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1. FicÁ„o norte-americana
2. FicÁ„o policial e de mistÈrio
- - -
UM
No Condado de Moose, seiscentos e quarenta quilÙmetros ao norte
de qualquer parte do mundo, sempre comeÁa a nevar em novembro, e
neva ó e neva ó e neva.
Primeiro, todos os degraus da frente desaparecem sob sessenta
centÌmetros de neve. Ent„o as cercas e os arbustos n„o s„o mais
visÌveis. Os postes de luz e telefone
v„o ficando menores atÈ as linhas ficarem baixas o suficiente para
alguÈm pular por cima delas. Ouvir, de hora em hora, os boletins
meteorolÛgicos no r·dio È o hobby
de inverno de todos no Condado de Moose, e limpar a neve torna-se a
atividade principal. Charruas e aparadores v„o formando montanhas
brancas que encobrem prÈdios
inteiros e exigem que os moradores cavem t˙neis para a rua. Na
cidade de Pickax, a sede do Condado, n„o È raro ver esquis na ·rea
comercial do centro. Se o aeroporto
fecha ó e freq¸entemente isso acontece ó o Condado de Moose torna-se
uma ilha de neve e de gelo. Tudo comeÁa em novembro, com uma
tempestade que os moradores chamam
ìA Grandeî.
Na noite de 5 de novembro, Jim Qwilleran estava descansando em
sua confort·vel biblioteca na companhia de amigos. Um ar de
contentamento prevalecia. Eles jantaram
bem, a governanta havia preparado um ensopado de mexilhıes e
escalopes de vitela. O mordomo havia empilhado arom·tica lenha de
macieira na lareira, e a chama projetava
reflexos nos livros com capas de couro, que enchiam quatro paredes
de prateleiras da biblioteca. De l‚mpadas ligeiramente encobertas
vinha um raio de luz que aquecia
a mobÌlia de couro e os tapetes Bokhara.
Qwilleran, um homem forte de meia-idade com um farto bigode,
sentou-se ‡ sua escrivaninha inglesa antiga e sintonizou o boletim
meteorolÛgico das nove horas
no r·dio ó um dos v·rios r·dios port·teis distribuÌdos pela casa com
esse objetivo.
ìA noite ser· mais fria, com baixa de aproximadamente quatro
grausî, previu o meteorologista da WPKX. ìVentos altos e boa chance
de nevar esta noite e amanh„.î
Qwilleran desligou bruscamente o r·dio. ìSe vocÍs, rapazes, n„o
se opıemî, disse aos outros dois, ìeu gostaria de deixar a cidade
por uns dias. Passaram-se
seis meses desde minha ˙ltima viagem atÈ L· Embaixo, e meus amigos
do jornal pensam que morri. A sra. Cobb servir· as refeiÁıes, e
estarei de volta antes que a neve
caia ó espero. Simplesmente conservem as patas cruzadas.î
Quatro orelhas marrons viraram atentamente ‡ declaraÁ„o. Duas
m·scaras marrons, com longos bigodes brancos e olhos incrivelmente
azuis, se afastaram das lenhas
em chamas em direÁ„o ao homem sentado ‡ escrivaninha.
Quanto mais vocÍ fala com os gatos, Qwilleran fora avisado,
mais inteligentes eles se tornam. Um ìgatinho lindoî casual n„o ter·
nenhum efeito; È preciso uma
conversa inteligente.
O sistema, ele achava, parecia estar funcionando; o casal de
siameses que estava sobre o tapete perto da lareira reagiu como se
tivesse entendido o que ele
estava dizendo. Yum Yum, a pequena fÍmea afetuosa, olhou fixamente
para ele com express„o que parecia de censura. Koko, o garboso e
musculoso macho, levantou-se
de onde estava, se espreguiÁando com majestade leonina, andou
afetadamente atÈ a escrivaninha e bronqueou com ruidosos uivos.
ìMiau-au AU!î
ìEu estava esperando um pouco mais de compreens„o e
consideraÁ„oî, disse-lhes o homem.
Qwilleran, com mais ou menos cinq¸enta anos, estava enfrentando
uma crise singular da meia-idade. Depois de morar toda a vida em
grandes regiıes metropolitanas,
ele residia agora na cidade de Pickax, cuja populaÁ„o era de 3 mil
habitantes. Depois de uma carreira de diligente jornalista ganhando
um modesto sal·rio, era agora
milion·rio ó ou bilion·rio; ele n„o sabia exatamente. De qualquer
modo, era o ˙nico herdeiro da fortuna dos Klingenscboen,
estabelecida no Condado de Moose no sÈculo
XIX. O legado incluÌa uma mans„o na Rua Principal, trÍs empregados,
uma garagem para quatro carros e uma limusine. Mesmo depois de um
ano, achava estranho seu novo
estilo de vida. Como jornalista ele se interessava principalmente em
investigar histÛrias, checar os fatos, cumprir o prazo limite e
garantir suas fontes. Agora
sua principal preocupaÁ„o, como a de todos os outros adultos do
Condado de Moose, parecia ser o clima, especialmente em novembro.
Quando os siameses reagiram de forma negativa ‡ sua proposta,
Qwilleran pressionou seu bigode pensativamente por um instante. ìNo
entantoî, disse ele, ìÈ imperativo
que eu v·. Arch Riker est· deixando o Daily Fluxion e estou
encarregado de sua festa de despedida sexta-feira ‡ noite.î
Em seus dias de solteiro frugal, em um apartamento de um
quarto, Qwilleran nunca tinha tido ambiÁ„o de dinheiro ou posses e,
entre seus colegas de trabalho,
nunca foi notado por sua generosidade. Mas quando o patrimÙnio de
Klingenschoen finalmente passou pelo tribunal de sucessıes, ele
surpreendeu a mÌdia, ao convidar
todo o pessoal do Daily Fluxion para um jantar no Clube da Imprensa.
Ele planejou levar um convidado: Junior Goodwinter, o chefe de
redaÁ„o do Pickax Picayune, o ˙nico jornal do Condado de Moose. Ao
telefonar para a agÍncia do
jornal, ele disse: ìOl·, Junior! VocÍ gostaria de vadiar alguns dias
e voar L· para Baixo para uma festa? Como meu convidado. Cocktails e
jantar no Clube da Imprensaî.
ìOh! Nossa! Nunca vi um Clube da Imprensa, a n„o ser em
filmesî, disse o editor. ìPoderÌamos tambÈm visitar a agÍncia do
Daily Fluxion?î
Junior vestia-se como um estudante do segundo ano colegial, e
exibia um inocente entusiasmo, raro num jornalista com grau cum
laude de uma universidade estatal.
ìPoderÌamos tambÈm dar uma passada em um jogo de hÛquei e em
alguns showsî, disse Qwilleran, ìmas teremos de ficar de olho nos
boletins meteorolÛgicos e voltar
para c· antes que a neve caia.î
ìH· uma frente fria vindo do Canad·, mas acho que por enquanto
estamos salvosî, disse Junior. ìA festa È exatamente a propÛsito de
quÍ?î
ìUma festanÁa de despedida para Arch Riker, e eis o que quero
que vocÍ faÁa: traga uma sacola de carregar jornais do Picayune e
uns cem exemplares de sua ˙ltima
ediÁ„o. Depois do jantar direi umas poucas palavras sobre o Condado
de Moose e sobre o Picayune e isso ser· o sinal para vocÍ levantar e
comeÁar a distribuir os
jornais.î
ìUsarei um bonÈ de beisebol de lado e gritarei Extrai Extrai …
isso que vocÍ quer?î
ìVocÍ entendeu!î, disse Qwilleran. ìMas a pron˙ncia exata È ëE-
exx-traí! Esteja pronto ‡s nove horas da manh„ de sexta-feira.
Pegarei vocÍ em seu escritÛrio.î
As notÌcias sobre o clima na manh„ de sexta-feira n„o eram
encorajadoras: ìUma frente fria vinda do Canad· aumenta a
possibilidade de forte neve esta noite
e amanh„, com ventos soprando na direÁ„o nordeste.î
A governanta de Qwilleran manifestou seus medos. ìO que far·,
sr. Q, se n„o conseguir voltar antes que a neve caia? Se a
tempestade for ëA Grandeí, o aeroporto
ficar· fechado sabe Deus por quanto tempo.î
ìBem, eu lhe direi, sra. Cobb. Vou alugar um trenÛ puxado por
c„es e uma matilha de huskies, e conduzirei o trenÛ de volta para
Pickax.î
ìOh, sr. Q!î, ela riu. ìNunca sei se acredito ou n„o no
senhor.î
Ela estava preparando um delicioso prato de fÌgados de galinha
refogados, com uma guarniÁ„o de gemas de ovos bem cozidos e pedaÁos
de bacon, que colocou no
ch„o. Yum Yum devorou sua porÁ„o esfomeadamente, mas Koko recusou-se
a comer. Alguma coisa o estava chateando.
Os dois gatos tinham os corpos castanhos-escuros e pontos
marrons de pedigree siamÍs: m·scaras marrons acentuando o azul dos
olhos; orelhas marrons atentas
como coroas reais; pernas marrons elegantemente longas e esguias;
caudas marrons que chicoteavam, enrolavam e abanavam para expressar
emoÁıes e opiniıes. Mas Koko
tinha alguma coisa mais: um desconcertante grau de inteligÍncia e um
misterioso talento para saber quando alguma coisa estava... errada!
Naquela manh„ ele tinha arrancado um livro de uma prateleira na
biblioteca.
ìIsso n„o È educado!î, disse-lhe Qwilleran, apelando para sua
inteligÍncia. ìEsses s„o livros antigos, raros e valiosos ó para
serem tratados com respeito,
se n„o com reverÍncia.î Ele examinou o livro. Era um exemplar de
capa de couro fino de A Tempestade, um dos 37 volumes da obra de
Shakespeare que faziam parte da
heranÁa.
Com leve apreens„o, Qwilleran recolocou o livro na prateleira.
A escolha do tÌtulo era infeliz. No entanto ele estava determinado a
voar atÈ L· Embaixo para
a festa, a despeito de Koko, da sra. Cobb e do meteorologista da
WPKX.
Uma hora antes do vÙo, ele foi atÈ a agÍncia do Picayune, para
pegar Junior e a sacola de jornais. Todos os prÈdios da Rua
Principal tinham mais de um sÈculo
e eram construÌdos com pedra cinza nos mais variados estilos
arquitetÙnicos. A sede do Picayune ó espremida entre o pavilh„o de
caÁa, em estilo vienense, e o correio,
em estilo romano ó parecia um antigo mosteiro espanhol.
