintroduzir o neoliberalismo,
para fazer a comparação fundamental que tem de ser de ordem triangular.
Tentemos agora fazer um balanço desse sistema de convergências e de
divergências entre o iliberalismo e o fascismo, de maneira a tentar uma
definição mais precisa do primeiro.

Os fascismos são as expressões paroxísticas e genocidas dessa tendência, no


universo do século XX.
Os iliberalismos, como os fascismos, pertencem ao gênero “revolução
conservadora” — a sua galáxia comum — porque pretendem lutar contra o
movimento de emancipação que se inicia com a Revolução Francesa, mas não
pretendem voltar ao passado. (Creio já ter dado as razões pelas quais, assim
como os fascismos, eles não se definem como movimentos pró-capitalistas,
mesmo se a sua política favorece o capitalismo). Conhece-se o significado do
conceito de “revolução conservadora” e do objeto que lhe corresponde.
A Revolução Francesa enfrenta inicialmente uma crítica que tem como ideal as
antigas instituições. Esse o sentido das filosofias reacionárias de momento pós-
revolução. Mas bastante cedo essa volta ao passado se tornou ilusória, e,
digamos, as forças conservadoras pensam em um projeto de reação no registro
do progresso, de certo modo. Não reação diante da revolução. Mas uma outra
revolução diante da revolução, uma contrarrevolução que se pretende
revolucionária. E essa tendência passou a ser a dominante. Os fascismos são as
expressões paroxísticas e genocidas dessa tendência, no universo do século XX.
E é esse mesmo projeto que reaparece com os iliberalismos. Como os fascismos,
e em oposição aos movimentos conservadores, que sonham, sob uma forma ou
outra, com uma volta ao passado, eles querem incorporar a democracia ao seu
movimento. Mas os fascismos prestam homenagem à democracia, se se pode
dizer assim, ao mobilizar as populações a praticar uma política de massas, de
resto muito eficiente. A democracia que eles incorporam é a “democracia de
massas”. Nesse sentido, eles são alérgicos às formas democráticas, mesmo se as
utilizaram para chegar ao poder, e mesmo se, por outro lado, apelam
frequentemente para as formas de democracia direta, como o plebiscito. Já o
iliberalismo incorpora em alguma medida o individualismo democrático, na
medida em que, como vimos, a política econômica que ele propugna, revela
alguns traços do neoliberalismo (ainda que articulado com elementos que lhe
são estranhos ou opostos). Por outro lado, eles reivindicam, de uma forma
estranha ao fascismo, o princípio democrático do poder da maioria. Há nisso
um elemento que é também individualista. E há, em geral, uma relação para
com a democracia que é inteiramente diferente da que revelavam os fascismos.
Vimos, como eles se apoiam em vitórias eleitorais, de onde tentam tirar a sua
legitimidade, legitimidade que por sua vez é absolutizada de forma a bloquear
toda alternância. Nisso tudo, o iliberalismo procura uma forma caricatural de
aproveitar as novidades que a democracia introduziu. É essa exigência de
legitimidade democrática (mesmo se ela é ilusória — embora não fictícia) que
permite distinguir os regimes atuais dos fascismos “derivados”.

Os fascismos ficaram profundamente desmoralizados, e é impossível voltar a


eles, na sua forma original.
Assim, sob certo aspecto, essa nova vaga da revolução conservadora é mais
pró-capitalista e individualista do que a anterior. É mais moderna, se se quiser.
A aceitação oportunista do princípio do poder das maiorias eleitorais, e em
geral, o respeito — ainda que a médio termo se revele fictício — se dá pela
impossibilidade de retomar o modelo autocrático dos fascismos. Os fascismos
ficaram profundamente desmoralizados, e é impossível voltar a eles, na sua
forma original. Como esse aspecto está presente também em outra vertente do
iliberalismo, deixo o desenvolvimento desse ponto para algumas linhas mais
abaixo.
