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Lilian Jackson Braun

O GATO QUE CONHECIA SHAKESPEARE

TÌtulo original: The Cat Who Knew Shakespeare


TraduÁ„o de Wanda Caldeira Brant
Editora Marco Zero, 1995.
ISBN 85-279-0197-8

1. FicÁ„o norte-americana
2. FicÁ„o policial e de mistÈrio

- - -

Tem alguma coisa de podre na pequena cidade de Pickax... pelo


menos para o faro sensÌvel do milion·rio jornalista Qwilleran e seus
dois gatos siameses, Koko
e Yum Yum. Enquanto Koko passa horas na estante, entre livros de
Shakespeare, uma vi˙va da cidade parece escandalosamente alegre, e
alguÈm, em algum lugar, n„o ama
com sensatez mas excessivamente. Foi um acidente de carro que tirou
a vida do editor do jornal local... ou um assassinato?
Qwilleran - um premiado jornalista com apurado faro para
crimes.
Koko - um gato siamÍs com extraordin·rios talentos e gosto pelo
mistÈrio,
Yum Yum - ador·vel e atrevida siamesa.
Os trÍs formam a mais original e deliciosa equipe de detetives
que vocÍ j· conheceu.
ìLilian Braun tem um estilo divertido e saboroso; os gatos s„o
realmente inteligentes.î The New York Times Book Review
ìDelicioso do comeÁo ao fim!î Los Angeles Times

Sempre-Lendo, o melhor grupo de troca de livros da Internet!

UM
No Condado de Moose, seiscentos e quarenta quilÙmetros ao norte
de qualquer parte do mundo, sempre comeÁa a nevar em novembro, e
neva ó e neva ó e neva.
Primeiro, todos os degraus da frente desaparecem sob sessenta
centÌmetros de neve. Ent„o as cercas e os arbustos n„o s„o mais
visÌveis. Os postes de luz e telefone
v„o ficando menores atÈ as linhas ficarem baixas o suficiente para
alguÈm pular por cima delas. Ouvir, de hora em hora, os boletins
meteorolÛgicos no r·dio È o hobby
de inverno de todos no Condado de Moose, e limpar a neve torna-se a
atividade principal. Charruas e aparadores v„o formando montanhas
brancas que encobrem prÈdios
inteiros e exigem que os moradores cavem t˙neis para a rua. Na
cidade de Pickax, a sede do Condado, n„o È raro ver esquis na ·rea
comercial do centro. Se o aeroporto
fecha ó e freq¸entemente isso acontece ó o Condado de Moose torna-se
uma ilha de neve e de gelo. Tudo comeÁa em novembro, com uma
tempestade que os moradores chamam
ìA Grandeî.
Na noite de 5 de novembro, Jim Qwilleran estava descansando em
sua confort·vel biblioteca na companhia de amigos. Um ar de
contentamento prevalecia. Eles jantaram
bem, a governanta havia preparado um ensopado de mexilhıes e
escalopes de vitela. O mordomo havia empilhado arom·tica lenha de
macieira na lareira, e a chama projetava
reflexos nos livros com capas de couro, que enchiam quatro paredes
de prateleiras da biblioteca. De l‚mpadas ligeiramente encobertas
vinha um raio de luz que aquecia
a mobÌlia de couro e os tapetes Bokhara.
Qwilleran, um homem forte de meia-idade com um farto bigode,
sentou-se ‡ sua escrivaninha inglesa antiga e sintonizou o boletim
meteorolÛgico das nove horas
no r·dio ó um dos v·rios r·dios port·teis distribuÌdos pela casa com
esse objetivo.
ìA noite ser· mais fria, com baixa de aproximadamente quatro
grausî, previu o meteorologista da WPKX. ìVentos altos e boa chance
de nevar esta noite e amanh„.î
Qwilleran desligou bruscamente o r·dio. ìSe vocÍs, rapazes, n„o
se opıemî, disse aos outros dois, ìeu gostaria de deixar a cidade
por uns dias. Passaram-se
seis meses desde minha ˙ltima viagem atÈ L· Embaixo, e meus amigos
do jornal pensam que morri. A sra. Cobb servir· as refeiÁıes, e
estarei de volta antes que a neve
caia ó espero. Simplesmente conservem as patas cruzadas.î
Quatro orelhas marrons viraram atentamente ‡ declaraÁ„o. Duas
m·scaras marrons, com longos bigodes brancos e olhos incrivelmente
azuis, se afastaram das lenhas
em chamas em direÁ„o ao homem sentado ‡ escrivaninha.
Quanto mais vocÍ fala com os gatos, Qwilleran fora avisado,
mais inteligentes eles se tornam. Um ìgatinho lindoî casual n„o ter·
nenhum efeito; È preciso uma
conversa inteligente.
O sistema, ele achava, parecia estar funcionando; o casal de
siameses que estava sobre o tapete perto da lareira reagiu como se
tivesse entendido o que ele
estava dizendo. Yum Yum, a pequena fÍmea afetuosa, olhou fixamente
para ele com express„o que parecia de censura. Koko, o garboso e
musculoso macho, levantou-se
de onde estava, se espreguiÁando com majestade leonina, andou
afetadamente atÈ a escrivaninha e bronqueou com ruidosos uivos.
ìMiau-au AU!î
ìEu estava esperando um pouco mais de compreens„o e
consideraÁ„oî, disse-lhes o homem.
Qwilleran, com mais ou menos cinq¸enta anos, estava enfrentando
uma crise singular da meia-idade. Depois de morar toda a vida em
grandes regiıes metropolitanas,
ele residia agora na cidade de Pickax, cuja populaÁ„o era de 3 mil
habitantes. Depois de uma carreira de diligente jornalista ganhando
um modesto sal·rio, era agora
milion·rio ó ou bilion·rio; ele n„o sabia exatamente. De qualquer
modo, era o ˙nico herdeiro da fortuna dos Klingenscboen,
estabelecida no Condado de Moose no sÈculo
XIX. O legado incluÌa uma mans„o na Rua Principal, trÍs empregados,
uma garagem para quatro carros e uma limusine. Mesmo depois de um
ano, achava estranho seu novo
estilo de vida. Como jornalista ele se interessava principalmente em
investigar histÛrias, checar os fatos, cumprir o prazo limite e
garantir suas fontes. Agora
sua principal preocupaÁ„o, como a de todos os outros adultos do
Condado de Moose, parecia ser o clima, especialmente em novembro.
Quando os siameses reagiram de forma negativa ‡ sua proposta,
Qwilleran pressionou seu bigode pensativamente por um instante. ìNo
entantoî, disse ele, ìÈ imperativo
que eu v·. Arch Riker est· deixando o Daily Fluxion e estou
encarregado de sua festa de despedida sexta-feira ‡ noite.î
Em seus dias de solteiro frugal, em um apartamento de um
quarto, Qwilleran nunca tinha tido ambiÁ„o de dinheiro ou posses e,
entre seus colegas de trabalho,
nunca foi notado por sua generosidade. Mas quando o patrimÙnio de
Klingenschoen finalmente passou pelo tribunal de sucessıes, ele
surpreendeu a mÌdia, ao convidar
todo o pessoal do Daily Fluxion para um jantar no Clube da Imprensa.
Ele planejou levar um convidado: Junior Goodwinter, o chefe de
redaÁ„o do Pickax Picayune, o ˙nico jornal do Condado de Moose. Ao
telefonar para a agÍncia do
jornal, ele disse: ìOl·, Junior! VocÍ gostaria de vadiar alguns dias
e voar L· para Baixo para uma festa? Como meu convidado. Cocktails e
jantar no Clube da Imprensaî.
ìOh! Nossa! Nunca vi um Clube da Imprensa, a n„o ser em
filmesî, disse o editor. ìPoderÌamos tambÈm visitar a agÍncia do
Daily Fluxion?î
Junior vestia-se como um estudante do segundo ano colegial, e
exibia um inocente entusiasmo, raro num jornalista com grau cum
laude de uma universidade estatal.
ìPoderÌamos tambÈm dar uma passada em um jogo de hÛquei e em
alguns showsî, disse Qwilleran, ìmas teremos de ficar de olho nos
boletins meteorolÛgicos e voltar
para c· antes que a neve caia.î
ìH· uma frente fria vindo do Canad·, mas acho que por enquanto
estamos salvosî, disse Junior. ìA festa È exatamente a propÛsito de
quÍ?î
ìUma festanÁa de despedida para Arch Riker, e eis o que quero
que vocÍ faÁa: traga uma sacola de carregar jornais do Picayune e
uns cem exemplares de sua ˙ltima
ediÁ„o. Depois do jantar direi umas poucas palavras sobre o Condado
de Moose e sobre o Picayune e isso ser· o sinal para vocÍ levantar e
comeÁar a distribuir os
jornais.î
ìUsarei um bonÈ de beisebol de lado e gritarei Extrai Extrai …
isso que vocÍ quer?î
ìVocÍ entendeu!î, disse Qwilleran. ìMas a pron˙ncia exata È ëE-
exx-traí! Esteja pronto ‡s nove horas da manh„ de sexta-feira.
Pegarei vocÍ em seu escritÛrio.î
As notÌcias sobre o clima na manh„ de sexta-feira n„o eram
encorajadoras: ìUma frente fria vinda do Canad· aumenta a
possibilidade de forte neve esta noite
e amanh„, com ventos soprando na direÁ„o nordeste.î
A governanta de Qwilleran manifestou seus medos. ìO que far·,
sr. Q, se n„o conseguir voltar antes que a neve caia? Se a
tempestade for ëA Grandeí, o aeroporto
ficar· fechado sabe Deus por quanto tempo.î
ìBem, eu lhe direi, sra. Cobb. Vou alugar um trenÛ puxado por
c„es e uma matilha de huskies, e conduzirei o trenÛ de volta para
Pickax.î
ìOh, sr. Q!î, ela riu. ìNunca sei se acredito ou n„o no
senhor.î
Ela estava preparando um delicioso prato de fÌgados de galinha
refogados, com uma guarniÁ„o de gemas de ovos bem cozidos e pedaÁos
de bacon, que colocou no
ch„o. Yum Yum devorou sua porÁ„o esfomeadamente, mas Koko recusou-se
a comer. Alguma coisa o estava chateando.
Os dois gatos tinham os corpos castanhos-escuros e pontos
marrons de pedigree siamÍs: m·scaras marrons acentuando o azul dos
olhos; orelhas marrons atentas
como coroas reais; pernas marrons elegantemente longas e esguias;
caudas marrons que chicoteavam, enrolavam e abanavam para expressar
emoÁıes e opiniıes. Mas Koko
tinha alguma coisa mais: um desconcertante grau de inteligÍncia e um
misterioso talento para saber quando alguma coisa estava... errada!
Naquela manh„ ele tinha arrancado um livro de uma prateleira na
biblioteca.
ìIsso n„o È educado!î, disse-lhe Qwilleran, apelando para sua
inteligÍncia. ìEsses s„o livros antigos, raros e valiosos ó para
serem tratados com respeito,
se n„o com reverÍncia.î Ele examinou o livro. Era um exemplar de
capa de couro fino de A Tempestade, um dos 37 volumes da obra de
Shakespeare que faziam parte da
heranÁa.
Com leve apreens„o, Qwilleran recolocou o livro na prateleira.
A escolha do tÌtulo era infeliz. No entanto ele estava determinado a
voar atÈ L· Embaixo para
a festa, a despeito de Koko, da sra. Cobb e do meteorologista da
WPKX.
Uma hora antes do vÙo, ele foi atÈ a agÍncia do Picayune, para
pegar Junior e a sacola de jornais. Todos os prÈdios da Rua
Principal tinham mais de um sÈculo
e eram construÌdos com pedra cinza nos mais variados estilos
arquitetÙnicos. A sede do Picayune ó espremida entre o pavilh„o de
caÁa, em estilo vienense, e o correio,
em estilo romano ó parecia um antigo mosteiro espanhol.
Um agrad·vel cheiro de tinta permeava a agÍncia do jornal, mas
o prÈdio tinha a aparÍncia embalsamada de um museu. N„o havia nenhum
encarregado de receber an˙ncios
no danificado balc„o da frente. N„o havia nenhuma recepcionista
atenta e sorridente ó apenas uma campainha.
Qwilleran examinou o cen·rio silencioso: fich·rios de madeira e
escrivaninhas envelhecidas de carvalho dourado... tachinhas para
pregar pedidos de an˙ncios
e assinaturas... velhos exemplares do Picayune, amarelados e
quebradiÁos, colados nas paredes, que n„o eram pintadas desde a
Grande Depress„o. Do outro lado da divisÛria
baixa de carvalho e vidro sujo estava a sala de composiÁ„o. Um homem
solit·rio ficava na frente da caixa de tipos, distraÌdo ante tudo,
exceto a linha de tipos que
estava colocando com movimentos r·pidos.
Diferentemente do Daily Fluxion, que tinha uma circulaÁ„o de
cerca de um milh„o de exemplares, as prensas antiquadas do Picayune
imprimiam 3 200 exemplares
a cada ediÁ„o. Enquanto o Fluxion adotava todos os avanÁos
tecnolÛgicos e tendÍncias jornalÌsticas, o Picayune ainda parecia o
jornal fundado pelo bisavÙ de Junior.
Quatro p·ginas, impressas em tipografia, contendo an˙ncios
classificados e fofocas sociais na primeira p·gina. CafÈs da
manh„ com panquecas, reuniıes sociais para
tomar sorvete e funerais eram cobertos exaustivamente, enquanto
breves menÁıes a polÌticas locais, notÌcias policiais e acidentes
eram relegadas ‡ ˙ltima p·gina
ou inteiramente omitidas.
Qwilleran tocou a campainha, e Junior Goodwinter desceu
correndo a escada de madeira, que dava para o escritÛrio editorial,
seguido por um grande gato branco.
ìQuem È seu bem alimentado amigo?î, perguntou Qwilleran.
ì… William Allen, o caÁador de ratos da redaÁ„oî, disse Junior
como se todos os jornais tivessem um caÁador de ratos na redaÁ„o.
Como chefe de redaÁ„o ele escrevia
quase todas as matÈrias do jornal e vendia a maior parte dos
an˙ncios. SÍnior Goodwinter, propriet·rio e editor, ficava o tempo
todo na sala de composiÁ„o, com um
avental de couro e um chapÈu de papel jornal dobrado, colocando os
tipos de chumbo na barra de composiÁ„o, com express„o de
concentraÁ„o e Íxtase. Ele era tipÛgrafo
desde os oito anos de idade.
Junior gritou: ìAtÈ mais, pai. Volto em poucos diasî.
O homem ocupado na sala de composiÁ„o virou-se e disse
carinhosamente: ìDivirta-se, Junior, e tome cuidadoî.
ìSe vocÍ quiser dirigir o Jag enquanto eu estiver fora, as
chaves est„o sobre minha escrivaninha.î
ìObrigado, filho, mas acho que n„o vou precisar dele. Disseram
na oficina que meu carro estaria pronto mais ou menos ‡s cinco
horas. Agora, tome cuidado.î
ìEst· bem, pai, e vocÍ se cuide!î
Houve um olhar de calorosa e m˙tua admiraÁ„o entre os dois, e
Qwilleran por um momento sentiu por n„o ter tido filhos. Ele teria
desejado um como Junior. Mas
talvez um pouco mais alto e um pouco mais m·sculo.
Junior pegou a sacola de jornais e sua mochila, e os dois foram
para o aeroporto. Juntos eram um Ûtimo exemplo das diferenÁas entre
geraÁıes: Qwilleran, um
homem sÛbrio com cabelos meio grisalhos, bigode exuberante e olhos
tristes; Junior, uma crianÁa excitada de pele corada e de tÍnis.
Junior comeÁou a conversa com
uma pergunta repentina:
ìVocÍ acha que pareÁo jovem demais, Qwill?î
ìJovem demais para quÍ?î
ìQuero dizer, Jody acha que ninguÈm me levaria a sÈrio.î
ìCom sua estatura e seu rosto jovial, vocÍ ainda parecer· ter
quatorze anos quando tiver setenta e cincoî, disse-lhe Qwilleran, ìe
n„o È de todo mau. Mais tarde,
vocÍ mudar· durante a noite e, de repente, aparentar· ter cento e
dois.î
ìJody acha que ajudaria se eu deixasse a barba crescer.î
ìN„o È uma m· idÈia! Sua namorada tem boas idÈias.î
ìMinha avÛ diz que pareÁo um dos Sete Anıes.î
ìSua avÛ deve ser uma pessoa doce, Junior.î
ìVovÛ Gage È uma figura! A m„e de minha m„e, vocÍ conhece. VocÍ
deve tÍ-la visto pela cidade. Ela dirige um Mercedes e buzina em
todo cruzamento.î
Qwilleran n„o demonstrou nenhuma surpresa. Ele tinha aprendido
que quem residia h· muito tempo no Condado de Moose era
individualista militante.
ìVocÍ teve notÌcias de Melinda desde que ela deixou Pickax?î,
perguntou Junior.
ìUma ou duas vezes. Eles a mantÍm bem ocupada no hospital.
Estar· melhor em Boston. Poder· se especializar.î
ìMelinda nunca quis ser mÈdica no interior, mas estava louca
para casar com vocÍ, Qwill, e se mudar para sua mans„o.î
ìSinto muito, n„o sirvo para ser marido. Descobri isso um tempo
atr·s, e n„o seria justo cometer o mesmo erro com Melinda. Espero
que ela encontre um homem
am·vel e da idade dela em Boston.î
ìOuvi dizer que agora vocÍ est· tendo um caso com a
bibliotec·ria chefe.î
Qwilleran soprou o bigode. ìN„o sei o que vocÍ quer insinuar,
mas deixe-me dizer que eu gosto da companhia da sra. Duncan. Nessa
Època do videotudo, È bom encontrar
alguÈm que compartilha comigo o interesse pela literatura. NÛs nos
reunimos e lemos em voz alta.î
ìOh, claroî, disse Junior com sorriso malicioso.
ìQuando vocÍ e Jody pensam em se casar?î
ìCom o sal·rio que meu pai me paga, ainda n„o tenho condiÁıes
de ter um apartamento prÛprio. VocÍ sabe, continuo morando com meus
pais na casa da fazenda. Jody
ganha duas vezes mais do que eu e È apenas uma assistente de
dentista.î
ìMas vocÍ tem um Jaguar.î
ìQue foi um presente de formatura de vovÛ Gage. Atualmente ela
È a ˙nica na famÌlia com grana. Serei herdeiro quando ela se for,
mas isso n„o vai ser logo.
Aos 82 ela ainda planta bananeira e pode me vencer no exercÌcio
abdominal. As pessoas no Condado de Moose vivem muito tempo, salvo
pelos acidentes. Um de meus ancestrais
morreu quando seu cavalo se assustou com uma revoada de melros. Meu
avÙ Gage foi fulminado por um raio. Uma tia e um tio morreram quando
o carro bateu em um veado.
Era novembro ó estaÁ„o do cio, vocÍ sabe ó e um macho dos grandes,
com chifre de oito pontas, atravessou direto o p·ra-brisa. O xerife
disse que parecia assassinato
de um amador com um machado. Agora, de acordo com estimativas
oficiais, h· dez mil veados neste condado.î
Qwilleran diminuiu a velocidade e comeÁou a procurar sinais de
vida selvagem.
ì… a estaÁ„o do arco e flecha e os caÁadores os deixam
nervososî, continuou Junior. ìToda manh„ ou ao anoitecer ó ou seja,
quando os veados saltam atravessando
a estrada.î
ìTodos os dez mil?î, Qwilleran reduziu a velocidade para
setenta.
ìO dia hoje est· mesmo escuroî, observou Junior. ìO cÈu est·
carregado.î
ìQual È o primeiro dia em que a neve sempre cai?î
ìA primeira tempestade registrada foi a 2 de novembro de 1919,
mas ëA Grandeí normalmente n„o cai atÈ meados do mÍs. A pior
registrada foi a de 13 de novembro
de 1931. TrÍs frentes frias ó do Alasca, das Rochosas e do Golfo ó
encontraram-se sobre o Condado de Moose. Muitas pessoas perderam o
rumo e morreram de frio. Quando
ëA Grandeí cai, È melhor vocÍ ficar em casa! Ou, se estiver
dirigindo, n„o saia do carro.î
Apesar dos perigos do norte do paÌs, Qwilleran estava comeÁando
a invejar os nativos. Eles tinham raÌzes! FamÌlias como os
Goodwinter tinham cinco geraÁıes
ó do tempo em que as fortunas eram feitas com a mineraÁ„o e a
extraÁ„o da madeira. As organizaÁıes mais importantes em Pickax eram
a Sociedade HistÛrica e o Clube
GenealÛgico. Na estrada para o aeroporto, a histÛria ia se
desenrolando: casas abandonadas de mineiros e pilhas de detritos nos
locais das velhas minas... cidades
fantasmas somente identific·veis por algumas solit·rias chaminÈs de
pedra... uma estaÁ„o ferrovi·ria caindo aos pedaÁos no meio de lugar
nenhum... os restos ·speros
das ·rvores enegrecidas pelos incÍndios da floresta.
Depois de alguns minutos de silÍncio, Qwilleran aventurou-se a
fazer uma pergunta de ordem pessoal a Junior: ìComo um jornalista
formado, o que vocÍ acha do
Picayune? VocÍ est· se realizando? Acha que È certo continuar no
sÈculo XIX?î
ìVocÍ est· brincando? Minha ambiÁ„o È fazer do Pic um jornal de
verdadeî, disse Junior, ìmas papai quer mantÍ-lo como era h· cem
anos. Ele estava contando conosco,
os filhos, para manter a tradiÁ„o, mas meu irm„o foi para a
CalifÛrnia trabalhar em publicidade, minha irm„ casou-se com um
fazendeiro de Montana, e assim fiquei
amarrado a ele.î
ìO Condado poderia sustentar um jornal de verdade. Por que n„o
comeÁar um e deixar seu pai manter o Picayune como hobby? VocÍ n„o
seria um concorrente; o Pic
È incompar·vel. VocÍ nunca considerou essa possibilidade?î
Junior lanÁou-lhe um olhar de p‚nico, e as palavras desabaram.
ìEu n„o tenho recursos para comeÁar sequer um quiosque de limonada!
Estamos quebrados! E por
isso que estou trabalhando por uma misÈria... A cada ano vamos mais
para o buraco. Papai vendeu nossa fazenda e agora est· amortizando a
casa da fazenda... Eu n„o
deveria estar lhe contando isso... Mam„e est· h· muito tempo atr·s
dele para se desfazer do jornal... Ela est· realmente chateada! Mas
papai n„o a escuta. Ele se
mantÈm firme na tipografia e se afunda mais em dÌvidas. Diz que È
sua vida ó sua raz„o de viver... VocÍ nunca o viu compor? Ele pode
colocar mais de trinta e cinco
letras por minuto sem olhar para a caixa de tipos.î A fisionomia de
Junior refletia sua admiraÁ„o.
ìSim, eu o vi e fiquei impressionadoî, disse Qwilleran. ìVi
tambÈm as prensas no por„o. Alguns dos equipamentos parecem com a
prensa de Gutenberg.î
ìPapai coleciona prensas velhas. Ele tem um celeiro cheio. A
primeira prensa de meu bisavÙ operava com um pedal como uma m·quina
de costura antiga.î
ìSua avÛ rica poderia lhe ajudar se vocÍ quisesse comeÁar um
jornal?î
ìVovÛ Gage n„o desembolsar· nem mais um tost„o. Ela j· foi
nossa fiadora v·rias vezes e pagou nossos prÍmios do seguro e nos
colocou os trÍs na faculdade...
Ei, por que vocÍ n„o comeÁa um jornal, Qwill? VocÍ est· rico!î
ìN„o tenho absolutamente nenhum interesse ou aptid„o para
negÛcios, Junior. Por isso criei a FundaÁ„o Klingenschoen. Eles
tratam de tudo e colocam um pouco
de dinheiro no meu bolso. Passei vinte e cinco anos nos jornais e
agora tudo que quero È tempo e calma para escrever algo.î
ìComo est· indo seu livro?î
ìBemî, disse Qwilleran, pensando em sua m·quina de escrever
negligenciada, em sua escrivaninha bagunÁada e nas anotaÁıes
desorganizadas.
No aeroporto deixaram o carro em um campo aberto que servia
como estacionamento para perÌodos longos. O terminal era pouco mais
que uma choÁa, e o administrador
ó que era tambÈm quem tirava o bilhete, mec‚nico e piloto em tempo
parcial ó estava varrendo o ch„o. ìVamos pegar ëA Grandeí?î,
perguntou com humor.
Quando os dois jornalistas embarcaram no bimotor para a
primeira etapa de sua viagem, foram espertos o suficiente para
evitar conversas pessoais. Havia outros
quinze passageiros e trinta ouvidos estariam escutando. O Condado de
Moose tinha uma rede de boatos que disseminava mais notÌcias que o
Picayune e as transmitia
mais rapidamente que a WPKX. Com bom senso, Qwilleran e Junior
conversaram sobre esportes atÈ que o pequeno avi„o aterrissou
bruscamente em Mine·polis e eles embarcaram
em um jato.
ìEspero que sirvam um almoÁo a bordoî, disse Junior. ìO que
teremos para jantar no Clube da Imprensa?î
ìEu pedi sopa de cebola ‡ francesa, costeletas e torta de
maÁ„.î
ìOh, nossa!î
Houve uma escala em Chicago antes de decolarem para a etapa
final de sua viagem. AtÈ aterrissarem, pegarem o Ùnibus para o Hotel
Stilton e sintonizarem os boletins
meteorolÛgicos, j· era hora de ir para o Clube da Imprensa.
ìOs colunistas esportivos estar„o l·?î, perguntou Junior.
ìTodos, desde os mais altos executivos aos ëfocasí. Suponho que
agora eles s„o chamados auxiliares de redaÁ„o.î
ìEles v„o achar ridÌculo se eu pedir autÛgrafos?î
ìV„o se sentir lisonjeadosî, disse Qwilleran.
No clube, Qwilleran foi tratado como um herÛi que retorna, mas
ele se lembrou que qualquer um seria um herÛi se patrocinasse jantar
e bebidas ‡ vontade para
toda a redaÁ„o. Um fotÛgrafo deu-lhe um empurr„o amig·vel nas costas
e perguntou como era ser milion·rio.
ìDeixarei vocÍ saber no prÛximo ano, em 15 de abrilî, respondeu
Qwilleran.
O editor de turismo queria saber como ele se divertia morando
no interior. ìO Condado de Moose fica no Cintur„o da Neve?î
ìExatamente! Ele È a fivela do Cintur„o da Neve.î
ìBem, de qualquer modo vocÍ È um felizardo, escapou da
violÍncia da cidade.î
ìNÛs temos muita violÍncia no norteî, Qwilleran lhe informou.
ìFuracıes, rel‚mpagos, ciclones, incÍndios florestais, animais
selvagens, derrubadas de ·rvores,
enchentes de primavera! Mas È mais f·cil aceitar a violÍncia da
natureza do que a violÍncia humana. Nunca temos franco-atiradores
loucos atirando em crianÁas nos
Ùnibus escolares, como o incidente que houve aqui na semana
passada.î
ìVocÍ ainda tem o gato que È mais esperto que vocÍ?î
No Clube da Imprensa, Qwilleran tinha uma reputaÁ„o de detetive
amador; sabia-se tambÈm que Koko era de alguma maneira respons·vel
por seu Íxito.
Qwilleran explicou a Junior: ìTalvez vocÍ n„o tenha observado,
mas a foto de Koko est· pendurada no vestÌbulo, junto ‡s dos
vencedores do PrÍmio Pulitzer. Um
dia lhe contarei suas faÁanhas. VocÍ n„o acreditar·, mas de qualquer
modo contarei.î
Durante a happy hour, Junior encontrou os colunistas e
repÛrteres cujos artigos ele lia na ediÁ„o do Fluxion para outros
estados, e com dificuldade conseguiu
controlar sua excitaÁ„o. Por outro lado, o convidado de honra estava
nitidamente contido. Arch Riker estava alegre por se livrar do
Fluxion, mas a ocasi„o era entristecida
pela recente dissoluÁ„o de seu casamento.
ìQuais s„o seus planos?î, perguntou Qwilleran.
ìBem, passarei o Dia de AÁ„o de GraÁas com meu filho em Denver
e o Natal com minha filha em Oregon. Depois disso, n„o sei.î
ApÛs a deliciosa costeleta e a torta de maÁ„, o editor
executivo presenteou Riker com um relÛgio de pulso de ouro, e
Qwilleran fez um pequeno discurso em homenagem
a seu amigo de longa data. Concluiu com poucas palavras sobre o
Condado de Moose.
ìSenhoras e senhores, a maioria de vocÍs nunca ouviu falar do
Condado de Moose. E o ˙nico condado secreto do estado. Os
cartÛgrafos ‡s vezes se esquecem de coloc·-lo
no mapa. Muitos de nossos legisladores pensam que ele pertence ao
Canad·. Mas h· cem anos o Condado de Moose era o estado mais rico,
graÁas ‡ mineraÁ„o e ‡ exploraÁ„o
da madeira. Hoje em dia È um paraÌso de fÈrias para qualquer pessoa
interessada em pescar, caÁar, passear de barco e acampar. Temos duas
caracterÌsticas peculiares
que gostaria de mencionar: temperaturas perfeitas de maio a outubro,
e um jornal que n„o muda desde que foi fundado h· mais de um sÈculo.
Junior Goodwinter, o mais
jovem chefe de redaÁ„o em cativeiro, escreve todos os artigos. Na
era da comunicaÁ„o por satÈlite n„o È f·cil escrever com uma pena de
ganso e tinta de sÈpia...
Permitam-me apresentar Junior e o Pickax Picayune!î
Junior tirou rapidamente seu bonÈ de beisebol e o saco de
jornais e correu pela sala de jantar gritando ìE-e-exx-tra! E-exx-
tra!î, enquanto jogava um punhado
de jornais sobre cada mesa. Os convidados os pegaram e comeÁaram a
ler ó primeiro com risinhos, depois ‡s gargalhadas. Na p·gina 1,
coluna 1, encontraram os classificados:
VENDEM-SE: P·s usadas em bom estado. E tambÈm um vestido de
noiva n∫ 38, sem uso.
CORRA! Se seu velho calhambeque n„o vai ag¸entar mais um
inverno, talvez vocÍ encontre um calhambeque melhor no leil„o de
carros usados de Hackpole, talvez
n„o. N„o pode dizer atÈ vÍ-los.
GR¡TIS: TrÍs gatinhos cinzentos com botas brancas. Quase
domesticados.
ACABOU DE CHEGAR: Nova remessa de ceroulas na Loja da FamÌlia
do Bill. A qualidade n„o È a mesma de sempre, e os preÁos est„o mais
altos do que os do ano passado,
mas que raiva! … melhor comprar antes que a neve caia.
Dividindo a primeira p·gina com esses exemplos de ìverdade na
publicidadeî encontravam-se itens de notÌcias com grandes manchetes.
RECORDE QUASE QUEBRADO
Havia 75 carros no cortejo do funeral do capit„o Fugtree na
semana passada ó o mais longo desde 1904, quando 52 charretes e 37
carruagens desfilaram atÈ o cemitÈrio
para sepultar Ephraim Goodwinter.
CH¡-DE-COZINHA
A srta. Doreen Mayfus foi homenageada com um ch·-de-cozinha na
˙ltima terÁa-feira. Houve jogos e prÍmios como recompensa. A futura
noiva abriu 24 presentes.
O lanche incluiu folhados de salsicha, sanduÌches de piment„o-doce e
tortinhas.
ANIVERS¡RIO CELEBRADO
O sr. e a sra. Alfred Toodle comemoraram seu septuagÈsimo
anivers·rio de casamento com um jantar oferecido por sete de seus
onze filhos: Richard Toodle, Emil
Toodle, Joseph Toodle, Conrad Toodle, Donna Toodle, Dorothy (Toodle)
Fugtree e Estelle (Toodle) Campbell. TambÈm estavam presentes 30
netos, 82 bisnetos e 13 tataranetos.
O jantar foi realizado no Restaurante da FamÌlia Toodle. O bolo com
v·rias camadas foi decorado por Betsy Ann Toodle.
Durante o alvoroÁo (todos estavam lendo em voz alta) o diretor
do Clube da Imprensa foi cuidadosamente atÈ a cabeceira da mesa e
cochichou no ouvido do anfitri„o.
ìInterurbano para vocÍ, Qwill. Em meu escritÛrio.î
Antes de correr para o telefone, Qwilleran exclamou: ìObrigado
a todos por terem vindo! O bar est· aberto!î
Ele ficou ausente da sala de jantar o suficiente para fazer
algumas chamadas telefÙnicas e, quando voltou, arrastou Junior para
longe de um grupo de editores
e repÛrteres.
ìTemos de ir embora, Junior. Vamos para casa. Alterei nossas
reservas... Arch, diga atÈ logo a todos por nÛs, certo? E uma
emergÍncia... Venha, Junior.î
ìO quÍ?... O quÍ?î, gaguejou Junior.
ìConto-lhe mais tarde.î
ìMinha sacola...î
ìEsqueÁa sua sacola.î
Qwilleran puxou o jovem escada abaixo e o empurrou para dentro
do t·xi que esperava ‡ beira da calÁada com o motor ligado.
ìHotel Stilton, r·pidoî, ele gritou, enquanto o t·xi disparava
em frente, ìe ultrapasse os farÛis vermelhos.î
ìOh, nossa!î, disse Junior.
ìCom que rapidez vocÍ consegue colocar suas coisas na mochila,
rapaz? Temos sete minutos para arrumar as malas, desocupar o quarto
e ir para o heliporto no
terraÁo do hotel.î
SÛ depois que se amontoaram no helicÛptero da polÌcia,
Qwilleran achou tempo para explicar: ìUm telefonema urgente de
Pickaxî, ele exclamou. ì ëA Grandeí est·
indo para l·. Temos de chegar antes dela ó emergÍncia pessoal.
Estamos prontos para correr. Eles est„o segurando o avi„o.î
Quando finalmente se afivelaram no jato, Junior disse: ìEi,
como vocÍ conseguiu aquele negÛcio? Eu nunca tinha entrado em um
helicÛpteroî.
ì… mais f·cil se vocÍ tiver trabalhado no Fluxionî, explicou
Qwilleran, ìe se tiver cooperado com ëHomicÌdiosí e feito propaganda
do Fundo das Vi˙vas de Policiais.
Sinto estragar o resto de nossos planos.î
ìEst· bem. N„o me importo de perder as outras coisas.î
ìPodemos fazer uma r·pida conex„o em Chicago e depois pegar o
vÙo da TGIF saindo de Mine·polis. Temos sorte por ele fazer aquela
rota.î
Durante o restante do vÙo, Qwilleran estava relutante em falar,
mas Junior n„o conseguia parar. ìTodo mundo era Ûtimo! Os colunistas
de esportes disseram que
me levariam ao camarote da imprensa qualquer hora que eu fosse ‡
cidade. O rapaz que dirige a coluna Newsroom Mouse vai redigir uma
matÈria sobre o Picayune na terÁa-feira,
e isso significa aparecer em uma cadeia de jornais em todo o paÌs,
vocÍ sabe. O que acha disso?... O sr. Bates disse que eu conseguiria
um trabalho a qualquer hora
que quisesse deixar o Pickax.î
Qwilleran evitou comentar. Ele estava acostumado com as
promessas do chefe de redaÁ„o; o homem tinha uma memÛria curta.
Junior continuava a tagarelar. ìEles empregam uma porÁ„o de
mulheres no Fluxion, n„o È? Na recepÁ„o, atribuiÁıes gerais, chefes
de departamentos, fotÛgrafas.
VocÍ conhece aquela fotÛgrafa ruiva ó a que estava com meias verdes?
î
Qwilleran negou com a cabeÁa. ìEla entrou depois que saÌ do
jornal.î
ìEla È repÛrter fotogr·fica, e faz free lances para revistas
nacionais. Poder· vir ao Condado de Moose na prÛxima primavera e
fazer uma reportagem com fotos
sobre as minas abandonadas. Nada mau!î
ìNada mauî, repetiu Qwilleran calmamente.
Ele ainda estava excepcionalmente calmo quando embarcaram no
pequenino avi„o do TGIF depois da meia-noite. Ocupou o assento da
janela e, quando se virou para
ouvir Junior, pÙde ver um homem sentado do outro lado do corredor,
segurando uma revista aberta. O passageiro olhou a mesma p·gina
durante todo o vÙo.
Ele n„o est· lendo, pensou Qwilleran. Est· ouvindo. E ele n„o È
daqui. NinguÈm no Condado de Moose tem aquela frescura de camisa de
colarinho abotoado.
No terminal do aeroporto, o estranho dirigiu-se a um balc„o
para alugar um carro.
ìJuniorî, resmungou Qwilleran, ìquem È o cara da capa preta?î
ìNunca o vi antesî, disse Junior. ìParece um caixeiro-
viajante.î
O homem n„o era nenhum caixeiro-viajante, Qwilleran disse a si
mesmo. Havia algo em seu andar, em seu jeito, na maneira como ele
avaliava o que estava ‡ sua
volta...
Enquanto se dirigiam de volta para Pickax, de manh„ bem cedo,
Junior finalmente mostrou sinais de falta de entusiasmo e percebeu o
silÍncio de preocupaÁ„o de
Qwilleran. ìAlguma coisa errada em sua casa, Qwill? VocÍ disse que
era uma emergÍncia.î
ì… uma emergÍncia, mas n„o em minha casa. Sua m„e telefonou
para minha governanta, e a sra. Cobb ligou para o Clube da Imprensa.
VocÍ precisa chegar em casa
rapidamente. N„o h· nenhuma tempestade indo para l·; menti para vocÍ
sobre isso.î Qwilleran virou ‡ direita no farol.
ìEi! Para onde est· indo? VocÍ n„o est· me levando ‡ fazenda?î
ìEstamos indo para o hospital. Houve um acidente. Um acidente
de carro.î
ìMeu pai!î, exclamou Junior. ì… muito grave?î
ìMuito. Sua m„e est· lhe esperando no hospital. N„o sei como
dizer isso, Junior, mas tenho de conseguir lhe contar. Seu pai
morreu instantaneamente. Estava
na ponte ó a Velha Ponte de Pranchas.î
Eles pararam em frente ‡ porta lateral do hospital. Junior
pulou do carro sem dizer uma palavra e entrou ‡s pressas no prÈdio.
DOIS
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO. ìUma nuvem pesada cobre todo o
condado, com possibilidade de neve antes do anoitecer. A temperatura
neste momento em Pickax È
de 5,5 graus negativos, com o agravante de um vento frio de 23,5
abaixo de zero.î ó Assim disse o meteorologista da WPKX.
Na segunda-feira de manh„, as escolas, lojas, escritÛrios e
restaurantes de Pickax estiveram fechados atÈ a noite ó para o
funeral. O dia estava frio, cinzento,
˙mido e deprimente. Todavia, uma multid„o rodeou a Velha Igreja de
Pedra no Park Circle. Outros espectadores amontoaram-se no pequeno
parque circular ó tiritando,
batendo com os pÈs no ch„o, balanÁando os braÁos, esfregando as m„os
enluvadas, qualquer coisa para esquentar, e isso incluÌa um furtivo
gole de uma garrafinha em
casos de desespero. Eles estavam aguardando para assistir ‡ quebra
de um recorde: o mais longo cortejo f˙nebre desde 1904.
Carros de polÌcia bloquearam o centro da Rua Principal para
facilitar a formaÁ„o do cortejo. Carros levando bandeiras roxas no
p·ra-choque estavam alinhados
em quatro fileiras de um lado a outro da rua.
Qwilleran, circulando no meio da multid„o no parque, observava
as fisionomias e prestava atenÁ„o no baixo e respeitoso sussurro de
vozes. Meninos pequenos que
escalavam a fonte para uma melhor vis„o eram enxotados por um
oficial da polÌcia e repreendidos quando gritavam ou corriam no meio
da multid„o.
Encontravam-se reunidos dentro da igreja os numerosos ramos do
cl„ dos Goodwinter, assim como oficiais da cidade, membros da C‚mara
do ComÈrcio e da direÁ„o
do Country Club. Fora da igreja estavam os leitores do Picayune:
homens de negÛcios, donas-de-casa, fazendeiros, aposentados,
garÁonetes, trabalhadores, caÁadores.
Estavam assistindo a um evento do qual se lembrariam por toda a vida
e descreveriam para as futuras geraÁıes, exatamente como seus avÛs
haviam descrito o funeral
de Ephraim Goodwinter.
Entre eles encontrava-se um homem estranho ‡ cena. Ele vagava
no meio da multid„o, olhando atentamente em todas as direÁıes,
examinando os rostos. Estava usando
uma capa imperme·vel preta, e Qwilleran imaginava que ela teria um
forro pesado; o frio estava de arrepiar.
Um caÁador usando camuflagem laranja e preta estava resmungando
para um homem que usava um bonÈ e tinha uma bochecha cheia de rapÈ.
ìVai ser um cortejo longo.
Maior que o do capit„o Fugtree, parece.î
O fazendeiro mascou do outro lado. ìPerto de uns cem, eu
calculo. O do capit„o tinha setenta e cinco, disseram no jornal.î
ìSorte que puderam enterr·-lo antes da neve cair. ëA Grandeí
est· se movendo nesta direÁ„o, disseram no r·dio.î
ìN„o se pode acreditar em nada que dizem no r·dio. Aquela
tempestade vinda do Canad· acabou antes de chegar a qualquer ponto
perto da fronteira.î
ìO que aconteceu?î, perguntou o caÁador. ìO acidente, quero
dizer.î
ìVelha Ponte de Pranchas. … um absurdo! TÌnhamos pedido ao
condado para remover o que estivesse quebrado e alargar a
desgraÁada. Disseram que ele bateu no corrim„o
de pedra, mergulhou de cabeÁa e aterrissou nas pedras do rio. O
carro pegou fogo. O caix„o est· lacrado, ouvi dizer.î
ìEles deveriam processar alguÈm.î
ìProvavelmente estava em alta velocidade. Deve ter batido num
veado.î
ìOu podia estar numa corrida de sexta-feira ‡ noiteî, disse o
caÁador com um sorriso irÙnico.
ìN„o ele! Ela È a ˙nica que freq¸enta bares e boates. Com ele
nunca acontecia nada sen„o trabalho, trabalho, trabalho. Dormiu no
volante, aposto. FamÌlia inteira
de azarados. VocÍ sabe o que aconteceu ao velho.î
ìSim, mas ele provavelmente o merecia, pelo que ouvi.î
ìE depois foi o tio. Tem coisa suspeita sobre aquela histÛria!î
