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“caracteriza-se pelo emprego de cadeias de raciocínio”.


No que toca ao método de procedimento utilizado, o presente trabalho não se resumirá
em um único método, visto que, conforme preceitua Marconi3, “o Direito, dada sua amplitude,
utiliza vários métodos”. Levando em consideração, mais uma vez a delimitação proposta do
tema, e os objetivos traçados, tem-se que os métodos histórico, comparativo, monográfico e o
funcionalista serão de primordial utilidade para a execução do trabalho.
Já em relação às técnicas a serem aplicadas à pesquisa, lançar-se-á mão das técnicas
abrangidas pela documentação indireta, quais sejam, a pesquisa bibliográfica e a documental,
de maneira a realizar-se revisões bibliográficas, analises dos argumentos jurisprudenciais, bem
como o estudo dos próprios projetos e artigos de lei, e suas exposições de motivo. A técnica da
pesquisa documental será de grande importância na análise daquilo que se refere ao
estabelecimento das normas relativas à colaboração premiada, e a sua aplicação; afinal, nada
melhor do que a análise da própria lei e sua exposição de motivos para se refletir sobre sua
implementação no ordenamento jurídico; assim como a coleta de jurisprudências para analisar
a aplicação das normas estabelecidas.
Também a pesquisa bibliográfica se mostra imprescindível, já que, conforme preceitua
Lakatos e Marconi4, “sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que
foi escrito, dito, ou filmado sobre determinado assunto, inclusive conferências seguidas de
debates que tenham sido transcritos por alguma forma, quer publicadas, quer gravadas”, afinal,
“a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto,
mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões
inovadoras”.
Cumpre destacar ainda que foi por meio da pesquisa bibliográfica que se teve acesso às
teorias jurídicas relativas ao assunto, e às conclusões científicas já alcançadas.
Logo, o trabalho se utilizará do método dedutivo de abordagem; dos métodos histórico,
comparativo, monográfico e funcionalista de procedimento; e das técnicas de documentação
indireta, no caso a pesquisa documental e a bibliográfica.
Enfim, cabe introduzir o caminho que será percorrido por esta análise. Primeiramente,
abordar-se-á o contexto sociológico em que se insere a colaboração premiada, a partir da relação
entre o Direito Penal e a configuração da sociedade, observando as mudanças nesta

3
MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica: Para o curso de direito. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2001. p. 48.
4
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de Metodologia Científica. 5. ed.
São Paulo: Atlas, 2013. p. 183.
13

configuração que influenciaram o Direito Penal em sentido amplo, alcançando o processo penal.
Em seguida, será realizada a análise de como se insere a colaboração premiada no âmbito das
ciências jurídico-criminais, e da própria dogmática jurídico-criminal, o que se sustentará,
sobretudo, em constatar a colaboração premiada como materialização do processo penal como
instrumento de política criminal.
Por último, adentrar-se-á em definitivo na análise da fundamentação político-criminal e
nos aspectos da dogmática jurídico-criminal substanciais a colaboração premiada, passando por
seu desenvolvimento legislativo no Brasil; pela inauguração de um procedimento de
colaboração premiada pela Lei n. 12.850/13; e pela análise crítica deste procedimento em
relação às garantias constitucionais do processo, além de outros previstos pela legislação penal.
14

CAPÍTULO 1 – DIREITO PENAL E SOCIEDADE

1.1 A relação entre as transformações da sociedade e do Direito Penal

O Direito Penal está intimamente relacionado com a configuração da sociedade. Afinal,


na definição material do Direito Penal tradicional, este surge como forma de controle social.
Conforme preceitua Zaffaroni1, o controle social pode se dar por meios difusos (como
a família, a moda, os meios de massa), bem como por meios institucionalizados, os quais o
autor divide em não punitivos (como o direito privado), e punitivos. Nestes, o autor constata
uma nova divisão, entre meios formalmente não punitivos (ou com discurso não punitivo, como
práticas psiquiátricas) e formalmente punitivos (ou com discurso punitivo). O Direito Penal
(que em sua definição material representaria o que o autor chama de Sistema Penal)
representaria o meio de controle social institucionalizado formalmente punitivo. Portanto,
sendo esta a colocação do Direito Penal como meio de controle social, tem-se explícita a sua
interferência na sociedade, sem a necessidade de maiores demonstrações.
No entanto, a relação entre o Direito Penal e a sociedade se estende muito além da ideia
de sua função de controle social institucionalizado. Diante de vários outros aspectos, ele não só
interfere na sociedade como mero instrumento desta, mas sim oferece real orientação à
configuração da sociedade. Mais que isso, o Direito Penal atua na configuração central da
sociedade. Para ilustrar esta identidade, cabe buscar e demonstrar, de maneira breve, a Teoria
dos Sistemas, no desenvolvimento de Luhmann2, a qual, apesar de realizar uma análise
sociológica distante do Direito Penal, pode facilmente ser interpretada de modo a alcançá-lo.
Niklas Luhmann, em sua Teoria dos Sistemas, faz uma análise sociológica estrutural,
ou seja, analisa a sociedade no que se refere à sua estrutura. Grosso modo, nós, os seres sociais,
estamos imersos em um ambiente, o qual se mostra altamente complexo. Neste contexto, tem-
se o sistema social, o qual se faz para reduzir a complexidade do ambiente. Este sistema tem
como uma de suas características a autopoiesis3, o que indica, por conseguinte, qualidades tais
como a autoprodução e a autorregulação.