Mas se, sob certos aspectos o iliberalismo parece mais individualista, mais
pró-capitalista e mais moderno do que os fascismos, sob outros, se aproximando
dos “fascismos derivados”, ele é mais arcaico. Assim, como vimos também, a
política de costumes do iliberalismo é fundamentalmente conservadora, como
não era o fascismo, que até continha esse aspecto, mas combinando-o com
outros, e tolerando certas facilidades. O iliberalismo aparece, para alguns, como
uma “contrarrevolução sexual”. Os fascismos, apesar da perseguição aos
homossexuais (que entretanto desempenhavam papéis importantes no início do
movimento), não têm propriamente essa característica. E, principalmente, como
os “fascismos derivados”, os iliberalismos se comprometem com as religiões
tradicionais, não com as religiões laicas. A meu ver, temos aí um elemento
decisivo. Em relação ao núcleo nazifascista, o desaparecimento do aspecto
“religião secular” (e a correspondente adoção das religiões tradicionais, pelo
menos uma atitude simpática em relação a elas) é um dos elementos que
permitem efetuar a distinção. Essa recusa das religiões laicas, com o seu
cerimonial (a sagração das bandeiras, por exemplo), junto com a alergia ao
antidemocratismo brutal dos fascismos, se explica pela desmoralização que
sofreu o fascismo, apesar dos esforços dos seus defensores diretos ou indiretos:
As cópias-carbono do fascismo clássico, a partir de 1945, sempre pareceram ou
exóticas demais ou chocantes demais para conquistar aliados (…) O maior
obstáculo ao renascimento do fascismo clássico, após 1945, foi a repugnância
que ele veio a inspirar. Hitler provocou náuseas quando as fotografias repulsivas
da libertação dos campos de concentração foram publicadas. Mussolini
inspirava chacota. Paisagens devastadas davam testemunho do fracasso de
ambos. O corpo carbonizado de Hitler nas ruínas de seu bunker berlinense, e o
cadáver de Mussolini pendurado pelos tornozelos num deteriorado posto de
gasolina em Milão marcaram o sórdido fim de seu carisma. 24
Os novos revolucionários conservadores tiveram de tomar distância em
relação ao fascismo, que se transformou num álibi para eles (ver, por exemplo,
Olavo de Carvalho falando do fascismo. E, entretanto, há muitos elementos que
provam que ele está falando mal de primos-irmãos).
Em relação aos seus primos fascistas, os iliberalismos são, ao mesmo tempo,
mais modernos e mais arcaicos. É para essa combinação de traços opostos que
costuma chamar a atenção Wendy Brown, ao mesmo tempo em que a vê como
um desafio difícil para toda análise e explicação:
[…] curiosa combinação de libertarianismo, moralismo, autoritarismo,
nacionalismo, ódio dos Estados, conservadorismo cristão e racismo. Essas novas
forças reúnem elementos bem conhecidos do neoliberalismo (liberar o capital,
abandonar o trabalho, demonizando o Estado social, e o “político”, atacando a
igualdade, promulgando a liberdade) com [elementos] que lhe parecem ser
opostos (nacionalismo, reforço da tradição, antielitismo populista, e exigências
de soluções estatais para problemas econômicos e sociais). Eles articulam
virtude (righteousness) moral com uma conduta quase celebratoriamente
amoral e incivil. Eles sustentam a autoridade, ao mesmo tempo em que
praticam desinibição social pública e agressão, sem precedentes. Eles se
enfurecem contra o relativismo, mas também contra a ciência e a razão, e
rejeitam afirmações baseadas na evidência, argumentação racional,
credibilidade e responsabilidade (accountability). Desprezam os políticos e a
política ao mesmo tempo em que manifestam feroz vontade de poder e ambição
política. Onde estão eles?25
Os fascismos também eram combinações exóticas. A esse propósito, visando,
é verdade, principalmente o fascismo no poder, escreve Paxton:
O fascismo no poder consiste num composto, um amálgama poderoso dos
ingredientes distintos, mas combináveis, do conservadorismo, do nacional-
socialismo e da direita radical, unidos por inimigos em comum e pela mesma
paixão pela regeneração, energização e purificação da Nação, qualquer que seja
o preço a ser pago em termos das instituições livres e do Estado de Direito. 26
Entretanto, as duas sínteses não são idênticas, nem é idêntica a sua
consistência. Os fascismos parecem, e devem ser, na realidade, muito mais
consistentes do que os seus primos iliberais. Por que isso?