Um agrad·vel cheiro de tinta permeava a agÍncia do jornal, mas
o prÈdio tinha a aparÍncia embalsamada de um museu. N„o havia nenhum
encarregado de receber an˙ncios
no danificado balc„o da frente. N„o havia nenhuma recepcionista
atenta e sorridente ó apenas uma campainha.
Qwilleran examinou o cen·rio silencioso: fich·rios de madeira e
escrivaninhas envelhecidas de carvalho dourado... tachinhas para
pregar pedidos de an˙ncios
e assinaturas... velhos exemplares do Picayune, amarelados e
quebradiÁos, colados nas paredes, que n„o eram pintadas desde a
Grande Depress„o. Do outro lado da divisÛria
baixa de carvalho e vidro sujo estava a sala de composiÁ„o. Um homem
solit·rio ficava na frente da caixa de tipos, distraÌdo ante tudo,
exceto a linha de tipos que
estava colocando com movimentos r·pidos.
Diferentemente do Daily Fluxion, que tinha uma circulaÁ„o de
cerca de um milh„o de exemplares, as prensas antiquadas do Picayune
imprimiam 3 200 exemplares
a cada ediÁ„o. Enquanto o Fluxion adotava todos os avanÁos
tecnolÛgicos e tendÍncias jornalÌsticas, o Picayune ainda parecia o
jornal fundado pelo bisavÙ de Junior.
Quatro p·ginas, impressas em tipografia, contendo an˙ncios
classificados e fofocas sociais na primeira p·gina. CafÈs da
manh„ com panquecas, reuniıes sociais para
tomar sorvete e funerais eram cobertos exaustivamente, enquanto
breves menÁıes a polÌticas locais, notÌcias policiais e acidentes
eram relegadas ‡ ˙ltima p·gina
ou inteiramente omitidas.
Qwilleran tocou a campainha, e Junior Goodwinter desceu
correndo a escada de madeira, que dava para o escritÛrio editorial,
seguido por um grande gato branco.
ìQuem È seu bem alimentado amigo?î, perguntou Qwilleran.
ì… William Allen, o caÁador de ratos da redaÁ„oî, disse Junior
como se todos os jornais tivessem um caÁador de ratos na redaÁ„o.
Como chefe de redaÁ„o ele escrevia
quase todas as matÈrias do jornal e vendia a maior parte dos
an˙ncios. SÍnior Goodwinter, propriet·rio e editor, ficava o tempo
todo na sala de composiÁ„o, com um
avental de couro e um chapÈu de papel jornal dobrado, colocando os
tipos de chumbo na barra de composiÁ„o, com express„o de
concentraÁ„o e Íxtase. Ele era tipÛgrafo
desde os oito anos de idade.
Junior gritou: ìAtÈ mais, pai. Volto em poucos diasî.
O homem ocupado na sala de composiÁ„o virou-se e disse
carinhosamente: ìDivirta-se, Junior, e tome cuidadoî.
ìSe vocÍ quiser dirigir o Jag enquanto eu estiver fora, as
chaves est„o sobre minha escrivaninha.î
ìObrigado, filho, mas acho que n„o vou precisar dele. Disseram
na oficina que meu carro estaria pronto mais ou menos ‡s cinco
horas. Agora, tome cuidado.î
ìEst· bem, pai, e vocÍ se cuide!î
Houve um olhar de calorosa e m˙tua admiraÁ„o entre os dois, e
Qwilleran por um momento sentiu por n„o ter tido filhos. Ele teria
desejado um como Junior. Mas
talvez um pouco mais alto e um pouco mais m·sculo.
Junior pegou a sacola de jornais e sua mochila, e os dois foram
para o aeroporto. Juntos eram um Ûtimo exemplo das diferenÁas entre
geraÁıes: Qwilleran, um
homem sÛbrio com cabelos meio grisalhos, bigode exuberante e olhos
tristes; Junior, uma crianÁa excitada de pele corada e de tÍnis.
Junior comeÁou a conversa com
uma pergunta repentina:
ìVocÍ acha que pareÁo jovem demais, Qwill?î
ìJovem demais para quÍ?î
ìQuero dizer, Jody acha que ninguÈm me levaria a sÈrio.î
ìCom sua estatura e seu rosto jovial, vocÍ ainda parecer· ter
quatorze anos quando tiver setenta e cincoî, disse-lhe Qwilleran, ìe
n„o È de todo mau. Mais tarde,
vocÍ mudar· durante a noite e, de repente, aparentar· ter cento e
dois.î
ìJody acha que ajudaria se eu deixasse a barba crescer.î
ìN„o È uma m· idÈia! Sua namorada tem boas idÈias.î
ìMinha avÛ diz que pareÁo um dos Sete Anıes.î
ìSua avÛ deve ser uma pessoa doce, Junior.î
ìVovÛ Gage È uma figura! A m„e de minha m„e, vocÍ conhece. VocÍ
deve tÍ-la visto pela cidade. Ela dirige um Mercedes e buzina em
todo cruzamento.î
Qwilleran n„o demonstrou nenhuma surpresa. Ele tinha aprendido
que quem residia h· muito tempo no Condado de Moose era
individualista militante.
ìVocÍ teve notÌcias de Melinda desde que ela deixou Pickax?î,
perguntou Junior.
ìUma ou duas vezes. Eles a mantÍm bem ocupada no hospital.
Estar· melhor em Boston. Poder· se especializar.î
ìMelinda nunca quis ser mÈdica no interior, mas estava louca
para casar com vocÍ, Qwill, e se mudar para sua mans„o.î
ìSinto muito, n„o sirvo para ser marido. Descobri isso um tempo
atr·s, e n„o seria justo cometer o mesmo erro com Melinda. Espero
que ela encontre um homem
am·vel e da idade dela em Boston.î
ìOuvi dizer que agora vocÍ est· tendo um caso com a
bibliotec·ria chefe.î
Qwilleran soprou o bigode. ìN„o sei o que vocÍ quer insinuar,
mas deixe-me dizer que eu gosto da companhia da sra. Duncan. Nessa
Època do videotudo, È bom encontrar
alguÈm que compartilha comigo o interesse pela literatura. NÛs nos
reunimos e lemos em voz alta.î
ìOh, claroî, disse Junior com sorriso malicioso.
ìQuando vocÍ e Jody pensam em se casar?î
ìCom o sal·rio que meu pai me paga, ainda n„o tenho condiÁıes
de ter um apartamento prÛprio. VocÍ sabe, continuo morando com meus
pais na casa da fazenda. Jody
ganha duas vezes mais do que eu e È apenas uma assistente de
dentista.î
ìMas vocÍ tem um Jaguar.î
ìQue foi um presente de formatura de vovÛ Gage. Atualmente ela
È a ˙nica na famÌlia com grana. Serei herdeiro quando ela se for,
mas isso n„o vai ser logo.
Aos 82 ela ainda planta bananeira e pode me vencer no exercÌcio
abdominal. As pessoas no Condado de Moose vivem muito tempo, salvo
pelos acidentes. Um de meus ancestrais
morreu quando seu cavalo se assustou com uma revoada de melros. Meu
avÙ Gage foi fulminado por um raio. Uma tia e um tio morreram quando
o carro bateu em um veado.
Era novembro ó estaÁ„o do cio, vocÍ sabe ó e um macho dos grandes,
com chifre de oito pontas, atravessou direto o p·ra-brisa. O xerife
disse que parecia assassinato
de um amador com um machado. Agora, de acordo com estimativas
oficiais, h· dez mil veados neste condado.î
Qwilleran diminuiu a velocidade e comeÁou a procurar sinais de
vida selvagem.
ì… a estaÁ„o do arco e flecha e os caÁadores os deixam
nervososî, continuou Junior. ìToda manh„ ou ao anoitecer ó ou seja,
quando os veados saltam atravessando
a estrada.î
ìTodos os dez mil?î, Qwilleran reduziu a velocidade para
setenta.
ìO dia hoje est· mesmo escuroî, observou Junior. ìO cÈu est·
carregado.î
ìQual È o primeiro dia em que a neve sempre cai?î
ìA primeira tempestade registrada foi a 2 de novembro de 1919,
mas ëA Grandeí normalmente n„o cai atÈ meados do mÍs. A pior
registrada foi a de 13 de novembro
de 1931. TrÍs frentes frias ó do Alasca, das Rochosas e do Golfo ó
encontraram-se sobre o Condado de Moose. Muitas pessoas perderam o
rumo e morreram de frio. Quando
ëA Grandeí cai, È melhor vocÍ ficar em casa! Ou, se estiver
dirigindo, n„o saia do carro.î
Apesar dos perigos do norte do paÌs, Qwilleran estava comeÁando
a invejar os nativos. Eles tinham raÌzes! FamÌlias como os
Goodwinter tinham cinco geraÁıes
ó do tempo em que as fortunas eram feitas com a mineraÁ„o e a
extraÁ„o da madeira. As organizaÁıes mais importantes em Pickax eram
a Sociedade HistÛrica e o Clube
GenealÛgico. Na estrada para o aeroporto, a histÛria ia se
desenrolando: casas abandonadas de mineiros e pilhas de detritos nos
locais das velhas minas... cidades
fantasmas somente identific·veis por algumas solit·rias chaminÈs de
pedra... uma estaÁ„o ferrovi·ria caindo aos pedaÁos no meio de lugar
nenhum... os restos ·speros
das ·rvores enegrecidas pelos incÍndios da floresta.
Depois de alguns minutos de silÍncio, Qwilleran aventurou-se a
fazer uma pergunta de ordem pessoal a Junior: ìComo um jornalista
formado, o que vocÍ acha do
Picayune? VocÍ est· se realizando? Acha que È certo continuar no
sÈculo XIX?î
ìVocÍ est· brincando? Minha ambiÁ„o È fazer do Pic um jornal de
verdadeî, disse Junior, ìmas papai quer mantÍ-lo como era h· cem
anos. Ele estava contando conosco,
os filhos, para manter a tradiÁ„o, mas meu irm„o foi para a
CalifÛrnia trabalhar em publicidade, minha irm„ casou-se com um
fazendeiro de Montana, e assim fiquei
amarrado a ele.î
ìO Condado poderia sustentar um jornal de verdade. Por que n„o
comeÁar um e deixar seu pai manter o Picayune como hobby? VocÍ n„o
seria um concorrente; o Pic
È incompar·vel. VocÍ nunca considerou essa possibilidade?î
Junior lanÁou-lhe um olhar de p‚nico, e as palavras desabaram.
ìEu n„o tenho recursos para comeÁar sequer um quiosque de limonada!