1
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. v. 1, 9 ed.
ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
2
Ver mais em: RODRIGUES, Leo Peixoto; NEVES, Fabrício Monteiro. Niklas Luhmann: a sociedade como
sistema. Porto Alegre: Edipucrs, 2012.
3
Em poucas palavras, o sistema autopoiético é aquele que tem a capacidade de produzir a si próprio. Ver mais
em: LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Traducción de Javier Torres Nafarrati bajo el cuidado
conceptual de Dario Rodrigues Mansilla y estilístico de Marco Ornellas Esquinca y de Rafael Mesa Iturbide.
1 ed. en español. México: Herder, 2006.
15

Dentro do sistema social, encontram-se vários outros subsistemas os quais cumprem


determinadas funções, que permitem o seu funcionamento como um todo.4 Entre esses
subsistemas, cabe citar o subsistema econômico, o subsistema cultural, o subsistema político,
bem como o subsistema jurídico. Na análise do subsistema jurídico é que se chega ao Direito
Penal, na figura de subsistema jurídico-criminal. Os subsistemas, no cumprimento de suas
respectivas funções, agem em verdadeira interação, de modo que eles estão em permanente
comunicação, ou melhor dizendo, em permanente e natural irritação.
O subsistema jurídico-criminal (e não só ele) cumpre, geralmente, a função de tratar das
irritações mais graves, e consequentemente mais importantes, do sistema social. Destarte, mais
do que uma forma de controle social institucionalizado formalmente punitivo, o Direito Penal
representa verdadeira identidade do sistema social 5, atuando na configuração central da
sociedade.
Portanto, ainda se utilizando a citada Teoria, o sistema social recebe influências do
ambiente (inputs), o que se reflete diretamente nos subsistemas, quanto mais no subsistema
jurídico, sendo os problemas mais graves também tratados pelo subsistema jurídico-criminal, o
que demonstra claramente o influxo da sociedade no Direito Penal, no que se refere a seus
problemas mais graves.
Entretanto, por óbvio, o subsistema jurídico-criminal fornece uma resposta, no
cumprimento de sua função (outputs), causando irritações nos outros subsistemas, bem como
no próprio sistema social e no ambiente. Dessa forma, o Direito Penal também influencia a
sociedade em sua configuração central, havendo, assim, uma verdadeira relação dupla entre
Direito Penal e a configuração da sociedade, com influxos diretos e indiretos, em ambos os
sentidos.
Realizando uma análise mais profunda da relação entre o Direito Penal e a sociedade
por meio da Teoria dos Sistemas, tem-se na obra de Jakobs que até mesmo mais que uma relação
direta, o Direito Penal é uma real parte da sociedade, havendo fundada impossibilidade de
separação entre ambos. Nas palavras do autor6:

Seja como for, a solução de um problema social por meio do Direito Penal tem lugar
em todo caso por meio do sistema jurídico enquanto sistema social parcial, e isso
significa que tem lugar dentro da sociedade. Portanto, é impossível separar o Direito
Penal da sociedade; o Direito Penal constitui um cartão de visitas da sociedade

4
LUHMANN, Niklas. In: RITTER, J. et al. (Org.). Histoisches wörterbuch der Philosophie, t. II, 1972 apud
JAKOBS, Gunther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional: tradução de Maurício
Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. p. 3.
5
JAKOBS, Gunther. op. cit., p. 4.
6
Ibid. p. 7.
16

altamente expressivo, igualmente, sobre a base de outras partes da sociedade, cabe


derivar conclusões bastante confiáveis sobre o Direito Penal.

Para ilustrar o Direito Penal como verdadeira identidade da sociedade, o supracitado


autor finaliza utilizando exemplos históricos, os quais bem refletem este raciocínio: “por
exemplo, que a pena máxima se imponha por bruxaria, por contar piadas sobre o Fuhrer ou por
homicídio caracteriza ambos, o Direito Penal e a sociedade”.7
Considerado o Direito Penal como parte e identidade da sociedade, conclui-se ainda por
uma relação de dependência recíproca entre um e outro. Nessa relação, caberia à sociedade
(sistema social) chamar o Direito Penal (subsistema jurídico-criminal) a tratar os novos e graves
problemas sociais, até que o subsistema jurídico como um todo atingisse a adequada
complexidade na regulação desses problemas. Por sua vez, ao Direito Penal cabe, pela via do
processo comunicativo, frisar à sociedade, nas palavras de JAKOBS, “que deve ter em conta
certas máximas que se consideram indisponíveis”.8
Logo, conclui-se que mais do que um instrumento de controle social institucionalizado
formalmente punitivo utilizado pelo Estado, o Direito Penal é verdadeira parte indissociável da
sociedade, caracterizando-se como verdadeira identidade desta, de forma a estabelecer-se uma
relação de dependência e influência recíproca entre ambos.

1.1.1 Direito penal no estado democrático de direito

Evidenciada a estreita relação entre a configuração da sociedade e o Direito Penal, resta,


contudo, um importante questionamento: qual é o limite dessa relação funcional e dependente
entre Direito Penal e sociedade em um Estado Democrático de Direito? Afinal, é fácil e
estampada a compreensão de que não pode a sociedade depender exclusivamente do Direito
Penal no tratamento de seus problemas, bem como não devem todos os problemas do sistema
social ser encarregados ao subsistema jurídico-criminal, em face de suas limitações em um
Estado Democrático de Direito.
Esse questionamento é fundamental no que se refere à análise do Ordenamento Jurídico
brasileiro. Abarrotado de tipos penais, o Sistema Jurídico-Penal se vê intensamente acionado
pelo Estado brasileiro, de forma a prejudicar seu próprio funcionamento.