A tese que pretendo defender aqui é de que os fascismos dispunham de um
nó que, até certo ponto, reunia todas as notas mais ou menos compósitas e lhes
dava uma síntese suficiente: esse nó é a religião laica. Um conjunto de símbolos,
de rituais, de cerimoniais, que “colavam” os diferentes aspectos do movimento e
o consolidavam suficientemente. Mas foi preciso abandonar a religião laica.
As suásticas, fascios, os grandes rituais e cerimoniais fascistas, a sagração das
bandeiras, já não eram sustentáveis. Eles estavam ligados demais a um
massacre universal que provocava repugnância em todos os campos políticos.
Era preciso abandoná-los. E uma vez abandonados, restaram as religiões
tradicionais. Elas reaparecem, e se tornam elementos importantes, senão
decisivos, como nos “fascismos derivados”. Mas essa operação tem duas
consequências. Os ililberalismos abandonam um dos elementos articuladores de
um grande poder, apelando a forças que podem ter eficácia, mas que
dificilmente têm a energia de uma religião nova, e escandalosa, uma religião do
ateísmo. Por outro lado, eles introduzem no interior dos iliberalismos um
elemento claramente arcaico, que contrasta muito vivamente com o seu
modernismo sob certos aspectos individualistas (neoliberalismo,
“democratismo” eleitoral). Eu diria que o iliberalismo nos põe em contato com
alguma coisa como uma explosão da revolução conservadora. Os seus diferentes
elementos ganham autonomia, e agindo de concerto, ao mesmo tempo se opõe
entre si (isso já existia no fascismo, mas não na mesma escala: a religião laica
era um adesivo vigoroso que aparava as suas arestas).
Não sei se com isso avanço muito na descrição, senão na explicação, dos
iliberalismos, mas, comparados aos fascismos, esse aspecto me parece
relevante. Isso implicaria afirmar que, comparado ao fascismo, ele é mais frágil
e de sobrevivência mais problemática do que este último? Não necessariamente.
O compacto fascista levou a uma expansão aventureira que assinalou o começo
do seu fim. O iliberalismo só em alguns casos pode ser considerado
expansionista. Sua menor consistência o impede de trilhar esse caminho, pelo
menos na forma impetuosa dos seus predecessores? Difícil dizer. De qualquer
forma, é preciso se habituar às contradições internas dos iliberais para bem
entendê-los e bem combatê-los. Aqui, mais do que em qualquer outro caso, as
descrições e explicações unilaterais são desastrosas, porque perdem o seu
objeto.
Chegamos assim a alguns resultados. E também a alguns problemas. Claro
que desde o início poder-se-ia perguntar se os nove ou dez regimes e
movimentos arrolados têm algum tipo de unidade. Minha opinião é que eles
têm, apesar de tudo. Apesar das grandes diferenças. De fato, cada um exagera
um traço de um fenômeno global, e com alguma unidade, porque existem os
traços comuns. As ideias a que chego até aqui (ou em conclusão) são: 1) de que o
iliberalismo, relativamente aos fascismos, reúne elementos ao mesmo tempo
mais arcaicos e mais modernos. É mais arcaico por causa das relações mais
estreitas que tem com o conservadorismo moral e religioso (por isso, têm certa
afinidade com os “fascismos derivados”). Mais modernos porque têm um
compromisso maior com o individualismo. 2) Que a síntese iliberal é muito
mais problemática e frouxa do que a síntese fascista, o que se pode explicar pela
falta da religião laica. Esta falta se explica, por sua vez pela repugnância que, de
qualquer forma, a violência genocidária dos fascismos, provocou.
Talvez possamos tentar um quadro geral das diferenças (menos do que uma
teoria) entre neoliberalismo, fascismo e iliberalismo. Seria preciso, ainda uma
vez, tentar desenvolver, mesmo se esquematicamente, o sentido do processo
histórico que liga os nossos dias à Revolução Francesa. Digamos que o que
iremos encontrar nesse processo são interversões, principalmente a interversão
do conceito de liberdade (que é a palavra de ordem e a máquina de guerra dos
nossos liberais). Creio que deveríamos partir da ideia de que a Revolução
Francesa lega três bandeiras principais: liberdade, igualdade e propriedade.