ìE o avÙ. Eles nunca descobriram a verdade sobre o que
aconteceu com ele. O que far„o com o jornal agora?î
ìO rapaz tomar· contaî, disse o fazendeiro. ìQuarta geraÁ„o.
Sabe-se l· o que ele vai querer fazer. Esses jovens v„o pra escola e
voltam com idÈias malucas.î
As vozes silenciaram quando o sino comeÁou a tocar uma ˙nica
nota solene, e o caix„o foi levado da igreja, seguido pela famÌlia
desolada. A vi˙va de vÈu, andando
lentamente, foi acompanhada por seu filho mais velho. Junior ia ao
lado de sua irm„ que veio de Montana. Na calÁada e no parque, as
pessoas da cidade se cruzavam
e os homens tiravam seus chapÈus. Houve uma longa espera enquanto as
pessoas de luto se dirigiam para os carros, dirigidos por jovens de
jaquetıes pretos e chapÈus
de pele preta. A um sinal, os homens de uniforme entraram em fila e
ergueram os instrumentos de lat„o. Ent„o, com a Banda Funer·ria de
Pickax tocando uma marcha
l˙gubre, a longa fila de carros comeÁou a se movimentar.
Qwilleran abaixou as abas laterais de seu chapÈu de inverno,
virou para cima a gola do casaco e seguiu pelo parque para o lugar
que ele agora chamava de lar.
A residÍncia Klingenschoen, herdada por Qwilleran, era uma das
cinco edificaÁıes importantes do Park Circle, onde a Rua Principal
dividia e rodeava um pequeno
pedaÁo de gramado, com bancos de pedra e uma fonte tambÈm de pedra.
De um lado do cÌrculo estavam a Velha Igreja de Pedra, e a Pequena
Igreja de Pedra e um respeit·vel
Pal·cio da JustiÁa. Em frente, do outro lado do parque, estavam a
biblioteca p˙blica e a mans„o K, como os naturais de Pickax a
chamavam. Um cubo maciÁo feito de
pedra com trÍs pavimentos, a mans„o ocupava sua ·rea espaÁosa com a
rÈgia seguranÁa de que era a construÁ„o mais impressionante e mais
cara da cidade.
Para um homem que escolhera passar sua vida adulta em
apartamentos e hotÈis, sempre se mudando como um cigano, a
residÍncia palaciana era um desconforto, um
embaraÁo. Qwilleran acabaria doando-a ‡ cidade como museu, mas por
cinco anos estava condenado a viver com o marco do consumo conspÌcuo
de Klingenschoen: amplos
cÙmodos com mais de quatro metros de altura e madeira trabalhada;
toneladas de candelabros de cristal e uma grande quantidade de
tapetes orientais; inestim·veis
antig¸idades francesas e inglesas e objetos de arte que valiam
milhıes.
Qwilleran resolveu seu problema mudando-se para o velho
alojamento dos empregados acima da garagem, enquanto a governanta
ficou ocupando a suntuosa suÌte na
casa principal.
Governanta era um termo errÙneo para Iris Cobb. Outrora
negociante e apreciadora de antig¸idades, vinda L· de Baixo, ela
agora tinha a funÁ„o de administradora
da casa, arquivista da coleÁ„o e curadora de uma obra-prima de
arquitetura destinada a se tornar um museu. Era tambÈm uma
cozinheira obsessiva, que gostava de se
divertir na cozinha ó uma figura atarracada em um avental cor-de-
rosa desbotado. Apesar das credenciais de sua carreira, a vi˙va Cobb
cozinhava, sem parar, doces
e tortas para agradar o sexo oposto e era inclinada a contemplar os
homens com adoraÁ„o, atravÈs de seus Ûculos de lentes espessas.
A sra. Cobb tinha um abundante guisado de ostras esperando
Qwilleran quando ele voltou do funeral. ìOlhei pela janela e vi
todos os carrosî, disse ela. ìO cortejo
devia ter uns oitocentos metros!î
ìO mais longo da histÛria de Pickaxî, disse Qwilleran. ìN„o foi
simplesmente o funeral de um homem; pode vir a ser o funeral de um
jornal centen·rio.î
ìO senhor viu a vi˙va? Ela est· passando por um terrÌvel
momento.î A sra. Cobb sentia-se emocionalmente ligada a qualquer
mulher que perdesse o marido, tendo
ela prÛpria vivenciado duas tragÈdias como essa.
ìOs trÍs filhos adultos da sra. Goodwinter estavam com ela ó
tambÈm uma mulher mais velha, provavelmente a vovÛ Gage de Junior.
Uma mulher pequenina, mas t„o
ereta quanto um brigadeiro... Algum telefonema enquanto eu estava
fora, sra. Cobb?î
ìN„o, mas um ajudante de cozinha do Old Stone Mill trouxe
alguns bolinhos de fÌgado de porco. … uma nova receita, e o chef
gostaria de ter sua opini„o. Eu os
coloquei no freezer.î
Qwilleran grunhiu aborrecido. ìDarei ‡quele palhaÁo uma opini„o
ó r·pida! Eu n„o tocaria em um bolinho de fÌgado de porco nem se ele
me pagasse!î
ìOh, n„o s„o alimentos para pessoas, sr. Q! S„o para os gatos.
O chef est·. experimentando uma linha de congelados para animais
domÈsticos.î
ìBem, tire uns dois do freezer e os fedelhos mimados podem
experiment·-los na ceia. A propÛsito, a senhora notou alguns livros
no ch„o da biblioteca? Koko est·
empurrando-os das prateleiras, e n„o aprovo seu novo hobby.î
ìEu a arrumei esta manh„ e n„o notei nada.î
ìEle anda particularmente atraÌdo por aqueles pequenos volumes
de Shakespeare com encadernaÁ„o de couro de porco. Ontem encontrei
Hamlet no ch„o.î
Atr·s das lentes grossas da sra. Cobb havia um pestanejar
maroto. ìO sr. acha que ele sabe que eu tinha um presunto cozido na
geladeira?î
ìEle tem caminhos tortuosos de comunicaÁ„o, sra. Cobb, mas esse
seria um novo e indignoî, disse Qwilleran. ìQue dia È hoje? Segunda-
feira? Suponho que vai sair
hoje ‡ noite. Se isso acontecer, darei comida aos gatos.î
A face da governanta iluminou-se. ìHerb Hackpole vai me levar
para jantar fora ó em algum lugar especial, disse ele.
Espero que seja no Old Stone Mill. Dizem maravilhas da comida
desde que o novo chef de cozinha assumiu o lugar.î
Qwilleran soprou o bigode, um sinal particular de desaprovaÁ„o.
ìJ· È tempo de o avarento lev·-la para jantar fora! Parece-me que
vocÍ sempre vai para a casa
dele e cozinha.î
ìMas eu gosto!î, disse a sra. Cobb com os olhos brilhando.
Hackpole era um negociante de carros usados com fama de ser
antip·tico, mas ela o achava atraente. O homem tinha diabos
vermelhos tatuados nos braÁos, usava
seus poucos cabelos em um corte rente ‡ cabeÁa e freq¸entemente
deixava de fazer a barba, mas ela gostava de homens rudes. Qwilleran
se lembrava que seu ˙ltimo marido
fora um bruto inculto e ela o amara profundamente. Agora, desde que
comeÁara a namorar Hackpole, sua face alegre e redonda tinha-se
tornado radiante.
ìSe o senhor quiser trazer alguÈm para o jantarî, disse a sra.
Cobb, ìpode servir o presunto cozido, e farei a salada com gengibre
que o senhor gosta, e colocarei
uma fÙrma de batata-doce no forno. Tudo o que o senhor tem a fazer È
tir·-la quando o apito tocar.î Ela sabia da incapacidade de
Qwilleran na cozinha.
ì… muita gentileza suaî, disse ele. ìEu poderia convidar a sra.
Duncan.î
ìOh, seria Ûtimo!î A express„o da governanta era conspiratÛria,
como se pressentisse um romance. ìVou pÙr na mesa de marchetaria da
biblioteca uma toalha da
Madeira, velas e tudo. Ser· agrad·vel e aconchegante para os dois. O
sr. OíDell pode acender a lareira com aquelas lenhas de macieira.
Elas exalam um cheiro t„o
bom!î
ìN„o faÁa isso t„o explicitamente sedutorî, pediu Qwilleran. ìA
dama È muito decente.î
ìEla È uma pessoa ador·vel, sr. Q, e tem a idade certa para o
senhor, se n„o se importa de eu estar falando assim. Ela tem muita
personalidade para uma bibliotec·ria.î
ì… uma nova tendÍnciaî, disse ele. ìAs bibliotecas agora tÍm
menos livros, e muitos audiovisuais... e festas com champanhe... e
personalidades por todos os
cantos.î
Depois do almoÁo, Qwilleran deu uma volta pelo Park Circle atÈ
a biblioteca p˙blica, que parecia um templo grego. Fora construÌda
pelo fundador do Picayune
na virada do sÈculo, e um retrato de Ephraim Goodwinter estava
pendurado no sagu„o de entrada, embora fosse parcialmente ofuscado
por uma exposiÁ„o de novos modelos
de vÌdeo e tivesse um corte na tela mal consertado.
A multid„o do hor·rio de saÌda escolar ainda n„o se havia
aglomerado na biblioteca com as liÁıes de casa, de modo que quatro
jovens funcion·rias amavelmente
se apressaram para ajudar Qwilleran. As jovens eram sempre atraÌdas
pelo homem de bigode exuberante e olhos tristes. AlÈm disso, ele
participava do conselho diretor
da biblioteca e era o homem mais rico da cidade.
Ele fez ‡s funcion·rias uma simples pergunta e todas elas
saÌram apressadas em diversas direÁıes ó uma para o cat·logo de
fichas, uma para a prateleira de histÛria
local, e duas para o computador. A resposta proveniente de todas as
fontes era negativa. Ele lhes agradeceu e se dirigiu ao escritÛrio
da bibliotec·ria-chefe no
segundo andar.
Carregando sua capa de lenhador e chapÈu de madeireiro,
Qwilleran subiu a escada saltando de trÍs em trÍs degraus, pensando
em coisas agrad·veis. Polly Ducan
era uma mulher charmosa, ainda que enigm·tica, e tinha uma voz que
ele achava calma e estimulante.
De sua escrivaninha, ela olhou para cima e deu-lhe um cordial
mas encorajador sorriso. ìQue surpresa agrad·vel, Qwill! Que miss„o
especial traz vocÍ atÈ aqui
com essa pressa?î
ìVim principalmente para ouvir sua voz suaveî, disse ele,
jogando um certo charme. E em seguida citou um de seus versos
preferidos de Shakespeare: ìA voz dela
foi sempre agrad·vel, sussurrante e acariciadora, excelente coisa na
mulherî.
ì… do Rei Lear, quinto ato, cena trÍsî, ela retorquiu
prontamente.
ìPolly, sua memÛria È incrÌvel!î, disse ele. ìEstou assombrada
e n„o sei o que dizer.î
ìEssa È a fala de Hermia, no terceiro ato, cena dois, de Sonho
de uma noite de ver„o... N„o olhe t„o surpreso, Qwill. Contei-lhe
que meu pai era especialista
em Shakespeare. Quando crianÁas conhecÌamos as peÁas como nossos
amiguinhos sabiam as mÈdias de rebatidas dos grandes times... VocÍ
foi ao funeral esta manh„?î
ìEu o observei do parque, e ele me deu uma idÈia. De acordo com
a falange das ansiosas assistentes do andar de baixo, ninguÈm jamais
escreveu uma histÛria do
Picayune. Eu gostaria de tentar isso. O que existe para trabalhar
sobre isso?î
ìDeixe-me pensar... VocÍ poderia comeÁar com os Goodwinter em
nossa coleÁ„o genealÛgica.î
ìVocÍ tem exemplares antigos do jornal?î
ìSomente dos ˙ltimos vinte anos. Os anteriores foram destruÌdos
por ratos ou por canos de vapor que explodiram ou por m·
administraÁ„o. Mas estou certa de que
o escritÛrio do Picayune tem um arquivo completo.î
ìH· alguÈm que eu possa entrevistar? AlguÈm que se lembraria de
sessenta, setenta e cinco anos atr·s?î
ìVocÍ poderia verificar no Clube dos Veteranos. Todos eles tÍm
mais de oitenta anos. Euphonia Gage È a presidente.î
ì… aquela mulher que dirige um Mercedes e buzina demais?î
ìUma descriÁ„o sucinta! O velho Goodwinter era seu genro, e
como ela tem uma reputaÁ„o de franqueza brutal poderia fornecer
algumas informaÁıes preciosas.î
ìPolly, vocÍ È um tesouro! A propÛsito, vocÍ est· livre para
jantar esta noite? A sra. Cobb est· preparando uma comida que È boa
demais para um solteiro solit·rio.
Pensei que vocÍ poderia concordar em compartilh·-la.î
ìCom prazer! N„o devo ficar atÈ muito tarde, mas espero que
haja tempo para ler em voz alta apÛs o jantar. VocÍ tem uma voz
maravilhosa, Qwill.î
ìObrigado.î Ele alisou o bigode com prazer. ìIrei para casa e
farei um gargarejo.î
Virando-se para ir embora, ele olhou de relance do segundo
andar para a sala de leitura. ìQuem È aquele homem l· * ó com uma
pilha de livros sobre a mesa?î
ìUm historiador L· de Baixo que pesquisa sobre os primeiros
trabalhos de mineraÁ„o. Ele perguntou se eu poderia recomendar
alguns bons restaurantes, e sugeri
o Stephanieís e o Old Stone Mill. VocÍ tem outras idÈias?î
ìAcho que simî, disse Qwilleran. Ele afundou seu chapÈu na
cabeÁa de forma impetuosa e fez barulho pela galeria com suas botas
amarelas, parando ‡ mesa onde
o estranho estava sentado.
Parodiando um amig·vel nativo do norte do paÌs, ele disse:
ìAlÙ! A dama ali diz que vocÍ est· procurando um lugar para comer.
Para uma comida realmente boa,
experimente o Ottoís Tasty Eats. VocÍ pode comer de tudo por cinco
dÛlares. Quanto tempo ficar· por aqui?î
ìAtÈ terminar meu trabalhoî, disse o historiador rispidamente,
debruÁando-se sobre seu livro.
ìSe quiser um gole de cerveja pode tentar o Hotel Booze. Bons
sanduÌches tambÈm.î
ìObrigadoî, disse o homem em tom de dispensa.
ìVejo que est· lendo sobre aquelas velhas minas. Meu avÙ morreu
em uma caverna em 1913. Eu n„o era nascido ainda. Tem visitado
algumas velhas minas?î
ìN„oî, disse o homem, fechando seu livro com forÁa e empurrando
sua cadeira para tr·s.
ìMais perto daqui h· o Dimsdale. Eles servem jantar. Bom lugar
para pegar um prato de vagens com salsichas.î
Agarrando sua capa preta, o estranho caminhou rapidamente para
a escadaria.
Satisfeito com a exasperaÁ„o do homem e com seu prÛprio
desempenho, Qwilleran endireitou o chapÈu, dobrou a capa e seguiu
seu caminho. Sabia, pela Ûbvia falta
de interesse do homem, que ele n„o era o que alegava ser.
¿s 5h30 Herb Hackpole chegou para pegar sua companheira de
jantar, estacionando ao lado da entrada para carros e buzinando. A
sra. Cobb saiu apressada pela
porta dos fundos, t„o excitada quanto uma menina em seu primeiro
encontro com o namorado.
¿s 5h45 Qwilleran alimentou os gatos. Os bolinhos de fÌgado de
porco, quando degelados, tornaram-se uma papa cinzenta que causava
avers„o, mas os siameses abaixaram-se
sobre o prato e devoraram a inovaÁ„o do chef com as caudas coladas
ao ch„o, denotando total satisfaÁ„o.
¿s 6h00 Polly Duncan chegou ó a pÈ ó tendo deixado seu velho
carrinho vermelho atr·s da biblioteca. Se ele fosse visto na entrada
circular para carros da mans„o
K, os fofoqueiros de Pickax teriam um dia muito agitado. Todo mundo
conhecia o carro de todo mundo ó marca, modelo, ano e cor.
Polly n„o era t„o jovem e esguia como as mulheres que ele
namorara L· Embaixo, mas era uma mulher interessante, com uma voz
que ‡s vezes o deixava tonto, e
parecia ter um abraÁo confort·vel, embora ele n„o tivesse testado
sua teoria. A bibliotec·ria mantinha uma certa reserva, apesar de
sua demonstraÁ„o de amizade,
e sempre insistia em voltar para casa cedo.
Ele saudou-a na porta da frente, uma obra-prima entalhada, de
lat„o polido. ìOnde est· a neve que prometeram?î, perguntou ele.
ìTodos os dias em novembro o WPKX prevÍ neve como um caso de
polÌciaî, disse ela, ìe mais cedo ou mais tarde eles acertar„o...
Esta casa nunca deixa de me surpreender!î
Ela estava contemplando maravilhada as paredes de couro ‚mbar
do vestÌbulo e a grande escadaria extravagantemente ampla e
elaboradamente balaustrada. O candelabro
ofuscante era de cristal Baccarat. Os tapetes eram antig¸idades da
¡sia Menor. ìEsta casa n„o pertence a Pickax; ela pertence a Paris.
… impossÌvel acreditar que
os Klingenschoen possuÌssem esses tesouros e ninguÈm soubesse
disso.î
ìFoi a vinganÁa dos Klingenschoen ó por n„o serem aceitos
socialmente.î Qwilleran acompanhou-a atÈ os fundos da casa. ìVamos
jantar na biblioteca, mas a sra.
Cobb quer que eu lhe mostre seu jardim mÛvel de ervas no sol·rio.î
O cÙmodo de ch„o de pedra tinha grandes vidraÁas, algumas
seringueiras antigas e cadeiras de vime para se relaxar no ver„o; a
nova aquisiÁ„o de inverno era
uma carreta de ferro batido, com oito vasos de barro etiquetados com
os nomes: hortel„, camomila, tomilho, basil etc.
ìPode ser girada durante o dia para aproveitar melhor a luz do
solî, explicou. ìIsto È ó se a WPKX nos permitir ter alguma.î
Polly acenou com a cabeÁa em sinal de aprovaÁ„o. ìAs ervas
gostam de sol, mas n„o de muito calor. Onde a sra. Cobb achou essa
engenhoca inteligente?î
ìEla desenhou-a, e um amigo dela a construiu em sua
serralheria. Talvez vocÍ conheÁa Hackpole, o vendedor de carros
usados.î
ìSim, justamente sua oficina guardou meu carro no inverno. VocÍ
est· gostando de seu novo carro com traÁ„o dianteira, Qwill?î
ìEu saberei melhor quando a neve cair.î
Na biblioteca, as l‚mpadas estavam acesas, a lenha em chamas na
lareira e a mesa posta como uma exposiÁ„o ofuscante de porcelana,
cristal e prata. As quatro
paredes de livros eram salientadas por bustos de m·rmore de Homer,
Dante e Shakespeare.
ìOs Klingenschoen leram esses livros?î, perguntou Polly.
ìAcho que eram principalmente para decoraÁ„o, exceto umas
poucas novelas picantes dos anos 20. Achei no sÛt„o caixas de livros
de mistÈrios e romances.î
ìPelo menos alguÈm estava lendo. Ainda h· esperanÁa para a
palavra impressa.î Ela entregou a ele um livro com capa gasta e
desbotada. ìEis algo que pode lhe
interessar ó Picturesque Pickax, publicado antes da Primeira Guerra
Mundial. Na p·gina com o marcador h· uma fotografia do prÈdio do
Picayune com os empregados em
pÈ na calÁada.î
Qwilleran achou a foto de homens com fisionomias ansiosas e
bigodes grandes, colarinhos altos, aventais de couro, viseiras,
ligas no braÁo e cabelo emplastrado
repartido ao meio. ìPareciam estar diante de um pelot„o de
fuzilamentoî, disse. ìObrigado. Ser· ˙til.î
Ele serviu um aperitivo para sua convidada. Sherry seco era o
preferido dela; um copo era seu limite. Para ele, um suco de uva
branca.
ìVotre santÈ!î, ele brindou, fitando-a.
ìSantÈ!î, ela respondeu com um olhar contido.
Ela usava um conjunto cinza-escuro, blusa branca e mocassim
castanho-avermelhado que parecia ser seu uniforme da biblioteca, mas
tentou dar mais vida com uma
echarpe colorida. Estar na moda n„o era uma de suas metas, e seu
corte de cabelo austero n„o estava na ˙ltima onda, mas sua voz...!
Era sempre suave, dÛcil e baixa,
e conhecia Shakespeare de tr·s para a frente e de frente para tr·s.
Depois de um instante de silÍncio, durante o qual Qwilleran se
perguntava o que Polly estaria pensando, ele disse: ìVocÍ se lembra
daquele cara que se dizia
historiador na sala de leitura? Ele estava com uma pilha de livros
sobre o trabalho nas velhas minas. Mas duvido que esteja falando a
verdade.î
ìPor que vocÍ diz isso?î
ìSua postura relaxada. A forma como segurava o livro. Ele n„o
demonstrava a ‚nsia ·vida do pesquisador por informaÁıes, e n„o
estava tomando notas. Estava lendo
preguiÁosamente para matar o tempo.î
ìEnt„o quem È ele? Por que disfarÁaria sua identidade?î
ìAcho que ele È um investigador. NarcÛticos ó FBI ó alguma
coisa assim.î
Polly olhou desconfiada. ìEm Pickax?î
ìTenho certeza de que h· v·rios esqueletos nos arm·rios locais,
Polly, e a maioria do pessoal daqui sabe tudo sobre eles. VocÍ tem
aqui alguns fofoqueiros de
categoria mundial.î
ìEu n„o os chamaria de fofoqueirosî, disse, com ar de defesa.
ìEm cidades pequenas as pessoas compartilham as informaÁıes. … uma
forma de carinho.î
Qwilleran ergueu uma sobrancelha, maliciosamente. ìBem, o
estranho misterioso completar· sua miss„o antes que a neve caia ou
ficar· fazendo pose na sala de
leitura atÈ a primavera chegar... Outra pergunta. O que acontecer·
ao Picayune agora que o velho se foi? Algum palpite?î
ìSer· provavelmente uma morte tranq¸ila ó uma idÈia de que
viveu seu tempo.î
ìVocÍ conheceu bem os pais de Junior?î
ìSÛ casualmente. O velho era fan·tico por trabalho ó um homem
agrad·vel, mas de forma alguma social. Gritty gosta da vida do
Country Club: golfe, baralho, jantares
danÁantes. Eu queria que ela participasse do meu conselho diretor,
mas era extremamente entediante para o seu gosto.î
ìGritty? … o nome da sra. Goodwinter?î
ìNa verdade, Gertrude, mas h· uma certa panelinha aqui que
aderiu a seus apelidos de adolescÍncia: Muffy, Buffy, Bunky, Dodo.
Devo admitir que a sra. Goodwinter
tem muita coragem, por bem ou por mal. Ela È como a m„e. Euphonia
Gage È uma mulher corajosa.î
Um apito soou distante e Qwilleran acendeu as velas, colocou
uma fita de FaurÈ no toca-fitas e serviu o jantar.
ìObviamente vocÍ conhece todo mundo em Pickaxî, comentou ele.
ìPara uma recÈm-chegada, sou aceit·vel. Estou aqui h·
somente... vinte e cinco anos.î
ìEu tinha a impress„o de que vocÍ era do Leste. Nova
Inglaterra?î
Ela concordou com a cabeÁa. ìQuando estava na faculdade, casei-
me com um jovem de Pickax e viemos para c· administrar uma livraria
de sua famÌlia. Infelizmente
ela foi fechada logo depois disso ó quando meu marido morreu ó mas
eu n„o quis voltar para o Leste.î
ìEle devia ser muito jovem.î
ìMuito jovem. Era volunt·rio do corpo de bombeiros. Eu me
lembro de um dia seco de ventania, em agosto. Nossa livraria ficava
a uma quadra do Corpo de Bombeiros,
e quando a sirene soou, meu marido saiu depressa da loja. O tr·fego
parou completamente e homens vinham correndo de todas as direÁıes ó
disparados, ansiosos, movendo
os braÁos para todos os lados. O mec‚nico do posto de gasolina, um
dos jovens pastores, um garÁom, o homem da cutelaria ó todos
correndo como se suas vidas dependessem
disso. Ent„o carros e caminhıes com luzes giratÛrias pararam e
estacionaram a esmo, e os motoristas pularam para fora e correram
para a sede do Corpo de Bombeiros.
AÌ as portas foram abertas, o tanque e a mangueira foram tirados, e
os homens subiam nos caminhıes e se vestiam com roupas apropriadas
para enfrentar o fogo.î
ìVocÍ descreve isso vividamente, Polly.î
Seus olhos se encheram de l·grimas. ìFoi um fogo no celeiro, e
ele foi morto por uma viga que caiu.î
Houve um longo silÍncio.
ì… uma histÛria tristeî, disse Qwilleran.
ìOs bombeiros eram t„o conscienciosos. Quando a sirene tocava,
eles abandonavam tudo e corriam. No meio da noite acordavam de um
sono profundo, vestiam algumas
roupas e corriam. Ainda eram criticados: chegaram tarde demais...
n„o havia homens suficientes... a ·gua das bombas de incÍndio n„o
era suficiente... os equipamentos
estavam quebradosî, observou. ìEles se esforÁavam bastante. Ainda se
esforÁam. S„o todos volunt·rios, vocÍ sabe.î
ìJunior Goodwinter È um volunt·rioî, disse Qwilleran, ìe seu
bip est· sempre soando no meio de alguma coisa... O que vocÍ fez
depois daquele dia de ventania
em agosto?î
ìFui trabalhar na biblioteca e encontrei um consolo aqui.î
ìPickax tem uma dimens„o humana que È ó como direi? ó
confortante. Tranq¸ilizadora. Mas por que todos nÛs somos obcecados
com os boletins meteorolÛgicos?î
ìEstamos prÛximos aos elementosî, disse Polly. ìO clima afeta
tudo: a agricultura, a extraÁ„o da madeira, a pescaria comercial, os
esportes ao ar livre. E todos
nÛs dirigimos longas dist‚ncias pelas estradas do paÌs. N„o h· t·xis
que possamos chamar em um dia ruim.î
A sra. Cobb havia deixado a cafeteira ligada e potes de musse
de chocolate na geladeira. A refeiÁ„o acabou de forma agrad·vel.
ìOnde est„o os gatos?î, perguntou Polly.
ìTrancados na cozinha. Koko andou empurrando livros da
prateleira. Ele acha que È um bibliotec·rio. Yum Yum, por outro
lado, È simplesmente uma gata que persegue
sua cauda e rouba clipes de papel e esconde coisas sob o tapete.
Sempre que meu pÈ tropeÁa em um calombo no tapete, eu estremeÁo.
Ser· meu relÛgio de pulso? Ou um
rato? Ou meus Ûculos de leitura? Ou um envelope amassado da cesta de
lixo?î
ìQue tÌtulos Koko recomendou?î
ìEle est· gostando muito de Shakespeareî, disse Qwilleran.
ìPode ser por causa das capas de couro. Logo que cheguei ele
empurrou Sonho de uma noite de ver„o
da prateleira.î
ì… uma coincidÍnciaî, disse Polly. ìMeu nome vem de uma das
personagens.î Ela fez uma pausa e esperou que ele adivinhasse.
ìHipÛlita?î
ìCorreto! Meu pai deu nome a todos nÛs a partir dos personagens
das peÁas. Meus irm„os s„o Marco Antonio e Brutus, e minha pobre
irm„ OfÈlia teve sempre, desde
a quinta sÈrie, de tolerar coment·rios obscenos... Por que vocÍ n„o
solta os gatos? Eu gostaria de ver Koko em aÁ„o.î
Quando eles foram soltos, Yum Yum andou elegantemente para a
biblioteca, colocando uma pata na frente da outra e procurando um
colo livre, mas Koko ostentava
sua independÍncia adiando sua entrada. SÛ quando Qwilleran e sua
convidada ouviram um plunk concluÌram que Koko estava na sala. No
ch„o jazia o volume fino de Henrique
VIII.
Qwilleran disse: ìVocÍ tem de admitir que ele sabe o que est·
fazendo. H· uma cena forte desempenhada por uma mulher na peÁa ó
quando a rainha enfrenta os dois
cardeais.î
ì… terrÌvel!î, disse Polly. ìKatherine diz ser uma pobre e
fraca mulher, mas destrÛi os dois homens s·bios. ëTendes rostos de
anjos, mas o cÈu conhece vossos
coraÁıes!í VocÍ j· se perguntou sobre a verdadeira identidade de
Shakespeare, Qwill?î
ìEu li que as peÁas podem ter sido escritas por Jonson ou
Oxford.î
ìEu acho que Shakespeare era mulher. H· muitos papÈis femininos
fortes e falas maravilhosas para mulheres.î
ìE h· papÈis masculinos fortes e falas maravilhosas para
homensî, ele retorquiu.
ìSim, mas sustento que uma mulher pode escrever papÈis
masculinos fortes com mais sucesso do que um homem pode escrever
bons papÈis para mulheres.î
ìHummî, murmurou Qwilleran com polidez.
Koko agora estava sentado com orgulho na escrivaninha,
obviamente esperando por alguma coisa, e Qwilleran se sentiu
obrigado a ler o prÛlogo da peÁa. Depois
Polly fez uma leitura estarrecedora da cena de confronto da rainha.
ìMiau!î, ronronou Koko.
ìAgora preciso irî, disse ela, ìantes que meu senhorio comece a
ficar preocupado.î ìSeu senhorio?î
ìO sr. MacGregor È um am·vel vi˙voî, ela explicou. ìAluguei uma
pequena casa em sua fazenda, e ele acha que mulheres n„o deveriam
sair sozinhas ‡ noite. Fica
acordado esperando que eu entre com o carro.î
ìVocÍ j· testou sua teoria sobre Shakespeare com seu senhorio?
î, perguntou Qwilleran.
Depois de Polly ter dito um gracioso ìobrigadaî e um r·pido
ìboa-noiteî, Qwilleran ficou pensando em sua desculpa para ir embora
cedo. Pelo menos Koko n„o a
expulsara de casa, como fizera com outras visitas femininas no
passado. Isso j· era um bom sinal.
Qwilleran estava tirando a louÁa do jantar e colocando a
cozinha em ordem, quando a sra. Cobb voltou de seu encontro, rubra e
feliz.
ìOh, n„o precisa fazer isso, sr. Qî, disse ela.
ìN„o h· problema algum. Obrigado pela refeiÁ„o soberba. Como
foi seu jantar?î
ìFomos ao Old Stone Mill. A comida est· muito melhor agora. Eu
comi uma esplÍndida truta ao molho de vinho. Herb pediu steak Diane,
mas n„o gostou do molho.î
Aquele cara, pensou Qwilleran, preferiria ketchup. Para a sra.
Cobb ele disse: ìA sra. Duncan estava me contando sobre a brigada de
incÍndio volunt·ria. Hackpole
n„o È bombeiro?î
ìSim, e ele teve algumas experiÍncias emocionantes ó retirando
crianÁas de um prÈdio em chamas, reanimando pessoas com respiraÁ„o
boca a boca, juntando vacas
de um celeiro incendiado!î
Interessante se for verdade, pensava Qwilleran. ìTraga-o aqui
para um drinque na prÛxima noite em que vocÍs saÌremî, sugeriu.
ìGostaria de saber como funciona
a brigada de incÍndio de uma cidade pequena.î
ìOh, obrigada sr. Q! Ele ficar· contente. Ele acha que o senhor
n„o gosta dele por tÍ-lo levado ao tribunal uma vez.î
ìNada pessoal. Simplesmente objetei por ter sido atacado por um
cachorro que deveria estar acorrentado, de acordo com a lei. Se a
senhora gosta dele, sra. Cobb,
tenho certeza de que ele È um bom homem.î
Quando Qwilleran estava fechando a casa para dormir, o telefone
tocou. Era a voz de Junior Goodwinter estalando de excitaÁ„o. ìEla
est· chegando. Ela chega
no vÙo de amanh„!î
ìQuem est· chegando?î
ìA repÛrter fotogr·fica que encontrei no Clube da Imprensa. Ela
diz que amanh„ o Fluxion est· publicando a coluna e vai aparecer por
todo o paÌs esta semana.
Ela quer oferecer a reportagem fotogr·fica a uma revista enquanto a
notÌcia est· quente.î
ìVocÍ contou a ela... sobre seu pai?î
ìEla diz que isso sÛ far· a reportagem mais atual. Tenho de
peg·-la no aeroporto amanh„ de manh„. Iremos buscar alguns veteranos
que costumavam trabalhar no
Pic para posarem para as fotos. VocÍ compreende o que significa
isso? Pickax ser· colocada no mapa! E poderia levar o Picayune de
volta aos bons tempos, se comeÁarmos
a pegar assinaturas de outros lugares.î
Coisas mais estranhas j· aconteceram, pensou Qwilleran.
ìTelefone para mim amanh„ ‡ noite depois da sess„o de fotos.
Coloque-me a par do que acontecer. E boa
sorte!î
Quando recolocou o telefone no gancho, ouviu um leve som,
plunk, como se outro livro aterrissasse no tapete Bokhara. Koko
estava sentado na prateleira de Shakespeare,
parecendo orgulhoso de si mesmo.
Qwilleran pegou o livro e alisou as p·ginas amarrotadas. Era
Hamlet outra vez, e uma linha na primeira cena chamou sua atenÁ„o:
ìAcaba de bater meia-noite.
Vai para a cama...î
Dirigindo-se para o gato ele disse: ìVocÍ pode pensar que È
inteligente, mas tem de parar com isso! Esses livros s„o impressos
em um refinado papel da Õndia.
Eles n„o podem ag¸entar esse tipo de tratamento.î
ìIk, ik, ikî, ronronou Koko, seguindo sua observaÁ„o com um
bocejo.
TR S
TER«A-FEIRA, 12 DE NOVEMBRO. ìNeve durante o dia, depois queda
de temperatura e mudanÁa da direÁ„o dos ventos para nordeste.î Assim
disse a WPKX, e o sr. OíDell,
empregado da casa, limpou suas p·s de neve e checou as velas de
igniÁ„o de seu limpador de neve.
Era o dia seguinte ‡ bem-sucedida estrÈia dos bolinhos de
fÌgado de porco, e Qwilleran planejou almoÁar no Old Stone Mill ó
para relatar os resultados ao chef
de cozinha, e para resolver um mistÈrio que o estava chateando.
Quem È o chef de cozinha?
Qual o seu nome?
De onde ele veio?
Quais eram suas credenciais?
E por que ninguÈm o tinha visto?
O restaurante era um antigo moinho com uma roda dí·gua
gigantesca, recentemente reformado com bom gosto. As paredes de
pedra e vigas de madeira maciÁas ficavam
expostas. O ch„o de madeira fora lixado atÈ chegar ‡ cor de mel;
todas as mesas tinham uma vis„o da roda dí·gua que rangia e girava
sem parar, embora o fluxo do
moinho tivesse secado h· setenta anos. A comida, todo mundo dizia,
era abomin·vel.
Ent„o o restaurante foi comprado pela empresa XYZ, Inc., de
Pickax, construtora dos apartamentos e condomÌnios Indian Village no
rio Ittibittiwassee. A firma
possuÌa tambÈm uma sÈrie de lojas no condado e um novo motel em
Mooseville.
Um dia, em um encontro da C‚mara do ComÈrcio, Qwilleran foi
abordado por Don Exbridge, o X da empresa XYZ. Era um varapau com um
metro e noventa e cinco, e
um sorriso que o tornara popular e bem-sucedido.
ìQwill, vocÍ tem ligaÁıes com restaurantes L· de Baixoî, disse
Exbridge. ìOnde podemos conseguir um bom chef de cozinha para o Old
Stone Mill? De preferÍncia
alguÈm que aprecie ar livre e n„o se importe de morar em uma
cabana.î
ìPensarei nisso e darei um retornoî, prometeu Qwilleran.
Ent„o as rodas comeÁaram a girar em sua mente. Hixie Rice, sua
antiga vizinha L· de Baixo... membro de um seleto grupo de
gastrÙnomos... adorava comer, e sua
figura comprovava isso... mulher jovem, inteligente... infeliz no
amor... trabalhava em publicidade e promoÁ„o... costumava falar
francÍs com Koko. Por que, perguntava-se
Qwilleran, todas as pessoas espertas estavam na publicidade,
enquanto os pensadores sÈrios que davam duro estavam no jornalismo,
ganhando menos?
A ˙ltima vez que tinha tido notÌcia de Hixie, ela estava
namorando um chef de cozinha e tendo aulas de administraÁ„o de
restaurante. E foi assim que Hixie Rice
e seu chef de cozinha aterrissaram em Pickax. Imediatamente
substituÌram o horrÌvel card·pio por pratos mais sofisticados e
novos ingredientes. O chef treinou o
antigo pessoal da cozinha, guardou as velhas frigideiras e racionou
o sal.
Quando Qwilleran foi almoÁar no Old Stone Mill, na terÁa-feira,
mal reconheceu a antiga sÛcia do Clube das Gordas Amig·veis. ìHixie,
vocÍ est· quase anorÈxica!î,
disse ele. ìVocÍ parou de colocar manteiga em seu bacon e aÁ˙car em
seu sundae de chocolate?î
ìVocÍ n„o vai acreditar, Qwill, mas trabalhar em restaurante
curou minha obsess„o por comidaî, disse. ìToda essa comida me enjoa.
Sete quilos de manteiga...
cinco quilos de fatias de queijo... duas centenas de galinhas...
trinta d˙zias de ovos! VocÍ j· viu duas centenas de galinhas
depenadas, Qwill?î
Com o peso perdido, Hixie tinha perdido tambÈm sua voz alta e
asm·tica, e seu cabelo agora parecia saud·vel e natural, em vez de
montado e envernizado. ìVocÍ
est· com uma aparÍncia excelente!î, ele lhe falou.
ìE vocÍ parece Ûtimo, Qwill. Sua voz soa diferente.î
ìParei de fumar. Rosemary convenceu-me a abandonar o cachimbo.î
ìVocÍ ainda vÍ Rosemary?î
ìN„o, ela est· morando em Toronto.î
ìToda nossa velha gangue de gastrÙnomos est· dispersa, mas
pensei que vocÍs dois estivessem destinados ‡ servid„o sagrada.î
ìHavia um choque de personalidade entre Rosemary e Kokoî, ele
explicou.
Hixie indicou-lhe um lugar perto da roda do moinho que girava.
ìEsta È considerada uma mesa privilegiadaî, disse ela, ìembora o
movimento da roda deixe alguns
de nossos clientes enjoados. … o rangido que me d· Ìmpetos de subir
nas paredes e a fita com a gravaÁ„o de um moinho acelerado tem um
efeito psicolÛgico nos que
vÍm jantar. Eles est„o gastando o tapete que leva ao banheiro.î Ela
lhe entregou o card·pio. ìO pernil de cordeiro com ratatouille est·
bom hoje.î
ìE o salm„o fresco?î
ìAcabou. VocÍ est· um pouco atrasado.î
ìFoi premeditadoî, disse Qwilleran. ìEu gostaria de falar com
vocÍ. Pode se sentar comigo?î
Ele pediu o pernil, e Hixie sentou-se com um copo de Campari e
um cigarro. ìKoko e Yum Yum gostaram dos bolinhos?î, perguntou ela.
ìDepois que comeram, um correu atr·s do outro para cima e para
baixo por duas horas, e eles s„o castrados! VocÍ descobriu um
afrodisÌaco para felinos?î
ìEsta È apenas a primeira de v·rias comidas congeladas para
gatos que queremos comercializar. O pessoal da XYZ est· nos apoiando
financeiramente. Fabulosas
Comidas Congeladas para Felinos Exigentes! Que tal?î
ìQuando vocÍ e seu parceiro ir„o visitar e falar francÍs com
Koko? VocÍs n„o viram a choÁa magnÌfica em que moro.î
ì… difÌcil fazermos visitasî, ela se desculpou. ìNÛs
trabalhamos em horas ruins. Nunca me falaram sobre isso na escola de
restaurante. N„o estou lamentando;
na verdade, estou absolutamente feliz! Eu era um fracasso, vocÍ
sabe, mas tudo mudou desde que encontrei um homem maravilhoso. Ele
n„o È alcoÛlatra, n„o consome
drogas e n„o È marido de outras mulheres.î
ìEstou muito feliz por vocÍî, disse Qwilleran. ìQuando serei
apresentado ao rapaz?î
ìEle n„o est· aqui agora.î
ìQual È seu nome? Como ele È?î
ìTony Peters, e È alto, louro e muito atraente.î
ìOnde ele aprendeu a cozinhar?î
ìMontreal... Paris... outros bons lugares.î
ìEu gostaria de conhecer o rapaz e apertar sua m„o. Afinal de
contas, sou respons·vel por trazer vocÍs dois para este paraÌso do
norte.î
ìAtualmenteî, disse Hixie, ìele est· fora da cidade. Sua m„e
teve um derrame e ele teve de ir para a FiladÈlfia.î
ìSeria melhor ele voltar antes que a neve caia ou ter· de fazer
a viagem com sapatos para neve. O aeroporto fecha apÛs ëA Grandeí.
Onde vocÍs est„o morando?î
ìNÛs temos um excelente apartamento no Indian Village. O sr.
Exbridge usou de pistol„o para nos colocar l· dentro. H· uma fila de
espera, vocÍ sabe.î
ìE o que vocÍs fazem no dia de folga?î
ìTony est· escrevendo um livro de receitas. Eu investigo a
concorrÍncia pelo condado.î
ìTem feito descobertas interessantes?î
ìPrÛximo ao Old Stone Mill, Stephanieís tem a melhor comidaî,
disse Hixie, ìmas seu chef de cozinha tem algum tipo de bloqueio
mental. Eu pedi uma alcachofra
recheada e ele me trouxe um abacate recheado. Quando o garÁom
insistiu que era uma alcachofra, peguei meu prato e invadi a cozinha
para enfrentar o chef de cozinha,
e aquele arrogante est˙pido teve a aud·cia de me dizer que eu n„o
poderia distinguir uma alcachofra recheada de um crocodilo recheado!
Fiquei furiosa! Informei a
ele que uma alcachofra pertence ‡ mesma famÌlia do cardo e um
abacate È um fruto em forma de pÍra, cujo nome vem da palavra que
significa testÌculo em Nahuatl, embora
eu tivesse certeza que ele n„o sabia nada sobre o assunto!î
ìComo ele reagiu?î
ìLevantou uma faca de aÁougueiro e comeÁou a esmigalhar peitos
de galinha, de modo que me retirei antes que eu me tornasse um
n˙mero na estatÌstica de homicÌdio.î
* *