7
JAKOBS, Gunther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional: tradução de Maurício
Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. p. 7.
8
Ibid. p. 8.
17

Antes de desenvolver a análise relativa ao Estado Democrático de Direito, é importante


ilustrar que sociedades diferentes terão, em consequência daquilo que foi dito no tópico
anterior, sistemas jurídico-penais diferentes, com princípios diferentes. Assim, utilizando-se do
exemplo original e já citado de Jakobs, uma sociedade abrangida pelo Estado de cultura nazista
terá um Direito Penal severo, em que se identifique sua identidade fortemente repressiva, no
qual se permitiria criminalizar a conduta de contar piadas sobre o Fuhrer.
Aliás, o próprio Jakobs reconhece o caráter político da decisão sobre os graus do
processo de criminalização, de forma que o Direito Penal até mesmo se torna impotente perante
as alterações políticas de valor. Assim, dar-se-á a limitação da atuação do subsistema jurídico-
penal a partir do subsistema político. Nas palavras do próprio autor9:

A decisão acerca de se se trata de um processo de criminalização excessivo ou


desnecessário, ou pelo contrário, da necessária defesa do nuclear, é puramente
política, mas não jurídico-penal. Certamente, a ciência do Direito Penal pode
evidenciar o que é que trazem exatamente as novas regulamentações legais e o que do
trazido deve ser considerado, conforme a valoração estabelecida, como algo positivo
ou como algo prejudicial. Mas é impotente perante as alterações políticas de valores,
e não se pode optar em favor das alterações políticas de valores.

Ademais, conforme assevera Fernandes, o modelo de estado, como institucionalização


da sociedade, influencia concretamente o respectivo de modelo de Direito Penal, o que se
evidencia pelos próprios bens que serão revestidos de tutela penal10:

Por outro lado, cada vez mais sentida, em virtude da aceleração das mudanças sociais,
é a influência que a sociedade, institucionalizada em um determinado modelo de
estado, exerce na conformação concreta do respectivo modelo de Direito Penal. Isso
se evidencia desde as opções relacionadas aos concretos bens que serão revestidos da
dignidade penal, sendo por todos lados sentido o acréscimo ao catálogo dos bens
jurídicos objeto da proteção em virtude dos avanços experimentados na vida de
relação (informática, patrimônio genético, dentre outros), até às formas relevantes de
ofensa, sendo cada vez mais valorado não só o dano efetivo ao bem mas também a
sua exposição a perigo, característica certamente ampliada em decorrência das
mutações ocorridas na sociedade.

Constatado isso, o que se pretende com este tópico, e posteriormente com a análise do
Sistema Jurídico-Penal brasileiro, em especial na figura da colaboração premiada, não é discutir
a melhor ou mais justa e eficiente forma de Direito Penal, mas sim analisar as questões de
eficiência e justiça do Direito Penal dentro dos parâmetros constitucionalmente propostos pelo
Ordenamento Jurídico brasileiro, optante do modelo de Estado Democrático de Direito.

9
JAKOBS, Gunther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal funcional: tradução de Maurício
Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. p. 23-24.
10
FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão
das ciências jurídico-criminais. In: COSTA ANDRADE, Manuel da et al. (Org.). Liber Discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Editora Coimbra, 2003. p. 57-58.
18

O Estado Democrático de Direito não se resume à junção daquilo que se entende por
Estado Democrático e Estado de Direito, mas cria um novo conceito que supera estas
acepções.11 Tem como fundamento basilar, além do princípio da legalidade, a promoção da
dignidade da pessoa humana. Com o intento de não se estender sobre os aspectos do Estado
Democrático de Direito, toma-se aquilo que preceitua José Afonso da Silva na análise deste
modelo12:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de


convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder
emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por
representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a
participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de
governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e
pressupõe o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de
convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser
um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende
apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais,
mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer seu
pleno exercício. [...] O certo, contudo, é que a Constituição de 1988 não promete a
transição para o socialismo com o Estado Democrático de Direito, apenas abre as
perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais, que ela
inscreve, e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita
concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da
pessoa humana.

Conforme ilustra o mencionado autor, o Estado Democrático de Direito, fundado na


dignidade da pessoa humana, tem como uma de suas principais características o processo de
liberação da pessoa humana das formas de opressão. Sendo esse o princípio norteador deste
modelo de estado, sua proteção será realizada, no âmbito jurídico-criminal, pela sua expressão
nos bens jurídicos colocados à objetiva tutela penal.13 Entretanto, o modelo de Estado
Democrático de Direito também se propõe à função de proteção jurídica, de forma que é
legítima uma intervenção corretiva, mesmo que haja a restrição de algum direito inerente à
dignidade humana, desde que seja necessário ao direito posto à afetação. Segundo a conclusão
de Fernandes14:

Portanto, em um modelo de Estado que pretenda ser de Direito, Democrático e Social,


Material, fundado no reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana, a
supressão ou restrição de algum direito inerente a esta última somente será possível
na medida da necessidade para a proteção de um outro direito.

11
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
12
Ibid. p. 119-120.
13
FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão
das ciências jurídico-criminais. In: COSTA ANDRADE, Manuel da et al. (Org.). Liber Discipulorum para
Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Editora Coimbra, 2003. p. 64-65.
14
Ibid. p. 66.
19

Por conseguinte, em uma opção político-criminal condizente com o Estado Democrático


de Direito se vê refletida a importante e clássica característica do Direito Penal de ultima ratio.
Obedecendo a esta característica, delimita-se que a aplicação direta do Direito Penal a
determinado fato deve ser o último recurso a ser utilizado pelo Estado, o que, por conseguinte,
pressupõe que os problemas sociais a serem objeto de atuação do Direito Penal devem ser
aqueles de maior complexidade e gravidade.
Cabe enaltecer as palavras de Francisco de Assis Toledo, no que se refere à missão e
limites do Direito Penal, que há muito já reconhecia a tarefa eminentemente jurídica do Direito
Penal, e sua subsidiariedade característica15:

E aqui entremostra-se o caráter subsidiário do ordenamento penal: onde a proteção de


outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão
ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve
estender-se o manto da proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso.
Fica, pois, esclarecido o caráter limitado do direito penal, sob duplo aspecto: primeiro,
o da subsidiariedade de sua proteção a bens jurídicos; segundo, o dever estar
condicionada sua intervenção à importância ou gravidade da lesão, real ou potencial.
Pode-se elucidar o que foi dito com alguns exemplos, a saber: a) numa sociedade em
que o casamento perdeu o caráter de vínculo jurídico indissolúvel, com a instituição
do divórcio, não há razão para manter-se a tipificação do crime de adultério (CP, art.
240), embora se reconheça ser esse fato moralmente condenável.