A liberdade teve um duplo destino: em parte foi se ampliando, implicando
direitos não previstos no ideário revolucionário (de minorias sexuais, por
exemplo). Por outro lado, a liberdade se interverteu em não liberdade quando
se tornou liberdade para as forças econômicas dominantes. O destino da
igualdade foi o da passagem da igualdade formal perante a lei à exigência de
igualdade social. Exigência que, bem entendido, foi impedida o tanto quanto
possível pelas forças conservadoras. Assim, o lance dos inimigos da
emancipação foi o bloqueio da liberdade como liberdade formal. Finalmente, a
propriedade, que, sob forma limitada, pode ser considerada um direito
autêntico, passou por uma hybris, tornou-se a propriedade invasiva do capital, e
em particular, do grande capital (mais do que interversão, há ai uma espécie
de hybris, mas se poderia falar também em interversão. En passant, utilizo aqui
categorias dialéticas para pensar esse trajeto. A falta desses elementos dialéticos
é que condena mais ou menos as tentativas de pensar esse processo, ver, por
exemplo, Mounk, mas um pouco, quase todos os autores). A minha suposição
geral, tanto marxista quanto tocquevilliana, é a de um movimento
emancipatório crescente, de certo modo, mas ao mesmo tempo, da realidade de
poderosas forças de bloqueio da emancipação (sob a forma da regressão ou da
revolução conservadora). Historicamente, as forças antiemancipatórias
abandonam progressivamente sua perspectiva pura e simplesmente reacionária
em proveito da conservação na revolução. Talvez se deva falar em três
tendências, no lado antiemancipatório. O reacionário (Bonald, de Maistre), os
revolucionários conservadores (provavelmente Nietzsche, mais tarde, sob
formas muito diferentes, os fascismos), e um movimento antiemancipatório do
centro, como o de Burke, e os Whigs.
Em relação aos conceitos arrolados, e às trajetórias deles, neoliberalismo,
fascismo e iliberalismo, se ordenariam mais ou menos assim. O neoliberalismo,
como teoria que se caracteriza fundamentalmente pela defesa do mercado e do
capital (mesmo se, a rigor, não é partidária do laissez-faire, porém em nome dos
interesses do capital), é um movimento que, de forma típica, quer evitar a
passagem da igualdade formal à igualdade social ou real. É um bloqueio da
igualdade. Não creio que haja lugar aqui para divergência, mas não vou
desenvolver muito esse ponto. Ele caberia numa crítica geral do neoliberalismo,
e de Hayek em particular. Basta dizer que a expressão “justiça social”,
simplesmente não tem sentido para Hayek (a crítica atinge o nível da repressão
linguística, à maneira dos positivas lógicos, embora Hayek não seja positivista
lógico). Na medida em que os outros dois movimentos se opõem às lutas
emancipatórias das classes trabalhadores, isso também pode ser dito para
ambos, mas é mais claro e característico a propósito do neoliberalismo. Porém,
igualmente importante, ou mais importante do que isso: o neoliberalismo
encarna muito bem a hybris da propriedade (a propriedade que se tornou
propriedade do capital), e a interversão da liberdade, que se torna liberdade
para as forças sociais dominantes. Liberdade do capital, não dos cidadãos ou
dos indivíduos. As duas palavras-chave do neoliberalismo (talvez com a
concorrência, mas ela vai junto) são “liberdade” e “propriedade”. Os neoliberais
se afirmam o tempo todo como os defensores da “sociedade livre” (que inclui e
privilegia, talvez, o direito de concentrar uma ampla parcela da riqueza social), e
a noção de propriedade, como a defesa dela, estão no centro do seu projeto (ver,
entre outras coisas, suas relações para com Locke).
O fascismo não se apresenta como defensor da liberdade, nem da igualdade.