Naquela tarde, Qwilleran sentou-se diante de sua escrivaninha


na biblioteca e se perguntou sobre Hixie e seu misterioso
companheiro. Koko pulou para o topo
da escrivaninha, sentou-se orgulhoso e empertigou a cabeÁa com
expectativa.
ìVocÍ se lembra de Hixie?î, perguntou-lhe Qwilleran. ìEla
estava tendo aulas de francÍs e costumava dizer: ëBonjour, Monsieur
Kokoí. Ela sempre se envolvia
com tipos marginais, e agora est· com um chef de cozinha invisÌvel.
H· algo estranho com ele, mas sua cozinha est· produzindo grandes
maravilhas. Eu trouxe um bom
pedaÁo de pernil de cordeiro. Hixie ficou alegre por vocÍ ter
gostado dos bolinhos.î
Koko remexeu o traseiro, apertou os olhos e ronronou em falsete
ìIk, ikî.
Naquele momento a sra. Cobb apareceu na sala, inquiridora.
ìOuvi o senhor conversando e pensei que tivesse companhia, sr.
Q. Eu vinha sugerir um pouco de ch· e cookies. Acabei de assar
merengues de pec„ com manteiga
e aÁ˙car.î
ìEstou apenas tendo um di·logo inteligente com Koko, como
recomendou Lori Bambaî, explicou. ìSinto-me um idiota, mas ele
parece se divertir. A propÛsito, aceitarei
um pouco dessas coisas com manteiga e aÁ˙car, mas faÁa cafÈ em vez
de ch·.î
Ela saiu rapidamente para a cozinha, e Qwilleran continuou.
ìBem, Koko, hoje foi a grande sess„o de fotos no escritÛrio do
Picayune. Por consideraÁ„o a Junior,
espero que alguma coisa boa advenha disso. Eu me pergunto se os
veteranos se mantiveram juntos o tempo suficiente para a fotografia
ser tirada. Provavelmente tiveram
de escor·-los com arame.î
O dia passou sem a neve prevista pelo r·dio, mas a temperatura
estava caindo rapidamente. Qwilleran estava ouvindo a previs„o do
tempo ‡ noite, bem tarde, quando
Junior finalmente telefonou. Sua voz n„o tinha nada da excitaÁ„o do
dia anterior. Ele falou em tom baixo. Qwilleran pensou: alguma coisa
saiu errada; a ruiva deu
o bolo; decidiu que isso n„o dava uma reportagem; esqueceu a c‚mera;
o plano ruiu; os veteranos tiveram ataques do coraÁ„o.
ìVocÍ ouviu algum boato?î, Junior perguntou.
ìSobre o quÍ?î
ìSobre qualquer coisa.î
ìN„o sei sobre o que est· falando, garoto. VocÍ est· sÛbrio?î
ìGostaria de n„o estarî, disse Junior de maneira mal-humorada.
ìVocÍ se importa se eu for aÌ vÍ-lo? Sei que est· tarde...î
ìCerto, venha.î
ìEstou na casa de Jody. Tudo bem se eu a levar comigo?î
ìClaro. O que vocÍs dois querem beber?î
ëTaÁa cafÈî, disse Junior depois de hesitar um momento. ìSe
bebo quando estou mal, corro o risco de cortar os pulsos.î
Qwilleran encheu uma garrafa tÈrmica com cafÈ e j· estava com
uma bandeja esperando na biblioteca, quando o Jaguar vermelho entrou
na garagem.
Tiny Jody, com seu cabelo louro e liso e grandes olhos azuis,
parecia uma boneca de porcelana. Junior parecia um velho.
ìBom Deus! O que aconteceu com vocÍ?î, perguntou Qwilleran.
ìVocÍ est· com uma aparÍncia cadavÈrica, Junior.î Apontando com a
m„o, encaminhou o jovem casal
para a biblioteca.
Junior despencou em um sof· de couro. ìM·s notÌcias!î
ìA sess„o de fotos n„o foi realizada?î
ìOh, claro, mas de que vai adiantar? Fui um louco fazendo-a vir
inutilmente para c·.î
ìVocÍ est· falando em enigmas, Junior. Fale claro!î
Com sua voz de menina, Jody disse: ìConte ao sr. Qwilleran
sobre sua m„e, Juney.î
O jovem jornalista olhou fixamente para Qwilleran durante um
instante de silÍncio antes de contar impulsivamente a notÌcia: ìEla
est· vendendo.î
ìVendendo o quÍ?î
ìVendendo o Picayune.î
Qwilleran franziu as sobrancelhas. ìO que h· para vender? N„o
h· nada l·, a n„o ser... bem... uma idÈia original.î
ìEsta È a pior parteî, disse Junior. ìA idÈia e todos aqueles
anos de tradiÁ„o est„o indo por ·gua abaixo. Ela est· vendendo o
nome.î
Qwilleran n„o conseguia acreditar nem entender. ìOnde ela
espera encontrar um comprador?î
Jody interrompeu. ìEla j· conseguiu um comprador. A empresa
XYZ.î
ìEles querem fazer dele um jornal descart·vel de propagandaî,
disse Junior, parecendo que ia chorar. ìUm daqueles tablÛides, com
an˙ncios baratos e tinta que
solta nas m„os. Nenhuma matÈria jornalÌstica. Eu lhe digo, Qwill, È
uma porrada.î
ìEla tem o direito de vender o jornal? E o testamento de seu
pai?î
ìEle deixou tudo para ela. Todos os bens est„o assegurados
juntos ó como est„o.î
ìJuneyî, disse a voz delicada, ìconte ao sr. Qwilleran sobre
seu sonho.î
ìSim, tenho sonhado com meu pai todas as noites. Ele aparece em
pÈ com seu avental de couro e o chapÈu de papel de jornal, todo
coberto de sangue, e est· me
dizendo alguma coisa que eu n„o consigo ouvir.î
Qwilleran estava tentando organizar os pensamentos de Junior.
ìIsso aconteceu muito r·pido, Junior. Seu pai foi enterrado ontem. …
r·pido demais para uma esposa
desolada tomar uma decis„o. VocÍ disse isso a sua m„e?î
ìO que adianta? Quando ela decide fazer alguma coisa, ela faz.î
ìComo sua irm„ e seu irm„o reagiram?î
ìMeu irm„o voltou para a CalifÛrnia. Ele n„o se importa. Minha
irm„ acha que È um crime, mas ela n„o tem nenhuma influÍncia. N„o
com nossa m„e! VocÍ n„o a conhece.î
ìFoi idÈia dela? Ou o pessoal XYZ fez uma oferta?î
Junior hesitou antes de responder. ìHum... N„o sei.î
ìPor que ela est· com essa pressa para vender?î
ìBem, o dinheiro, sabe como È... Ela precisa do dinheiro. Papai
tinha uma porÁ„o de dÌvidas.î
ìEle tinha um seguro de vida decente?î
ìHavia uma apÛlice, mas nada grande. VovÛ Gage pagou durante
anos, exatamente para proteger minha m„e e a nÛs... A casa tambÈm
est· sendo vendida.î
ìA casa da fazenda?î
ìN„o È triste?î, disse Jody. ìEla foi da famÌlia Goodwinter por
uns cem anos.î
Qwilleran disse: ìUma vi˙va nunca deveria tomar uma decis„o
r·pida para mudar seu estilo de vida.î
ìBem, a casa est· hipotecadaî, disse Junior, ìe de qualquer
modo ela nunca quis uma casa grande. Ela gosta de condomÌnios. Ela
quer se desfazer da casa antes
que a neve caia ó n„o quer ficar presa num lugar grande como o
campo, durante o inverno.î
ì… compreensÌvel.î
ìEla est· indo para um apartamento no Indian Village.î
ìEu pensei que n„o havia casa desocupada por l·.î
Jody disse: ìEla est· mudando para a casa de um amigoî, e
Junior fez uma careta para ela.
ìEla consegue achar um comprador para a casa com essa rapidez ó
sem prejudicar a venda?î, perguntou Qwilleran.
ìEla conseguiu um comprador.î
ìQuem? VocÍ sabe quem È?î
ìHerb Hackpole.î
ìHackpole! O que um homem sozinho quer com uma casa grande como
aquela?î
ìBem, ele est· querendo um lugar no campo, vocÍ sabe, assim vai
poder criar seus c„es. Ele tem c„es de caÁa. A propriedade n„o chega
a ter nem um acre de terra,
mas ele ter· um bom cercado e dois celeiros.î
ìE a mobÌlia? VocÍ dizia que seus pais tinham uma porÁ„o de
mÛveis herdados da famÌlia.î
ìEles ser„o leiloados separadamente.î
Jody disse: ìAo Juney prometeram a escrivaninha de seu bisavÙ,
mas ela vai ser vendida tambÈm.î
Em tom de defesa, Junior disse: ìSe puderem fazer o leil„o
antes que a neve caia, v„o atrair compradores de Ohio e de Illinois
e conseguir pegar um preÁo maior.î
ìE as antigas prensas no celeiro?î
Junior encolheu os ombros. ìSer„o vendidas como ferro-velho.
Eles calculam o preÁo por tonelada.î
Os trÍs caÌram em trÍs tipos de silÍncio: Junior, deprimido;
Jody, solid·rio; Qwilleran, aturdido. Senior Goodwinter tinha
morrido na noite de sexta-feira,
fora enterrado na segunda e hoje era terÁa-feira.
ìQuando vocÍ ouviu sobre essas decisıes dr·sticas, Junior?î
ìMinha m„e telefonou para o escritÛrio esta tarde ó exatamente
no meio da sess„o de fotos. Eu n„o disse nada ‡ fotÛgrafa. VocÍ acha
que eu deveria ter contado
a ela? Poderia matar a reportagem ó ou cort·-la. Ela foi embora h·
uma hora. Levei-a ao aeroporto.î
De repente o bip de Junior tocou. ìOh, n„o!î, disse ele. ì…
tudo o que eu queria! Um est˙pido incÍndio no celeiro. Leve Jody
para casa, est· bem Qwill?î, ele
falou por cima do ombro, saindo rapidamente. A sirene da entrada da
cidade estava tocando alto. As sirenes da polÌcia gemiam.
Foi ent„o que Qwilleran se deu conta de que tinha esquecido de
servir o cafÈ. ìAceita uma xÌcara, Jody? Se j· n„o estiver frio.î
A jovem encolheu-se no sof· segurando a grande caneca em suas
pequenas m„os. ìSinto muita pena do Juney. Disse a ele para ir L·
para Baixo, pegar um trabalho
no Daily Fluxion e esquecer tudo isso daqui.î
ìNinguÈm deveria agir por impulso numa hora como essaî,
aconselhou Qwilleran.
ìTalvez ele pudesse conseguir um mandado para impedi-la de
vender ó ou adiar atÈ que ela pense direito.î
ìN„o funcionar·. Teria de ser comprovado que ela est·
mentalmente incapaz. A propriedade È dela agora. Ela pode fazer tudo
o que quiser.î
Naquele momento, a sra. Cobb, de roup„o e chinelos, fez uma
abrupta apariÁ„o no v„o da porta. ìOlhem pela janela!î, disse
alarmada. ìH· um incÍndio na Rua Principal!
Parece que o pavilh„o de caÁa est· pegando fogo!î
Qwilleran e Jody deram um salto, e todos os trÍs correram para
as janelas da frente.
ì… o pavilh„o do Herbî, disse a sra. Cobb. ìEsta È a noite da
reuni„o deles. Pode ser que haja trinta ou quarenta pessoas na
casa.î
ìVou l· verî, disse Qwilleran. ìVenha, Jody, e depois eu a
levarei para casa. Por ali... pela porta dos fundos... o carro est·
na garagem.î
No centro da cidade, a Rua Principal estava cheia de clarıes de
luzes azuis e vermelhas. O tr·fego foi desviado e os caminhıes dos
bombeiros estacionaram em
uma curva, apontando seus farÛis para o centro do quarteir„o. As
bombas de incÍndio estavam funcionando e as mangueiras espalhavam
·gua no telhado do pavilh„o de
trÍs andares. Atr·s daquele prÈdio havia um reluzir vermelho-
alaranjado com chamas que saltavam para cima ó depois um assobio de
vapor ó depois uma nuvem de fumaÁa.
Qwilleram estacionou, e ele e Jody andaram atÈ mais perto.
ì… o Picayunelî, ele gritou. ìTodo o prÈdio est· em chamas!î
Jody comeÁou a chorar. ìPobre Juney!î, e continuou dizendo:
ìPobre Juney!î
ìEles est„o jogando ·gua no pavilh„o para que o fogo n„o se
espalheî, disse Qwilleran. ìNo correio tambÈm. Receio que as
dependÍncias do jornal sejam atingidas.î
ìAcho que era isso o que o pai dele estava tentando dizer no
sonhoî, disse. ìVocÍ consegue ver o Juney?î
ìN„o consigo reconhecer ninguÈm naqueles capacetes e capas de
borracha. AtÈ as faces est„o pretas. Trabalho duro! O de capacete
branco È o chefe dos bombeiros,
isso È tudo que posso dizer.î
ìEspero que Juney n„o faÁa uma loucura, como correr para dentro
do prÈdio para tentar salvar algo.î
ìEles s„o treinados para n„o correrem riscos tolosî, Qwilleran
garantiu a ela.
ìMas ele È t„o impulsivo ó e sentimental. … por isso que est·
t„o chateado... quero dizer, com o fato de sua m„e vender o Pic.î Um
ar repentino de horror atravessou
sua face. ìOh n„o! William Allen est· l·. Eles sempre o trancam
durante a noite. Estou ficando com n·usea...î
ìCalma, Jody! Ele pode ter escapado. Os gatos s„o
inteligentes... Venha. N„o podemos permanecer aqui. Est· esfriando e
vocÍ est· tremendo. Os homens v„o trabalhar
durante horas, limpando e procurando focos de incÍndio. Levarei vocÍ
de carro para casa. VocÍ ficar· bem?î
ìSim. Vou esperar atÈ Juney chegar em casa. Ele est· morando
comigo, desde que o pai morreu, sabia?î
* *
Na mans„o K, Qwilleran encontrou a sra. Cobb ‡ mesa da cozinha,
ainda com seu roup„o cor-de-rosa, tomando chocolate e parecendo
preocupada. ìN„o h· notÌcias
no r·dioî, disse ansiosamente.
ìN„o foi o pavilh„o de caÁaî, contou-lhe Qwilleran. ìFoi o
prÈdio do Picayune. Est· arrasado. Mais de um sÈculo de publicaÁıes
destruÌdo em meia hora.î
ìO senhor viu Herb?î Ela serviu uma xÌcara de chocolate a
Qwilleran. N„o era sua bebida favorita.
ìN„o, mas tenho certeza de que ele estava l·, com um machado.î
ìEle n„o deveria estar fazendo esse trabalho extenuante. Tem
mais de cinq¸enta, o senhor sabe, e a maioria dos bombeiros È muito
mais jovem.î
ìVocÍ parece muito preocupada com ele, sra. Cobb.î Qwill olhou
para ela com ar de indagaÁ„o.
A governanta baixou os olhos e sorriu constrangida. ìBem,
admito que estou apaixonada. NÛs sempre temos bons momentos juntos,
e ele est· comeÁando a dar indiretas.î
ìSobre casamento?î, o des‚nimo de Qwilleran se tornou evidente
em sua pergunta brusca. Como governanta ela era uma jÛia ó muito
valiosa para ser perdida. Ela
mimara demais ele e os siameses com sua comida.
ìMas eu n„o deixaria de trabalharî, a sra. Cobb apressou-se em
dizer. ìSempre trabalhei e este È o trabalho mais maravilhoso que j·
tive. … um sonho transformado
em realidade. Estou falando sÈrio!î
ìE vocÍ È perfeita para o posto. N„o se precipite em nada, sra.
Cobb.î
ìN„o o fareiî, ela prometeu. ìEle n„o falou nada abertamente e
ainda n„o fez o pedido, portanto, n„o diga nada.î
Ela encheu novamente sua xÌcara de chocolate e levou-a para o
andar de cima, dizendo um cansado boa-noite.
Qwilleran fez sua vistoria noturna da casa, antes de ligar o
alarme contra roubo e de se assegurar que as portas e janelas
estavam fechadas. Ent„o retirou-se
para seu alojamento acima da garagem, levando uma cesta de
piquenique. Indistintos sons vinham da cesta, que balanÁava de um
lado para o outro, vigorosamente, enquanto
ele a carregava.
A garagem para quatro carros fora no passado um abrigo para
carruagem, construÌda com pedras, o mesmo material que fizera a
grandiosidade da casa principal.
Havia quatro portas em forma de arcos que davam para os est·bulos,
uma c˙pula com um cata-vento no telhado e uma elaborada braÁadeira
de lanternas de carruagem em
cada canto da construÁ„o.
No andar de cima, o interior foi reformado para se adaptar ao
gosto de Qwilleran ó contempor‚neo e confort·vel em suaves tons de
bege, ferrugem e marrom. Era
tranq¸ilo e simples, um escape da pompa e preciosidade da mans„o K.
Na sala havia poltronas, boa iluminaÁ„o para leitura, um
aparelho de som e um pequeno bar em que Qwilleran preparava as
bebidas para os convidados. Ele prÛprio
n„o ingeria bebidas alcoÛlicas desde a vez que se sentira mal em uma
plataforma do metrÙ em Nova York, uma experiÍncia que ficou para
sempre como um alerta. Nem
tinha mais andado de metrÙ.
Os outros cÙmodos eram seu escritÛrio de trabalho, seu quarto e
o quarto dos gatos, acarpetado e mobiliado com almofadas, cestas,
pilares para arranhar, poleiros
para subir e uma grelha turca que lhes servia como vaso sanit·rio.
Havia tambÈm uma prateleira de livros de segunda m„o comprados no
bazar do hospital por dez centavos
cada. Havia livros de iniciaÁ„o ‡ ·lgebra e gram·tica inglesa
simplificada. Havia uma coleÁ„o de sermıes famosos. Outros tÌtulos
eram The Burning of Rome, Elsie
Dinsmore e Eneida, de VirgÌlio. Koko podia empurr·-los da prateleira
o quanto quisesse.
Qwilleran abriu a cesta de vime no quarto dos gatos e convidou
os dois relutantes siameses a pular para fora. Por que, ele se
perguntava, eles nunca queriam
entrar na cesta? E, quando estavam nela, nunca queriam sair? Koko e
Yum Yum por fim saÌram cautelosamente, uma atuaÁ„o que repetiam
todas as noites durante o ˙ltimo
ano, sondando o terreno e farejando a mobÌlia como se suspeitassem
que o cÙmodo tivesse microfones secretos ou uma armadilha.
ìGatos!î, disse Qwilleran em voz alta. ìQuem pode entendÍ-los?î
Ele deixou os siameses em suas ocupaÁıes peculiares ó um
lambendo o outro, se torcendo, se perseguindo, mordendo as orelhas e
farejando indiscretamente ó enquanto
sintonizava as notÌcias da meia-noite em sua sala de estar.
ìOs escritÛrios e prensas do Pickax Picayune foram destruÌdos
pelo fogo esta noite. Houve perda total do prÈdio, de acordo com o
chefe dos bombeiros, Bruce
Scott. Vinte e cinco brigadas de fogo, trÍs caminhıes pipa e duas
mangueiras de incÍndio de Pickax e comunidades vizinhas responderam
ao alarme e ainda est„o em
cena. N„o h· informaÁıes sobre feridos. Em outro lugar no condado, o
Conselho da Aldeia Mooseville votou para gastar quinhentos dÛlares
nas decoraÁıes do Natal.î
Ele desligou o r·dio, com exasperaÁ„o. As mesmas notÌcias de
quinze segundos seriam repetidas de hora em hora sem outros
detalhes. Aos ouvintes n„o seria contado
como o fogo comeÁara, quem o anunciou, que arquivos e equipamentos
foram destruÌdos, a idade do prÈdio, sua construÁ„o, os problemas
encontrados para combater o
fogo, precauÁıes tomadas, valor estimado das perdas, cobertura do
seguro.
Sem d˙vida, o condado precisava de um jornal. O destino do
Picayune era lament·vel, mas era preciso ser realista. O Pic havia
sido uma relÌquia da era do cavalo
e da charrete. Foi o sentimentalismo e a autocomplacÍncia de Senior
que faliram seu jornal. A tipografia era sua obsess„o, sua raz„o de
viver, para citar Junior.
Raz„o de viver? Qwilleran concentrou-se e alisou seu bigode com
as pontas dos dedos. Se o jornal tinha estado de fato ‡ beira da
falÍncia, podia o acidente
de Senior ter sido um suicÌdio? A Velha Ponte de Pranchas seria um
lugar ideal para um ìacidenteî fatal. Era bem conhecida como
perigosa. Senior era um homem sensato,
cuidadoso ó n„o um dos bÍbados ou jovens arruaceiros das noites de
sexta-feira que normalmente sofriam desastres na ponte.
Qwilleran sentiu uma sensaÁ„o de formigamento no l·bio
superior, e percebeu que sua suspeita era v·lida. Havia alguma coisa
estranha em seu l·bio superior.
Um formigamento, um tremor ou simplesmente uma vaga inquietaÁ„o nas
raÌzes de seu bigode avisavam-no quando ele estava na pista certa. E
agora ele estava recebendo
o sinal.
Se Senior tinha pretendido acabar com a prÛpria vida,
representar um ìacidenteî evitaria a cl·usula de suicÌdio, desde que
a apÛlice do seguro existisse h·
bastante tempo. Junior n„o mencionara que a avÛ Gage havia pago o
prÍmio durante anos?
Um ìacidenteî podia ter indenizaÁ„o dupla para a vi˙va, ou atÈ
tripla, embora fosse arriscado: haveria uma investigaÁ„o completa.
As companhias de seguro n„o
gostavam de ser enganadas.
Talvez Senior tivesse medo de alguma coisa pior do que perder o
jornal. Ele havia tomado medidas desesperadas para manter o Picayune
‡ tona ó vendendo a terra
cultivada, hipotecando a casa da fazenda, mendigando para sua sogra.
Seu desespero levou-o a alguma coisa ilegal? Ele temia alguma
revelaÁ„o? E o homem de capa preta?
O que ele estava fazendo em Pickax? A morte de Senior ocorrera
apenas umas horas antes de o estranho chegar no avi„o. Senior sabia
que ele estava vindo? E por que
o visitante estava rondando? Havia outros envolvidos?
E agora os escritÛrios do Picayune tinham sido destruÌdos. Era
um momento curioso para um desastre como esse. Havia alguma coisa no
por„o do edifÌcio ao lado
das prensas e dos arquivos de exemplares antigos? Era uma evidÍncia
incriminadora que tinha de ser eliminada? Quem sabia o que havia? E
quem jogou o fÛsforo?
Qwilleran despertou de seus devaneios e flexionou a perna que
estava prestes a adormecer. Ele estava tendo algumas idÈias
estranhas. O que a sra. Cobb havia
colocado naquele chocolate?
Do quarto dos gatos, embaixo do corredor, vinha um som abafado,
mas reconhecÌvel: plunk! Foi seguido por outro plunk ó ent„o, outra
vez, plunk plunk plunk em
r·pida sucess„o. Era o som dos livros caindo no piso acarpetado.
Koko estava derrubando sua coleÁ„o particular.
QUATRO
QUARTA-FEIRA, 13 DE NOVEMBRO. ìContinua frio, com cÈu encoberto
e caÌda de neve, acumulando sete a dez centÌmetros.î
ìEncoberto!î, Qwilleran berrava para o r·dio em sua
escrivaninha. ìPor que vocÍs n„o olham pela janela? O sol est·
brilhando como no dia quatro de julho!î
Ele voltou sua atenÁ„o para o Daily Fluxion da terÁa-feira, que
havia dado um bom espaÁo para a histÛria do Pickax Picayune. N„o foi
inteiramente exato, mas
as cidades pequenas ficavam alegres com qualquer atenÁ„o da imprensa
metropolitana. Depois ele tentou ler sobre os desastres, terrorismo,
crime e corrupÁ„o L· de
Baixo, mas sua mente continuava sendo levada de volta ao Condado de
Moose.
Com neve ou sem neve, ele queria sair dirigindo para o campo,
observar a Velha Ponte de Pranchas, visitar a casa da fazenda de
Goodwinter, encontrar a vi˙va.
Levaria flores, apresentaria suas condolÍncias e faria umas
perguntas corteses. Era uma abordagem com a qual ele sempre havia
lidado bem para conseguir notÌcias.
Olhos tristes e bigode caÌdo davam a ele uma postura l˙gubre que
passava como profunda simpatia.
Na lista telefÙnica do condado, ele encontrou Senior Good-
winter na Alameda do Riacho Negro, em North Middle Hummock. No mapa
do condado ele n„o conseguia encontrar
nem um nem outro. Encontrou Middle Hummock e West Middle Hummock.
Encontrou Mooseville, Smithís Folly, Squunk Corners, Chipmunk e
Brrr, que n„o era um erro de impress„o;
essa cidade era o ponto mais frio do condado. Mas North Middle
Hummock n„o era encontrado. Ele levou seu problema para o sr.
OíDell, que sabia todas as respostas.
A sra. Fulgrove e o sr. OíDell eram empregados diaristas na
mans„o K. A mulher esfregava e polia seis dias por semana com fervor
quase religioso; o empregado
tratava dos trabalhos pesados. O sr. OíDell havia sido bedel de uma
escola durante quarenta anos e cuidara de centenas de estudantes
adolescentes ó respondendo a
suas perguntas, resolvendo seus problemas e emprestando-lhes
dinheiro para o almoÁo. ìBedelî era um tÌtulo respeitado em Pickax,
e se algum dia o sr. OíDell decidisse
se candidatar ao cargo de prefeito, seria eleito por unanimidade.
Agora, com seu cabelo grisalho, face corada e express„o af·vel,
supervisionava o patrimÙnio de
Klingenschoen t„o naturalmente quanto supervisionara a educaÁ„o dos
jovens de Pickax.
Qwilleran encontrou-o lubrificando as dobradiÁas da porta do
arm·rio de vassouras. ìO senhor sabe a localizaÁ„o da casa da
fazenda de Senior Goodwinter, sr.
OíDell? Eu n„o acho North Middle Hummock no mapa.î
Com voz cadenciada ele respondeu: ìO prÛprio diabo n„o poderia
encontrar um lugar daqueles no mapa, penso eu, pois È uma cidade
fantasma h· cinq¸enta anos,
mas o senhor poder· encontr·-la, pois vou lhe dizer como chegar l·.
Siga para leste, para alÈm da mina Buckshot, onde o vento assobia no
poÁo da mina mesmo em dia
sem vento, e tem um gemido que vem dos fundos da mina. Quando vocÍ
chegar na Velha Ponte de Pranchas, seja prudente, pois as t·buas
rangem como os dentes do prÛprio
diabo. Observe uma ·rvore solit·ria numa colina alta ó a ·rvore da
forca, eles costumam cham·-la ó e ent„o vocÍ estar· chegando na
igreja em que eu e minha mulher
fomos casados pelo bom padre Ryan h· quarenta e cinco anos, que Deus
o tenha! E, quando vocÍ chegar a um monte de cascalho, isto È tudo o
que restou de North Middle
Hummock.î
ìAcho que estamos esquentandoî, disse Qwilleran.
ìEsquentando, È? Ainda h· um caminho a seguir ó pouco mais de
trÍs quilÙmetros atÈ vocÍ colocar os olhos na cerca branca da
fazenda do capit„o Fugtree. Depois
do prado de ovelhas, n„o dÍ atenÁ„o para o letreiro que diz Fugtree
Sideroad, pois È a Alameda do Riacho Negro, e no final dela vocÍ
ver· a casa de Goodwinter. Ela
È cinza com uma porta amarela.î
Enquanto Qwilleran partia para North Middle Hummock, que n„o
existia, e para a Alameda do Riacho Negro, que era chamada de alguma
outra coisa, ele se admirava
com a informaÁ„o programada nas cabeÁas dos que tinham nascido no
Condado de Moose. Se o sr. OíDell conseguia descrever o caminho de
forma t„o detalhada, Senior
Goodwinter, que dirigira diariamente na estrada tortuosa, certamente
conhecia todas as sacudidelas da estrada, todos os buracos, todos os
remendos de cascalhos soltos.
N„o era prov·vel que Senior tivesse destruÌdo seu carro
acidentalmente.
Qwilleran n„o ouviu nenhum assobio ou gemido na mina de
Buckshot, mas a Velha Ponte de Pranchas de fato rangeu de forma
agourenta. Embora os parapeitos fossem
construÌdos de pedra, o leito da ponte era uma tira de pranchas
soltas, uma ao lado da outra. A ì·rvore da forcaî era bem denominada
ó um antigo carvalho cheio de
nÛs formando uma grotesca silhueta no cÈu. Tudo o mais se
confirmava: a igreja, o cascalho, a cerca branca, o prado de
ovelhas.
A casa da fazenda no final da Alameda do Riacho Negro era uma
incoerente estrutura com desbotadas ripas cinzentas, em uma ·rea
coberta de folhas de bordo douradas
e vermelhas. Arbustos de cris‚ntemos ainda estavam florescendo
teimosamente em torno do degrau da porta.
Qwilleran ergueu uma aldrava de lat„o com a forma da letra grega pi
e deixou-a cair na porta amarela. Tinha se arriscado a fazer a
visita inesperada, sem hora marcada,
‡ moda do campo, e quando a porta se abriu ele foi saudado sem
surpresa por uma jovem alegre, com camisa xadrez.
ìSou Jim Qwilleranî, disse ele. ìN„o pude comparecer ao
funeral, mas trouxe algumas flores para a sra. Goodwinter.î
ìEu conheÁo o senhor!î, exclamou ela. ìEu via sua foto no Daily
Fluxion, antes de me mudar para Montana. Entre!î Ela se virou e
gritou para o alto da escadaria.
ìM„e! VocÍ tem companhia!î
A mulher que desceu as escadas n„o era nenhuma vi˙va
perturbada, com olhos vermelhos de choro e insÙnia; era um tipo
robusto, com uma roupa vermelha de gin·stica,
olhos brilhantes e bochechas cor-de-rosa, como se tivesse acabado de
chegar de um cooper.
ìSr. Qwilleran!î, ela gritou, estendendo as m„os. ìQue bom
receber sua visita surpresa! NÛs todos lemos sua coluna no Fluxion e
estamos contentes com sua chegada
aqui.î
Ele entregou as flores. ìCom meus cumprimentos e simpatia, sra.
Goodwinter.î
ìPor favor, me chame de Gritty. Todos fazem issoî, disse ela.
ìE obrigada por sua gentileza. Rosas! Eu adoro rosas! Vamos para a
sala de estar. Todos os outros
lugares est„o uma bagunÁa por causa do invent·rio... Pug, querida,
ponha essas ador·veis flores em um vaso, sim? VocÍ È um amor.î
A centen·ria casa da fazenda tinha muitos cÙmodos pequenos com
t·buas de assoalho largas e janelas com alguns dos vidros originais.
Os mÛveis que n„o combinavam
entre si eram obviamente herdados, mas a decoraÁ„o fora
cuidadosamente escolhida: ladrilhos azul-e-branco, cortinas de
algod„o azul-e-branco e porcelana azul-e-branca
na prateleira. Antigos utensÌlios de cozinha estavam pendurados em
volta da grande lareira.
Gritty disse: ìEstamos esperando que se associe ao Country
Club, sr. Qwilleran.î
ìN„o tenho me associado a nadaî, disse ele,îporque estou me
concentrando em escrever um livro.î
ìN„o sobre Pickax, esperoî, disse a vi˙va com uma risada.
ìSeria proibido em Boston... Pug, querida, traga-nos um drinque,
pode ser?... O que o senhor vai beber,
sr. Qwilleran?î
ìRefrigerante de gengibre, club soda, algo assim. E todos me
chamam Qwill.î
ìO que acha de coca-cola com um pouco de rum?î Ela o estava
tentando com um olhar maroto. ìAlegre-se, Qwill!î
ìObrigado, mas tenho passado sem ·lcool h· v·rios anos.î
ìBem, vocÍ est· fazendo alguma coisa certa! VocÍ parece
maravilhosamente saud·vel.î Ela o avaliou da cabeÁa aos pÈs. ìVocÍ È
feliz no Condado de Moose?î
ìEstou me acostumando ó o ar fresco, o estilo de vida relaxado,
o povo amig·velî, disse ele. ìDeve ser um conforto para vocÍ, nesse
perÌodo triste, ter tantos
amigos e parentes.î
ìOs parentes, vocÍ pode ficar com eles!î, disse ela,
distraidamente. ìMas, sim, eu tenho sorte de ter bons amigos.î
A filha trouxe uma bandeja de bebidas e Qwilleran ergueu seu
copo. ìCom esperanÁa no futuro!î
ìVocÍ est· bem certo!î, disse sua anfitri„, brandindo um
drinque duplo. ìVocÍ fica para o almoÁo, Qwill? Fiz uma torta de
presunto e espinafre com as sobras
da comida do funeral. Pug, querida, veja se est· pronta para sair do
forno. Espete uma faca nela.î
A visita n„o foi o que Qwilleran havia previsto. Ele foi
solicitado a mudar abruptamente das condolÍncias para um bate-papo
social.
ìVocÍ tem uma casa bonitaî, observou ele.
ìPode parecer boaî, disse Gritty, ìmas È um... bem, vocÍ sabe o
quÍ. Estou cansada de pisos que se inclinam, portas que rangem,
fossas sÈpticas que refluem
e escadas com degraus estreitos. Deus! Eles deviam ter pÈs pequenos,
antigamente. E bundas pequenas! Veja essas cadeiras Windsor! Estou
vendendo a casa e me mudando
para um apartamento em Indian Village ó perto do campo de golfe.î
Pug disse: ìMinha m„e È campe„ de golfe. Ela vence todos os
torneios.î
ìO que far· com suas antig¸idades, quando vocÍ se mudar?î,
perguntou Qwilleran inocentemente.
ìVou vendÍ-las em leil„o. VocÍ gosta de leilıes? Eles s„o o
maior passatempo do Condado de Moose ó junto com os jantares sociais
e a bisbilhotice.î
ìOh, mam„e!î, protestou Pug. Ela se virou para Qwilleran.
ìAquela grande escrivaninha com tampa giratÛria pertencia a meu
bisavÙ. Ele fundou o Picayune.î
ìEla parece um esquife com tampa giratÛriaî, disse sua m„e. ìEu
estive condenada a viver com antig¸idades toda a minha vida. Jamais
gostei delas. Loucura, n„o
È?î
O almoÁo foi servido em uma mesa de pinho na cozinha, e a torta
chegou em pratos azul-e-branco.
Gritty disse: ìEspero que esta seja a ˙ltima refeiÁ„o que eu
coma na louÁa azul. Ela faz os alimentos parecerem horrorosos, mas
esse conjunto passou por todas
as geraÁıes da famÌlia de meu marido ó centenas de peÁas que se
recusam a quebrar.î
ìFiquei horrorizadoî, disse Qwilleran, ìquando os escritÛrios
do Picayune pegaram fogo. Estava esperando que o jornal continuasse
a ser publicado sob a direÁ„o
de Junior.î
ìPorcaria de Picayune! Eles deviam ter desligado as tomadas h·
trinta anos.î
ìMas È um caso ˙nico nos anais do jornalismo. Junior poderia
ter prosseguido com a tradiÁ„o, mesmo publicando o jornal com
mÈtodos modernos.î
ìN„oî, disse ela. ìAquele menino casar· com sua an„, e os dois
v„o deixar Pickax e v„o trabalhar L· Embaixo. Provavelmente em algo
secund·rio.î E acrescentou
com uma risada. ìJunior È o cabeÁa-dura da ninhada.î
ìOh, mam„e, n„o diga essas coisasî, protestou Pug. E dirigindo-
se a Qwilleran: ìMinha m„e È a humorista da famÌliaî.
ìIsso esconde meu coraÁ„o partidoî, disse a vi˙va com um
desembaraÁado encolher de ombros.
ìO que acontecer· ao prÈdio do Picayune agora? Eles foram
capazes de salvar alguma coisa?î
ìTudo se foiî, disse ela, sem aparente pesar. ìO prÈdio est·
destruÌdo, mas as paredes de pedra est„o perfeitas. Elas s„o muito
grossas. Daria um bom mini-shopping
com seis ou oito lojas, mas teremos de esperar e ver o que
conseguimos com o seguro.î
Durante toda a visita, os pensamentos estavam correndo na mente
de Qwilleran: tudo estava sendo feito muito rapidamente; tudo
parecia muito bem planejado. Quanto
‡ vi˙va, ou estava enfrentando aquilo com coragem ou era
extremamente sem coraÁ„o. Ele estava mais propenso a considerar a
segunda hipÛtese.
Ao chegar em casa, ele telefonou para a clÌnica dent·ria do dr.
Zoller e falou com a jovem recepcionista que tinha dentes com coroas
maravilhosamente bem colocadas.
ìAqui È Jim Qwilleran, Pam. Eu poderia conseguir um hor·rio
esta tarde para fazer uma limpeza em meus dentes?î
ìUm momento. Deixe-me ver sua ficha... O senhor esteve aqui em
julho, sr. Qwill. N„o precisa vir atÈ janeiro.î
ì… uma emergÍncia. Tenho tomado muito ch·.î
ìOh... Bem, nesse caso o senhor est· com sorte. Jody acabou de
ter uma consulta cancelada. O senhor pode vir neste instante?î
ìEm trÍs minutos e vinte segundos.î Em Pickax nunca ninguÈm
estava a mais do que cinco minutos de qualquer lugar.
A clÌnica ocupava um est·bulo de pedras reformado que, uma vez,
nos tempos do cavalo e da carruagem, havia sido um celeiro atr·s do
velho Hotel de Pickax. Jody
saudou Qwilleran ansiosamente. Com seu jaleco branco comprido, ela
parecia menor ainda.
ìEu estava tentando encontrar vocÍ!î, disse. ìJunior quer que
saiba que ele est· indo L· para Baixo para encontrar o editor que
lhe prometeu um emprego. Saiu
ao meio-dia.î
ìBem, È o fim do velho Picayuneî, disse Qwilleran.
ìColoque seu cinto de seguranÁa. VocÍ vai fazer uma viagem.î
Ela ajustou a cadeira de dentista no seu nÌvel mais baixo. ìSua
cabeÁa est· confort·vel?î
ìQuanto tempo Junior ficou no local do incÍndio?î ìEle chegou
‡s cinco e meia esta manh„, e estava arrasado! Eles tiveram de ficar
alertas aos focos de incÍndio,
vocÍ pode imaginar... Agora, abra bem a boca.î
ìSalvaram alguma coisa?î, perguntou rapidamente, antes de
obedecer.
ìAcho que n„o. Os papÈis que n„o estavam queimados estavam
ensopados. Assim que apagaram o fogo, deixaram Junior entrar com uma
m·scara de oxigÍnio, para ver
se conseguia encontrar uma caixa ‡ prova de fogo que pertencia a seu
pai. Mas a fumaÁa estava muito espessa. Ele n„o conseguiu ver
nada... Ops! Dei uma picada em
vocÍ?î
ìArrh!î, respondeu Qwilleran com a boca cheia de instrumentos.
Os dedos pequeninos de Jody tinham um toque delicado, mas suas
m„os estavam tremendo depois de uma noite sem dormir.
ìJunior diz que eles n„o sabem o que causou o incÍndio. Ele n„o
deixou ninguÈm fumar quando estavam fotografando... Este È um ponto
sensÌvel?î
ìArrh arrh.î
ìPobre Juney! Ele estava moÌdo ó absolutamente moÌdo! VocÍ
sabe, ele realmente n„o È forte o bastante para ser bombeiro, mas o
chefe deixou-o pegar a mangueira
ó com trÍs homens de reserva em vez de dois. Isso fez Juney se
sentir menos desamparado... Agora pode enxaguar.î
ìO prÈdio tem um bom seguro?î
ìSÛ um pouco mais aberta, por favor! Isto!... Tem algum seguro,
mas a maior parte do que estava l· È de valor inestim·vel, porque È
antigo e insubstituÌvel...
Agora, enx·g¸e.î
ì… uma pena que as velhas ediÁıes n„o estivessem em microfilmes
e guardadas em algum lugar seguro.î
ìJuney disse que isso ficaria muito caro.î
ìQuem informou sobre o incÍndio?î Outra pergunta r·pida entre
os enx·g¸es.
ìAlgumas crianÁas que cruzavam a Rua Principal. Elas viram
fumaÁa e quando os caminhıes chegaram, o prÈdio todo estava em
chamas... Isto est· machucando vocÍ?î
ìArrh arrh.î
Ela observou: ìAssim, imagino que Juney arranjar· um emprego no
Fluxion e sua m„e vender· tudoî. Ela tirou o babador. ìVocÍ, hein!
Tem passado fio dental apÛs
todas as refeiÁıes como o dr. Zoller mandou?î
ìInforme ao dr. Zollerî, disse Qwilleran, ìque n„o sÛ tenho
passado fio dental apÛs todas as refeiÁıes, como o passo tambÈm
entre os pratos. Nos restaurantes
sou conhecido como o Louco Passador de Fio Dental.î
Da clÌnica dent·ria ele foi para a Scottieís Menís Shop.
Qwilleran, cuja m„e tinha sido da famÌlia Mackintosh, gostava muito
dos Scot, e o comerciante tinha
um sotaque irlandÍs que usava para bons clientes.
Durante toda sua carreira, Qwilleran nunca se importou muito
com roupas, satisfazendo-se com um uniforme sem graÁa constituÌdo
por paletÛ, calÁas, camisa e
gravata. Havia alguma coisa relacionada ao estilo de vida do norte
do paÌs, entretanto, que instigava seu interesse por camisas xadrez
de l„ escocesa, suÈteres da
Isl‚ndia, casac„o com capuz, chapÈus de soldado de cavalaria, botas
grandes e mocassim de camurÁa. E quanto mais Scottie arrastava seus
erres, mais Qwilleran comprava.
Ao entrar na loja, Qwilleran disse: ìO que aconteceu com as
quatro toneladas de neve que sup˙nhamos cair hoje?î
ìTudo bobagemî, disse Scottie, sacudindo sua cabeleira
grisalha. ìN„o acrrredito em uma palavrrra que dizem no rrr·dio.
Qualquer pessoa pode conseguir melhores
informaÁıes com as lagartas.î
ìVocÍ est· com cara de quem perdeu o sono na noite passada.î
ìSim, foi uma noite ruim, muito ruimî, disse o chefe dos
bombeiros volunt·rios. ìN„o cheguei em casa antes das seis da manh„.
Chipmunk e Kennebeck enviaram
pessoas treinadas para ajudar. N„o conseguirÌamos sem eles ó ou sem
nossas mulheres, Deus as abenÁoe. Fizeram chegar cafÈ e sanduÌches a
noite inteira.î
ìComo Junior ag¸entou?î
ìFoi duro para o rapaz. Muitas vezes eu estive no escritÛrio do
jornal para passar o tempo com seu velho pai. Era uma armadilha para
incÍndio! Toneladas de
jornal! DivisÛrias de madeira velha ó seca como isca ó e o velho
piso de madeira!î Scottie sacudiu a cabeÁa outra vez.
ìAlguma idÈia de como comeÁou?î
ìN„o poderia dizer. Estiveram fotografando, e um cigarro pode
ter queimado de forma descuidada. Havia um solvente inflam·vel que
sempre usavam para limpar as
velhas prensas e, quando foi atingido, espalhou rapidamente.î
ìAlguma suspeita de incÍndio criminoso?î
ìNenhuma evidÍncia de trapaÁa. A meu ver, n„o h· nenhuma raz„o
para falar com o chefe de polÌcia.î
ìMas vocÍ salvou o pavilh„o de caÁa e o correio, Scottie.î
ìSim, de fato nÛs os salvamos, mas de algum modo eles foram
atingidos.î
No caminho de casa, Qwilleran parou na biblioteca p˙blica para
examinar a sala de leitura. O homem que dizia ser historiador n„o
estava l·, e as funcion·rias
n„o o viam desde a manh„ de terÁa-feira. Polly Duncan tambÈm n„o
estava l·, e as funcion·rias disseram que ela n„o voltaria naquele
dia.
Para o jantar, a sra. Cobb serviu strogonoff de carne e
talharim com sementes de papoula; apÛs comer duas porÁıes e um prato
de torta de abÛbora, Qwilleran
levou alguns jornais de outras cidades e duas revistas novas para a
biblioteca. Puxou as cortinas e acendeu um fÛsforo no h·bil arranjo
de lenhas, gravetos e rolos
de papel do sr. OíDell. Ent„o esparramou-se em seu sof· favorito e
apoiou os pÈs na otomana.
Os siameses rapidamente se apresentaram. Eles sabiam que uma
lareira estava sendo acesa antes que o aroma silvestre circulasse,
antes do crepitar dos gravetos,
e atÈ antes do fÛsforo ser riscado. Depois de se aquecer no calor do
fogo, Koko comeÁou a cheirar livros e Yum Yum pulou no colo de
Qwilleran, girando trÍs vezes
antes de se sentar.
A fÍmea estava desenvolvendo uma afeiÁ„o excessiva pelo homem.
Era descaradamente possessiva em relaÁ„o a seu colo. Ela o
contemplava com olhos de adoraÁ„o,
ronronava quando ele olhava para longe dela, e achava que a melhor
coisa do mundo era subir e tocar o bigode dele com uma pata
aveludada. Na verdade, ele a chamava
de sua pequena namorada. Havia mencionado isso a Lori Bamba, a jovem
que sabia tudo sobre gatos.
ìEles se dirigem para o sexo opostoî, explicou Lori, ìe sabem
quem È quem. … difÌcil explicar.î
Yum Yum estava cochilando em seu colo, a prÛpria imagem de
contentamento felino, quando Qwilleran ouviu o primeiro plunk. N„o
havia nenhum sentido em repreender
Koko. Entrava por um ouvido e saÌa pelo outro. Quando repreendido no
passado ele n„o apenas tinha ficado ressentido, como encontrara seu
prÛprio caminho de retaliaÁ„o.
Em qualquer discuss„o, Qwilleran aprendera, um siamÍs tem sempre a
˙ltima palavra.
Assim, ele simplesmente observou, transferiu a adormecida carga
de seu colo para a otomana e foi ver que estrago tinha sido feito.
Como esperava, era Shakespeare
outra vez. A sra. Fulgrove havia limpado as encadernaÁıes de couro
de porco com uma mistura de lanolina e Ûleo para preservar o couro,
e os dois ingredientes eram
produtos animais. Mas qualquer que fosse a explicaÁ„o para o
especial interesse de Koko por esses livros, dois deles estavam
agora no ch„o, e por acaso eram as peÁas
favoritas de Qwilleran: Macbeth e J˙lio CÈsar.
Ele folheou o ˙ltimo atÈ encontrar uma passagem de que gostava:
a cena da conspiraÁ„o, na qual os homens que planejam assassinar
CÈsar se encontram no escuro,
escondendo suas faces com as capas. ìInclinemo-nos e banhemos nossas
m„os atÈ os cotovelos no sangue de CÈsar e com ele tinjamos nossas
espadas!î
ConspiraÁ„o, refletiu Qwilleran, era o artifÌcio favorito de
Shakespeare para estabelecer conflito, criando suspense e ganhando
as emoÁıes da platÈia. Em Macbeth
havia a conspiraÁ„o para matar o velho rei. ìQuem pensaria que o
velho homem tinha tanto sangue?î
Um tremor no l·bio superior de Qwilleran alertou-o. Seria a
dupla tragÈdia do Picayune o resultado de uma conspiraÁ„o? Ele n„o
tinha pista alguma ó apenas a
sensaÁ„o nas raÌzes de seu bigode. N„o tinha nenhuma pista e nenhum
caminho lÛgico para investigar.
Anos antes, como repÛrter policial premiado, ele havia
desenvolvido uma rede de informantes anÙnimos. Mas no Condado de
Moose ele n„o tinha nenhuma fonte. Embora
os nativos fossem notÛrios fofoqueiros, evitavam fofocar com
estranhos, e Qwilleran era um estranho mesmo depois de dezoito meses
no meio deles.
Ele deu uma olhada no calend·rio. Era quarta-feira, 13 de
novembro. Na noite de 14 de novembro, ele teria setenta e cinco
comprovados fofoqueiros sob seu teto
ó todos Ûtimas pessoas, tomando ch· e conversando entre elas.
ìCerto, velho detetiveî, ele disse a Koko. ìAmanh„ ‡ noite
cultivaremos alguns informantes.î
CINCO
QUINTA-FEIRA, 14 DE NOVEMBRO. O clima estava cooperando com o
maior evento social da estaÁ„o ó n„o muito frio, sem muito vento,
sem muita nÈvoa. Na noite de
terÁa-feira, setenta e cinco membros da Sociedade HistÛrica e do
Clube dos Veteranos veriam a mans„o Klingenschoen pela primeira vez,
e a residÍncia tornar-se-ia
oficialmente o Museu Klingenschoen.
Desde que herdara o pretensioso edifÌcio, Qwilleran o
considerava uma residÍncia absurda para um solteiro e dois gatos.
Ele propÙs, portanto ó com a cooperaÁ„o
da Sociedade HistÛrica ó, abrir a mans„o para o p˙blico, como museu,
duas ou trÍs tardes por semana. Quando o prefeito anunciou a notÌcia
em um encontro do conselho,
os cidad„os de Pickax ficaram exultantes e os convidados para a
inauguraÁ„o se sentiram especialmente honrados.
O dia de Qwilleran comeÁou como sempre em seu apartamento da
garagem. Sintonizou a informaÁ„o sobre o tempo, tomou uma xÌcara de
cafÈ instant‚neo, vestiu-se
e desceu b corredor para o quarto dos gatos.
ìExpresso Especial saindo agora pela pista quatroî, anunciou,
abrindo a cesta de vime.
Os siameses sentaram-se, focinho a focinho, no peitoril da
janela desfrutando a luz fina do brilho do sol de novembro e
ignorando o convite.
ìCafÈ da manh„ sendo servido agora no vag„o-restaurante.î
N„o houve resposta alguma, nem mesmo o tremelique de um bigode
de gato. Com impaciÍncia, Qwilleran pegou um animal em cada m„o e os
depositou sem cerimÙnia
na cesta.
ìSe vocÍs agem como gatos, ser„o tratados como gatosî, explicou
ele com voz moderada. ìAjam como seres corteses, cooperativos,
inteligentes, e ser„o tratados
de acordo.î
Houve sons de briga e de rosnado dentro da cesta enquanto ele a
carregava pelo p·tio atÈ a casa principal.
Era idÈia da sra. Cobb que os siameses deveriam passar seus
dias entre os tapetes orientais, tapeÁarias francesas e os velhos
livros raros da mans„o. ìQuando
vocÍ tem antig¸idades valiosasî, explicou ela, ìvocÍ tem quatro
coisas a temer: roubo, fogo, calor seco e ratos.î
Diante de sua recomendaÁ„o, Qwilleran instalou controles de
umidade, um alarme contra assaltantes, detectores de fumaÁa e uma
linha direta com a estaÁ„o de
polÌcia e com o Corpo de Bombeiros. Esperava que Koko e Yum Yum
tratassem dos outros perigos.
Quando Qwilleran chegou na porta dos fundos com a cesta de
vime, a governanta gritou da cozinha: ìO senhor gostaria de uma
omelete de cogumelos, sr. Q?î
ìParece-me Ûtimo. Vou dar comida para os gatos. O que h· na
geladeira?î
ìFÌgados de galinha refogados. Koko provavelmente vai preferi-
los aquecidos com um pouco de strogonoff de carne de ontem ‡ noite.
Yum Yum n„o È exigente.î
Depois que terminou seu prÛprio cafÈ da manh„ ó uma omelete de
trÍs ovos com dois bolinhos ingleses tostados e um pouco de gelÈia
de amora selvagem ó ele disse:
ìDelicioso! O melhor omelete de cogumelos sem cogumelos que j·
comiî.
ìOh, meu caro!î A governanta pÙs as m„os no rosto com vergonha.
ìEsqueci o recheio? Estou t„o excitada com a noite de hoje, que n„o
sei se estou vindo ou indo.
O senhor n„o est· excitado, sr. Q?î
ìEstou levemente curiosoî, disse ele.
ìOh, sr. Q, o senhor deve estar brincando! O senhor trabalhou
nisso durante um ano!î
Era verdade. Para preparar a mans„o para uso p˙blico, o sÛt„o
tinha sido revestido de lambris e mobiliado como uma sala de
reuni„o. Fizeram um estacionamento
pavimentado atr·s da casa. Engenheiros L· de Baixo instalaram um
elevador. Foi exigida uma saÌda nos fundos para o caso de incÍndio.
Para acesso livre de obst·culos,
houve adaptaÁıes como uma rampa na entrada dos fundos, um novo
banheiro no piso principal, e controle dos elevadores na altura de
cadeiras de rodas.
ìQual a ordem dos eventos hoje ‡ noite?î, Qwilleran perguntou ‡
sra. Cobb. Ela havia presidido a comiss„o organizadora da Sociedade
HistÛrica.
ìOs membros comeÁar„o a chegar ‡s sete horas para uma visita
guiada ao museu. A sra. Exbridge treinou dezoito guias.î
ìE quem treinou a sra. Exbridge? N„o seja t„o modesta, sra.
Cobb. Eu sei e a senhora sabe que toda essa aventura teria sido
impossÌvel sem sua experiÍncia.î
ìOh, obrigada, sr. Qî, disse ela, se autocensurando
enrubescida, ìmas eu n„o posso aceitar tanto crÈdito. A sra.
Exbridge entende muito de antig¸idades. Ela
quer abrir uma loja de antig¸idades, agora que seu processo de
divÛrcio chegou ao fim.î
ìA esposa de Don Exbridge? Eu n„o sabia que eles estavam tendo
problemas. Lamento ouvir isso.î Qwilleran sempre se identificava com
quem estivesse passando
por um caso de divÛrcio, por ter ele prÛprio sobrevivido a uma
experiÍncia dolorosa.
ìSim, È muito ruimî, disse a sra. Cobb. ìEu n„o sei o que deu
errado. Susan Exbridge n„o fala sobre isso. … uma mulher muito
refinada. Ele, eu nunca conheci.î
ìEu me encontrei com ele algumas vezes. … um sujeito am·vel,
com um sorriso e um aperto de m„o para todos.î
ìBem, ele È um empreiteiro, o senhor sabe, e eu tenho uma vis„o
sombria a respeito deles. Sempre combatemos empreiteiros e
burocratas L· Embaixo. Eles queriam
demolir as lojas antigas e algumas casas histÛricas.î
ìE depois? O que acontece apÛs a visita ao museu?î
ìSubiremos para a sala de reuni„o, e È quando o senhor faz seu
discurso.î
ìUm discurso, n„o. Apenas umas poucas palavras. Por favor!î
ìDepois haver· uma breve reuni„o de negÛcios e um lanche.î
ìEspero que a senhora n„o tenha assado setenta e cinco d˙zias
de cookies para aqueles descarados caÁadores de cookiesî, disse
Qwilleran. ìSuspeito que a maioria
deles comparece ‡s reuniıes por causa de suas bebidas de coco com
lim„o. Seu amigo estar· l·?î
ìHerb? N„o, ele tem de levantar cedo amanh„. … o comeÁo da
estaÁ„o de caÁa ao veado. E os gatos? Eles v„o comparecer ‡
inauguraÁ„o?î
ìPor que n„o? Yum Yum passar· a noite em cima da geladeira, mas
Koko gosta de desfilar por aÌ e se exibir.î
O telefone tocou e Koko pulou para a mesa da cozinha, como se
soubesse que era um chamado de Lori Bamba, de Mooseville.
Lori era a secret·ria de tempo parcial de Qwilleran, uma jovem
com longas tranÁas douradas amarradas com fitas azuis que fascinavam
os siameses.
ìEi, Qwillî, disse ela. ìEspero n„o estar interrompendo alguma
coisa crucial. Este n„o È o grande dia?î
ìVocÍ tem raz„o. Hoje ‡ noite tornamo-nos p˙blicos. Quais s„o
as notÌcias de Mooseville?î
ìNick acabou de me telefonar do trabalho e pediu que eu lhe
telefonasse. AlguÈm est· acampando em sua propriedade no lago. No
caminho para o trabalho, ele viu
um carro estacionado no bosque. Ele n„o sabia se vocÍ havia
autorizado.î
ìN„o sei nada sobre isso. Mas h· algum mal? H· uma porÁ„o de
terra l· que n„o est· sendo usada.î Qwilleran havia herdado a
propriedade do lago juntamente com
a mans„o em Pickax: oitenta acres cobertos de ·rvores, com uma praia
na frente do terreno e uma cabana de madeira.
ìN„o È uma boa idÈia encorajar invasoresî, disse Lori. ìEles
poderiam deixar um monte de lixo, cortar suas ·rvores, provocar
queimadas...î
ìEst· bem, est· bem. Estou convencido.î
ìNick disse que vocÍ deveria telefonar para o xerife.î
ìFarei isso. AgradeÁo seu interesse. Como est„o as coisas em
Mooseville? Como est· o bebÍ?î
ìFinalmente falou sua primeira palavra. Disse ëmooseí muito
claramente, de modo que pensamos que quando crescer vai ser
presidente da C‚mara do ComÈrcio...
OuÁo Koko falando aÌ atr·s?î
ìEle quer falar um pouquinho com vocÍ.î
Qwilleram segurou o fone no ouvido de Koko, que se sacudia e
girava com animaÁ„o. Seguiu-se uma sÈrie de ìmiausî e ìiksî e
ronronares de intensidades e inflexıes
variadas.
Quando a conversa acabou, Qwilleran disse ‡ governanta: ìA
lÌngua inglesa tem seiscentas mil palavras. Koko tem apenas duas,
mas consegue mais m˙sica e significado
a partir de ëmiauí e ëikí do que alguns de nossos amigos cultos
conseguem a partir do dicion·rio inteiroî.
ìEssa Lori certamente tem jeito para gatosî, disse a sra. Cobb,
com um indÌcio de ci˙me.
ìSe Lori tivesse morado em Salem h· trezentos anos, teria sido
queimada no poste.î
A governanta parecia entristecida. ìAcho que Koko n„o gosta de
mim.î
ìPor que a senhora diz isso, sra. Cobb?î
ìEle nunca fala comigo, nem ronrona, nem vem para ser mimado.î
ìSiamesesî, Qwilleran comeÁou, limpando a garganta e
selecionando cuidadosamente suas palavras, ìs„o menos expansivos que
outras raÁas, e Koko em especial n„o
È um gato de colo, embora eu tenha certeza de que ele gosta da
senhora.î
ìYum Yum se esfrega em meus tornozelos quando estou cozinhando
e ‡s vezes pula no meu colo. … uma gatinha muito doce.î
ìKoko È menos emocional e mais racionalî, explicou Qwilleran.
ìTem suas prÛprias caracterÌsticas e personalidade, e temos de
compreendÍ-lo e aceit·-lo como
È. Ele pode n„o lhe dar muita atenÁ„o, mas a respeita, e aprecia a
comida maravilhosa que a senhora prepara.î
Ele se desembaraÁou desse di·logo delicado com um sentimento de
alÌvio. Koko tinha hostilizado v·rias amigas, e uma inimizade entre
um gato temperamental e
uma excelente governanta era coisa que devia ser evitada.
Da biblioteca ele telefonou para o escritÛrio do xerife, e em