Essa característica subsidiária no Ordenamento Jurídico, ou seja, sua posição de ultima


ratio, é o que permite ao Direito Penal manter coerência com o modelo do Estado Democrático
de Direito. Afinal, em uma sociedade em que se promove a liberação da pessoa humana das
formas de opressão, só pode se permitir a repressão estabelecida pelo Direito Penal de maneira
excepcional.
Todavia, diferentemente do que se pressupõe a uma primeira vista, essa posição
subsidiária do Direito Penal não significa a negação de sua autonomia como atuante nos
problemas da sociedade. Não se quer dizer que o subsistema jurídico-criminal se valha pelo
preenchimento de espaços vazios de atuação de outros subsistemas de natureza jurídica. Mas
impõe simplesmente limitá-lo a atuar naquilo que é de maior complexidade e gravidade na
sociedade. Mais uma vez, cabe citar Francisco de Assis Toledo 16:

O conjunto de ideias que estamos expondo não conduz necessariamente à negação da


denominada autonomia do direito pena, reduzindo-o à condição de mero sancionador
de ilícitos construídos em outras áreas do direito. Ao confiná-lo dentro de certos
limites, situando-o harmoniosamente no ordenamento jurídico total, não pretendemos
outra coisa senão extrair as consequências lógicas da definição de um dos elementos
estruturais do conceito de crime – a ilicitude ou antijuridicidade – ou seja, ver no crime

15
TOLEDO. Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal: de acordo com a lei 7.209 de 11-07-1984
e com a Constituição Federal de 1988. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
16
Ibid. p. 14-15.
20

a relação de contrariedade entre o fato e o ordenamento jurídico no seu todo. Que quer
isso dizer? Quer dizer que se, de um lado, nem todo fato ilícito reúne os elementos
necessários para subsumir-se a um fato típico penal, de outro, o crime deve ser sempre
um fato ilícito para o todo do direito. Eis aí o caráter fragmentário do direito penal:
dentre a multidão de fatos ilícitos possíveis, somente alguns – os mais graves – são
selecionados para serem alcançados pelas malhas do ordenamento penal. Todavia, na
construção do injusto típico penal, opera esse mesmo ordenamento autonomamente,
sem subalternidade a outros ramos do direito.

Essa necessária limitação do poder punitivo demonstra que no Estado Democrático de


Direito o sistema de responsabilidade penal se aproxima do extremo chamado “direito penal
mínimo”.
Na obra de Ferrajoli17 são estabelecidos dois extremos de tipos de sistemas de
responsabilidade penal, definidos a partir de maiores ou menores vínculos garantistas
estruturalmente internos ao sistema, e da quantidade e qualidade das proibições e das penas nele
estabelecidas. O supracitado autor denominou estes dois extremos de “direito penal mínimo” e
“direito penal máximo”. Dada a grande limitação do poder punitivo intrínseca ao Estado
Democrático de Direito, tem-se a aproximação do modelo de sistema de responsabilidade penal
do direito penal mínimo.
A verificação dos limites à atuação do Direito Penal no modelo de Estado previsto na
Constituição brasileira, e dessa aproximação ao extremo chamado de direito penal mínimo,
decorre no desenvolvimento de vários dos princípios fundamentais previstos (de maneira
expressa ou não) na Constituição Federal brasileira de 1988, os quais acarretarão várias
questões importantes quanto à instituição da colaboração premiada no Ordenamento Jurídico
brasileiro, tema que será profundamente analisado posteriormente neste trabalho.
Por hora, o que importa discorrer neste ponto é a questão do modelo de certeza relativa
abrangido pelo direito penal mínimo, o que será de extrema importância na futura análise da
colaboração premiada.
Ainda na obra de Ferrajoli, tem-se que diante da impossível correspondência perfeita
entre legislação e jurisdição, há de se distinguir a certeza em duas espécies, ambas relativas e
subjetivas, cada qual associada a um extremo de modelo de Direito Penal. Para o direito penal
máximo, a certeza a ser perseguida está baseada no foco de que nenhum culpado fique impune,
à custa da incerteza de que também algum inocente seja punido.18
Já no que se refere ao direito penal mínimo, que se utiliza neste estudo, a certeza está
apoiada na ideia de que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que algum culpado

17
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1 ed. italiana, Norberto Bobbio.
3 ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 101.
18
Ibid. p. 103.
21

também fique impune.19 Nessa espécie de certeza promovida pelo minimalismo é que se faz o
princípio in dúbio pro reo. Nas palavras de Ferrajoli20:

A certeza, ainda que não absoluta, a que aspira um sistema penal de tipo garantista
não é no sentido de que resultem exatamente comprovados todos os fatos previstos
pela lei como delitos, mas que sejam punidos somente aqueles nos quais se tenha
comprovado a culpabilidade por sua comissão. Em todo caso, ambas as ‘certezas’ são
subjetivas e relativas, afetando ‘verdades’ igualmente opinativas e prováveis. Sua
diferença está apenas nos critérios opostos de sua obtenção. A certeza do direito penal
mínimo no sentido de que nenhum inocente seja punido é garantida pelo princípio do
in dúbio pro reo. É o fim perseguido nos processos regulares e suas garantias.
Expressa o sentido da presunção de não culpabilidade do acusado até prova em
contrário: é necessária a prova – quer dizer, a certeza, ainda que seja subjetiva – não
da inocência, mas da culpabilidade, não se tolerando a condenação, mas exigindo-se
a absolvição em caso de incerteza.