Entretanto, ele incorpora alguns projetos de proteção social e, assim, ele não é
inimigo estrito da igualdade social, como o neoliberalismo, mas o é da igualdade
formal. Nesse sentido, o fascismo se define muito bem como inimigo da
liberdade e da igualdade. Inimigo de 1789. Ver as referências de Goebbels, e
certamente de outros líderes nazis, à Revolução Francesa, como uma espécie
de debacle que precisa ser revertido. Quanto à propriedade, os nazis não se
apresentam preferencialmente, digamos, como defensores da propriedade,
embora o fossem. Sobre isso, ver no livro de Paxton o desaparecimento, ou
quase desaparecimento, progressivo das reivindicações de tipo reformista ou
anticapitalista que pontuavam os primeiros programas fascistas e nazistas. Eles
se tornam simples verniz. O anticapitalismo fascista, escreve Paxton, é
“seletivo”.27

Finalmente, o iliberalismo ataca a liberdade, mas incluindo, e talvez


principalmente, as novas liberdades, os novos direitos, que surgiram depois
da Revolução (direitos das minorias etc.)
Finalmente, o iliberalismo ataca a liberdade, mas incluindo, e talvez
principalmente, as novas liberdades, os novos direitos, que surgiram depois da
Revolução (direitos das minorias etc.). As liberdades clássicas são também
negadas, mas de forma mais sutil do que faz o fascismo. A defesa da hybris da
propriedade (a defesa do capital) está presente de forma variável na prática dos
iliberais, mas não de forma tão pronunciada como no neoliberalilsmo. A recusa
da igualdade social é também menos evidente (embora seja real), na medida em
que pelo menos alguns iliberalismos propõem medidas que vão na direção da
proteção social (muito misturada com os objetivos nacionalistas): vantagens
para as famílias nacionais na Hungria, na Polônia ou na Itália, por exemplo.
Nesse quadro, teríamos, em resumo: neoliberalismo como defensor da
liberdade (incluindo, principalmente, a sua interversão) e da propriedade
(incluindo, principalmente a sua hybris). O fascismo não se apresenta como
defensor nem da liberdade, nem da igualdade, nem da propriedade (embora
tenha defendido, e muito, a propriedade). Mas ele é o movimento anti 1789, por
excelência. Como o fascismo, o iliberalismo é autocrático (mas em forma
atenuada), nesse sentido, dado essencial, ele é um inimigo da liberdade. Mas ele
se caracteriza bastante por atacar as liberdades, os direitos, “advenientes”. Ele
não é tanto o anti 1789, ele é o inimigo do movimento de emancipação que se
lhe segue, e inimigos da modernidade em geral. Sua relação para com a
propriedade não é tão entusiástica como a dos neoliberais, nem tão “pálida”,
como, apesar de tudo, era a relação que os fascistas tinham para com a
propriedade.
De certo modo, teríamos um movimento anti-1789, um outro mais
precisamente contra a boa herança de 1789, e o terceiro a favor da hybris, do
bloqueio e das interversões dos princípios de 1789. Respectivamente, fascismo,
iliberalismo e neoliberalismo. O fascismo é autoritário-coletivista.
O neoliberalismo não é autoritário e é individualista. A originalidade do
iliberalismo é ser autoritário e individualista. Ele é, de resto, moderno-arcaico,
em geral com prevalência do elemento moderno sobre o arcaico. Em suma, o
iliberalismo quer incorporar o conservadorismo (que o neoliberalismo
renegava) e o individualismo (traço geral da modernidade, que eles leem, claro,
à sua maneira). Assim, o iliberalismo exprime a convergência do autoritarismo e
do capitalismo selvagem. Isso é decisivo. Termina de vez a suposta cumplicidade
entre democracia e capitalismo.