meia hora havia um uniforme marrom na porta dos fundos.
ìDepartamento do xerife, senhorî, disse o guarda. ìConsegui uma
informaÁ„o no r·dio sobre sua propriedade a leste de Moosevile.
Nenhum carro em suas matas,
senhor, embora houvesse vestÌgios de recentes pneus e dois maÁos de
cigarros vazios. Ele enterrou os tocos de cigarros, de modo que sabe
alguma coisa sobre acampamento.
Eram cigarros canadenses. Tivemos uma porÁ„o de turistas canadenses
por aqui. Nenhum sinal de roubo. Nenhum arrombamento ou vandalismo
em sua cabana. A estaÁ„o de
caÁa comeÁa amanh„, senhor. Se o senhor n„o quer que ninguÈm entre
com rifles, deve afixar cartazes em sua propriedade.î
O dia demorou a passar. O clima continuou bom. A excitaÁ„o
aumentou. A sra. Cobb colocou aÁ˙car na sopa e sal na compota de
maÁ„. A cauda de Koko foi pisada
duas vezes.
¿s sete horas, todas as luzes da mans„o foram acesas. Oitenta
janelas grandes e estreitas reluzindo na noite com brumas criava um
espet·culo que Pickax jamais
tinha visto, e o movimento aumentou em Park Circle com as pessoas
que paravam para olhar, embasbacadas.
Quando os convidados chegaram, foram saudados por Qwilleran e
pelos diretores da Sociedade HistÛrica. Foram, ent„o, de cÙmodo em
cÙmodo, maravilhados com a
riqueza e as dimensıes palacianas do interior. A sala de visitas,
com seus pares de lareiras e candelabros, tinha uma fortuna em
pinturas a Ûleo nas paredes revestidas
de seda carmesim. A sala de jantar, projetada para dezesseis
lugares, era revestida de lambris de nogueira entalhada, importada
da Inglaterra no sÈculo XIX. Os visitantes
estavam t„o extasiados pelo museu que Koko nem sequer foi notado,
embora se empertigasse entre eles e fizesse poses de est·tua nos
pilares entalhados da escada e
no antigo piano de pau-rosa.
¿s oito horas, foi convocada a assemblÈia no terceiro andar.
Nigel Fitch, um diretor de investimentos, bateu o martelo e pediu a
todos que se levantassem para
um minuto de silÍncio em homenagem a Senior Goodwinter. Em seguida
comeÁaram os agradecimentos. Primeiro, o presidente agradeceu ao
meteorologista por adiar a neve.
E agradeceu a Qwilleran por tornar disponÌvel a mans„o como museu.
Qwilleran ficou em pÈ e agradeceu aos membros da sociedade pelo
estÌmulo e apoio. Agradeceu ‡ empresa XYZ pela doaÁ„o para a
construÁ„o. Agradeceu ‡ firma CPA
por informatizar o cat·logo do museu. Particularmente agradeceu ‡
sra. Cobb por colocar o museu em um nÌvel profissional. Em seguida,
agradeceu ‡s quatro comissıes
que tinham trabalhado na inauguraÁ„o. O presidente se mantinha
olhando para o elevador com expectativa.
Durante a discuss„o sobre velhas e novas atividades, Polly
Duncan, representante da biblioteca p˙blica, propÙs um projeto de
histÛria oral para preservar a
memÛria dos Veteranos. ìDeveria ser executado por alguÈm com
habilidade para entrevistasî, especificou, olhando para Qwilleran.
Ele disse que podia fazer uma tentativa.
Nigel Fitch, que normalmente presidia uma reuni„o de forma
r·pida, estava prosseguindo em passo lento. ìEstamos esperando o
prefeito, mas ele est· se atrasando
na entrada da cidade.î
Sempre que Fitch olhava para o elevador, todas as cabeÁas da
platÈia viravam esperanÁosamente na mesma direÁ„o. Num determinado
momento houve sons mec‚nicos
no poÁo do elevador, e fez-se um silÍncio na reuni„o. As portas se
abriram e entrou um Veterano, alto, magro e elegantemente vestido.
Ele fez uma saudaÁ„o alegre
para o presidente e caminhou em direÁ„o a uma cadeira vazia, com
modos de andar desajeitado, como um robÙ.
ìEste È o sr. Tibbittî, sussurrou uma mulher perto de
Qwilleran. ìUm diretor de escola aposentado. Ele tem noventa e trÍs
anos. Um velho querido.î
ìSr. presidenteî, disse Susan Exbridge, ìeu gostaria de fazer
uma proposta. A Sociedade dos Cantores apresentar· Messias, de
Haendel, na Velha Igreja de Pedra
no dia 24 de novembro, exatamente como foi executada no sÈculo
XVIII, com cantores usando trajes da Època. Planejamos uma recepÁ„o
para os participantes depois da
apresentaÁ„o, e este museu seria um local maravilhoso para realiz·-
la, se o sr. Qwilleran consentisse.î
ìPor mim, tudo bemî, disse Qwilleran, ìdesde que eu n„o tenha
de usar calÁas de cetim.î
E o prefeito ainda n„o chegara. Olhando freq¸entemente para seu
relÛgio, Pitch estimulava discussıes sobre o aumento das taxas, o
recrutamento de novos membros
e o inÌcio de um boletim informativo.
Finalmente, o zumbido revelador no poÁo do elevador foi ouvido,
seguido de um estalido quando a cabine chegou ao terceiro andar.
Todas as cabeÁas se viraram
com expectativa. A porta do elevador se abriu, e foi Koko que saiu ó
cauda perpendicular, orelhas soberbamente eretas, e um rato morto
agarrado em suas patas.
Qwilleran se levantou. ìE quero agradecer ao vice-presidente
encarregado de exterminaÁ„o, por sua diligÍncia ao eliminar certos
perigos do museu.î
ìReuni„o encerradaî, gritou Fitch.
Durante a conversa social que se seguiu, o banqueiro disse a
Qwilleran: ìVocÍ tem um gato extraordin·rio. Como ele fez isso?î
Qwilleran explicou que o sr. OíDell estava l· embaixo, e que
provavelmente colocara Koko na cabine, apertara o bot„o, e o enviara
para cima ó para fazer graÁa.
Na verdade Qwilleran n„o pensava nada disso. Koko era capaz de
entrar na cabine, esticar-se o m·ximo possÌvel, e alcanÁar os
controles com a pata. Havia feito
isso antes. O gato era fascinado por apertar botıes, por chaves,
manivelas e maÁanetas. Mas como alguÈm poderia explicar isso ao
banqueiro?
Quando o prefeito finalmente chegou, ele encurralou Qwilleran.
ìDiga, Qwill, quando esta cidade emergir· do Obscurantismo?î
ìO que vocÍ quer dizer?î
ìVocÍ j· ouviu falar de todo um condado tentando funcionar sem
um jornal? Todos nÛs sabÌamos que Senior era excÍntrico, mas
pens·vamos que Junior assumiria
e daria continuidade. Ele È um rapaz brilhante; era meu aluno de
ciÍncias polÌticas quando eu dava aulas. Mas suponho que tenha
ouvido falar que Gritty vendeu o
Picayune para vocÍ sabe quem. Eles far„o dele uma casa da moeda ó
v„o transform·-lo em um boletim de publicidade, e sÛ ó e
continuaremos sem qualquer cobertura das
notÌcias. Por que vocÍ n„o comeÁa um jornal, Qwill?î
ìBem, eu gostaria de ter meu prÛprio jornal, meu prÛprio
restaurante quatro estrelas e meu prÛprio clube com grandes times,
mas tive de aceitar o fato de que
n„o sou um investidor nem um administrador.î
ìCerto. E suas conexıes L· de Baixo? Sei que vocÍ atraiu aquele
jovem casal para c· para reativar o Old Stone Mill.î
ìPensarei sobre issoî, prometeu Qwilleran.
ìPense r·pido.î
Durante as xÌcaras de ch· fraco e de ponche moderadamente
alcoÛlico n„o faltou bl·bl·bl·.
ìIncrÌvel coleÁ„o de antig¸idades!î
ìVocÍ gosta desse clima?î
ìUma noite memor·vel. Estamos em dÈbito com o senhor, sr.
Qwilleran.î
ìA neve nunca esteve t„o atrasada.î
ìO que vocÍ vai fazer para o Dia de AÁ„o de GraÁas?î
ìVocÍ gostaria de uma ·rvore de Natal de quatro metros para o
museu, Qwill? Tenho uma bonita em minha fazenda.î
ìLugar charmoso para um casamento. Meu filho se casar· logo.î
No entanto, n„o havia nenhuma teoria sobre o acidente de Senior
ou o incÍndio do Picayune, apesar das questıes levantadas por
Qwilleran. Ele ainda era um estranho.
Embora observador por profiss„o, n„o ouvira nada que sugerisse
alguma atividade ilegal ou conspiraÁ„o.
Enquanto sentia um crescente desapontamento, percebeu que a
sra. Cobb estava extraordinariamente exaltada. Ela conversava
animadamente, ria muito e aceitava
elogios sem ficar rubra. Alguma coisa maravilhosa tinha acontecido
com ela, imaginava ele. Ela ganhara a loteria estadual, era avÛ pela
primeira vez, ou o prefeito
a indicara para a Comiss„o de PreservaÁ„o. Qualquer que fosse a
raz„o, a sra. Cobb estava excessivamente feliz.
Ent„o Qwilleran observou dois Veteranos sentados em um canto
com as cabeÁas bem prÛximas. Uma mulher fr·gil, dependente de uma
muleta, estava ouvindo um senhor
com uma bengala que falava do incÍndio do Picayune. Qwilleran
perguntou se eles estavam gostando da festa.
ìBons cookiesî, disse o homem, ìmas deveriam ter colocado
alguma coisa no ponche. Estou contente por n„o ter nevado.î
ìNÛs quase n„o saÌmos depois que a neve caiî, disse sua
companheira. ìEu nunca vi uma casa t„o grande!î
ìMas n„o consegui ouvir uma palavra na reuni„o.î
A mulher resmungou. ìAmos, vocÍ sempre se senta na fileira de
tr·s, e sempre se queixa que n„o consegue ouvir.î
Qwilleran perguntou o nome deles.
ìEu sou Amos Cook, oitenta e oito anosî, disse o homem.
ìOitenta e oito e ainda cozinhando. Ha ha ha.î Apontou para a mulher
o dedo polegar. ìEla È uma jovem
avezinha, oitenta e cinco anos. Ha ha ha.î
ìEu sou Hettie Spence e farei oitenta e seis anos no mÍs que
vemî, disse ela. Os Veteranos exibiam suas idades como se fossem
medalhas. ìEu era Fugtree antes
de me casar com o sr. Spence. Ele era dono da loja de ferragens. NÛs
criamos cinco filhos nossos ó quatro meninos ó e trÍs crianÁas
adotadas. Todos entraram na faculdade.
Meu filho mais velho È oftalmologista L· Embaixo.î Ela falava com um
tremular das p·lpebras, das m„os e dos ombros.
ìMinha sobrinha-neta casou-se com um delesî, disse Amos
interropendo-a.
ìEu escrevia os obitu·rios para o Picayune antes de minha
artrite piorarî, disse Hettie. ìEscrevi o obitu·rio do ˙ltimo dos
Klingenschoen.î
ìEu liî, disse Qwilleran. ìFoi inesquecÌvel.î
ìMeu pai n„o me deixou ir para a faculdade, mas fiz cursos por
correspondÍncia, e...î
Amos interrompeu. ìEla e eu est·vamos nas fotos que eles
tiraram antes do incÍndio.î
ìVocÍs gostaram?î, perguntou Qwilleran. ìA fotÛgrafa era boa?
Quantas fotos ela tirou?î
ìMuitasî, lamentou. ìFiquei extremamente cansado. Eu tinha
acabado de fazer uma operaÁ„o no fÌgado. Ela fazia clique-clique-
clique. N„o como nos velhos tempos.
Naquela Època vocÍ tinha de olhar para o passarinho atÈ que seu
rosto congelasse, e o homem ficava com a cabeÁa sob um pano preto.î
ìNaquela Època tÌnhamos de dizer ëxisí antes dele bater a
fotoî, disse Hettie. ìN„o havia fotÛgrafas, naquele tempo.î
ìN„o me deixaram fumar minha palha de milho. Diziam que
embaÁaria as fotos. Nunca ouvi algo mais est˙pido.î
Qwilleram perguntou-lhe que horas eles saÌram do escritÛrio do
jornal.
ìMeu neto nos pegou ‡s seisî, disse Amos.
ìCincoî, corrigiu-o Hettie.
ìSeis, Hettie. Junior levou a moÁa para o aeroporto ‡s cinco e
meia.î
ìBem, meu relÛgio marcava cinco, e tomei meu remÈdio.î
ìVocÍ se esqueceu de dar corda nele, e tomou seu remÈdio bem
atrasada. Foi por isso que ficou com um pouco de vertigem.î
Qwilleran os interrompeu. ìE o fogo comeÁou violentamente mais
ou menos quatro horas depois. VocÍs tÍm alguma idÈia do que o
causou?î
O velho casal se entreolhou e negou com a cabeÁa.
ìQuanto tempo o senhor trabalhou no Picayune, sr. Cook?î
ìFui aprendiz de tipÛgrafo quando tinha dez anos de idade, e
continuei atÈ n„o poder trabalhar mais.î Ele acariciou seu peito.
ìCoraÁ„o fraco. Mas consegui
ser jornalista-chefe quando Titus era vivo. TÌnhamos dois homens e
um garoto nas prensas manuais, e levava o dia inteiro para imprimir
alguns milhares. O jornal
era vendido por um penny. VocÍ conseguia comprar jornais o ano
inteiro por um dÛlar.î
Qwilleran lembrou-se do livro que Polly lhe dera. ìMeus caros,
vocÍs concordariam em descer e ver uma fotografia dos empregados do
Picayune? VocÍs devem ser
capazes de identific·-los.î
ìMeus olhos n„o est„o muito bonsî, disse Hettie. ìCataratas. E
n„o ando t„o r·pido desde que quebrei os quadris.î
Mesmo assim Qwilleran levou-os ‡ biblioteca e mostrou seu
exemplar do Picturesque Pickax. Ligou o gravador, e a entrevista foi
transcrita posteriormente por
Lori Bamba.
Pergunta: Esta È uma foto dos empregados do Picayune, tirada um
pouco antes de 1921. VocÍs reconhecem alguns dos rostos?
Amos: Eu n„o estou na foto. Nem mesmo sei quando foi tirada.
Mas este, no meio, È Titus Goodwinter ó o de chapÈu-coco e bigode
como guid„o de bicicleta.
Hettie: Ele sempre usava chapÈu-coco. Quem est· perto de Titus?
Amos: Este com ligas no braÁo? N„o o conheÁo.
Hettie: Era o contador?
Amos: N„o, o contador tinha aquelas faixas pretas nas mangas da
camisa. Bill Watkins era seu nome.
Hettie: Bill era o xerife. Seu primo Barnaby fazia a
contabilidade. Eu ia para a escola com ele. Foi morto por uma
carroÁa e um cavalo desgovernados.
Amos: Foi o xerife que tentou parar a carroÁa desgovernada,
Hettie. Barnaby levou um tiro de rifle na cabeÁa.
Hettie: Desculpe, mas eu discordo. Barnaby n„o era a favor de
armas de fogo. Conheci sua famÌlia inteira.
Amos: (em voz alta) Eu n„o disse que ele tinha uma arma! Disse
que alguÈm acertou um tiro nele!
Hettie: Eu pensava que o xerife sempre portasse uma arma.
Amos: (mais alto) NÛs estamos falando do contador! Barnaby! O
das faixas pretas nas mangas!
Hettie: N„o grite!
Amos: Bem, de qualquer forma, o de chapÈu-coco È Titus
Goodwinter.
Titus foi o fundador do jornal?
Amos: N„o. Ephraim comeÁou o jornal tempos atr·s. N„o sei
quando. Teve um grande funeral quando morreu. Ele se pendurou.
Hettie: Ele se enforcou, ou assim disseram.
Amos: Em um grande carvalho perto da Velha Ponte de Pranchas.
Foi ent„o que Titus comeÁou a administrar o jornal?
Amos: N„o, o filho mais velho ficou com o controle, mas ele
caiu de um cavalo.
Hettie: Centenas de melros surgiram de um milharal, e seu
cavalo disparou.
Amos: Naquele tempo, os melros eram como os mosquitos hoje.
Hettie: Titus se encarregou do jornal depois disso. Oh, ele era
bem genioso. Uma vez, quando o cÛrrego encheu e seu cavalo n„o
queria atravess·-lo, Titus saltou
com raiva e atirou nele.
Amos: No prÛprio cavalo! Matou-q com um tiro! Esse È Titus com
um chapÈu-coco. Sempre usava chapÈu-coco.
Quem È o homem com aparÍncia de mau no final da fileira?
Amos: Era o camponÍs que dirigia carroÁas, n„o È, Hettie?
Hettie: … Zack, certo. Jamais gostei dele. Ele bebia.
Amos: Matou Titus em uma briga e foi para a pris„o. Mas era bom
motorista. Tinha uma filha bonita. Seu nome era Ellie. Ela trabalhou
uma temporada no jornal.
Hettie: Ellie dobrava os jornais, fazia o ch· e a limpeza.
Amos: Numa noite escura, jogou-se no rio.
Hettie: Pobre menina, n„o tinha m„e, o pai bebia e o irm„o era
agressivo.
Amos: Titus gostou dela logo que a conheceu.
Hettie: Titus era paquerador ó ele, aquele de chapÈu-coco e
grande bigode.
Fim da entrevista.
Nigel Fitch interrompeu o di·logo, dizendo que estava pronto
para levar os dois Veteranos para casa. Todos os convidados estavam
sendo levados, embora com relut‚ncia.
Puxando Polly da multid„o que saÌa, Qwilleran convidou-a para ficar
para mais um drinque.
ìUm c·lice de sherry, e depois devo irî, disse ela enquanto
entravam na biblioteca. ìN„o gostou por eu ter envolvido vocÍ no
projeto de histÛria oral?î
ìDe modo algum. Ele pode ser interessante. VocÍ sabia que o pai
do Senior foi assassinado e seu avÙ se enforcou?
ìA famÌlia teve uma histÛria violenta, mas vocÍ deve se lembrar
que essa regi„o foi de pioneiros como no Velho Oeste, sÛ que numa
Època posterior. Somos mais
civilizados agora.î
ìComputadores e vÌdeos n„o fazem uma civilizaÁ„o.î
ìIsso n„o È Shakespeare, Qwill.î
ìVisitei a sra. Goodwinter ontemî, disse ele. ìEla n„o parecia
uma dessas vi˙vas tradicionais, arrasadas pela dor e sedadas pelo
mÈdico da famÌlia.î
ìEla È uma mulher corajosa. Sempre foi.î
ìEla tem tomado umas decisıes muito repentinas ó vender a casa,
leiloar a mobÌlia, deixar as prensas irem para o ferro-velho. H·
menos de uma semana Senior
morreu, e os an˙ncios de leil„o est„o por toda a cidade. … r·pido
demais.î
ìAs pessoas que nunca foram vi˙vas est„o sempre dizendo como as
vi˙vas devem se comportarî, disse Polly. ìGritty È uma mulher forte
como sua m„e. Euphonia Gage
deve fazer parte de sua lista para uma entrevista de histÛria oral.î
ìO que vocÍ sabe da empresa XYZ?î
ìApenas que È bem-sucedida em tudo que faz.î
ìVocÍ conhece os diretores?î
ìSuperficialmente. Don Exbridge È um homem encantador. Ele È o
cabeÁa, o homem das idÈias. Caspar Young È o empreiteiro. E o dr.
Zoller È o homem do dinheiro.î
ìFaz sentido. Suspeito que ele fez uma fortuna em fio dentalî,
disse Qwilleran. ìTodos eles, X, Y e Z pertencem ao Country Club?î
Ele tinha feito um estudo do sistema de panelinhas em Pickax.
Tudo dependia do clube ao qual a pessoa se associava, da igreja que
freq¸entava, e de quanto tempo
a famÌlia da pessoa morava no Condado de Moose. Os Goodwinter
estavam l· havia cinco geraÁıes; os Fitche, quatro.
ìDevo ir agoraî, disse Polly, ìantes que meu senhorio chame o
xerife e mandem o pelot„o de busca. O sr. MacGregor È um velho
am·vel e n„o quero aborrecÍ-lo.î
Depois que ela saiu, Qwilleran se perguntava se a refinada m„o
da empresa XYZ tinha guiado as decisıes da sra. Goodwinter. Todos
eles pertenciam ao clube. Jogavam
golfe. Jogavam cartas. Era assim que funcionava.
Ele tambÈm se perguntou se Polly realmente tinha um senhorio
idoso chamado MacGregor monitorando suas atividades. Ou era uma
desculpa para ir embora cedo? E
por que ela relutava tanto em ficar atÈ mais tarde? Ela estava com
medo de alguma coisa. Fofocas, talvez. Pickax impunha um cÛdigo de
comportamento vitoriano ‡s
mulheres que tinham uma profiss„o, e elas tomavam cuidado para
preservar aparÍncias, embora estivessem vivendo no final do sÈculo
XX. O senhorio de Polly, suspeitava
Qwilleran, deve ser mais que um senhorio.
SEIS
SEXTA-FEIRA, 15 DE NOVEMBRO. Era o dia da abertura da temporada
de caÁa para os caÁadores de veados. No Museu Klingenschoen, era a
manh„ seguinte ‡ inauguraÁ„o
e a sra. Cobb ainda estava animada e um tanto aturdida.
Qwilleran cumprimentou-a pelo sucesso da noite. ìTodos
elogiaram o museu e o lanche, n„o necessariamente nesta ordemî,
disse ele. ìOfereceram-nos uma ·rvore
de Natal de quatro metros para o sal„o, e os Fitche gostariam de
usar o museu para o casamento do filho.î
ìSeria um belo cen·rio para um casamentoî, disse ela,
acrescentando de modo brincalh„o: ìKoko poderia ser o garÁon
díhonneur e carregar as alianÁas na caudaî.
ìVocÍ est· fazendo piadas esta manh„î, disse Qwilleran. ìDeve
estar se sentindo muito bem.î
Ela olhou-o timidamente. ìO que o senhor pensaria sobre ter
dois casamentos aqui?î
ìVocÍ?î
Seus olhos estavam brilhando atr·s das grossas lentes. ìHerb
est· comprando uma casa centen·ria de fazenda. Ele me telefonou logo
antes da inauguraÁ„o e disse
que pensava que deverÌamos nos casar.î
ìHumî, disse Qwilleran, que estava procurando alguma coisa mais
agrad·vel para dizer. ì… a casa de Goodwinter. Eu a vi. … uma
preciosidade!î
ìEle fez uma boa compra porque ela est· com pressa de vendÍ-la
antes que a neve caia.î
ìA decoraÁ„o È pesada, mas vocÍ deve saber como corrigir isso.î
ìSer· divertido restaur·-la e mobili·-la com mÛveis de Època.î
ìHackpole gosta de antig¸idades?î, perguntou Qwilleran com ar
de quem duvida.
ìNa verdade n„o, mas ele diz que posso fazer o que quiser. Seu
principal interesse È caÁar e pescar. Ele tem arm·rios cheios de
armas, facas de caÁa e varas
de pescar. Quer me dar um rifle ó calibre 22 ou algo assim ó para
esquilos e coelhos.î Seus l·bios enrugados expressavam reprovaÁ„o.
ì… difÌcil imagin·-la andando pelos bosques, atirando em
animais pequenos, sra. Cobb.î
Ela estremeceu. ìHerb estava me contando como ele estripa um
veado, e embrulhou meu estÙmago. A propÛsito, ele quer saber se o
senhor gosta de carne de veado.
Ele sempre pega o macho, e diz que a carne È deliciosa se o veado
sangra lentamente para morrer. O coraÁ„o deve continuar a bombear
sangue para fora dos tecidos.î
Ela repetia, sem entusiasmo, o que ele dissera.
ìHumî, disse Qwilleran outra vez, seu bigode mais virado para
baixo do que normalmente. Ele n„o estava feliz com a reviravolta dos
acontecimentos. Uma governanta
trabalhando um turno de oito horas, e depois indo para casa cozinhar
para o marido, seria bem diferente da governanta que morava na casa
do patr„o e que acostumara
mal tanto os gatos quanto ele com suas comidas, durante os ˙ltimos
dezoito meses. Todavia, ele sabia que Iris Cobb, vi˙va duas vezes,
desejava muito um marido. Que
pena ela n„o ter encontrado um melhor do que Hackpole.
… verdade que ele ganhava bem a vida ó com carros usados,
oficinas de automÛveis, solda e ferro-velho. … verdade que era
bombeiro volunt·rio e que se orgulhava
disso. Havia construÌdo um jardim mÛvel de ervas para a sra. Cobb em
sua oficina; havia colhido frutas silvestres para que ela fizesse
gelÈia; era um perito lenhador.
No entanto, Hackpole era considerado antip·tico por toda a cidade.
Parece que n„o tinha nenhum amigo, exceto a sra. Cobb, e agora esse
inepto Romeu queria dar a
ela um rifle calibre 22! Pobre mulher! Ela havia esperado uma cara
blusa de seda no anivers·rio, e ele lhe dera um caro canivete suÌÁo.
O homem despertava a curiosidade
de Qwilleran.
Como teria conseguido comprar a casa de Goodwinter t„o
rapidamente? Certamente ele n„o era membro da panelinha do Country
Club, mas devia ter ligaÁıes com a
empresa XYZ. Provavelmente sua oficina de solda tinha o contrato
para as grades das sacadas do Motel de Mooseville e das casas do
Indian Village.
Em seguida o telefone tocou, e Qwilleran atendeu a chamada na
biblioteca.
Uma voz de menina disse: ìSr. Qwilleran, aqui È Jody. Juney
voltou L· de Baixo ontem ‡ noite. Ele n„o conseguiu empregoî.
ìEle encontrou o diretor de redaÁ„o?î ìSim, o homem que lhe
prometeu um emprego. Disse que tinha acabado de contratar trÍs novas
repÛrteres e n„o havia oportunidade
nesse momento, mas eles continuariam a tÍ-lo na lista de espera.î
ì… tÌpico!î, resmungou Qwilleran. ì… tÌpico daquele cara.î
ìJuney tentou o Morning Rampage tambÈm, mas eles est„o
diminuindo o quadro de pessoal. Ele est· terrivelmente deprimido.
Chegou tarde ontem ‡ noite e n„o dormiu
nada.î
ìCom sua referÍncia acadÍmica, ele n„o ter· problema para
conseguir colocaÁ„o, Jody. Na primavera, os jornais enviam caÁa-
talentos aos campi universit·rios
para recrutar os melhores estudantes. Ele tentou apenas uma cidade.
Devia comeÁar a enviar seu curriculum vitae para todo o paÌs.î
ìFoi o que eu disse, mas ele n„o deu atenÁ„o. Saiu cedo esta
manh„ e disse que ia caÁar. Disse que iria para a casa da fazenda e
pegaria o rifle de seu irm„o
ó se sua m„e j· n„o o tivesse vendido. … por isso que estou
preocupada. Ju-ney n„o entende de florestas e n„o È louco por caÁa.î
ìSair pelas florestas ser· uma boa terapia, Jody. Vai aguÁar
sua perspectiva. E o clima n„o est· ruim. N„o se preocupe com ele.î
ìBem, n„o sei...î
ìQuando Junior voltar, nÛs nos encontraremos e teremos uma
conversa.î
Qwilleran tinha marcado um encontro ‡ tarde com a avÛ Gage de
Junior, para uma entrevista de histÛria oral, mas ainda faltava uma
hora e se sentiu impaciente.
A comunicaÁ„o da sra. Cobb o angustiara, e a decepÁ„o de Junior
tinha-o deixado vagamente constrangido. Resolveu seguir seu prÛprio
conselho: dirigiu-se ao campo.
Era um dia cinzento, provavelmente n„o alegraria ninguÈm e, sem
neve, o campo parecia triste. Viajando na direÁ„o norte para
Mooseville, pelos bons campos de
caÁa, ele olhava as estradas do lado de baixo, procurando o carro de
Junior. Aqui e ali, um carro ou caminhonete de caÁador, estacionados
bem alÈm dos acostamentos
em uma ·rea desolada coberta de mato, mas n„o havia sinal de um
Jaguar vermelho. Ele tinha vislumbres de um vulto laranja brilhante
se agachando em um milharal ou
entrando nas florestas, e ouvia tiros de espingarda. Ele estava
feliz porque usava seu prÛprio bonÈ laranja brilhante.
Ao chegar ‡ sua propriedade na beira do lago, seguiu a estrada
curva de terra que levava ‡ cabana. Viu as marcas de pneus onde o
campista havia estacionado.
Em seguida subiu para a cabana de madeira, admirando o lago do alto.
Com as janelas de venezianas, a energia desligada e o sistema de
·gua drenado, estava mais frio
dentro do que fora. Na praia, as barreiras de neve estavam no lugar.
O lago parecia medonho e pronto para congelar. A cena era sombria e
solit·ria. Ele ouviu tiros
de espingardas na floresta, e apressou-se em voltar para seu carro.
Indo para seu encontro com Euphonia Gage, pegou um desvio na
Estrada MacGregor, procurando a casa de campo onde Polly dizia morar
sob os olhos vigilantes de
seu senhorio idoso. N„o havia habitaÁıes nessa estrada do campo ó
apenas campos abertos, intercalados com trechos de bosques. N„o
havia tr·fego algum, exceto um
carro com uma lebre amarrada no teto. O motorista abriu um grande
sorriso para Qwilleran e fez um V com os dedos.
De repente houve uma sacudidela na estrada, e o asfalto deu
lugar ao cascalho. Um pouco mais adiante, duas caixas de correio no
alto de mourıes de cedro marcavam
uma longa entrada para carros, ladeada por arbustos. Ela levava a
uma sÈrie de construÁıes: uma consider·vel casa de fazenda de pedra,
uma casa pequenina nos fundos,
alguns barracıes e um celeiro exposto ao ar, vergando para o ch„o.
Os nomes nas caixas de correio eram MacGregor e Duncan.
Nenhum carro ‡ vista. Nenhum equipamento agrÌcola. Nenhum
cachorro latindo. Mas um ganso andava em volta da casa principal e
grasnava de maneira ameaÁadora.
Com extremo cuidado e de olho na ave, Qwilleran saiu do carro e
caminhou em direÁ„o ‡ porta lateral da casa da fazenda. N„o houve
necessidade de bater. Ele j· tinha
sido anunciado.
ìO que vocÍ quer?î, guinchou uma voz queixosa. Um velho, fr·gil
e curvo, apareceu no v„o da porta, usando trÍs suÈteres e algumas
polainas de tricÙ sobre as
calÁas.
ìSr. MacGregor? Sou Jim Qwilleran. SÛ quero fazer uma pergunta,
senhor.î
ìO que vocÍ est· vendendo? N„o quero comprar nada.î
ìN„o sou vendedor. Estou procurando um caÁador que dirige um
Jaguar vermelho.î
ìO que vermelho?î
ìUm carro vermelho. Vermelho brilhante.î
ìN„o seiî, disse o velho. ìSou daltÙnico.î
ìDe qualquer forma, obrigado, sr. MacGregor. Bom dia.î
Ainda observando o ganso, Qwilleran saiu de costas. Ele tinha
confirmado que Polly realmente morava em uma casa de campo, junto a
uma casa de fazenda que pertencia
a um idoso senhorio chamado MacGregor. Satisfeito, dirigiu de volta
‡ cidade. A casa de campo, ele observou, era incrivelmente pequena.
¿s duas e trinta tocou a campainha de uma grande casa de pedra
no bulevar Goodwinter, para entrevistar a presidente, de oitenta e
dois anos de idade, do Clube
dos Veteranos. A mulher que abriu a porta n„o era jovem nem velha,
mas ele duvidava que ela pudesse plantar bananeira e fazer
abdominais.
ìA sra. Gage est· em seu est˙dioî, disse a mulher. ìO senhor
pode entrar ó pelo corredor em frente.î
Uma caverna sombria de veludo escuro, pesados mÛveis entalhados
e tapeÁarias de crina preta levavam a uma luz, um est˙dio iluminado,
sem mÛveis, exceto dois
grandes espelhos e uma esteira para exercÌcios. Uma mulher baixa
usando collant, maiÙ e polainas, estava sentada em posiÁ„o de lÛtus
na esteira. Ela se levantou
sem esforÁo e veio em frente.
ìSr. Qwilleran! Ouvi Junior falar muito do senhor! E
naturalmente eu lia sua coluna no Fluxion.î Sua voz era calma, mas
vibrante. Ela tirou um suÈter largo
que ia atÈ o joelho e fez Qwilleran entrar na sala sufocante.
Era pequena, mas n„o era fr·gil, cabelos brancos, mas pele
lisa.
ìSei que a senhora È presidente do Clube dos Veteranosî, disse
ele.
ìSim, eu tenho oitenta e dois anos. O sÛcio mais jovem È
automaticamente indicado para presidente.î
ìDesconfio que a senhora mentiu sobre sua idade.î
Sua express„o contente reconhecia o elogio.
ìPretendo viver uns cento e trÍs. Acho que cento e quatro seria
exagero, n„o acha? O exercÌcio È o segredo, e a respiraÁ„o È o fator
mais importante. O senhor
sabe como respirar, ST. Qwilleran?î
ìEstou fazendo o melhor que posso para cinq¸enta anos.î
ìLevante-se e deixe-me colocar as m„os em sua costela... Agora
inspire... expire... aspire... exale. O senhor respira muito bem,
sr. Qwilleran, mas pode trabalhar
nisso um pouco mais. Agora, o que posso fazer pelo senhor?î
ìGostaria de ligar o gravador e fazer algumas perguntas para a
senhora sobre os primeiros tempos no Condado de Moose.î
ìFicarei feliz em ajudar.î
A entrevista seguinte foi transcrita mais tarde:
Pergunta: Quando seus ancestrais vieram para o Condado de
Moose, sra. Gage?
Sra. Gage: Meu avÙ veio para c· em meados do sÈculo XIX,
diretamente da escola de medicina. Era o primeiro mÈdico do lugar e
foi tratado como uma bÍnÁ„o do
cÈu. N„o existia hospitais nem clÌnicas. Tudo era primitivo. Ele ia
atÈ as casas em lombo de cavalo, ‡s vezes na frente de uma matilha
de lobos uivando. E uma vez,
apÛs um incÍndio na floresta, quando todas as trilhas estavam
intransit·veis, com um machado, ele abriu seu caminho de 24 km entre
ruÌnas para tratar dos sobreviventes.
Eles estavam queimados, mutilados e cegos, e n„o havia medicamentos,
exceto os que ele trazia em sua mochila.
Que tipo de medicamentos ele usava?
Sra. Gage: Meu avÙ fazia os seus medicamentos e fazia ele mesmo
os comprimidos com ervas e plantas, como pÛ de ruibarbo, arnica e
noz-vÙmica. Alguns de seus
pacientes preferiam remÈdios fora de moda, como ch· de gat·ria ou um
bom gole de uÌsque. Nunca pagavam seus serviÁos com dinheiro. Eles
lhe davam duas galinhas por
ajustar um osso quebrado ou um cesto de maÁ„s por um parto.
Que tipos de casos ele tratava?
Sra. Gage: Tudo. Febre, varÌola, doenÁa do pulm„o, cirurgia,
tratamento de dentes. Ele arrancava dentes com um par de
ìtorniquetesî. E havia uma grande quantidade
de emergÍncias causadas por inundaÁıes de primavera, cobras
peÁonhentas, acidentes de serraria, coices de mulas, brigas de
tavernas. AmputaÁıes eram muito comuns.
Ainda tenho sua coleÁ„o de serras, facas e escalpelos.
Por que tantas amputaÁıes?
Sra. Gage: N„o havia antibiÛticos. Um membro infeccionado tinha
de ser amputado, ou o paciente morreria de envenenamento no sangue.
Meu avÙ contava que fazia
cirurgias ‡ luz de velas em uma cabana de madeira enquanto alguÈm da
famÌlia enxotava moscas da incis„o aberta. Isso foi h· uns cem anos,
o senhor entende. Quando
meu pai comeÁou sua atividade, as condiÁıes tinham melhorado. Ele
tinha um escritÛrio em nossa saleta da frente, ia atender nas casas
em uma pequena carruagem ou
trenÛ, e tinha um chofer em tempo integral que morava no est·bulo e
cuidava dos cavalos. O chofer ó seu nome era Zack ó depois foi
trabalhar no Picayune e ganhou
notoriedade por matar Titus Goodwinter.
A senhora sabe em que circunst‚ncias?
Sra. Gage: Para voltar um pouquinho, o pai de Zack era um
mineiro, que ficou em pedaÁos em uma explos„o subterr‚nea. Zack
tornou-se um homem amargo e violento
que batia sempre em sua esposa e nas duas crianÁas. Meu pai
costumava medic·-los e denunciar as agressıes ao oficial de polÌcia,
mas nada era feito a respeito. A
jovem filha de Zack tambÈm trabalhava no Picayune, e Titus, que era
um escandaloso devasso, seduziu a pobre moÁa. Ela se afogou, e Zack
foi atr·s de Titus com uma
faca de caÁar. N„o È uma histÛria bonita.
O Picayune era um bom jornal naquela Època?
Sra. Gage: Bem... eu lhe direi... se vocÍ desligar essa coisa.
Fim da entrevista.
ApÛs Qwilleran desligar o gravador, a sra. Gage disse: ìPosso
lhe falar confidencialmente, porque vocÍ È amigo do meu neto
favorito. Junior fala de vocÍ com
orgulho. A verdade È: eu nunca fiz bom juÌzo daquele ramo da famÌlia
Goodwinter, nem do jornal que eles publicavam. Ephraim, o fundador
do Picayune, n„o era jornalista.
Era um rico propriet·rio de mina e um bar„o da madeira, que faria
qualquer coisa por dinheiro. Foi sua avareza e negligÍncia que
causou a terrÌvel explos„o da mina,
matando 39 homens. No final ele se suicidou. Seus filhos n„o eram
melhores. Seu neto, Senior, era uma pessoa estranha; sÛ estava
interessado em composiÁ„o de tipos!îî
Ela virou os olhos com esc·rnio.
ìPor que sua filha se casou com ele?î, perguntou Qwilleran
diretamente, uma vez que Euphonia era conhecida por sua franqueza.
ìGritty sempre quis se casar com um Goodwinter, e ela sempre
fez exatamente o que quis. Foi um casamento estranho. Ela È uma moÁa
ardorosa que gosta de se divertir.
Senior n„o tinha nenhum ardor e com toda certeza sua idÈia de
divers„o n„o era a minha. Como geraram Junior, n„o consigo explicar.
Ele È muito pequeno para ser filho
de Gritty ó ela È como uma amazona! ó e muito brilhante para ser
filho de Senior.î
ìGenes recessivosî, disse Qwilleran. ìEle lembra sua avÛ.î
ìO senhor È um homem encantador, sr. Qwilleran. Gostaria que
Junior tivesse tido o senhor como pai.î
ìA senhora È uma mulher encantadora, sra. Gage.î
Os dois deram uma pausa para um momento de admiraÁ„o m˙tua, e
ele se achou querendo que ela fosse trinta anos mais jovem. Coragem
ó era isso que ela possuÌa
ó coragem! Provavelmente resultado de toda aquela respiraÁ„o.
ìO senhor acha que Junior promete?î, perguntou ela.
ìGrande promessa, sra. Gage. A senhora pode se orgulhar dele. A
senhora estava ciente de que o Picayune estava falindo?î
ì… claro que eu estava ciente. Tentei ajudar. N„o sei o que
aquele homem fez com meu dinheiro, a menos...î
ìA menos o quÍ, sra. Gage?î
ìSerei inteiramente franca. Vamos ficar ‡ vontade, como diz
Junior. VocÍ vÍ, eu fiquei sabendo de forma indireta que Senior
andava fazendo freq¸entes viagens
de um dia atÈ L· Embaixo. Na verdade, para Mine·polis. Se meu genro
tivesse alguma vez demonstrado algum tipo de ardor, eu imaginaria
que ele tivesse outra mulher.
Naquelas circunst‚ncias, sÛ pude deduzir que ele estava jogando como
um ˙ltimo recurso ó jogando e perdendo.î
ìOcorreu ‡ senhora que a morte dele pode ter sido suicÌdio?î
Ela olhou assustada. ìSenior n„o teria coragem, sr. Qwilleran,
para tirar sua prÛpria vida.î
Ao sair, ele disse: ìA senhora È uma pessoa excelente para
entrevistas, sra. Gage. Espero que possamos nos encontrar outra vez
ó talvez uma noite para jantar.î
ìAdorarei aceitar, se o convite ainda for v·lido na primavera.
Vou para a FlÛrida amanh„î, disse ela. ìFoi um imenso prazer, sr.
Qwilleran. Agora, n„o se esqueÁa
de respirar!î
* *
Qwilleran estava de bom humor aquela noite, quando se acomodou
em sua cadeira de couro favorita, acariciando a gata em seu colo e
esperando que um livro caÌsse
no tapete. Ele parara de protestar; o truque do livro estava se
tornando um jogo entre ele e Koko. O gato jogava um tÌtulo;
Qwilleran lia em voz alta, acompanhado
de ronronares, ìiksî e ìmiausî.
Naquela ocasi„o a seleÁ„o de Koko foi Henrique V, uma boa
escolha, pensou Qwilleran. Folheou todo o livro em busca de uma
passagem de que gostava, a disposiÁ„o
com que o rei falava para suas tropas: ìUma vez mais para a brecha,
queridos amigos, uma vez mais...î
Koko assumiu sua posiÁ„o de ouvinte, sentando-se empinado e
atento no topo da escrivaninha, com a cauda enrolada nas patas da
frente, e os olhos azuis cintilando,
escurecidos ‡ luz da l‚mpada.
Era uma fala imperiosa, cheia de vividas referÍncias. ìMas
quando a tempestade da guerra sopra em nossos ouvidos, È preciso que
imitemos a aÁ„o do tigre...î
ìMIAU!î, ronronou Koko.
Com uma audiÍncia t„o atenta, Qwilleran n„o se acanhava em
dramatizar a fala. Com um terrÌvel olhar, franziu a testa, endureceu
os m˙sculos, mostrou os dentes,
distendeu as narinas e respirou firme. Koko estava ronronando rouco.
Berrando a todo volume, Qwilleran proferiu a ˙ltima linha:
ìDeus por Henrique! Inglaterra e S„o Jorge!î
ìMIAU-AU!î, uivou Koko. Yum Yum fugiu do cÙmodo sobressaltada,
e a sra. Cobb veio correndo.
ìOh! Pensei que o senhor estivesse sendo assassinado, sr. Q.î
ìSimplesmente lendo para Kokoî, explicou. ìEle parece divertir-
se com o som da voz humana.î
ì… da sua voz que ele gosta. Ontem ‡ noite todos estavam
dizendo que o senhor deveria se juntar ao grupo de teatroî, disse
ela.
Quando a casa voltou a sua calma normal, um nome passou pela
mente de Qwilleran ó Harry Noyton. Ele tivera negÛcios com Harry, L·
Embaixo. O homem era um empreendedor
ousado, que estava sempre procurando um novo desafio ou um jogo
financeiro. Por mais absurda que fosse a proposta, Harry, sempre
lucrava com ela. Atualmente estava
morando sozinho em Chicago, em uma cobertura no alto de uma torre de
escritÛrios que ele construÌra.
Num impulso, Qwilleran discou para o apartamento de Noyton, e
uma voz subumana declarou que ele poderia ser encontrado em seu
hotel, em Londres.
ì… possÌvel uma coincidÍncia assim?î, Qwilleran perguntou a
Koko. ìHarry est· na Inglaterra!î Ele deu uma olhada em seu relÛgio.
Dez e trinta. Seria madrugada
em Londres. Melhor! Noyton freq¸entemente o tirava do sono em horas
absurdas, e sem pretexto.
Ele discou para o hotel em Londres, esperando que fosse o Saint
George, mas era o Claridgeís. Quando a voz de Noyton chegou na
linha, ele parecia t„o vigoroso
quanto estaria ao meio-dia; sua energia era fenomenal.
ìQwill! Como est· garoto? Ouvi dizer que vocÍ est· vivendo como
um glut„o desde que saiu do Flux. Quem est· cozinhando? Sei que vocÍ
nunca gastou um quarto
de dÛlar em uma chamada telefÙnica a menos que fosse urgente.î
ìVocÍ gostaria de ser um magnata de jornal, Harry?î
ìO Fluxion est· ‡ venda?î
Qwilleran descreveu a situaÁ„o em Pickax, acrescentando: ìSeria
um crime prostituir com publicidade descart·vel um jornal
centen·rio. O condado precisa de um
jornal, e o nome do Picayune È parte da vida de todos. Ele teve
publicidade nacional esta semana e vai ter mais. Se alguÈm fizesse
uma proposta melhor ‡ vi˙va ela
poderia entender.î
ìDiabo, conversarei com a vi˙va. Eu sou bom de conversa com
vi˙vas.î
Qwilleran acreditava nisso. Noyton era um self-made man, com um
talento para atrair mulheres assim como dinheiro, embora jamais
tivesse adquirido algum refinamento.
Mesmo de terno com colete feito sob medida ele continuava parecendo
um espantalho. Tinha v·rias ex-esposas e estava sempre procurando
outra.
ìPegarei um avi„o para casa amanh„î, disse ele. ìComo chego a
Pickax? Nunca ouvi falar desse lugar.î
ìVocÍ pega um vÙo para Mine·polis e de l· um avi„o pequeno para
o Condado de Moose. Sinto n„o saber o hor·rio. Provavelmente eles
nem sequer tÍm um.î
ìFretarei alguma coisa, de algum modo. NinguÈm consegue me
manter no ch„o por muito tempo.î
ì… melhor chegar aqui antes que a neve caia.î
ìTelefonarei para vocÍ de Mine·polis.î
ìBom! Irei busc·-lo no aeroporto, Harry.î
Com um confort·vel sentimento de realizaÁ„o, Qwilleran comeÁou
sua verificaÁ„o noturna da casa e, ao fazÍ-lo, encontrou outro livro
de couro de porco no ch„o.
Desta vez era Tudo est· Bem Quando Termina Bem.
ìN„o acabou ainda, caro meninoî, ele disse a Koko enquanto
colocava os dois gatos, que protestaram, na cesta de vime.
Ele estava certo. ¿s duas horas da madrugada foi acordado por
uma chamada telefÙnica de Jody.
ìSr. Qwilleran, estou muito preocupada. Juney n„o voltou para
casa.î
ìTalvez tenha ido para a casa da m„e dele. VocÍ ligou para l·?î
ìNinguÈm atendeu. Pug voltou para Montana, e a sra. Goodwinter
provavelmente est· dormindo... em Indian Village. Liguei para a vovÛ
Gage mais cedo, e ela achava
que Juney ainda estava L· Embaixo. Liguei atÈ para Roger, seu amigo
em Mooseville.î
ìEnt„o seria melhor notificarmos a polÌcia. Telefonarei para o
xerife. Fique aÌ.î
ìEu vou enlouquecer, sr. Qwilleran. Eu queria sair e ir eu
mesma procur·-lo.î
ìVocÍ n„o pode fazer isso, Jody. VocÍ deveria ligar para uma
amiga e pedir que ela fique com vocÍ. Que tal Francesca?î
ìDetesto telefonar para ela t„o tarde.î
ìTelefonarei a ela para vocÍ. A filha de um chefe de polÌcia
est· acostumada com emergÍncias. Agora desligue para que eu possa
telefonar para o xerife. E tome
um copo de leite morno, Jody.î
SETE
S¡BADO, 16 DE NOVEMBRO. ìPossibilidade de tempestades de neve
hoje, com queda de temperatura. No momento, quatro graus negativos.
MÌnima de ontem ‡ noite, dez
negativos... E agora vamos ‡s notÌcias: um caÁador declarado perdido
esta manh„, foi encontrado pelos assistentes do xerife auxiliados
pelos soldados de cavalaria
do Estado. Junior Goodwinter est· internado em estado regular no
Hospital de Pickax, sofrendo de hipotermia e com uma perna
quebrada.î
Como Qwilleran tomou conhecimento, mais tarde, por intermÈdio do
chefe de polÌcia Brodie, um assistente da patrulha de rotina das
estradas vicinais, no dia de abertura
da estaÁ„o de caÁa, tinha localizado o Jaguar vermelho estacionado
perto de uma ·rea de matas. Quando Junior foi declarado perdido,
eles estavam prontos para comeÁar
as buscas naquele ponto, usando c„es de caÁa, pelot„o montado e um
grupo volunt·rio de fazendeiros que eram h·beis cavaleiros.
ìParece-meî, disse Qwilleran ‡ sra. Cobb, ‡ mesa do cafÈ da
manh„, ìque ninguÈm deveria ir caÁar sozinho. Os riscos s„o muitos.î
ìHerb sempre vai sozinhoî, disse ela.
Qwilleran pensou: aquele cara n„o consegue encontrar alguÈm
para ir com ele. Pensamentos maldosos vinham ‡ sua mente sempre que
Hackpole era mencionado. Em
voz alta, disse: ìSe ele for lev·-la para jantar esta noite, por que
n„o o traz para um drinque antes de vocÍs saÌrem?î
ìSeria agrad·velî, disse ela. ìNÛs viremos direto para a
cozinha. Ele ficar· mais ‡ vontade aqui.î
ìEle gostaria de dar uma volta pelo museu?î
ìBem, para falar a verdade, sr. Q, ele acha que objetos de arte
sÛ servem para guardar poeira, mas eu gostaria de lhe mostrar o
por„o.î
ìA senhora nunca me contou nada sobre a histÛria deleî, disse
Qwilleran, embora Junior lhe tivesse contando algo a respeito.
ìEle cresceu aqui. Depois de uma temporada no exÈrcito,
trabalhou na costa leste, casou-se e teve dois filhos. Agora est„o
crescidos e ele nem sabe onde est„o.î
Isto se adapta ao quadro, pensou Qwilleran.
ìEle voltou para o Condado de Moose por causa das alergias de
sua esposa, mas ela n„o gostou da vida no campo e o deixou.î
Fugiu com um motorista de caminh„o de cerveja, Qwilleran ouvira
dizer.
ìEle È um homem muito solit·rio e sinto pena dele.î
ìEle lhe mostrou a casa da fazenda?î
ìAinda n„o, mas sei o que quero fazer ó arrancar o papel de
parede, pintar as paredes de branco e estamp·-las.î
ìVocÍ gostaria de ter o guarda-roupa de pinho? Se quiser, È seu
presente de casamento.î
Ela arfava. ìO senhor quer dizer aquele arm·rio da Pensilv‚nia?
Oh, eu adoraria! Mas o senhor tem certeza de que quer se separar
dele?î
ìMinha vida nunca ser· a mesma sem eleî, disse. ìTalvez eu
tenha ataques de ansiedade e perÌodos de grande depress„o, e talvez
tenha de comeÁar uma terapia,
mas quero que vocÍ fique com o arm·rio.î
ìOh, sr. Q, o senhor est· brincando comigo outra vez.î
ìVocÍs marcaram a data?î
ìNo prÛximo s·bado, se estiver tudo certo com o senhor. Herb
simplesmente queria que fÙssemos ao cartÛrio, mas eu disse a ele que
queria me casar aqui. Susan
Exbridge vai ser minha madrinha. O senhor estaria disposto a ser o
padrinho?î
Ele engoliu em seco. ìCom prazer, sra. Cobb. A senhora tem uma
lista de convidados? Faremos uma recepÁ„o com champanhe.î
ì… muita delicadeza sua, mas n„o acho que Herb gostaria de uma
recepÁ„o, sr. Q.î
ìAvise-me se a senhora mudar de idÈia. Quero que tenha um
casamento memor·vel. A senhora tem sido valiosa aqui.î
ìH· um favor que gostaria de pedir se o senhor n„o se importaî,
disse ela. ìO senhor falaria com Koko sobre o jardim mÛvel de ervas?
Ele continua a gir·-loî.
ìA senhora j· tentou falar com um gato sobre qualquer coisa?î,
perguntou Qwilleran. ìEle revira os olhos, coÁa as orelhas e
continua fazendo o mesmo.î
ìEu n„o queria mencionar isso, mas... depois que levei o jardim
para um lugar ensolarado, ele o leva de volta para um canto escuro.
Eu o vi fazer isso. Ele
se apÛia nas patas traseiras, pıe as patas na prateleira mais baixa
e empurra.î
Os cantos da boca de Qwilleran tremeram quando ele imaginou
Koko empurrando o jardim de ervas pelo ch„o de pedra do sol·rio como
um carrinho de bebÍ. A luz
do sol era fraca em novembro, e aquele gato a queria sÛ para si.
ìPor que vocÍ n„o pede a Hackpole para inventar algum tipo de
freio para as rodas?î, sugeriu.
A campainha tocou.
ìOh, meu caro! Esqueci de lhe dizerî, disse a sra. Cobb. ìDevo
estar completamente descompensada. Hixie Rice avisou que ia passar
por aqui quando fosse para
o trabalho.
Provavelmente È ela na porta da frente.î Ela levantou-se de um
salto.
ìContinue sentada. Eu irei.î
Hixie tinha estacionado seu pequeno carro na entrada circular,
e estava olhando para a porta da frente com seus acessÛrios de lat„o
de brilho deslumbrante,
polidos pelo sr. OíDell.
ì… tudo t„o imponente, Qwill! VocÍ deveria ter um mordomoî,
disse ela, enquanto seus saltos estalavam no vestÌbulo de m·rmore
branco. ìEu lhe trouxe a ˙ltima
iguaria de nossa linha de comida congelada para gatos: pedacinhos de
lagosta em molho de Nantua e enchova.î
Koko fez uma apariÁ„o imediata no sal„o e ficou olhando
fixamente para Hixie sem express„o, exceto a curva de anzol em sua
cauda.
ìAcho que ele se lembra de mimî, disse Hixie. ìComment Áa va,
Monsieur Koko?î
ìIk, ikî, ele respondeu. Enquanto Qwilleran dava uma volta pela
casa com Hixie, Koko os seguiu como um super-zeloso guarda de
seguranÁa.
ìQue tapetes esplÍndidos!î, disse ela quando entraram na sala
de visitas.
Os dois grandes Aubusson antigos eram de cor creme, com as
bordas e os medalhıes do centro de rosas desbotadas.
ìObserve Kokoî, disse Qwilleran. ìEle sempre evita pisar no
desenho das rosas.î
ìAs velhas tintas vermelhas n„o eram feitas de alguma espÈcie
de inseto? Talvez ele possa farej·-lo.î
ìDepois de cem anos? N„o tente explicar isso, Hixie. Que tal
uma xÌcara de cafÈ?î
Quando eles se instalaram confortavelmente na biblioteca, ela
contemplou os quatro mil livros de capa de couro. ìQwill, vocÍ acha
traum·tico herdar muito dinheiro?
VocÍ se sente vulner·vel, isolado ou culpado?î
ìParticularmente, n„o.î
ìVocÍ n„o acha as pessoas invejosas, ressentidas ou hostis?î
ìVocÍ esteve lendo algum livro, Hixie. De fato, È realmente uma
amolaÁ„o ter muito dinheiro, de modo que eu o transferi para uma
fundaÁ„o filantrÛpica, e eles
se livram dele calmamente.î
Ela comeÁou a acender um cigarro, e ele a deteve. ìRegulamento
da cidade. Proibido fumar em museus... Como est· a m„e de seu amigo?
î
ìQuem?î
ìVocÍ disse que a m„e de Tony teve um derrame e que ele
precisou voar para a FiladÈlfia.î
ìOh, ela est· melhorando, e ele j· est· de volta, trabalhando
em seu livro de culin·riaî, disse Hixie com ar despreocupado. ìEu
tambÈm vou escrever um livro,
sobre os toaletes em restaurantes campestres. S„o inacredit·veis!î
ìN„o se queixe. VocÍ tem sorte dos toaletes serem dentro da
casa. Qual È sua crÌtica?î
ìBom, deixe-me lhe contar sobre o cafÈ North Pole em Brrr. Eles
tÍm apenas um toalete, e para chegar l· vocÍ tem de passar por um
cozinheiro muito ocupado e
uma mulher de mais de cem quilos lavando louÁa. Quando o achei,
entre uma lata de lixo e um esfreg„o sujo, o cÙmodo era escuro, e eu
n„o conseguia encontrar o interruptor.
Finalmente o cozinheiro chegou e puxou um fio gorduroso pendurado no
teto e, voil‡!, o toalete se inundou com a luz de uma l‚mpada de
quinze watts.
ìMeu prÛximo problema: como fechar a porta. Estava bem aberta ó
e aparentemente enguiÁada. Quando tentei forÁ·-la, uma escova para
vaso sanit·rio e uma garrafa
de alvejante caÌram em minha cabeÁa. Veja vocÍ, eles mantinham a
porta aberta, enganchando-a em uma prateleira alta onde guardavam o
material de limpeza. Fechei
a coisa e comecei a apalpar procurando o vaso. Eu ouvia um som
gorgolejante sob meus pÈs, de alguma espÈcie de dreno no ch„o. De
vez em quando ele engasgava, gorgolejava
e borbulhava. Fiquei preocupada com aquilo.
ìO assento do vaso estava fixado com um parafuso, e era tipo
sela de equitaÁ„o. O dreno no ch„o continuava a gorgolejar e a
borbulhar. O lavatÛrio enferrujado
comeÁou a arfar e entrar em erupÁ„o, de modo que saÌ de l·
rapidamente e parei na moita no caminho de casa.î
ìHixie, vocÍ sempre exageraî, disse Qwilleran. ìComo estava a
comida?î
ìFabulosa! Falo sÈrio! E agora h· uma coisa que gostaria de
discutir com vocÍ. Koko endossaria nossa linha felina de comidas
congeladas? DesenharÌamos um rÛtulo
ëA Escolha de Kokoí e terÌamos camisetas de Koko e outros prÍmios.
Talvez adesivos de p·ra-choques gratuitos dizendo ëMinha Gata Ama
Kokoí. O que vocÍ acha?î
ìN„o acho que ele simpatizaria com isso. Ele n„o curte nada, a
menos que seja idÈia dele.î
ìEle poderia fazer comerciais de TVî, ela insistiu. ìNa prÛxima
semana trarei uma c‚mera de vÌdeo e farei um teste com ele.î
ìIsso eu tenho de verî, disse Qwilleran. ìComo est„o as coisas
no Old Stone Mill?î
ìMeu patr„o veio jantar ontem ‡ noite e disse que est·
reescrevendo nosso contrato, dando-nos Tinia participaÁ„o melhor.î
ìParabÈns!î
ìEle estava se sentindo muito bem. Tinha uma mulher com ele ó
n„o sua esposa ó e eles tomaram duas garrafas inteiras do nosso
melhor champanhe-ì
ìOuvi dizer que o divÛrcio dele agora È definitivo.î
ìEle n„o est· perdendo tempo. Ambos estavam planejando um
cruzeiro pelo sul e esperando sair antes que a neve caia.î
ìComo È ela?î, perguntou Qwilleran.
ìDo tipo atlÈtico robusto com uma risada alta ó o tipo que n„o
consigo tolerar! O sr. X tem um apartamento em nosso conjunto, e
acho que ela est· morando com
ele. For que todos por aqui est„o t„o preocupados com a neve?î
* *