Estamos quebrados! E por
isso que estou trabalhando por uma misÈria... A cada ano vamos mais
para o buraco. Papai vendeu nossa fazenda e agora est· amortizando a
casa da fazenda... Eu n„o
deveria estar lhe contando isso... Mam„e est· h· muito tempo atr·s
dele para se desfazer do jornal... Ela est· realmente chateada! Mas
papai n„o a escuta. Ele se
mantÈm firme na tipografia e se afunda mais em dÌvidas. Diz que È
sua vida ó sua raz„o de viver... VocÍ nunca o viu compor? Ele pode
colocar mais de trinta e cinco
letras por minuto sem olhar para a caixa de tipos.î A fisionomia de
Junior refletia sua admiraÁ„o.
ìSim, eu o vi e fiquei impressionadoî, disse Qwilleran. ìVi
tambÈm as prensas no por„o. Alguns dos equipamentos parecem com a
prensa de Gutenberg.î
ìPapai coleciona prensas velhas. Ele tem um celeiro cheio. A
primeira prensa de meu bisavÙ operava com um pedal como uma m·quina
de costura antiga.î
ìSua avÛ rica poderia lhe ajudar se vocÍ quisesse comeÁar um
jornal?î
ìVovÛ Gage n„o desembolsar· nem mais um tost„o. Ela j· foi
nossa fiadora v·rias vezes e pagou nossos prÍmios do seguro e nos
colocou os trÍs na faculdade...
Ei, por que vocÍ n„o comeÁa um jornal, Qwill? VocÍ est· rico!î
ìN„o tenho absolutamente nenhum interesse ou aptid„o para
negÛcios, Junior. Por isso criei a FundaÁ„o Klingenschoen. Eles
tratam de tudo e colocam um pouco
de dinheiro no meu bolso. Passei vinte e cinco anos nos jornais e
agora tudo que quero È tempo e calma para escrever algo.î
ìComo est· indo seu livro?î
ìBemî, disse Qwilleran, pensando em sua m·quina de escrever
negligenciada, em sua escrivaninha bagunÁada e nas anotaÁıes
desorganizadas.
No aeroporto deixaram o carro em um campo aberto que servia
como estacionamento para perÌodos longos. O terminal era pouco mais
que uma choÁa, e o administrador
ó que era tambÈm quem tirava o bilhete, mec‚nico e piloto em tempo
parcial ó estava varrendo o ch„o. ìVamos pegar ëA Grandeí?î,
perguntou com humor.
Quando os dois jornalistas embarcaram no bimotor para a
primeira etapa de sua viagem, foram espertos o suficiente para
evitar conversas pessoais. Havia outros
quinze passageiros e trinta ouvidos estariam escutando. O Condado de
Moose tinha uma rede de boatos que disseminava mais notÌcias que o
Picayune e as transmitia
mais rapidamente que a WPKX. Com bom senso, Qwilleran e Junior
conversaram sobre esportes atÈ que o pequeno avi„o aterrissou
bruscamente em Mine·polis e eles embarcaram
em um jato.
ìEspero que sirvam um almoÁo a bordoî, disse Junior. ìO que
teremos para jantar no Clube da Imprensa?î
ìEu pedi sopa de cebola ‡ francesa, costeletas e torta de
maÁ„.î
ìOh, nossa!î
Houve uma escala em Chicago antes de decolarem para a etapa
final de sua viagem. AtÈ aterrissarem, pegarem o Ùnibus para o Hotel
Stilton e sintonizarem os boletins
meteorolÛgicos, j· era hora de ir para o Clube da Imprensa.
ìOs colunistas esportivos estar„o l·?î, perguntou Junior.
ìTodos, desde os mais altos executivos aos ëfocasí. Suponho que
agora eles s„o chamados auxiliares de redaÁ„o.î
ìEles v„o achar ridÌculo se eu pedir autÛgrafos?î
ìV„o se sentir lisonjeadosî, disse Qwilleran.
No clube, Qwilleran foi tratado como um herÛi que retorna, mas
ele se lembrou que qualquer um seria um herÛi se patrocinasse jantar
e bebidas ‡ vontade para
toda a redaÁ„o. Um fotÛgrafo deu-lhe um empurr„o amig·vel nas costas
e perguntou como era ser milion·rio.
ìDeixarei vocÍ saber no prÛximo ano, em 15 de abrilî, respondeu
Qwilleran.
O editor de turismo queria saber como ele se divertia morando
no interior. ìO Condado de Moose fica no Cintur„o da Neve?î
ìExatamente! Ele È a fivela do Cintur„o da Neve.î
ìBem, de qualquer modo vocÍ È um felizardo, escapou da
violÍncia da cidade.î
ìNÛs temos muita violÍncia no norteî, Qwilleran lhe informou.
ìFuracıes, rel‚mpagos, ciclones, incÍndios florestais, animais
selvagens, derrubadas de ·rvores,
enchentes de primavera! Mas È mais f·cil aceitar a violÍncia da
natureza do que a violÍncia humana. Nunca temos franco-atiradores
loucos atirando em crianÁas nos
Ùnibus escolares, como o incidente que houve aqui na semana
passada.î
ìVocÍ ainda tem o gato que È mais esperto que vocÍ?î
No Clube da Imprensa, Qwilleran tinha uma reputaÁ„o de detetive
amador; sabia-se tambÈm que Koko era de alguma maneira respons·vel
por seu Íxito.
Qwilleran explicou a Junior: ìTalvez vocÍ n„o tenha observado,
mas a foto de Koko est· pendurada no vestÌbulo, junto ‡s dos
vencedores do PrÍmio Pulitzer. Um
dia lhe contarei suas faÁanhas. VocÍ n„o acreditar·, mas de qualquer
modo contarei.î
Durante a happy hour, Junior encontrou os colunistas e
repÛrteres cujos artigos ele lia na ediÁ„o do Fluxion para outros
estados, e com dificuldade conseguiu
controlar sua excitaÁ„o. Por outro lado, o convidado de honra estava
nitidamente contido. Arch Riker estava alegre por se livrar do
Fluxion, mas a ocasi„o era entristecida
pela recente dissoluÁ„o de seu casamento.
ìQuais s„o seus planos?î, perguntou Qwilleran.
ìBem, passarei o Dia de AÁ„o de GraÁas com meu filho em Denver
e o Natal com minha filha em Oregon. Depois disso, n„o sei.î
ApÛs a deliciosa costeleta e a torta de maÁ„, o editor
executivo presenteou Riker com um relÛgio de pulso de ouro, e
Qwilleran fez um pequeno discurso em homenagem
a seu amigo de longa data. Concluiu com poucas palavras sobre o
Condado de Moose.
ìSenhoras e senhores, a maioria de vocÍs nunca ouviu falar do
Condado de Moose. E o ˙nico condado secreto do estado. Os
cartÛgrafos ‡s vezes se esquecem de coloc·-lo
no mapa. Muitos de nossos legisladores pensam que ele pertence ao
Canad·. Mas h· cem anos o Condado de Moose era o estado mais rico,
graÁas ‡ mineraÁ„o e ‡ exploraÁ„o
da madeira. Hoje em dia È um paraÌso de fÈrias para qualquer pessoa
interessada em pescar, caÁar, passear de barco e acampar. Temos duas
caracterÌsticas peculiares
que gostaria de mencionar: temperaturas perfeitas de maio a outubro,
e um jornal que n„o muda desde que foi fundado h· mais de um sÈculo.
Junior Goodwinter, o mais
jovem chefe de redaÁ„o em cativeiro, escreve todos os artigos. Na
era da comunicaÁ„o por satÈlite n„o È f·cil escrever com uma pena de
ganso e tinta de sÈpia...
Permitam-me apresentar Junior e o Pickax Picayune!î
Junior tirou rapidamente seu bonÈ de beisebol e o saco de
jornais e correu pela sala de jantar gritando ìE-e-exx-tra! E-exx-
tra!î, enquanto jogava um punhado
de jornais sobre cada mesa. Os convidados os pegaram e comeÁaram a
ler ó primeiro com risinhos, depois ‡s gargalhadas. Na p·gina 1,
coluna 1, encontraram os classificados:
VENDEM-SE: P·s usadas em bom estado. E tambÈm um vestido de
noiva n∫ 38, sem uso.
CORRA! Se seu velho calhambeque n„o vai ag¸entar mais um
inverno, talvez vocÍ encontre um calhambeque melhor no leil„o de
carros usados de Hackpole, talvez
n„o. N„o pode dizer atÈ vÍ-los.
GR¡TIS: TrÍs gatinhos cinzentos com botas brancas. Quase
domesticados.
ACABOU DE CHEGAR: Nova remessa de ceroulas na Loja da FamÌlia
do Bill. A qualidade n„o È a mesma de sempre, e os preÁos est„o mais
altos do que os do ano passado,
mas que raiva! … melhor comprar antes que a neve caia.
Dividindo a primeira p·gina com esses exemplos de ìverdade na
publicidadeî encontravam-se itens de notÌcias com grandes manchetes.
RECORDE QUASE QUEBRADO
Havia 75 carros no cortejo do funeral do capit„o Fugtree na
semana passada ó o mais longo desde 1904, quando 52 charretes e 37
carruagens desfilaram atÈ o cemitÈrio
para sepultar Ephraim Goodwinter.
CH¡-DE-COZINHA
A srta. Doreen Mayfus foi homenageada com um ch·-de-cozinha na
˙ltima terÁa-feira. Houve jogos e prÍmios como recompensa. A futura
noiva abriu 24 presentes.
O lanche incluiu folhados de salsicha, sanduÌches de piment„o-doce e
tortinhas.
ANIVERS¡RIO CELEBRADO
O sr. e a sra. Alfred Toodle comemoraram seu septuagÈsimo
anivers·rio de casamento com um jantar oferecido por sete de seus
onze filhos: Richard Toodle, Emil
Toodle, Joseph Toodle, Conrad Toodle, Donna Toodle, Dorothy (Toodle)
Fugtree e Estelle (Toodle) Campbell. TambÈm estavam presentes 30
netos, 82 bisnetos e 13 tataranetos.
O jantar foi realizado no Restaurante da FamÌlia Toodle. O bolo com
v·rias camadas foi decorado por Betsy Ann Toodle.
Durante o alvoroÁo (todos estavam lendo em voz alta) o diretor
do Clube da Imprensa foi cuidadosamente atÈ a cabeceira da mesa e
cochichou no ouvido do anfitri„o.
ìInterurbano para vocÍ, Qwill. Em meu escritÛrio.î
Antes de correr para o telefone, Qwilleran exclamou: ìObrigado
a todos por terem vindo! O bar est· aberto!î
Ele ficou ausente da sala de jantar o suficiente para fazer
algumas chamadas telefÙnicas e, quando voltou, arrastou Junior para
longe de um grupo de editores
e repÛrteres.
ìTemos de ir embora, Junior. Vamos para casa. Alterei nossas
reservas... Arch, diga atÈ logo a todos por nÛs, certo? E uma
emergÍncia... Venha, Junior.î
ìO quÍ?... O quÍ?î, gaguejou Junior.