Mas isso não nos autoriza a entender os iliberalismos como meras
variedades do neoliberalismo. Essa ideia é fruto de uma concepção estreita do
sentido da história mundial desde a Revolução Francesa. Pensa-se esse processo
apenas como história do capitalismo. Na realidade, ele é história do capitalismo
e história da democracia (e, entenda-se, nos dois casos há um “anti” a
acrescentar: história do anticapitalismo e história da antidemocracia). Já havia
observado que a tese de que os iliberalismos são um avatar do capitalismo
representa um erro semelhante ao de pensar que os fascismos são pensáveis
simplesmente como momentos da história do capitalismo, ou avatares do
capitalismo. Eles não são exatamente isto. Há que introduzir um recuo. Eles são
essencialmente antidemocráticos (na sua definição, nem capitalistas, nem
anticapitalistas). O mesmo ocorre com os iliberalismos. Precisamos de uma
outra visão do processo histórico que preenche o espaço histórico que vai da
Revolução Francesa aos nossos dias. Foi a concepção que defendi desde há
bastante tempo quando insisti em que as formações capitalistas dominantes são
na realidade, rigorosamente, “democracias capitalistas”. Num texto que está no
meu O Ciclo do Totalitarismo,28 mas que já fora publicado nove anos antes na
revista Lua Nova29 (peço desculpas ao leitor, mas tenho de fazer uma longa
citação):
A experiência do totalitarismo, e também exigência de ordem teórica, aliás
estimuladas por aquela experiência, obrigam a repensar a ideia de que o termo
“capitalismo” — em geral, a simples subsunção sob a noção de “modo de
produção” — possa caracterizar suficientemente as sociedades (industriais ou
semi-industriais) contemporâneas. Porém (quando o regime é democrático), a
noção de “democracia”, por si só, também não permite uma caracterização
satisfatória. A meu ver, num duplo movimento de crítico do marxismo e do
liberalismo, seria necessário caracterizá-las como democracias capitalistas,
ainda que essa denominação não satisfaça a nenhuma das duas tendências. Uns
contestarão a legitimidade da noção de capitalismo. Seria melhor dizer algo
como “sociedade de mercado”, o que, de resto, para eles — embora a
identifiquem com o capitalismo — estaria incluído na ideia de democracia.
Os outros ou insistirão na tese de que democracia (como qualquer forma
política) seria simples “momento” do modo de produção capitalista, ou dirão
que, entendida como “verdadeira democracia” esta está ausente do capitalismo
e, mais do que isto, o contradiz. Há bastante verdade na última afirmação, a de
que, sob certo aspecto (a saber, tendencialmente), capitalismo e democracia se
contradizem. Mas essa razão não invalida a denominação, se o objeto que ela
designa é ele mesmo contraditório. Bem entendido, trata-se de uma tendência,
porque, de fato, e dentro de certos limites, os dois coexistem. A restrição indica
que essa coexistência tem um preço. Enquanto houver capitalismo, a
democracia é, necessariamente, imperfeita, O que não impede que, a despeito
de sua imperfeição — e em determinado sentido, por isso mesmo, já que a
reivindicação da democracia é inseparável da exigência de aperfeiçoá-la — ela
seja um bom ponto de partida, talvez mesmo o ponto de apoio fundamental
para qualquer projeto socialista.30
É no interior dessa concepção que fenômenos como o fascismo e o
iliberalismo são compreensíveis. Eles como que atravessam as duas histórias.
Eles mesmos pertencem mais à história da democracia (mais precisamente, da
antidemocracia), porém a história do capitalismo envolve a sua aparição, e sem
ela (embora o capitalismo não os defina) eles também são incompreensíveis.
(Tendo desenvolvido por meios próprios a noção de democracia capitalista,
vim a encontrá-la depois nos excelentes escritos de Wolfgang Streeck. Ele fala,
na realidade, em “capitalismo democrático”, mas emprega também a expressão
“democracia capitalista”. Qual das duas fórmulas é a melhor? Por ora, deixo a
resposta em suspenso. É possível que cada uma delas tenha os seus méritos).