A neve n„o caiu no s·bado, embora ainda estivesse sendo


prevista nos boletins meteorolÛgicos de hora em hora. Qwilleran
estava ouvindo as notÌcias das seis
horas na biblioteca, quando a sra. Cobb deu uma r·pida olhada no
cÙmodo.
ìEle est· aquiî, ela disse nervosamente.
Qwilleran seguiu-a atÈ a cozinha para saudar o homem que estava
roubando sua governanta. Cumprimentou Hackpole com um aperto de
m„os, com intenÁ„o de ser cordial
e sincero, e seus dedos foram esmagados por um aperto possante.
ìDisseram que podemos esperar neve esta noiteî, disse
Qwilleran, usando a abertura de conversa padr„o do Condado de Moose.
ìN„o haver· neve ainda por alguns diasî, disse Hackpole.
ìEstive fora, nas florestas, o dia todo, e posso dizer isso pelo
modo como os veado-galheiros est„o
se comportando.î
ìOuvi dizer que vocÍ È um conhecedor das florestas e gostaria
de ouvir mais sobre isso, mas primeiro... que tal um drinque? Sra.
Cobb, o que lhe posso servir?î
ìO senhor acha que eu poderia tomar um uÌsque?î, ela perguntou
de forma acanhada.
ìUma dose e uma cerveja para mimî, disse o namorado. Ele estava
usando seu traje de noite: um paletÛ esporte de veludo cotelÍ com
camisa de flanela xadrez.
Koko estivera rodeando-o e finalmente se aventurou a farejar seus
sapatos.
ìSaia!î, berrou Hackpole, batendo os pÈs no ch„o.
Koko nem sequer pestanejou.
ìO que h· com esse gato? Ele È surdo?î, perguntou. ìEu consigo
fazer a maioria dos gatos pular sessenta centÌmetros acima do ch„o.î
ìKoko se considera autorizado a farejar sapatosî, disse
Qwilleran. ìEle sabe que vocÍ tem cachorros em casa.î
Os trÍs puxaram as cadeiras para perto da antiga mesa da
cozinha, importada de um mosteiro espanhol.
ìParece que vocÍ est· precisando de uma mesa novaî, disse o
convidado, observando as marcas de trÍs sÈculos cuidadosamente
preservadas. Ele bebeu de uma vez
sua dose e em seguida enfiou trÍs dedos no bolso superior de seu
paletÛ esporte.
A sra. Cobb deu uma palmadinha em sua m„o, em forma de uma
censura afetuosa. ìProibido fumar, querido. … ruim para as
antig¸idades, e È proibido por lei em
museus.î
Ele deixou os cigarros no bolso e olhou cautelosamente para
Koko. ìPor que ele est· sentado ali, me contemplando?î, perguntou
ele com a irritabilidade de um
fumante a quem foi dito para n„o fumar.
ìKoko est· avaliando vocÍî, disse Qwilleran. ìOs dados ser„o
programados no minicomputador de seu cÈrebro.î
ìSempre tÌnhamos um bando de gatos sem dono ao redorî, disse o
convidado. ìAmarr·vamos uma lata de estanho no rabo do gato e
tÌnhamos um Ûtimo alvo em movimento
para um calibre 22.î Ele ria, mas ria sozinho.
Qwilleran disse: ìSe vocÍ amarrasse uma lata na cauda de Koko,
ele se sentaria e olharia fixamente para um ponto entre seus olhos
atÈ vocÍ comeÁar a se sentir
tonto. Logo vocÍ sentiria uma dor terrÌvel sob a omoplata esquerda,
seguida por uma dor abdominal aguda. Seus pÈs ficariam dormentes e
vocÍ teria dificuldade para
respirar. Depois seu sangue comeÁaria a formigar. VocÍ sabe qual a
sensaÁ„o de ter o sangue formigando?î
A sra. Cobb acariciou a m„o de seu amigo. ìEle est· sÛ
brincando, querido. Ele est· sempre brincando.î Ela o viu manuseando
o maÁo de cigarros outra vez. ìOpa!
… proibido!î
Hackpole jogou o maÁo sobre a mesa.
ìOuvi dizer que vocÍ È Ûtimo no rifle para veadoî, disse
Qwilleran, gentilmente.
ìSim, sou um Ûtimo atirador. CaÁo alces, veados, ursos pardos ó
tudo. Mas o veado-galheiro È meu favorito. Tenho trofÈus de machos
de chifre de oito pontas,
mas o de chifre de forquilha tem a melhor carne. … o que eu trouxe
ontem. Sempre pego um no primeiro dia.î
Qwilleran pensou: e aposto que ele caÁa ilegalmente no resto do
ano.
ìFoi uma caÁada limpa e deixei que ele sangrasse bastante. Em
seguida, destripei-o, coloquei-o nas costas e o carreguei atÈ minha
caminhonete. Cheguei em casa
ao meio-dia. Ele pesava quarenta e quatro quilos.î
Qwilleran subtraiu mentalmente uns dez quilos.
Com uma ponta de orgulho, a sra. Cobb disse: ìHerb È um caÁador
de tocaiaî.
ìSim. VocÍ n„o conhece a caÁa de tocaia, aposto.î
Qwilleran teve de admitir sua ignor‚ncia.
ìNÛs, os caÁadores de tocaia, n„o nos sentamos atr·s de um
arbusto e esperamos alguma coisa aparecer na trilha. VocÍ vai se
mexendo em volta, procurando caÁa
ó muito devagar, com muito cuidado, muito silencioso. Quando vocÍ
avista seu macho, vocÍ fica escondido, aguardando o melhor tiro.
VocÍ tem de se mover como um veado
e fazer o barulho que um veado faria. Nada de zÌper, nada de
isqueiros. VocÍ tem de ter bons olhos e uma boa pontaria. … muito
boa, a caÁa de tocaia.î
ìEstou impressionadoî, disse Qwilleran enquanto servia outra
dose para seu convidado. ìSei que vocÍ È tambÈm um bombeiro
volunt·rio.î
ìEstou deixandoî, disse Hackpole, com insatisfaÁ„o. ìMuitas
mulheres est„o entrando. N„o me importo que elas tomem conta da
cantina quando temos um incÍndio
a noite toda, mas elas n„o tÍm de dirigir caminh„o nem ficar perto
do local do fogo.î
A noiva disse: ìFico contente por ele sair. … muito perigosoî.
ìSim, inalaÁ„o de fumaÁa, para comeÁar. Ou vocÍ est· tentando
abrir uma saÌda para o fogo e o telhado cai. Uma vez vi uma
mangueira sair do bocal e chicotear
em volta, batendo em cabeÁas e quebrando ossos. VocÍ n„o sabe a
forÁa da ·gua que sai por uma mangueira! Tem muita coisa que as
pessoas n„o sabem.î
ìSempre quis saber por que os bombeiros usam tanto o machadoî,
disse Qwilleran.
ì… para abrir passagem para o fogo, para que a fumaÁa e o calor
saiam e possamos entrar no prÈdio e apagar as chamas.î
ìAlguma idÈia do que causou o incÍndio no Picayune?î
ìComeÁou no por„o. … tudo o que se sabe. Minha oficina fez
algum trabalho de reparo naquelas prensas velhas. Eles colocavam um
balde embaixo para aparar o solvente
quando limpavam a tinta. Havia um monte de trapos e um monte de
papel. Mau negÛcio! A escada atuou como um condutor, e o fogo foi
direto para o telhado.î
ìBem, queridoî, disse a sra. Cobb, ìnÛs temos de ir, mas
primeiro quero que vocÍ veja o pub no por„o.î
Os construtores da mans„o tinham importado um pub inglÍs de
Londres, completo, com bar, mesas e cadeiras de taverna, inclusive
lambris de parede.
Era algo que Hackpole iria apreciar. ìEi, vocÍ poderia obter
uma licenÁa para bebidas alcoÛlicas e abrir uma taverna aqui
embaixoî, disse ele.
Quando pegaram o elevador de volta para o piso principal,
Qwilleran perguntou onde iam jantar.
ìOttoís Tasty Eats. PreÁo ˙nico ó vocÍ pode comer de tudo.î Ele
apalpou seu bolso superior. ìOnde est„o meus cigarros?î
ìVocÍ os deixou na mesa da cozinha, queridoî, disse a sra.
Cobb.
ìN„o estou encontrando esses malditosî, ele gritou da cozinha.
ìVocÍ verificou em todos os bolsos?î
ìN„o importa. Tenho outro maÁo no porta-luvas.î
Qwilleran estendeu a m„o. ìEstou contente de podermos
finalmente nos conhecer, e quero parabeniz·-lo por achar uma
maravilhosa...î
Foi interrompido por um barulho forte. Vinha dos fundos da
casa. Ele e a governanta correram para o sol·rio, seguidos
vagarosamente pelo convidado. O lugar
estava escuro, mas um vulto fantasmagÛrico, p·lido, saiu rapidamente
do cÙmodo onde eles entraram.
Quando as luzes foram acesas, a cat·strofe apareceu. No meio do
piso estava o jardim mÛvel de ervas e, perto, estava um vaso de
barro, quebrado, com terra e
folhagens espalhadas por todos os lados. Outras plantas tinham sido
removidas dos vasos e jogadas pelo cÙmodo, e o piso era uma bagunÁa
arenosa de terra e folhas.
ìOh, meu Deus! Oh, meu Deus!î, disse a sra. Cobb em estado de
choque e terror.
ì… o fantasma de nossa residÍnciaî, Qwilleran explicou para
Hackpole. ìA sra. Cobb n„o lhe contou que temos um fantasma?î
Aristocraticamente, ela disse: ìToda casa velha deveria ter um
fantasmaî, mas havia um tremor em sua voz, e ela olhou em volta com
impaciÍncia, procurando o
gato culpado.
ìVamos arrumar tudoî, Qwilleran tranq¸ilizou-a. ìN„o se
preocupe. VocÍs dois v„o jantar, e eu arrumarei a bagunÁa. Tenham
uma noite agrad·vel.î
Logo que o casal saiu, ele foi procurar os siameses. Como
imaginava, eles estavam na biblioteca com ar inocente e satisfeito.
Ele pisou em uma protuber‚ncia
e achou um cigarro sob o tapete Bokhara. Era a contribuiÁ„o de Yum
Yum para a ocasi„o. Koko estava com o queixo apoiado na pata e a
pata na capa de um livro encadernado
com couro. Ele levantou a cabeÁa e virou os olhos brilhantes e
esperanÁosos para o homem.
ìEu n„o vou ler para vocÍ. VocÍ n„o mereceî, disse Qwilleran
com calma, mas com firmeza. ìFoi uma maldade fazer aquilo. VocÍ sabe
o quanto a sra. Cobb ama seu
jardim de ervas, e o gosto de nossa comida fica melhor por causa das
coisas que ela planta. Portanto, n„o espere nem uma palavra de mim!
Fique aÌ e medite sobre
seus pecados, e tente ser um gato melhor no futuro... Estou saindo
para jantar.î
Ele arrancou o livro de Koko. Era Hamlet outra vez. Antes de
recoloc·-lo na prateleira ele o cheirou. Qwilleran tinha um faro
perspicaz, mas tudo que pÙde detectar
foi cheiro de livro velho. Ele cheirou Macbeth e os outros tÌtulos
que Koko havia desalojado. Todos cheiravam a livro velho. Depois ele
comparou o cheiro com outros
tÌtulos que Koko atÈ ent„o tinha ignorado: Otelo, Como Gostais e
Antonio e CleÛpatra. Teve de admitir que todos tinham exatamente o
mesmo cheiro ó de livro velho.
Saiu para jantar.
OITO
DOMINGO, 17 DE NOVEMBRO. ìPouca neve, podendo se intensificarî,
foi a previs„o. Realmente o sol estava brilhando e Qwilleran pensou
em um longo passeio.
Durante as panquecas do cafÈ da manh„, ele pediu muitas
desculpas ‡ governanta. ìEu realmente sinto muito o que aconteceu
com seu jardim de ervas, sra. Cobb.
O vaso que ele quebrou continha hortel„, que È parente da gat·ria,
eu suponho. Por que ele derrubou os outros È um mistÈrio. NÛs
substituiremos todos.î
ìN„o ser· f·cilî, disse ela. ìQuatro das ervas cresceram de
semente de estufa da cidade de Herb. As outras eram plantas que n„o
podemos comprar nesta Època
do ano.î
ìN„o h· sentido em castig·-lo. A menos que vocÍ pegue um gato
no ato e bata no focinho dele, ele n„o relaciona a repreens„o com o
delito. Foi isso que Lori
Bamba disse, e ela sabe tudo sobre gatos. N„o h· d˙vidas de que foi
Yum Yum que roubou os cigarros. Encontrei um sob o tapete e outro
atr·s da almofada da cadeira.î
ìE eu achei o maÁo vazio sob o tapete no corredor l· de cimaî,
disse a sra. Cobb.
ìReceio que sua noite tenha comeÁado mau. VocÍs gostaram do
jantar?î
Ela enrugou os l·bios e em seguida admitiu: ìBem, tivemos uma
pequena discuss„o. Quando ele descobriu que a fumaÁa de cigarro È
prejudicial ‡s antig¸idades,
disse que n„o posso tÍ-las na casa da fazenda. Ele È um fumante
inveterado.î
ìVocÍ poderia usar imitaÁıes?î
ìEu odeio cÛpias, sr. Q. Vivi tempo demais com as coisas
autÍnticas.î
ìVocÍs devem chegar a algum acordo.î
ìPosso pensar em um bom acordoî, disse ela decididamente. ìEle
deveria abandonar seu vÌcio fedorento. O senhor nunca ouviu o
conselho mÈdico fazer qualquer
advertÍncia contra antig¸idades]
Qwilleran concordou solid·rio e, em seguida, pediu licenÁa
dizendo que queria sair para comprar o Fluxion.
Ele estava se sentindo leve por duas razıes. Percebia uma
discord‚ncia entre a sra. Cobb e Hackpole que poderia arruinar o
casamento. E... ele recebera um convite
de Polly Duncan.
ìQuinta-feira È meu dia de folgaî, ela dissera. ìPor que vocÍ
n„o vem a minha casa e eu faÁo um assado e pudim de Yorkshire? Venha
antes de escurecer; È mais
f·cil encontrar a casa ‡ luz do dia.î
Ele andou rapidamente. Ficava a mais ou menos seis quilÙmetros
e meio da periferia de Pickax e, no caminho, encontrou o chefe dos
bombeiros entrando na loja
‡ procura do Fluxion de domingo.
Qwilleran disse: ìOnde est· a neve pela qual o Condado de Moose
È famoso?î
ìN„o saberia dizer, mas esse clima vai continuar atÈ que ela
chegue.î
ìExplique-me uma coisa, Scottie. Pickax tem uma estranha
disposiÁ„o de ruas. Nada faz sentido.î
ìEla foi planejada por dois mineradores e um madeireiro no dia
de pagamentoî, disse Scottie, ìou assim costumam dizer.î
ìComo os caminhıes de bombeiro encontram o endereÁo certo? A
cidade È limitada ao sul pela South Street ó nada errado com isso ó
mas È limitada ao norte pela
East Street, a oeste pela North Street e a leste pela West Street. O
campo de beisebol est· na esquina da South North Street com a West
South Street. Isso poderia
deixar louca uma mente lÛgica.î
ìN„o procure lÛgica aqui, rapazî, disse Scottie, sacudindo sua
cabeleira grisalha.
ìO chef„o dos bombeiros voou para c· para investigar o incÍndio
do Picayune?
ìN„o precisamos cham·-lo, a menos que pareÁa incÍndio
premeditado, ou que alguÈm morra no incÍndio. E esse foi uma
combust„o acidental causada por trapos de
Ûleo e solventes na sala de impress„o.î
ìComo vocÍ fica sabendo que um incÍndio foi provocado?î
ìVocÍ est· planejando um pequeno incÍndio, rapaz?î
ìN„o no futuro previsÌvel, Scottie.î
ìBem, se vocÍ o fizer, evite deixar uma lata de sete litros na
·rea, pintada de vermelho e cheirando a gasolina. E n„o risque logo
o fÛsforo. A explos„o pode
jog·-lo para fora da porta.î
ìVocÍ È capaz de saber quando o incÍndio comeÁa com uma
explos„o?î
ìSim. Se a porta est· para fora das dobradiÁas ó È uma forma. E
se as paredes est„o carbonizadas profundamente.î
Qwilleran acabou seu passeio, parando para uma xÌcara de cafÈ
em um restaurante na N. North Street e o jornal de domingo em uma
loja na S. West Street.
A tarde, quando estava lendo o Fluxion e contando os erros
tipogr·ficos, a campainha tocou, e quando ele chegou ‡ porta
encontrou uma face idosa, dentro de
um capuz de casaco pesado.
ìBoa tardeî, disse a visita, com uma voz animada muito alta e
aguda. ìO senhor tem algum buraco de rato que queira tapar?î
ìDesculpe?î
ìBuracos de ratos. Eu sou bom para tapar buracos de ratos.î
Qwilleran estava confuso. Trabalhadores sempre chegavam pela
entrada de serviÁo; nunca vinham aos domingos; e normalmente eram
muito mais jovens.
ìEstou dando meu passeio di·rioî, disse o velho. ìEst· um dia
lindo para um passeio. Eu sou Hommer Tibbitt, do Clube dos
Veteranos.î
ìClaro! N„o reconheci vocÍ no capuz. Entre!î
ìVi seu gato desfilando com um rato na festa, e pensei que
talvez vocÍ tivesse buracos de rato que quisesse tapar. Eu faria
isso gr·tis.î
ìDeixe-me pegar seu paletÛ, e nos sentaremos e conversaremos
sobre isso. VocÍ gostaria de uma xÌcara de cafÈ?î
ìTomarei um pouco se for descafeinado, e n„o seria mal se
colocasse um gole de conhaque tambÈm para dar inÌcio ao
funcionamento dessa velha fornalha outra vez.î
Eles foram para a biblioteca, o sr. Tibbitt andando vigosamente
com os braÁos e pernas batendo numa coordenaÁ„o desajeitada. Havia
fogo na grade de ferro, e
ele ficou de costas para o calor. ìEstou acostumado a velhas casas
como estaî, disse ele. ìFui guarda volunt·rio do Museu Lockmaster,
no condado vizinho. VocÍ ouviu
falar dele?î
ìN„o posso dizer que tenha ouvido. Sou novo por aqui.î
ìEra uma mans„o de um arquiteto naval ó toda construÌda de
madeira ó e tapei cinq¸enta e sete buracos de rato. Em uma casa de
pedra como esta, os ratos tÍm
de ser mais espertos, mas temos ratos espertos em Pickax.î
ìO que o trouxe para o Cintur„o da Neve, sr. Tibbitt?î
ìEu nasci aqui, e a velha fazenda estava vazia. TambÈm havia
outra raz„o; uma professora de inglÍs aposentada em Lockmaster
estava me perseguindo. Elas gostam
de diretores de escola aposentados. Eu era diretor da Escola
Superior de Pickax quando me aposentei. Tenho noventa e trÍs anos.
Comecei a dar aulas h· setenta anos.î
ìVocÍ deveria ter trazido sua professora de inglÍs para
Pickaxî, disse Qwilleran. ìNunca ouvi tantos verbos e pronomes
massacrados.
O diretor de escola fez um gesto de desespero.
ìNÛs sempre tentamos fazer o melhor possÌvel, mas h· um ditado
aqui ó desculpe-me a gram·tica: o povo do campo È diferente e o povo
do Condado de Moose È mais
diferente ainda.î
Apesar das juntas estalando, o velho era animadÌssimo, e
Qwilleran disse: ìA aposentadoria parece combinar com o senhor, sr.
Tibbitt.î
ìMantenha-se ocupado! Este È o segredo! Agora, se vocÍ quiser
que eu faÁa uma inspeÁ„o nos buracos de rato...î
Qwilleran hesitou. ìNÛs temos um zelador, o senhor conhece...î
ìEu conheci Pat OíDell desde que ele estava na primeira sÈrie.
Ele È um bom rapaz, mas nunca estudou buracos de rato.î
ìAntes de lanÁarmos uma campanha contra mus-musculus, sr.
Tibbitt, eu gostaria de gravar algumas de suas lembranÁas para o
projeto de histÛria oral ó isto È,
se o senhor consentir.î
ìLigue a m·quina. FaÁa-me perguntas. Mas antes me dÍ outra
xÌcara de cafÈ com um gole de conhaque ó ali·s, dois goles ó e
certifique-se de que seja descafeinado.î
A seguinte entrevista com Homer Tibbitt foi transcrita mais
tarde:
Pergunta: O que o senhor pode nos contar sobre as primeiras
escolas do Condado de Moose?
Tibbitt: Retrocedendo bastante, quando minha m„e era
professora, elas eram construÌdas com toras de madeira ó apenas uma
sala com carteiras em volta das paredes,
bancos duros sem encostos e um fog„o a lenha no meio. E como tinham
corrente de ar! Ela dava aulas em uma escola em que a neve entrava
pelas fendas, e havia rastros
de coelho na neve sobre o ch„o.
O que era exigido de um professor naquela Època?
Tibbitt: Minha m„e andava cinco quilÙmetros atÈ a escola e
chegava l· cedo o suficiente para varrer o ch„o e acender o fog„o a
lenha. Ela lecionava para oito
sÈries em uma sala ó sem nenhum livro did·tico! Seu sal·rio era um
dÛlar por dia mais comida e um quarto de graÁa em uma casa de
famÌlia de colonos. Os professores
ganhavam dois dÛlares.
Quantos estudantes havia na sala?
Tibbitt: Trinta ou quarenta matriculados, mas apenas a metade
deles aparecia sempre nas aulas.
Quais as matÈrias que ela lecionava?
Tibbitt: Ela lecionava as trÍs habilidades b·sicas (leitura,
escrita e aritmÈtica), histÛria, geografia, gram·tica, caligrafia e
ortografia. Ela ainda organizava
jogos e programas especiais, e era solicitada para conferÍncias
sobre os efeitos nocivos da bebida, do tabaco e dos espartilhos
apertados.
E os times esportivos? Havia competiÁ„o atlÈtica?
Tibbitt: Eles jogavam nas fÈrias e havia uma rivalidade entre
escolas, mas eram jogos de ortografia, e n„o de futebol.
As condiÁıes tinham melhorado quando o senhor comeÁou a
lecionar?
Tibbitt: Ainda tÌnhamos escolas de uma ˙nica sala, mas eram bem
construÌdas e j· tÌnhamos livros did·ticos. Ainda n„o tÌnhamos
banheiro dentro... Eu poderia
lhe incomodar com mais uma xÌcara de cafÈ? Minha boca est· seca.
O senhor conheceu algum dos Goodwinter ligados ao jornal?
Tibbitt: Eu me aposentei antes de Junior nascer, mas seu pai
foi meu aluno. Senior era um menino calmo, com uma mente obsessiva.
Eu cresci com Titus e Samson,
e conhecia o velho pai. Quando eu tinha onze anos trabalhava como
aprendiz de tipÛgrafo depois da escola. Ephraim Goodwinter fez muito
dinheiro na mineraÁ„o, mas
era ganancioso. J· ouviu sobre a explos„o que matou trinta e dois
homens? Os engenheiros tinham avisado Ephraim, mas ele n„o queria
gastar dinheiro em medidas de
seguranÁa. Depois da explos„o ele tentou consertar doando uma
biblioteca p˙blica.
… verdade que ele se enforcou?
Tibbitt: Ha! Esse È um dos pequenos segredos sujos do Condado
de Moose. A famÌlia disse que foi suicÌdio, e o mÈdico legista disse
que foi suicÌdio, mas todo
mundo sabia que ele foi linchado e todo mundo sabia quem estava
presente no linchamento. A cidade toda compareceu ao seu funeral.
Eles queriam ter certeza de que
ele n„o voltaria, era o que se dizia.
O que aconteceu a Titus e a Samson?
Tibbitt: H· uma tola e improv·vel histÛria sobre o cavalo de
Samson, que se assustou com uma revoada de metros e que foi assim
que ele morreu. Em seguida Titus
foi assassinado pelo motorista da carroÁa do Picayune. Morreu com
seu chapÈu-coco na cabeÁa.
Quem era o motorista da carroÁa?
Tibbitt: Zack Whittlestaff. Este condado tem muitos nomes
curiosos: Cuttlebrink, Dingleberry, Fitzbottom ó quase elisabetanos.
Eu tinha um Falstaff em uma de
minhas classes e um Scroop. Direto de Shakespeare, hein?
O senhor diria que houve uma vendeta contra os Goodwinter?
Tibbitt: Bem, os parentes das vÌtimas da explos„o odiavam
Ephraim, vocÍ pode ter certeza disso. Ele era um rufi„o. N„o os
outros. Zack era um deles. Ele era
um rufi„o. Nenhum Íxito na escola. Casou-se com uma moÁa da famÌlia
Scroop. Seus dois filhos freq¸entaram minhas classes. A moÁa se
meteu em encrencas e se afogou.
Deixou um bilhete endereÁado ao gato dela ó provavelmente o ˙nico
ser vivo que amava a pobre moÁa.
Fim da entrevista.
A sess„o de gravaÁ„o foi interrompida por uma chamada
telefÙnica de Mine·polis. Harry Noyton estava a caminho. Seu avi„o
fretado chegaria no aeroporto de Pickax
‡s cinco e trinta.
ìComo est· o clima aÌ?î, perguntou Noyton.
ìNenhuma neve, mas est· frio. Espero que vocÍ esteja trazendo
roupas quentes.î
ìDiabos, eu n„o tenho nenhuma roupa quente. Eu pego um t·xi com
aquecimento quando quero ir a algum lugar.î
ìN„o h· t·xis no Condado de Mooseî, disse Qwilleran. ìTeremos
de comprar algumas ceroulas e um chapÈu com abas para os ouvidos.
Encontro vocÍ ‡s cinco e meia.î
Ele reservou bastante tempo para dirigir atÈ l·. A estrada do
aeroporto passava pelo campo dos veados. Ao anoitecer, eles estariam
se alimentando e se movendo
por ali. Os caÁadores armados estavam nas florestas h· trÍs dias,
provocando-os e deixando-os nervosos. Qwilleran dirigia com cuidado.
Enquanto esperava a aterrissagem do avi„o, trocou umas palavras
com Charlie. ìVocÍ acha que ainda teremos neve neste inverno?î
ìEla est· atrasada, mas quando chegar ser· ëA Grandeí.î
ìOuvi dizer que vocÍ perdeu um bom cliente.î
ìQuem?î
ìSenior Goodwinter.î
ìSim. … uma pena. Ele era um cara gentil. Matou-se de
trabalhar. A maioria das pessoas est· sempre indo para FlÛrida ou
Vegas ou para outro lugar qualquer,
mas o que ele sempre fazia era voar para Mine·polis a negÛcios e
voltar no mesmo dia. … por isso que digo que ele se matou de
trabalhar. Adormeceu no volante, È
o mais prov·vel.î
Quando Noyton saiu do avi„o, usava um paletÛ leve pendendo em
volta de sua figura magra e carregava uma mala do tamanho exato para
um aparelho de barbear e
uma camisa extra. Esse era seu estilo. Ele se gabava de poder voar
pelo mundo com uma escova de dentes e um cart„o de crÈdito.
ìQwill, meu velho! VocÍ parece um fazendeiro, com essas botas e
esse chapÈu!î
ìE vocÍ parece um visitante de outro planetaî, disse Qwilleran.
ìVai assustar os nativos com esse terno com colete. A primeira coisa
que faremos amanh„ È levar
vocÍ ‡ Scottieís Menís Shop e comprar alguma camuflagem... Coloque o
cinto de seguranÁa, Harryî, acrescentou enquanto dava a partida em
seu pequeno carro.
ìDiabos, nunca coloquei um cinto de seguranÁa em minha vida,
exceto nos aviıes.î
Qwilleran desligou o motor e cruzou os braÁos. ìH· 10 mil
veados no Condado de Moose, Harry. Esta È a Època do cio. A essa
hora da noite, todos os machos perseguem
todas as fÍmeas e atravessam a estrada de um lado para outro. Se
batermos em um veado, vocÍ vai sair pelo p·ra-brisa, portanto,
coloque o cinto.î
ìNossa! As probabilidades s„o melhores no aeroporto de Beirute!
î
ìNo ˙ltimo inverno, um macho perseguiu uma fÍmea na Rua
Principal, em Pickax, e os dois atravessaram a vitrina de uma loja
de mÛveis. Aterrissaram em um colch„o
dí·gua.î
Noyton colocou o cinto de seguranÁa e olhou ansiosamente para a
estrada nos dezesseis quilÙmetros seguintes, enquanto Qwilleran
examinava os campos de milho
e as matas para ver se havia algum movimento.
ìSe encontrarmos um macho, Harry, vocÍ quer que eu o ataque
violentamente e arrisque a ter suas patas atravessando o p·ra-brisa,
ou prefere que eu tente evit·-lo
e aterrisse de cabeÁa para baixo em uma vala?î
ìNossa! Tenho escolha?î, disse Norton, agarrando o painel com
as duas m„os.
Quando chegaram nas cercanias de Pickax, Qwilleran disse: ìEis
o programa. Amanh„ apresento vocÍ ao prefeito e ‡s pessoas do
desenvolvimento econÙmico. Ele
vai coloc·-lo em contato com a vi˙va ó e ela È uma vi˙va alegre,
devo acrescentar. Essa noite levarei vocÍ para jantar no Old Stone
Mill. Depois disso, h· uma suÌte
lhe esperando no pal·cio que herdei. VocÍ pode escolher entre uma
suÌte estilo Old English com cortinas laterais na cama, ou
Biedermeier com flores pintadas em tudo,
ou ainda Empire com esfinges e animais fabulosos para lhe dar
pesadelos.î
ìPara falar a verdade, Qwill, eu ficaria muitÌssimo mais ‡
vontade em um hotel. Ele me d· mais flexibilidade. Eu fiz uma
refeiÁ„o em Mine·polis, e agora gostaria
de ir para a cama. Alguma objeÁ„o?î
ìNenhuma. O Hotel New Pickax fica localizado prÛximo ‡
Prefeitura.î
ìEst„o construindo novos hotÈis, n„o È?î, Noyton disse com
Ûbvia aprovaÁ„o.
ìO Hotel New Pickax foi construÌdo em 1935, depois que o hotel
original pegou fogo. Ele tem mensageiro em tempo parcial, TV a cores
no sagu„o, banheiro dentro
do prÈdio e fechaduras nas portas.î
Ele deixou Noyton na entrada do hotel. ìTelefone-me amanh„,
quando estiver descansado, e virei busc·-lo para o cafÈ da manh„.
Quero ter uma conversa particular
com vocÍ antes de apresent·-lo ao prefeito.î
No final da noite, Qwilleran e seus dois amigos relaxaram um
pouco na biblioteca antes de apagar as luzes. Yum Yum sentou em seu
colo com as costas em posiÁ„o
adequada para ser acariciada, e Koko sentou-se empinado e alerta no
topo da escrivaninha esperando conversa.
Qwilleran comeÁou em tom calmo e conciliatÛrio. ìN„o sei o que
dizer a vocÍ, Koko. Normalmente vocÍ n„o È destrutivo ó a menos que
tenha uma raz„o. Por que
vocÍ destruiu o jardim de ervas?î
O gato apertou os olhos e emitiu um pequeno ruÌdo sem abrir a
boca.
ìN„o adianta se fazer de arrependido. O estrago est· feito. Se
est· tentando hostilizar nossa esplÍndida governanta, n„o est·
percebendo que isso prejudica
vocÍ mesmo. VocÍ n„o vai comer t„o bem quando ela estiver casada e
morando em outro local.î
Koko saltou da escrivaninha para a estante de livros e comeÁou
a dar patadas na coleÁ„o.
ìNada de leituras esta noite. Eu tive um dia cheio. Mas
colocaremos a fita do sr. Tibbitt e veremos como ela soa.î
O pequeno gravador port·til tornou a voz alta e aguda do velho
ainda mais nasalada, e Koko mexeu com a cabeÁa de um lado para outro
e bateu nas orelhas com
uma pata.
Houve o toque de um telefone na fita, e a gravaÁ„o terminou de
modo abrupto. Qwilleran acariciou seu bigode pensativamente.
ìEphraim foi linchadoî, falou em
voz alta. ìTitus foi esfaqueado. O outro irm„o ó Samson ó
provavelmente sofreu uma emboscada. E Senior foi... o quÍ? Sua morte
foi um acidente? Ou foi suicÌdio?
Ou foi assassinato?î
ìMiau!î, ronronou Koko, e Qwilleran sentiu uma pontada
significativa nas raÌzes de seu bigode.
NOVE
SEGUNDA-FEIRA, 18 DE NOVEMBRO. ìUma inesperada frente fria fez
baixar a temperatura para quinze graus negativos em Pickax ontem ‡
noite, vinte e um negativos
em Brrr, mas h· indicaÁ„o de uma tendÍncia a esquentar, com alguma
queda de neve esta tarde.î
Qwilleran desligou o r·dio de seu carro com um gesto de
impaciÍncia. Apesar das previsıes, o Condado de Moose, ainda n„o
vira sequer um floco de neve. Ele estava
dirigindo para o Hotel New Pickax na limusine que herdara do
patrimÙnio de Klingenschoen, para impressionar melhor o visitante L·
de Baixo.
Quando Noyton viu o comprido veÌculo preto, disse: ìJesus! VocÍ
realmente prosperou! Como aconteceu? VocÍ se casou com uma ricaÁa?
NinguÈm nunca me contou por
que vocÍ deixou o Fluxion. Eu pensava que vocÍ tivesse se aposentado
para escrever um livroî.
ì… uma longa histÛriaî, disse Qwilleran. ìPrimeiro quero lhe
mostrar onde moro e convid·-lo para um dos memor·veis cafÈs da
manh„ de minha governanta.î
ìVocÍ ó com uma governanta e uma limusine? Eu me lembro de
quando vocÍ morava em um quarto mobiliado e andava de Ùnibus.î
ìNa verdade moro sobre a garagem, e estou transformando a casa
em museu.î
Em estado de Íxtase, Noyton entrou na mans„o K e disse: ìEu
conheÁo reis na Europa que n„o vivem t„o bem. Uma coisa eu quero
saber: por que estou aqui? Por
que vocÍ mesmo n„o financia esse jornal?î
Era uma pergunta que Qwilleran estava cansado de ouvir.
Explicou sua posiÁ„o. ìSou escritor, Harry, n„o um empres·rio.î Ele
relatou a histÛria do Picayune e
reiterou a necessidade gritante de um jornal no condado.
ìQuem vai dirigi-lo?î, foi a primeira pergunta de Noyton.
ìArch Riker acabou de deixar o Fluxion. Ele È um grande editor
e conhece o negÛcio atÈ do avesso. Junior Groodwinter È o ˙ltimo de
uma longa estirpe dos Goodwinter
do jornal. … um jornalista experiente. Sua ficha acadÍmica È o
m·ximo, e ele tem energia e entusiasmo sem limites.î
ìParece meu tipo de rapaz. Quem È a vi˙va?î
ìGritty Goodwinter...î
ìEu j· gosto dela!î
ìEla quer vender o jornal para um amigo que vai apenas explorar
o nome centen·rio. Naturalmente vocÍ poderia esquecer o Picayune e
comeÁar alguma coisa chamada
Back-woods Gazette ou o Moose Call, mas o Picayune teve uma
propaganda de quase um milh„o de dÛlares na ˙ltima semana e vai ter
mais em uma revista nacional.î
ìEntendi o quadroî, disse Noyton. ìVamos tirar o jornal
daqueles bastardos.î
ìA sra. Goodwinter tambÈm tem um celeiro cheio de prensas
antigas. VocÍ poderia dar inÌcio a um museu do jornal.î
ìEu gostaria!î, exclamou Noyton. ìDe qualquer modo, o que fez
vocÍ pensar em mim?î
Qwilleran hesitou. Eles estavam tomando cafÈ da manh„, e Koko
estava sob a mesa, esperando que alguÈm deixasse cair uma tira de
bacon. ìBem, foi assim: seu
nome simplesmente apareceu em minha cabeÁa.î Como ele poderia
explicar a um homem como Noyton que o gato tinha atraÌdo sua atenÁ„o
para um certo livro? N„o, era
muito forÁado.
Depois do cafÈ da manh„, os dois homens fizeram uma visita ‡
Scottieís Menís Shop. O propriet·rio arrastou seus erres e vendeu a
Noyton um jaquet„o de raccoon,
um chapÈu Aussie e botas de couro. Durante o resto do dia, o grande
homem desajeitado, com um rosto cheio de rugas, foi bastante visÌvel
em Pickax.
Ele foi visto saindo do hotel, entrando na Prefeitura,
passeando com o prefeito, almoÁando com homens influentes no Country
Club, saindo do escritÛrio do advogado,
entrando no banco, jantando com a vi˙va Goodwinter e comendo um
steak de mais de meio quilo com duas batatas assadas.
Correu um boato de que ele era um texano que estava comprando
direitos de exploraÁ„o de petrÛleo que tornariam ricos os
fazendeiros do Condado de Moose. Ou
que era um especulador promovendo escavaÁıes perto da praia que
arruinariam a ind˙stria de turismo. Ou que era o homem de sondagens
de uma usina nuclear que vazaria
radiaÁ„o, contaminaria a ·gua pot·vel e mataria os peixes. Ou que
era um representante de Hollywood para um filme importante a ser
rodado no Condado de Moose. Os
boatos foram relatados pela sra. Cobb, que os ouvira da sra.
Fulgrove, a quem tinham sido contados pelo sr. OíDell.
Enquanto isso, Qwilleran fez uma visita ao hospital para ver o
jovem editor do jornal, conhecido por sua energia e entusiasmo sem
limites. Junior estava afundado
em uma cadeira com a perna engessada, a face sem barbear, e
express„o de insatisfaÁ„o. Jody andava rapidamente de um lado para
outro, tentando parecer alegre e ser
˙til, mas Junior estava obstinadamente melancÛlico.
ìSeu idiota!î, Qwilleran saudou o paciente. ìSe vocÍ ia quebrar
uma perna, por que n„o escolheu um lugar mais confort·vel?î
Jody disse: ìEle pegou um forte resfriado na floresta, mas n„o
evoluiu para pneumonia. Ele quer ficar no hospital atÈ sua barba
crescer.î
ìN„o h· mais para onde irî, disse Junior desesperadamente. ìA
casa da fazenda foi vendida. Os mÛveis v„o ser leiloados na quarta-
feira. Eu n„o posso morar com
Jody; tudo o que ela tem È um est˙dio.î
ìTemos camas de sobra e vocÍ ser· bem-vindoî, disse Qwilleran
ìN„o sei. Eu simplesmente n„o sei o que fazer.î
ìBem, tire essa fisionomia sombria de sua face. Tenho boas
notÌcias. Um conhecido meu L· de Baixo quer comprar um jornal. Ele
est· preparado para oferecer ‡
sua m„e trÍs vezes mais do que a XYZ ofereceu, e ele vai investir em
um novo equipamento de impress„o.î
Junior parecia desconfiado. ìEle È louco?î
ìLouco e rico. Possui edifÌcios de escritÛrios, hotÈis, clubes,
uma cadeia de restaurantes e algumas cervejarias nos Estados Unidos
e no exterior, e gosta da
idÈia de ter um jornal. Mais tarde, ele poderia se dedicar a
revistas.î
ìN„o acredito nisso. Estou tendo uma alucinaÁ„o. Ou vocÍ est·
tendo alucinaÁ„o.î
Jody gritava. ìOh, Juney! Isso n„o È fabuloso?î
Qwilleran continuou. ìNoyton est· aqui agora. Os prÛ-ceres da
cidade est„o entusiasmados. O plano È de Arch Riker ser o editor e
vocÍ, o diretor de redaÁ„o
de um jornal de verdade. Eu conheÁo alguns jornalistas jovens L· de
Baixo que est„o desencantados com a cidade, e achar„o que este È um
bom lugar para se constituir
uma famÌlia. N„o v„o ganhar tanto quanto L· Embaixo, mas viver aqui
È mais barato. Quem sabe? PoderÌamos conseguir que Noyton
financiasse um aeroporto decente e
comprasse uma linha aÈrea. Mas teremos de controlar seu entusiasmo,
ou ele construir· um hotel de cinq¸enta andares no meio de um
milharal.î
Junior estava sem fala.
ìOh, Juneyî, sua amiga baixinha continuava gritando alto e
agudo, ìdiga alguma coisa.î
ìVocÍ tem certeza de que isso vai atÈ o fim?î
ìNoyton nunca volta atr·s.î
ìMas minha m„e tem essa... ligaÁ„o Ìntima com Exbridge.î
ìLigaÁ„o! Ela est· tendo um caso com Exbridge, e vocÍ sabe
disso. Mas se ela est· com tanta fome quanto parece, esquecer· a XYZ
e atacar· um peixe maior. Noyton
n„o vai sÛ retinir moedas em seus ouvidos, mas jogar· seu charme. As
mulheres gostam dele.î
ìEle È casado?î, perguntou Jody.
ìNo momento, n„o, mas È muito velho para vocÍ, Jody.î
Ela deu uma risadinha.
ìEle tambÈm est· interessado em comprar as velhas prensas que
est„o no celeiro, para dar inÌcio a um museu do jornal. Seu pai
ficaria contente, Junior.î
ìOh, nossa!î
ìJodyî, disse Qwilleran, ìvocÍ buscaria cafÈ para nÛs na
cafeteria? E alguns daqueles cookies de farinha de aveia feitos de
papel„o e serragem?î Ele entregou
a ela uma nota e esperou que desaparecesse. ìAntes que ela volte,
Junior, responda a umas perguntas, sim? VocÍ acha que o acidente de
seu pai pode ter sido suicÌdio?î
Junior olhou fixamente. ìEu n„o acho ó que ele faria ó uma
coisa dessas.î
ìEle tinha falido. Sua m„e estava tendo um caso. E poderia
haver outra raz„o.î
ìO que vocÍ quer dizer?î
ìVocÍ se lembra daquele estranho da capa preta, que chegou aqui
de avi„o? VocÍ achou que ele era caixeiro-viajante. Eu acho que era
algum tipo de investigador.
Se seu pai estivesse envolvido em alguma coisa obscura, ele poderia
saber que o homem estava chegando...î
ìMeu pai n„o faria algo ilegalî, protestou Junior. ìEle n„o
tinha esse tipo de cabeÁa.î
ìPrÛxima pergunta: pode ter sido assassinato?î
ìO QU !î Junior quase pulou fora do gesso. ìPor que fariam...
quem faria...?î
ìSalte essa pergunta. O que estava na caixa de metal que vocÍ
tentou salvar depois do incÍndio?î
ìN„o sei. Papai guardava muito segredo em relaÁ„o a ela, mas eu
sabia que era importante.î
ìDe que tamanho era ela?î
Junior espirrou e pegou um lenÁo de papel.
ìMais ou menos do tamanho de uma caixa de lenÁo de papel.î
ìOuÁo Jody chegando. Diga: por que seu pai fazia freq¸entes
viagens de um dia para Mine·polis?î
ìEle nunca me contou.î A face de Junior ficou vermelha. ìMas
sei que ele n„o estava se dando bem com minha m„e.î
Jody voltou com o cafÈ. ìN„o sobrou nenhum cookie de farinha de
aveia, por isso eu trouxe melaÁo.î
ìTem gosto de pneu queimadoî, disse Junior apÛs umas duas
beliscadas. ìComo foi a festa de inauguraÁ„o, Qwill?î
ìCasa cheia! Comecei a entrevistar os Veteranos e a gravar
histÛria oral. Tem algumas sugestıes? Entrevistei sua avÛ e o sr.
Tibbitt.î
ìA sra. Woolsmithî, disse Jody em voz baixa. ìEla seria uma boa
sugest„o.î
Junior cocou a barba que crescia. ìVocÍ deveria achar alguÈm
que se lembrasse das minas, das fazendas pioneiras e da ind˙stria de
pesca antes das lanchas.î
ìA sra. Woolsmith morava em uma fazendaî, disse Jody
calmamente.
ìPreciso de pessoas com memÛria fidedignaî, disse Qwilleran.
ìN„o obstante, vocÍ ter· de desencavar as histÛriasî, Junior
advertiu-o. ìOs Veteranos gostam de falar sobre sua press„o
arterial, suas dentaduras e seus bisnetos.î
Jody disse: ìA sra. Woolsmith ainda tem quase todos os dentesî.
ìBem, pense um pouco nissoî, disse Qwilleran a Junior. ìN„o tem
pressa.î
ìEspere um minuto! J· sei! Tem uma mulher no serviÁo de
atendimento ao idosoî, Junior de repente se lembrou. ìEla tem mais
de noventa anos, mas È perspicaz
e passou toda a sua vida em uma fazenda. Seu nome È Woolsmith. Sarah
Woolsmith.î
Jody pegou seu casaco e bolsa a tiracolo e saiu calmamente do
quarto.
ìEi! Onde ela est· indo?î, gritou Junior.
Depois dessa sess„o no hospital, Qwilleran foi almoÁar no
Stephanieís, perguntando a si prÛprio sobre a caixa de metal de
Senior e suas freq¸entes viagens a
Mine·polis. O embaraÁo que enrubesceu Junior significava que ele
sabia ou suspeitava da raz„o. Os jovens que s„o muito despreocupados
com suas prÛprias relaÁıes
podem ficar estranhamente embaraÁados com as aventuras sexuais dos
mais velhos. Enquanto ele estava absorto com essa reaÁ„o curiosa,
ouviu uma voz familiar ‡ mesa
atr·s dele.
Um homem estava pedindo um sanduÌche de rosbife com mostarda e
raiz-forte. ìTire a gordura, por favor. E traga uma salada temperada
com molho de Roquefort e
sem pepino ou pimenta verde.î
A voz tinha uma vibraÁ„o entrecortada que Qwilleran j· ouvira.
Ele se levantou e foi ao banheiro, olhando de relance para seu
vizinho, quando passou. Era o
dito historiador que ele havia confrontado na biblioteca. O homem
mudara sua imagem de colarinho abotoado para um traje mais informal
ó menos conspÌcuo no Condado
de Moose ó, mas n„o havia d˙vida sobre sua identidade. Era o
estranho, cuja visita anterior tinha coincidido com o acidente fatal
de SÍnior ó ou suicÌdio ó ou assassinato.
Qwilleran passou o resto de sua hora de almoÁo peneirando as
possibilidades. Montou cen·rios que envolviam a caixa de metal...
adultÈrio... jogo a dinheiro...
conex„o de drogas... espionagem. Em nenhuma delas o tipÛgrafo de
conduta discreta parecia encaixar.
DEZ
TER«A-FEIRA, 19 DE NOVEMBRO. ìDia mais quente, com temperatura
m·xima alcanÁando seis graus negativos. Possibilidade de nevar esta
tarde, e condiÁıes de violenta
tempestade de neve na quarta-feira. No momento, nossa temperatura È
de sete graus negativos.î
ìIsso È terrÌvel!î, disse a sra. Cobb. ìAmanh„ È o leil„o e vai
ser no campo. Dizem que o hotel est· cheio de negociantes de outras
cidades. Vieram esta tarde
para a prÈ-inauguraÁ„o.î
ìN„o se preocupe. Se eles prevÍem violenta tempestade de neve,
ser· um belo diaî, disse Qwilleran com o cinismo de um lun·tico do
clima do Condado de Moose.
ìComo eles v„o fazer um leil„o numa casa como aquela? N„o h· nada
sen„o uma sÈrie de cÙmodos pequenos.î
ìO leil„o provavelmente ser· no celeiro. Os cartazes e o r·dio
diziam para se agasalhar. Foxy Fred est· cuidando dele, de modo que
tudo ser· bem feito. Vou esta
tarde pegar um cat·logo. A que horas a srta. Rice chega? Os gatos
est„o com fome.î
Por recomendaÁ„o de Hixie, foi dado aos siameses pouquÌssimo
alimento no cafÈ da manh„ ó apenas o suficiente para evitar que
mastigassem tornozelos. A idÈia
era deixar Koko faminto para seu teste de vÌdeo, e Yum Yum tinha de
sofrer com ele. Eles miavam continuamente enquanto Qwilleran comia
seus ovos Benedict. Andavam
impacientemente pelo piso, entre os pÈs, e soltavam um grito agudo
quando acidentalmente um pÈ baixava sobre uma cauda.
Evidentemente, Koko sabia que Hixie era respons·vel por esse
ultraje. A sua chegada, ele a saudou com um brilho fatal nos olhos e
abanou a cauda.
ìBonjour, Monsieur Kokoî, disse ela. Ele se virou e com as
pernas rÌgidas foi para a lavanderia, onde arranhou o cascalho de
seu vaso sanit·rio.
ìEis o meu roteiroî, ela explicou para Qwilleran. ìComeÁamos
com uma tomada da porta da frente, que denota eleg‚ncia e
prosperidade num relance. Ent„o entramos
no sal„o e a c‚mera focaliza dos mÛveis franceses ‡ grande escadaria
atÈ o candelabro de cristal.î
ìParece telenovela de hor·rio nobre.î
ìEm seguida damos um zoom no topo da escadaria, onde Koko est·
sentado, olhando chateado.î
ìQuem vai dirigir issoî, Qwilleran quis saber.
Hixie ignorou a pergunta. ìAÌ o mordomo anuncia com uma voz
formal que os bolinhos de fÌgado de porco est„o servidos. A voz È em
off. VocÍ pode fazer essa voz
em off, Qwill. Imediatamente Koko corre para baixo, deslizando
daquele jeito fluido que ele tem, e a c‚mera o segue para a sala de
jantar.î
ìSala de jantar?î, Qwilleran resmungou com ar de d˙vida. Os
siameses estavam acostumados a fazer as refeiÁıes na cozinha e
relutavam em comer em outro local.
Hixie continuou com sua aud·cia usual. ìTomada r·pida da mesa
de jantar de seis metros com os candelabros de prata de um metro, e
um ˙nico prato elegante de
porcelana. Podemos usar um dos pratos da baixela de Klingenschoen
com a borda azul, bras„o de ouro e monograma K... AÌ... corte para
Koko devorando avidamente os
bolinhos de fÌgado de porco. Talvez seja preciso fazer v·rias
tomadas; portanto, fique preparado para peg·-lo, Qwill. O truque È
evitar tomadas pela retaguarda.î
ìIsso n„o ser· f·cil. Gatos gostam muito de se virar.î
ìMuito bem. VocÍ pode coloc·-lo no degrau l· de cima.î
Koko estava ouvindo com uma express„o que podia ser descrita
apenas como azeda. Quando Qwilleran se curvou para peg·-lo, ele
escorregou de suas m„os como uma
barra de sab„o molhada, desceu rapidamente para o sal„o como uma
nuvem e saltou para cima do arm·rio da Pensilv‚nia. Desse poleiro de
dois metros, contemplava l·
embaixo seus perseguidores com ar de desafio. Estava sentado
perigosamente perto de um grande e raro vaso de maiÛlica.
ìN„o me atrevo a subir e agarr·-loî, disse Qwilleran. ìEle fez
um refÈm. Provavelmente sabe que aquele vaso vale 30 mil dÛlares.î
ìEu n„o sabia que ele era t„o temperamentalî, disse Hixie.
ìVamos tomar uma xÌcara de cafÈ na cozinha e ver o que acontece
quando o ignoramos. Os siameses odeiam ser ignorados.î
Em poucos minutos Koko se juntou a eles, andando de um lado
para o outro, com demonstraÁ„o de indiferenÁa. Sentou-se em suas
ancas como um canguru e inocentemente
lambia um pequeno pedaÁo de sua pele. Quando acabou essa tarefa, ele
se permitiu ser carregado para o topo da escadaria.
Hixie dirigia de baixo. ìArrume-o como um pacote compacto no
˙ltimo degrau, Qwill, olhando para a c‚mera.î
Ele abaixou o gato suavemente atÈ o degrau acarpetado, mas Koko
enrijeceu o corpo. Suas costas se dobraram, a cauda enrolou como um
saca-rolhas, e as quatro
pernas pareciam fora da articulaÁ„o.
ìTente outra vezî, Hixie gritou. ìEnfie as pernas dele sob o
corpo.î
ìVenha para cima e enfie as pernas dele sob o corpo,î disse
Qwilleran, ìe eu descerei e filmarei. Sua idÈia È boa, Hixie, mas
n„o vai funcionar.î
ìBem, traga-o para baixo e faremos um close com a comida para
gatos para ver como ele aparece na c‚mera.î
Qwilleran arrastou Koko para a sala de jantar. AtÈ agora o gato
era um retorcido, desaprovado, intrat·vel, rosnante pacote de pele.
ìPronto, sra. Cobb!î, Hixie gritou em direÁ„o ‡ cozinha.
A governanta, que estava a postos como apoio, veio da cozinha
com um prato de pasta de porco cinzenta. ìIsto ser· em cores?î,
perguntou.
Cuidadosamente, Qwilleran colocou Koko em frente ao prato ó de
perfil para a c‚mera ó enquanto Hixie focava suas teleobjetivas.
Koko olhava com avers„o para
a massa cinzenta mole e amorfa, as orelhas e bigodes abaixados.
Levantou uma pata meticulosamente e a sacudiu com repugn‚ncia. Em
seguida, sacudiu a outra pata e
vagarosamente foi embora abanando o rabo.
Qwilleran disse: ìSe alguma vez vocÍ precisar de uma cena de um
gato indo embora vagarosamente, Koko È seu atorî.
ìFoi tudo novo e estranho para eleî, disse Hixie, imp·vida.
ìTentaremos um outro dia.î
ìTemo que Koko ser· sempre um gato muito senhor de si. Ele n„o
se preocupa com fama, fortuna e aparecer na mÌdia. A palavra
cooperaÁ„o nunca esteve em seu vocabul·rio.
Sempre que tento tirar uma fotografia, ele rola nas ancas, aponta
uma perna para o cÈu em uma pose pornogr·fica e lambe suas partes
Ìntimas... Vamos acabar nosso
cafÈ.î
A sra. Cobb tinha cafÈ fresco esperando por eles, e o serviu na
biblioteca, com um pouco de suas meia-luas de amÍndoas com damasco.
ìO que h· de novo no negÛcio do restaurante?î, Qwilleran
perguntou a Hixie.
ìQuase nada. Acabamos de contratar um boy chamado Derek
Cuttlebrink. Adoro nomes engraÁados. Na escola conheci uma Betty
Schipps, que se casou com um homem
chamado Fisch, e eles abriram um restaurante de comidas do mar. VocÍ
j· folheou uma lista telefÙnica do Condado de Moose? … um terror!
Fugtree, Mayfus, Inchpot,
Hackpole...î
ìEu conheÁo Hackpoleî, disse Qwilleran. ìEle trabalha com
carros usados e tem uma oficina de consertos de automÛveis.î
ìEnt„o deixe-me lhe contar uma coisa engraÁada. Quando comecei
esse trabalho, eu tentava ser sempre encantadora, lembrar das
fisionomias e cumprimentar os clientes
pelo nome. Fiz um curso para melhorar a memÛria, e estava usando a
tÈcnica de associaÁ„o. Um dia o sr. Hackpole chegou com uma mulher
desmazelada que ele estava
tentando impressionar, e eu o chamei de sr. Chopstick. Ele n„o
gostou nem um pouquinho.î
ìEle n„o tem nenhum senso de humorî, disse Qwilleran, abaixando
a voz, ìe essa ëmulher desmazeladaí È a sra. Cobb, a governanta de
minha preferÍncia, cujas
meia-luas de amÍndoa e damasco vocÍ est· devorando.î
ìSinto muito, mas vocÍ tem de admitir que ela È desmazeladaî,
sussurrou Hixie.
ìN„o mais desmazelada do que certa mulher de publicidade que eu
conhecia L· Embaixo.î
ìVocÍ venceuî, disse ela. ìPor que n„o vem almoÁar hoje no
Mill?î
ìO que h· de especial?î
ìPimenta malagueta. Traga seu extintor de incÍndio.î
Pouco antes do meio-dia, Qwilleran teve outro visitante. Nick
Bamba, marido de sua secret·ria de tempo parcial em Mooseville,
transportando uma pilha de cartas
para serem assinadas. Nick foi saudado efusivamente pelos dois
siameses farejando, e parecendo saber que ele compartilhava um
cÙmodo com trÍs gatos e uma pessoa
cujas longas tranÁas eram amarradas com graciosos laÁos de fita. Os
dois homens foram para a biblioteca seguidos por duas caudas marrons
verticais, enrijecidas com
ar de import‚ncia.
ìTem tempo para um drinque?î, perguntou Qwilleran. Ele estava
contente com a visita do jovem engenheiro de vis„o, que trabalhava
na pris„o do Estado e compartilhava
seu interesse por crimes. ìComo andam as coisas na instituiÁ„o
carcer·ria?î
ìCalmas o suficiente para me deixarem preocupadoî, disse Nick.
ìAceito um bourbon. VocÍ gosta desse clima?î
ìChegou a quinze graus negativos em Brrr uma noite dessas.î
ìO vento frio fazia chegar a trinta e cinco negativos.î
ìComo est· o bebÍ?î Qwilleran nunca conseguia lembrar o nome ou
sexo do filho dos Bamba.
ìEle est· excelente. … um bebÍ obediente e saud·vel, graÁas a
Deus!î
ì… bom saber. VocÍ levou Snuffles ao veterin·rio?î
ìEle disse que È uma espÈcie de dermatite que afeta gatos
castrados. Ela est· tomando hormÙnios agora.î
ìGostei de sua informaÁ„o sobre o infrator, Nick. Eu notifiquei
o xerife, como vocÍ sugeriu.î
ìVi que agora vocÍ colocou cartazes em sua propriedade.î
ìO sr. OíDell foi atÈ l· e cobriu todas as possibilidades:
proibida a entrada, proibida a caÁa, proibido acampar.î
ìEle È um rapaz extraordin·rioî, disse Nick. ìQuando eu estava
no segundo grau, ele me livrou de algumas dificuldades cabeludas.î
ìAlguma novidade em Mooseville?î
ìNunca h· novidades em Mooseville. Mas... sabe aquele trailer
que localizei em sua propriedade na semana passada? N„o È comum
nessa ·rea ó o tipo da placa.
TrÍs tons de marrom. Desde ent„o eu o vi v·rias vezes no
estacionamento do Old Stone Mill, atr·s, perto da porta da cozinha.