A título de anotação, cabe colocar que o princípio in dúbio pro reo, decorrente da relação
de certeza e incerteza idealizada pelo direito penal mínimo, é uma das garantias fundamentais
previstas na Carta Magna brasileira mais utilizada para contestar a colaboração premiada.
Portanto, observado o modelo de Estado Democrático de Direito, no qual se valoriza o
processo de libertação da pessoa humana das formas de opressão, tendo ainda como valor maior
a dignidade da pessoa humana, um modelo de Direito Penal coerente a estas diretrizes deve se
aproximar ao máximo do extremo do direito penal mínimo, assentando as limitações do poder
punitivo à ultima ratio.

1.2 A sociedade globalizada

Feita esta importante digressão relativa aos limites do Direito Penal no Estado
Democrático de Direito, continuando-se as ponderações da relação entre o Direito Penal e a
sociedade, cabe agora a análise da configuração atual da sociedade, para que depois se observe
seus efeitos sobre o Direito Penal.
Na sociedade contemporânea sobrevieram novas condições, as quais influenciaram
drasticamente na forma de viver do ser humano. Consequentemente, novas questões surgiram
no tocante ao sistema jurídico-penal.
A configuração atual da sociedade sofre os efeitos daquilo que se chama de
globalização. A globalização se dá em um fenômeno complexo de contornos ainda difusos. Há
dificuldades tanto na delimitação de um possível termo inicial, como na sua divisão em

19
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio da 1 ed. italiana, Norberto Bobbio.
3 ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 103.
20
Ibid. p. 103.
22

processos, ou na dimensão do alcance de seus efeitos. O que se permite dizer, sem sombra de
dúvidas, é que os processos de globalização apresentam um caráter multifacetário, de
dimensões econômicas, sociais, tecnológicas, políticas, religiosas, culturais, e também, por
óbvio, jurídicas.21
Existem interpretações que estendem o delineamento dos contornos da globalização à
transição do próprio Feudalismo ao Capitalismo, nas expansões marítimas mercantilistas, por
volta dos séculos XIV e XV. Outros entendem que remonta ao Estado de Direito de inspiração
clássica, com a emergência dos ideais do princípio da soberania nacional, do
constitucionalismo, e da divisão de poderes.22 Também é inegável o impulsionamento de um
processo de globalização no período pós-Segunda Guerra, momento em que se começa uma
nova fase da cooperação internacional com a criação da Organização das Nações Unidas.
Entretanto, o processo de globalização que interessa a este estudo é aquele que vem
marcado pelo fim da Guerra Fria, caracterizado por um intenso desenvolvimento da tecnologia
e da Economia, aspectos cruciais à análise criminológica da colaboração premiada.
Com efeito, os impulsos causados pela corrida capitalista tiveram plena influência em
um desenvolvimento por vezes interligado da tecnologia e da Economia, havendo severas
críticas a uma chamada “nova desordem mundial”, causada por um processo de
recrudescimento do Estado em face do Mercado.23 Deixando de lado as lúcidas críticas a este
processo, cabe ater-se a ele naquilo que se refere aos seus efeitos no plano jurídico.
Salientando, o processo de globalização proveniente da sociedade contemporânea
acarretou o desenvolvimento (e quando se diz desenvolvimento, quer-se com isso referir-se à
expansão, sem carga negativa ou positiva) do Mercado de maneira transnacional. Tal dimensão
fez com que o Estado perdesse espaço para o Mercado, tendo este tomado um foco diferente
por parte das relações internacionais, e da governança global.
Na atual configuração da sociedade, o bom andamento do Mercado é considerado
fundamental para o bom andamento das relações humanas, tanto no âmbito nacional, como
internacional. Consequentemente, há uma maior preocupação com a regulação do Mercado,
com o objetivo de garantir esse bom andamento.

21
MASI, Carlo Valho; MORAIS, Voltaire de Lima. Globalização e o direito penal. Revista Liberdades. v. 18.
São Paulo, jan./abr. 2015. p. 17.
22
Ver mais em: FARIA, José Eduardo. Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São
Paulo: Malheiros, 1996.
23
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução: Marcos Penchel. Rio de Janeiro:
Editora Jorge Zahar, 1999.
23

Paralelamente24, tem-se o desenvolvimento tecnológico, aspecto que não só iniciou,