Para terminar, só me restaria insistir em que, se critiquei tanto a redução
dos iliberalismos a uma figura do neoliberalismo quanto a classificá-los, mesmo
se com certas precauções, de “fascistas”, nem por isso subestimo as razões de
uns e de outros, e, em geral, a importância de evocar, nas atuais circunstâncias,
tanto o neoliberalismo quanto o fascismo. O neoliberalismo está um pouco por
todo lado, e a sua presença aflora uma vez mais com a pandemia do
coronavírus. O delírio em torno das exigências de economia por parte do
Estado, a tendência a ver cada gasto estatal, principalmente em despesas
“sociais”, como um gasto mais ou menos abusivo (“gasto um dinheirão louco
com isto”, disse Macron), mostram bem que é inútil negar as responsabilidades
do neoliberalismo na crise terrível que atravessamos (acabo de ler um texto
falsamente “savant”, em que o autor polemiza com Barbara Stiegler que
levantara o argumento e a acusação; para ele, o neoliberalismo não tem culpa —
teriam sido as “negligências” — e, aliás, o neoliberalismo — como o caldeirão na
fábula de Freud — nem mesmo existe. A propósito da existência do
neoliberalismo, não sei se o autor leu Hayek; eu li).
Quanto ao fascismo, pensemos, para dar um exemplo ao alcance da mão, no
caso Bolsonaro. O elogio das armas de fogo, que também existiu no fascismo, o
desprezo pelas vidas humanas — a indiferença diante de massacres é uma forma
atenuada de aceitar o genocídio —, o cinismo diante da verdade, o uso das cores
nacionais como cores características de uma indumentária partidária… Nesse
ponto, a hora da verdade do governo Bolsonaro foi o discurso, parafraseando
Goebbels, pronunciado por um ministro — o qual foi obrigado a se demitir por
pressão da embaixada de Israel. Goebbels com Wagner como música de fundo.
Nenhum de nós esperava uma tão espetacular revelação. O que mostra que, se,
apesar de tudo, o que temos lá não é pura e simplesmente fascismo, o fascismo
ronda por toda parte e é o segredo (porque o modelo clássico) dos novos
revolucionários conservadores. Assim, melhor falar em neoliberalismo e em
fascismo do que omitir os dois conceitos. Contudo, não se deve identificar, sem
mais, o iliberalismo com o neoliberalismo ou o fascismo. É preciso dar rigor às
análises, porque as imprecisões teóricas, mesmo pequenas, podem ter um preço
político muito alto.
Notas
1. Ver principalmente o capítulo 5, “A estagnação econômica”, na segunda parte do livro. “origens”. ↺
2. Ver Yascha Mounk, The People vs. Democracy: Why Our Freedom is in Danger and How to Save It. Harvard
University Press, 2018, p. 181. Ou, para a edição francesa: Le peuple contre la démocratie (trad. Jean-Marie Souzeau).
Éditions de l'Observatoire, 2018, p. 267: “Sustentei que havia três pontos principais sobre os quais o mundo
politicamente instável de hoje se distingue fundamentalmente do mundo politicamente estável de ontem: outrora as
democracias liberais podiam assegurar a seus cidadãos uma elevação rápida do seu nível de vida. Atualmente, elas não
podem mais. Outrora, as elites políticas controlavam os meios de comunicação mais importantes e tinham o poder de
excluirem as opiniões radicais da esfera pública. Daqui por diante, os marginais políticos estão livres para difundir a
mentira e o ódio. Finalmente, outrora, a homogeneidade dos cidadãos — ou pelo menos uma hierarquia racial escrita —
fazia parte integrante daquilo que mantinha unidas as democracias liberais. Hoje os cidadãos devem aprender a viver
numa democracia bem mais igualitária e diversificada”. ↺
3. Ibid., p. 169, ou, para edição francesa, Ibid. p. 248. ↺
4. Ibid., p. 163, ou, para edição francesa, Ibid. p. 241–2. ↺
5. Ibid., p. 14, e, para edição francesa, Ibid., p. 26 (grifos do autor). ↺
6. Ibid., p. 8, e, para edição francesa, Ibid., p. 18. ↺
7. Ibid., p. 11, e, para edição francesa, Ibid., p. 18. ↺