SÛ por curiosidade, fiz um levantamento
r·pido da placa. Foi registrada por alguÈm com o nome de Hixie
Rice.î
Depois que Nick foi embora, Qwilleran pensou que Hixie
dificilmente era o tipo que curte ficar ao ar livre; ele nunca a
tinha visto com saltos mais baixos do
que oito centÌmetros.
Ele foi almoÁar cedo e pediu seu cozido com pimenta malagueta.
ìKoko superou seu enfado?î, perguntou Hixie.
ìAparentemente. Quando vocÍ acabou de sair pela porta, ele
comeu avidamente o bolinho de fÌgado de porco... Por sinal, quem È o
dono daquele trailer bonito
no estacionamento?î
Hixie pareceu vaga. ìO marrom? Oh, ele pertence a uma de nossas
cozinheiras. Seu marido trabalha em Mooseville e tem de viajar quase
cem quilÙmetros por dia,
por isso ele dirige seu carro pequeno, e ela dirige o que consome
muita gasolina para trabalhar.î
O que ela estava ocultando? Qwilleran lembrou que Hixie sempre
fora uma mentirosa loquaz, embora n„o necessariamente com Íxito, e
sempre dava um jeito de se
envolver com elementos marginais no departamento ardoroso. O que
mais ela havia inventado? O chef invisÌvel? O livro de culin·ria
dele? A m„e doente na FiladÈlfia?
ONZE
QUARTA-FEIRA, 20 DE NOVEMBRO. Quando o telefone tocou ‡s seis
da manh„, Qwilleran sabia que era Harry Noyton. Quem mais teria o
descaramento e a insensibilidade
para telefonar ‡quela hora? Ele conseguiu dizer um alÙ com
sonolÍncia e ouviu uma voz insuportavelmente animada dizer:
ìLevante-se e brilhe! Vai dormir o dia todo?
O que acha de me convidar outra vez para um daqueles supercafÈs?î
ìVocÍ espera que eu tire a governanta da cama no meio da noite?
î, Qwilleran resmungou.
ìDe qualquer forma, vou dar uma chegada aÌ. Quero falar com
vocÍ. Pegarei um t·xi e estarei aÌ em cinco minutos.î
ìN„o h· t·xis, Harry. VocÍ pode andar. S„o sÛ trÍs
quarteirıes.î
ìEu n„o ando trÍs quarteirıes desde que saÌ da infantaria!î
ìTente! … bom para vocÍ. N„o v· para a casa principal; venha
para o meu apartamento em cima da garagem.î
Qwilleran vestiu-se rapidamente e abriu uma porta de arm·rio
que escondia uma minicozinha. Uma minipia produzia uma ·gua fervente
instant‚nea para sua especialidade
culin·ria, cafÈ instant‚neo. Um minimicroondas degelava p„ezinhos
para cafÈ da manh„ tirados de um minifreezer.
Em pouquÌssimo tempo Noyton subiu a escada. ì… aqui que vocÍ
mora? Gosto mais dessas coisas modernas do que daquela sucata na
casa grande. Ei! Este sof· È sexy\
VocÍ traz moÁas para c·?î
Qwilleran estava sempre rabugento antes de seu cafÈ da manh„.
ìAqui È onde eu trabalho, Harry. Estou escrevendo um livro.î
ìN„o brinca! … sobre o quÍ?î
ìVocÍ ter· de esperar e comprar um exemplar quando for
publicado.î
ìEu gosto de vocÍs, jornalistasî, disse Noyton com irrefre·vel
bom humor. ìVocÍs s„o independentes! Foi por isso que gostei muito
dessa idÈia de ter um jornal.
Esse pedaÁo de floresta est· esperando alguma coisa acontecer. H·
muito dinheiro por aqui! As pessoas possuem seus prÛprios aviıes,
trÍs ou quatro carros, barcos
de doze metros, casacos de peles de marta! VocÍ precisava ver as
jÛias nas mulheres do Country Club!î
ìVocÍ est· vendo a riqueza herdadaî, disse Qwilleran. ìH·
tambÈm pobreza e desemprego, e muitas crianÁas que n„o ir„o para a
faculdade. Um jornal corajoso poderia
suscitar alguma consciÍncia cÌvica, promover oportunidades de
trabalho e bolsas de estudos. O Fundo Klingenschoen n„o pode fazer
isso sozinho ó e n„o deveria fazer
isso sozinho!î
ìMaldiÁ„o! VocÍ pensou em tudo. … isso que gosto em vocÍs,
jornalistas.î
Qwilleran colocou canecas de cafÈ e um prato de p„ezinhos de
canela da sra. Cobb sobre a mesa de travertino, prÛpria para jogar
baralho. ìPegue uma cadeira,
Harry. O que acha do hotel? VocÍ est· bem instalado?î
ìNossa, eles me deram a suÌte nupcial com cama redonda e
lenÁÛis de seda cor-de-rosa!î
ìTeve sorte com suas entrevistas ontem?î
ìNenhum problema! Est· tudo arranjado! Aquela moÁa Goodwinter
n„o sabia com quem estava tratando. Fiz cheques de seis algarismos
em trÍs diferentes bancos pelos
direitos ao nome do Picayune e pelos velhos equipamentos de
impress„o.î
ìComo conseguiu isso?î
ìO prefeito nos levou a todos para almoÁar no clube ó ela e os
caras do desenvolvimento econÙmico ó, na sala particular de reuni„o.
Foi muito divertido. Quando
tudo acabou ela estava me chamando de Harry e eu a estava chamando
de Gritty. Meus advogados telefonaram para os advogados dela, o
banqueiro dela telefonou para
meus banqueiros, e nÛs dois fizemos um trato. A cidade apÛia cem por
cento. Criaremos empregos. Faremos uma construÁ„o livre de impostos
durante dez anos. O jornal
pode ser impresso por terceiros atÈ o prÈdio ficar pronto.î
ìO que acontecer· com o prÈdio velho, destruÌdo pelo fogo?î
ìA municipalidade vai derrub·-lo e v„o pagar a ela uma
indenizaÁ„o. Eles o revender„o por um mÌnimo. Os representantes do
condado tambÈm entram no acordo. O
condado se responsabilizar· pela metade de um museu de jornal perto
de Mooseville. AtraÁ„o turÌstica, vocÍ sabe... Ei, esses p„ezinhos
est„o gostosos pra danar!î
ìO que a empresa XYZ estava fazendo enquanto vocÍ cobria o
lance do leil„o e namorava a vi˙va?î
ìA XYZ nunca teve nada no papel. Foi tudo velhacaria com
Gritty. De modo que ela n„o estava obrigada a fazer negÛcios com
aqueles ladrıes. Se uma pobre vi˙va
pode obter trÍs quartos de um milh„o em vez de um insignificante
n˙mero de cinco dÌgitos, quem ir· lev·-la ‡ corte?î
Qwilleran pensou: a notÌcia n„o vai ser bem recebida por
Exbridge. Gritty ter· de se mudar de Indian Village rapidamente. A
notÌcia logo se espalhar· pela cidade.
Noyton estava eufÛrico e falava sem parar. ìAlguns
representantes do condado levaram-me para ver a situaÁ„o da terra, e
ó ei, seu exagerado! ó n„o me disseram
uma palavra sobre machos no cio atravessando o p·ra-brisa! Eu gosto
de Mooseville. Tudo È construÌdo com toras de madeira. Eu gostaria
de construir um hotel aqui.
A cidade est· pronta para um edifÌcio alto. PoderÌamos construÌ-lo
com blocos de concreto. O que vocÍ acha?î
ìHarry, vocÍ n„o tem jeito. Deixe o projeto para os
arquitetos.î
ìDiabos, o dinheiro È meu! Eu digo aos arquitetos o que
projetar.î
ìBem, quando o jornal for lanÁado, n„o tente dizer aos editores
como editar.î
A face de Noyton assumiu um sorriso confidencial. ìGritty foi
conosco para Mooseville e sentamos no banco de tr·s. Desenvolvemos
uma pequena ó como vocÍ chama
isso?î
ìRelaÁ„o.î
ìDepois ela me levou para jantar no lugar com uma roda que
ressoa como uma matraca e chia. Eu disse a eles para me darem uma
lata de Ûleo e uma chave de fenda,
e eu sairia e arrumaria a coisa maldita. Mas nos divertimos, Qwill,
e quero dizer nos di-ver-ti-mos mesmo. Acabamos em minha suÌte, no
hotel, com uma garrafa de
uÌsque. Ela n„o queria ir para a casa em que est· morando, por isso
fiz um pequeno arranjo no quarto. N„o poderia desperdiÁar aqueles
lenÁÛis cor-de-rosa. Ela È
meu tipo de mulher, Qwill ó com garra e um corpo atraente. Lembra de
Natalie? Minha vida jamais foi a mesma depois que perdi Natalie! E
sabe o que mais? Gritty realmente
se sente atraÌda por mim! Vou lev·-la ao HavaÌ para umas pequenas
fÈrias. Tenho alguns negÛcios l·. Nada grande. SÛ condomÌnios.î
ìSeria melhor vocÍs saÌrem daqui antes que a neve caiaî, disse
Qwilleran, ìe antes que Exbridge venha atr·s de vocÍ com uma
espingarda. Ele acabou de se divorciar
por causa de Gritty.î
ìN„o tenho medo de Exbridgeî, disse Noyton. ìJ· lidei com
ot·rios mais vivos que ele... Oh, a propÛsito, falei com o amigo de
seu editor ó encontrei-o no Texas
ó e ele ficou entusiasmado. Depois Gritty me levou ao hospital para
conhecer Junior, e ele entrou em Ûrbita!î
Qwilleran disse: ìDescubra se Gritty sabe alguma coisa sobre
uma pequena caixa ‡ prova de fogo que desapareceu no incÍndio do
Picayune. NinguÈm sabe o que ela
contÈm, mas Junior acha que È importante. Poderia estar no meio do
entulho.î
ìSem problemas! Levaremos uma equipe l· e comeÁaremos a
peneirar. E eu lhe contei que fiz uma oferta ao Hotel Pickax?
Traremos um bom decorador L· de Baixo
e mudaremos o nome para Noyton House.î
ìN„o faÁa desse jeito. Contrate um arquiteto local e mantenha o
velho nome. VocÍ quer que essa boa gente pense que est· sendo
invadida? O truque È adaptar,
e n„o tomar.î
ìEst· bem, general. Sim senhor, general. Tem certeza de que n„o
quer continuar minha folha de pagamentos?î
ìN„o, obrigado.î
ìAgora tenho de ir. Obrigado pelo cafÈ. Tomei melhores, mas
estava forte, sem d˙vida! Tenho umas pontas para amarrar antes de ir
para o aeroporto. Fretei um
avi„o para Mine·polis.î
ìPrecisa de uma carona para o aeroporto?î
Noyton negou com a cabeÁa e parecia orgulhoso. ìGritty vai me
levar, mas faÁa-me um favor, pode ser? Ela deixar· as chaves do
carro no balc„o do terminal com
Charlie. AlguÈm poderia buscar o carro antes que a neve caia. Ela
n„o vai precisar dele. Ela n„o vai voltar atÈ a primavera.î
Noyton tinha acabado de descer a escada, batendo suas botas
novas, quando Junior telefonou. ìQuer ouvir algumas notÌcias?î
ìBoas ou m·s?î
ìAmbas. A transaÁ„o do Picayune acabou. O dinheiro est· no
banco. Arch Riker est· a caminho. Vou sair do hospital hoje. Fiz a
barba, e vovÛ Gage est· indo para
a FlÛrida, de modo que tenho onde ficar atÈ ela voltar.î
ìQuais s„o as m·s notÌcias?î
ìJody est· furiosa comigo. N„o sei o que h· de errado com ela.
De repente, ela diz que n„o a ouÁo e que a ignoro quando outras
pessoas est„o por perto.î
ìVocÍ ter· de comeÁar a pensar do ponto de vista dela tanto
quanto do seu, se vocÍs dois querem se casarî, disse Qwilleran.
ìFalo a partir de uma triste experiÍncia.
VocÍ n„o sabe o quanto ela se preocupa com vocÍ. Ela se preocupou
com vocÍ quando seu pai morreu, quando vocÍ estava enfrentando o
incÍndio do Picayune, quando vocÍ
n„o pÙde participar do Fluxion e quando vocÍ saiu pelas florestas.î
Houve uma pausa, em seguida: ìTalvez vocÍ tenha raz„o, Qwillî.
¿s oito horas Qwilleran sintonizou o notici·rio meteorolÛgico
da manh„: ìAviso de tempestades para todo o Condado de Moose...
Repito: aviso de tempestadesî.
A sra. Cobb murmurou no interfone: ìO senhor est· interessado
no cafÈ da manh„, sr. Q?î
ìN„o esta manh„, obrigado, mas quero falar com a senhora antes
que saia para o leil„o.î
Ele colocou os siameses na cesta de vime, e os trÍs
atravessaram o p·tio para a casa principal.
ìO senhor ouviu o notici·rio meteorolÛgico?î, perguntou a sra.
Cobb. ìParece ëA Grandeí. Espero que ela mantenha dist‚ncia atÈ
depois do leil„o. Susan Exbridge
vem me pegar ‡s dez horas. Herb me disse para n„o comprar nada, mas
o senhor sabe como sou em leilıes!î
ìComo est· a exposiÁ„o?î
ìEles tÍm coisas maravilhosas e, pela primeira vez, vi a casa
da fazenda. Mal posso esperar para arrum·-la. Resolvemos nosso
problema; Herb vai ter uma ala
da casa para fumar, para as armas, as cabeÁas empalhadas e tudo
aquilo. O senhor vai ao leil„o?î
ìDevo passar um instante para ver o movimento. Qual È a melhor
hora para ir?î
ìN„o muito cedo. Eles apresentam as quinquilharias pela manh„ e
seguram as coisas boas atÈ mais tarde. Eles oferecer„o almoÁo por
volta do meio-dia. N„o se
esqueÁa de se agasalhar, e n„o use suas melhores roupas, sr. Q.î
Depois que a sra. Cobb saiu apressadamente, com grande
excitaÁ„o, Qwilleran perambulou pela casa atÈ n„o ag¸entar mais o
suspense. Quem estaria no leil„o? O
que estavam comprando? Os preÁos eram altos? O que as pessoas
estavam comentando a respeito? O que estavam servindo no almoÁo?
Vestindo seu paletÛ de madeireiro,
chapÈu de lenha-dor e botas, dirigiu-se para a Alameda do Riacho
Negro no North Middle Hummock.
As estradas do campo estavam com o tr·fego extraordinariamente
pesado. Carros, furgıes e caminhonetes dirigiam-se para o norte, e
alguns estavam voltando, carregados.
A oitocentos metros da casa da fazenda ele comeÁou a ver veÌculos
estacionados dos dois lados da estrada. Estacionou onde uma
caminhonete estava saindo e andou o
resto do caminho. Freq¸entadores assÌduos de leil„o estavam se
arrastando atÈ seus carros, puxando abajures de ch„o e cadeiras de
balanÁo. Uma mulher estava carregando
uma estante, feita de varetas curvas.
ìEu n„o me importo, queridoî, disse para seu esposo carrancudo.
ìEu sÛ queria alguma coisa que pertencesse a um Goodwinter, mesmo
que fosse apenas uma escova
de dentes velha.î
Estacionado em frente ao p·tio estava um furg„o do Leilıes de
Foxy Fred. Os clientes se misturavam, examinando fileiras de
mobÌlias e acessÛrios para casa:
cobertores, bicicletas, pequenos eletrodomÈsticos, objetos de
cristal, equipamentos de lavanderia, ferramentas de jardim. Os
mÛveis grandes ainda estavam na casa
da fazenda; tudo o mais estava abarrotado em um grande celeiro onde
as ofertas estavam acontecendo.
Foxy Fred, usando um chapÈu de faroeste e jaqueta vermelha,
estava na plataforma, discursando para uns cem ou mais compradores
apinhados ombro a ombro. ìEis
uma genuÌna lanterna antiga de celeiro, completa com pavio. Quem d·
cinco?... Cinco?... D· quatro... Vejo ali uma nota de um dÛlar. D·
dois. D· dois... Tenho dois.
TrÍs. Eu vi trÍs? TrÍs! NinguÈm d· mais! Quero quatro, quero quatro,
quero quatro.î
Para fazer lances, os clientes pegavam cartıes numerados com
uma mulher de jaqueta vermelha, que registrava as vendas em um livro
e recolhia o dinheiro. Qwilleran
n„o tinha intenÁ„o de fazer lance, mas de qualquer modo pegou um
cart„o. Era n˙mero 124.
ìOlhem! Olhem!î, o leiloeiro gritou. Os carregadores, de blus„o
vermelho, estavam erguendo uma cadeira estofada para inspeÁ„o do
p˙blico.
No entanto, os lances eram baixos. Os clientes ou estavam
entediados ou sufocados por rajadas de calor vindas de aquecedores
elÈtricos port·teis. De repente,
Foxy Fred sacudiu a atenÁ„o de todos. ApÛs apenas dois lances, ele
permitiu que uma cadeira de balanÁo saÌsse por um preÁo abusivamente
baixo. O p˙blico protestou.
ìSe vocÍs n„o gostam, acordem e faÁam um lance!î, censurou-os.
Qwilleran saiu do celeiro e encontrou a sra. Cobb e Susan Exbridge
no vag„o para almoÁo. ìComo
est· a comida?î, perguntou ele.
ìN„o È exatamente um Old Stone Millî, disse a sra. Exbridge,
ìmas est· boa. Experimente o cozido. … caseiro.î
ìO novo chef do Mill fez uma grande diferenÁaî, disse
Qwilleran. ìAlguÈm o conheceu?î
ìEu o vi no estacionamento em Indian Villageî, ela disse. ìEle
È alto, louro e muito atraente, mas parece tÌmido demais.î
A sra. Cobb disse: ìO senhor jamais vai imaginar o que comprei!
Um berÁo de cerejeira feito a m„o! Estou esperando meu primeiro neto
para logoî.
ìOs negociantes de outros Estados est„o fazendo lances altos?î,
Qwilleran perguntou.
ìEles est„o hesitando, aguardando os bons itens, mas muitos
est„o aqui. Sempre consigo identificar um negociante. Eles tÍm um ar
esperto, mas querem parecer
despreocupados. VÍ aquele homem baixo com as m„os no bolso? VÍ a
mulher com um chapÈu marrom felpudo? Eles s„o negociantes. O homem
de paletÛ de l„ ó acho que È
seguranÁa. Ele n„o est· fazendo lances. Nem sequer est· prestando
atenÁ„o. Est· apenas observando as pessoas.î
Antes de se virar para olhar, Qwilleran teve a intuiÁ„o de que
seria o estranho que dizia ser historiador. O homem estava
perambulando sem destino no meio da
multid„o.
Naquele momento houve um movimento geral em direÁ„o ao celeiro,
como se atendendo a um sinal. L· dentro as vozes estavam altas e
excitadas, enquanto os carregadores
traziam para fora os mÛveis pesados.
ìOlhem! Olhem!î, o leiloeiro gritava com uma voz que cortava
inteiramente a algazarra. ìCadeira rococÛ vitoriana, Belter genuÌno,
eu acho ó parte de um conjunto
para saleta ó duas cadeiras e um canapÈ. Estofado de crina. Em bom
estado. Quem d· dois mil pelo conjunto? Dois mil para comeÁar. Dois
mil?î
Um cart„o foi erguido.
ìALl!î, gritou um carregador, que tambÈm fazia as vezes de
observador.
ìTenho dois mil. Quem d· dois e quinhentos, quem d· dois e
quinhentos, dois e quinhentos. Vamos... Vamos...î
ìAQUI!î
ìDois e quinhentos! Quem d· trÍs.î
ìAQUI!î
ìTrÍs! Quem d· quatro. Quatro... Quatro... Quem d· quatro...î
ìAQUI!î
A excitaÁ„o estava aumentando. Era como final de um jogo
empatado, e o tempo passando, pensou Qwilleran. Era como a ˙ltima
bola, com um minuto para jogar.
Quando a mobÌlia foi finalmente arrematada por uma quantia que
ele considerou astronÙmica, o p˙blico se dispersou com lamentos e
suspiros.
AlguÈm puxou com forÁa a manga de sua camisa, e uma voz de
mulher disse: ìComo vocÍ n„o fez um lance para a mobÌlia, Qwill?î
ìHixie! Eu n„o sabia que vocÍ gostava de leilıes!î
ìEu n„o, mas meus clientes estavam falando tanto sobre este que
fugi quando a multid„o do almoÁo diminuiu.î
ìVamos com calma l· para tr·s!î, gritou Foxy Fred, e Qwilleran
tomou Hixie pelo braÁo, dirigiu-a para fora e atravessaram o p·tio
atÈ a casa da fazenda.
ìO material bom est· aquiî, disse ele, pegando um cat·logo.
Entre os grandes itens ainda na casa estavam duas camas do general
Grant, um Ûrg„o de saleta, um
biombo de trÍs metros e meio de largura, uma grande arca de pinho,
um aparador de nogueira preta com mesa combinando e uma pesada
escrivaninha com tampa giratÛria.
ìEsta escrivaninha È a ˙nica coisa a que eu estaria tentado a fazer
um lanceî, Qwilleran disse a Hixie.
Mas ela realmente n„o estava interessada nas antig¸idades.
ìVocÍ ouviu o ˙ltimo boato?î, perguntou ela.
ìQual? A cidade est· cheia de rumores esta semana.î
ìN„o È falso alarme. Uma amiga de meu patr„o, que morava com
ele, est· fugindo para se casar com outro homem. Eles vieram jantar
ontem ‡ noite ó um casal de
passarinhos de meia-idade agindo como crianÁas. Eu os coloquei em
uma boa mesa acima da roda do moinho, e isso deixou o cara louco.
Ele pediu uma lata de Ûleo.î
ìExbridge sabe da troca?î
ìAparentemente sim, porque est· p·lido! Quando chegou para
almoÁar hoje estava com um humor de matar. Achou o Bloody Mary
quente; a sopa fria; a vitela dura.
AmeaÁou despedir Antoine.î
ìQuem?î
ìBem, seu apelido È Tony, mas seu nome È Antoine.î
Qwilleran estava manuseando o cart„o no bolso. ìTenho de voltar
para o celeiro, para ver o que est· acontecendoî, disse ele. ìAtÈ
mais.î
A empolgaÁ„o no celeiro era contagiante. Ele estava pegando a
febre de leil„o, sendo os sintomas uma excitaÁ„o nervosa e um
imprudente sentido de aventura.
ìVai esquentar agora, pessoalî, gritava Foxy Fred, e uma caixa
de carvalho para gelo, um castiÁal do sÈculo XVIII e uma mesa estilo
imperial passaram sob o
martelo em r·pida sucess„o. Em seguida o Ûrg„o para saleta e a arca
de pinho foram leiloados pelo preÁo do cat·logo.
ìEm seguida, teremos uma escrivaninha de tampa giratÛria de
cerejeiraî, disse o leiloeiro. ìEm perfeitas condiÁıes. Data de
1881. Origem not·vel. Pertenceu
a Ephraim Goodwinter, propriet·rio de mina, madeireiro, fundador do
Picayune de Pickax e doador da biblioteca p˙blica de Pickax.
ComeÁaremos com cinco mil?... Cinco
mil?... Quatro mil?î
ìMilî, disse uma mulher perto da plataforma. Era a negociante
de chapÈu marrom felpudo.
ìTenho mil. NinguÈm d· mais! Bonita escrivaninha ó sete gavetas
ó v·rios escaninhos ó talvez um compartimento secreto. Quem oferece
dois mil?î
Qwilleran levantou seu cart„o.
ìAQUI!î, gritou o observador.
ìDois mil agora. Cheguem a trÍs. Eu ouvi trÍs? Cerejeira
sÛlida. Muita histÛria acompanha a escrivaninha.î
ìAQUI!î
ìTenho trÍs mil. Quem d· trÍs e meio? TrÍs e meio, trÍs e meio,
trÍs e meio...î
A hipnÛtica ladainha do leiloeiro teve um efeito magnÈtico
sobre Qwilleran. Ele levantou seu cart„o.
ìTrÍs e meio por esta escrivaninha de cinco mil, pessoal.
NinguÈm d· mais? Quem d· quatro... quem d· quatro... quatro...î
ìAQUI!î
A gola rolÍ de Qwilleran estava apertando seu pescoÁo. Ele
tirou o paletÛ.
ìQuatro mil. Cheguem a quatrimeio quatrimeio quatrimeio. … um
brinde. Cerejeira sÛlida. Latıes fundidos.
ìAQUI!î
ìQuatro mil e quinhentos. Ouvi cinco? Est· indo, gente. VocÍs
v„o deixar essa moleza?î
ìQuatro e seiscentos!î, Qwilleran gritou.
ìQuatro e seiscentos! Quem d· quatro e setecentos? Quem d·...
quem d·... quem d·...î
ìAQUI!î
A mulher de chapÈu marrom felpudo queria a escrivaninha e
estava aumentando pouco a pouco.
ìQuatro e setecentos! Eu ouvi quatro e oitocentos? Quem d·...
quem d·...î
Qwilleran ergueu seu cart„o.
ìAQUI!î
ìQuatro mil e oitocentos. Est· indo, gente...î
ìQuatro e novecentos!î, disse a comerciante.
ìCinco!î, gritou Qwilleran.
ìEste È o espÌrito! Eu ouvi cinco mil e cem?î
Todas as cabeÁas viraram para a comerciante de chapÈu felpudo.
O chapÈu balanÁou em negativa.
ìCinco e cem, eu ouvi? Cinco e cem? Vai por cinco mil. Vai vai,
vai... VENDIDA para o n˙mero cento e vinte e quatro.î
O p˙blico aplaudiu. A sra. Cobb abanou seu cat·logo com
aprovaÁ„o feroz. Qwilleran esfregou a testa.
Depois de fazer arranjos para liberar a escrivaninha, ele se
dirigiu para casa em um confuso estado de choque e agitaÁ„o. Cinco
mil por um mÛvel parecia uma
soma surpreendente para o antigo escritor de artigos do Daily
Fluxion. No restaurante em Middle Hummock ele tentou telefonar para
Junior, mas ninguÈm respondia na
casa de vovÛ Gage.
Ao chegar em casa, ele descobriu por quÍ. Havia uma mensagem na
secret·ria eletrÙnica. ìOl·! Estamos voando L· para Baixo para
casar. Os pais de Jody moram
perto de Cleveland. Espero que nos encontremos na volta, antes que a
neve caia. E, olhe, eles encontraram a caixa com cadeado de papai!î
A sra. Cobb tinha saÌdo para jantar com Susan Exbridge.
Qwilleran remexeu na geladeira e encontrou uma sopa de lentilhas e
galinha. Esquentou a sopa para si
e cortou a galinha para os siameses.
ìNada de leitura hoje ‡ noiteî, ele disse a Koko. ìTive
agitaÁ„o demais para um dia. ëO resto È silÍncio.í Isto È de Hamlet,
caso vocÍ n„o saiba.î
O relÛgio do sal„o soou sete vezes, e ele sintonizou o boletim
meteorolÛgico. AdvertÍncias de tempestade tinham sido feitas o dia
todo, mas o tempo tinha sido
bom. Duvidando, ele ouviu a previs„o de sempre:
ìAdvertÍncias de tempestade acabaram no final desta tarde, mas
um alerta de tempestade permanece. Os ventos est„o a quarenta
quilÙmetros por hora, podendo chegar
a sessenta e quatro. Temperatura no momento: sete graus negativos em
Pickax, quatorze negativos em Brrr. E agora uma olhada nas
manchetes... Duas pessoas morreram,
em um acidente de carro com um veado, na estrada do aeroporto ‡s
quatro e quarenta e cinco da tarde. Os nomes est„o retidos
aguardando notificaÁ„o dos parentes.
O carro indo para o oeste bateu e matou um macho grande, em seguida
caiu numa vala...î
ìJunior!î, gritou Qwilleran. ìN„o! N„o! O azar do Picayune! O
quinto a morrer de uma morte violenta! Pobre Jody...î
DOZE
QUINTA-FEIRA, 21 DE NOVEMBRO. ìAvisos de tempestade s„o v·lidos
outra vez para o Condado de Mooseî, disse o radialista da WPKX, ìcom
ventos fortes provenientes
do noroeste e temperatura inalterada de sete negativos... E quanto
‡s notÌcias... eis uma novidade sobre o acidente fatal de ontem na
estrada do aeroporto. Os mortos
‡s quatro e quarenta e cinco da tarde eram Gertrude Goodwinter, 48,
de North Middle Hummock e Harold Noyton, 52, de Chicago. De acordo
com o departamento policial,
o carro bateu e matou um grande macho, em seguida eles caÌram em uma
vala e capotaram.î
Naquela manh„, Qwilleran foi cedo ‡ delegacia para encontrar
Andrew Brodie. Embora os agentes fossem corteses e cooperativos,
somente o chefe de polÌcia de
Pickax poderia ser confi·vel para uma conversa amig·vel e
informaÁıes em off.
Brodie estava sentado ‡ sua escrivaninha, sobrecarregado com o
trabalho de rotina e se queixando como sempre. ìE o que passa pela
sua cabeÁa?î, ele perguntou,
depois de uma longa crÌtica aos sistemas de computador.
ìVocÍ sabe alguma coisa sobre o acidente fatal de ontem na
estrada do aeroporto?î
ìO xerife e a polÌcia estadual cuidaram deleî, disse, ìmas nÛs
ajudamos a localizar os parentes prÛximos. N„o foi f·cil, pois o
marido dela acabou de ser enterrado,
a m„e est· na FlÛrida, Junior no avi„o alhures e as outras crianÁas
no oeste. Quanto ao cara que estava com ela ó tiveram de tirar da
cama advogados e banqueiros
para ter informaÁıes a respeito dele.î
ìNo inÌcio pensei que Junior e Jody tivessem morrido. Sei que
Jody È amiga de sua filha, por isso tentei telefonar para sua casa
ontem ‡ noite, mas n„o obtive
resposta alguma.î
ìMinha esposa e eu est·vamos fora fazendo uma visitaî, disse
Brodie, ìe Francesca estava ensaiando para um concerto na igreja, em
que v„o usar todas aquelas
indument·rias ‡ moda antiga. Ser· um espet·culo, com certeza. Elas
est„o fazendo suas prÛprias roupas.î
ìEstou ansioso para verî, disse Qwilleran, comentando depois
sobre o clima, a estaÁ„o de caÁa e o leil„o de Goodwinter, antes de
retomar a conversa sobre o
acidente. ìVocÍ sabe quem estava dirigindo?î
ìN„o h· como dizer. Os dois foram arremessados do carro, pelo
que entendi.î
ìSuponho que eles n„o estavam usando cinto de seguranÁa.î
ì… o que parece, n„o È?î
ìO xerife acha que eles estavam em alta velocidade?î
ìDe acordo com as marcas da derrapagem, muito r·pido. E de
acordo com o mÈdico legista, eles tinham bebido. O macho era bem
grande, mais de noventa quilos,
oito pontas. VocÍ sabe alguma coisa sobre o cara que estava com ela?
O nome È Noyton.î
ìTudo o que seiî, disse Qwilleran, ìÈ que ele È um conglomerado
de um homem sÛ com algumas ex-esposas gananciosas e filhos
briguentos, que disputar„o o testamento
por dez anos.î
Quando saiu do escritÛrio de Brodie, Qwilleran comeÁou a se
perguntar como Exbridge reagiria ‡ morte de Gritty, e como a ex-sra.
Exbridge reagiria ‡ perda da
ex-amante de seu ex-marido. Sua curiosidade incitou-o a almoÁar
outra vez no Old Stone Mill. Hixie estava sempre pronta para dizer
umas verdades.
Mas hoje ela parecia nervosa e preocupada. Acompanhava os
clientes atÈ as mesas, mas evitava conversa. Qwilleran levou um bom
tempo para consumir sua sopa de
ervilhas e o sanduÌche de carne, fazendo hora atÈ a maioria dos
fregueses ir embora. Ent„o ele se ofereceu para pagar a Hixie um
drinque, e ela sentou-se ‡ sua mesa
mal-humorada.
ìHorrÌvel acidente na estrada do aeroportoî, ele comentou. ìN„o
era a mulher que morava com seu patr„o?î
ìN„o posso me preocupar com os problemas dele hojeî, ela
vociferou. ìTenho meus prÛprios problemas.î
ìQual È o problema?î
ìTony saiu de repente esta manh„ ó justo antes do movimento do
almoÁo! Sem qualquer explicaÁ„o. Saiu pela janela.î
ìPela janela?î
ìE pegou meu carro! Meu carro em vez daquele trailer!î
ìEu pensei que o trailer pertencesse a uma de suas
cozinheiras.î
Hixie descartou a pergunta com as m„os. ìEstava em meu nome.
Isto È, eu o comprei pelo anivers·rio dele. Portanto, por que n„o
pegou o trailer? Por que pegou
meu carro?î
ìTalvez ele tivesse alguma incumbÍncia urgente para fazer.î
ìEnt„o, por que saiu pela janela do banheiro? E por que pegou
suas facas? VocÍ sabe o que isso significa, Qwill ó a mesma velha
seta no grande coraÁ„o de Hixie.
Se Tony planejasse voltar, ele n„o teria levado suas facas. VocÍ
sabe como os chefs de cozinha s„o com suas facas. Eles praticamente
dormem com elas.î
ìAlguma coisa extraordin·ria aconteceu para provocar essa saÌda
r·pida?î
Hixie olhou carrancuda para seu copo de Campari, antes de
responder. ìBem, mais ou menos ‡s onze horas est·vamos preparando o
almoÁo, e um homem bateu na porta
com insistÍncia. Ela estava fechada e uma das garÁonetes foi ver o
que ele queria. Ele perguntou por Antoine Delapierre. Ela lhe disse
que aqui n„o tinha ninguÈm
com esse nome, mas ele entrou assim mesmo. Eu estava dobrando
guardanapos na ·rea de serviÁo, e poderia dizer imediatamente que
ele n„o era exatamente um outro vendedor
de batatas fritas. Parecia frio e determinado.î
ìEle estava usando um paletÛ de l„ e um chapÈu de pele de
coelho?î
ìAlgo assim. De qualquer maneira, perguntei o que ele queria, e
ele disse que era amigo de Antoine Delapierre. To-ny ouviu isso,
pegou suas facas e fugiu para
o banheiro dos empregados. Foi a ˙ltima vez que tivemos notÌcias
dele. Deixou a janela aberta e disparou em meu carro! Por que algum
dia dei ‡quela besta uma duplicata
de minhas chaves?î
Porque ele era alto, louro e muito atraente, pensou Qwilleran.
Sentiu pena dela. Hixie, a perdedora de nascenÁa, tinha perdido
outra vez. Mas agora ela n„o
estava chorando; estava furiosa.
ìEnt„o Tony Peters n„o era seu verdadeiro nome?î, ele
perguntou.
ìV·rias pessoas mudam seus nomes para fins comerciaisî, disse
ela sem preocupaÁ„o, mas seus olhos estavam piscando nervosamente.
ìVocÍ sabe o que est· por tr·s de tudo isso?î
ìN„o tenho a mÌnima idÈia. Quando o homem entrou na cozinha,
fiquei com raiva e ordenei que ele saÌsse.î
Qwilleran se absteve de continuar a conversa. Mais cedo ou mais
tarde Hixie soltaria a verdade. Ele contemplava o desenrolar dos
acontecimentos com certa satisfaÁ„o.
Sua suspeita tinha se confirmado; o estranho em Pickax era realmente
um investigador.
Enquanto isso, ele foi para casa e se vestiu para jantar na
casa de Polly Duncan na Estrada MacGregor. Rosbife e pudim de
Yorkshire!
A sra. Cobb estava ocupada na cozinha, assando bolinhos de
avel„s. ìO senhor acha que deveria sair para o campo, sr. Q?î,
perguntou ela. ìEles avisaram no r·dio
que vai haver tempestade.î
ìEles avisaram que ia haver tempestade ontem, e nada aconteceu.
Eu acho que o computador deles est· com defeito. Eles est„o lendo as
previsıes do tempo do ano
passado. Portanto, n„o h· nada com o que se preocupar.î
Ele pegou uma m„o cheia de bolinhos de avel„ e foi procurar os
siameses. Fazia quest„o de dizer atÈ logo para eles sempre que saÌa
de casa por poucas horas
ó outra das recomendaÁıes de Lori Bamba.
Os gatos n„o estavam na biblioteca, mas um exemplar de A
Tempestade jazia no ch„o abaixo do busto de Shakespeare. Isso fez
Qwilleran parar para pensar, mas
sÛ por um momento. Uma vez Koko j· tinha arrancado aquele tÌtulo
ameaÁador, e n„o houve nenhuma borrasca. Senior Goodwinter tinha
trombado na Velha Ponte de Pranchas,
mas o clima estivera bom.
Qwilleran se dirigiu para o norte. Estava frio e havia um vento
forte, mas ele estava usando seu jaquet„o de camurÁa com gola de
castor, um chapÈu de soldado
de cavalaria da mesma pele, uma camisa de l„ com o xadrez dos
Mackintosh, botas de caÁa, meias de l„ e, naturalmente, a comprida
ceroula vermelha que era o equipamento
padr„o no Condado de Moose.
O cÈu estava nublado e o vento assobiava, mas seu coraÁ„o
estava iluminado e sua mente aquecida com planos. Depois desta
noite, ele mergulharia na redaÁ„o do
livro que havia negligenciado; Polly ficaria contente em saber que
ele iria escrever de novo.
Esse convite para o jantar era auspicioso; isso significava,
ele esperava, que ela estava relaxando o comportamento mistificante
que o mantinha ‡ dist‚ncia
de um braÁo. Ele achava que tinha descoberto a raz„o para essa
reserva. Em um recente encontro do conselho da biblioteca, uma verba
do Fundo Klingenschoen foi alocada
para a compra de livros, equipamento de vÌdeo e um novo aquecedor ó
mas nenhum dÛlar para o pessoal. AlÈm disso, ele ficou horrorizado
ao saber como a bibliotec·ria
chefe ganhava pouco. A casa pequena, o carro velho e o vestu·rio
limitado de Polly, tudo sugeria suas poucas posses. Qwilleran sabia
que ela era uma mulher orgulhosa;
a discrep‚ncia entre os status financeiros dos dois a constrangia?
Ele sabia ó e ela sem d˙vida tambÈm sabia ó que as fofoqueiras da
cidade ficariam muito felizes
se pudessem dizer que a bibliotec·ria chefe estava preparando um
golpe do ba˙.
Com esses pensamentos atravessando sua mente enquanto dirigia,
mal percebeu os min˙sculos pontos brancos de neve em seu p·ra-brisa.
Pouco depois, grandes flocos
de neve de aparÍncia cristalina relembravam-lhe uma emoÁ„o da
inf‚ncia ó ao peg·-los com a lÌngua. Logo uma luz empoeirada de neve
era visÌvel no asfalto, e Qwilleran
reduziu a velocidade para enfrentar as partes escorregadias.
No momento em que saiu da rodovia principal para a Estrada
MacGregor, havia um vÈu de neve sobre os campos e sempre-vivas ó uma
paisagem bonita, embora a neve
rodopiante obscurecesse sua vis„o. O crep˙sculo parecia estar
chegando cedo. Ele estava agora viajando na direÁ„o leste e a neve
fustigava o p·ra-brisa, r·pido o
suficiente para tornar os limpadores in˙teis. Era quase uma
tempestade de neve, disse a si mesmo. N„o demoraria muito. Ele
dirigia vagarosa e cuidadosamente.
A casa de Polly, ele lembrava a partir de sua visita anterior,
clandestina, ficava a cinco quilÙmetros da rodovia principal ó trÍs
quilÙmetros pavimentados,
em seguida uma sacudidela e dois quilÙmetros de cascalho. N„o havia
outros carros ‡ vista, e agora ele estava dirigindo atravÈs de um
t˙nel de neve ó densa neve.
Gostaria de poder continuar no asfalto; n„o havia rastros de pneus
para seguir. NinguÈm tinha passado ali desde que a neve comeÁara a
cair. Era impossÌvel distinguir
os cruzamentos a partir dos campos abertos.
De repente alguma coisa se agigantou em frente a seu carro, e
ele parou justo antes de mergulhar no arbusto. Ele havia chegado na
estrada de cascalhos. Agora
tinha de virar ‡ esquerda depois de uma certa dist‚ncia e ent„o
virar ‡ direita na continuaÁ„o da Estrada MacGregor. Fez v·rias
tentativas antes de encontrar a entrada
certa. Depois disso, percebeu que estava na direÁ„o certa ó
exatamente a um quilÙmetro e meio das duas caixas de correio,
MacGregor e Duncan. Ele conferiu o odÙmetro.
O problema era permanecer na estrada; em cada lado do leito
estaria a inevit·vel vala de drenagem. Os limpadores de p·ra-brisa,
embora funcionassem furiosamente,
eram in˙teis contra o ataque violento da neve. Ele estava dirigindo
atravÈs de um cobertor branco. A capota do carro era invisÌvel. Pelo
menos n„o precisava se preocupar
com veados; eles se dirigiriam para um lugar coberto. Ele aprendera
isso com Hackpole. Mas n„o tinha tempo para pensar em Hackpole, nem
mesmo em Polly. O problema
era dirigir em linha reta, embora estivesse cego pela neve.
Outra vez, um grupo de ·rvores agigantou-se ‡ frente. Ele
estava fora da estrada! Girando o volante, derrapou. Tentou
controlar o volante, mas o carro estava
deslizando de lado. Estava deslizando em um declive e parou em um
‚ngulo perigoso. A vala de drenagem. Mais um grau de inclinaÁ„o e o
carro capotaria. Ele desligou
o motor e ficou ali, rodeado por paredes de neve.
Ele sabia que o carro nunca sairia da vala naquelas condiÁıes
escorregadias ó e daquele ‚ngulo ó mesmo com traÁ„o dianteira.
Considerou as opÁıes. Quanto mais
tempo hesitasse, mais a neve se amontoaria no p·ra-brisa e na janela
lateral ó uma camada opaca, centÌmetros de espessura e branco-
acinzentado no crep˙sculo. Abrindo
a porta, testou, o terreno sob os pÈs. Pronto! Era uma vala. Se ele
subisse a escarpa chegaria no terreno sÛlido e poderia andar o resto
do caminho. Estava agora
a menos de oitocentos metros, sabia.
Colocando o chapÈu, puxando as abas atÈ os ouvidos, virando a
gola do paletÛ para cima, puxando com forÁa as luvas sem pontas, ele
se preparou para enfrentar
as intempÈries. Se subisse a ribanceira e virasse ‡ direita, estaria
no caminho da fazenda. Teria de prosseguir com fÈ cega. Na violenta
tempestade de neve que o
envolvia n„o havia nenhum sentido de direÁ„o; o vento lanÁava neve
de todos os lados.
Agora ele podia sentir alguma coisa sÛlida sob os pÈs ó o leito
da estrada ó mas j· havia um ac˙mulo de doze, vinte e cinco ou
quarenta centÌmetros, dependendo
do ponto. Ele seguiu em frente, cego pela neve, em um passo
cuidadoso de cada vez. Ele tinha um plano! Se deslizasse para a
direita, estaria fora do leito da estrada;
ent„o desviaria para a esquerda. Se deslizasse para a esquerda,
voltaria para a vala oposta.
Desse modo, ele ziguezagueou em frente, n„o ousando esperar que
um carro se aproximasse. Veria os farÛis no nevoeiro? Ouviria o
motor acima do uivo do vento?
O vento estava uivando agora, uivando atravÈs das ·rvores que ele
n„o podia ver.
Embora a gola do paletÛ e o chapÈu prÛprio para tempestade
estivessem bem apertados, e suas calÁas estivessem emboladas dentro
das botas, a umidade inexor·vel
achava seu caminho em cada fresta. Ele batia a neve para fora de
suas luvas e tirava a neve do rosto. N„o adiantava; em poucos
segundos estava coberto de gelo.
Estivera andando pelo que parecia mais de uma hora. Estaria
andando em um cÌrculo? Se tivesse inadvertidamente feito uma meia-
volta, pensando que a vala da
direita era a da esquerda, estaria agora se dirigindo para a estrada
principal, quase cinco quilÙmetros atr·s.
A caminhada cega e lenta era desencorajadora, assustadora. Ele
estava totalmente desorientado. Colocava as m„os com luvas ‡ sua
frente como um son‚mbulo, mas
n„o havia nada a sentir. Mal conseguia manter os olhos abertos. Suas
p·lpebras estavam ˙midas. Estariam se fechando, congeladas? Suas
bochechas e testa estavam entorpecidas,
em virtude da violÍncia do vento e da umidade. Ele gritou: ìOl·!î
ìSocorro!î Estava gritando no vazio e engolindo neve.
O que faÁo agora?, perguntou-se ó n„o em p‚nico mas em defesa.
Tinha um desejo opressivo de se abaixar atÈ os joelhos, se enrolar
como uma bola e desistir.
Continue andando, dizia a si mesmo. Continue andando!
Ele se lembrou das caixas de correio. Tinha de trombar com
elas, ou passaria por elas sem vÍ-las. AvanÁava pouco a pouco, sem
ver, sem sentir, sem saber. A
neve estava ficando mais profunda sob os pÈs e amontoando
centÌmetros de espessura em suas roupas. Parou e tentou respirar
normalmente, mas estava ficando sufocado
pelo vento e afogado pela neve.
De repente, sem avisar, alguma coisa surgiu ‡ sua frente e ele
caiu sobre duas caixas de correio, bem juntas, com trinta
centÌmetros de neve por cima. Jogou
os braÁos em torno delas como um marinheiro se afogando se agarra em
escombros flutuantes. Curvou-se por cima delas, tentando recuperar a
respiraÁ„o.
Poucos metros depois estaria a entrada de carros. Mas quantos
metros alÈm? Era tentativa e erro. Quando bateu um joelho em um cano
de concreto, percebeu que
era ali. Lembrou-se de uma cerca que margeava a entrada para carros.
Ele seguiria a cerca achando seu caminho. Funcionaria atÈ que a
cerca chegasse a um abrupto
fim. A casa de fazenda de tijolinhos estaria ‡ esquerda. A casa
pequena estaria bem em frente.
Uma vez mais foi tropeÁando cegamente no que esperava ser um
caminho reto. Estava escuro agora e ele percebeu que a neve n„o era
branca no preto da noite. Mas
achava que tinha detectado alguma coisa vermelha no espaÁo ‡ frente.
Seguiu, procurando alcanÁ·-lo, atÈ se sentir em cima de degraus
enterrados em um monte de neve.
Levantou-se com a ajuda das m„os e dos joelhos. Havia uma porta bem
em frente a ele. Ele se apoiou nela, batendo com os dois punhos. A
porta se abriu e ele caiu
em uma cozinha.
ìOh meu Deus! Qwill! O que aconteceu? VocÍ est· machucado?î
Caiu sobre as m„os e os joelhos com uma avalanche de neve se
desprendendo de suas roupas. Polly puxou seu braÁo. Ele se arrastou
mais para dentro e ouviu a
porta bater atr·s dele, interrompendo o barulho da tempestade.
Estava agrad·vel e calmo dentro de casa.
ìVocÍ est· bem? Consegue se levantar? N„o pensei que estivesse
vindo. O que aconteceu com seu carro?î
Ele queria ficar no ch„o, mas deixou-a ajud·-lo a ficar em pÈ.
ìDeixe-me limp·-lo. Fique parado.î
Ele ficou em pÈ, em silÍncio e imÛvel, enquanto ela tirava seu
chapÈu e luvas e jogava-os na mesa da cozinha. Com toalhas ela
removeu a neve e o gelo de seu
bigode e sobrancelhas. Tirou uma enorme quantidade de neve de seu
paletÛ, calÁas e botas. E ele ainda continuava calado e entorpecido
no meio de uma enchente de
neve e gelo que se derretiam.
Agora ela estava tirando seu jaquet„o. ìVamos tirar essas
roupas ˙midas e lhe darei uma bebida quente. Sente-se. Deixe-me
tirar suas botas.î
Ela o conduziu atÈ uma cadeira, e ele se sentou obedientemente.
ìSuas meias est„o secas. VocÍ sente bem os pÈs? N„o est„o
dormentes, est„o? Sua camisa est· ˙mida em volta do colarinho. Vou
coloc·-la na secadora. As calÁas
tambÈm. Elas est„o encharcadas. AgradeÁa a Deus por estar usando
ceroulas. Vou buscar uns cobertores.î
E ele ainda n„o conseguia dizer nada. Ela embrulhou-o em
cobertores e conduziu-o a um sof·, convenceu-o a se deitar,
aconchegou-o sob as cobertas, enfiou um
termÙmetro em sua boca.
ìVou fazer um ch· quente e telefonar para o mÈdico para ver se
estou fazendo as coisas certas.î
Qwilleran fechou os olhos e n„o pensava em nada, exceto em
aquecimento, secura e seguranÁa. Ouviu vagamente um assobio de
chaleira, um telefone sendo sacolejado,
·gua sendo derramada em um balde.
Quando Polly voltou com uma caneca de ch· quente em uma
bandeja, ela disse: ìO telefone est· mudo. As linhas devem estar
soterradas. Eu me pergunto se deveria
lhe trazer um escalda-pÈs. Como vocÍ se sente? VocÍ quer se sentar e
tomar um ch·?î Ela tirou o termÙmetro de sua boca e examinou-o.
Qwilleran estava comeÁando a voltar a si. Ergueu-se para se
sentar, sem ajuda. Aceitou a caneca de ch· com um olhar de
agradecimento para Polly. Tomou um golinho
e emitiu um longo e profundo suspiro. Em seguida proferiu suas
primeiras palavras.
ìPor este consolo, muito obrigado, pois est· um frio
penetrante. ì
ìGraÁas a Deus!î Ela ria e chorava. ìVocÍ est· vivo! Que susto
vocÍ me deu! Mas vocÍ est· bem. Quando cita Shakeaspeare, sei que
est· bem.î
Ela jogou os braÁos em torno de seus ombros envoltos pelo
cobertor e se aninhou com a cabeÁa em seu peito. Naquele momento a
energia elÈtrica acabou. Metade
do Condado de
Moose ficou escura, e a pequena casa mergulhou na escurid„o.
TREZE
SEXTA-FEIRA, 22 DE NOVEMBRO. Qwilleran abriu os olhos em um
pequeno quarto repleto de luz ofuscante.
ìAcorde, Qwill! Acorde! Venha e veja o que aconteceu.î AlguÈm
de robe azul estava em pÈ ‡ janela, contemplando encantada a cena
externa. ìTivemos uma tempestade
de gelo.î
Ele estava lento para acordar. Vagamente, se lembrava da noite
anterior. Polly... sua casa pequenina... a violenta tempestade de
neve.
ìN„o fique aÌ, Qwill. Venha e veja. Est· lindo!î
ìVocÍ È lindaî, disse ele. ìA vida È linda!î
Estava frio no quarto, embora um reconfortante zumbido em algum
lugar da casa indicasse que o aquecedor estava funcionando. Fazendo
um esforÁo para sair da
cama, ele se enrolou em um cobertor e se juntou a Polly ‡ janela.
O que via era unia paisagem enfeitiÁante, um brilho ofuscante sob o
sol frio e opressivo de novembro. O ar estava parado. Havia uma
calma no campo, agora vitrificado
com uma fina pelÌcula de gelo cintilante. Os campos eram terras de
prata. Todos os ramos de ·rvore, todos os gravetos estavam cobertos
de cristal. As linhas de eletricidade
e as cercas de arame foram transformadas em cordıes de diamantes.
ìN„o posso acreditar que tivemos uma violenta tempestade de
neve ontem ‡ noiteî, disse ele. ìN„o posso acreditar que eu estava
perambulando na neve l· fora.î
ìVocÍ dormiu bem?î, ela perguntou.
ìMuito bem. E n„o por vaguear pela neve ou comer muito
rosbife... Sinto o cheiro de alguma coisa boa.î
ìCafÈî, disse ela, ìe p„ezinhos de leite no forno.î
Os p„ezinhos eram pontilhados de passas e servidos com
requeij„o e gelÈia de amoras.
ìA cerca que vocÍ seguiu na violenta tempestadeî, disse Polly,
ìÈ uma fileira de amoreiras, plantadas por MacGregor anos atr·s. Ele
deixa as pessoas da fazenda
vizinha pegar as amoras, e depois elas nos abastecem com gelÈias...
Alguma coisa est· chateando vocÍ, Qwill?î
ìA sra. Cobb deve estar preocupada. O telefone est·
funcionando?î
ìAinda n„o. A energia chegou h· meia hora.î
ìAs m·quinas de limpar neve chegam a essa estrada?î
ìV„o acabar chegando, mas n„o est· na lista priorit·ria deles.
Eles fazem primeiro as ruas das cidades e as rodovias principais.î
ìVocÍ ouviu alguma coisa no r·dio?î
ìTudo est· fechado ó escolas, lojas, escritÛrios. A biblioteca
n„o vai abrir atÈ segunda-feira. Todas as reuniıes est„o canceladas.
Eles permitiram a aterrissagem
do helicÛptero na cobertura do hospital e transportaram um paciente
esta manh„. Muitos carros foram abandonados em montes de neve. O
corpo de um homem foi encontrado
em um carro que saiu da estrada. Ele estava asfixiado. VocÍ carrega
uma p· na mala do carro, Qwill?î
Ele negou com a cabeÁa, com ar de culpa.
ìSe vocÍ estiver encalhado, tem de limpar a neve do cano de
tr·s. vocÍ sabe. para que o aquecedor possa funcionar.î
ìSe ficarmos impedidos de sairî, disse Qwilleran, ìeu prefiro
ficar impedido aqui com vocÍ do que em qualquer outro lugar. E muito
tranq¸ilo. Como vocÍ encontrou
este lugar?î
ìMeu marido morreu nesta fazenda, quando estava combatendo um
incÍndio no celeiro, e os MacGregor foram muito gentis comigo. Eles
me ofereceram a casa do arrendat·rio
sem pagar aluguel.î
ìO que aconteceu com o arrendat·rio?î
ìE uma espÈcie em extinÁ„o. Hoje em dia, os fazendeiros tÍm
empregados que moram em casas na cidade.î
ìVocÍ n„o se preocupa com seu senhorio em um clima como este?î
ìEle est· na FlÛrida. Seu filho levou-o ao aeroporto na terÁa-
feira. Eu tenho de alimentar seu ganso de estimaÁ„o durante o
inverno. VocÍ j· ouviu falar em
bab· de ganso?î
De repente, a cozinha estava silenciosa. O aquecedor fizera seu
trabalho e se desligara. O motor da geladeira tinha acabado de
funcionar. A bomba tinha enchido
a caixa e estava em silÍncio. Ent„o, o silÍncio de dentro e de fora
foi quebrado por um ruÌdo distante.
ìA m·quina de neve!î, gritou Polly. ìQue extraordin·rio!î
Da janela oeste eles podiam ver plumas de neve sendo sopradas ‡
altura do topo das ·rvores. Em seguida, era possÌvel ver a m·quina
acompanhada de uma outra
menor e do carro do xerife. O comboio parou em frente ‡ casa da
fazenda, e o pequeno arado se pÙs em marcha na entrada para carros.
Finalmente, o carro do xerife
parou na porta.
ìO sr. Qwilleran est· aqui?î, perguntou o delegado.
Qwilleran se apresentou. ìMeu carro est· em uma vala, em algum
lugar ao longo da estrada.î
ìEu o viî, disse o delegado. ìPosso lev·-lo para a cidade... se
o senhor quiserî, acrescentou, olhando para a mulher de robe azul.
Qwilleran virou-se com uma cara desapontada para Polly. ì…
melhor eu ir. VocÍ ficar· bem?î
Ela assentiu. ìTelefonarei para vocÍ logo que as linhas forem
consertadas.î
O delegado educadamente virou-se enquanto os dois se despediam.
Na volta para Pickax com o policial, Qwilleran disse:
ìCreio que essa tempestade tenha sido ëA Grandeí.î
ìFoi, sim.î
ìFez muito estrago?î
ìO habitual.î
ìComo vocÍ me achou?î
ìVim procurando. Recebi um telefonema do chefe de polÌcia de
Pickax, do prefeito e da patrulha rodovi·ria.î Ele pegou o
microfone. ìCarro noventa e quatro para
Despachos. Estou com ele!î
Pickax, a cidade da pedra cinza, estava agora coberta de branco
e cintilante com o gelo. O Park Circle parecia um bolo de casamento.
Na mans„o K todas as janelas,
portas e grades estavam com uma crista de centÌmetros de neve, e o
sr. OíDell estava passando o aparador de neve, limpando as entradas
para carros.
A sra. Cobb cumprimentou Qwilleran com uma demonstraÁ„o de
alÌvio. ìEu estava doente de preocupaÁ„o pelo modo como os gatos
estavam agindoî, disse. ìEles sabiam
que alguma coisa estava errada. Koko miou a noite inteira.î
ìOnde est„o eles agora?î
ìAdormecidos sobre a geladeira ó exaustos! Eu mesma n„o
consegui pregar o olho. ComeÁou a nevar logo que o senhor saiu e
tive medo que perdesse seu rumo ou
ficasse preso. Os telefones estavam mudos, mas logo que foram
consertados telefonei para todos que eu conhecia, atÈ para o
prefeito.î
ìSra. Cobb, a senhora est· tremendo. Sente-se, vamos tomar uma
xÌcara de ch·, e eu lhe contarei minha experiÍncia.î
Quando ele acabou, ela disse: ìOs gatos estavam certos! Sabiam
que vocÍ estava em apurosî.
ìTudo est· bem quando acaba bem. Telefonarei para a oficina de
Hackpole para tirar o carro da vala. Agora, e o casamento? Est· tudo
indo de acordo com os planos?î
ìBe-e-emî, ela disse de maneira indecisa, olhando para baixo.
ìAlguma coisa est· errada?î