como promoveu a sociedade globalizada, interferindo drasticamente em dois fatores essenciais
da dinâmica da vida humana: o tempo e o espaço.
A rápida evolução dos meios de comunicação e transporte permitiu uma intensa
aceleração na dinâmica das relações sociais. Na sociedade contemporânea, é relativamente
simples e rápido o deslocamento de pessoas independentemente da distância a ser percorrida,
assim como é fácil a comunicação, não importando a localização de cada um dos seres humanos
em contato. Ou seja, há uma acentuada compressão dos fatores tempo e espaço, diminuindo-se
as barreiras impostas por estes.
Dessa forma, conclui-se que a configuração atual de sociedade se faz de uma intensa
característica econômica, permeada por um pujante desenvolvimento tecnológico, em que cada
vez mais são quebradas as barreiras proporcionadas pelos fatores tempo e espaço.
Além disso, a sociedade contemporânea apresenta aspectos menos específicos, mas que
são de pleno interesse à análise do Direito Penal.
Primeiramente – e por óbvio diante de tudo já foi explorado neste ponto – a sociedade
contemporânea é concebida por um caráter global, de modo que, retornando à Teoria dos
Sistemas25, as relações que até então se entretinham no âmbito do subsistema jurídico interno a
um determinado sistema social, agora sofre inputs globais (grande exemplo são os tratados
internacionais).
Ademais, a sociedade contemporânea se pauta pela categoria do risco, caracterizando-
se como uma “sociedade do risco”. Na tese de Beck26, o desenvolvimento técnico-científico
não seria mais capaz de lidar com os riscos que contribuiu efusivamente para criar, os quais
acarretam consequências de certa gravidade para o meio ambiente e para a saúde humana, as
quais podem ainda ser desconhecidas a longo prazo, e que tentem a ser irreversíveis. Tais riscos
influenciam em uma nova forma de capitalismo, de economia, de ordem global, de sociedade
e, consequentemente, de sistema jurídico.
Por fim, a sociedade contemporânea não poderia ser outra coisa que não altamente
complexa, seja no âmbito dos problemas sociais a serem tratados pelo sistema social, seja no
tocante a complexidade produzida pelo próprio sistema social no tratamento desses problemas.

24
Ainda que seja contestável e controverso utilizar-se deste termo, visto a intensa e complexa relação entre o
desenvolvimento tecnológico e o econômico, o que se pretende significar é que os efeitos que serão comentados
não serão relacionados analiticamente por, no trabalho realizado, influenciarem de diferentes formas na
utilização do instituto da colaboração premiada.
25
Ver o primeiro ponto deste trabalho, sobre “a relação entre a transformação da sociedade e do direito penal”.
26
BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Tradução: Sebastião Nascimento. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
24

1.3 A emergência de uma nova criminalidade

Realizados alguns apontamentos em relação à configuração atual da sociedade, cabe


agora o aprofundamento desses aspectos – os quais, paradoxalmente, caracterizam e
transformam a dinâmica da sociedade contemporânea - no que diz respeito aos seus efeitos no
âmbito jurídico-penal.
Para melhor introdução e compreensão deste ponto da análise, cumpre realizar-se um
esclarecimento acerca das expressões “emergência” e “nova criminalidade”. Em momento
algum aqui se pretende colocar que tenha surgido uma criminalidade – no sentido de
delinquência - “adicional”, referindo-se a um aumento quantitativo da criminalidade; ou uma
“piora” da criminalidade, no sentido valorativo da palavra; entre quaisquer outras conclusões
que se possa utilizar de uma leitura rasa dos termos. Tampouco se quer significar com
“emergência” qualquer acepção próxima de “urgência”.
O que aqui se pretende desenvolver é a observação de como as preocupações da
sociedade se modificaram, dando origem a novos tipos penais, e como a evolução dinâmico-
tecnológica permitiu novas formas de cometimento dos mesmos crimes.
O primeiro ponto importante a ser analisado no que se refere aos seus reflexos no Direito
Penal é aquele referente ao risco. O risco é algo intrínseco à vida em sociedade, persistindo,
entretanto, em diferentes extensões ao longo da história. Anteriormente ao processo de
industrialização, o risco se focava naquilo que era advindo de relações meramente pessoais, ou
puramente naturais, como doenças e acidentes naturais, e os conflitos individuais.
Já com a modernidade, e o processo de industrialização, os riscos passam a afetar de
fato a coletividade, v. g., pelos impactos ambientais e econômicos da produção, entre outros
excessos cometidos pela ação humana.27 Na sociedade contemporânea, com as já comentadas
intensificações produzidas pelos efeitos dos processos de globalização, esses riscos à
coletividade também tomaram nova dimensão. Agora, o desenvolvimento tecnológico seria
relativamente impotente em face dos riscos que contribuiu para criar, e as decisões de caráter
técnico-econômico se tornam cruciais à diminuição ou intensificação desses riscos.
Consequentemente, a sociedade contemporânea passa ser uma sociedade pautada pela
categoria do risco, havendo a preocupação global de um progresso da segurança em relação à
convivência com o risco.

27
FERNANDES, Paulo Silva. O direito penal no amanhecer do século XXI: breves questões à luz do paradigma
da “sociedade do risco”. Revista Sub Judice: Justiça e Sociedade. n. 19. dez. 2001. p. 111-127. p. 113.
25