ìConto-lhe mais tarde.î
ìMinha sacola...î
ìEsqueÁa sua sacola.î
Qwilleran puxou o jovem escada abaixo e o empurrou para dentro
do t·xi que esperava ‡ beira da calÁada com o motor ligado.
ìHotel Stilton, r·pidoî, ele gritou, enquanto o t·xi disparava
em frente, ìe ultrapasse os farÛis vermelhos.î
ìOh, nossa!î, disse Junior.
ìCom que rapidez vocÍ consegue colocar suas coisas na mochila,
rapaz? Temos sete minutos para arrumar as malas, desocupar o quarto
e ir para o heliporto no
terraÁo do hotel.î
SÛ depois que se amontoaram no helicÛptero da polÌcia,
Qwilleran achou tempo para explicar: ìUm telefonema urgente de
Pickaxî, ele exclamou. ì ëA Grandeí est·
indo para l·. Temos de chegar antes dela ó emergÍncia pessoal.
Estamos prontos para correr. Eles est„o segurando o avi„o.î
Quando finalmente se afivelaram no jato, Junior disse: ìEi,
como vocÍ conseguiu aquele negÛcio? Eu nunca tinha entrado em um
helicÛpteroî.
ì… mais f·cil se vocÍ tiver trabalhado no Fluxionî, explicou
Qwilleran, ìe se tiver cooperado com ëHomicÌdiosí e feito propaganda
do Fundo das Vi˙vas de Policiais.
Sinto estragar o resto de nossos planos.î
ìEst· bem. N„o me importo de perder as outras coisas.î
ìPodemos fazer uma r·pida conex„o em Chicago e depois pegar o
vÙo da TGIF saindo de Mine·polis. Temos sorte por ele fazer aquela
rota.î
Durante o restante do vÙo, Qwilleran estava relutante em falar,
mas Junior n„o conseguia parar. ìTodo mundo era Ûtimo! Os colunistas
de esportes disseram que
me levariam ao camarote da imprensa qualquer hora que eu fosse ‡
cidade. O rapaz que dirige a coluna Newsroom Mouse vai redigir uma
matÈria sobre o Picayune na terÁa-feira,
e isso significa aparecer em uma cadeia de jornais em todo o paÌs,
vocÍ sabe. O que acha disso?... O sr. Bates disse que eu conseguiria
um trabalho a qualquer hora
que quisesse deixar o Pickax.î
Qwilleran evitou comentar. Ele estava acostumado com as
promessas do chefe de redaÁ„o; o homem tinha uma memÛria curta.
Junior continuava a tagarelar. ìEles empregam uma porÁ„o de
mulheres no Fluxion, n„o È? Na recepÁ„o, atribuiÁıes gerais, chefes
de departamentos, fotÛgrafas.
VocÍ conhece aquela fotÛgrafa ruiva ó a que estava com meias verdes?
î
Qwilleran negou com a cabeÁa. ìEla entrou depois que saÌ do
jornal.î
ìEla È repÛrter fotogr·fica, e faz free lances para revistas
nacionais. Poder· vir ao Condado de Moose na prÛxima primavera e
fazer uma reportagem com fotos
sobre as minas abandonadas. Nada mau!î
ìNada mauî, repetiu Qwilleran calmamente.
Ele ainda estava excepcionalmente calmo quando embarcaram no
pequenino avi„o do TGIF depois da meia-noite. Ocupou o assento da
janela e, quando se virou para
ouvir Junior, pÙde ver um homem sentado do outro lado do corredor,
segurando uma revista aberta. O passageiro olhou a mesma p·gina
durante todo o vÙo.
Ele n„o est· lendo, pensou Qwilleran. Est· ouvindo. E ele n„o È
daqui. NinguÈm no Condado de Moose tem aquela frescura de camisa de
colarinho abotoado.
No terminal do aeroporto, o estranho dirigiu-se a um balc„o
para alugar um carro.
ìJuniorî, resmungou Qwilleran, ìquem È o cara da capa preta?î
ìNunca o vi antesî, disse Junior. ìParece um caixeiro-
viajante.î
O homem n„o era nenhum caixeiro-viajante, Qwilleran disse a si
mesmo. Havia algo em seu andar, em seu jeito, na maneira como ele
avaliava o que estava ‡ sua
volta...
Enquanto se dirigiam de volta para Pickax, de manh„ bem cedo,
Junior finalmente mostrou sinais de falta de entusiasmo e percebeu o
silÍncio de preocupaÁ„o de
Qwilleran. ìAlguma coisa errada em sua casa, Qwill? VocÍ disse que
era uma emergÍncia.î
ì… uma emergÍncia, mas n„o em minha casa. Sua m„e telefonou
para minha governanta, e a sra. Cobb ligou para o Clube da Imprensa.
VocÍ precisa chegar em casa
rapidamente. N„o h· nenhuma tempestade indo para l·; menti para vocÍ
sobre isso.î Qwilleran virou ‡ direita no farol.
ìEi! Para onde est· indo? VocÍ n„o est· me levando ‡ fazenda?î
ìEstamos indo para o hospital. Houve um acidente. Um acidente
de carro.î
ìMeu pai!î, exclamou Junior. ì… muito grave?î
ìMuito. Sua m„e est· lhe esperando no hospital. N„o sei como
dizer isso, Junior, mas tenho de conseguir lhe contar. Seu pai
morreu instantaneamente. Estava
na ponte ó a Velha Ponte de Pranchas.î
Eles pararam em frente ‡ porta lateral do hospital. Junior
pulou do carro sem dizer uma palavra e entrou ‡s pressas no prÈdio.
DOIS
SEGUNDA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO. ìUma nuvem pesada cobre todo o
condado, com possibilidade de neve antes do anoitecer. A temperatura
neste momento em Pickax È
de 5,5 graus negativos, com o agravante de um vento frio de 23,5
abaixo de zero.î ó Assim disse o meteorologista da WPKX.
Na segunda-feira de manh„, as escolas, lojas, escritÛrios e
restaurantes de Pickax estiveram fechados atÈ a noite ó para o
funeral. O dia estava frio, cinzento,
˙mido e deprimente. Todavia, uma multid„o rodeou a Velha Igreja de
Pedra no Park Circle. Outros espectadores amontoaram-se no pequeno
parque circular ó tiritando,
batendo com os pÈs no ch„o, balanÁando os braÁos, esfregando as m„os
enluvadas, qualquer coisa para esquentar, e isso incluÌa um furtivo
gole de uma garrafinha em
casos de desespero. Eles estavam aguardando para assistir ‡ quebra
de um recorde: o mais longo cortejo f˙nebre desde 1904.
Carros de polÌcia bloquearam o centro da Rua Principal para
facilitar a formaÁ„o do cortejo. Carros levando bandeiras roxas no
p·ra-choque estavam alinhados
em quatro fileiras de um lado a outro da rua.
Qwilleran, circulando no meio da multid„o no parque, observava
as fisionomias e prestava atenÁ„o no baixo e respeitoso sussurro de
vozes. Meninos pequenos que
escalavam a fonte para uma melhor vis„o eram enxotados por um
oficial da polÌcia e repreendidos quando gritavam ou corriam no meio
da multid„o.
Encontravam-se reunidos dentro da igreja os numerosos ramos do
cl„ dos Goodwinter, assim como oficiais da cidade, membros da C‚mara
do ComÈrcio e da direÁ„o
do Country Club. Fora da igreja estavam os leitores do Picayune:
homens de negÛcios, donas-de-casa, fazendeiros, aposentados,
garÁonetes, trabalhadores, caÁadores.
Estavam assistindo a um evento do qual se lembrariam por toda a vida
e descreveriam para as futuras geraÁıes, exatamente como seus avÛs
haviam descrito o funeral
de Ephraim Goodwinter.
Entre eles encontrava-se um homem estranho ‡ cena. Ele vagava
no meio da multid„o, olhando atentamente em todas as direÁıes,
examinando os rostos. Estava usando
uma capa imperme·vel preta, e Qwilleran imaginava que ela teria um
forro pesado; o frio estava de arrepiar.
Um caÁador usando camuflagem laranja e preta estava resmungando
para um homem que usava um bonÈ e tinha uma bochecha cheia de rapÈ.
ìVai ser um cortejo longo.
Maior que o do capit„o Fugtree, parece.î
O fazendeiro mascou do outro lado. ìPerto de uns cem, eu
calculo. O do capit„o tinha setenta e cinco, disseram no jornal.î
ìSorte que puderam enterr·-lo antes da neve cair. ëA Grandeí
est· se movendo nesta direÁ„o, disseram no r·dio.î
ìN„o se pode acreditar em nada que dizem no r·dio. Aquela
tempestade vinda do Canad· acabou antes de chegar a qualquer ponto
perto da fronteira.î
ìO que aconteceu?î, perguntou o caÁador. ìO acidente, quero
dizer.î
ìVelha Ponte de Pranchas. … um absurdo! TÌnhamos pedido ao
condado para remover o que estivesse quebrado e alargar a
desgraÁada. Disseram que ele bateu no corrim„o
de pedra, mergulhou de cabeÁa e aterrissou nas pedras do rio. O
carro pegou fogo. O caix„o est· lacrado, ouvi dizer.î
ìEles deveriam processar alguÈm.î
ìProvavelmente estava em alta velocidade. Deve ter batido num
veado.î
ìOu podia estar numa corrida de sexta-feira ‡ noiteî, disse o
caÁador com um sorriso irÙnico.
ìN„o ele! Ela È a ˙nica que freq¸enta bares e boates. Com ele
nunca acontecia nada sen„o trabalho, trabalho, trabalho. Dormiu no
volante, aposto. FamÌlia inteira
de azarados. VocÍ sabe o que aconteceu ao velho.î
ìSim, mas ele provavelmente o merecia, pelo que ouvi.î
ìE depois foi o tio. Tem coisa suspeita sobre aquela histÛria!î
ìE o avÙ. Eles nunca descobriram a verdade sobre o que
aconteceu com ele. O que far„o com o jornal agora?î
ìO rapaz tomar· contaî, disse o fazendeiro. ìQuarta geraÁ„o.
Sabe-se l· o que ele vai querer fazer. Esses jovens v„o pra escola e
voltam com idÈias malucas.î
As vozes silenciaram quando o sino comeÁou a tocar uma ˙nica
nota solene, e o caix„o foi levado da igreja, seguido pela famÌlia
desolada. A vi˙va de vÈu, andando
lentamente, foi acompanhada por seu filho mais velho. Junior ia ao
lado de sua irm„ que veio de Montana. Na calÁada e no parque, as
pessoas da cidade se cruzavam
e os homens tiravam seus chapÈus. Houve uma longa espera enquanto as
pessoas de luto se dirigiam para os carros, dirigidos por jovens de
jaquetıes pretos e chapÈus
de pele preta. A um sinal, os homens de uniforme entraram em fila e
ergueram os instrumentos de lat„o. Ent„o, com a Banda Funer·ria de
Pickax tocando uma marcha
l˙gubre, a longa fila de carros comeÁou a se movimentar.