ìBem, Herb est· dizendo que n„o quer que eu trabalhe depois que
nos casarmos ó pelo menos, n„o aqui no museu. Ele acha que eu
deveria ficar em casa e... e...î
ìE o quÍ?î
Ela umedeceu os l·bios. ìFazer a contabilidade das operaÁıes
comerciais dele.î
ìO QU ?î, gritou Qwilleran. ìE destruir seus anos de
experiÍncia e conhecimento? O homem È louco!î
ìEu disse a ele que n„o haveria casamento se eu n„o pudesse
trabalhar no museuî, ela disse de modo provocador.
ìMuito bem! Isso mostrou coragem. Fico contente por ter se
auto-afirmado.î Ele sabia o quanto ela queria uma casa prÛpria e um
marido. N„o exatamente um homem.
Um marido.
ìDe qualquer modo, ele voltou atr·s, por isso imagino que est·
tudo certo. Minha roupa de casamento chegou ó camurÁa cor-de-rosa ó
e È deslumbrante! Meu filho
enviou-a de Saint Louis, e n„o precisa conserto algum. Ele viria
para o casamento, se os vÙos n„o estivessem t„o problem·ticos. AlÈm
disso, o bebÍ est· para nascer
a qualquer momento.î
Qwilleran preferia evitar detalhes domÈsticos, mas a governanta
queria tagarelar sobre os planos do casamento.
ìSusan Exbridge vai usar cinza. Eu encomendei meu buquÍ ó rosa
cor-de-rosa ó, e botıes de rosa cor-de-rosa para o senhor e para
Herb.î
ìSei que vocÍs n„o querem recepÁ„oî, disse Qwilleran, ìmas nÛs
devÌamos estourar uma garrafa de champanhe e brindar ‡ noiva e ao
noivo.î
ìFoi o que Susan disse. Ela quer trazer caviar e steak ao molho
t·rtaro.î
Aquelas palavras, as duas cabeÁas marrons que dormiam no alto
da geladeira ergueram-se prontamente.
Qwilleran segurou o riso quando imaginou Hackpole usando um
bot„o de rosa cor-de-rosa e experimentando ovas de peixe e carne
crua. ìQue tal m˙sica de fundo?î,
ele sugeriu. ìVamos colocar uma fita.î
ìOh, seria lindo. O senhor escolheria alguma coisa, sr. Q?î
A noiva vendida, ele pensou. ìE onde a senhora quer celebrar a
cerimÙnia?î
ìNa sala de visitas, em frente ‡ lareira. Deixe-me mostrar ao
senhor o que tenho em mente.î
Eles saÌram da cozinha seguidos pelos siameses, que gostavam de
ser incluÌdos nas conferÍncias domÈsticas.
ìPoderÌamos colocar o juiz atr·s de uma mesa pequenaî, disse a
sra. Cobb. ìUm fogo na lareira a tornaria aconchegante, e
colocarÌamos um vaso de rosas cor-de-rosa
sobre a mesa, para combinar com as rosas do tapete.î
Naquele momento, houve um rosnado explosivo atr·s deles. Koko
estava eriÁando a cauda, arqueando as costas e mostrando os dentes.
Suas orelhas e bigodes estavam
virados para tr·s, e seus olhos tinham um brilho mau.
ìCÈus! O que est· errado?î, gritou a sra. Cobb.
ìEle est· sobre as rosas!î, disse Qwilleran. ìEle sempre evita
andar sobre as rosas!î
ìEle me deu um susto.î
ìEle est· tendo um surto de loucura de gato ou vendo um
fantasmaî, disse Qwilleran, mas sentiu um estremecimento incÙmodo no
l·bio superior e alisou o bigode
vigorosamente.
Quando voltaram para a cozinha, a sra. Cobb disse: ìEstou t„o
agradecida ao senhor por ter me trazido para Pickax, sr. Q. Tem sido
uma experiÍncia maravilhosa;
encontrei Herb, e vou me casar perto de todas essas coisas que amo.
Estou muito grata.î
ìN„o exagere sra. Cobb. A senhora tem feito um grande trabalho
e merece o melhor. Tem certeza de que n„o quer tirar uma semana de
folga?î
ìN„o, simplesmente vamos jantar no Hotel Pickax e passar nossa
noite de n˙pcias na suÌte nupcialî, disse ela. ìDepois teremos nossa
viagem de lua-de-mel na
primavera. Herb quer me levar para pescar no norte do Canad·.î
Qwilleran n„o conseguia imagin·-la arremessando uma vara de
pescar para fisgar uma truta, como n„o era capaz de imaginar
Hackpole dormindo entre lenÁÛis de
seda cor-de-rosa. ìMas a senhora poderia pegar uma semana agora,
para descansar e relaxarî, disse ele.
ìBemî, disse ela quase se desculpando, ìsegunda-feira h· um
encontro da comiss„o sobre a decoraÁ„o da ·rvore de Natal, e domingo
‡ noite È o concerto do Messias
e a recepÁ„o com trajes tÌpicos. Eu n„o perderia isso por nada!î
ìE Herb?î
ìEle n„o faz quest„o. H· alguma coisa na TV que ele gosta de
ver todo domingo ‡ noite.î
Qwilleran tinha apreensıes sobre esse casamento, e elas estavam
ficando mais fortes. Ele se sentiria um hipÛcrita como padrinho de
casamento de um homem de
quem sinceramente n„o gostava, mas estava fazendo isso pela sra.
Cobb. Ela era sempre t„o generosa com seu tempo, esforÁo e bom
‚nimo... t„o ansiosa por aprovaÁ„o
e t„o embaraÁada com elogios... t„o entendida em seu campo e todavia
t„o ingÍnua em suas emoÁıes... t„o pronta para agradar e se adaptar
aos caprichos dos outros
ó especialmente de um homem musculoso e com tatuagem.
ìA senhora ainda est· tremendo, sra. Cobbî, disse ele. ìE a
excitaÁ„o e a falta de sono. Suba e se acalme. Eu darei comida aos
gatos e sairei para jantar. E
n„o prepare nenhuma comida amanh„; È o dia de seu casamento.î
Ela agradeceu-lhe exageradamente e se retirou para sua suÌte.
Qwilleran foi para a biblioteca escolher a m˙sica do casamento:
Bach para a cerimÙnia e Schubert, com o champanhe e o caviar. Koko
seguiu-o e examinou cada
fita, cheirando algumas e estendendo para outras uma pata indecisa.
ìUm bibliotec·rio felino j· È ruimî, disse Qwilleran. ìPor
favor! N„o quero um disc-jÛquei felino.î
ìNiik niik niikî, Koko retrucou irritado, girando uma orelha
para a frente e outra para tr·s.
O telefone tocou, e quem chamou disse: ìA gentil companhia
telefÙnica retomou os serviÁos para os camponeses da Estrada
MacGregor.î
A voz melÛdica fez a parte de tr·s do pescoÁo de Qwilleran
arrepiar. ìEu estava pensando em vocÍ, Polly. Eu estava pensando a
respeito de tudo.î
ìDeu tudo maravilhosamente certo, Qwill, mas estremeÁo ao
pensar em vocÍ naquela neve.î
ìEu tambÈm estremeÁo. Quando posso vÍ-la outra vez?î
ìEu gostaria de ir para o concerto na noite de domingo.î
ìPor que vocÍ n„o faz uma mala para passar a noite? Se vocÍ
voltar para casa depois do concerto, vai ter que voltar na manh„ da
segunda-feira. VocÍ pode escolher
entre as suÌtes do andar de cima: Inglesa, ImpÈrio ou Biedermeier.î
ìEu acho que gostaria da suÌte Inglesaî, disse Polly. ìSempre
quis dormir em uma cama de quatro pilares com cortinas dos lados.î
ìMIAU!î, ronronou Koko.
Ao recolocar o telefone no gancho, suavemente, Qwilleran disse:
ìE vocÍ trate de sua vida, rapaz!î
QUATORZE
S¡BADO, 23 DE NOVEMBRO. ìCÈu nublado e mais sete centÌmetros de
neveî, o meteorologista estava prevendo. No entanto, o sol estava
brilhando e Pickax estava
cintilando sob o cobertor de neve que caÌra na quinta-feira. A neve
continuava branca em Pickax.
Quando Qwilleran foi para a casa principal preparar o cafÈ da
manh„ dos gatos, a sra. Fulgrove e o sr. OíDell estavam no trabalho.
ìBelo dia para um casamentoî,
ele comentou.
ìCerto, mas quando se trata de casamento o diabo controla o
tempoî, disse o mordomo. ìQuando me casei, os cÈus trovejaram e os
cachorros uivaram e os p·ssaros
caÌram mortos na estrada, mas durante quarenta e cinco anos vivemos
juntos sem nenhuma palavra de raiva entre nÛs. E quando ela se foi,
que Deus a tenha, se foi
de repente, sem nenhuma dor ou l·grima.î
A sra. Cobb estava nervosa. Sem nenhum alimento para preparar e
nenhuma fÙrma de bolinhos com passas ao rum para assar, ela se
encontrava sem destino pela casa,
aguardando a hora de arrumar os cabelos. Os gatos tambÈm estavam
inquietos, sentindo algum tipo de agitaÁ„o. N„o paravam, e Koko
falava consigo mesmo com ìmiausî
e ìiksî particulares, e de vez em quando derrubava um livro da
prateleira. Qwilleran estava contente por escapar. ¿s duas horas
tinha marcado uma entrevista com
Sarah Woolsmith.
A fazendeira, de noventa e cinco anos de idade, residia h·
muito tempo no centro de atendimento ao idoso, junto ao Hospital
Pickax, dois prÈdios modernos que
pareciam fora do lugar em uma cidade de imitaÁıes de castelos e
fortalezas.
A enfermeira no balc„o de recepÁ„o estava esperando Qwilleran.
ìA sra. Woolsmith est· aguardando o senhor na sala de leituraî,
disse ela. ìO senhor ter· o local
todo para vocÍs, mas por favor limite sua visita a quinze minutos;
ela se cansa facilmente. Ela est· ansiosa por ser entrevistada. N„o
s„o muitas as pessoas que
querem ouvir os idosos falarem dos tempos antigos.î
Na sala de leitura ele encontrou uma pequena e fr·gil mulher,
com m„os trÍmulas, sentada em uma cadeira de rodas, agarrada a seu
xale. Ela estava acompanhada
de uma volunt·ria que a trouxera do quarto.
ìSarah querida, este È o sr. Qwilleranî, disse a volunt·ria,
calma e claramente. ìEle est· fazendo uma visita cordial a vocÍ.î De
lado, ela sussurrou: ìEla
tem noventa e cinco anos e ainda tem quase todos os dentes, mas sua
vis„o n„o È boa. Tem uma alma bondosa e todos nÛs a amamos. Sentarei
perto da porta e lhe avisarei
quando o tempo acabar.î
ìOnde est„o meus dentes?î, a sra. Woolsmith perguntou com uma
voz aguda e alarmada.
ìUma parte em sua boca, querida, e vocÍ est· ador·vel com seu
novo xale.î Afetuosamente, ela apertou o braÁo da velha senhora.
Sem desperdiÁar tempo em preliminares, Qwilleran disse: ìA
senhora poderia me contar o que significava viver em uma fazenda
quando era jovem, sra. Woolsmith?
Vou ligar este gravador.î Ele levantou o aparelho para que ela o
visse, mas ela olhava vagamente em v·rias direÁıes.
A seguinte entrevista foi transcrita mais tarde:
Pergunta: A sra. nasceu no Condado de Moose?
Sra. Woolsmith: N„o sei por que vocÍ quer conversar comigo. Eu
nunca fiz nada, sen„o viver em uma fazenda e criar uma famÌlia. Tive
meu nome no jornal uma vez,
quando fui assaltada.
O que a senhora cultivava?
Sra. Woolsmith: Saiu no jornal ó sobre o assaltante ó e eu
cortei o pedaÁo. Est· na minha bolsa, onde est· minha bolsa? Tire-o
e leia. VocÍ pode ler para mim.
Eu gosto de ouvir.
Sarah Woolsmith, 65, de Squunk Corners estava sentada sozinha e
tricotando um suÈter em sua sala de estar, na ˙ltima quinta-feira,
‡s onze horas da noite, quando
um homem com um lenÁo na face irrompeu e disse: ìDÍ-me todo o seu
dinheiro. Preciso muito deleî. Ela lhe deu US$ 18,73 de sua bolsa, e
ele fugiu a pÈ, deixando-a
ilesa, mas surpresa.
Sra. Woolsmith: Eu costumava tricotar naquele tempo. Tivemos sete
crianÁas, John e eu, cinco deles meninos. Dois morreram na guerra.
John morreu na grande tempestade
de 37. Foi buscar as vacas e morreu de frio. Quinze vacas e todas as
galinhas congelaram. Os invernos eram rigorosos naquela Època. Eu
tenho um cobertor elÈtrico.
VocÍ tem um cobertor elÈtrico? Quando eu era jovem dormÌamos sob uma
pilha de acolchoados, minhas irm„s e eu. De manh„, olh·vamos para
cima para ver o gelo no teto.
Era bonito, todo cintilante. Havia gelo na bilha quando lav·vamos o
rosto. ¿s vezes peg·vamos resfriado. Mam„e esfregava Ûleo de gamb· e
gordura de ganso em nosso
peito. N„o gost·vamos disso. (Risos.) Meu irm„o atirava em coelhos
selvagens, mas eu conseguia persegui-los e peg·-los. Papai ficava
orgulhoso de mim. Papai n„o
tinha cavalo. Ele atava mam„e ao arado e eles lavravam a terra. N„o
fui ‡ escola. Eu ajudava mam„e na cozinha. Uma vez ela ficou doente
e tive de alimentar dezesseis
homens. Eu era apenas desse tamanho. Foi na Època da colheita. Eles
eram todos vizinhos. Os vizinhos ajudavam os vizinhos naquele tempo.
A senhora sempre tinha tempo para...
Sra. Woolsmith: NÛs, as mulheres da famÌlia, esfreg·vamos as
roupas em uma tina e fazÌamos nosso prÛprio sab„o. Eu fazia vinagre
e manteiga. EnchÌamos os travesseiros
com penas de galinha. TÌnhamos uma porÁ„o deles! (Risos.) Uma vez
por semana, peg·vamos a carroÁa para ir ‡ cidade, pegar a
correspondÍncia e comprar um centavo
de balas de marroio. Eu me casei com John e tÌnhamos uma grande
fazenda. Vacas, cavalos, porcos, galinhas. NÛs pag·vamos os meninos
dos vizinhos para debulhar e
descascar. Cinco centavos por hora. Os melros vinham e comiam nosso
milho. Uma vez os gafanhotos chegaram e comeram tudo. Comeram a
roupa no varal. (Risos.) Os meninos
dos vizinhos trabalhavam doze horas por dia, debulhando e
descascando.
O que a senhora se lembra do...
Sra. Woolsmith: Nunca trancamos nossas portas. Os vizinhos
podiam entrar e pegar uma xÌcara de aÁ˙car emprestada. Foi um menino
vizinho que pegou meu dinheiro.
Eu sabia quem era, mas n„o falei para a polÌcia. Eu conhecia sua
voz. Trabalhou em nossa fazenda algumas vezes.
Por que n„o contou para a polÌcia?
Sra. Woolsmith: O nome dele era Basil. Tive pena dele. Seu pai
estava na pris„o. Matou um homem.
Era a famÌlia de Whittlestaff?
Sra. Woolsmith: Eu espiei pela janela quando levou meu
dinheiro. Havia luar. Eu o vi correndo por nossos campos de batata.
Sabia para onde ele estava indo.
O trem de carga parou em Watertown para se abastecer de ·gua. VocÍ
podia ouvir o apito a trÍs quilÙmetros de dist‚ncia. Um menino caiu
nos trilhos e morreu. Eu nunca
andei de trem.
Fim da entrevista.
A volunt·ria interrompeu o monÛlogo da sra. Woolsmith. ìO tempo
acabou, querida. Diga atÈ logo agora, e vamos subir para nossa
sesta.î
A velha senhora estendeu uma m„o magra e trÍmula, e Qwilleran
colocou-a ternamente entre as dele, admirando-se de que aquelas m„os
fr·geis tivessem um dia esfregado
roupas, ordenhado vacas e plantado batatas.
A volunt·ria o acompanhou atÈ a entrada. ìSarah se lembra de
tudo o que se passou h· setenta e cinco anosî, disse ela, ìmas n„o
se lembra dos fatos recentes.
A propÛsito, sou Irma Hasselrich.î
ìVocÍ È parente do procurador do Fundo Klingenschoen?î
ì… meu pai. Ele foi promotor de justiÁa quando Zack
Whittlestaff foi condenado por matar Titus Goodwinter. O menino de
Zack, que roubou Sarah e fugiu, voltou
anos mais tarde e pagou a ela os dezoito dÛlares e setenta e trÍs
centavos, mas ela n„o se lembra. Ele tambÈm envia chocolates para
ela todo Natal. Ele se tornou
um homem de sucesso. Mudou seu nome, naturalmente. Se eu tivesse um
nome como Basil Whittlestaff, tambÈm teria mudado, È claroî, ela
ria. ìEle vende carros usados
e trabalha em uma oficina. E mal-humorado, mas trabalha bem.î
Qwilleran foi para casa se vestir para o casamento. Ele n„o
estava antecipando o momento com nenhum prazer. Tinha sido padrinho
de Arch Riker vinte e cinco
anos antes, quando era jovem e louco, e nem sempre sÛbrio. Naquela
ocasi„o, ele se atrapalhou com a alianÁa, fazendo com que o noivo a
deixasse cair, levando duas
centenas de convidados a um riso contido.
E agora ele ia ser padrinho de Basil Whittlestaff.
¿s cinco horas, o crep˙sculo de novembro coloriu a brancura da
neve de Pickax de um azul enevoado. Na mans„o K, as tapeÁarias foram
espanadas, os candelabros
de cristal estavam acesos e o sr. OíDell tinha dado inÌcio a uma
chama festiva na lareira da sala de visitas.
O relÛgio no sal„o soou cinco vezes. O sr. OíDell ligou o toca-
fitas, e os acordes solenes de um prel˙dio para Ûrg„o de Bach
ressoaram pela casa. Na sala de
visitas, o juiz estava parado em frente ‡ lareira. O noivo e seu
padrinho aguardavam no sal„o. Houve um momento de suspense, e ent„o
a noiva e sua madrinha apareceram
na galeria acima e iniciaram sua digna descida.
A sra. Cobb, usualmente vista de avental ou de calÁas compridas
ou de macac„o folgado, estava quase irreconhecÌvel em seu conjunto
de camurÁa cor-de-rosa. Susan
Exbridge sempre estava bem-arrumada.
AtÈ que o casal e os padrinhos se colocaram em frente ao juiz,
ele j· estava com as faces vermelhas do calor ‡s suas costas.
Flanqueando-o estavam dois indignados
siameses, cujo territÛrio em frente ‡ lareira estava sendo usurpado
por um estranho.
Qwilleran sentia-se constrangido; Hackpole se mexia
nervosamente; e o juiz enxugou a testa antes de comeÁar o breve
ritual: ìEstamos aqui para unir este homem
e esta mulher...î
Apesar da beleza tranq¸ila do lugar, a atmosfera estava tensa.
ìSe alguma pessoa puder apresentar um motivo justo pelo qual
eles n„o possam se unir perante a lei, fale-o agora ou cale-se para
sempre.î
ìMIAU!î, ronronou Koko.
Hackpole franziu as sobrancelhas; as duas mulheres deram uma
risadinha e Qwilleran sentiu uma reaÁ„o mista de divers„o e
apreens„o.
Herbert tomou Iris como sua esposa, e Iris tomou Herbert como
seu esposo. Em seguida, foi a vez das alianÁas.
Este era o momento de Qwilleran. A alianÁa estava em seu bolso,
e ele se atrapalhou com ela. Bolso errado. Ah! Achou a alianÁa. E
ent„o se desgraÁou outra vez.
A alianÁa de casamento caiu de sua m„o e rolou pelo tapete.
Yum Yum foi atr·s em um segundo. O ladr„o residente da mans„o
Klingenschoen, atraÌdo por qualquer coisa brilhante e dourada,
rebateu seu pequeno tesouro para
baixo da escrivaninha chinesa, com Qwilleran em louca perseguiÁ„o.
Exatamente quando o trofÈu estava ao alcance dele, ela o rodou pelo
sal„o ó batendo com uma pata,
arremessando-o depois, batendo com a outra. Ela estava empurrando a
alianÁa para baixo de um tapete persa, quando o padrinho finalmente
interceptou-a.
Em velocidade recorde, o juiz, suando, encerrou a cerimÙnia.
ìEu os declaro marido e mulher.î Hackpole, meio embaraÁado, deu um
beijo em sua esposa, e o resto
foram abraÁos apertados, apertos de m„o, congratulaÁıes e os
melhores desejos de felicidades.
As notas suaves da m˙sica para piano de Schubert se ajustavam ‡
ocasi„o, e a sra. Fulgrove e o sr. OíDell apareceram com bandejas de
champanhe e frios sortidos.
Qwilleran, com os dedos cruzados e um copo de suco de uva branca,
propÙs um brinde ‡ felicidade futura dos recÈm-casados.
O momento de comemoraÁ„o foi breve. O juiz deu um gole em seu
champanhe e saiu ‡s pressas, e a nova sra. Hackpole persuadiu seu
marido a ir para a sala de jantar
para ver os entalhes de uma caÁada no maciÁo arm·rio da Pensilv‚nia.
ìEspero que ela seja felizî, disse Qwilleran ‡ sra. Susan
Exbridge. ìInfelizmente mantive minha reputaÁ„o como o pior
ëpadrinhoí da histÛria nupcial.î
ìMas Koko foi muito bem como o padrinho felinoî, disse ela.
ìSua declaraÁ„o oportuna quebrou nossa tens„o.î
Os Hackpole voltaram de sua breve turnÍ e expressaram o desejo
de irem embora, o noivo retinindo as chaves de seu carro e
empurrando sua noiva para a porta
de tr·s.
ìEspere um minutoî, disse Qwilleran. ìDÍ-me suas chaves e eu
trarei o carro para a porta da frente. N„o estamos jogando arroz,
mas vocÍs devem sair em grande
estilo.î
ìMas temos dois carrosî, objetou Hackpole. ìO dela est· na
garagem.î
ìPegue-o amanh„. NinguÈm jamais ouviu falar de uma noiva e um
noivo saÌrem em veÌculos separados.î
Qwilleran e Susan observaram a saÌda deles para a suÌte nupcial
do Hotel New Pickax. ìBem, l· v„o elesî, disse ele, ìpara melhor ou
pior.î
Susan aceitou o convite para jantar no Stephanieís, onde velas
reluziam sobre as mesas com toalhas atÈ o ch„o, e cores leves e
m˙sica suave criavam um ambiente
rom‚ntico. A noite era vÈspera do oratÛrio Messias, e eles discutiam
os planos para a recepÁ„o de gala no museu apÛs a performance.
ìOs gÍmeos Fitch v„o gravar vÌdeosî, disse Susan.
Qwilleran assentiu. ìMeus amigos L· de Baixo recusam-se a
acreditar nas atividades culturais desse condado remoto.î
ìConsidero que somos o Luxemburgo do nordeste central dos
Estados Unidosî, disse Susan, com um dram·tico floreio de suas
expressivas m„os. ìE deixe-me lhe contar
sobre a surpresa que planejamos para a audiÍncia do Messias. VocÍ
sabe por que È tradiÁ„o ficar em pÈ durante o ëAleluiaí?î
ìOuvi dizer que o rei inglÍs ficou t„o impressionado quando o
ouviu pela primeira vez que ficou em pÈ e, quando o rei se levanta,
todos se levantam. … essa
a lenda?î
ìCerto! Por volta de 1742. Bem, o rei George II assistir· ‡
performance amanh„ ‡ noite, com toda a corte real e adereÁos do
sÈculo XVIII. Nosso grupo de teatro
vai encen·-lo... VocÍ deveria se juntar ao grupo de teatro de
Pickax, Qwill. VocÍ tem uma boa voz e uma boa presenÁa. PoderÌamos
representar Bell, Book and Candle
e Koko poderia desempenhar o papel de Pyewacket.î
ìEu tenho d˙vidas se ele gostaria de desempenhar o papel de um
gatoî, disse Qwilleran. ìEle È um esnobe insuport·vel. Receio que
ele desempenharia melhor o
papel principal em Ricardo III.î
O jantar com Susan foi uma continuaÁ„o agrad·vel do casamento
que o angustiara. Ele deu-lhe o buquÍ de rosas cor-de-rosa para
levar para casa, e ela deu-lhe
um beijo teatral. Temporariamente ele esqueceu o sentimento de perda
de uma governanta morando com ele e sua reprovaÁ„o quanto ‡ escolha
do marido. Ele esqueceu
atÈ o momento em que fez sua verificaÁ„o noturna da casa, antes de
se retirar para seu apartamento.
Um volume fino jazia sobre o tapete da biblioteca. Era um
exemplar de Otelo, e a citaÁ„o mais conhecida veio ‡ cabeÁa de
Qwilleran: ìDeveis falar de um homem
que n„o amou com sensatez, mas que amou excessivamenteî.
Enquanto carregava os siameses pelo p·tio, na cesta de vime,
lembrou-se de uma outra linha, e seu bigode eriÁou. ìMatai-me
amanh„! Deixai que eu viva esta noite!î
QUINZE
DOMINGO, 24 DE NOVEMBRO. Mais trÍs centÌmetros de neve caÌram
durante a noite. Quando Qwilleran carregou a cesta de vime para a
casa principal, na manh„ de
domingo, os sinos de bronze da Velha Igreja de Pedra e as gravaÁıes
de repiques da Pequena Igreja de Pedra anunciavam os serviÁos da
manh„. O sr. OíDell, que tinha
assistido ‡ missa cedo, estava ocupado com o aparador de neve.
ìCerto, depois vou limpar a entrada para carros e o
estacionamento para a festa ‡ noiteî, disse ele. ìAcho que n„o
nevar· mais hoje.î
Qwilleran aumentou a temperatura do termostato na casa e estava
preparando o cafÈ da manh„ dos gatos, quando ouviu a porta de tr·s
se abrir e fechar com violÍncia.
Deve ser OíDell, ele pensou, procurando uma bebida quente em uma
manh„ fria. Quando ninguÈm apareceu e ele ouviu um choramingo no
corredor de tr·s, foi investigar.
ìSra. Cobb!î, exclamou. ìO que est· fazendo aqui? O que lhe
aconteceu?î
Sua face estava p·lida e seu cabelo desarrumado; ela estava se
apoiando com fraqueza na porta de tr·s. A vis„o de Qwilleran, ela se
debulhou em l·grimas, cobrindo
o rosto com as m„os.
Ele levou-a para a cozinha e fez com que se sentasse em uma
cadeira. ìComo a senhora chegou aqui? A senhora veio andando na
neve. Onde est„o suas botas?î
ìEu n„o seiî, ela se lastimou. ìEu apenas... fugi. Eu tinha de
sair.î
ìO que houve de errado? A senhora pode me contar?î Ele tirou os
sapatos ˙midos dela e embrulhou seus pÈs em toalhas.
Ela balanÁou a cabeÁa e um suspiro se transformou em lamento.
ìEu cometi... eu cometi um terrÌvel... erro.î
ìN„o compreendo, sra. Cobb. N„o pode me dizer o que aconteceu?î
ìEle È um monstro! Eu me casei com um monstro! Oh, o que farei?
î
ìA sra. est· machucada?î
Ela negou com a cabeÁa, derramando uma torrente de l·grimas.
Qwilleran estendeu-lhe uma caixa de lenÁos. ìEle abusou da
senhora fisicamente?î
ìOh-h-h-h! N„o posso falar sobre isso!î Ela abaixou a cabeÁa e
balanÁou compulsivamente.
ìEle estava bebendo excessivamente?î
Ela fez um trÍmulo sim.
ìFarei uma xÌcara de ch·.î
ìN„o posso... n„o vai pararî, ela choramingou. ìPassei a noite
toda vomitando.î
ì… melhor tomar um pouco de ·gua, pelo menos. A senhora
provavelmente est· desidratada.î
ìN„o consigo manter nada no estÙmago.î
ìEnt„o chamarei o mÈdico.î Ele discou o n˙mero da casa do dr.
Halifax, e a enfermeira que cuidava da esposa inv·lida do doutor
disse que ele estava na igreja.
Qwilleran correu atÈ o jardim e fez sinal para o mordomo. ìUma
emergÍncia, sr. OíDell. V· rapidamente ‡ Velha Igreja de Pedra e
traga o dr. Hal. Procure uma
cabeÁa grisalha, ent„o siga pelo corredor central e acene para ele.î
ìPegarei a m·quina de neveî, disse OíDell, com um enigm·tico
franzir de sobrancelhas.
Ele saiu zunindo na m·quina e Qwilleran voltou para a cozinha a
tempo de ver Koko se roÁando nas ancas da sra. Cobb. Quando ela se
abaixou para acarici·-lo,
ele pulou em seu colo. Ela deu-lhe um abraÁo apertado, e ele se
permitiu ser abraÁado assim, mexendo de leve as orelhas quando as
l·grimas dela caÌam.
Assim que a m·quina ruidosa voltou, Qwilleran foi atÈ a porta
de tr·s.
ìCronometragem exataî, disse o velho doutor. ìVocÍ me tirou
justamente antes do serm„o. Qual È o problema?î
Qwilleran explicou-lhe brevemente e o levou ‡ cozinha. Em um
instante o dr. Hal voltou. ìMelhor lev·-la ao hospital. Onde est·
seu telefone? Eu pedirei um quarto
privativo.î
ìN„o sei o que houveî, disse Qwilleran em voz baixa, ìmas seu
marido deve ir procur·-la. Acho que o senhor deveria especificar a
proibiÁ„o de visitas.î
Ele ajudou o dr. Hal levar a paciente atÈ a porta de tr·s.
ìPrecisarei... de algumas coisasî, ela disse fracamente.
ìNÛs faremos uma mala e a enviaremos para o hospital. N„o se
preocupe com nada, sra. Cobb.î Qwilleran nunca seria capaz de cham·-
la de sra. Hackpole.
O mordomo trouxe o carro, e Qwilleran lhe disse: ìEnquanto
saio, vocÍ poderia ir ‡ Pequena Igreja de Pedra e pegar a sra.
Fulgrove, quando terminar o serviÁo?
PeÁa a ela para vir e fazer uma mala com as coisas pessoais da sra.
Cobb, para uma pequena estada no hospital.î
A ida para o hospital foi em silÍncio, exceto para um lamento
casual. ìEstou trazendo muitos problemas para o senhor.î
ìDe forma alguma. A senhora foi s·bia em voltar para casa.î
Quando ele voltou, apÛs deixar a paciente, a sra. Fulgrove
andava de um lado para outro com ar de import‚ncia. ìColoquei na
mala tudo o que consegui lembrarî,
disse ela, ìo que n„o achei f·cil, j· que eu mesma nunca estive em
um hospital, graÁas a Deus. Coloquei o que achei ser certo e o
pequeno r·dio perto da cama, e
procurei a BÌblia, mas n„o consegui encontrar, por isso coloquei a
minha e deve ser um conforto para ela.î
ìA sra. Cobb pediu ‡ senhora para trabalhar hoje ‡ noite
durante a recepÁ„o, sra. Fulgrove?î
ìSim, ela pediu, mas considerando que hoje È domingo ó e que
n„o trabalho no dia do Senhor ó eu n„o poderia receber dinheiro por
isso, mas ajudarei com prazer,
considerando que a pobre alma est· no hospital, e estou agradecida
por minha sa˙de.î
Qwilleran pediu ao mordomo para entregar as coisas essenciais
da sra. Cobb no hospital. ìO senhor acha que podemos administrar a
recepÁ„o sem ela, sr. OíDell?î
ì… claro que faremos o melhor que pudermos. As senhoras do
clube precisar„o de ajuda com as taÁas para ponche e coisas assim.
Agora, devo levar os pequenos
para o outro lado do p·tio antes que a festa comece?î
ìAcho que n„o. Os gatos gostam de uma festa. Vamos deix·-los
ficar na casa.î
ìQuando as senhoras do clube saÌrem para o concerto, trancarei
a casa e irei ‡ igreja, mas estarei de volta antes que termine. A
sra. Cobb ia acender todas
as luzes e acender todas as lareiras. E muito ruim que ela n„o
esteja se divertindo agora. O que È que a est· afligindo?î
ìUm tipo de vÌrusî, disse Qwilleran.
Por volta do meio-dia, o telefone tocou e uma voz grossa
perguntou: ìOnde est· ela? Onde est· minha esposa?î
ì… o sr. Hackpole?î, Qwilleran perguntou. ìVocÍ n„o sabe? Ela
est· no hospital. Ela teve um tipo de ataque, segundo disseram.î
Com uma explos„o de irreverÍncia, Hackpole desligou.
A tarde, ao telefonar para o hospital, Qwilleran ficou sabendo
que a paciente estava descansando calmamente e se restabelecendo,
mas que nenhuma visita era
permitida, por ordem do dr. Halifax.
A tarde, Susan Exbridge e sua comiss„o chegaram para preparar o
ponche e decorar a mesa. No mesmo momento Polly Duncan chegou com
sua mala para uma noite. As
mulheres se cumprimentaram com polidez, mas n„o calorosamente, e a
comiss„o pareceu surpresa por ver Polly na propriedade.
A caminho do Old Stone Mill para jantar, Qwilleran disse a
Polly: ìVi que vocÍ conhece Susan Exbridgeî.
ìTodo mundo conhece Susan Exbridge. Ela est· em todas as
organizaÁıes e em todas as comissıes.î
ìEla acha que eu deveria me juntar ao grupo de teatro.î
ìVocÍ vai ver que ele consome muito tempoî, Polly o advertiu
com irritaÁ„o. ìSe vocÍ est· empenhado em escrever seu livro, o
grupo de teatro interferiria muito.î
Ela falou em um tom amargo, que n„o lhe era usual, e Qwilleran
evitou mencionar a sra. Exbridge outra vez.
No restaurante, os clientes estavam esperando em pÈ, em fila, e
Hixie tentava freneticamente fazer com que todos se sentassem. N„o
tinha tempo para papo. Qwilleran
e sua convidada tiveram de aguardar uma mesa e um card·pio.
Considerando o teor da conversa na sala de jantar, todos iriam ao
concerto e todos estavam entusiasmados.
Qwilleran disse a Polly: ìMinha m„e costumava cantar no coro do
Messias todos os Natais. Meu n˙mero favorito È o coro do ëAleluiaí,
especialmente se eles tiram
as pausas. Mas gosto daquela pausa de dois segundos antes do ˙ltimo
aleluia ó dois segundos de silÍncio mortal e ent„o POU!î
Hixie entregou-lhes os card·pios com desculpas pela demora.
Preso com clipes ‡ pasta, havia um pequeno cart„o sugerindo um
ìpronto-para-ser-servidoî Especial
do Concerto. Preso ao card·pio de Qwilleran havia outro pequeno
cart„o escrito a m„o por Hixie: ìQuero uma conversa particular.
Telefono amanh„î.
Pouco depois das seis e trinta, o restaurante esvaziou-se, e os
que tinham ido jantar convergiram para a Velha Igreja de Pedra. O
altivo santu·rio estava completamente
cheio, tanto os bancos com almofadas quanto as cadeiras dobr·veis
nos corredores laterais. Os trÍs primeiros bancos estavam reservados
e o p˙blico estava encantado.
Palpites e boatos circulavam. A expectativa era evidente.
ìVocÍ tem alguma objeÁ„o de se sentar na fileira de tr·s no
corredor lateral?î, Qwilleran perguntou a Polly. ìQuero sair antes
da ˙ltima nota, para que possa
checar o museu antes que os convidados cheguem.î
¿s sete horas, o sr. OíDell sentou-se em uma cadeira dobr·vel,
e os dois homens trocaram acenos.
Em seguida, os executantes apareceram ó primeiro a orquestra de
uniforme cinza. O coro enfileirado usava perucas empoadas e
indument·rias pastel ó as mulheres
de fichus de rendas e saias volumosas; os homens de calÁıes atÈ os
joelhos, coletes e meias compridas. Finalmente, os solistas fizeram
uma entrada dram·tica com
veludos de tonalidades de pedras preciosas, criando grande excitaÁ„o
no p˙blico.
O maestro virou-se de frente para os ouvintes. ìSenhoras e
senhores, levantem-se todos para Sua Majestade, o Rei George.î
As portas de tr·s foram escancaradas, e enquanto a orquestra
tocava a m˙sica da coroaÁ„o o grupo real descia atÈ o corredor do
centro em solene prociss„o ó
uma panÛplia de veludo vermelho, arminho, seda branca e damasco-
p˙rpura. O p˙blico ofegou, logo murmurou maravilhado e aplaudiu com
deleite.
Qwilleran sussurrou para Polly: ìGostaria que minha m„e pudesse
ter visto isso. Ela teria se extasiadoî.
A igreja era famosa por sua excelente ac˙stica; o coro estava
bem ensaiado; os solistas e instrumentistas eram profissionais; o
Ûrg„o de tubos era magnÌfico.
Foi uma performance que Qwilleran jamais esqueceria ó por muitas
razıes.
Perto do fim do oratÛrio, o sr. OíDell saiu, fazendo um sinal
para Qwilleran. A orquestra tocava o compasso de abertura que leva
ao primeiro e explosivo aleluia.
O rei e sua comitiva real levantaram-se; o p˙blico levantou-se; e
Qwilleran se perdeu na majestade da m˙sica e em sua prÛpria
nostalgia pessoal.
Os aleluias se acumularam com intensidade crescente e
celebraÁ„o alegre, atingindo aquele momento dram·tico ó aquela
empolgante pausa ó os dois segundos de
silÍncio vazio!
Naquela fraÁ„o de fraÁ„o de segundo, Qwilleran ouviu uma nota
falsa ó o gemido de uma sirene. Bruce Scott, sentado v·rias fileiras
atr·s, levantou-se do banco
e saiu apressadamente pelo corredor. Outros dois homens saÌram
rapidamente. Qwilleran franziu a testa. Era uma hora infeliz para a
sirene de incÍndio.
O coro do ìAleluiaî terminou e uma ·ria comeÁou. Ent„o uma
porta atr·s de Qwilleran se abriu, e um porteiro bateu de leve em
seu braÁo e sussurrou.
Qwilleran saiu de sua cadeira instantaneamente, correndo
atravÈs do pÛrtico e descendo a escada. Do outro lado do parque, o
museu estava incandescente ó n„o
de luz, mas com um clar„o vermelho.
ìOh, meu Deus! Os gatos!î, ele berrou.
Ele saiu depressa, atravessando a rua, desviando-se do tr·fego.
Cortou pelo parque, sulcando freneticamente a neve profunda. Luzes
vermelhas e azuis rodeavam
o prÈdio. Mais sirenes estavam soando.
ìOs gatos!î, ele gritou.
Pessoas de paletÛ preto estavam desenrolando cordas e iÁando
escadas. ìFiquem atr·s!î, ordenavam.
Qwilleran ultrapassou-os depressa. ìOs gatos!î, ele gritou.
O clar„o vermelho se espalhava pelas janelas do segundo
pavimento. Os vidros explodiram e lÌnguas de fogo lambiam do lado de
fora.
ìDetenha-o!î
Ele estava se dirigindo para a porta de tr·s, mais perto da
cozinha.
ìMantenha-o fora!î
Fortes braÁos o contiveram. Ele olhava para cima e via o clar„o
se espalhando pelo terceiro piso. Escadas foram erguidas. Janelas
despedaÁadas, e uma fumaÁa
preta se formou em redemoinhos.
Qwilleran gemeu, derrotado.
DEZESSEIS
SEGUNDA-FEIRA. 25 DE NOVEMBRO. Qwilleran ligou o r·dio no
quarto de seu apartamento da garagem. ìManchetes do momento: Museu
Klingenschoen no Park Circle foi
totalmente destruÌdo pelo fogo na noite de domingo, em conseq¸Íncia
de incÍndio criminoso, de acordo com o chefe dos bombeiros Bruce
Scott. Um corpo queimado encontrado
no edifÌcio, supostamente o do criminoso, n„o foi ainda
identificado. Trinta bombeiros, quatro reservatÛrios e trÍs
mangueiras atuaram, com comunidades vizinhas
ajudando os volunt·rios de Pickax. Nenhum bombeiro se feriu...
Esperamos temperaturas mais quentes hoje e cÈu ensolarado.î
ìEnsolarado!î, Qwilleran resmungou, desligando o r·dio. Ele olhava
fixamente com os olhos l˙gubres para a cena cinzenta l· fora: o
frio, pesado, cÈu de chumbo...
o ch„o escuro com lodo e fuligem congelados... a estrutura de uma
edificaÁ„o de pedra de trÍs pavimentos, que outrora fora atraÁ„o
turÌstica, agora devastada pela
fumaÁa. As janelas, portas e telhados se foram, e as paredes de
pedra enegrecidas cercavam uma montanha de entulho queimado. O
cheiro acre de fumaÁa, que permanecia
sobre a ruÌna, penetrava tambÈm em seu apartamento.
Polly aproximou-se e segurou sua m„o em sinal de apoio
silencioso.
ìObrigado por me ajudar a chegar em casa nessa noite terrÌvelî,
disse ele. ìVocÍ est· suficientemente aquecida?î Ela estava usando
um pijama dele. ìN„o conseguimos
aquecimento atÈ uma hora atr·s. A energia chegou mais ou menos ‡s
cinco horas, mas o telefone ainda est· mudo. O ˙ltimo caminh„o dos
bombeiros sÛ saiu ao amanhecer.î
Contemplando a paisagem deprimente, Polly disse: ìN„o consigo
compreender o que aconteceu.î
ìVai alÈm da compreens„o. VocÍ gostaria de um cafÈ? N„o h· nada
para o cafÈ da manh„ sen„o p„ezinhos congelados. A que horas vocÍ È
esperada na biblioteca?î
ìMIAU-U-U-U!î, chegou um uivo alto e exigente do cÙmodo
contÌguo.
ìKoko ouviu uma referÍncia ao cafÈ da manh„î, disse Qwilleran
enquanto abria a porta da saleta dos gatos.
Eles andavam eretos, com focinhos de expectativa e caudas
otimistas.
ìSinto muitoî, disse ele. O ˙nico cheiro esta manh„ È de
fumaÁa. N„o h· comida atÈ que eu v· ‡ loja. Simplesmente fiquem
felizes por estarem vivos.î
ìAÌ vem o sr. OíDellî, disse Polly.
ìE melhor vocÍ ir se vestir.î
Ela pegou suas roupas e entrou no banheiro, enquanto o criado
subia vagarosamente a escada.
Qwilleran cumprimentou-o em tom baixo. ì… um dia triste, sr.
OíDell, mas nÛs lhe agradecemos por ter salvado os gatos.î
ìEsse rapaz, foi ele mesmo que fez isso, atuando como um louco
e arranhando a porta do arm·rio de vassouras que eu havia encerado
apenas h· uma semana. Eu abri
a porta, e era na cesta de piquenique que ele estava querendo
entrar. Ficou repreendendo a pequena, atÈ ela pular para dentro
tambÈm. O senhor queria que eu os deixasse
na casa, mas ele estava fazendo barulho demais, por isso carreguei-
os para c· antes de sair para ouvir a m˙sica. Um milagre, È o que
foi!î
ìKoko percebeu que alguma coisa estava para acontecerî,
explicou Qwilleran. ìEle sentiu o perigo. VocÍ ouviu alguma coisa
sobre o criminoso? No r·dio disseram
que ele ainda n„o foi identificado.î
ìAquilo que eu disseî, falou OíDell. ìMeu velho amigo Brodie,
que eu parei para ver esta manh„. E ele que est· tentando falar com
o senhor pelo telefone.î
ìA linha ficou enguiÁada a noite toda. O que Brodie tinha para
dizer?î
O mordomo sacudiu a cabeÁa tristemente. ìCertamente eu sinto
muito pela pobre mulher ó ela no hospital e seu novo marido queimado
mortalmente e criminoso.î
Qwilleran ficou em silÍncio. Era o tipo de coisa que aquele
homem faria ó incendiar o museu para impedir sua mulher de
trabalhar. Ele era um louco! Ele estava
louco em pensar que conseguiria se safar dessa.
ìEu fui l· quando o estavam colocando em um saco de lonaî,
disse o criado. ìPreto, ele estava como um cachorro quente queimado,
aberto, despedaÁado e cor-de-rosa
dentro.î
ìPoupe-nos dos detalhes, sr. OíDell. Agora È com a sra. Cobb
que temos de nos preocupar. NÛs todos sabemos o quanto o museu
representa para ela.î
ìH· alguma coisa que eu possa fazer agora por aquela pobre
alma?î
ìVocÍ pode pegar este dinheiro, comprar umas flores e entreg·-
las no hospital. N„o rosas cor-de-rosa! Espere um minuto: escreverei
um bilhete para colocar junto.î
O criado saiu e Polly surgiu do banheiro usando o vestido
branco de inverno que usara no concerto. ìIsto n„o È o que eu
normalmente uso para um dia de trabalho
duro nas estantes da bibliotecaî, disse ela. ìComo posso explicar
que perdi minha mala no incÍndio do museu?î
ìSinto muito por sua mala, Polly.î
ìEu sinto mais por aqueles quatro mil livros.î
ìE da biblioteca que sentirei mais faltaî, ele disse. ìSalvei
apenas uma coisa. Quando o furg„o do leil„o entregou a escrivaninha,
eu subornei os carregadores
para tirarem da casa o presente de casamento da sra. Cobb; assim, o
arm·rio da Pensilv‚nia est· na garagem junto com a velha
escrivaninha de Ephraim Goodwinter.î
O telefone tocou, um som bem-vindo depois de horas sem o
serviÁo. Qwilleran agarrou-o. ìSim?... Estava enguiÁado, dr. Hal.
Qual È a situaÁ„o?... Isto È mau,
mas o pior est· por vir. Eles identificaram o criminoso... Ajudaria
se eu fosse ao hospital e tivesse uma conversa com ela?... Est· bem,
avisarei o senhor como andam
as coisas.î
Ele recolocou o fone no gancho e olhou-o pensativamente.
ìQual È o problema, Qwill?î
ìA sra. Cobb estava melhorando, atÈ que ligou o r·dio e ouviu
as notÌcias sobre o incÍndio. Ent„o foi novamente a vez da
histeria.î
Polly saiu para o trabalho e o telefone comeÁou a tocar ó e
tocar. Amigos, associados e estranhos ligavam para manifestar suas
reaÁıes de pesar e oferecer condolÍncias.
Intrometidos, os fofoqueiros queriam saber quem provocou o incÍndio
ó e por quÍ. Na Rua Principal um fluxo constante de motoristas
passava em torno do Park Circle,
olhando embasbacados as ruÌnas.
A chamada telefÙnica de Junior Goodwinter L· de Baixo chegou
inesperadamente. ìQwill! N„o posso acreditar nisso! Jody recebeu um
telefonema de Francesca. Ela
disse que eles n„o tinham identificado o incendi·rio.î
ìFoi Hackpole! Um de nossos prÛprios bombeiros.î
ìN„o mais! Eles o expulsaram na ˙ltima primavera, por infraÁ„o
de regras. Quando e se ele aparecesse para treinamento, seria
escorraÁado.î
Qwilleran disse: ìEstou imensamente angustiado com o acidente
de sua m„e, Junior. Foi uma coisa terrÌvelî.
ìSim, eu sei. O que posso dizer?î
ìN„o houve nenhum aviso sobre o funeral.î
ìNada de funeral. Falei com meu irm„o e minha irm„, e decidimos
fazer uma cerimÙnia em sua memÛria, mais tarde.î
ìComo isso afeta o restabelecimento do Picayune?î
ìNinguÈm sabe ainda, mas tenho boas notÌcias. VocÍ sabe a caixa
‡ prova de fogo de meu pai ó ela continha uma chave para uma caixa-
forte em Mine·polis. Ele
havia colocado os cem anos do Picayune em microfilme, e n„o queria
que ninguÈm soubesse que estava gastando dinheiro.î
ìE eu tenho boas notÌcias para vocÍî, disse Qwilleran. ìA
escrivaninha de seu bisavÙ est· em minha garagem, e È sua quando
vocÍ se casar com Jody.î
ìOh, nossa!î, Junior gritou.
O telefone continuou tocando. Hixie Rice telefonou para indagar
se os siameses estavam salvos e se precisavam de comida. Pouco tempo
depois, suas botas de salto
alto estavam estalando escada acima, e ela entregou uma embalagem
com frango cordon bleu.
ìFiquei absolutamente desolada quando ouvi sobre o incÍndioî,
disse ela procurando um cinzeiro. ìImporta-se que eu fume, Qwill?î
ìPor mim, tudo bemî, disse ele, ìmas n„o sopre fumaÁa nos
gatos. Isso deixa o pÍlo deles azul.î
Ela colocou os cigarros no bolso. ìEu devia abandon·-los. Dizem
que essas coisas malditas causam rugas.î
ìUma xÌcara de cafÈ?î, sugeriu Qwilleran.
ìSe for seu famoso veneno instant‚neo, n„o, obrigada.î
ìAlguma notÌcia sobre seu chef e as facas dele?î
ìPrepare-seî, disse Hixie. ìVocÍ ouviu falar sobre um corpo n„o
identificado encontrado em um carro atolado em um monte de neve?
Bem, era Tony, fugindo para
o Canad· em meu carro!î
ìVocÍ realmente sabe como escolhÍ-los, Hixie.î
ìQuando lhe contei que ele tinha fugido pela janela do
banheiro, n„o lhe contei a histÛria toda. Tony era um canadense-
francÍs que morava aqui ilegalmente.
Ele mudou o nome e clareou os cabelos. Eu podia conviver com isso,
mas... ele tentou fraudar a companhia de seguros.î
ìIsso È mau.î
ìVendeu o carro para uma loja de carros usados e declarou que
tinha sido roubado. Aquele homem era investigador da seguradora. A
primeira vez que ele veio espionar
por aqui, Tony fugiu no trailer e passou uns dias na floresta.î
ìEm minha propriedade!. VocÍ me disse que ele tinha ido visitar
a m„e doente na FiladÈlfia. E agora? A perda de seu chef de cozinha
afeta o restaurante?î
ì… sobre isso que quero falar com vocÍ, Qwill. Meu patr„o
estava planejando um cruzeiro pelo Caribe com a mulher de
Goodwinter, atÈ que ela fugiu com outro
homem e morreu.î
ìAssim, ele quer que vocÍ v· no lugar delaî, adivinhou
Qwilleran.
ìBem, ele tem as reservas e as passagens...î
ìHixie, vocÍ È uma mulher daquelas histÛrias reais de revistas.
Se vocÍ est· procurando conselho, n„o tenho nenhum coment·rio a
fazer.î
ìEst· bem. Eu sÛ queria que vocÍ soubesse. VocÍ È sempre t„o
solid·rio.î
Quando Hixie desceu as escadas estalando suas botas de salto
fino, Qwilleran preparou-se para a visita ao hospital, perguntando-
se sobre a noite de n˙pcias
da sra. Cobb. Ele ameaÁou atear fogo no museu? Por que ela n„o nos
avisou?
Ele a encontrou sentada em uma poltrona com seu vestido cor-de-
rosa, olhando fixamente para fora da janela, sem seus Ûculos. Havia
cravos e boca-de-le„o em
sua mesa de cabeceira, mas o r·dio havia sido removido. Um bilhete
encostado no vaso de flores dizia: ìNÛs sentimos sua falta ó Koko e
Yum Yumî.
ìSra. Cobbî, ele disse calmamente.
Ela apalpou o peitoril da janela em busca de seus Ûculos. ìOh,
sr. Qwill! Eu me sinto t„o mal com tudo isso. Tive medo de que os
gatos estivessem presos na
casa e quase morri! Mas agora sei que se salvaram. As flores s„o
muito bonitas. Eu poderia chorar, mas n„o tenho mais l·grimas.
Quando ouvi sobre o museu, queria
me matar! Eu estou certa de que Herb fez isso. Foi ele?î
Qwilleran assentiu devagar e pesarosamente. ìO corpo foi
identificado. Todas as provas est„o l·. Sinto muito trazer essas
notÌcias tristes.î
ìN„o tem problema. O pior j· aconteceu. E eu me sinto t„o
culpada. Foi tudo erro meu. Por que me envolvi com aquele homem? Ele
fez isso para me irritar ó conseguiu
o que queria.î
Qwilleran puxou uma cadeira e se sentou. Ele falou docilmente:
ìSei que È doloroso para a senhora, sra. Cobb, mas ninguÈm a est·
culpandoî.
ìIrei embora, quando sair daqui. Posso morar em Saint Louis.
Telefonei para meu filho.î
ìN„o fuja. Todo mundo gosta da senhora. Eles a consideram
valiosa para a Sociedade HistÛrica e para a cidade. A senhora
poderia abrir um antiqu·rio ó fazer
avaliaÁıes ó estabelecer um negÛcio de abastecimento ó abrir uma
f·brica de cookies. Agora, a senhora pertence a este lugar.î
ìEu n„o tenho para onde ir ó onde morar. Aquele era meu lar.î
ìImagino que a casa de Goodwinter ser· sua...î
ìOh, eu jamais poderia morar l·... n„o depois do que
aconteceu.î
ìE a casa ancestral de Junior. Ele a queria ocupada por alguÈm
como a senhora ó com seu amor por casas antigas.î
ìO senhor n„o compreende...î
O bigode caÌdo e os olhos tristes de Qwilleran estavam
convincentemente solid·rios. ìSe a senhora falasse sobre isso,
poderia se sentir melhor. Ontem pela manh„,
a senhora chegou se arrastando pela neve, enfraquecida depois de ter
passado mal a noite toda. Ele fez alguma coisa grosseiramente
ofensiva para mago·-la.î
ìFoi o que ele me contou.î
Qwilleran sabia quando ficar em silÍncio.
ìEle estava bebendo. Ele sempre ficava falante e fanfarr„o
quando bebia muito. Eu n„o me importava com isso.î
Qwilleran assentiu com compreens„o.
ìEle costumava me contar de seus feitos herÛicos no exÈrcito.
Eu n„o acreditava na metade, mas ele gostava de falar daquele modo,
e isso n„o causava danos.
Uma vez ele me contou que o pai dele tinha matado o pai de Senior em
uma briga, e que seu tio tinha ajudado a linchar Ephraim Goodwinter.
Ele tinha orgulho disso!
Eu era t„o idiota! Eu acompanhava isso e o adulava.î Ela suspirou e
olhou pela janela.
ìE ent„o... no s·bado ‡ noite no hotel...î
ìEle comeÁou a se gabar de caÁar veados fora da estaÁ„o...
cobrar mais dos fregueses... fraudar impostos. Ele achava que era
esperto. Dizia que tinha feito
o trabalho sujo para a empresa XYZ. Eu n„o sabia o que dizer. Eu n„o
sabia se acreditava nele.î Ela olhava para Qwilleran ‡ espera de
aprovaÁ„o ou desaprovaÁ„o.
Ele fez um sinal neutro e encorajador.
ìFoi na noite de n˙pcias!î, ela gritou angustiada.
ìEu sei. Eu sei.î
ìEnt„o ele me contou como sua loja consertava os carros dos
Goodwinter, e ele conhecia Gritty muito bem. Ele mantinha uma
garrafa em sua oficina e eles bebiam
juntos. Ele e uma Goodwinter! Ele parecia pensar que isso era uma
honra! Imagino que n„o faz mal lhe contar isso; agora, ela se foi.
Os dois se foram.î
Houve uma longa pausa. Qwilleran aguardava com paciÍncia.
Depois de respirar fundo, a sra. Cobb disse: ìGritty queria se
livrar de seu marido e se casar com Exbridge, mas Senior estava
quebrado e ela n„o ganharia nada
com o divÛrcio. Se ele morresse em um acidente haveria o dinheiro do
seguro, da venda do jornal e antig¸idades, e tudo aquiloî.
Ela estava calma no comeÁo, mas agora apertava e soltava as
m„os, e Qwilleran disse: ìRelaxe e respire fundo algumas vezes,
sra.. Cobb... Este quarto È agrad·vel.
Fiquei neste quarto quando caÌ da bicicleta, mas eles mudaram a cor
horrenda da parede.î
ì… um cor-de-rosa bonitoî, ela disse. ìComo um sal„o de
beleza.î
ìA comida È satisfatÛria?î
ìEu n„o tenho apetite, mas as bandejas s„o bonitas.î
ìOs cookies s„o terrÌveis ó acredite em mim. Deviam pedir umas
receitas suas.î
Ela tentou esboÁar um sorriso tÌmido.
Depois de um tempo, Qwilleran perguntou: ìHerb contou para a
senhora o que de fato aconteceu a Senior Goodwinter?î
A sra. Cobb olhou para fora da janela, em seguida olhou suas
m„os. ìSenior levou o carro para a oficina de Herb para adapt·-lo ‡s
condiÁıes do inverno.î Sua
voz estava trÍmula. ìHerb fez alguma coisa ó esqueci o que era ó
para que perdesse o controle e explodisse...î
ì...quando batesse em uma superfÌcie irregular como a Velha
Ponte das Pranchas?î
Ela assentiu.
ìFoi por isso que ele comprou a casa da fazenda por um preÁo
baixo?î
Ela engoliu em seco e assentiu outra vez.
ìE incendiou o prÈdio do Picayune como parte do trato?î
ìOh, sr. Q! Foi terrÌvel! Eu lhe disse que era um assassino, e
ele me disse que eu era a esposa de um assassino e que seria melhor
manter minha boca fechada
se eu soubesse o que era bom para mim. Ele estava com uma aparÍncia
terrÌvel! Ele ia me bater! Eu corri para o banheiro, tranquei a
porta e passei mal. Ent„o ele
foi dormir e roncou a noite toda. Eu queria fugir! Eu me vesti e
fiquei sentada atÈ de manh„. Quando ele comeÁou a acordar, corri
para fora do quarto ó deixei minha
roupa de noiva, bolsa, tudo.î
ìEnt„o foi assim que ele pegou a chave do museu.î
Ela lamentou, e sua face ó habitualmente t„o alegre ó se
mostrava esgotada e muito infeliz.
* *