Chega-se, então, a um dos principais exemplos dessa preocupação com o risco no


âmbito criminal: o estabelecimento de novos tipos penais relativos ao meio ambiente. Os riscos
colocados ao meio ambiente pela atividade humana passam a ser uma preocupação concreta da
sociedade em plano transnacional, dado às proporções que podem tomar, refletindo até mesmo
na realização de acordos internacionais. E, por conseguinte, o sistema jurídico, inserido em uma
sociedade de característica global, sofre esses inputs também globais. Em outras palavras, os
sistemas jurídicos passam a ser influenciados por essas preocupações transnacionais, incluindo
o sistema jurídico-penal. Nesse contexto, foi promulgada no Brasil a Lei n. 9.605 de 12 de
fevereiro de 1998, a qual dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas
e atividades lesivas ao meio ambiente. O estabelecimento de novos tipos penais no
Ordenamento Jurídico brasileiro em preocupação com os riscos ao meio ambiente é prova cabal
da emergência de uma nova forma de criminalidade derivada da relação entre o Direito Penal e
as transformações da sociedade.
Também o âmbito econômico sofre os efeitos da sociedade do risco. Conforme já
observado, a sociedade contemporânea, de forte característica econômica, sofre um processo
em que o Estado perde espaço ao Mercado, sendo o bom desenvolvimento deste mais uma
preocupação global. Mais uma vez, as transformações da sociedade levam questões ao Direito
Penal, emergindo outras formas de criminalidade, representadas no Brasil por exemplos como
a Lei n. 9.613 de 3 de março de 1998 (modificada pela Lei n. 12.683/12), que dispõe sobre os
crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, entre outras medidas; e a Lei nº
8.137 de 27 de dezembro de 1990, que define crimes contra a ordem tributária, econômica, e
contra as relações de consumo.
Aqui alcança-se um dos fatores de reflexo direto ao Instituto da colaboração premiada.
Os novos tipos penais da modernidade trazem características diferentes daqueles que se
imaginava no Direto Penal Clássico. O delito, anteriormente pensado à base do que ocorre no
crime de homicídio, com sujeitos simples e concretos, passa e prescrever condutas realizadas
por um sujeito ativo caracterizado por uma organização criminosa, e um sujeito passivo difuso.
Sem adentrar profundamente nos crimes do Direito Penal Econômico, observa-se que é
complexa a análise da ocorrência do fato típico, principalmente no que se refere ao elemento
subjetivo (dolo/culpa). Tais crimes, por vezes, carecem de resultado naturalístico, o que também
evidencia a insuficiência de determinados pontos do Direito Penal Clássico. Essa dificuldade
também se reflete no tocante à investigação da ocorrência desses delitos. Ou seja, essa
dificuldade também de reflete no âmbito do processo penal.
26

Observemos aquilo que dispõe o artigo 4º, incisos I e II, da Lei n. 8.137/90, alterados
pela Lei n. 12.529/11, sobre um dos crimes contra a ordem econômica:

Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar do poder econômico,


dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante
qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas; II - formar acordo, convênio, ajuste
ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades
vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou
grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de
distribuição ou de fornecedores. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

Atentando-se aos dispositivos, vê-se que ambos os tipos penais criados falam em
acordos de empresas, o que já expressa a complexidade do sujeito ativo. No que toca à
dificuldade investigativa da persecução penal, nota-se que, além de não haver um resultado
puramente naturalístico a ser conferido, os elementos do tipo são de difícil, senão impossível,
constatação por meio de uma única modalidade de prova. Ademais, raramente há evidências
eminentemente físicas desses acordos.
Além da consequente complexidade de verificação das condutas nucleares desses novos
tipos penais, a execução desses delitos é realizada de forma altamente clandestina. O
desenvolvimento tecnológico permitiu que tanto essas novas condutas penalmente tipificadas,
como as já estabelecidas em outras épocas, fossem praticadas de outras formas, e com um
elevado grau de clandestinidade.
Com efeito, o mundo virtual é um campo que demonstra claramente esses novos meios
de se cometer determinados crimes propiciados pelo desenvolvimento tecnológico. É possível
que se cometa crimes a milhares de quilômetros de distância de onde se dê o resultado
naturalístico, ou até mesmo de onde se dê a própria execução da conduta. Muito além disso,
hoje se permite que o delito ocorra em um espaço eminentemente virtual, situação de extrema
complexidade nunca prevista pelo Direito Penal Clássico.
Relacionado à questão do Mercado, o desenvolvimento tecnológico permitiu, ainda, a
evolução de um mercado produtor de bens e serviços eminentemente ilegais, de forma a
coexistir com o mercado legal, onde o crime também adquire essa grande capacidade de
diversificação, de forma a explorar campos distintos como a prostituição, o tráfico de pessoas,
drogas, armas veículos, e depois se transportar aos bens e serviços legais por meio da lavagem
dos ativos.28
Mais simples do que as questões relativas aos crimes no espaço virtual e as questões
econômicas, o desenvolvimento tecnológico influencia propriamente no espaço físico,

28
CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 91.
27

principalmente pela já comentada compressão da relação espaço-tempo. A comunicação em


longas distâncias é simples e rápida, e o transporte de coisas e pessoas beira ao ilimitado.
Esses novos recursos trazidos pelo desenvolvimento tecnológico permitem o
aprofundamento da clandestinidade na execução dos delitos, de modo que os rastros de
comunicação entre os agentes ativos podem ser facilmente disfarçados, quando não
propriamente excluídos. Não existem mais cartas, telegramas, ou bilhetes a serem
interceptados, nem mesmo linhas telefônicas convencionais de comunicação. Sequer a
comunicação virtual se dá como anteriormente, utilizando-se de plataformas alternativas às
normalmente utilizadas (e rastreadas).
Para ilustrar essa recorrente utilização da tecnologia como suporte de clandestinidade,
sem o intento de se discutir as questões relativas ao direito à privacidade, tem-se os recentes e
polêmicos bloqueios realizados pelo Poder Judiciário brasileiro ao aplicativo “WhatsApp”, em
razão de impasses relativos à liberação de mensagens que supostamente contribuiriam a
investigações criminais.29
Conforme já observado, essas transformações referentes aos próprios tipos penais, e às
possíveis diversificações na execução das condutas tipificadas, não só constata-se a
insuficiência de alguns aspectos da teoria do delito produzida pelo Direito Penal Clássico, como
a impotência dos meios tradicionais de prova pensados a partir deste sistema. No âmbito deste
último problema trazido ao Direito Penal (especificamente ao processo penal) são pensados
(além de métodos de natureza preventiva) novos meios de prova adaptados a essa nova
realidade, entre eles a interceptação telefônica, a prova indiciária, bem como a própria delação
premiada e outras formas de colaboração. Grande questão, que importa ser fundamentalmente
debatida neste trabalho, é a forma com que estes novos meios de prova vêm sendo inseridos no
sistema jurídico-penal (e à própria dogmática jurídico-criminal), e como são compatibilizados
(ou não) aos princípios fundamentais constitucionalmente previstos.
Afinal, cumpre destacar que o que aqui se conclui não é a insuficiência de um modelo
de direito penal mínimo, tampouco a contestação do Direito Penal Clássico em relação às
garantias relativas ao acusado, mas sim a sua impotência no que se refere à interpretação do ato
delitivo.