Qwilleran abaixou as abas laterais de seu chapÈu de inverno,
virou para cima a gola do casaco e seguiu pelo parque para o lugar
que ele agora chamava de lar.
A residÍncia Klingenschoen, herdada por Qwilleran, era uma das
cinco edificaÁıes importantes do Park Circle, onde a Rua Principal
dividia e rodeava um pequeno
pedaÁo de gramado, com bancos de pedra e uma fonte tambÈm de pedra.
De um lado do cÌrculo estavam a Velha Igreja de Pedra, e a Pequena
Igreja de Pedra e um respeit·vel
Pal·cio da JustiÁa. Em frente, do outro lado do parque, estavam a
biblioteca p˙blica e a mans„o K, como os naturais de Pickax a
chamavam. Um cubo maciÁo feito de
pedra com trÍs pavimentos, a mans„o ocupava sua ·rea espaÁosa com a
rÈgia seguranÁa de que era a construÁ„o mais impressionante e mais
cara da cidade.
Para um homem que escolhera passar sua vida adulta em
apartamentos e hotÈis, sempre se mudando como um cigano, a
residÍncia palaciana era um desconforto, um
embaraÁo. Qwilleran acabaria doando-a ‡ cidade como museu, mas por
cinco anos estava condenado a viver com o marco do consumo conspÌcuo
de Klingenschoen: amplos
cÙmodos com mais de quatro metros de altura e madeira trabalhada;
toneladas de candelabros de cristal e uma grande quantidade de
tapetes orientais; inestim·veis
antig¸idades francesas e inglesas e objetos de arte que valiam
milhıes.
Qwilleran resolveu seu problema mudando-se para o velho
alojamento dos empregados acima da garagem, enquanto a governanta
ficou ocupando a suntuosa suÌte na
casa principal.
Governanta era um termo errÙneo para Iris Cobb. Outrora
negociante e apreciadora de antig¸idades, vinda L· de Baixo, ela
agora tinha a funÁ„o de administradora
da casa, arquivista da coleÁ„o e curadora de uma obra-prima de
arquitetura destinada a se tornar um museu. Era tambÈm uma
cozinheira obsessiva, que gostava de se
divertir na cozinha ó uma figura atarracada em um avental cor-de-
rosa desbotado. Apesar das credenciais de sua carreira, a vi˙va Cobb
cozinhava, sem parar, doces
e tortas para agradar o sexo oposto e era inclinada a contemplar os
homens com adoraÁ„o, atravÈs de seus Ûculos de lentes espessas.
A sra. Cobb tinha um abundante guisado de ostras esperando
Qwilleran quando ele voltou do funeral. ìOlhei pela janela e vi
todos os carrosî, disse ela. ìO cortejo
devia ter uns oitocentos metros!î
ìO mais longo da histÛria de Pickaxî, disse Qwilleran. ìN„o foi
simplesmente o funeral de um homem; pode vir a ser o funeral de um
jornal centen·rio.î
ìO senhor viu a vi˙va? Ela est· passando por um terrÌvel
momento.î A sra. Cobb sentia-se emocionalmente ligada a qualquer
mulher que perdesse o marido, tendo
ela prÛpria vivenciado duas tragÈdias como essa.
ìOs trÍs filhos adultos da sra. Goodwinter estavam com ela ó
tambÈm uma mulher mais velha, provavelmente a vovÛ Gage de Junior.
Uma mulher pequenina, mas t„o
ereta quanto um brigadeiro... Algum telefonema enquanto eu estava
fora, sra. Cobb?î
ìN„o, mas um ajudante de cozinha do Old Stone Mill trouxe
alguns bolinhos de fÌgado de porco. … uma nova receita, e o chef
gostaria de ter sua opini„o. Eu os
coloquei no freezer.î
Qwilleran grunhiu aborrecido. ìDarei ‡quele palhaÁo uma opini„o
ó r·pida! Eu n„o tocaria em um bolinho de fÌgado de porco nem se ele
me pagasse!î
ìOh, n„o s„o alimentos para pessoas, sr. Q! S„o para os gatos.
O chef est·. experimentando uma linha de congelados para animais
domÈsticos.î
ìBem, tire uns dois do freezer e os fedelhos mimados podem
experiment·-los na ceia. A propÛsito, a senhora notou alguns livros
no ch„o da biblioteca? Koko est·
empurrando-os das prateleiras, e n„o aprovo seu novo hobby.î
ìEu a arrumei esta manh„ e n„o notei nada.î
ìEle anda particularmente atraÌdo por aqueles pequenos volumes
de Shakespeare com encadernaÁ„o de couro de porco. Ontem encontrei
Hamlet no ch„o.î
Atr·s das lentes grossas da sra. Cobb havia um pestanejar
maroto. ìO sr. acha que ele sabe que eu tinha um presunto cozido na
geladeira?î
ìEle tem caminhos tortuosos de comunicaÁ„o, sra. Cobb, mas esse
seria um novo e indignoî, disse Qwilleran. ìQue dia È hoje? Segunda-
feira? Suponho que vai sair
hoje ‡ noite. Se isso acontecer, darei comida aos gatos.î
A face da governanta iluminou-se. ìHerb Hackpole vai me levar
para jantar fora ó em algum lugar especial, disse ele.
Espero que seja no Old Stone Mill. Dizem maravilhas da comida
desde que o novo chef de cozinha assumiu o lugar.î
Qwilleran soprou o bigode, um sinal particular de desaprovaÁ„o.
ìJ· È tempo de o avarento lev·-la para jantar fora! Parece-me que
vocÍ sempre vai para a casa
dele e cozinha.î
ìMas eu gosto!î, disse a sra. Cobb com os olhos brilhando.
Hackpole era um negociante de carros usados com fama de ser
antip·tico, mas ela o achava atraente. O homem tinha diabos
vermelhos tatuados nos braÁos, usava
seus poucos cabelos em um corte rente ‡ cabeÁa e freq¸entemente
deixava de fazer a barba, mas ela gostava de homens rudes. Qwilleran
se lembrava que seu ˙ltimo marido
fora um bruto inculto e ela o amara profundamente. Agora, desde que
comeÁara a namorar Hackpole, sua face alegre e redonda tinha-se
tornado radiante.
ìSe o senhor quiser trazer alguÈm para o jantarî, disse a sra.
Cobb, ìpode servir o presunto cozido, e farei a salada com gengibre
que o senhor gosta, e colocarei
uma fÙrma de batata-doce no forno. Tudo o que o senhor tem a fazer È
tir·-la quando o apito tocar.î Ela sabia da incapacidade de
Qwilleran na cozinha.
ì… muita gentileza suaî, disse ele. ìEu poderia convidar a sra.
Duncan.î
ìOh, seria Ûtimo!î A express„o da governanta era conspiratÛria,
como se pressentisse um romance. ìVou pÙr na mesa de marchetaria da
biblioteca uma toalha da
Madeira, velas e tudo. Ser· agrad·vel e aconchegante para os dois. O
sr. OíDell pode acender a lareira com aquelas lenhas de macieira.
Elas exalam um cheiro t„o
bom!î
ìN„o faÁa isso t„o explicitamente sedutorî, pediu Qwilleran. ìA
dama È muito decente.î
ìEla È uma pessoa ador·vel, sr. Q, e tem a idade certa para o
senhor, se n„o se importa de eu estar falando assim. Ela tem muita
personalidade para uma bibliotec·ria.î
ì… uma nova tendÍnciaî, disse ele. ìAs bibliotecas agora tÍm
menos livros, e muitos audiovisuais... e festas com champanhe... e
personalidades por todos os
cantos.î
Depois do almoÁo, Qwilleran deu uma volta pelo Park Circle atÈ
a biblioteca p˙blica, que parecia um templo grego. Fora construÌda
pelo fundador do Picayune
na virada do sÈculo, e um retrato de Ephraim Goodwinter estava
pendurado no sagu„o de entrada, embora fosse parcialmente ofuscado
por uma exposiÁ„o de novos modelos
de vÌdeo e tivesse um corte na tela mal consertado.
A multid„o do hor·rio de saÌda escolar ainda n„o se havia
aglomerado na biblioteca com as liÁıes de casa, de modo que quatro
jovens funcion·rias amavelmente
se apressaram para ajudar Qwilleran. As jovens eram sempre atraÌdas
pelo homem de bigode exuberante e olhos tristes. AlÈm disso, ele
participava do conselho diretor
da biblioteca e era o homem mais rico da cidade.
Ele fez ‡s funcion·rias uma simples pergunta e todas elas
saÌram apressadas em diversas direÁıes ó uma para o cat·logo de
fichas, uma para a prateleira de histÛria
local, e duas para o computador. A resposta proveniente de todas as
fontes era negativa. Ele lhes agradeceu e se dirigiu ao escritÛrio
da bibliotec·ria-chefe no
segundo andar.
Carregando sua capa de lenhador e chapÈu de madeireiro,
Qwilleran subiu a escada saltando de trÍs em trÍs degraus, pensando
em coisas agrad·veis. Polly Ducan
era uma mulher charmosa, ainda que enigm·tica, e tinha uma voz que
ele achava calma e estimulante.
De sua escrivaninha, ela olhou para cima e deu-lhe um cordial
mas encorajador sorriso. ìQue surpresa agrad·vel, Qwill! Que miss„o
especial traz vocÍ atÈ aqui
com essa pressa?î
ìVim principalmente para ouvir sua voz suaveî, disse ele,
jogando um certo charme. E em seguida citou um de seus versos
preferidos de Shakespeare: ìA voz dela
foi sempre agrad·vel, sussurrante e acariciadora, excelente coisa na
mulherî.
ì… do Rei Lear, quinto ato, cena trÍsî, ela retorquiu
prontamente.