Quando Qwilleran voltou para seu apartamento, abriu uma lata de


atum, separou em fatias e arrumou os pedaÁos em um prato raso de
porcelana comum. ìNada mais
de comidas feitas em casaî, ele disse aos siameses. ìNada mais de
alimentos de gastrÙnomos. Nada mais de travessas de porcelana
antiga.î
Eles devoraram o atum com as cabeÁas baixas e as caudas para
cima, como gatos comuns. Mas o comportamento de Koko tinha sido
extraordin·rio. Duas horas antes
de o museu pegar fogo, ele queria sair do prÈdio; ele sabia o que
estava por vir. O que mais ele sabia?
Ele sentia que o casamento da sra. Cobb acabaria
desastrosamente? De que outra forma alguÈm poderia explicar sua
bizarra performance sobre as rosas cor-de-rosa
do tapete? E quando ele destruiu o jardim de ervas, ele estaria
percebendo alguma conex„o sem‚ntica com Herb Hackpole? N„o, essa
explicaÁ„o era absurda demais, mesmo
para a vivida imaginaÁ„o de Qwilleran. O mais prov·vel era que Koko
estivesse simplesmente mastigando as folhas, como gatos gostam de
fazer, e n„o gostou de alguma
erva. Essas eram perguntas que nunca seriam respondidas.
Mais perplexidade ainda causava a atraÁ„o de Koko por
Shakespeare. Ele podia sentir o cheiro das capas de couro, ou do
Ûleo usado para preservar o couro, ou
de alguma cola rara do sÈculo XIX usada nas encadernaÁıes? Se fosse
isso, por que se concentrava em Hamlet?
Koko ergueu sua cabeÁa do prato de atum e deu uma olhada
significativa para Qwilleran, o que fez seu bigode tremer. Qual era
o enredo da peÁa? O pai de Hamlet
tinha morrido de repente; sua m„e se casou novamente logo depois; o
fantasma do pai revelava que ele tinha sido assassinado; o nome da
m„e era Gertrude.
Um arrepio desceu pela espinha de Qwilleran. N√O!, ele disse
para si mesmo. A semelhanÁa da tragÈdia dos Goodwinter era
fant·stica demais; qualquer um poderia
enlouquecer refletindo sobre uma possibilidade como essa. A
predileÁ„o de Koko por Hamlet era estritamente uma coincidÍncia.
Isso, pelo menos, era o que ele dizia
para si mesmo.
Os siameses tinham acabado seu jantar e estavam se limpando. A
sala agora cheirava a peixe tanto quanto a fumaÁa ranÁosa. Ao abrir
a janela uns poucos centÌmetros
para ventilaÁ„o, Qwilleran foi tocado pela tr·gica cena do lado de
fora, o fantasma de uma construÁ„o nobre. Koko tinha tentado avisar
e, se ele tivesse entendido
a intenÁ„o do gato, essa destruiÁ„o insensata poderia ter sido
evitada.
O que acontecer· a seguir?, perguntou a si mesmo. N„o podemos
deixar o prÈdio em ruÌnas; vamos coloc·-lo abaixo? A estrutura
interna tinha trÍs pavimentos de
pedra com sessenta centÌmetros de espessura na base. Ocupava um
local proeminente na Rua Principal, dividia o Park Circle com o
Pal·cio da JustiÁa, a biblioteca
p˙blica e as duas igrejas.
Koko pulou para o peitoril da janela, ronronando ìik ik ikî e
demonstrando expectativa com seus olhos brilhantes.
ìSinto n„o termos conversado mais nos ˙ltimos temposî,
Qwilleran se desculpou. ìDemasiadas perturbaÁıes. VocÍ provavelmente
n„o compreende o incÍndio e todas
as suas conseq¸Íncias. VocÍ sentir· falta da sua coleÁ„o de
Shakespeare? Trinta e sete pequenos livros de valor inestim·vel se
foram nas chamas. E o que faremos
com os restos do museu?î
Enquanto ele falava a neve comeÁou a cair leve e
silenciosamente, embranquecendo os sulcos congelados e o gelo
incrustado de fuligem, projetando uma misericordiosa
cortina branca na feia cena de devastaÁ„o.
Ao mesmo tempo Qwilleran deu um tapinha em sua testa com a
s˙bita descoberta. ìAchei! Um teatro!î, ele exclamou.
ìMIAU!î, ronronou Koko.
ìPickax precisa de um teatro. ëTeatro È a vidaí, como Hamlet
dizia. Teremos um teatro, Koko, e vocÍ pode desempenhar o papel de
Ricardo III... Onde est· vocÍ?î
O gato tinha desaparecido.
ìAonde, diabos, esse gato foi?î, Qwilleran trovejou, com um
franzir de sobrancelhas.
Koko tinha voltado para seu lugar de comer e estava tentando
lamber o brilho do prato de porcelana.

Fim.

* A autora

Quando, no comeÁo dos anos 60, Lilian Jackson Braun escreveu o


primeiro
de sua sÈrie de livros policiais, talvez n„o imaginasse todo o
sucesso
que faria. Hoje, com dezessete livros publicados e cerca de 6
milhıes de
exemplares vendidos, ela vive nos Estados Unidos, e cada novo livro
È
aclamado festivamente pela crÌtica e pelo p˙blico. Este È o segundo
tÌtulo da sÈrie que a Marco Zero est· publicando. O primeiro foi O
GATO
QUE TOCAVA BRAHMS.

A irresistÌvel sÈrie de livros policiais que apresenta o mais


extraordin·rio trio de detetives da histÛria do crime! Mais de 1
milh„o
de exemplares vendidos!

Lilian Jackson Braun escreveu seu primeiro livro ìO Gato Que...î em


1960, e conquistou milhares de f„s. Desapareceu de cena
misteriosamente
para voltar 18 anos depois com ìThe cat who saw redî, tornando-se
ainda
mais famosa. Com as aventuras de Qwilleran, Koko e Yum Yum, ela
atingiu
a lista de best sellers nos Estados Unidos e a cada ano ganha mais
popularidade.

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