8. A respeito de como esse problema se coloca hoje com os novos autoritarismo, ver o livro de Steven Levitsky e
Daniel Ziblat, How democracies die. Utilizei a versão francesa: La mort des démocraties, tradução francesa de
Pascale-Marie Deschamps. Paris : Calman Levy, 2019. ↺
9. Para ele, são os Roosevelt e os Attle que desrepeitam as instituições e os direitos das minorias. Esses direitos
são, na realidade, os “direitos” do capital. Ironia da história. Hoje se desrespeita os direitos das minorias (ou pelo menos
dos derrotados em eleições, que não são sempre realmente minoritários) não no sentido suposto dos governos que
tentam por certos freios ao movimento invasivo do capital, mas precisamente para defender o capital. Tudo em nome de
uma política econômica que pelo menos toma de empréstimo alguns dos princípios do neoliberalismo, articulando-os
com outros estilos (e, às vezes, mais do que isso). ↺
10. Jacob Talmon. The Origins of Totalitarian Democracy. London: Secker & Warburg, vol. 1: 1952; vol. 2:
1960. ↺
11. Robert O. Paxton. The anatomy of fascism. New York: Alfred A. Knopf, 2004. Para a edição brasileira, ver:
Robert O. Paxton, A Anatomia do Fascismo, tradução de Patrícia Zimbres e Paula Ziembres. São Paulo: Paz e Terra,
2007. Há muitos outros livros importantes, mas não tantos livros notáveis como esse. Também não poderia deixar de
citar a biografia de Hitler escrita por Ian Kershaw, que é muito mais do que uma biografia: Hitler, 1896–1936, Hubris,
e Hitler, 1936–1945, Nemesis. ↺
12. Esse dado deveria ser analisado mais profundamente: entre outras coisas, ele pelo menos complica muito os
esquemas do Gauchet sobre o itinerário histórico das religiões. ↺
13. As expressões “fascistas secundários” e “fascistas derivados” são de Philipe Burrin, La Dérive Fasciste, Doriot,
Déat, Bergery : 1933-1945. Paris : Seuil, 1986, pp. 451–454, citado por Robert O. Paxton, The anatomy…, op. cit.,
p. 279, ou, para edição brasileira, p. 190. Mas tomei e modifiquei as expressões, dando-lhes um outro referente. No
sentido original, Burrin se refere aos colaboracionistas franceses como Doriot e Déat. ↺
14. Ibid., p. 205, ou, para edição brasileira, p. 334. ↺
15. Ibid., p. 175, ou, para edição brasileira, p. 288. ↺
16. Ibid., p. 128, ou, para edição brasileira, p. 213. ↺
17. Ibid., p. 111, ou, para edição brasileira, p. 187. ↺
18. Ibid., p. 136, ou, para edição brasileira, p. 225. ↺
19. Ibid., p. 169, ou, para edição brasileira, p. 278. ↺
20. Ibid., p. 186, ou, para edição brasileira, p. 305. ↺
21. Exemplo característico é o da Farben que tem de abandonar o comércio exterior, mas se converte com êxito
em fornecedor do armamento alemão. Ver Ibid., p. 146, ou, para edição brasileira, p. 242. ↺
22. Ver Bálint Magyar e Júlia Vasárhelyi (eds), Twenty-five sides of a post-communist Mafia State, 2017; e Bálint
Magyar, Post-Communist Mafia State: The Case of Hungary. Budapeste e Nova York: Ceu Press e Noran Libro,
2016. ↺
23. A expressão volta a aparecer em: Robert O. Paxton. The anatomy…, op. cit., p. 204, ou, para edição brasileira,
pp. 333–334. ↺
24. Robert O. Paxton, op. cit., p. 175, ou, para edição brasileira, p. 288. ↺
25. Wendy Brown, In the ruins of Neoliberalism, the rise of antidemocratic politics in the west. Columbia
University Press, 2019, p. 2. ↺
26. Robert O. Paxton, op. cit., p. 207, ou, para edição brasileira, p. 336. ↺
27. Ibid., p. 10, ou, para edição brasileira, p. 25 ↺
28. Ruy Fausto, O Ciclo do Totalitarismo. São Paulo: Perspectiva, 2017. ↺
29. Ver meu artigo “Em torno da pré-história intelectual do totalitarismo igualitarista”, revista Lua Nova, São
Paulo, Cedec, nº 75, 2008. ↺
30. Ruy Fausto, O Ciclo…, op. cit., p. 77; Ruy Fausto, “Em torno da pre-história intelectual…”, art. cit., p. 147
( grifo meu introduzido na presente edição). ↺

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