ìPolly, sua memÛria È incrÌvel!î, disse ele. ìEstou assombrada
e n„o sei o que dizer.î
ìEssa È a fala de Hermia, no terceiro ato, cena dois, de Sonho
de uma noite de ver„o... N„o olhe t„o surpreso, Qwill. Contei-lhe
que meu pai era especialista
em Shakespeare. Quando crianÁas conhecÌamos as peÁas como nossos
amiguinhos sabiam as mÈdias de rebatidas dos grandes times... VocÍ
foi ao funeral esta manh„?î
ìEu o observei do parque, e ele me deu uma idÈia. De acordo com
a falange das ansiosas assistentes do andar de baixo, ninguÈm jamais
escreveu uma histÛria do
Picayune. Eu gostaria de tentar isso. O que existe para trabalhar
sobre isso?î
ìDeixe-me pensar... VocÍ poderia comeÁar com os Goodwinter em
nossa coleÁ„o genealÛgica.î
ìVocÍ tem exemplares antigos do jornal?î
ìSomente dos ˙ltimos vinte anos. Os anteriores foram destruÌdos
por ratos ou por canos de vapor que explodiram ou por m·
administraÁ„o. Mas estou certa de que
o escritÛrio do Picayune tem um arquivo completo.î
ìH· alguÈm que eu possa entrevistar? AlguÈm que se lembraria de
sessenta, setenta e cinco anos atr·s?î
ìVocÍ poderia verificar no Clube dos Veteranos. Todos eles tÍm
mais de oitenta anos. Euphonia Gage È a presidente.î
ì… aquela mulher que dirige um Mercedes e buzina demais?î
ìUma descriÁ„o sucinta! O velho Goodwinter era seu genro, e
como ela tem uma reputaÁ„o de franqueza brutal poderia fornecer
algumas informaÁıes preciosas.î
ìPolly, vocÍ È um tesouro! A propÛsito, vocÍ est· livre para
jantar esta noite? A sra. Cobb est· preparando uma comida que È boa
demais para um solteiro solit·rio.
Pensei que vocÍ poderia concordar em compartilh·-la.î
ìCom prazer! N„o devo ficar atÈ muito tarde, mas espero que
haja tempo para ler em voz alta apÛs o jantar. VocÍ tem uma voz
maravilhosa, Qwill.î
ìObrigado.î Ele alisou o bigode com prazer. ìIrei para casa e
farei um gargarejo.î
Virando-se para ir embora, ele olhou de relance do segundo
andar para a sala de leitura. ìQuem È aquele homem l· * ó com uma
pilha de livros sobre a mesa?î
ìUm historiador L· de Baixo que pesquisa sobre os primeiros
trabalhos de mineraÁ„o. Ele perguntou se eu poderia recomendar
alguns bons restaurantes, e sugeri
o Stephanieís e o Old Stone Mill. VocÍ tem outras idÈias?î
ìAcho que simî, disse Qwilleran. Ele afundou seu chapÈu na
cabeÁa de forma impetuosa e fez barulho pela galeria com suas botas
amarelas, parando ‡ mesa onde
o estranho estava sentado.
Parodiando um amig·vel nativo do norte do paÌs, ele disse:
ìAlÙ! A dama ali diz que vocÍ est· procurando um lugar para comer.
Para uma comida realmente boa,
experimente o Ottoís Tasty Eats. VocÍ pode comer de tudo por cinco
dÛlares. Quanto tempo ficar· por aqui?î
ìAtÈ terminar meu trabalhoî, disse o historiador rispidamente,
debruÁando-se sobre seu livro.
ìSe quiser um gole de cerveja pode tentar o Hotel Booze. Bons
sanduÌches tambÈm.î
ìObrigadoî, disse o homem em tom de dispensa.
ìVejo que est· lendo sobre aquelas velhas minas. Meu avÙ morreu
em uma caverna em 1913. Eu n„o era nascido ainda. Tem visitado
algumas velhas minas?î
ìN„oî, disse o homem, fechando seu livro com forÁa e empurrando
sua cadeira para tr·s.
ìMais perto daqui h· o Dimsdale. Eles servem jantar. Bom lugar
para pegar um prato de vagens com salsichas.î
Agarrando sua capa preta, o estranho caminhou rapidamente para
a escadaria.
Satisfeito com a exasperaÁ„o do homem e com seu prÛprio
desempenho, Qwilleran endireitou o chapÈu, dobrou a capa e seguiu
seu caminho. Sabia, pela Ûbvia falta
de interesse do homem, que ele n„o era o que alegava ser.
¿s 5h30 Herb Hackpole chegou para pegar sua companheira de
jantar, estacionando ao lado da entrada para carros e buzinando. A
sra. Cobb saiu apressada pela
porta dos fundos, t„o excitada quanto uma menina em seu primeiro
encontro com o namorado.
¿s 5h45 Qwilleran alimentou os gatos. Os bolinhos de fÌgado de
porco, quando degelados, tornaram-se uma papa cinzenta que causava
avers„o, mas os siameses abaixaram-se
sobre o prato e devoraram a inovaÁ„o do chef com as caudas coladas
ao ch„o, denotando total satisfaÁ„o.
¿s 6h00 Polly Duncan chegou ó a pÈ ó tendo deixado seu velho
carrinho vermelho atr·s da biblioteca. Se ele fosse visto na entrada
circular para carros da mans„o
K, os fofoqueiros de Pickax teriam um dia muito agitado. Todo mundo
conhecia o carro de todo mundo ó marca, modelo, ano e cor.
Polly n„o era t„o jovem e esguia como as mulheres que ele
namorara L· Embaixo, mas era uma mulher interessante, com uma voz
que ‡s vezes o deixava tonto, e
parecia ter um abraÁo confort·vel, embora ele n„o tivesse testado
sua teoria. A bibliotec·ria mantinha uma certa reserva, apesar de
sua demonstraÁ„o de amizade,
e sempre insistia em voltar para casa cedo.
Ele saudou-a na porta da frente, uma obra-prima entalhada, de
lat„o polido. ìOnde est· a neve que prometeram?î, perguntou ele.
ìTodos os dias em novembro o WPKX prevÍ neve como um caso de
polÌciaî, disse ela, ìe mais cedo ou mais tarde eles acertar„o...
Esta casa nunca deixa de me surpreender!î
Ela estava contemplando maravilhada as paredes de couro ‚mbar
do vestÌbulo e a grande escadaria extravagantemente ampla e
elaboradamente balaustrada. O candelabro
ofuscante era de cristal Baccarat. Os tapetes eram antig¸idades da
¡sia Menor. ìEsta casa n„o pertence a Pickax; ela pertence a Paris.
… impossÌvel acreditar que
os Klingenschoen possuÌssem esses tesouros e ninguÈm soubesse
disso.î
ìFoi a vinganÁa dos Klingenschoen ó por n„o serem aceitos
socialmente.î Qwilleran acompanhou-a atÈ os fundos da casa. ìVamos
jantar na biblioteca, mas a sra.
Cobb quer que eu lhe mostre seu jardim mÛvel de ervas no sol·rio.î
O cÙmodo de ch„o de pedra tinha grandes vidraÁas, algumas
seringueiras antigas e cadeiras de vime para se relaxar no ver„o; a
nova aquisiÁ„o de inverno era
uma carreta de ferro batido, com oito vasos de barro etiquetados com
os nomes: hortel„, camomila, tomilho, basil etc.
ìPode ser girada durante o dia para aproveitar melhor a luz do
solî, explicou. ìIsto È ó se a WPKX nos permitir ter alguma.î
Polly acenou com a cabeÁa em sinal de aprovaÁ„o. ìAs ervas
gostam de sol, mas n„o de muito calor. Onde a sra. Cobb achou essa
engenhoca inteligente?î
ìEla desenhou-a, e um amigo dela a construiu em sua
serralheria. Talvez vocÍ conheÁa Hackpole, o vendedor de carros
usados.î
ìSim, justamente sua oficina guardou meu carro no inverno. VocÍ
est· gostando de seu novo carro com traÁ„o dianteira, Qwill?î
ìEu saberei melhor quando a neve cair.î
Na biblioteca, as l‚mpadas estavam acesas, a lenha em chamas na
lareira e a mesa posta como uma exposiÁ„o ofuscante de porcelana,
cristal e prata. As quatro
paredes de livros eram salientadas por bustos de m·rmore de Homer,
Dante e Shakespeare.
ìOs Klingenschoen leram esses livros?î, perguntou Polly.
ìAcho que eram principalmente para decoraÁ„o, exceto umas
poucas novelas picantes dos anos 20. Achei no sÛt„o caixas de livros
de mistÈrios e romances.î
ìPelo menos alguÈm estava lendo. Ainda h· esperanÁa para a
palavra impressa.î Ela entregou a ele um livro com capa gasta e
desbotada. ìEis algo que pode lhe
interessar ó Picturesque Pickax, publicado antes da Primeira Guerra
Mundial. Na p·gina com o marcador h· uma fotografia do prÈdio do
Picayune com os empregados em
pÈ na calÁada.î
Qwilleran achou a foto de homens com fisionomias ansiosas e
bigodes grandes, colarinhos altos, aventais de couro, viseiras,
ligas no braÁo e cabelo emplastrado
repartido ao meio. ìPareciam estar diante de um pelot„o de
fuzilamentoî, disse. ìObrigado. Ser· ˙til.î
Ele serviu um aperitivo para sua convidada. Sherry seco era o
preferido dela; um copo era seu limite. Para ele, um suco de uva
branca.
ìVotre santÈ!î, ele brindou, fitando-a.
ìSantÈ!î, ela respondeu com um olhar contido.
Ela usava um conjunto cinza-escuro, blusa branca e mocassim
castanho-avermelhado que parecia ser seu uniforme da biblioteca, mas
tentou dar mais vida com uma
echarpe colorida. Estar na moda n„o era uma de suas metas, e seu
corte de cabelo austero n„o estava na ˙ltima onda, mas sua voz...!
Era sempre suave, dÛcil e baixa,
e conhecia Shakespeare de tr·s para a frente e de frente para tr·s.
Depois de um instante de silÍncio, durante o qual Qwilleran se
perguntava o que Polly estaria pensando, ele disse: ìVocÍ se lembra
daquele cara que se dizia
historiador na sala de leitura? Ele estava com uma pilha de livros
sobre o trabalho nas velhas minas. Mas duvido que esteja falando a
verdade.î
ìPor que vocÍ diz isso?î
ìSua postura relaxada. A forma como segurava o livro. Ele n„o
demonstrava a ‚nsia ·vida do pesquisador por informaÁıes, e n„o
estava tomando notas. Estava lendo
preguiÁosamente para matar o tempo.î
ìEnt„o quem È ele? Por que disfarÁaria sua identidade?î
ìAcho que ele È um investigador. NarcÛticos ó FBI ó alguma
coisa assim.î
Polly olhou desconfiada. ìEm Pickax?î
ìTenho certeza de que h· v·rios esqueletos nos arm·rios locais,
Polly, e a maioria do pessoal daqui sabe tudo sobre eles. VocÍ tem
aqui alguns fofoqueiros de
categoria mundial.î
ìEu n„o os chamaria de fofoqueirosî, disse, com ar de defesa.