29
Ver mais em: RIO DE JANEIRO. Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Juíza ordena bloqueio do
WhatsApp em todo o país. 19 jul. 2016. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-
/noticias/visualizar/36201?p_p_state=maximized>. Acesso em: 26 ago. 2016.
28

Em resumo, as transformações ocorridas na sociedade contemporânea, por meio dos


processos de globalização (incluído o desenvolvimento econômico-tecnológico), trazem novas
preocupações ao Direito Penal, havendo a criação de novos e complexos tipos penais, além da
diversificação das condutas delitivas, de modo a dificultar até mesmo a investigação criminal,
e a consequente prova penal, contexto em que surgem novos meios de prova, entre eles, a
colaboração premiada.

1.3.1 A criminalidade organizada

Finalizando a análise relativa aos efeitos das transformações contemporâneas da


sociedade no Direito Penal, é necessária uma breve exposição sobre aquilo que se convencionou
chamar de “criminalidade organizada”. Esse aspecto se mostra fundamental ao estudo do
instituto da colaboração premiada, haja vista ter sido justamente a vulgarmente conhecida como
“Lei das Organizações Criminosas” (Lei n. 12.850 de 2 de agosto de 2013) o texto legal que
introduziu um real procedimento de colaboração premiada no Ordenamento Jurídico brasileiro.
Consoante o já observado, as novas práticas caracterizadas como delitivas, e o
desenvolvimento tecnológico ocasionaram uma mudança de perspectiva em relação ao sujeito
ativo da conduta criminalizada. O que antes era imaginado com base no crime de homicídio,
com um sujeito simples, concreto, e geralmente individual, hoje se tem um sujeito ativo
configurado por uma organização complexa.
Aquilo que se entende por organização criminosa difere-se da mera “associação
criminosa”, descrita no artigo 288 do Código Penal Brasileiro (“associarem-se três ou mais
pessoas, para o fim específico de cometer crimes”), visto que não se caracteriza pela mera
pluralidade de agentes, havendo vários outros fatores a serem considerados além daqueles de
natureza quantitativa.
A complexidade desse tipo de atividade gera infindável dificuldade tanto em se
estabelecer um conceito de organização criminosa, bem como em delimitar suas exatas
características. A própria Lei n. 9.034 de 3 de maio de 1995 (revogada pela Lei n. 12.850/13),
que dispunha sobre a prevenção de práticas realizadas por organizações criminosas, o fazia sem
estabelecer uma definição daquilo que se chama de organização criminosa, atribuindo essa
tarefa à doutrina e à jurisprudência.
Algumas características são recorrentemente atribuídas às organizações criminosas, no
contexto dessa dificuldade conceitual. No que se refere à relação entre os sujeitos da
29

organização, geralmente, fala-se em “divisão do trabalho” e “compartimentação”30, fatores que


devem ser entendidos de maneira organizacional, criando-se uma estrutura criminosa, e não
como a mera cooperação subentendida do tipo penal presente no artigo 288 do Código Penal
brasileiro. Ainda nesse aspecto, há quem fale em uma associação duradoura de uma pluralidade
de pessoas, em atuação planificada, e organização hierárquica.31 Em relação aos objetos e à
atividade das organizações criminosas, fala-se em exploração ilícita de mercados ilícitos, em
realização de negócios ilegais, controle territorial, corrupção, clientelismo, planejamento
empresarial, alto poder de intimidação, etc.32 Explora-se ainda o aspecto espacial das
organizações criminosas, falando-se em internacionalidade ou transnacionalidade33. Enfim, as
características recorrentemente levantadas pela doutrina, apesar de traçarem alguns pontos de
partida, ilustram claramente a ainda presente indefinição sobre ao que exatamente se refere
quando se fala em “organização criminosa”.
A criminalidade organizada, com dimensão transnacional, passou a ser de preocupação
da comunidade internacional, resultando essa preocupação na chamada Convenção das Nações
Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional34 (Convenção de Palermo), adotada em
Nova York em 15 de novembro de 2000, aprovada pelo Congresso Nacional brasileiro por meio
do Decreto Legislativo n. 231 de 29 de maio de 2003, ratificado pelo Governo brasileiro em 24
de janeiro de 2004, e promulgado pelo Decreto n. 5.015, de 12 de março de 2004.
A Convenção de Palermo definiu, em seu artigo 2º, letra “a”, o conceito de “grupo
criminoso organizado” como “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum
tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer um ou mais infrações graves ou
enunciadas na presente Convenção, com intenção de poder, direta o indiretamente, um
benefício econômico ou outro benefício material”. Em razão da falta de definição legal do termo
“organização criminosa”, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça chegou a utilizar esta
definição dada pela Convenção de Palermo no Direito Penal interno brasileiro. No caso, a
definição foi utilizada para embasar a condenação na conduta tipificada no inciso VII do artigo

30
BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crime organização e proibição de insuficiência. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2010. p. 124.
31
BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle ao crime organizado e crítica à flexibilização das
garantias. São Paulo: IBCCrim, 2004.
32
Ibid.
33
Ibid.
34
BRASIL. Decreto Lei n. 5.015, de 12 de março de 2004. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5015.htm>. Acesso em: 29 ago. 2016.

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