ìEm cidades pequenas as pessoas compartilham as informaÁıes. … uma
forma de carinho.î
Qwilleran ergueu uma sobrancelha, maliciosamente. ìBem, o
estranho misterioso completar· sua miss„o antes que a neve caia ou
ficar· fazendo pose na sala de
leitura atÈ a primavera chegar... Outra pergunta. O que acontecer·
ao Picayune agora que o velho se foi? Algum palpite?î
ìSer· provavelmente uma morte tranq¸ila ó uma idÈia de que
viveu seu tempo.î
ìVocÍ conheceu bem os pais de Junior?î
ìSÛ casualmente. O velho era fan·tico por trabalho ó um homem
agrad·vel, mas de forma alguma social. Gritty gosta da vida do
Country Club: golfe, baralho, jantares
danÁantes. Eu queria que ela participasse do meu conselho diretor,
mas era extremamente entediante para o seu gosto.î
ìGritty? … o nome da sra. Goodwinter?î
ìNa verdade, Gertrude, mas h· uma certa panelinha aqui que
aderiu a seus apelidos de adolescÍncia: Muffy, Buffy, Bunky, Dodo.
Devo admitir que a sra. Goodwinter
tem muita coragem, por bem ou por mal. Ela È como a m„e. Euphonia
Gage È uma mulher corajosa.î
Um apito soou distante e Qwilleran acendeu as velas, colocou
uma fita de FaurÈ no toca-fitas e serviu o jantar.
ìObviamente vocÍ conhece todo mundo em Pickaxî, comentou ele.
ìPara uma recÈm-chegada, sou aceit·vel. Estou aqui h·
somente... vinte e cinco anos.î
ìEu tinha a impress„o de que vocÍ era do Leste. Nova
Inglaterra?î
Ela concordou com a cabeÁa. ìQuando estava na faculdade, casei-
me com um jovem de Pickax e viemos para c· administrar uma livraria
de sua famÌlia. Infelizmente
ela foi fechada logo depois disso ó quando meu marido morreu ó mas
eu n„o quis voltar para o Leste.î
ìEle devia ser muito jovem.î
ìMuito jovem. Era volunt·rio do corpo de bombeiros. Eu me
lembro de um dia seco de ventania, em agosto. Nossa livraria ficava
a uma quadra do Corpo de Bombeiros,
e quando a sirene soou, meu marido saiu depressa da loja. O tr·fego
parou completamente e homens vinham correndo de todas as direÁıes ó
disparados, ansiosos, movendo
os braÁos para todos os lados. O mec‚nico do posto de gasolina, um
dos jovens pastores, um garÁom, o homem da cutelaria ó todos
correndo como se suas vidas dependessem
disso. Ent„o carros e caminhıes com luzes giratÛrias pararam e
estacionaram a esmo, e os motoristas pularam para fora e correram
para a sede do Corpo de Bombeiros.
AÌ as portas foram abertas, o tanque e a mangueira foram tirados, e
os homens subiam nos caminhıes e se vestiam com roupas apropriadas
para enfrentar o fogo.î
ìVocÍ descreve isso vividamente, Polly.î
Seus olhos se encheram de l·grimas. ìFoi um fogo no celeiro, e
ele foi morto por uma viga que caiu.î
Houve um longo silÍncio.
ì… uma histÛria tristeî, disse Qwilleran.
ìOs bombeiros eram t„o conscienciosos. Quando a sirene tocava,
eles abandonavam tudo e corriam. No meio da noite acordavam de um
sono profundo, vestiam algumas
roupas e corriam. Ainda eram criticados: chegaram tarde demais...
n„o havia homens suficientes... a ·gua das bombas de incÍndio n„o
era suficiente... os equipamentos
estavam quebradosî, observou. ìEles se esforÁavam bastante. Ainda se
esforÁam. S„o todos volunt·rios, vocÍ sabe.î
ìJunior Goodwinter È um volunt·rioî, disse Qwilleran, ìe seu
bip est· sempre soando no meio de alguma coisa... O que vocÍ fez
depois daquele dia de ventania
em agosto?î
ìFui trabalhar na biblioteca e encontrei um consolo aqui.î
ìPickax tem uma dimens„o humana que È ó como direi? ó
confortante. Tranq¸ilizadora. Mas por que todos nÛs somos obcecados
com os boletins meteorolÛgicos?î
ìEstamos prÛximos aos elementosî, disse Polly. ìO clima afeta
tudo: a agricultura, a extraÁ„o da madeira, a pescaria comercial, os
esportes ao ar livre. E todos
nÛs dirigimos longas dist‚ncias pelas estradas do paÌs. N„o h· t·xis
que possamos chamar em um dia ruim.î
A sra. Cobb havia deixado a cafeteira ligada e potes de musse
de chocolate na geladeira. A refeiÁ„o acabou de forma agrad·vel.
ìOnde est„o os gatos?î, perguntou Polly.
ìTrancados na cozinha. Koko andou empurrando livros da
prateleira. Ele acha que È um bibliotec·rio. Yum Yum, por outro
lado, È simplesmente uma gata que persegue
sua cauda e rouba clipes de papel e esconde coisas sob o tapete.
Sempre que meu pÈ tropeÁa em um calombo no tapete, eu estremeÁo.
Ser· meu relÛgio de pulso? Ou um
rato? Ou meus Ûculos de leitura? Ou um envelope amassado da cesta de
lixo?î
ìQue tÌtulos Koko recomendou?î
ìEle est· gostando muito de Shakespeareî, disse Qwilleran.
ìPode ser por causa das capas de couro. Logo que cheguei ele
empurrou Sonho de uma noite de ver„o
da prateleira.î
ì… uma coincidÍnciaî, disse Polly. ìMeu nome vem de uma das
personagens.î Ela fez uma pausa e esperou que ele adivinhasse.
ìHipÛlita?î
ìCorreto! Meu pai deu nome a todos nÛs a partir dos personagens
das peÁas. Meus irm„os s„o Marco Antonio e Brutus, e minha pobre
irm„ OfÈlia teve sempre, desde
a quinta sÈrie, de tolerar coment·rios obscenos... Por que vocÍ n„o
solta os gatos? Eu gostaria de ver Koko em aÁ„o.î
Quando eles foram soltos, Yum Yum andou elegantemente para a
biblioteca, colocando uma pata na frente da outra e procurando um
colo livre, mas Koko ostentava
sua independÍncia adiando sua entrada. SÛ quando Qwilleran e sua
convidada ouviram um plunk concluÌram que Koko estava na sala. No
ch„o jazia o volume fino de Henrique
VIII.
Qwilleran disse: ìVocÍ tem de admitir que ele sabe o que est·
fazendo. H· uma cena forte desempenhada por uma mulher na peÁa ó
quando a rainha enfrenta os dois
cardeais.î
ì… terrÌvel!î, disse Polly. ìKatherine diz ser uma pobre e
fraca mulher, mas destrÛi os dois homens s·bios. ëTendes rostos de
anjos, mas o cÈu conhece vossos
coraÁıes!í VocÍ j· se perguntou sobre a verdadeira identidade de
Shakespeare, Qwill?î
ìEu li que as peÁas podem ter sido escritas por Jonson ou
Oxford.î
ìEu acho que Shakespeare era mulher. H· muitos papÈis femininos
fortes e falas maravilhosas para mulheres.î
ìE h· papÈis masculinos fortes e falas maravilhosas para
homensî, ele retorquiu.
ìSim, mas sustento que uma mulher pode escrever papÈis
masculinos fortes com mais sucesso do que um homem pode escrever
bons papÈis para mulheres.î
ìHummî, murmurou Qwilleran com polidez.
Koko agora estava sentado com orgulho na escrivaninha,
obviamente esperando por alguma coisa, e Qwilleran se sentiu
obrigado a ler o prÛlogo da peÁa. Depois
Polly fez uma leitura estarrecedora da cena de confronto da rainha.
ìMiau!î, ronronou Koko.
ìAgora preciso irî, disse ela, ìantes que meu senhorio comece a
ficar preocupado.î ìSeu senhorio?î
ìO sr. MacGregor È um am·vel vi˙voî, ela explicou. ìAluguei uma
pequena casa em sua fazenda, e ele acha que mulheres n„o deveriam
sair sozinhas ‡ noite. Fica
acordado esperando que eu entre com o carro.î
ìVocÍ j· testou sua teoria sobre Shakespeare com seu senhorio?
î, perguntou Qwilleran.
Depois de Polly ter dito um gracioso ìobrigadaî e um r·pido
ìboa-noiteî, Qwilleran ficou pensando em sua desculpa para ir embora
cedo. Pelo menos Koko n„o a
expulsara de casa, como fizera com outras visitas femininas no
passado. Isso j· era um bom sinal.
Qwilleran estava tirando a louÁa do jantar e colocando a
cozinha em ordem, quando a sra. Cobb voltou de seu encontro, rubra e
feliz.
ìOh, n„o precisa fazer isso, sr. Qî, disse ela.
ìN„o h· problema algum. Obrigado pela refeiÁ„o soberba. Como
foi seu jantar?î
ìFomos ao Old Stone Mill. A comida est· muito melhor agora. Eu
comi uma esplÍndida truta ao molho de vinho. Herb pediu steak Diane,
mas n„o gostou do molho.î
Aquele cara, pensou Qwilleran, preferiria ketchup. Para a sra.
Cobb ele disse: ìA sra. Duncan estava me contando sobre a brigada de
incÍndio volunt·ria. Hackpole
n„o È bombeiro?î
ìSim, e ele teve algumas experiÍncias emocionantes ó retirando
crianÁas de um prÈdio em chamas, reanimando pessoas com respiraÁ„o
boca a boca, juntando vacas
de um celeiro incendiado!î
Interessante se for verdade, pensava Qwilleran. ìTraga-o aqui
para um drinque na prÛxima noite em que vocÍs saÌremî, sugeriu.
ìGostaria de saber como funciona
a brigada de incÍndio de uma cidade pequena.î
ìOh, obrigada sr. Q! Ele ficar· contente. Ele acha que o senhor
n„o gosta dele por tÍ-lo levado ao tribunal uma vez.î
ìNada pessoal. Simplesmente objetei por ter sido atacado por um
cachorro que deveria estar acorrentado, de acordo com a lei. Se a
senhora gosta dele, sra. Cobb,
tenho certeza de que ele È um bom homem.î
Quando Qwilleran estava fechando a casa para dormir, o telefone
tocou. Era a voz de Junior Goodwinter estalando de excitaÁ„o. ìEla
est· chegando. Ela chega
no vÙo de amanh„!î
ìQuem est· chegando?î
ìA repÛrter fotogr·fica que encontrei no Clube da Imprensa. Ela
diz que amanh„ o Fluxion est· publicando a coluna e vai aparecer por
todo o paÌs esta semana.
Ela quer oferecer a reportagem fotogr·fica a uma revista enquanto a
notÌcia est· quente.î
ìVocÍ contou a ela... sobre seu pai?î
ìEla diz que isso sÛ far· a reportagem mais atual. Tenho de
peg·-la no aeroporto amanh„ de manh„. Iremos buscar alguns veteranos
que costumavam trabalhar no
Pic para posarem para as fotos. VocÍ compreende o que significa
isso? Pickax ser· colocada no mapa! E poderia levar o Picayune de
volta aos bons tempos, se comeÁarmos
a pegar assinaturas de outros lugares.î
Coisas mais estranhas j· aconteceram, pensou Qwilleran.
ìTelefone para mim amanh„ ‡ noite depois da sess„o de fotos.
Coloque-me a par do que acontecer. E boa
sorte!î
Quando recolocou o telefone no gancho, ouviu um leve som,
plunk, como se outro livro aterrissasse no tapete Bokhara. Koko
estava sentado na prateleira de Shakespeare,
parecendo orgulhoso de si mesmo.
Qwilleran pegou o livro e alisou as p·ginas amarrotadas. Era
Hamlet outra vez, e uma linha na primeira cena chamou sua atenÁ„o:
ìAcaba de bater meia-noite.
Vai para a cama...î
Dirigindo-se para o gato ele disse: ìVocÍ pode pensar que È
inteligente, mas tem de parar com isso! Esses livros s„o impressos
em um refinado papel da Õndia.
Eles n„o podem ag¸entar esse tipo de tratamento.î
ìIk, ik, ikî, ronronou Koko, seguindo sua observaÁ„o com um
bocejo.
TR S
TER«A-FEIRA, 12 DE NOVEMBRO. ìNeve durante o dia, depois queda
de temperatura e mudanÁa da direÁ„o dos ventos para nordeste.î Assim
disse a WPKX, e o sr. OíDell,
empregado da casa, limpou suas p·s de neve e checou as velas de
igniÁ„o de seu limpador de neve.
Era o dia seguinte ‡ bem-sucedida estrÈia dos bolinhos de
fÌgado de porco, e Qwilleran planejou almoÁar no Old Stone Mill ó
para relatar os resultados ao chef
de cozinha, e para resolver um mistÈrio que o estava chateando.
Quem È o chef de cozinha?
Qual o seu nome?
De onde ele veio?
Quais eram suas credenciais?
E por que ninguÈm o tinha visto?
O restaurante era um antigo moinho com uma roda dí·gua
gigantesca, recentemente reformado com bom gosto. As paredes de
pedra e vigas de madeira maciÁas ficavam
expostas. O ch„o de madeira fora lixado atÈ chegar ‡ cor de mel;
todas as mesas tinham uma vis„o da roda dí·gua que rangia e girava
sem parar, embora o fluxo do
moinho tivesse secado h· setenta anos. A comida, todo mundo dizia,
era abomin·vel.
Ent„o o restaurante foi comprado pela empresa XYZ, Inc., de
Pickax, construtora dos apartamentos e condomÌnios Indian Village no
rio Ittibittiwassee. A firma
possuÌa tambÈm uma sÈrie de lojas no condado e um novo motel em
Mooseville.
Um dia, em um encontro da C‚mara do ComÈrcio, Qwilleran foi
abordado por Don Exbridge, o X da empresa XYZ. Era um varapau com um
metro e noventa e cinco, e
um sorriso que o tornara popular e bem-sucedido.
ìQwill, vocÍ tem ligaÁıes com restaurantes L· de Baixoî, disse
Exbridge. ìOnde podemos conseguir um bom chef de cozinha para o Old
Stone Mill? De preferÍncia
alguÈm que aprecie ar livre e n„o se importe de morar em uma
cabana.î
ìPensarei nisso e darei um retornoî, prometeu Qwilleran.
Ent„o as rodas comeÁaram a girar em sua mente. Hixie Rice, sua
antiga vizinha L· de Baixo... membro de um seleto grupo de
gastrÙnomos... adorava comer, e sua
figura comprovava isso... mulher jovem, inteligente... infeliz no
amor... trabalhava em publicidade e promoÁ„o... costumava falar
francÍs com Koko. Por que, perguntava-se
Qwilleran, todas as pessoas espertas estavam na publicidade,
enquanto os pensadores sÈrios que davam duro estavam no jornalismo,
ganhando menos?
A ˙ltima vez que tinha tido notÌcia de Hixie, ela estava
namorando um chef de cozinha e tendo aulas de administraÁ„o de
restaurante. E foi assim que Hixie Rice
e seu chef de cozinha aterrissaram em Pickax. Imediatamente
substituÌram o horrÌvel card·pio por pratos mais sofisticados e
novos ingredientes. O chef treinou o
antigo pessoal da cozinha, guardou as velhas frigideiras e racionou
o sal.
Quando Qwilleran foi almoÁar no Old Stone Mill, na terÁa-feira,
mal reconheceu a antiga sÛcia do Clube das Gordas Amig·veis. ìHixie,
vocÍ est· quase anorÈxica!î,
disse ele. ìVocÍ parou de colocar manteiga em seu bacon e aÁ˙car em
seu sundae de chocolate?î
ìVocÍ n„o vai acreditar, Qwill, mas trabalhar em restaurante
curou minha obsess„o por comidaî, disse. ìToda essa comida me enjoa.
Sete quilos de manteiga...
cinco quilos de fatias de queijo... duas centenas de galinhas...
trinta d˙zias de ovos! VocÍ j· viu duas centenas de galinhas
depenadas, Qwill?î
Com o peso perdido, Hixie tinha perdido tambÈm sua voz alta e
asm·tica, e seu cabelo agora parecia saud·vel e natural, em vez de
montado e envernizado. ìVocÍ
est· com uma aparÍncia excelente!î, ele lhe falou.
ìE vocÍ parece Ûtimo, Qwill. Sua voz soa diferente.î
ìParei de fumar. Rosemary convenceu-me a abandonar o cachimbo.î
ìVocÍ ainda vÍ Rosemary?î
ìN„o, ela est· morando em Toronto.î
ìToda nossa velha gangue de gastrÙnomos est· dispersa, mas
pensei que vocÍs dois estivessem destinados ‡ servid„o sagrada.î
ìHavia um choque de personalidade entre Rosemary e Kokoî, ele
explicou.
Hixie indicou-lhe um lugar perto da roda do moinho que girava.
ìEsta È considerada uma mesa privilegiadaî, disse ela, ìembora o
movimento da roda deixe alguns
de nossos clientes enjoados. … o rangido que me d· Ìmpetos de subir
nas paredes e a fita com a gravaÁ„o de um moinho acelerado tem um
efeito psicolÛgico nos que
vÍm jantar. Eles est„o gastando o tapete que leva ao banheiro.î Ela
lhe entregou o card·pio. ìO pernil de cordeiro com ratatouille est·
bom hoje.î
ìE o salm„o fresco?î
ìAcabou. VocÍ est· um pouco atrasado.î
ìFoi premeditadoî, disse Qwilleran. ìEu gostaria de falar com
vocÍ. Pode se sentar comigo?î
Ele pediu o pernil, e Hixie sentou-se com um copo de Campari e
um cigarro. ìKoko e Yum Yum gostaram dos bolinhos?î, perguntou ela.
ìDepois que comeram, um correu atr·s do outro para cima e para
baixo por duas horas, e eles s„o castrados! VocÍ descobriu um
afrodisÌaco para felinos?î
ìEsta È apenas a primeira de v·rias comidas congeladas para
gatos que queremos comercializar. O pessoal da XYZ est· nos apoiando
financeiramente. Fabulosas
Comidas Congeladas para Felinos Exigentes! Que tal?î
ìQuando vocÍ e seu parceiro ir„o visitar e falar francÍs com
Koko? VocÍs n„o viram a choÁa magnÌfica em que moro.î
ì… difÌcil fazermos visitasî, ela se desculpou. ìNÛs
trabalhamos em horas ruins. Nunca me falaram sobre isso na escola de
restaurante. N„o estou lamentando;
na verdade, estou absolutamente feliz! Eu era um fracasso, vocÍ
sabe, mas tudo mudou desde que encontrei um homem maravilhoso. Ele
n„o È alcoÛlatra, n„o consome
drogas e n„o È marido de outras mulheres.î
ìEstou muito feliz por vocÍî, disse Qwilleran. ìQuando serei
apresentado ao rapaz?î
ìEle n„o est· aqui agora.î
ìQual È seu nome? Como ele È?î
ìTony Peters, e È alto, louro e muito atraente.î
ìOnde ele aprendeu a cozinhar?î
ìMontreal... Paris... outros bons lugares.î
ìEu gostaria de conhecer o rapaz e apertar sua m„o. Afinal de
contas, sou respons·vel por trazer vocÍs dois para este paraÌso do
norte.î
ìAtualmenteî, disse Hixie, ìele est· fora da cidade. Sua m„e
teve um derrame e ele teve de ir para a FiladÈlfia.î
ìSeria melhor ele voltar antes que a neve caia ou ter· de fazer
a viagem com sapatos para neve. O aeroporto fecha apÛs ëA Grandeí.
Onde vocÍs est„o morando?î
ìNÛs temos um excelente apartamento no Indian Village. O sr.
Exbridge usou de pistol„o para nos colocar l· dentro. H· uma fila de
espera, vocÍ sabe.î
ìE o que vocÍs fazem no dia de folga?î
ìTony est· escrevendo um livro de receitas. Eu investigo a
concorrÍncia pelo condado.î
ìTem feito descobertas interessantes?î
ìPrÛximo ao Old Stone Mill, Stephanieís tem a melhor comidaî,
disse Hixie, ìmas seu chef de cozinha tem algum tipo de bloqueio
mental. Eu pedi uma alcachofra
recheada e ele me trouxe um abacate recheado. Quando o garÁom
insistiu que era uma alcachofra, peguei meu prato e invadi a cozinha
para enfrentar o chef de cozinha,
e aquele arrogante est˙pido teve a aud·cia de me dizer que eu n„o
poderia distinguir uma alcachofra recheada de um crocodilo recheado!
Fiquei furiosa! Informei a
ele que uma alcachofra pertence ‡ mesma famÌlia do cardo e um
abacate È um fruto em forma de pÍra, cujo nome vem da palavra que
significa testÌculo em Nahuatl, embora
eu tivesse certeza que ele n„o sabia nada sobre o assunto!î
ìComo ele reagiu?î
ìLevantou uma faca de aÁougueiro e comeÁou a esmigalhar peitos
de galinha, de modo que me retirei antes que eu me tornasse um
n˙mero na estatÌstica de homicÌdio.î
* *
Fim.
* A autora